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Mulheres pajés em Soure (Ilha de Marajó)

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Mistérios de Patu-Anu: um estudo sobre a pajelança e as mulheres pajés em Soure (Ilha de Marajó)

Mayra Cristina Silva Faro *

Introdução

Este trabalho de comunicação tem como objetivo apresentar um projeto de pesquisa que

vem sendo desenvolvido desde o mês de abril de 2008 através do Grupo de Pesquisa “Cultura

e Sociabilidade na Amazônia”, sob a orientação do Prof. Dr. Maurício Costa e Profª Drª

Daniela Cordovil acerca da Pajelança Cabocla no município de Soure, na Ilha de Marajó

(região onde há poucos estudos sobre a pajelança). Suas características, práticas, crenças, sua

íntima relação com a natureza, seus (e suas) pajés e encantados, e principalmente, suas

singularidades de práticas, crenças e discursos.

A pajelança cabocla, religiosidade bastante presente em diversas populações

amazônicas, é um tema que vem sendo pesquisado por acadêmicos a partir da década de 50,

com os estudos do antropólogo Eduardo Galvão (1955) e Charles Wagley (1955).

Atualmente é um campo de estudo de grande interesse de acadêmicos amazônidas (ou mesmo

de outras regiões brasileiras) e continua a fascinar pessoas, leigas ou instruídas, com seu

imaginário, seus mitos, ritos e costumes, que interagem com o cenário exuberante da flora e

fauna amazônica.

O título desta pesquisa refere-se a uma figura mítica um tanto misteriosa, e até certo

ponto desconhecida pelos estudos realizados até então, que faz parte do imaginário da

pajelança e é citada por uma pajé em sua autobiografia. Trata-se de Patu-Anu, o lugar

encantado onde são gerados os caruanas1 (Lima: 1991, p. 169); já em outra passagem deste

mesmo livro o termo designa uma entidade a qual todos os caruanas estão subordinados, e que

teria participado do processo de criação do mundo. Devido o termo ser até então inusitado,

dado o mistério que ronda este ser (pois a pajé não conta muitos detalhes sobre o mesmo) e a

curiosidade que me despertou, foi que resolvi titular minha pesquisa desta forma, sendo que

um dos aspectos importantes que procuro analisar é a questão da mulher no contexto religioso

e social da pajelança. É sobre esses e outros tópicos que pretendo abordar de forma clara e

sucinta neste trabalho.

* Graduanda em Licenciatura Plena em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará. 1 Mais adiante encontra-se uma breve explicação sobre quem são os caruanas ou encantados.

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Pajés e Caruanas

Heraldo Maués designou a pajelança cabocla como um conjunto de práticas e crenças

xamanísticas de um largo setor da população amazônica, que tem em suas expressões

culturais diversos elementos indígenas, africanos e portugueses mesclados em graus variáveis

(1990, p. 33-34), e que se apresenta hoje entre o ancestral e o novo, com reminiscências de

culturas antigas e ressignificações de aspectos da atualidade, como a ecologia e o

reconhecimento da mulher como pajé. Sobre este último aspecto é importante ressaltar que

Soure é cidade natal e atual residência de uma famosa mulher pajé, D. Zeneida Lima2, que já

publicou dois livros relacionados ao assunto (O mundo místico dos caruanas e a revolta de

sua ave [1991]; e O recado do papagaio), e mantém uma ONG chamada Instituição

Caruanas do Marajó Cultura e Ecologia, com o objetivo de cuidar da educação fundamental

de crianças do município.

A pajelança, como já foi mencionada acima, é um culto que gira basicamente em torno

da crença nos Encantados, Caruanas ou Companheiros-do-fundo, descritos por Galvão como:

“(...) espíritos ou seres que se supõe habitar o fundo dos rios. Descrevem-nos sob forma humana com a pele muito branca e os cabelos louros. São conhecidos por nomes cristãos. Agem como espíritos familiares dos pajés e são por estes ‘chamados’ durante as sessões de cura”. (Galvão: 1955, p. 94).

E segundo Maués, que realizou um estudo um pouco mais aprofundado sobre os

encantados, afirma que estes:

“São normalmente ‘invisíveis’ aos olhos dos simples mortais; mas podem manifestar-se de formas diversas. A partir dessas formas distintas de manifestação, eles são pensados em três contextos, recebendo (...). São chamados de bichos do fundo quando se manifestam nos rios e igarapés, sob a forma de cobras, peixes, botos e jacarés. Nessa condição, eles são pensados como perigosos, pois podem provocar mau olhado ou flechada de bicho nas pessoas comuns. Caso se manifestem sob forma humana, nos manguezais ou nas praias, são chamados de ‘oiaras’; neste caso, eles frequentemente aparecem como se fossem pessoas conhecidas, amigos ou parentes, e desejam levar as pessoas para o fundo. A terceira forma de manifestação é aquela em que eles, permanecendo invisíveis, incorporam-se nas pessoas, quer sejam aquelas que têm o dom ‘de nascença’ para serem xamãs, quer sejam as de quem ‘se agradam’, quer sejam os próprios xamãs (pajés) já formados: neste caso, são chamados de caruanas, guias ou cavalheiros.

2 Que passou a ser conhecida nacionalmente depois do Carnaval do Rio de Janeiro de 1998, em que uma das

escolas de samba tinha como enredo o tema da pajelança amazônica.

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Ao manifestar-se nos pajés, durante as sessões xamanísticas, os caruanas vêm para praticar o bem, sobretudo para curar doenças”. (Maués: 2005, p.7).

Desta forma, o pajé ou xamã é o eixo que interliga dois mundos: o dos homens e o dos

encantados, tendo como “missão” praticar a arte de curá. Na grande maioria dos estudos

realizados pelos pesquisadores do assunto (como Galvão, Maués, Napoleão Figueiredo,

Motta-Maués etc.) os pajés são em grande parte do gênero masculino, embora muitas

mulheres apresentem o “dom” (seja de nascença ou de agrado3), mas que devido à

subordinação e ao controle social exercido pelos homens sobre as mesmas em muitas

comunidades amazônicas, as mulheres são impedidas de exercerem tais práticas mágico-

religiosas (Motta-Maués: 1993), sob a ameaça de serem acusadas de feiticeiras do mal ou

matintas pereras4.

As Mulheres Pajés

Cavalcante (2008) conta que em Condeixa, as pajés são pouco reconhecidas pela

população.

“As mulheres neste contexto seriam xamãs de segunda ordem, outra idéia recorrente acerca dessa questão repousa no fato da mulher ser percebida como tal apenas a partir da menopausa (...). A tradição teórica reduz a mulher a um mero papel reprodutivo, as mulheres seriam valorizadas ao tornarem-se mães e os homens xamãs”. (Cavalcante: 2008, p. 85).

A menstruação seria o fator que impediria a mulher de exercer essa função, pois

argumentam que a mulher não consegue controlar os seus ciclos biológicos, e por essa razão

não controlaria os seres que nela se incorporariam, nem seu poder. No período em que a

mulher se encontra menstruada, diz-se que ela está “fraca” e não pode incorporar (Cavalcante,

2008). Deve aguardar que a menstruação pare, para voltar às atividades normais da pajelança.

Ou então, ela deve aguardar até a menopausa (quando se hominiza, se assemelha ao estado

natural masculino, sem ciclos menstruais) para exercer seu dom. Segundo Monika Von Koss

(2004, p. 46), o tabu primordial teria sido o tabu menstrual. A mulher, desde os tempos mais

antigos, exerceu grande fascínio, admiração e medo sobre o sexo oposto, seja pelas belas

3 Pajé de nascença é aquele indivíduo que já nasce com o dom da pajelança, geralmente herdado de família, e o

pajé de agrado é aquele que adquire o dom durante a vida, que acontece quando os encantados simpatizam ou se agradam com o indivíduo, conforme explica Maués (1990) e Galvão (1955).

4 Mulher que tem a maldição de se transformar em um pássaro negro durante a noite e espalhar terror, medo, doenças e feitiçarias, segundo as crenças populares. Para mais informações, ler a tese de mestrado As Mulheres do Pássaro da Noite, de Gisela Villacorta (2000).

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formas e curvas de seu corpo, seja pela sua capacidade de gerar e nutrir outra vida, seja por

sangrar misteriosamente a cada mês.

Geralmente, quando a mulher que tem o dom é impedida de exercê-lo, ela acaba

assumindo outros papéis semelhantes ao de pajé, mas ainda assim inferior aos mesmos.

Como, por exemplo, as curandeiras e as parteiras, sendo esta última uma função estritamente

feminina. Braga et al. (2002, 2003) fazem interessantes observações sobre as parteiras no

município de Melgaço e Chaves, no Marajó.

“As parteiras possuem uma importância especial nas localidades rurais onde inexistem médicos, hospitais ou postos médicos. (...) Estudos antropológicos realizados em comunidades da região amazônica indicam a existência de dois tipos de parteiras: as que são ‘parteiras de dom’ e aquelas que, mesmo não possuindo o dom, recebem treinamento pelos serviços oficiais de saúde das sedes municipais do interior.” (Braga et al., 2002: 35).

No entanto, Soure apresenta duas personalidades do sexo feminino que exercem a

pajelança, e observa-se que possuem grande reputação nesse contexto, maior até que os pajés

do gênero masculino. Uma delas é a D. Zeneida, como já foi citada anteriormente, e a outra é

D. Rosalita5 (mencionada em conversa informal que tive há uns meses atrás com o Prof.

Antônio Paraense, que já realizou pesquisas no município sobre o assunto).

Além desta singularidade, observamos também que especificamente uma das pajés, D.

Zeneida, apresenta um discurso diferenciado quanto a relação da pajelança e a natureza, em

que esta última deve ser sempre respeitada e preservada.

“(a pajelança) representa um encontro entre o homem e as energias da natureza, os caruanas, companheiros do fundo, ou simplesmente, encantados. (...) Ainda lhe digo mais, a natureza é a grande mãe, a origem e o fim de todas as coisas. Não devemos violentá-la, porque estaremos violando a nós mesmos. Os que violam a natureza são punidos por Anhangá. (...) O respeito à natureza, a integridade e equilíbrio de seus elementos é a lei maior. Dentro desse princípio de que se tratarmos bem a natureza, ela nos dá tudo. A natureza possui energias insondáveis para os mortais. Essas energias se manifestam no pajé que se torna seu instrumento.” (Lima, 1991: p. 32).

Observamos a partir dos estudos sobre o tema que a pajelança cabocla (e principalmente

a indígena) possuem uma relação de respeito (e algumas vezes temor) pela natureza.

Entretanto, esta relação ou respeito não ocorre de forma tão expressiva ou intensa como se 5 Nome fictício para preservar a identidade da pessoa.

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observa no comentário de D. Zeneida. Maués denominou essa característica de “pajelança

ecológica”, em que um discurso de caráter ecológico, preocupado com a preservação da

natureza etc., começa a permear a pajelança cabocla. E é importante lembrar que essas

características não são observadas de forma generalizada em todas as práticas de pajelança

cabocla na Amazônia, mas, até o momento, somente na pajelança de Soure, Salvaterra e em

Colares, como constata a pesquisa de Gisela Villacorta, mencionada no artigo Pajelança e

Encantaria Amazônica6.

O fato é que recentemente temos observado que a pajelança vem recebendo influências

de outras vertentes religiosas ou esotéricas, dentre elas o Espiritismo e a Nova Era, além,

obviamente, da Umbanda e Catolicismo popular (Maués & Villacorta: 2004, p 55).

Pajelança cabocla: uma religiosidade genuinamente amazônica

A pajelança cabocla, assim como diversos outros aspectos da cultura amazônica, são

resultados de antigas e contínuas interações e conflitos entre culturas e povos diferentes,

principalmente a cultura européia portuguesa, africanas e indígenas. Como diz Diégues Jr, em

Etnias e Culturas no Brasil (1980):

“É a partir destes mesmos grupos que se vai formar o que hoje podemos chamar de cultura brasileira: o resultado da criatividade dessas populações que, aqui se encontrando, originaram alicerces desse panorama cultural que desfrutamos”. (Diégues Jr: 1980, p. 8).

A cultura amazônica, em suas múltiplas faces e aspectos é resultante da “integração dos

elementos culturais de que eram portadores os que participaram do processo de colonização

da região” (Figueiredo, 1972: 35). A cultura brasileira reúne elementos de diversas culturas e

povos, em que, desde o início do processo de colonização e exploração do território, a relação

entre as etnias proporcionou a formação do nosso corpo cultural, tão diversificado e rico.

Além de outros povos e culturas que também participaram de certa forma na colonização do

Brasil, os indígenas, portugueses e africanos representaram presença marcante, e nos legaram

aspectos de sua cultura e religião até hoje. Um importante exemplo é a religiosidade popular

amazônica, e especialmente a pajelança cabocla.

6 In: PRANDI, Reginaldo (org.). Encantaria Brasileira, 2004.

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