M&U04-Identidade, política e a teoria da escolha racional

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    Captulo 3

    IDENTIDADE, POLITICA E A TEORIA DA ESCOLHA RACIONAL1

    I

    A discusso que pretendo realizar pode ter como ponto de partida a distino

    estabelecida por Giovanni Sartori entre dois sentidos diferentes em que a expresso

    "ideologia" frequentemente usada.2 O primeiro o sentido que lhe atribudo nos

    trabalhos de sociologia do conhecimento: trata-se a do conjunto difuso de valores,

    crenas ou idias de qualquer tipo que se associam a determinada configurao decondies sociais gerais (posio de classe, poca, nacionalidade) e que vm a constituir

    a viso do mundo das pessoas. O segundo sentido o que a palavra adquire usualmente

    quando se trata de "ideologia poltica": aqui, d-se nfase noo de um conjunto

    estruturado e coerente de idias, que encerra como dimenso saliente a de estar destinado

    a servir de guia para a ao poltica. Percebe-se que um ponto relevante no contraste

    entre as duas noes de ideologia consiste, assim, no fato de que a primeira se refere a

    algo que , em ampla medida, um dado da situao social dos agentes individuais ou

    coletivos, enquanto a segunda, referida como se acha ao poltica, destaca umcomponente voluntrio e eventualmente lcido do comportamento daqueles agentes.

    Levada um pouco adiante a intuio a contida, a distino permite falar de um contraste

    entre o socialem geral, tomado como a esfera do dado, do substrato, do adscrito, e o

    poltico, tomado como a esfera do voluntrio e do deliberado.

    Isso remete de imediato questo da racionalidade dos agentes sociopolticos.

    Assim, no casual que a sociologia do conhecimento, recorrendo noo de ideologia

    para indicar os elementos socialmente dados da viso do mundo dos indivduos e grupos,

    destaque tambm as distores produzidas pela operao de tais elementos no que diz

    respeito, de maneira especial, percepo da prpria realidade social. Por contraste, a

    1 Trabalho preparado inicialmente para o seminrio Rationality, Identity and Interest, realizado noInter-University Centre, Dubrovnik, Iugoslvia, de 17 a 28 de maro de 1986, e posteriormente publicadonaRevista Brasileira de Cincias Sociais, no. 6, vol. 3, fevereiro de 1988.2 Giovanni Sartori, "Politics, Ideology and Belief Systems", American Political Science Review, vol. 63,n. 2, junho de 1969.

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    imagem do agente poltico envolvida no recurso noo de "ideologia poltica" antes a

    de um agente racional, capaz de estruturar coerentemente um universo poltico complexo

    e de decidir de forma consequente diante de qualquer problema especfico com que se

    defronte naquele universo.

    Como bem claro, quando empregado no sentido da sociologia do conhecimento,

    o termo ideologia sugere a dificuldade de se alcanar a "descentrao" intelectual e

    cognitiva que, no trabalho de Jean Piaget sobre o processo de desenvolvimento

    intelectual, aparece como caracterstica das fases maduras daquele processo.3 No

    vocabulrio de Piaget, ideologia, nesse sentido, sinnimo de "sociocentrismo", isto , a

    imerso em certo grupo ou coletividade e a adoo ingnua da perspectiva que lhe

    prpria, fenmeno este que a contrapartida sociolgica do egocentrismo correspondente

    s fases iniciais do desenvolvimento no plano do indivduo. Quanto concepo daideologia poltica, pode-se provavelmente apontar tambm, em seu uso na sociologia

    poltica, a presena de certo ingrediente mais ou menos importante de sociocentrismo.

    Mas o impulso principal da noo de ideologia poltica dirige-se antes na direo oposta,

    estando ligado suposio de que a descentrao cognitiva e intelectual pode

    efetivamente ser alcanada na esfera da ao poltica e atravs da ao poltica. Este o

    caso, em particular, dos efeitos atribudos ao aparecimento e penetrao de uma

    ideologia poltica entre os membros das classes subordinadas no que diz respeito s

    chances de que estes venham a escapar precisamente do controle difuso das ideologiasdominantes.

    Isso nos permite transitar para breve discusso da idia de racionalidade e de suas

    conexes com vrias categorias que correspondem a temas salientes nesta rea de

    estudos. No haver maior preocupao de explicitar os vnculos bastante bvios que

    algumas das idias abaixo apresentam com o trabalho de diferentes autores.4 Procurarei

    apenas situar certas posies analticas de maneira to sucinta quanto possvel.

    Comecemos pela proposio de que a racionalidade inevitavelmente supe a

    intencionalidade proposio esta que, acredito, ter de ser admitida mesmo por aqueles

    3 Veja-se, por exemplo, Jean Piaget,Estudos Sociolgicos, Rio de Janeiro, Forense, l973, especialmenteos ensaios "A Explicao em Sociologia" e "As Operaes Lgicas e a Vida Social".

    4 Dois nomes, contudo, merecem destaque a respeito, os de Jrgen Habermas e Jon Elster. Vejam-se, porexemplo, Jrgen Habermas, TheTheory of Communicative Action, vol. I, Boston, Beacon Press, l984; eJon Elster, Ulysses and the Sirens, Londres, Cambridge University Press, l979.

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    que se empenham por evitar a identificao ou assimilao recproca das duas categorias.

    O postulado que d nfase ao carter intencional do comportamento humano parece ser

    muito mais amplamente compartilhado do que o que destaca seu carter racional, pelo

    menos se os consideramos enquanto postulados adotados explicitamente pelos autores.

    No obstante, a importncia da intencionalidade como suposto orientador nas cincias

    sociais se encontra claramente ligada com a restrio da intencionalidade ao

    comportamento ( ao) de um agente que seja autonomamente capaz de avaliar a

    efetividade desse comportamento enquanto orientado para a realizao de objetivos, ou

    que seja capaz de avaliao autnoma das conexes entre seus objetivos e os meios de

    que dispe. Pois admitir a idia da busca de objetivos sem essa autonomia redundaria em

    reduzir a ao intencional s condies prprias do comportamento estimulado ou

    condicionado, em que osujeito atuante desaparece como tal. O que isso significa que aintencionalidade tem um inevitvel componente cognitivo, implicando o processamento

    de informaes. Em outras palavras: contrariamente ao alcance supostamente maior da

    intencionalidade com respeito racionalidade, intencionalidade implica racionalidade.

    Naturalmente, ser possvel falar degraus de racionalidade de acordo com o volume de

    informaes processadas; mas isso no interfere com a ligao entre a racionalidade e a

    efetividade ou eficcia de uma ao intencional na busca de seus objetivos, pois atravs

    do incremento da possibilidade de eficcia que maior processamento de informaes vem

    a significar maior racionalidade.Da podemos passar a diversas idias sobre os vnculos entre racionalidade, de um

    lado, e conhecimento e ao, de outro.

    1. A racionalidade necessariamente o atributo de uma ao ou, por extenso,

    do sujeito que age, na medida em que se possa supor que suas aes sero racionais. Se

    no h ao, no h tampouco um problema de racionalidade.

    2. Esse atributo tem a ver sobretudo com a eficcia da ao, a qual se acha

    diretamente relacionada com o controle e o processamento de informao relevante.

    3. A busca de conhecimento pode ela prpria ser vista como um tipo de ao cujo

    objetivo adquirir informao ou aument-la. Sua eficcia estar associada com a

    criao pelo(s) agente(s) das condies que levam quele objetivo, donde os requisitos de

    abertura, descentrao, disposio de comunicar e intercambiar e de permitir que a

    informao presumida seja intersubjetivamente controlada como condio de sua

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    "objetividade". Estamos aqui no reino da ao comunicativa mas crucial no esquecer

    ou minimizar que ela tem a sua prpria instrumentalidade.

    4. Outros tipos de ao, por contraste, apesar de exigirem o processamento de

    informao como condio de eficcia, como se d com qualquer ao, exigem tambm

    algum grau de fechamento, deciso, firmeza ou engajamento, o que equivale a dizer que

    os fins ou objetivos da ao devem estar estabelecidos de maneira suficientemente clara e

    consistente, ou a busca de objetivos ou intencionalidade como tal ser impossvel. Isso

    significa que o processamento de informaes, em tais casos, tem de se referir no

    somente ao ambiente imediato como tal, mas tambm ao prprio sujeito atuante, seus

    objetivos ou "preferncias" e sua consistncia atravs do tempo, as relaes entre os

    objetivos de longo prazo e de curto prazo, os custos para a possibilidade de eficcia na

    perseguio de certo objetivo que podem decorrer da postergao da ao correspondentee do empenho de se permanecer aberto e "descentrado" no interesse de aumentar a

    informao relevante, e assim por diante.

    5. Um desdobramento dessa linha de consideraes diz respeito s relaes entre

    abertura intelectual e a prpria idia de carter ou identidade. Por um lado, esta ltima

    claramente implica um importante componente de fechamento e engajamento,5 de

    fidelidade a certos objetivos orientadores que pertencem, de alguma forma,

    autenticamente ao sujeito que age, o que significa sobretudo que tais objetivos revelam

    afinidades com traos de sua personalidade que lanam razes em seu passado profundo eem sua memria e lhe so largamente dados ou mesmo impostos. E crucial assinalar,

    relativamente questo da racionalidade, que a presena desse componente de

    engajamento e rigidez no s no importa por si mesma em irracionalidade, mas deve

    mesmo ser vista como uma condio de racionalidade em certos contextos importantes.6

    Mas, por outro lado, para que seja este o caso tambm necessrio que um elemento de

    deliberao e vontade esclarecida venha a afirmar-se no prprio empenho de ser fiel a si

    mesmo; a questo da autenticidade tem ela prpria de decidir-se de maneira reflexiva, e

    deve necessariamente existir a capacidade de aprendersobre si mesmo (e ocasionalmente

    de mudar-se a si mesmo) se se quiser que a auto-afirmao autntica no venha a

    55 Veja-se o seguinte aforismo de Nietzsche emAlm do Bem e do Mal: "Uma vez que a deciso tenhasido tomada, fecha os teus ouvidos mesmo ao melhor argumento contrrio: sinal de um carter forte.Assim, uma disposio ocasional estupidez." Friedrich Nietzsche,Beyond Good and Evil, Nova York,Vintage Books, 1966, p. 84.6 Cf. Elster, Ulysses and the Sirens.

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    confundir-se com o comportamento cego de um autmato, mas corresponda ao

    efetivamente autnoma e racional. Por outras palavras, deve haver a possibilidade de

    escolher-se a si mesmo, ainda que as restries quanto a essa possibilidade sejam parte da

    idia de carter ou identidade.

    6. Em suma, a questo da racionalidade gira em torno da tenso contida na noo

    de ao informada: agir implica fechamento, engajamento, objetivos claros e

    consistentes (persistentes); a obteno e o processamento de informaes implicam

    abertura, disponibilidade, distanciamento. Tudo parece reduzir-se, assim, inevitvel

    dialtica entre "autocentrismo" e "descentrao" que se acha implcita naquela noo.7

    II

    O elo entre a idia de racionalidade e a idia de ao autnoma se desdobra, se

    considerado de certo ponto de vista, em algumas perspectivas epistemolgicas de

    relevncia para questes importantes no confronto entre a abordagem da "escolha

    racional" e a abordagem "convencional" ou sociolgica na cincia social da atualidade. A

    idia principal a de que se, por um lado, a autonomia se encontra inevitavelmente na

    raiz da racionalidade dados os requisitos cognitivos daquela (bem como os requisitos

    "ativos" desta), e se a ao autnoma fornece assim a pedra fundamental de qualquer

    intento de apreender cognitivamente e estruturar analiticamente a realidade social ehumana (ou mesmo a realidade "objetiva", na verdade); por outro lado, a ao autnoma

    7 Talvez valha a pena ligar essa discusso com o tema do livroAs Paixes e os Interesses, de AlbertHirschman (Rio de Janeiro, Paz e Terra, l979). No obstante os vrios matizes nos significados e nasrelaes de "paixes" e "interesses" no captulo de histria intelectual explorado por Hirschman, oelemento principal do contraste entre ambos que emerge de sua anlise parece consistir precisamente nofato de que vamos encontrar nos interesses melhor equilbrio entre "autocentrao" (impulsomotivacional, determinao na busca de um objetivo) e "descentrao" (distanciamento cognitivo) do quenas paixes. Assim, adequado falar de algo como o "melhor interesse" de algum (em ingls usual aexpresso "considered interest"), que implica, naturalmente, uma atitude de avaliao sbria e informada.

    De um ponto de vista distinto, porm, podem fazer-se algumas observaes que vo em direo diferente.Em primeiro lugar, a noo de interesse tambm correntemente usada para salientar justamente oaspecto de "autocentrao", ligando-se com frequncia a egosmo e parcialidade. Em segundo lugar, oforte impulso motivacional que se supe ser inerente ao comportamento "passional" pode redundar emfator propcio a uma forma inteiramente "instrumental" de perseguir os objetivos, como as novelas deamor ilustram abundantemente. Por ltimo, embora isto seja talvez menos relevante se considerado dongulo especfico da abordagem de Hirschman a respeito do assunto, no h razo para opor "paixo" e"interesse" como freqentemente sugerido no uso corrente das palavras de acordo com a naturezaintrnseca dos objetivos almejados: possvel, por exemplo, ser totalmente passional a respeito de bensmateriais, bem como "distanciadamente" interessado a respeito de bens de outro tipo.

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    tambm, do ponto de vista das cincias humanas e sociais, o fator decisivo a responder

    pela ocorrncia da caracterstica fortuita e imprevisvel na esfera do comportamento

    humano e coloca tambm, portanto, o principal desafio com que tais cincias devem

    lidar.

    As consequncias para a presente disputa entre as abordagens sociolgica e da

    escolha racional podem ser apreciadas se tomamos a intrigante simetria de uma acusao

    que as duas se fazem reciprocamente, a qual aparece, por exemplo, em dois artigos da

    autoria de Barry Hindess e Adam Przeworski. Assim, Hindess acusa o modelo da escolha

    racional de aderir a um postulado de "homogeneidade", como resultado do qual "formas

    estilizadas de clculo racional so definidas como correspondendo a todos os atores

    dentro de cada categoria de atores reconhecida no modelo".8 De acordo com Hindess, os

    atores "geralmente tm razes para suas aes, mas no h porque supor que a forma deraciocnio envolvida deva ser a mesma para todos os eleitores, todos os partidos ou todos

    os empresrios", suposio esta que implicaria um "determinismo estrutural".9

    Curiosamente, Przeworski, que toma posio ao lado do individualismo metodolgico e

    da "concepo do comportamento como ao intencional e estratgica" por contraste com

    "a concepo psicossociolgica do comportamento como execuo de normas

    interiorizadas", acusa os funcionalistas (cujo modo de explicao ele sustenta ter sido

    adotado pelos marxistas na prtica) de ver "todo comportamento individual como um ato

    de execuo da sociedade interiorizada, com a implicao de que todas as pessoasexpostas s mesmas normas e valores deveriam agir da mesma maneira".

    Especificamente, os marxistas "satisfizeram-se com a crena intuitiva de que as pessoas

    executam (act out) suas posies de classe", julgando, de qualquer forma, que o que

    importante na histria acontece ao nvel das foras, estruturas, coletividades e

    condicionamentos, e no ao nvel dos indivduos.10

    Ora, o que quero propor a respeito que essa simetria pode ser vista como a

    expresso equvoca de um problema epistemolgico que cada uma das posies

    contrastantes no pode pretender resolver por si mesma. O suposto de "homogeneidade"

    que cada campo apresenta como uma acusao dirigida ao outro corresponde a

    8 Barry Hindess, "Rational Choice Theory and the Analysis of Political Action", Economy and Society,vol. 13, no. 3, p. 263.9 Ibid., p. 267.10 Cf. Adam Przeworski, Marxismo e Escolha Racional, Revista Brasileira de Cincias Sociais, no. 6,vol. 3, fevereiro de 1988, pp. 7 e 8.

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    inarredvel necessidade associada inclinao nomolgica inerente a qualquer esforo de

    construir uma cincia da sociedade, e portanto ao objetivo de substituir por alguma

    forma de regularidade o que aparece primeira vista como comportamento fortuito ou

    idiossincrtico, ou de "domesticar" cientificamente o fortuito. Essa domesticao

    indispensvel, naturalmente, se se pretende ser fiel ao ideal de parcimnia cientfica e

    evitar um hiper-empirismo cego que no seria capaz, no limite, nem mesmo de descrever

    o que quer que seja. Ora, as regularidades a que temos de recorrer no contexto definido

    pela disputa em questo acham-se necessariamente referidas ao comportamento de atores

    encerrados em ambientes (estes ltimos incluindo, naturalmente, aspectos que so

    materiais, sociais, sociopsicolgicos etc.). Em princpio, possvel comear, ao buscar as

    fontes de regularidade nas aes, quer de caractersticas dos ambientes que de algum

    modo constrangem os atores, quer de caractersticas dos prprios atores. Mas emqualquer caso a referncia ao outro polo inevitvel, e haver sempre pressupostos

    restritivos e "homogeneizantes" em qualquer nvel analtico dado. As constries de um

    ambiente supostamente homogneo podem operar diferentemente sobre diferentes

    indivduos (por exemplo, certas normas so mais plenamente interiorizadas por alguns

    indivduos que por outros) e o problema cientfico consistir em ampla medida em

    estabelecercategorias de indivduos nas quais essa operao diferencial se d. Ao revs,

    indivduos que se supem, digamos, homogeneamente racionais agiro diferentemente de

    acordo com diferenas em seus ambientes e o problema cientfico consistir ento emestabelecer categorias de ambientes que possam responder por tal comportamento

    diferencial.11

    Creio existirem boas razes para se tomar como ponto de partida mais bsico e

    11 Um volume merece meno neste contexto em que o exame da abordagem da escolha racional leva aconsiderar a questo do carter nomolgico da cincia: refiro-me a Raymond Boudon, La Place du

    Dsordre, Paris, Presses Universitaires de France, l984. O volume se dedica discusso de problemasepistemolgicos das cincias sociais, com ateno especial para teorias de mudana social, e inteiramente simptico s propostas da abordagem da escolha racional, apesar de design-la por outros

    nomes. Mas Boudon pretende extrair de sua adeso a certos supostos bsicos dessa abordagem razespara denunciar o que chama de "preconceito nomolgico", dedicando todo um captulo sua crtica.Contudo, salta aos olhos a inconsistncia do esforo de Boudon a este respeito, pois o volume estcarregado de passagens cruciais em que a crtica nomologia vai por gua abaixo no recurso implcito oumesmo explcito ao papel de regularidades e leis na explicao sociolgica adequada. Em particular, o

    papel atribudo s "estruturas de oportunidades" no condicionamento da conduta de atores supostamenteracionais (veja-se, por exemplo, p. 98, a propsito da crtica da concepo nomolgica contida na teoriado desenvolvimento econmico de E. Hagen) no tem como escapar, se pretende ser o fundamento paraque se possa chegar a explicaes que sejam satisfatrias como tal, da suposio de que as mesmasestruturas de oportunidades produziro os mesmos resultados.

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    parcimonioso o que se assenta na suposio de racionalidade dos sujeitos atuantes. Para

    destacar uma delas, penso que se pode mostrar, de acordo com posies sustentadas

    acima, que os principais ingredientes de uma abordagem "racional" estaro presentes

    sempre que se admita a caracterstica intencional do comportamento e estaro

    presentes, portanto, mesmo em abordagens convencionalmente "sociolgicas", de cujas

    proposies seria impossvel fazer sentido, em ltima anlise, na ausncia desses

    ingredientes. Se o comportamento orientado por normas no um comportamento

    meramente "causal", isso se deve a que ele ainda comportamento racional, ou seja,

    comportamento de um sujeito autnomo que pode avaliar por si prprio a situao em

    que tem de agir e ocasionalmente decidir mesmo pela transgresso da norma, optando

    pelas delcias do crime ou do pecado e por sofrer em seguida as sanes correspondentes

    ou talvez escapar delas, e eventualmente ajudar a criar novas normas.Mas o outro lado da moeda que ser sempre necessrio especificar as categorias

    de ambientes em que os atores se movem e agem. E no vejo como, nessa tarefa, a

    abordagem da escolha racional, no que tem de distintivo em contraste com abordagens

    "convencionais", possa legitimamente aspirar a substituir estas ltimas. Tome-se, por

    exemplo, a formulao feita pelo prprio Przeworski, no artigo antes citado, da "questo

    central colocada pelo individualismo metodolgico" ("sob que condies, de sempre a

    nunca, a solidariedade [...] racional para os trabalhadores individuais ou para grupos

    especficos de trabalhadores?"), bem como a importante resposta que ele acredita ter-lhesido dada por Michael Wallerstein: "determinados sindicatos tentaro organizar todos (e

    apenas) os trabalhadores que competem uns com os outros no interior do mesmo

    mercado de trabalho, enquanto outros sindicatos cooperaro uns com os outros

    [adotando, portanto, uma estratgia solidria "horizontalmente" FWR] em pequenas

    economias obrigadas a depender do comrcio exterior, mas procuraro cooperar com os

    empregadores se puderem beneficiar-se de qualquer forma de renda monopolstica

    (especialmente proteo)".12 bem claro que tanto a pergunta como a resposta apontam

    para a necessidade de conhecimento de natureza perfeitamente "convencional" e

    "sociolgica" a fim de que se possa alcanar o diagnstico das situaes defrontadas

    pelos trabalhadores ou sindicatos: como se chega a saber o que uma economia

    dependente do comrcio exterior (e em que medida determinada economia exibe essa

    12 Przeworski, Marxismo e Escolha Racional, p. 14.

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    caracterstica), quais so as condies para que sindicatos particulares possam esperar

    contar com ganhos derivados de proteo,13 como um sindicato particular chega

    originalmente a serum sindicato? Acima de tudo, de vez que isto se refere pergunta

    mesma enunciada por Przeworski e sugere circunstncias em que ela teria de ser

    reformulada, no h situaes em que a solidariedade entre os membros de um grupo

    um fato a ser tomado como tal, e onde o problema consiste antes em estabelecer as

    condies em que o sistema solidrio assim constitudo poderia agir eficazmente

    (racionalmente) em busca de seus interesses solidrios ou coletivos nas interaes

    estratgicas em que se envolve com outros membros coletivos ou individuais de um

    sistema de interesses abrangente?14 No se ajusta isso ao caso dos sindicatos ou grupos de

    trabalhadores de que fala Przeworski?

    Por certo, o grande mrito do individualismo metodolgico ou, mais amplamente,da abordagem da escolha racional reside no vigor com que adverte para o carter

    problemtico do processo de formao de precisamente esses sujeitos coletivos ou

    sistemas solidrios capazes de ao concertada, processo este que envolve ele prprio um

    ingrediente estratgico que muitas vezes tende a ser ignorado. Mas esse componente

    sadio de um sbrio e comedido "individualismo" metodolgico que no requer, para

    comear, a suposio de motivao egosta no fundamento para que se adote a idia

    de um puro jogo de estratgia a ocorrer num vazio sociolgico. Tal idia se acha

    claramente presente em muito do que tm produzido os tericos do individualismometodolgico, donde a pretenso de substituir a "sociologia" pelo modelo da escolha

    racional: com frequncia, o paradigma por eles sugerido, com a preocupao de propiciar

    13 Em texto mais recente, Przeworski volta ao mesmo assunto de maneira que, pelas indagaes queintroduz, favorece o questionamento aqui feito: "Na Europa, um movimento sindical forte e centralizadose desenvolveu em pequenas economias abertas ao comrcio exterior. (...) Wallerstein (...) sustentourecentemente que quando uma economia demasiado pequena para adotar polticas protecionistas, ossindicatos no podem compartilhar com as firmas das rendas de monoplio que estariam disponveis emcaso de protecionismo setorial, e optam, conseqentemente, por uma atuao 'solidarstica' destinada a

    pressionar por polticas de welfare. Como na Amrica Latina existem vrios pases pequenos, de umaperspectiva europia surpreendente que eles tendam ao protecionismo e que o movimento sindical semostre fragmentado." Veja-se Adam Przeworski, "Micro-foundations of Pacts in Latin America",manuscrito, Universidade de Chicago, maro de 1987, p. 4, nota 1.14 A dialtica entre sistemas de solidariedade e sistemas de interesses esboada por Alessandro Pizzornoem "Introduzione allo Studio della Partecipazione Politica", Quaderni di Sociologia, vol. 15, no. 3-4(julho-dezembro de l966), pp. 235-288, e retomada e elaborada em meu Poltica e Racionalidade:

    Problemas de Teoria e Mtodo de uma Sociologia Crtica da Poltica, Belo Horizonte, Edies RBEP,1984. Veja-se tambm Solidariedade, Interesses e Desenvolvimento Poltico, captulo 5 do presentevolume.

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    os "fundamentos micro dos fenmenos macro", envolve, ao menos implicitamente, a

    suposio de que seria necessrio inventar por inteiro a sociedade partindo de meros

    indivduos calculadores, deduzir aquela a partir destes. Sua viso da sociedade

    tipicamente a dissolve num "estado de natureza" no qual no h instituies, histria,

    vnculos intergeneracionais, grupos de qualquer tipo, lealdade ou solidariedade.

    Claramente, isso um exagero sem conexo necessria com o contedo positivo da

    proposta da escolha racional. Se consideramos especificamente os problemas da poltica,

    o desafio e a promessa associados nfase na racionalidade e em seu inevitvel

    componente instrumental me parecem consistir em apreender a maneira pela qual a

    tomada de decises consciente e a conduta estratgica (a esfera da ao propriamente

    poltica) se articulam com o contexto institucional e sociolgico que est, naturalmente,

    sempre presente. O esforo nessa direo parece necessrio para evitar trs postuladosigualmente falaciosos que ocorrem com frequncia como soluo aos problemas

    metodolgicos das cincias sociais: (a) o postulado do indivduo isolado da fico

    contratualista que se acaba de mencionar; (b) o postulado utilitarista da sociedade como

    um todo tomada como a unidade coletiva ou o sujeito coletivo, o qual resulta em

    modelos orgnicos ou cibernticos da sociedade; e (c) o postulado da constituio

    automtica e no problemtica de sujeitos coletivos de natureza "parcial", tais como os

    que dizem respeito s classes sociais, postulado este ao qual frequentemente recorrem

    muitos que no hesitam em questionar com veemncia a adoo de suposies anlogaspara o caso da sociedade como um todo.15

    III

    Em tudo o que se disse at aqui, um claro fio diretor pode ser encontrado na

    oposio de duas dimenses que ou se encontram subjacentes aos problemas conceituais

    ou emergem na superfcie como antinomias explcitas: ideologia como viso do mundo

    15 A crtica mais detida, nessa linha, dos exageros e equvocos da abordagem da escolha racional, bemcomo o exame de vrias questes epistemolgicas relacionadas, pode ser encontrada em meu Poltica e

    Racionalidade, especialmente a segunda parte, e tambm em "Mudana, Racionalidade e Poltica",captulo 1 do presente volume. Apesar das posies insustentveis quanto questo da nomologia acimacomentadas, Raymond Boudon (La Place du Dsordre) prope um modelo bsico de explicao que, nasrelaes de ida e volta que inclui entre os nveis "micro" e "macro", me parece contornar adequadamenteas principais dificuldades deparadas neste contexto.

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    sociocntrica versus ideologia poltica, sociologia convencional versus escolha racional,

    comunicao versus instrumentalidade, identidade versus intencionalidade, solidariedade

    versus interesses etc. Sustentei que a idia de racionalidade contm em si mesma muito

    da tenso expressa nesses pares de categorias, e tambm que a postura

    epistemologicamente profcua envolve a integrao ou o acoplamento das abordagens

    sociolgica e da escolha racional, antes que qualquer pretenso de exclusividade.

    bastante claro, em minha opinio, que a dialtica entre as duas dimenses bsicas

    subjacentes corresponde ao que ser talvez a principal motivao das cincias sociais

    como tal, podendo ser formulada, por exemplo, em termos do velho problema de

    determinismo e liberdade. Essa dialtica certamente fundamental para uma cincia

    social que se pretenda crtica, cuja preocupao emancipatria geral coloca a um tempo

    os problemas instrumentais associados com a realizao do objetivo da emancipao e o problema da identidade daqueles que devero (autenticamente) emancipar-se a si

    mesmos.

    Mas alguns avanos analticos podem ainda realizar-se, acredito, se essa mesma

    dialtica examinada a um nvel mais "concreto", prprio da sociologia poltica, em que

    a idia mesma de identidade revela forte ambivalncia em suas relaes com o lado

    instrumental da poltica. Tomem-se, por exemplo, as formas clssicas de movimentos

    polticos referidos a nacionalidades, grupos tnicos e classes sociais. Por um lado, tais

    movimentos tendem a apresentar-se como a expresso de coletividades cuja identidadeparece de alguma forma prvia ou dada (adscrita), e a referncia aos fundamentos

    predeterminados da identidade que fornece, prima facie, a legitimidade de tais

    movimentos. Isso se liga ao fato de que as coletividades em questo so de tal natureza

    que se torna sem sentido, em princpio, a pretenso de associar a participao nelas a

    funes a serem preenchidas ou tarefas a serem executadas: trata-se aqui de

    "microcosmos" ou subculturas (s vezes designadas como grupos "multifuncionais" ou

    "suprafuncionais" na literatura sociolgica) nos quais o indivduo se encontra usualmente

    imerso de maneira complexa e abrangente, por contraste com as formas voluntrias e

    segmentrias de participao que so caractersticas de grupos "funcionais" tais como

    partidos, clubes etc. Essa natureza multifuncional adquire especial relevncia antes de

    tudo por representar um fator decisivo (em conexo precisamente com o carter no

    voluntrio e adscritcio da participao) no importante papel desempenhado por tal tipo

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    de coletividade na conformao da identidade pessoal de seus membros: o prprio

    sentido de dignidade ou integridade pessoal com frequncia profundamente afetado

    pela insero nesta ou naquela coletividade multifuncional e pela forma em que esta se

    relaciona com outras.

    Por outro lado, o principal objetivo tipicamente buscado na ao poltica

    desenvolvida nos movimentos polticos em questo consiste precisamente em transformar

    a base da identidade coletiva e pessoal num problema de escolha voluntria e lcida

    referida a fins a serem realizados. Isso se revela de maneira exemplar na ligao

    estabelecida na literatura marxista entre a identidade e a conscincia de classe, de um

    lado, e, de outro, certa ideologia poltica (no sentido de Sartori) que aponta um trabalho

    a ser feito ou uma misso a ser cumprida. Particularmente do ponto de vista das classes

    dominadas, como se indicou acima, justamente nessa conexo entre a identidade etarefas a serem executadas, isto , entre a identidade e a instrumentalidade da ao

    poltica, que reside a possibilidade de resistirem penetrao difusa das ideologias ou

    vises do mundo dominantes e assim livrarem-se da conformidade e da passividade em

    outras palavras, erguerem-se como classes "para si", supostamente capazes de ao

    coletiva. Observaes anlogas se poderiam fazer com respeito transio da imerso

    ingnua e passiva em tradies tnicas e nacionais para a ao poltica referida aos

    interesses das etnias e nacionalidades correspondentes.16 Assim, contra o jugo das vises

    do mundo "dadas" e a conformao por elas realizada da identidade coletiva e pessoal, ameta seria a de redefinir a questo mesma da identidade em termos de grupos

    "funcionais" com tarefas (polticas) a serem executadas, ou seja, trazer a vontade e a

    deliberao (e portanto a "descentrao" cognitiva) prpria esfera da definio da

    identidade.17

    Essa meta pareceria alcanada ainda em conexo com tais formas clssicas de

    movimentos polticos quando se chega a ter as "identificaes partidrias". Pois seria

    16 Um exemplo prximo o representado pela doutrina do nacionalismo brasileiro tal como elaboradapelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) durante os anos 50. O "patriotismo" tradicional eraa oposto defesa efetiva dos interesses econmicos do pas, a qual era vista como a maneira adequadade se afirmar a identidade nacional.17 Isso se liga claramente prpria noo de autonomia e liberdade. Considere-se, por exemplo, aseguinte observao de Jon Elster: "Penso que a idia subjacente noo kantiana de liberdade a de queo homem deveria, de alguma forma, escolher-se a si mesmo; ser livre no apenas no sentido fraco de agirde acordo com preferncias consistentes, de qualquer nvel, mas tambm no sentido mais forte de terescolhido essas preferncias." (Logic and Society, Nova York, Wiley, l978, p. 162.)

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    de se supor que, com a ocorrncia destas, ideologias polticas estruturadas e coerentes

    viessem a mediar a adeso a categorias coletivas multifuncionais, e que as identidades

    coletivas correspondentes viessem conseqentemente a se tornar intelectualmente

    esclarecidas e lcidas. Como se sabe, isso est longe de ser certo. Atravs de estudos tais

    como The Social Democrats in Imperial Germany, de Gunther Roth, para o caso dos

    partidos marxistas, os numerosos e sofisticados surveys da "escola de Michigan", e

    muitos outros,18 agora de conhecimento corrente que o partido poltico, ao invs de ser

    o instrumento de uma identidade referida a entidades, categorias ou idias que o

    extravasam, com frequncia ele prprio o foco ou objeto irrefletido de identidades

    coletivas e pessoais. As "identificaes partidrias" assim estabelecidas no apenas

    tendem, em geral, a exibir grande estabilidade tanto no interior de dada gerao quanto

    de uma gerao a outra, bem como a ser em alguma medida independentes de basessociais tais como as que correspondem s classes sociais; elas so tambm amplamente

    independentes do grau de organicidade ou de capacidade de estruturao cognitiva

    revelado pelos eleitores em sua percepo dos issues ou questes de natureza variada a

    comporem as ideologias polticas correntes. Por outras palavras, a identificao partidria

    como tal, a simples lealdade adquirida ou herdada para com determinado partido, tende a

    se tornar um fator decisivo no condicionamento da identidade politicamente relevante de

    muitos atores polticos.

    Algumas concluses provisrias podem ser extradas dessas observaes. Acimade tudo, a de que se certo que a ao poltica envolve sempre, onde e como quer que se

    d, um problema de identidade pessoal e de sua complexa articulao com este ou aquele

    foco de identidade coletiva, no h razo para supor que tal problema venha a ser sempre

    solucionado da mesma maneira. Fatores dados de identidade coletiva e grupos

    "multifuncionais" correspondentes sero com frequncia pontos de referncia para a ao

    poltica que, no entanto, fatalmente os redefinir ao se desdobrar como tal. Por seu

    turno, as instrumentalidades mesmas da ao poltica podem vir e tendero mesmo com

    frequncia a constituir-se em focos de definio de identidades pessoais e coletivas. As

    ideologias enquanto "vises do mundo", por difusas que sejam, podem naturalmente

    18 Guenther Roth, The Social Democrats in Imperial Germany, Totowa, N.J., Bedminster Press, l963. Umexemplo destacado dos estudos de Michigan o clssico artigo de Philip E. Converse, "The Nature ofBelief Systems in Mass Publics", em David A. Apter (ed.),Ideology and Discontent, Nova York, FreePress, l964. Veja-se tambm o extenso exame do tema da identificao partidria a ser encontrado em IanBudge, Ivor Crewe e Dennis Farley (eds.),Party Identification and Beyond, Londres, Wiley, l976.

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    tornar-se ingredientes ou instrumentos de ideologias polticas de cunho estratgico e

    orientadas para a ao assim como, simetricamente, os issues ou temas cognitiva e

    instrumentalmente articulados destas ltimas podem vir a substituir vises do mundo

    "dadas" no condicionamento da identidade pessoal e poltica.

    Ressalte-se, em particular, que essa dialtica entre o instrumental e o expressivo

    na ao poltica transita sempre, de alguma forma, pelo plano do cognitivo, com respeito

    ao qual indispensvel ter presente a capacidade de estruturao e integrao coerente

    que se destaca no sentido acima atribudo "ideologia poltica". Nesse sentido, atuao

    poltica ideolgica , a rigor, atuao poltica issue-oriented ou seja, aquela forma de

    comportamento poltico em que o ator se encontra informado sobre os diversos aspectos

    do universo poltico em que atua e situa-se perante as questes da conjuntura poltica

    atravs do esforo de estabelecer sua conexo com o diagnstico dos aspectos maisestveis daquele universo. Se o jogo acima esboado entre o instrumental (estratgico) e

    o expressivo ou simblico (a identidade) considerado a essa luz, v-se que possvel

    distinguir algumas configuraes mais ou menos claras a respeito: (a) uma condio em

    que se trata de identidades dadas ou adscritas, cognitivamente ingnuas e acrticas, que

    no so como tal o objeto ou a referncia de aes instrumentais ou estratgicas; (b)

    outra em que tais identidades, reflexivamente tomadas, passam precisamente a constituir

    o objeto de ao poltica estrategicamente orientada, quando a articulao cognitiva, nos

    planos sincrnico e diacrnico, da diversidade de aspectos do ambiente em que a ao sedesenvolve se torna crucial, e prevalece a conduta issue-oriented; e (c) outra em que o

    prprio instrumental da ao poltica, em particular o partido ou o movimento

    organizado em torno de um iderio de maior ou menor sofisticao, se torna um ponto de

    referncia importante ou mesmo decisivo para a conformao da identidade coletiva e

    pessoal. Naturalmente, outras possibilidades e mesclas se do, e podem eventualmente

    mostrar-se mais ou menos relevantes em diferentes contextos. Como quer que seja, a

    conjugao de identidade e instrumentalidade uma questo complexa e aberta, e tais

    categorias esto longe de representar formas alternativas de conceber a poltica.

    IV

    Gostaria agora de ilustrar essas perspectivas a respeito da questo geral das

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    relaes entre identidade e instrumentalidade com recurso a duas reas de problemas, a

    primeira tendo a ver com comportamento eleitoral e a segunda com relaes raciais. Em

    ambos os casos estarei me referindo sobretudo a observaes que se aplicam ao Brasil da

    atualidade, mas ambos me parecem permitir que se extraiam algumas lies comparativas

    de importncia.

    Comecemos por alguns estudos de sociologia eleitoral relativos s ltimas

    dcadas da vida poltica brasileira, sobretudo ao processo eleitoral que teve lugar sob o

    regime autoritrio de ps-1964. As anlises de dados levantados em diversos momentos

    levaram a certo esquema interpretativo que pode ser descrito como uma integrao de

    dois modelos bem conhecidos que aparecem na literatura sobre participao poltica, a

    saber, o modelo da "centralidade" e o modelo da "conscincia de classe".19 O primeiro

    deles prope uma relao causal entre a intensidade da participao polticaexperimentada pelas pessoas e o grau de "centralidade" de sua posio social, isto , o

    grau em que se mostram, tanto objetiva quanto subjetivamente, prximas ou integradas

    ao "ncleo" do sistema social geral em decorrncia da posio ocupada numa srie de

    variveis, destacando-se a posio de classe ou o status socioeconmico (a dimenso

    "vertical" da centralidade) e a experincia urbana (sua dimenso "horizontal"): quanto

    mais alta a posio de classe e quanto maior a integrao na vida das cidades, com sua

    contrapartida de alargamento do horizonte intelectual-psicolgico e de maior exposio a

    informaes de todo tipo, tanto maior a participao poltica. J o modelo da conscinciade classe, de inspirao marxista, vincula a participao poltica "intensidade" e

    "clareza" da conscincia alcanada pelos indivduos de pertencerem a certa classe social:

    maior a conscincia de classe (mais intensa, mais clara), maior a participao.20

    A articulao que proponho entre os dois modelos refere-se ao fato de que, pelo

    menos nas condies brasileiras, os fatores associados com a "centralidade" da posio

    social geral no s afetam diretamente a participao poltica (em particular a eleitoral),

    mas tambm influem decisivamente sobre a possibilidade de que o modelo da

    conscincia de classe venha ele prprio a atuar, bem como sobre as formas assumidas por

    tal atuao. A idia geral bastante ortodoxa, embora se torne talvez mais precisa ao se

    transpor nesta linguagem a de que as dimenses variadas da centralidade,

    19 Ver tambm Pizzorno, Introduzione allo Studio della Partecipazione Politica, a respeito.20 Ibid., p. 261.

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    conjugando-se, definem contextos que se mostram mais ou menos favorveis operao

    dos mecanismos sciopsicolgicos e intelectuais previstos pelo modelo da conscincia de

    classe. Alm disso, na medida em que a noo de centralidade inclui como dimenso

    saliente a prpria posio de classe, ou fatores intimamente ligados a esta, o

    condicionamento exercido pelos fatores de centralidade sobre a participao poltico-

    eleitoral, ao filtrar-se em parte atravs dos mecanismos da conscincia de classe, no

    pode deixar de ter consequncias para a direo ou o contedo (conformista ou

    inconformista, conservador ou tendencialmente contestatrio) da participao, parte os

    efeitos sobre a maior ou menorintensidade dela.21

    O resultado geral da teia de causalidade relativamente complexa que a se

    vislumbra apresenta alguns traos destacados e relacionados. Em primeiro lugar, fatal,

    nas condies da atualidade brasileira, que os membros das categorias sociaiseconomicamente favorecidas sejam, em decorrncia de sua posio social mesma,

    aqueles que manifestam maior grau de conscincia de classe em seu comportamento

    poltico-eleitoral. So eles, por outras palavras, que mostram percepo mais refinada do

    universo poltico, estruturando-o de maneira a estabelecer correspondncia mais ntida e

    coerente entre sua "viso do mundo" ou perspectiva scio-poltica bsica, de um lado, e

    as posies mantidas com respeito aos diversos itens do debate poltico de uma

    conjuntura dada, de outro, bem como dando traduo mais consequente a essa

    estruturao em termos de opo eleitoral-partidria. Em segundo lugar, os "setores populares" tendero a apresentar internamente formas de comportamento poltico

    heterogneas e mesmo contrastantes: por um lado, tais setores so, globalmente

    considerados, aquela categoria que por definio sofre mais direta e maciamente os

    efeitos da condio "marginal" ou "perifrica" (em termos do modelo da centralidade);

    mas eles so tambm a categoria em que o impacto da alterao nessa condio por meio

    dos processos associados industrializao e urbanizao mais se far sentir sobre as

    disposies relativas participao poltica com a consequncia de que se combinaro

    nessa categoria (por exemplo, de acordo com o carter rural ou urbano de partes dela)

    inclinaes acentuadamente conservadoras, marcadas por hbitos de deferncia, e outras

    21 Alguns textos do autor em que se discutem mais extensamente essas idias e as verificaes a seremapresentadas em seguida so: "Classes Sociais e Opo Partidria", em Fbio W. Reis (org.), Os Partidose o Regime, So Paulo, Smbolo, l978; "O Eleitorado, os Partidos e o Regime Autoritrio Brasileiro",captulo 10 do presente volume; e (em colaborao com Mnica Mata Machado de Castro) "Regies,Classe e Ideologia no Processo Eleitoral Brasileiro", captulo 11 do presente volume.

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    de sentido inconformista e reivindicante.

    Ademais, essa combinao, na maior parte dos estratos populares do eleitorado

    brasileiro e mesmo independentemente, em alguma medida, de tratar-se de meio rural ou

    urbano, se traduz em algo que poderia talvez ser visto como uma ambivalncia

    fundamental. Por um lado, trata-se aqui de eleitores caracterizados por serem

    politicamente alheios, com frequncia propensos a atitudes de deferncia e a se deixarem

    mesmo impregnar, no plano dos valores verbalizados, pela retrica empregada na

    propaganda de um regime autoritrio como o que existiu at h pouco no pas. De

    maneira no surpreendente, a maioria avassaladora dos que se incluem nessa frao do

    eleitorado se mostram desinformados e indiferentes com respeito aos grandes temas do

    debate poltico-institucional da atualidade brasileira. Mas isso no tudo. Mesmo aquelas

    questes que se pode presumir que tenham impacto mais direto em sua vida cotidiana,tais como o custo de vida, esto longe de exibir, nos setores em questo, qualquer relao

    clara com o comportamento eleitoral. No obstante, h, de outro lado, marcada e

    consistente tendncia "rebelde" como caracterstica majoritria do eleitorado popular: ela

    se manifesta, por exemplo, no fato de que, durante a vigncia do autoritarismo, uma vez

    ultrapassado certo limiar de participao scio-poltica geral (isto , uma vez que se

    deixe a condio de estrita marginalidade, mais marcadamente distinguida por hbitos de

    deferncia social e por total alheamento poltico, a ser encontrada nos setores populares

    rurais e nos extremos de pobreza das populaes urbanas), d-se claramente a tendnciaao voto de oposio ao regime.

    Assim, no eleitorado popular, em cuja percepo no se integram seno

    precariamente os diversos aspectos ou dimenses do universo scio-poltico, a opo

    eleitoral oposicionista parece ligar-se antes ao contraste vagamente apreendido entre o

    popular e o elitista ("pobres" versus "ricos", "povo" versus "governo"), no qual se traduz

    uma insatisfao difusa incapaz de articular-se por referncia a problemas especficos de

    qualquer natureza. Por outras palavras: votar na oposio , para o eleitor em questo,

    um pouco como "torcer" por um clube popular de futebol o Flamengo, digamos, para

    tomar talvez o mais popular deles. Mas o simplismo mesmo das percepes e imagens

    em que se baseia essa propenso um fator a emprestar consistncia e estabilidade aos

    padres de votao popular. Assentada a poeira das perturbaes do quadro partidrio,

    vislumbrados, em seguida a cada rearranjo mais ou menos artificial ou imposto desse

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    quadro, os novos contornos poltico-partidrios da contraposio entre "povo" e "elite",

    volta-se, como no populismo de pr-64 e no MDB de ps-64, ao leito "natural". Temos,

    assim, uma espcie de "sndrome do Flamengo" que no apenas tende a negar a um

    regime autoritrio como o que controlou o pas at 1985 a possibilidade de verdadeira

    legitimao pela via eleitoral como tambm faz do populismo, na atualidade brasileira,

    uma fatalidade, desde que as condies institucionais permitam um jogo poltico

    razoavelmente aberto e sensvel perante o eleitorado.

    Voltemo-nos agora para a questo racial. Como se sabe, o Brasil uma sociedade

    racialmente heterognea, cuja populao parcialmente negra, parcialmente branca e

    parcialmente de ascendncia autctone (alm da imigrao de origem asitica), com alto

    grau de miscigenao e uma ideologia oficial de "democracia racial". Por certo, observa-

    se a existncia de preconceito e discriminao raciais, particularmente contra os negros.Mas parece sustentvel que a situao a este respeito bem diferente

    para melhor da que prevaleceu tradicionalmente, por exemplo, nos Estados Unidos:

    alm do fato de que as linhas de estratificao racial parecem bem menos rgidas no

    Brasil, no h a memria de dio racial existente naquele pas.

    Pois bem. De um ponto de vista normativo, patente que a existncia de

    preconceito racial e de discriminao baseada em caractersticas raciais representa um

    aspecto odioso da estrutura social brasileira que cumpre combater e suprimir. Aventuro-

    me a propor, contudo, apesar de reconhecer que se trata de terreno delicado e polmico,que da no se segue que a luta pela melhoria das relaes raciais no Brasil deva passar

    necessariamente, como pretendem alguns, pela afirmao de uma identidade negra como

    tal. Por certo no seria o caso de tomar como modelo a respeito a experincia dos

    Estados Unidos, onde a amarga memria de dio racial no permite contemplar como

    soluo plausvel para o problema racial seno a de uma espcie de "federao" de

    grupos raciais, os quais viriam eventualmente a relacionar-se igualitariamente, mas de

    maneira pelo menos latentemente hostil, "de potncia a potncia". No caso do Brasil (em

    parte como decorrncia da ideologia de democracia racial e do ingrediente paternalista

    que tem marcado as relaes raciais, apesar do que ambos envolvem tambm de

    mascaramento e mistificao), haveria talvez razes para esperar que condies de

    efetiva igualdade racial viessem a implantar-se sem a passagem pela fase da afirmao

    beligerante. Evitar a passagem por tal fase pareceria um requisito para que se pudesse

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    aspirar a uma condio "final" em que se tivesse, alm da igualdade real, o convvio

    relaxado e fraterno entre as raas: note-se que, diferentemente do que ocorre com as

    classes sociais, onde se pode conceber um processo de luta resultando na eliminao das

    classes como tal e na criao de uma sociedade sem classes, no caso das raas a luta

    dever ser seguida pela convivncia (igualitria, no melhor dos casos) das raas que

    tenham lutado, se se exclui a hiptese absurda e racista da eliminao de qualquer

    delas. Por certo, pode dar-se o caso de que a criao de uma sociedade racialmente

    igualitria no Brasil venha a exigir a neutralizao de uma identidade racial negativaj

    efetivamente existente entre os grupos de cor, caso em que se tornaria inevitvel a

    passagem pela etapa da afirmao psicossocial da identidade coletiva por parte de tais

    grupos. Este aspecto envolve, porm, uma questo emprica de grande complexidade e

    com respeito qual no cabe simplesmente supor que estejamos suficientementeesclarecidos, nem muito menos derivar de tal suposio prescries problemticas e que

    encerram grandes riscos do ponto de vista do objetivo de uma sociedade igualitria e

    harmnica.

    Indaguemos agora qual o interesse de tudo isso do ponto de vista de nossa

    discusso terica. Se comeamos pelas observaes relativas ao processo poltico-

    eleitoral brasileiro, um ponto a destacar o de que muito do que se disse deve certamente

    explicar-se em termos de identidade. Isso se aplica especialmente "sndrome do

    Flamengo" caracterstica dos setores populares do eleitorado, com respeito qual a idiade que o eleitor expressa uma identidade ao votar parece ser a nica maneira de dar conta

    de um padro que revela a curiosa mistura de amorfismo ou fluidez e consistncia. Mas

    note-se que neste caso temos identidade de uma certa espcie, que apresenta claro

    contraste seja, por exemplo, com o caso de determinado tipo de eleitor americano que se

    identifica fortemente com um dos partidos embora mostrando reduzido grau de

    sensibilidade e consistncia ideolgicas, seja com o caso de um suposto eleitor europeu

    ideologicamente sensvel e issue-oriented, quer identificado com um partido ou

    independente. No caso do eleitor de tipo "Flamengo" estamos no nvel de identidades

    sociais espontneas e rudimentares que no foram trabalhadas politicamente algo como

    uma matria-prima sociolgica apenas superficialmente tocada pelas

    "instrumentalidades" da vida poltica. De maneira correspondente, h tambm variados

    graus de poltica de sensibilidade e envolvimento polticos nos trs casos, que

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    crescem medida que passamos do eleitor brasileiro da sndrome do Flamengo para o

    eleitor ideolgico e issue-oriented. E esse grau diferencial de envolvimento poltico

    (estratgico, instrumental...) acha-se obviamente relacionado com questes de natureza

    cognitiva ou intelectual que so de suma importncia do ponto de vista da insero de

    determinado ator na vida poltica.

    Mas a identidade est sempre em jogo. Ela est em jogo na sndrome do

    Flamengo em que os pobres" so contrapostos aos "ricos" e que fornece o terreno para

    a poltica populista, da mesma forma que est em jogo na "identificao" herdada com

    Democratas ou Republicanos, nos Estados Unidos, ou na "identificao" supostamente

    issue-oriented do trabalhador europeu com este ou aquele Partido Socialista.

    Naturalmente, do ponto de vista da ambivalncia da prpria identidade com respeito

    dicotomia instrumental-expressivo, importante assinalar que o que varia nessesdiferentes casos o grau em que uma "ideologia poltica", no sentido de Sartori, se faz

    presente na situao, assim como o papel que exerce na definio da identidade.

    Quando nos voltamos para o problema racial brasileiro, vemos que a se trata

    talvez ainda mais claramente de problemas de identidade, pois ser negro, branco ou o que

    quer que seja numa sociedade racialmente heterognea parece colocar diretamente uma

    questo de identidade. Contudo, alm da mera observao factual de que uma certa

    identidade pode encontrar expresso deficiente na arena poltica e estratgica devido a

    problemas de natureza cognitiva (observao j permitida pelo caso do eleitor"Flamengo"), no caso das relaes raciais encontramos fundamento para questionar a

    prpria desejabilidade normativa da traduo estratgica e poltica de certa identidade

    (negra) e mesmo, na verdade, da emergncia socialefetiva daquela identidade como

    tal.

    Um desdobramento crucial de toda essa discusso pode ser formulado em termos

    de que dizer que a poltica tem a ver com identidades como pretendem alguns

    opositores da abordagem da escolha racional no estudo da poltica22 dizer demais, por

    um lado, e muito pouco, por outro. Demais, pois h amplo espao para o aparecimento

    de identidades pessoais e coletivas que no so, como tais, polticas em qualquer sentido

    da palavra que no seja inaceitavelmente fluido. E muito pouco, porque precisamente a

    22. Veja-se, por exemplo, Alessandro Pizzorno, "Sulla Razionalit della Scelta Democratica", Stato eMercato, no. 7, abril de l983.

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    aplicao de estratgia (com seus ingredientes cognitivo-instrumentais) a focos latentes

    ou efetivos, sociais ou individuais de identidade que nos traz ao reino da poltica. Como

    fecho destas notas, direi apenas algumas palavras sobre os elos subjacentes aos diversos

    aspectos dessa proposio e sobre a forma em que se liga com a perspectiva normativa

    indicada brevemente nos comentrios dedicados s relaes raciais.

    V

    A idia central, que se acha claramente ligada a passos anteriores nesta discusso,

    a de que a noo de autonomia pode ser entendida de duas maneiras. Ela pode

    significar, em primeiro lugar, uma espcie de afirmao espontnea do eu. Neste sentido,

    ela sugere idias tais como a de uma "personalidade forte", onde o ideal envolvido o dedar vazo de maneira irrefletida aos impulsos e motivaes de qualquer tipo. O segundo

    sentido antes o de autocontrole, onde o principal elemento precisamente o de

    reflexividade e lucidez com respeito aos motivos e objetivos prprios e suas relaes com

    objetivos outros e talvez mais importantes a que eventualmente se aspire.

    A partir da, a observao importante a assinalar relativamente s idias acima

    esboadas o claro vnculo existente entre a autonomia como auto-afirmao, por um

    lado, e a noo de "adscrio" e de imerso social irrefletida, por outro. Assim, se se

    admite, numa perspectiva crtica, um ideal emancipatrio em que se destacam areflexividade e a lucidez como componentes indispensveis da expresso autntica do eu

    vale dizer, se se reclama a extenso da deliberao livre e esclarecida ao prprio plano

    da definio da identidade e de um correspondente ideal de autonomia , ento

    necessrio que se busque a individuao, ou aquela condio em que se elimine a

    definio social das identidades e em que qualquer forma mesmo residual de adscrio se

    torne irrelevante. Isso significa que questes que digam respeito a identidade ou carter

    deveriam decidir-se, em ltima anlise, no nvel estritamente individual e leva, do

    ponto de vista de mecanismos organizacionais ou institucionais, ao requisito de uma

    forma intransigente de pluralismo na qual as coletividades ou os grupos sociais de

    qualquer tipo venham a representar apenas o resultado de coalizes voluntrias e

    necessariamente provisrias e cambiantes de indivduos livres. Ademais, qualquer

    esforo de produo deliberada de identidades coletivas deve ser visto com suspeita,

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  • 8/6/2019 M&U04-Identidade, poltica e a teoria da escolha racional

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    tanto mais se se baseia em critrios rigidamente adscritcios a menos que se constitua

    em instrumento na prpria luta contra fundamentos adscritcios de dominao, caso em

    que deveria conter um importante elemento de autocrtica e visar claramente, em ltima

    anlise, eliminao da relevncia social de qualquer atributo ou caracterstica de

    natureza adscrita.

    Portanto, se a poltica , do ponto de vista analtico, a esfera por excelncia da

    aplicao de instrumentalidade e estratgia a identidades socialmente dadas de qualquer

    espcie (e aos interesses ou objetivos que lhes digam respeito), do ponto de vista

    normativo ela se torna o instrumento que permite neutralizar a operao cega justamente

    de tais identidades. No limite, teramos indivduos livres em busca de seus objetivos

    lcidos (instrumentalidade, e necessariamente tambm estratgia, de vez que os agentes

    empenhados em tal busca so mltiplos), mas em condies nas quais o autocontroleenseja a comunicao e torna possvel mitigar e disciplinar o jogo estratgico. Assim, se

    absorvida criticamente, a abordagem da escolha racional, com sua nfase na

    individualidade e na racionalidade, termina por fornecer independentemente de sua

    acuidade descritiva, que por certo limitada, e de sua fora analtica, que acredito ser

    aprecivel algo que pode ser visto como um adequado (e apropriadamente "realstico")

    ponto de referncia normativo.

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