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Mudanças Econômicas, Mulher e Casamento em Vitória. 1970-2000 * Maria Beatriz Nader Universidade Federal do Espírito Santo Palavras-chave: Mulher, urbanização, casamento e divórcio. A participação da mulher no mercado de trabalho, nas últimas décadas do século XX, afetou sensivelmente as relações no interior das famílias, provocando mudanças radicais em suas estruturas. Se antes o espaço doméstico era tido como naturalmente feminino, e a mulher era sustentada pelo homem, agora são as mulheres que detêm grande parte do controle sobre os recursos familiares e desempenham um papel fundamental na vida econômica da família. Elas não só trabalham fora do domicílio como promovem o controle da manutenção da casa, principalmente depois que o trabalho doméstico passou a ser denunciado como uma alienação feminina e uma sujeição ao homem. O tratamento dado ao trabalho fora de casa passou a ser para a mulher o sinal concreto de sua emancipação. Desse modo, a mulher tomou parte de uma luta que a conferia igualdade, dignidade e liberdade, procurando reduzir ao mínimo o seu papel doméstico - privado, e se tornou, portanto, uma engrenagem no processo produtivo, exatamente como o homem. A mulher ganhou o controle da situação doméstica passando aos poucos a ser dona de sua própria casa, de seus objetos e de sua própria vida. Durante gerações, o poder do imaginário social consistia em que as mulheres ficassem em casa cuidando dos filhos e acreditassem que o trabalho realizado por ela fora da unidade doméstica era desprezível e pobre. Mas, apesar desse imaginário, grande contigente feminino, geralmente provindo das camadas mais empobrecidas, participou da força de trabalho desde o período do Brasil Colônia. Sob um sistema escravocrata, que durou até fins do século XIX, o Brasil manteve a maioria de suas mulheres dentro da classe trabalhadora rural ou nos serviços domésticos. Trabalhadoras escravas, cuidando da lavoura ou das atividades cotidianas * Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.

Mudanças Econômicas, Mulher e Casamento em Vitória. 1970-2000 · Palavras-chave: Mulher, urbanização, casamento e divórcio. A participação da mulher no mercado de trabalho,

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Mudanças Econômicas, Mulher e Casamento em Vitória. 1970-2000*

Maria Beatriz Nader Universidade Federal do Espírito Santo

Palavras-chave: Mulher, urbanização, casamento e divórcio.

A participação da mulher no mercado de trabalho, nas últimas décadas do

século XX, afetou sensivelmente as relações no interior das famílias, provocando

mudanças radicais em suas estruturas. Se antes o espaço doméstico era tido como

naturalmente feminino, e a mulher era sustentada pelo homem, agora são as mulheres

que detêm grande parte do controle sobre os recursos familiares e desempenham um

papel fundamental na vida econômica da família. Elas não só trabalham fora do

domicílio como promovem o controle da manutenção da casa, principalmente depois

que o trabalho doméstico passou a ser denunciado como uma alienação feminina e uma

sujeição ao homem. O tratamento dado ao trabalho fora de casa passou a ser para a

mulher o sinal concreto de sua emancipação. Desse modo, a mulher tomou parte de uma

luta que a conferia igualdade, dignidade e liberdade, procurando reduzir ao mínimo o

seu papel doméstico - privado, e se tornou, portanto, uma engrenagem no processo

produtivo, exatamente como o homem. A mulher ganhou o controle da situação

doméstica passando aos poucos a ser dona de sua própria casa, de seus objetos e de sua

própria vida.

Durante gerações, o poder do imaginário social consistia em que as mulheres

ficassem em casa cuidando dos filhos e acreditassem que o trabalho realizado por ela

fora da unidade doméstica era desprezível e pobre. Mas, apesar desse imaginário,

grande contigente feminino, geralmente provindo das camadas mais empobrecidas,

participou da força de trabalho desde o período do Brasil Colônia.

Sob um sistema escravocrata, que durou até fins do século XIX, o Brasil

manteve a maioria de suas mulheres dentro da classe trabalhadora rural ou nos serviços

domésticos. Trabalhadoras escravas, cuidando da lavoura ou das atividades cotidianas * Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.

das propriedades agrárias e urbanas, ou senhoras, administrando a escravaria ou os

negócios da família, as mulheres brasileiras, livres, pobres ou não, propiciaram o

equilíbrio com os homens nas força de trabalho do país.

Muitas de mulheres foram empregadas quando se instalaram as primeiras

fábricas têxteis no Brasil, na segunda metade do século XIX. Em 1882, só no Rio de

Janeiro existiam quarenta fábricas de fiação de algodão e, em somente uma delas, foram

registradas sessenta mulheres como operárias. Outras fábricas também empregavam

mulheres. Provavelmente duas mil mulheres eram empregadas em estabelecimentos

fabris nessa época. 1

Mesmo nesse período, com os avanços tecnológicos aliados ao início da

industrialização e o crescimento das cidades, o panorama de trabalho feminino não

sofreu grandes modificações, pois as mulheres continuaram não tendo acesso às

profissões que eram consideradas masculinas por excelência. Eram poucas as

oportunidades de trabalho assalariado para elas.

Samara2 acredita que particularmente no comércio as mulheres tinham presença

absoluta, na circulação de gêneros de primeira necessidade e na organização do

mercado ambulante de alimentos e de produtos de consumo, em São Paulo e Minas

Gerais, em fins do século XVIII e início do XIX. Especificamente em São João Del-Rei,

ainda na primeira metade do século XIX, a maioria das mulheres, livres e escravas,

desenvolviam atividades relacionadas à fiação, à tecelagem, à agricultura e ao serviço

doméstico. Somente uma pequena parcela dedicava-se à pecuária e à mineração. Mas

era na área urbana que as mulheres integravam-se às atividades do comércio e de

artesanato. Para a autora da obra “As Idéias e os Números de Gênero”, os quadros de

profissões, que demonstram a complexidade das atividades de base econômica e a

presença feminina especialmente no mercado informal de trabalho, possuem uma

grande variedade de ocupações em espaços regionais diversos. Para se ter uma idéia

dessa diversidade, Samara explica que nas Listas de Habitantes de Minas Gerais, para

os anos 1831 e 1838, foram arroladas 250 tipos de ocupações femininas e, em Fortaleza,

1 - LEITE, Míriam Moreira. (org) A Condição Feminina no Rio de Janeiro. Século XIX. São Paulo:HUCITEC;EDUSP, 1993. 2 - SAMARA, Eni de Mesquita. Mão-de-Obra Feminina, Oportunidades e Mercado de Trabalho, no Brasil do Século XIX. In. __. (org) As Idéias e os Números do Gênero. Argentina, Brasil e Chile no Século XIX. São Paulo:HUCITEC, 1997. p. 23- 61

2

em 1887, foram arroladas 218. A variedade de ocupações femininas, em São Paulo,

também não se afastava desses números, mantendo “níveis semelhantes”.

No Recenseamento da População do Império do Brazil (o primeiro censo geral

do Brasil, em 1872), aparecem atividades desenvolvidas pelas mulheres que fogem aos

serviços domésticos tradicionais. São atividades de criadoras, jornaleiras, operárias de

tecidos, comerciantes, parteiras, artistas, manufatureiras e fabricantes, operárias em

couro e peles, operárias em calçados, professoras, capitalistas e proprietárias, guarda-

livros e caixeiras, operárias em vestuários, operárias em tinturaria, operárias em

chapéus, entre outras. Algumas dessas mulheres eram livres brasileiras e estrangeiras e

escravas, significando uma pequena variação de condição e etnia, somando pouca

flutuação entre a mão-de-obra das mulheres livres não-proprietárias e as mulheres

escravas, que integravam o cotidiano das atividades urbanas brasileiras.

O emprego de professora e empregada em estabelecimentos comerciais,

escritórios e na burocracia, eram trabalhos que também davam continuidade às

ocupações tradicionalmente femininas, além de serem marginais ao processo de

produção e mal pagas. A segregação no mercado de trabalho, nesse período, reflete que

gênero era um fator determinante para a ocupação de determinados setores, afirma

Samara.3 O acesso à educação que continuava para poucas mulheres e que mantinha

estreito o leque de opções profissionais confirma a segregação profissional.

O magistério é um clássico exemplo dessa segregação sexual. Por ser

considerada uma profissão onde a mulher reproduz sua vida da unidade doméstica,

passou a ser considerado como “profissão naturalmente feminina”, aceita pelos padrões

culturais que determinavam o lugar da mulher dentro dos espaços domésticos. Mesmo

assim, milhares de mulheres provindo de camadas sociais empobrecidas buscaram o

acesso à educação profissionalizante que as levavam ao professorado.

Nas elites, prevalecia o poder do imaginário social brasileiro que consistia em

determinar que o lugar da mulher era o espaço geográfico da casa. Mas, em São Paulo, a

Repartição Pública de Estatística, apurou que nos anos 1869 e 1890, a participação da

mulher em “profissões diversas”, em relação aos homens empregados, cresceu de 3,5%

3 - SAMARA, Eni de Mesquita. 1997. Op. Cit.

3

para 20% do “(...) total de mão-de-obra adulta empregada em estabelecimentos

industriais da Capital”.4

A partir de 1920, a participação feminina no mercado de trabalho reduziu-se

para 15,3%, mas sua presença no setor secundário e terciário, aumentou para 27,9% e

22,2%, respectivamente. Esse fenômeno é considerado por Singer e Madeira como

sendo uma “evolução natural” da participação da mulher na força de trabalho.5 Os

autores argumentam que, enquanto casa e trabalho não se separaram, ou seja enquanto

na agricultura o número de pessoas empregadas era maior do que o número de pessoas

nas indústrias manufatureiras, o número de mulheres era significativo na força de

trabalho. E, com a evolução da indústria e a urbanização, que promoveram o êxodo

rural e o crescimento urbano, as taxas femininas nas atividades produtivas tenderam a

cair, face a maior presença feminina no setor de serviços. Somente após a década de

1940 é que a participação feminina no mercado produtivo reiniciou o processo de

crescimento, mas não nos níveis do início do século.

Singer e Madeira afirmam ainda que a participação da mulher será maior no

setor terciário, e isso, porque os fatores culturais impulsionam certos tipos de ocupação

ou trabalho. E, enfatizam, que a questão cultural influencia na classificação das

ocupações masculinas e femininas, promovendo recrutamentos não baseados na

capacidade do sujeito, mas no sexo. Além de perpetuar crenças machistas sobre as

habilidades e deficiências femininas.

Essa interpretação remete à discussão de a posição feminina no mercado de

trabalho ter a ver com o papel social da mulher dentro da família. Enquanto a formação

profissional feminina foi determinada por conceitos tradicionais, as mulheres não

tinham opção e eram levadas a desenvolver seus estudos em cursos que não lhe

preparavam para o mercado de trabalho. Suas escolhas se voltavam para cursos que não

lhes davam meios efetivos de se colocarem no mercado de trabalho, mas davam um

falso posicionamento no meio social.6 Os cursos oferecidos pelas Faculdades de

Filosofia eram vistos como uma forma de brilho para as mulheres conseguirem um

casamento vantajoso. 4 - MOURA, Esmeralda B.Bolsonaro de. Trabalho feminino e Condição Social do Menor em São Paulo (1890-1920). Estudos CEDHAL. São Paulo, No. 03, 1988 5 - SINGER, Paul I. e MADEIRA, Felícia R.. Estrutura do Emprego e Trabalho feminino no Brasil: 1920-1970. Caderno CEBRAP, São Paulo, no. 13, 1973. 6 - ROMANELLI, Otaíza. História da Educação no Brasil (1930-1973) 4ª ed. Petrópolis:Vozes, 1983.

4

Esses entendimentos são criticados por Cardoso7 que acredita não haver neles

um estudo mais profundo da questão econômica que envolve a mulher no mercado de

trabalho. Para a autora, somente a formação profissional feminina será a solução para

acabar de vez com a discriminação da mulher no mercado de trabalho. Baseada em

dados do PEA de 1950 e 1960, a autora diz que a taxa de crescimento da população

brasileira foi de 3,5% ao ano, mas que a distribuição por sexo dessa população no

mercado de trabalho não mudou até os anos 70. Em 1950, as mulheres economicamente

ativas perfaziam uma taxa de 14,6%, passando para 18,6% em 1970. Esse aumento

ficava muito longe de se assemelhar “à média dos países desenvolvidos”, mas era

bastante significativo quando considerado o grande salto nos números da população

feminina economicamente ativa, que atingiu a taxa de crescimento de 127%, enquanto a

população total cresceu 79%.

Nesse quadro, sobressai-se a dinâmica do sistema econômico que influencia as

taxas de participação feminina no mercado de trabalho nas diversas regiões do Brasil e

levam as “donas-de-casa” a necessitarem do “trabalho produtivo fora do lar”.

Principalmente na região Sudeste, quando o dinamismo das indústrias urbanas, na

década de 1970, registraram a maior participação das mulheres nas forças produtivas

que surgiram com os grandes projetos econômicos desenvolvidos no período.

O chamado “milagre econômico brasileiro” possibilitou a expansão de

empregos, incorporando no mercado de trabalho urbano secundário e terciário milhares

de pessoas vindas do campo, atraídas pelo crescimento das cidades, esperançosas de

uma vida melhor. Consequentemente a crescente urbanização aliada ao recente modelo

de desenvolvimento sócio-econômico do país, caracterizado pelo esforço de

modernização da estrutura produtiva, provocou efeitos na vida das pessoas que

buscavam as cidades. A tendência da nova lógica econômica contribuiu para que

aumentasse a pobreza urbana no Brasil, levando quantidades crescentes de mulheres a

serem incorporadas no mercado de trabalho, uma vez que os homens encontraram

dificuldades crescentes para atualizarem seu papel culturalmente definido como

provedor da família.

7 - CARDOSO, Irede. Mulher e Trabalho. As discriminações e as Barreiras no Mercado de Trabalho. São Paulo:Cortez, 1980.

5

Diante da necessidade expressa da contribuição da mulher na sustentação

financeira do lar, a inversão das idéias de comportamento social se pronunciou de modo

rápido e generalizado. A mulher que passou a colaborar no sustento da família, mesmo

ganhando menos do que o marido, eliminou de sua vida o processo de aceitação e

conformismo diante das diferenças sexuais. O poder, a resistência ou mesmo a

indiferença masculina diante de novas solicitações femininas, tenderam a levar a uma

situação de conflito dentro do lar. As relações de poder que existiam entre marido e

esposa passaram a ser questionadas no interior das unidades domésticas. Muitas

mulheres passaram a repensar suas vidas e isso contribuiu para que maior número de

mulheres casadas há pouco tempo, apelassem para o fim do consórcio conjugal.

A regulamentação do divórcio no Brasil, em 1977 (Lei 6.515/77), também

serviu de amparo para que o número de separações e divórcios, consensuais ou não, se

ampliasse. Somente no período compreendido entre os anos de 1982 a 1992, os

processos de divórcio em todo país cresceram à ordem de 72,27%. Esse percentual

aumentou com tanta rapidez que no Estado do Espírito Santo, nos anos 1983 a 1984, os

divórcios homologados chegaram a atingir a casa de 71% e, nos anos de 1984 e 1985,

esse crescimento foi de 84,49%.8

Exatamente uma década após à regulamentação da lei do divórcio no Brasil, a

Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE divulgou que, no Estado

do Espírito Santo, no primeiro trimestre do ano de 1987, o número de divórcios

homologados em Vitória, sua capital, cresceu 442,85% em relação ao mesmo período

do ano de 1986, que por sua vez foi de 90% superior a todo o ano de 1985. 9

Com base nessas informações realizamos uma pesquisa que objetivava levantar

dados estatísticos sobre os casamentos, as separações e os divórcios realizados em

Vitória, Capital do Estado do Espírito Santo, uma vez que nos chamava atenção o alto

índice de processos de rompimento conjugal ocorridos no período de 1970 a 2000. E,

dentre os diversos interesses que nos moveram, encontravam-se os de obter maior

conhecimento sobre as mulheres envolvidas naqueles processos, fundamentalmente no

que diz respeito à sua profissão.

Mas, por que essa pesquisa em Vitória? 8 - CENSO DEMOGRÁFICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, 1990. Resultados do Universo Relativo às Características da População e dos Domicílios. Rio de Janeiro:FIBGE, 1991. 9 - Idem.

6

Capital do Estado do Espírito Santo, Vitória sofreu uma brusca mudança

econômica e social no começo da década de 1970, ocasionada pela falência do modelo

econômico primário-exportador, pelas possibilidades de empregos promovidas com a

implantação dos “Grandes Projetos Industriais” e, consequentemente, pelo processo de

urbanização que crescia sob uma ocupação populacional desordenada.

A dinâmica que se processou com a migração de milhares de pessoas vindas do

interior do Estado e de outras regiões do país, rurais e urbanas, mostra que o cotidiano

vitoriense passou por transformações profundas, alterando a vida pacata da cidade e das

pessoas que nela se aglomeravam. A coexistência de migrantes de diferentes

localizações brasileiras, juntamente com os capixabas de Vitória, caracterizaram uma

sociedade capixaba multifacetada, integrando valores e hábitos típicos do mundo rural

com a inquietação ocasionada pela complexidade do processo de industrialização e

urbanização que ocorria em Vitória.

Ligada às estruturas sociais agro-exportadoras desde os primórdios de sua

colonização, Vitória, nos últimos trinta anos do século XX, passou por um processo de

modernização cujos reflexos alteraram a vida de todos seus habitantes. Principalmente

das mulheres que, em meio a essas transformações, tiveram, a maioria, seus

comportamentos modificados radicalmente.

Fortemente influenciadas pela Igreja, pela família e pela educação, instituições

de grandes influências no cotidiano capixaba, muitas das mulheres residentes no interior

do Espírito Santo acreditavam que nasceram para o casamento e que esse deveria ser

“seu único sonho” 10. Essas instituições se organizaram em torno da manutenção desse

imaginário e se utilizaram da cultura e da disciplina para convencerem as mulheres que

o espaço doméstico era naturalmente feminino e que toda mulher deveria acreditar que

só seria feliz se fosse uma “mulher de respeito”, “bem casada” e sustentada pelo

homem, mesmo quando trabalhava na lavoura e ajudava no sustento da família.

Economicamente o casamento era uma forma de proteção para as mulheres.

A insignificante economia capixaba que se desenvolveu sob o égide cultural

das pequenas propriedades e pela política portuguesa que, durante todo o século XVIII,

manteve o Espírito Santo como um “cinturão verde” de proteção às Minas Gerais

10 - PERPÉTUO, Maurílio Cabral. O Assunto é Mulher. Revista Capixaba. Ano I, no. 07. Setembro de 1976. P. 26-29.

7

isolando a população do Estado e, principalmente, da cidade de Vitória, do resto do

mundo. Toda a sociedade capixaba ficou sob a “proteção dos santos” da Igreja Católica

e dos militares que tomavam conta da cidade.

No século XIX, a imigração européia, principalmente a italiana, reforçava com

sua cultura sexista o imaginário de que o lugar da mulher era no espaço doméstico e que

seu sustento deveria ser provido pelo marido. A sociedade imigrante que se instalara nas

pequenas propriedades de café no interior do Espírito Santo continuava cultuando a

instituição do casamento como o principal objetivo “natural” feminino, intensificando

na educação da mulher capixaba o desejo de casar-se.

Trabalhar fora de casa, ler e escrever não faziam parte do universo feminino

rural até meados do século XX. Num Estado onde a economia se fazia basicamente, até

a década de 1960, pelo desenvolvimento agrário, antes pelo cultivo do açúcar, depois

intensamente pelo do café, a vida de grande parte das mulheres se resumia no trato com

a terra, juntamente com a família. Até a década de 1940, 80% da população capixaba

vivia na zona rural. 11

Só mesmo depois dos anos 70, numa reviravolta sem precedentes no Espírito

Santo, é que a população urbana supera a rural e passa a vivenciar as transformações de

atitudes que D’Ávila Neto afirma que acontece nas cidades: heterogeneidade de valores,

normas, crenças e símbolos. De acordo com a autora, é na cidade que os conceitos e

estilo de vida se modificam.

Nessa perspectiva entendemos como o fenômeno da urbanização se faz

acompanhar de uma rápida substituição dos papéis sexuais, levando a cabo vários

estereótipos que durante séculos cercaram a vida da mulher. Aquelas mulheres que

antes detinham o domínio do espaço doméstico e atuavam junto ao marido no campo

passaram a competir com os homens na ocupação do mercado de trabalho e as

mudanças no perfil desse mercado favoreceram à demanda feminina à medida em que

abriram espaços para o seu engajamento.12

Diante dessas constatações procuramos estudar, em primeiro lugar, as

mudanças econômicas do mercado de trabalho capixaba e verificar, com base nos dados 11 - OLIVEIRA, José Teixeira. História do Estado do Espírito Santo. 2ª ed. Vitória:FCES, 1975. 12 - WAJNMAN, Simone e PERPÉTUO, Ignez Helena. A redução do emprego formal e a participação feminina no mercado de trabalho brasileiro. In. Revista Nova Economia. Belo Horizonte, v.7, n. 1, 05/1997. p. 121-132

8

adquiridos nos Censos e Anuários Estatísticos da Fundação Instituto Brasileiros de

Geografia e Estatística e nos Cartórios de Registro Civil da Cidade de Vitória, a

influência daquelas mudanças na relação da mulher com casamento.

A erradicação do café e a implantação de indústrias: a mudança do cenário

Localizada entre o mar e montanha a Ilha de Vitória foi palco de duas ocupações

desordenadas na segunda metade do século XX. A primeira, em fins da década de 1960,

cuja justificativa se relaciona ao êxodo rural decorrente da política federal de

erradicação do café e, a segunda, quando ocorreu a implantação de Grandes Projetos

Industriais, após 1970.

Durante grande parte de sua história, o Espírito Santo teve uma situação peculiar

em relação ao Brasil. Vítima de sua localização espacial estratégica, durante todo o

século XVIII, “a Capitania”13, não pode acompanhar o crescimento regional, nem

expandir-se economicamente como as capitanias vizinhas. De pequena expressividade

física, mas de adequada localização litorânea, sua capital, Vitória, foi naquela época, o

centro de proteção à região mineradora, sofrendo embates de corsários e aventureiros

que queriam de toda sorte alcançar a riqueza metalífera tão almejada no período.

Após um século de reclusão a província era uma das menos desenvolvidas do

país e não tinha infra-estrutura populacional, nem mesmo capital acumulado.

Subordinada que ficou aos mandantes militares que tomaram a cidade com o objetivo de

proteger as Gerais, e religiosos, que, “em nome dos santos”, controlaram os costumes

sociais da cidade por longa data, a população de Vitória desenvolveu valores culturais

singulares que encaixam a cidade na imagem de uma “cidade estagnada” 14 e de “vida

modorrenta” 15, durante o período em que foi uma vila colonial.

A reputação de ser uma das localidades mais atrasadas do Brasil e por se

encontrar no meio regional mais rico do país, deu aos governos do Espírito Santo, nos

13 - Tomamos emprestado o termo usado pela historiografia ao se referir à Capitania do Espírito Santo - “A Capitania”. 14 - VASCONCELLOS, João G. M. (org.) Vitória. Trajetórias de uma Cidade. Vitória:PMV, 1993. 15 - FREIRE, Mário Aristides. A Capitania do Espírito Santo (1535-1822) Vitória, 1945.

9

séculos XIX e XX, uma responsabilidade de superação muito rápida das perdas

econômicas e da falta de contato com o mundo exterior.

A primeira fase desse processo fundamentou-se essencialmente na produção do

café. Introduzido no Espírito Santo em aproximadamente 1811, o café deu início a um

processo de expansão econômica capaz de promover a ocupação das terras antes

ocupadas somente por índios e permitiu a integração do Espírito Santo com o mercado

mundial.

Integrante do rico sudeste cafeeiro, apesar de ser um dos estados menos

desenvolvidos do país, o Espírito Santo conseguiu desbaratar-se de sua letargia graças à

produção do café. Apesar de sua lavoura ter sido considerada pelo historiador Caio

Prado Júnior16 como “medíocre”, ao compará-la com a produção do Vale do Paraíba e

do Oeste Paulista, seu processo produtivo manteve-se por mais de um século.

Indubitavelmente, os investimentos financeiros que proporcionaram melhorias

ao Estado só se deram com o desenvolvimento da cafeicultura, que determinou uma

decisiva mudança no panorama econômico, político e sócio-cultural do Espírito Santo.

Do ponto de vista de econômico essas melhorias foram a construção da estrada de ferro

no sul do Estado, a abertura e reforma de estradas que ligavam as áreas produtoras à

estrada de ferro, a desobstrução de rios para o transporte fluvial, a introdução de barcos

a vapor, a reformas no porto da Capital e, principalmente, seu enquadramento ao

processo de exportação.

A outra fase de superação enquadrava-se no II Plano Nacional de

Desenvolvimento - IIPND - lançado pelo Governo Federal em 1974. Seu objetivo era

enfrentar a crise econômica vivida pelo Brasil com a substituição acelerada das

importações no setor de bens de capital e insumos básicos como a química pesada, a

siderurgia, metais não ferrosos e minerais não metálicos, além de desenvolver grandes

projetos de exportação de matéria-prima como celulose, ferro, alumínio e aço. Para isso

precisava contar com um centro localizado estrategicamente entre as jazidas de minério

de ferro e o mar, que tivesse condições de se formar uma infra-estrutura portuária e

ferroviária e estivesse apto a receber grandes investimentos capazes de atender ao

mercado externo.

16 - PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. 21ª ed. São Paulo:Brasiliense, 1978.

10

O Espírito Santo que, desde a década de 1940 contava com uma moderna infra-

estrutura econômica desenvolvida pelas atividades exportadoras de minério de ferro

criada pela Companhia Vale do Rio Doce, mais uma vez serviu às estratégias

econômicas do governo.

Voltados para o mercado externo, as indústrias que foram implantadas ao redor

da cidade de Vitória17, se agrupavam no complexo secundário - os setores siderúrgico,

naval e pára-químico – e, no terciário - o turismo e o portuário.

Conjugando esforços na implementação desses grandes projetos industriais, os

governos federal e estadual, viabilizaram uma mudança tão radical na economia do

Espírito Santo que o mesmo deixou sua dependência da monocultura cafeeira para ligar-

se ao grande capital internacional.

Uma nova fase econômica ocorreu e juntamente com ela toda a estrutura de

produção do Estado. Ligado que era à monocultura das pequenas propriedades, tocadas

pela mão-de-obra familiar, o Espírito Santo se viu aos poucos se afastando das

atividades tradicionais e intensificando sua ligação com o processo de industrialização

e, consequentemente a Cidade de Vitória foi o palco principal dessas mudanças.

“Vitória: cidade presépio do Brasil” ?

Em 1957, a superprodução do café no mercado internacional promoveu uma

nova instabilidade do setor, ocasionando uma grande crise econômica em todo o Brasil.

A produção do café, que representava 60% das exportações totais do país no período de

57 a 60, sofreu com o desequilíbrio entre a oferta e a procura, e o governo federal

quanto mais negociava para manter elevado os preços do produto mais estimulava sua

17 - As indústrias que foram criadas e ampliadas com a implantação dos “Grandes Projetos Industriais”, em Vitória, a partir dos anos de 1970, foram: Complexo Siderúrgico com Usina Siderúrgica de Tubarão, Companhia Ferro e Aço de Vitória, Usina de Pelotização da Companhia Vale do Rio Doce, com Unidades de Produção da Itabrasco, da Hispanobrás e da Nibrasco, Usina de Pelotização Samarco; Complexo Naval com associação dos Grupos Docenave, Fronape e Lloyd Brasileiro, Complexo-Pára-Químico com a Aracruz-Celulose, Flonibra – Empreendimentos Florestais; Complexo Portuário comportando o Superporto de Tubarão para a Companhia Siderúrgica de Tubarão, obras portuárias do canal da baia de Vitória, envolvendo a construção do Cais de Capuaba/Atalaia, do Cais de Jaburuna, do Cais de Aribiri e ampliação e melhorias dos Cais Comercial de Vitória e do cais de Jabour. Sobre o assunto ver SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. Industrialização e Empobrecimento Urbano. O Caso da Grande Vitória. 1950-1980.

11

produção.18 A solução encontrada pelo governo para o problema veio por meio da

erradicação dos cafezais antiprodutivos em todo o país, tornando-se essa política numa

verdadeira transformação da estrutura econômica do Espírito Santo.

Sem um estudo prévio das condições em que se achavam organizadas econômica

e socialmente as comunidades produtoras de café, o governo providenciou de erradicar

53,8% dos cafezais do Estado.

Esse procedimento contribuiu para a instalação de uma grave crise social nas

regiões produtoras de café, principalmente no Espírito Santo, onde ainda na década de

1960, a agricultura cafeeira era uma atividade econômica com características coloniais.

Mesmo com os programas de estímulo para a diversificação da produção agrícola,

milhares de famílias ficaram desempregadas e buscaram a cidade de Vitória, que não

tinha uma política habitacional definida, nem uma política de assentamento urbano para

receber as populações que saiam da zona rural por conta das crises do setor cafeeiro.

Mesmo assim, o governo estadual permitiu que fossem ocupados os espaços devolutos

da periferia da cidade, nos manguesais e nos morros que se situam nos centro da Ilha.

Considerada pelos seus habitantes como uma cidade pacata e conhecida

nacionalmente como “Vitória, a Cidade Presépio do Brasil”, sua urbanização, até os

anos 50, voltava-se para o desenvolvimento comercial do porto e, apesar de manter

características dos tempos coloniais, era uma cidade confortável para as famílias

possuidoras de fortunas adquiridas com a exportação do café. Elas se aglomeravam no

centro da cidade, nos casarios amplos e modernos, construídos em ruas limpas e bem

calçadas por onde trafegavam bondes e automóveis.

Depois de 1970, Vitória tornou-se uma cidade integrada aos interesses

metropolitanos de região que a cercava. Vários municípios que antes ficavam

“próximos” da cidade foram unidos à Capital, formando a Grande Vitória. A antiga

“cidade pacata” tornou-se um centro de absorção de populações que buscavam novas

oportunidades de emprego nas indústrias incipientes. (Tabela 1)

18 - Idem.

12

Tabela 1 - Distribuição dos imigrantes nas unidades de Vitória – 1970 e 1980 1970 1980

Unidade

Urbana

População

Total

Imigrantes % População

Total

Imigrantes %

Vitória 133.019 66.062 44,6 207.747 121.553 58.5

Total 385.998 59.385 45,5 706.263 458.309 64.9

Fonte: Siqueira, Maria da Penha Smarzaro. 200219

Um grande número dessas pessoas foi absorvida pelas vagas de emprego que se

abriam, mas os Grandes Projetos não davam conta de absorver o contingente de pessoas

que chegava à Cidade diariamente. Milhares de pessoas, sem a qualificação exigida

pelas atividades industriais, ligaram-se às atividades informais, tornando-se biscateiros e

vendedores ambulantes ao redor dos centros urbanos, formando um verdadeiro bolsão

de miséria em todas as cidades que compõem a Grande Vitória.

Vitória tornara-se um centro urbano altamente congestionado e com uma grande

expansão de favelas. Na segunda metade da década de 1970, na área oposta ao Oceano

Atlântico, nas margens do canal que circunda a Ilha, novas favelas foram implantadas.

A população imigrante invadiu os manguezais e os morros, onde a Prefeitura Municipal

despejava o lixo da cidade e, numa extensão de aproximadamente cinco quilômetros

instalou o Bairro de São Pedro. Conhecido nacionalmente como “Lugar de toda

pobreza”, São Pedro caracterizava muito bem os rumos de pobreza tomados pela

cidade: milhares de pessoas sobreviveram ali da cata de lixo.

Por outro lado, a cidade cresceu. Novos bairros foram incorporados à paisagem,

a prefeitura da cidade abriu novas ruas, alargou outras, construiu praças arborizadas

com quadras de tênis e parques infantis. Algumas praias da cidade, voltadas para o

Atlântico, foram aterradas, dando origem aos bairros onde se instalaram pessoas ricas,

outras foram urbanizadas atraindo o turismo. O comércio que antes funcionava no

centro da cidade foi transferido para a região norte de Vitória, promovendo o

esvaziamento do centro e a ampliação da cidade. Um novo sistema de transporte

coletivo foi organizado, ligando as cidades ao redor da capital.

Nos anos subseqüentes ao início do processo imigratório, algumas obras foram

escritas a respeito das transformações ocorridas na cidade. Um exemplo é a obra 19 - Idem. Idem.

13

“Município de Vitória, situação sócio-econômica”, elaborada pela Comissão de

Planejamento Agrícola do Espírito Santo, no ano de 1978, sobre o crescimento

econômico e social de Vitória.20 Nela encontramos dados que mostram que a Cidade

localizava-se em uma área de 81 quilômetros quadrados (hoje, devido aterramentos,

Vitória tem 91 Km2) e tinha um complexo portuário que era a “maior expressão do

desenvolvimento e da economia da região [sudeste]”. Sua população, no ano de 1977,

era de 156.310 habitantes, sendo que 153.233 residiam na zona urbana e 3.077 na zona

rural. No setor de comunicação, em fins da década de 1970, Vitória contava com 20

associações culturais, 19 bibliotecas públicas, 09 salas de cinema, 01 teatro, 03

emissoras de radiodifusão e 01 de televisão, 05 jornais, 14.077 telefones ligados aos

sistema DDD e DDI, 02 agências de correio, 01 serviço de auto-falante, 03 revistas e 02

informativos de distribuição gratuita. No setor de saúde, a cidade tinha 2.016 leitos, 02

postos de saúde, 344 médicos, 238 dentistas e 76 farmacêuticos. Foram construídas

escolas de ensino fundamental, médio e superior, centros esportivos, particulares,

estaduais e municipais. Em 1978, o ensino de fundamental contava com 102 unidades

escolares, com 1.753 professores que atendiam a 40.327 alunos. No ensino médio a

cidade contava com 46 cursos que tinham 782 professores atendendo 14.451 alunos. A

rede bancária, em 1978, era representada por trinta e nove agências de bancos estadual,

federal e privadas. A iniciativa privada abriu boates, bares e shoppings.

Toda essa dinâmica proporcionou um novo cenário à cidade. Pessoas de várias

classes sociais, etnias, graus de escolaridade, estado civil, idade e crença passaram a

compor um novo mosaico para sociedade capixaba. O cotidiano pacato da cidade foi

cedendo lugar a um aglomerado urbano cada vez mais plural e com conflitos cada vez

mais explícitos. A coexistência de migrantes do interior e de diferentes cidades

brasileiras, que trouxeram consigo hábitos e valores típicos do mundo rural,

caracterizou Vitória como uma cidade de sociedade multifacetada. Vitória integra até

hoje hábitos típicos do mundo rural com a inquietação ocasionada pela complexidade do

processo de industrialização e urbanização que ocorreu nos últimos trinta anos do século

XX.

A antiga cidade deu espaço a novas formas de convivência, alterando

sensivelmente o comportamento de seus habitantes, principalmente das mulheres. 20- Dados fornecidos pela Comissão estadual de Planejamento Agrícola- CEPA/ES – Município de Vitória – Situação Sócio-Econômica, 1978.

14

A mulher capixaba e o casamento

Em meados do século XIX, para que ocorresse um crescimento da economia

baseada na produção agrícola, o governo incentivou à política de imigração e

colonização. O café, no Espírito Santo, se “firmou como cultura de pequenos

proprietários”21, diferentemente de outras áreas produtoras que se utilizavam de formas

capitalistas como meio de produção. No assentamento dos povos imigrantes como

pequenos proprietários desenvolveu-se o sistema de relações de produção familiar, cuja

mão-de-obra envolvia todos os membros da família, sem distinção de sexo.

A mão-de-obra familiar em pequenas propriedades era a tônica do sistema

econômico capixaba e, a estrutura desses grupos familiares era a mesma da família

patriarcal que, durante os três séculos de colonização portuguesa na América, envolveu

homens e mulheres em uma sociedade rigidamente hierárquica.

Baseada na economia agrária voltada para a exportação, a organização social

patriarcal brasileira promovia poder aos proprietários rurais, que tinham autoridade

absoluta sobre suas famílias. Mesmo sendo impossível identificar essa família como um

modelo ideal, seus preceitos influenciaram as relações sociais e sexuais de outros

modelos de unidades domésticas. Nas famílias dos pequenos proprietários a mulher

exercia atividades iguais aos dos homens. Assim como todos os membros da família ela

participava da derrubada de florestas, das plantações e das colheitas.

No Espírito Santo, onde as pequenas propriedades prevaleceram, a participação

feminina nas plantações e nas colheitas era fundamental para a manutenção das

fazendas. Mas, apesar de as mulheres dessas pequenas propriedades terem funções bem

definidas e atuarem lado a lado com os homens nos campos, a cultura de tradição

religiosa efervescente manipulava sua formação voltada para a constituição de uma

família, cujo principal papel a ser desempenhado por ela era o de esposa e mãe, muito

embora suas atividades no campo continuassem a ser exercidas junto com os homens da

família.

21 - SALETTO, Nara. Trabalhadores nacionais e Imigrantes no Mercado de Trabalho do Espírito Santo. 1888-1930. Tese de doutoramento apresentada na Universidade federal Fluminense. Rio de Janeiro, 1994.

15

A dominação masculina que aparece nessa sociedade se traduziu pela essência

que prisma pelo poder do homem sobre todos os membros da família, principalmente

sobre a mulher e seus filhos, tal qual as famílias que se constituíram aos moldes da

família patriarcal que estabelecia papéis sociais bem diferenciados entre os homens e as

mulheres. Para os homens, o destino público induziu na escolha de um trabalho, da

forma de participação política, dos meios de diversão. Para as mulheres, o destino

privado determinou o papel de esposa e mãe.

Essa divisão manifesta de sexismo atribuiu a cada pessoa papéis e modelos de

comportamento pré-determinado, de acordo com seu sexo: os homens “nunca”

fraquejam, têm “naturalmente” capacidade de gerir seu próprio sustento e se afirmam

em sua “superioridade” e, as mulheres, “naturalmente” dependentes, devem ser

“submissas” e “dóceis”.

A família, a educação e a igreja, instituições muito fortes no Espírito Santo,

foram as instituições que se organizaram em torno da manutenção desse imaginário.

Principalmente, quando se referiam à mulher. Se utilizaram da cultura e da disciplina

para convencerem-na que a nasceu para o casamento e que esse deve ser seu único

sonho.

Interiorizado esse sentimento e inculcado em milhares de gerações o casamento

transformou-se em um “sonho feminino” e, por muito tempo, acreditou-se realmente

que o único “sonho das mulheres” era o casamento.

Os pensamentos e os discursos dos anos 1960, segundo Bassanezi 22 difundiam

as características apropriadas a cada sexo, classificando a mulher como um elemento

frágil e delicado em oposição ao vigor e à intelectualidade masculina, prolongando

ideais do pensamento católico e o positivista que se desenvolviam desde o final do

século anterior. “Naturalmente afetivas” e “necessitadas de proteção”, as mulheres

foram declaradas submissas e portadoras de papéis distintos dos homens, que por

natureza foram classificados como provedores material e moral da família, diz

Vaitsman23. Uma moral que preparava a menina para o desempenho das funções

domésticas e pressionava o comportamento feminino no sentido de a mulher conservar

22 - BASSANEZI, Carla. Virando as páginas, revendo as mulheres. Revistas femininas e relações homem-mulher. 1945-1964. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1996. 23 - VAITSMAN, Jeni. Flexíveis e Plurais. Identidade, Casamento e Família em Circunstâncias Pós-Modernas. Rio de Janeiro:Rocco, 1994.

16

sua honra e não se indispor com a disciplina vigente. As normas sociais e “naturais” dos

sexos revelavam valores morais que deviam se refletir nos comportamentos femininos

de forma a garantir sua honra e sua imagem de “moça de família” e “boa esposa e mãe”.

Além da preocupação paterna em não ver suas filhas em uniões ilegítimas ou mesmo

celibatas. Por isso, as meninas capixabas, nascidas não só no interior, mas também em

Vitória, desde pequenas sabiam que seu destino era o casamento.24

A união de uma mulher com um homem, deixa de ser “natural” para tornar-se,

mediante o sacramento do casamento, uma construção social ligada à noção da essência

feminina, cujo destino passa a ser praticamente incontestável. Até a década de 1970,

muitas instituições de ensino, de religião e de formação de opinião, como jornais e

revistas femininas, em todo o país, repetiam a idéia de que “Toda mulher deseja casar-

se”, afirma Bassanezi.25

Por não terem uma profissionalização e pela falta de oportunidade de trabalho

fora do espaço doméstico que rendesse seu sustento e de seus filhos, a não ser o trato

com a terra de propriedade da família, milhares de mulheres se renderam aos

preconceitos e às atribuições que lhes foram dadas pela sociedade capixaba.

A compreensão de esse ideal ser nutrido por “todas” as mulheres fez com que

também em Vitória poucas opções de atividades lhes fossem oferecidas. Mesmo para

aquelas que já trabalhavam fora do ambiente doméstico, nessa época, o casamento

representava, dentre outras coisas, segurança, principalmente econômica.

Mesmo quando surgiam possibilidades de emprego para as mulheres no país,

entre os anos 1940 e 1970, essas deixavam de seguir uma carreira profissional para

dedicarem-se ao casamento, alegando que “Muitas vezes ambos são inconciliáveis”.

Nessa época, o trabalho feminino ainda era considerado um desprestígio para o homem,

que tinha o dever de sustentar sua família. A mulher devia se dedicar inteiramente ao

lar.

E, mesmo as mulheres que saiam em busca de trabalho para contribuírem no

sustento do lar, deviam sempre mostrar-se voltada ao interesse do casamento e em

nenhuma hipótese deveria se comportar de maneira a reduzir suas oportunidades de se

24 - MARGOTTO, Lilian Rose. Igreja Católica e Educação Feminina no Anos 60. O Colégio Sacré-Couer de Marie (Vitória – 1960-1969). Vitória:EDUFES, 1997. 25 - BASSANEZI, Carla.1996. Op. Cit

17

transformar em uma esposa. Exemplo disso está numa das edições da Revista

Capixaba26, do ano de 1967, que registra impressões sobre a mulher capixaba:

“Jóias, enfeites, uma série de preocupaçõeszinhas de vaidade substituem o alimento e o

conforto que devem existir dentro de casa.

O importante na vida é o casamento. Uma só finalidade na existência: casar.

Assim considera a vida grande número de solteiras intranqüilas. Estão à procura de

alguém que com elas possam dividir o coração. Neutralizam todas as atenções que

fogem a esta perspectiva. Nem mesmo um trabalho intelectual profundo resolveria seus

problemas – e então ela o afasta, como inimigo seu. A mulher solteira capixaba não

admite, facilmente, um sentido de vida fora do casamento, mesmo que se frustre toda,

como tem acontecido:

- Sem o casamento, prefiro morrer.”

A Pesquisa

Buscando confirmar as expectativas das mulheres capixabas em relação ao

casamento, realizamos nos cartórios de registro civil de Vitória um levantamento

estatístico dos casamentos, das separações e dos divórcios, ocorridos no período a seguir

à erradicação do café, que proporcionou o êxodo rural, e à implantação dos Grandes

Projetos Industriais, que levaram milhares de pessoas à cidade de Vitória em busca de

novas oportunidades de emprego.

Para obter dados mais precisos sobre a influência desse mercado de trabalho

sobre a relação da mulher com o casamento, levantamos também dados sobre a idade e

a profissão da mulher quando se casou. Nosso objetivo era fazer um cruzamento desses

dados no sentido de obter um estudo sobre o relacionamento da idade da mulher com

sua profissão, e verificar a influência desses fatores na duração do tempo de casamento.

Nos dados dos Censos Estatísticos da FIBGE procuramos verificar até que ponto

as expectativas das mulheres em relação ao casamento se confirmam. E, de imediato

26 - PERPÉTUO, Maurílio Cabral. 1967. Op. Cit. p. 29.

18

constatamos que, em 1970, o número de mulheres casadas era 41.121, ou seja 58,65%

das mulheres recenseadas e, em 1980, esse percentual cresceu para 72,29%. Em

oposição a esses dados os números de pessoas solteiras, homens e mulheres, caiu de

41,38%, em 1970, para 39,02%, em 1980.27

Nos três Cartórios de Registro Civil de Vitória (Sarlo, Amorim e Zilma Leite)

verificamos que entre 1970 e 2000 o número de casamentos em Vitória (65.924)

aumentou em torno de 62,37% (Tabela 2), enquanto que em todo o Estado do Espírito

Santo esse percentual não passou de 9,4% entre os anos de 1974 e 1998. Em todo o

Brasil, considerando esse último período, os números decaíram de 818.990 para

698.614.

Tabela 2: Ano de casamento x Cartório

CARTÓRIOS

ANOS SARLO ZILMA LEITE AMORIM TOTAL

1970 579 202 225 1006

1975 769 388 464 1621

1980 1034 498 653 2185

1985 1471 557 697 2725

1990 1114 605 451 2170

1995 1228 868 275 2371

2000 562 987 576 2125

TOTAL 31859 18587 15478 65924

Fonte: Livros de Registro Civil dos Cartórios de Vitória. 2001

Em relação à formação da família, o princípio da igualdade é um argumento

básico que norteia a escolha do cônjuge, desde os tempos coloniais.28 Aquela sociedade

impunha, por valores morais, que o pai decidisse a vida dos filhos, principalmente da

filha mulher. Era ele quem escolhia com quem sua filha deveria casar e, ela tinha como

obrigação respeitar sua vontade que versava em normas de indissolubilidade dos bens

econômicos, etnia, moral e idade. Fatores que faziam parte das normas criadas pela

sabedoria popular para que houvesse um casamento “perfeito”.

27 - MORAES, Paulo Stuck. Vitória - Alguns dados demográficos 1940 – 1980. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, Revista n.44, 1994. p.55-64 28 - SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistemas de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo:EDUSP, 1984.

19

Por isso, era muito comum casamentos entre pessoas de uma mesma família e a

mulher casar-se muito nova, beirando aos 13 anos. Geralmente aos 15 a menina já era

mãe. Se chegasse aos 20 anos sem “conseguir” casar-se, a mulher era considerada

“solteirona”.

Muitas meninas logo que nasciam eram prometidas pelo pai a um “compadre”

amigo. Tão logo a menina menstruasse era considerada apta ao casamento e, em muitos

casos, era entregue ao marido ainda criança, apesar de várias vozes se fazerem contra

esses costumes. Francisco José de Almeida29, autor do Tratado da Educação Física dos

Meninos, em 1791, não admitia o casamento precoce e não acreditava que as primeiras

menstruações da menina a fizessem apta à procriação. Para ele, somente depois da

puberdade é que os órgãos estariam prontos para o sexo e isso acontecia a partir dos 18

anos.

Em Vitória, até as décadas de 1950 e 1960, as mulheres casavam-se logo depois

da puberdade. As capixabas que atingissem a idade de 20 anos sem ter “conseguido” um

marido, eram consideradas “solteironas” e "titias" e, com certeza, sentiam-se

constrangidas diante das cobranças sociais e das gozações gerais, que as consideravam

“encalhadas”.

O estigma que acompanhava a condição de inferioridade feminina sujeita à

autoridade despótica do pater famílias, desde a velha e hipócrita sociedade portuguesa,

e herdada pelos brasileiros, provocou nas mulheres muito jovens o ideário falso da

“liberdade” através do casamento. Influenciadas por essas idéias milhares de mulheres

casaram-se mesmo antes de completar 18 anos. Bassanezi30 afirma que em São Paulo, o

Departamento de Estatísticas detectou que 24% das mulheres que se casaram em 1961

ainda não tinham completado 20 anos.

Em Vitória, nas décadas seguintes, mesmo sem estar preparada para uma vida a

dois, muitas mulheres ainda casaram-se jovens, antes mesmo de completar 19 anos.

(Tabela 3).

29- Apud SILVA, Maria Beatriz N. 1984. Op. Cit. p. 54 30 - BASSANEZI, Carla.1996. Op. Cit

20

Tabela 3 – Faixa Etária x Casamento (1975-1995) ANO DO

CASAMENTO

TOTAL DE

CASAMENTOS

MENOR QUE 19 ANOS

%

1975 1.621 468 28,88

1980 2.185 540 27,72

1985 2.725 593 21,76

1990 2.170 515 23,92

1995 2.371 470 19,82

Fonte: Estatísticas de Registro Civil – FIBGE - 1974-1998

A inexperiência e, por diversas vezes, a curiosidade, fizeram muitas dessas

mulheres reféns de uma vida descontente, conflituosa e infeliz. E, a não realização

individual levou à insatisfação conjugal, provocando o rompimento do casamento em

curto espaço de tempo. Após os anos 70 os dados dos cartórios mostram que várias

mulheres não somente casaram-se após a idade de 19 anos, mas também se separaram

e/ou divorciaram antes dessa idade. (Tabela 4)

Tabela 4 – Faixa Etária e Rompimento Conjugal –1970-2000 FAIXA ETÁRIA SEPARADA DIVORCIADA SEPARADA E

DIVORCIADA TOTAL

10 a 14 21 27 18 66 15 a 19 990 910 822 2722 TOTAL 1011 937 840 2788

Fonte: Livros de Registro Civil dos Cartórios de Vitória. 2001

Dentro de um padrão social de menor poder aquisitivo, muitas vezes quando a

mulher não “conseguia” casar-se era vista como um peso para a família, pois não havia

conseguido um marido para sustentá-la e, esse estigma só era superado se a mulher

trabalhasse para o seu sustento.

O chamado “milagre econômico brasileiro” incorporou no mercado de

trabalho milhares de mulheres e a maior parte do mercado de trabalho feminino se

tornou um fator importante para modificação daquela estrutura social. Embora

crescente, na década de 1970, a população feminina economicamente ativa ainda fosse

proporcionalmente pequena. Enquanto 79% dos homens aptos ao trabalho estavam na

ativa, somente 21% das mulheres em condições de desenvolver qualquer atividade

remunerada, estavam no mercado de trabalho.

21

Mas, no período de 1980 a 1991, as repercussões decorrentes desse processo

de transformação econômica levou maiores quantidades de mulheres a serem

incorporadas no mercado de trabalho. Em 1980, no Brasil, o percentual feminino

economicamente ativo era de 27%, passando para 35,5%, em 1991.31

O crescimento desses números foi tão significante que, somente para

exemplificar, pesquisamos a quantidade de mulheres economicamente ativas na década

de 1940. Naquela época, somente 2,8 milhões de mulheres faziam parte da força de

trabalho brasileira. Em 1990, esse número aumentou para 22,8 milhões, representando

35,5% da população ativa do país.32

No início da década de 1980 a taxa de desemprego urbano foi superior a 35%

e, em 1988, somente 6,6% dos trabalhadores recebiam acima de dez salários. A situação

de pobreza afetou as unidades domésticas brasileiras, ao ponto de haver cada vez mais

necessidade de a mulher sair do âmbito doméstico para auxiliar nas despesas do lar.

Todavia, a grande maioria dessas mulheres exerciam atividades de pouca

qualificação. Segundo a FIBGE, em 1990, 20% das mulheres trabalhadoras exerciam

atividades no comércio, 18% nos serviços de educação e 8% nas atividades de saúde.

As dificuldades sócio-econômicas que atingiram as famílias brasileiras,

afetaram principalmente aos homens que enfrentavam muitas dificuldades para manter

seus empregos e essas dificuldades provocaram inúmeros problemas no desempenho

cultural masculino definido como provedor da unidade doméstica.

As mulheres, se engajaram principalmente nos serviços modernos e na

indústria, principalmente no ramo de vestuário, do calçado, dos artefatos de tecidos. No

setor terciário a maioria das mulheres se integrou em atividades relacionadas ao

secretariado, ao comércio, ao funcionalismo público e aos bancos. (Tabela 5)

31 - Fundação IBGE. Estatísticas Históricas do Brasil. Séries Econômicas Demográfias e Sociais. 1980-1995. 32 - Idem.

22

Tabela 5 - Mercado de Trabalho Feminino (Brasil) POPULAÇÃO ATIVA

(1.000 pessoas)

SETOR DE ATIVIDADES 1970 1980

Industrias têxteis, vestuários, calçados Comércio Banco e outras atividades financeiras Serviços governamentais

8l6,8 449,1 77,7

160,2

1.339,2 1.455,1 322,6 372,2

Fonte: Censos demográficos do Brasil de 1970 e 1980

Os salários recebidos por milhares dessas mulheres fez com que muitas relações

no interior das unidades domésticas fossem abaladas. Tais situações aliadas à

regulamentação do divórcio no país, em 1977, desafiaram os componentes básicos do

papel exercido pelas mulheres no interior das unidades domésticas, uma vez que as

diferenças e a instabilidade afetiva e econômica não são estimulantes para que os laços

conjugais permaneçam estáveis, o que levou a que milhares de laços conjugais

conflituosos se desfizessem. ( Tabela 6) Tabela 6 - Processos de separação e divórcio concluídos (1982 e 1992)33

LOCAL 1982 1992 Brasil 123.511 170.911 Espírito Santo 1.876 4.016 Rio de Janeiro 17.078 10.637 São Paulo 53.527 67.301 Minas Gerais 11.245 17.747 Rio G. do Sul 7.787 14.980 Goiás 3.287 5.571 Pará 636 1.347 Ceará 1.727 2.252 Fonte: FIBGE - Estatísticas do Registro Civil 1982 e 1992

Os processos de divórcio no Brasil cresceram 72,27% somente neste período.

Os números de divórcios, aliás, aumentaram com tanta rapidez que só no Estado do

Espírito Santo esse crescimento foi de 45,1% entre os anos de 1983 e 1985, ou seja: no

ano de 1985, o número de divórcios homologados cresceu 84,49% em relação ao ano

anterior, que por sua vez foi de 71% superior ao ano de 1983.

Tal crescimento, que ocorreu de forma semelhante em todo o país, mostrou que

os resultados obtidos salientam o impacto da vida urbana sobre a mudança nos números

de casamentos. Os dados mostram que padrões de comportamento antes muito

33 - Para se ter uma idéia do total da demanda dos processos de separação e divórcio de todo o Brasil, utilizamos o critério de escolher toda a Região Sudeste e, aleatoriamente, um Estado de cada outra região.

23

importantes para a vida da mulher já não condizem com os objetivos sociais femininos.

E, a cidade de Vitória, inserida neste contexto, depois das mudanças econômicas da

década de 1970, apresentou-se-nos com um número considerável de mulheres jovens,

trabalhadoras, que solicitaram separações e divórcios.

Esse fenômeno pode ser visto nos dados levantados nos cartórios. No que diz

respeito ao engajamento profissional das mulheres no mercado de trabalho, procuramos

identificar, dentre os 8.680 processos de separações e divórcios registrados de 1970 a

2000, aquelas que mais se destacaram. Depois de analisar os dados constatamos que o

maior número de mulheres que se envolveram nos processos de rompimento conjugal

estão registradas nos cartórios com a profissão de doméstica (2.693) e estudante

(1.846). Mas, a maioria das mulheres consideraram suas “atividades” como profissão e

essas foram registradas como tal. Contraditoriamente, isso significa que vários registros

de domésticas não mostram a real profissão da mulher, pois muitas atividades manuais

realizadas no âmbito doméstico voltadas para o público, como a costura, a confecção de

doces, o corte de cabelos, a manicure, não foram consideradas como profissões.

A partir do ano de 1978 o número de mulheres que se registrou como

doméstica sofreu uma queda de 76,5%, pois muitas mulheres se registraram como

profissionais de curso superior: da área tecnológica, cento e vinte e duas; da área

biológica, cento e noventa e cinco; e, da área de humanas duzentos e trinta e duas.

Muitos registros de profissões não definem claramente se a mulher tem ou não curso

superior, como é o caso do registro de profissões como empresária, autônoma,

funcionária pública, dentre outras. Acreditamos, por isso, que exista um número muito

maior de mulheres separadas ou divorciadas com curso superior.

Um balanço desses dados mostra, no período estudado, que os casamentos já

não atendiam à mentalidade de que seriam “eternos”, ou seja, já na década de 1970,

antes mesmo da aprovação da lei do divórcio, em 1977, os casamentos já não resistiam

aos problemas advindos de uma série de mudanças no comportamento da sociedade, tais

como: o desemprego, a não manutenção da mentalidade de que o homem deveria ser o

provedor da família, a necessidade da saída da mulher para o mercado de trabalho até

então gerido somente pelos homens, a falta de uma educação feminina que preparasse a

mulher para enfrentar esse mercado de trabalho, dentre outros.

24

As inferências feitas a partir do mosaico heterogêneo de dados diferenciados

nos leva a crer que o processo de identidades contrastantes pode se constituir em

representações ideologicamente construídas. Um exemplo de representações

desencontradas podem ser relacionadas aos comportamentos variados das mulheres

envolvidas nos registros pesquisados: enquanto mulheres se casaram com menos de 30

anos, exercendo profissões de pouca rentabilidade e dependendo economicamente do

marido, mantiveram seus casamento por mais de 20 anos, as mulheres que se casaram

com mais de 30 anos, estabilizadas financeiramente, mantiveram seus casamento por

um período inferior a 03 anos.

Os registros sobre a concentração do número de casamentos na faixa dos cinco

anos de duração nos leva a perceber que, mesmo sem outras fontes de pesquisa, o

casamento está sofrendo mutações e fortalecendo outras formas de relacionamento, sem

passarem pela situação de registro. Basta ver o momento presente.

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