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Mulheres Mamasani: mudanças na divisão do trabalho entre um povo pastoril sedentarizado do Irã Soheila Shasahahani Shahid Beheshti University, Irã [email protected] Tradução: Alberto Groisman e Maria Amélia S. Dickie

Mulheres Mamasami

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Antropologia e Gênero

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  • Mulheres Mamasani: mudanas nadiviso do trabalho entre um povopastoril sedentarizado do Ir

    Soheila ShasahahaniShahid Beheshti University, Ir

    [email protected]: Alberto Groisman e Maria Amlia S. Dickie

  • ResumoEste artigo descreve as mudanas ocorridas na diviso sexual dotrabalho entre os mamasani do Ir desde a asceno do X aotrono. Estas mudanas, observadas entre este grupo pastorialsedentrio resultaram em alteraes significativas no status dasmulheres. Elas perderam a autonomia e foram barradas de parti-cipar em vrias atividades produtivas, bem como perderam anti-gas garantias de segurana fsica em situaes de guerra ou pi-lhagem.

    Palavras-chavesDiviso sexual do trabalho, mulheres, Ir.

    AbstractThis article describes the changes that have occurred in the sexu-al division of labor among the Mamasani of Iran since the Sha'srise to power. The changes observed among this sedentary pas-toral group have resulted in a significant alteration of the statusof women. They have lost their autonomy and participation invarious produc tive activities, and their physical welfare is nolonger guaranteed in situations of war or pillage.

    KeywordsSexual division of labor, women, Iran.

    ILHA

  • Mulheres mamasani: mudanas na diviso do trabalho entre um povopastoril sedentarizado do Ir

    Soheila Shahshahani

    A pessoa que trabalhou encontrou sua essncia.Provrbio Mamasani

    Entre povos nos quais as mulheres tm de trabalhar mais pesado do quens consideraramos apropriado, h a, muitas vezes, muito mais respeito

    por elas do que entre os europeus. A dama da civilizao, envolvida pelafalsa deferncia e alienada do trabalho total real, tem uma posio socialinfinitamente mais baixa do que a mulher trabalhadora do barbarismo, que

    era vista entre seu povo como uma verdadeira dama e que, alm disso,era de fato uma dama.

    Friedrich Engels

    A

    s mudanas no status de mulheres entre os Mamasani, no passado um povo pastoril nmade, do sudeste do Ir, so paralelasquelas que geralmente se tm verificado no colonialismo. Como

    assinalou Leacock (1979: 189): "uma das mudanas mais consisten-tes e amplamente documentadas trazidas pelo perodo colonial foium declnio do status da mulher em relao ao do homem". Em par-te, as causas foram indiretas, j que "a introduo do trabalho remu-nerado para os homens e o comrcio de mercadorias bsicas acelera-ram o avano dos processos, pelos quais coletivos tribais foram frag-mentados em unidades familiares individuais, e nos quais mulheres ecrianas se tornaram economicamente dependentes de um s homem.De outra parte, as mudanas foram diretamente causadas, "auxilia-das pela alocao formal para os homens de toda e qualquer autori-dade pblica e do direito legal de propriedade permitido em situaescoloniais".

    Tal percepo por parte de antroplogos e cientistas sociaisque tm trabalhado no Oriente Mdio tem sido obscurecida por pers-pectivas que fundamentalmente racionalizam e justificam as polti-cas dos EUA na rea (Shaar 1979). "Tradio" vista como o maiorproblema enfrentado pelas mulheres. Beck e Keddie (1978: 18) escre-vem que:

    aquilo que falta maioria das mulheres do Oriente Mdio, quan-do comparadas a compatriotas mais prsperas e melhor educadas,ou com mulheres do ocidente de muitas classes sociais, a liber-dade de escolha considerando as decises bsicas da vida.

    1LHA - Florianpolis, v.4, n.1, julho de 2002, p. 17-33

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    Entretanto, os autores no vem soluo em termos polticosou econmicos, mas em termos de quebra com a tradio:

    Para quebrar com uma tradio corno essa, de tal modo que amaioria das mulheres, crianas e tambm os homens venhama tornar-se mais livres do que so hoje, preciso buscar pro-gramas que permitam uma participao ativa e voluntria porparte daqueles que hoje so ligados tradio. Isto no somen-te poderia modificar o sistema de valores vigente, como emmuitas reas um pr-requisito para a melhoria material e oaumento de renda (Ibid: 14).

    Em outro trabalho (Shashahani 1981) eu critiquei esta posi-o. Neste artigo, eu documento a maneira pela qual as mudanas nadiviso do trabalho "tradicional" em um povo tribal do Ir, osMamasani, incrementaram a dependncia das mulheres em relaoao homem, e reduziram o seu espao independente de tomada dedecises.

    Os MamasaniA regio em que vivem os Mamasani localiza-se no extremo

    sul das Montanhas Zagros. Ela abrange 8032 quilmetros quadrados,e em 1972 havia uma populao de mais ou menos noventa mil habi-tantes. Esta populao era aproximadamente 5,5% urbana, 11%transumante e o restante rural.

    Eu conduzi a minha pesquisa entre 1977 e 1978 na aldeia deOyun, no subdistrito de Bakes. Em 1972, havia 684 aldeias na regioMamasani. A sua nica cidade, Nurbd, foi estabelecida em Bakesem 1962, aglutinando 25 aldeias. Oyun, no plano de Nurbd, tinha120 hectares de terras para agricultura e quatro pomares. Ervas eramcoletadas diariamente nos campos. Havia ali dois rebanhos de seten-ta carneiros e umas poucas ovelhas. Cerca de metade da populaopossua vacas, quase estritamente para uso domstico. Trs anos an-tes do meu trabalho de campo, uma cooperativa de agricultura foifundada na rea, e as terras prprias para agricultura de Oyun pas-saram a fazer parte da cooperativa. Havia ali em torno de quarentafamlias na aldeia, e a populao total era de aproximadamente 246habitantes.

    A discusso a seguir, que se debrua sobre as atividades eco-nmicas e a diviso sexual do trabalho entre os Mamasani de classes

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    baixas, uma reconstruo do tempo em que os aldees eram partede uma sociedade nmade, de camponeses e pastores. A caa erauma atividade de elite; a coleta era praticada diariamente; a pilha-gem era a fonte de renda, e o pastoreio e a agricultura eram as duasformas bsicas de produo. A sociedade no era auto-suficiente; poresta razo, eu considero as trocas da mesma forma que a reproduoe o processamento de alimentos e outras mercadorias.

    Na minha discusso, eu enfatizarei o cruzamento de frontei-ras sexuais. O meu pressuposto o de que, quando homens e mulhe-res participam da mesma tarefa, ou uns ou outros tm menos chancede se alienar da atividade e assim ser explorado pela sua ignorncia efalta de acesso a recursos. O trabalho especfico no mistificado,como o nas relaes em que ou o produtor subjugado ou o produ-tor se apropria exclusivamente do produto do trabalho.

    O trabalho e o seu significadoUma pessoa ociosa, homem ou mulher, de classe baixa ou alta,

    no bem vista entre os Mamasani. Porm, apenas trabalhar no algo de altamente valorizado, a no ser que esteja acompanhado dezerangi, termo que denota uma qualidade de esperto, rpido, habili-doso, astuto, sagaz. Uma pessoa que tambm possui mardom dari podetornar-se realmente bem-sucedida. Mardom dari um comportamen-to que conquista o apoio, a confiana e a boa vontade das pessoas,embora para a pessoa de classe baixa o termo traduzido como "hos-pitaleiro" seria mais comumente usado.

    Algumas das mulheres com quem eu trabalhei mais de per-to eram bibis, isto , descendentes de um khan 2 e,consequentemente, da classe mais alta na sociedade tribal. O tra-balho delas consistia na organizao e administrao de suas ca-sas, embora a sua imagem fosse a de pessoas ricas, que no traba-lhavam, no sentido de no se empenharem nos afazeres domsti-cos do cotidiano. Uma bibi que realiza trabalhos domsticos con-siderada avarenta, porque isto sugere que ela no quer pagar umapessoa para fazer estes trabalhos. O zerangi de diferentes mulheresde classe alta torna-se claro quando se compara duas com experi-ncia semelhante e que tm diferentes status econmico. Se umabibi no tinha nem zerangi, nem mardom dari, ento sua casa erapraticamente uma runa. Uma outra, zerang, ainda que tivesse co-meado em igual nvel, trabalhando muito, era apenas moderada-mente bem-sucedida, posto que no era mardom dari.

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    Uma mulher de classe baixa zerang trabalha duro, de formarpida e astuta. Ela participa de um grande conjunto de atividadesprodutivas e no se torna escrava; em vez disto, ela se torna indispen-svel. A sua posio muito diferente daquela descrita por Bossenpara sociedades "modernizantes", onde as mulheres podem ser ocio-sas, pobres e impotentes a tal ponto que a sua funo produtiva desvalorizada ou no levada em conta... Tipicamente, isto significaespecializao no servio domstico, incluindo-se a o cuidado e aeducao das crianas e outros tipos de servios. em virtude dessaespecializao que as mulheres se tornaram mais facilmente explora-das como fora de trabalho excedente. Se h excesso de oferta de tra-balho feminino em relao s necessidades da sociedade, ento o statusde todas as mulheres ser rebaixado (Shashahani 1975: 591).Atividades econmicas

    AgriculturaHomens e mulheres de classes baixas participavam do cultivo

    da terra, sendo que famlias sem-terra faziam a maior parte do traba-lho. O khn ia at ao campo para supervisionar; a bibi ia ocasional-mente. Do mesmo modo, o chefe da aldeia ia freqentemente aos cam-pos, ao passo que a sua mulher o fazia com menos freqncia. Oshomens eram os responsveis pelo trabalho mais pesado na agricul-tura, arando, cavando e irrigando os campos. As mulheres faziam otrabalho mais leve, como semeadura, capina e colheita em geral, in-clusive de frutas. A partir da primavera e durante o outono, homense mulheres iam ao campo quase todos os dias. Os produtos cultivadosque eles aumentaram foram o trigo, cevada, arroz, algodo, uma va-riedade de gergelim e pio, assim como legumes. As frutas cultivadaseram principalmente as ctricas.

    Pastoreio e atividade leiteiraOs agricultores mais prsperos possuam rebanhos de cabras e

    ovelhas. Tal no era o caso das famlias sem-terra, mas os seus membrospodiam trabalhar como pastores para as classes mais prsperas. Cadafamlia, exceto os pastores e agricultores assalariados, possua de duasa sete vacas. Os rebanhos eram conduzidos diariamente para apastagem nos arredores do povoado. Homens e mulheres de todas asidades, exceto jovens mulheres com filhos, podiam realizar essa tarefa,embora ela ficasse mais freqentemente a cargo dos homens. Quandoos moradores de Oyun moviam os seus rebanhos, as quatro famliasmais ricas iam para Dst Arjan, numa viagem de dois dias. Outras

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    famlias iam somente dez quilmetros adiante, para alm dasmontanhas, a oeste da aldeia.

    Durante a primavera e o vero, as mulheres se ocupavamdiariamente da atividade leiteira. Todos os dias, entre 4 e 6 da manh,do meio-dia at uma da tarde e das 6 s 7 da noite, elas ordenhavamas vacas, cabras e ovelhas, e ferviam o leite para fazer iogurte. Comeste iogurte, elas faziam manteiga, queijo, creme e outros produtos.Os homens no participavam destas atividades.

    Fiao, tecelagem e curtumeAs mulheres fiavam o pelo de cabra, l de ovelha e algodo.

    Do fio, elas teciam tendas, sacos de farinha, tecidos sobre os quaispreparavam o po, roupas de cama e tapetes. Eram tambm asmulheres que faziam quase toda a roupa. Alm disto, elas curtiam ocouro de cabras e ovelhas para fazer recipientes para transportar guae para bater manteiga. Havia alguma especializao nessas tarefas.No eram todas as mulheres que sabiam o que fazer em todos processosenvolvidos.

    Caa e coletaCaar cabras selvagens e perdizes, comuns na rea, era uma

    ocupao masculina. Mas isto s era feito durante o outono, e s poraqueles homens que no estavam ocupados, e que tinham armas, isto, os khns e os homens ricos da aldeia.

    A coleta consistia em trazer lenha, capim para o gado e vegetaispara a alimentao diria. Os homens traziam toras pesadas e asmulheres ramos e galhos leves dos bosques nos arredores. Mulheres emeninas coletavam ervas usadas diariamente na cozinha. Qualquermembro da famlia que estivesse disponvel meninos ou meninas,homens ou mulheres coletava forragem para as vacas, embora oshomens fizessem muito pouco dessa tarefa. Os frutos do carvalho eramusados antes do trigo, tornando-se a base da alimentao, e eles aindaeram coletados nos anos de penria. Qualquer um podia procur-los,mas este trabalho era usualmente feito por rapazes adolescentes.

    Buscar gua pela manh era uma tarefa feminina. Os homensnunca participavam disto, j que as mulheres muitas vezes ficavamna fonte por algum tempo para lavar roupa e conversar.

    Guerra e pilhagem"Para garantir a subsistncia futura de uma filha, no se pode

    d-la a um homem que no tivesse uma boa experincia", informou-

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    me um ancio de classe alta. "Exatamente como hoje as pessoas tmrecomendaes e diplomas, tempos atrs as pessoas poderiam serinterrogadas sobre as pilhagens de que participaram". Muitas regraseram observadas para a pilhagem, de acordo com a rea ou as pessoasque poderiam participar e receber a porcentagem fornecida pelo khn.Um comportamento especial era observado nessa armao e um enfeiteespecial era usado nessa ocasio.

    A tcnica da guerra era majoritariamente um empreendimentode classe alta. De acordo com Bonte (1977: 42-3) "As sociedades depastores nmades so freqentemente sociedades no seio das quais asatividades guerreiras tm um papel importante (...). A utilizao e,freqentemente, a posse de animais de guerra so muitas vezesreservadas a uma aristocracia e constituem um aspecto importantedo seu poder". Havia uma distino entre pilhagem e roubo. Umapilhagem era um empreendimento de um grupo, coisa que requeriadeciso e cooperao de todo o grupo. Os objetos pilhados armas eacessrios, objetos tranados, utenslios, metais e rebanhos eramdivididos entre os participantes para que os utilizassem ou vendessemmais tarde, cabendo ao khn uma porcentagem. Um roubo, pelocontrrio, envolvia um ou alguns indivduos que se apropriavam deuma cabra, abatiam-na e comiam-na imediatamente. "Eu jureisolenemente a Hazrat Abolfaze que eu nunca roubaria", contou-meum pobre homem de Oyun.

    Em conexo com o ataque, as mulheres podiam informar oshomens sobre os objetos que outros possuam e qual era a sualocalizao, em troca de uma porcentagem do que fosse obtido. Seessa porcentagem devida no era paga de acordo com o totalprometido, uma mulher poderia discretamente informar o possuidororiginal, e receber dele uma retribuio.

    As regras da guerra incluam respeito pelas mulheres: "Seh alguma mulher na caravana que algum est indo pilhar, omesmo obrigado a cessar o empreendimento em respeito a ela",afirmava um khn. "Se algum fez uma pilhagem numa tribo ounuma aldeia e uma mulher vier a reclamar as suas posses, tudoque ela reivindicar deve ser-lhe devolvido." Mulheres jamais eramvioladas aps uma batalha vitoriosa, nem eram tomadas comotributo. O nico perodo na recente histria Mamasani em que asmulheres se sentiram ameaadas pelos seus oponentes foi em 1836,quando elas foram atacadas pelas foras governamentais (Fas'i1972: 244).

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    Geralmente, as mulheres no participavam nas ofensivas deguerra. Mas corria a palavra de que a ltima guerra intertribalimportante, que colheu onze vidas, fora causada por uma mulher.Conforme um jovem khn relatou, "Eu lembro que as mulheres erammandadas para determinadas expedies de guerra, especialmentecontra foras governamentais. Este era um artifcio para encorajar oshomens da tribo a atacar o inimigo." Alm disto, numa tribo vizinha,os Kohgiluye, foi registrada a participao das mulheres na guerra.As mulheres participavam ativamente nas guerras defensivas, emviagens a cavalo, e a prtica do tiro no lhes era desconhecida. Elastambm preparavam comida para o homem, e atravs do seu kel zedan(altos gritos usados s vezes para excitao) incitavam e encorajavamos homens para a ao.

    Uma vez que as mulheres no eram baleadas ou espancadas,elas iam ao campo de batalha para procurar os seus feridos ou mortose traz-los de volta para o tratamento dos seus ferimentos, ou para osepultamento. , portanto evidente que, no sendo embora a guerrauma tarefa masculina, no era totalmente alheia s mulheres, as quaistambm conheciam a sua realidade.

    TrocaEntre os Mamasani, as mulheres no estavam envolvidas

    apenas, e de forma importante, na produo econmica; elas tambmparticipavam da troca e distribuio dos seus produtos, ou dofornecimento destes produtos sua comunidade para venda nacidade em troca de outros que a famlia necessitava. No vero, ohomem pegava uma quantidade extra de l ou algodo, tendas, roupasde cama ou carpetes para vender numa cidade prxima, e usava odinheiro para comprar material para roupas, calados, utenslios, chou acar. As mulheres compravam diretamente essas mercadorias,to boas quanto jias baratas e ervas medicinais dos mascates (pilevar).Mulheres raramente iam cidade, e os mascates eram bem recebidos,embora estes vendessem as suas mercadorias a preos muito mais altosdo que os lojistas da cidade.

    As mulheres tambm se envolviam nas interaes econmicasdentro da aldeia em relao a mercadorias de uso dirio, tais como trigo,objetos tranados, cabras, vacas, leite e vegetais. Observei duas mulheresque barganhavam o preo de um tapete. Trocas deleite, vegetais, utensliose coisas deste gnero entre vizinhos e parentes prximos eram objeto declculo exato, mesmo quando dados como presentes. No aconteciamtrocas em larga escala sem o conhecimento de ambos os cnjuges.

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    As trocas entre mulheres de classes baixas e a bibi (ou entre osseus maridos e o khn) eram conduzidas na forma de troca depresentes. A galleh begir (uma taxa para o uso das pastagens do khan)era dada ao Mein no Ano Novo na forma de um presente, que poderiaser um cordeiro, cabrito ou manteiga clarificada. Em tempos dedificuldade, certos "presentes" eram dados pelo khan a pessoasnecessitadas na forma de outras mercadorias para uso, ou de dispensada taxa de pastagem. Em momentos como estes, as mulheres poderiamtalvez rezar em casa para que o khn fosse generoso, enquanto oshomens negociavam diretamente com o enviado do khn nos campos.Em casos de extrema dificuldade, porm, as mulheres suplicavamdiretamente ao khn ou ao seu enviado. Tanto mulheres quanto homenspoderiam ainda ir ter com a bibi a pedir auxlio econmico.

    CuraAs mulheres eram as curandeiras entre os Mamasani. Num

    estgio inicial da minha pesquisa, quando eu preparava um lxico eperguntava por nomes de plantas, fui aconselhada a consultar asmulheres. O conhecimento das ervas era a sua especialidade. O limiteentre alimento e medicina no era claro, pois vrias ervas que eramusadas na alimentao diria tinham propriedades medicinais, comoa malva silvestris (conhecida localmente como tula). Na temporada,esta erva medicinal era usada diariamente para temperar arroz. Duasmulheres na aldeia eram as mais conhecidas curandeiras, habilidosasem parto e na fixao das articulaes, assim como na medicaocom ervas. De qualquer modo, a mdia das mulheres conhecia emtorno de quarenta plantas que elas administravam aos seus filhos e aoutros indivduos doentes. A medicao inclua curativos, tnicos parabebs recm-nascidos e o uso de plantas especficas para desordenscorporais, como inflamaes nos olhos, dores no estmago e resfriados.As ervas eram tambm coletadas ou obtidas de mascates ou vendedoresde temperos numa cidade vizinha.

    ReproduoDe acordo com um provrbio local, "O filho de uma pessoa

    no poder ser filho de outra". Noutras palavras, no espere que ofilho de outrem lhe faa aquilo que voc esperaria que o seu prpriofilho fizesse. Um outro provrbio reza, acerca das crianas, que "Umacentena no demais e um no muito pouco". Na cultura Mamasanitradicional, as crianas eram altamente valorizadas. Quanto maior oseu nmero, mais "main d'oevre" a pessoa tinha e mais relaesfamiliares, a pessoa poderia esperar ter no futuro. No surpreendente

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    que as classes mais altas tivessem o maior nmero, especialmente oskhns com mais de uma esposa.

    No o caso, porm, que a reproduo ocupe uma grandeparte do tempo das mulheres, como Raphael sugeriu (1975: 1). Noera "reproduo" como tal, mas a produo de valores de uso, queconsumia o tempo das mulheres.

    Produo para usoA produo de objetos para uso dos membros da famlia, a

    lavagem, a limpeza, a cozinha e a arrumao eram atividades queocupavam as mulheres por muitas horas. O po, que era assado vriasvezes na semana, tomava no mnimo duas horas de cada vez. O simplescozinhar uma vez ao dia tomava em torno de uma hora de preparao.A lavagem de pratos e roupas, que era feita uma ou duas vezes aodia, tomava no mnimo meia hora de cada vez. A varrio da casa edo ptio tomava outra meia hora, e finalmente havia a colocao deutenslios, roupas e outros itens da casa em ordem. Quanto menoresas posses, menor o tempo despendido no seu cuidado. Por outro lado,quanto mais alta a classe social e maior a propriedade, maior apossibilidade de ter empregados.

    Alm destas atividades dirias, havia as atividades sazonaisou ocasionais. A preparao do couro das cabras para a obteno e oarmazenamento de gua era um processo com durao de um ms,no qual muitas mulheres trabalhavam juntas. Esta tarefa e a fabricaoda manteiga eram atividades do final do inverno. Todos os utensliosda casa e as roupas de cama eram lavados antes do Ano Novo. Noincio da primavera, ptalas de rosas eram coletadas e desidratadas,para serem colocadas junto com penas nos travesseiros. No final dovero, sementes de rom para cozinhar eram secas no telhado. Nooutono eram feitos e estocados sucos de limo e laranja azeda. Roupasnovas para os membros da famlia eram feitas na maioria das vezesantes do Ano Novo. Tambm havia a costura de diferentes tipos deroupas de cama. Finalmente, havia a preparao de grandequantidade de alimentos para as ?romessas, que usualmente eramfeitas durante o ms de Moharram

    O grau de participao dos homens nessas atividades umaquesto crucial. Como atividades "no produtivas", tais tarefas eramusualmente menos valorizadas do que as atividades "produtivas".Apesar de consumirem muito tempo e serem essenciais, no eramaltamente consideradas. Ademais, eram atividades repetitivas; uma

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    vez atingido um certo grau de destreza na sua execuo, no seesperava um nvel de excelncia superior a este.

    Embora os homens Mamasani fossem capazes de cozinhar elavar, no era frequente que se empenhassem nestas tarefas. Tal ocorriasomente quando os seus servios eram necessrios para uma ocasiosocial, ou quando havia uma emergncia na sua casa. O cruzamentode fronteiras sexuais acontecia, mas no como um fenmeno comum;as tarefas domsticas cotidianas eram todas femininas. O mesmo valepara a bibi: ela sabia bem o que fazer em tais tarefas, mas a sua funoera supervisionar os outros que as executavam. O khn estava aindamais afastado de tais atividades.

    Um ponto importante a ser destacado aqui que estamodernizao entre os Mamasani conduziu a um aumento dasatividades domsticas e da produo de valores de uso pelas mulheres,e ainda a uma diminuio das suas atividades produtivas pagas oude troca.

    Desenvolvimento entre os MamasaniOs efeitos da modernizao sobre os pastores nmades

    Mamasani invadiu todos os domnios da vida. Dentre as principaismudanas ocorridas esto:

    (1) medidas polticas que solaparam o sistema de chefia e es-tabeleceram um departamento administrativo governamental,

    4 5uma gendarmerze e um departamento de justia;(2) medidas econmicas que solaparam o sistema de agricul-tura e pastoreio tradicional, sem um programa nacional queefetivamente o substitusse;(3) os efeitos disto sobre as relaes de classe e de parentesco,e a respectiva perda de significado na participao em eventossociais;(4) o efeito ideolgico da escolarizao, do rdio e doscontactos urbanos, desvalorizando o modo de vida tribal ecampons e glorificando a vida urbana e as ideologias "civili-zadas".Algumas palavras so necessrias sobre as reformas econmi-

    cas. Os principais propsitos da reforma agrria e da nacionalizaodas pastagens introduzidas no Ir em 1962 eram livrar-se das chefiaslocais que eram ameaas para o X; introduzir cooperativas agrcolase mais tarde empresas agrcolas, as quais poderiam pr o governo e osinvestidores externos no controle da agricultura, criando a necessida-

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    de de importar alimentos; destruir a possibilidade da ecloso de umarevolta popular rural contra o regime; abrir as reas rurais como mer-cados para mercadorias de consumo; conduzir a populao rural paraos centros urbanos e criar um proletariado urbano.

    No que diz respeito ao ltimo propsito intrigante que ne-nhuma dentre as sete maiores famlias proprietrias de terras da al-deia tenha sado, enquanto quase todos os homens em idades entrevinte e quarenta anos, em trinta e trs famlias de pequenos proprie-trios ou sem terra, abandonaram a aldeia para trabalhar. digno denota que eles comearam a trabalhar em outros lugares em 1975, umano aps o estabelecimento da cooperativa agrcola.

    O efeito das mudanas econmicas sobre as mulheres pode serexemplificado levando-se em considerao trs grupos de idade. Pri-meiro: h onze jovens mulheres de treze a dezoito anos de idade naaldeia que trabalham em propriedades rurais. Elas trabalham oitohoras por dia por aproximadamente cinqenta dias no ano, na la-voura de beterraba e algodo, ou colhendo frutas como roms e la-ranjas. Elas so pagas como diaristas. Nenhuma dessas meninas fre-qentou a escola. Garotas educadas, se no estivessem ainda na esco-la, poderiam considerar tal trabalho inferior para a sua dignidade.Segundo: h nove mulheres com mais de quarenta anos de idade quetrabalham na sua prpria terra entre oito e oitenta dias ao ano. Elasreclamam de no ser bem pagas pelo dirigente da unidade agrcola qual, como pequenas proprietrias, pertenciam.

    Estes dois grupos, o mais velho e o mais jovem, participamativamente na produo econmica, e ambos esto destinados a de-saparecer. As mulheres jovens iro casar-se e deixaro a aldeia (qua-tro o fizeram antes da minha partida da aldeia) ou se tornaro donasde casa, dedicadas sobretudo produo de valores de uso. As moasmais jovens tornar-se-o mais instrudas, e assim no se dedicaro agricultura quando se tornarem mais velhas. As mulheres mais ve-lhas, a segunda categoria, logo sero tambm muito velhas para otrabalho e no sero substitudas.

    A terceira categoria de mulheres, predominante, a das mescom filhos pequenos. Cerca de metade dessas mulheres tm uma ouduas vacas. Elas fazem o trabalho de produo leiteira da famlia,onde elas ou um filho seus conduzem as vacas ao pasto todos os dias.Elas ordenham e produzem iogurte diariamente; por vezes produ-zem manteiga clarificada. Crianas com dez a quinze anos de idadefreqentemente as ajudam, cortando pastagem para a alimentaodas vacas, e as filhas coletam ervas do mato, na temporada, para o

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    uso dirio na cozinha. No outono, essas mulheres colhem frutas dospomares compartilhados, ou para um grande proprietrio de terras.

    Os dados observados indicam um decrscimo marcante noenvolvimento das mulheres na produo. Em parte, isto se deve aodecrscimo do rebanho (h somente dois rebanhos na aldeia e somen-te um transumante), e em parte tambm porque muitos homens notrabalham mais na aldeia. As mulheres poderiam ajudar os seus ma-ridos no campo, mas no ajudam quando as terras no so mais con-sideradas deles. A mulher mais velha que ainda trabalha na lavouraf-lo juntamente com o homem mais velho que ainda est na aldeia.

    As atividades remuneradas das mulheres tornaram-se insig-nificantes. Somente duas mulheres, uma perto dos quarenta e outramais velha, ganham dinheiro desenvolvendo a atividade de produ-o leiteira, principalmente com a venda de manteiga. Duas mulhe-res ainda costuram baldes de couro. A costura tornou-se uma ativi-dade especializada, que depende da posse de uma mquina de costu-ra; uma costureira ganha apenas cerca de um/sessenta avos da ren-da anual familiar de classe baixa. A costura de roupas suntuosas,especialmente para eventos sociais importantes, tornou-se a maiorpreocupao das mulheres na produo de valores de uso. A bibi, emparticular, gasta muitas horas e muito dinheiro costurando roupasregionais, e as mulheres de classe baixa fazem o melhor que podempara imitar a ltima moda. Saias requerem entre doze 6 e vinte jardasde tecido, e nas ocasies especiais no menos de quatro peas sousadas.

    ConclusesOs Mamasani, portanto, no so uma exceo quela afirma-

    o de Boserup segundo a qual "o desenvolvimento econmico e soci-al inevitavelmente leva desintegrao da diviso do trabalho entreos dois sexos tradicionalmente estabelecida na aldeia" (Boserup1970:5). A modernizao da agricultura e a migrao para as cidadessignifica que "um novo padro sexual de trabalho produtivo deveemergir, para melhor ou para pior. O perigo bvio, porm, que nocurso dessa transio as mulheres podero ser destitudas de suas fun-es produtivas e todo o processo de crescimento poder, desse modo,ser retardado" As mulheres Mamasani perderam bastante como pro-dutoras na sua economia domstica. Anteriormente, a sua produode mercadorias, especialmente laticnios e objetos tranados, traziaum ganho considervel. Agora, a sua produtividade na economia for-

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    mal mnima, e as suas tarefas dirias tornaram-se aquelas de produ-o de valores de uso e de consumo. O primeiro grupo de homens quepartiu para trabalhar retornou com dinheiro e produtos de consumo,tais como material para roupas, cortinas, cobertas e fitas gravadas,alm de cigarros baratos e usque, que so muito valorizados. Portan-to, as suas mulheres aprovavam a sua migrao; um homem que ti-vesse preferido ficar e trabalhar na terra partiria somente pela insis-tncia da sua mulher.

    Tal como a funo reprodutiva das mulheres, as crianas trans-formaram-se numa responsabilidade econmica. A criao das cri-anas tornou-se muito mais cara do que no passado, e uma vez que ascrianas agora vo escola, elas no podem ajudar na produo. Umlema nacional nos anos 70 declarava: "Quanto menos crianas, me-lhor a sua vida". Entretanto, as mulheres de classe baixa no tinhamas facilidades das famlias de classe alta para fazer um controle denatalidade efetivo, e elas no foram bem sucedidas nesse controle.Elas tinham mais filhos do que as mulheres de classe alta, o que enfra-quecia economicamente as suas famlias. Na perspectiva das mulhe-res, portanto, a sua singular capacidade de reproduo tornou-se umproblema, e elas mesmas olham para a sua capacidade como um in-cmodo. As mulheres diziam-me repetidamente: "Se voc tem mui-tas crianas, no consegue mant-las limpas, mand-las escola eainda ter esperana de que elas tenham uma boa vida no futuro".

    Finalmente, com a chegada da medicina moderna, as mulheresperderam o seu lugar como curandeiras. As mulheres j no usam amedicina tradicional, nem as crianas nascidas a partir de 1975 usamas misturas de ervas feitas para elas. Ao invs disto, as mulheres consi-deram o seu prprio conhecimento como obsoleto e no-civilizado. Ain-da assim, o mdico do centro de sade ligado cooperativa agrcolaconfidenciou-me: "Ns precisamos de quase tudo; ns no temos aspi-rina, gua esterilizada ou remdio para olhos inflamados". Ademais,eu observei o mdico e os seus assistentes a prescrever medicamentossem examinar os pacientes, e a tratar as mulheres de maneira bastantedegradante. A degradao estava, sobretudo nas observaes constan-tes do mdico de que as mulheres eram sujas e no mantinham as suascrianas limpas, apesar da "sujeira" no ser mais que poeira.

    Para resumir, o desenvolvimento entre os Mamasani do Ir temtido um efeito adverso para as mulheres de maneira semelhante ao quese tem verificado noutras regies do mundo em desenvolvimento. Comoafirmou Tinker (1976: 22):

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    O desenvolvimento a partir do aumento da diferena entre arenda de homens e mulheres no tem ajudado na melhoria davida das mulheres, mas, pelo contrrio, tem tido um efeito ad-verso para elas.

    Atravs de mudanas na diviso de trabalho entre osMamasani, a contribuio econmica das mulheres tem sido reduzi-da, e a sua dependncia do trabalho assalariado do homem aumen-tou. Novos estudos so necessrios nos campos poltico, social e ideo-lgico a fim de obter uma imagem mais completa dos modos pelosquais o desenvolvimento tem afetado o status das mulheres entre es-ses ou outros povos pastoris sedentarizados.

    Notas

    Sex-une crossing, no original (ndt).2 Os homens da famlia do chefe so chamados khan, as mulheres so chamadas

    3 Moharram o primeiro ms do calendrio lunar cujo comeo foi a migrao doprofeta Maom de Meca a Medina em 622 D.C. Durante os primeios dez dias do msde Moharram, os mulumanos xiitas comemoram o martrio do Imam Hossein, mortono dcimo dia deste ms. Desde o primeiro dia do ms so realizadas cerimnias acada entardecer e, a medida que o dcimo dia se aproxima, o lamento cresce a cadanoite. A encenao do episdio, no mundo xiita, se realiza atravs do canto e daperformance, tanto em reas rurais quanto urbanas. Esta a nica forma regional deperformance teatral que existia no Ir antes do teatro moderno. Seu ponto alto aomeio-dia do dcimo dia. So tambm ocasies de cerimnias a noite deste dia e aquad9gsima noite.

    5 Palavra francesa que designa postos policiais (ndt).Office of justice, no original (ndt)

    6 10,97 m (ndt).718,26 m (ndt).

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