Multiculturalismo e educação: do protesto de rua a propostas e políticas

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No presente artigo retomam-se alguns elementos analisados emestudo anterior de nossa autoria, intitulado “O jogo das diferenças:o multiculturalismo e seus contextos”. Considerando as profundasmodificações no contexto do debate brasileiro sobre o tema,abordam-se aqui novas questões que, no nosso entender, têm ficadona superfície das discussões no campo da educação, namedida em que elas tendem a focalizar o multiculturalismo comose fosse unicamente um movimento escolar ou educacional.

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    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y PortugalSistema de Informacin Cientfica

    Luiz Alberto Gonalves Oliveira, Petronilha Beatriz Silva Gonalves eMulticulturalismo e educao: do protesto de rua a propostas e polticas

    Educao e Pesquisa, vol. 29, nm. 1, ene.-jun., 2003, pp. 109-123,Universidade de So Paulo

    Brasil

    Como citar este artigo Fascculo completo Mais informaes do artigo Site da revista

    Educao e Pesquisa,ISSN (Verso impressa): [email protected] de So PauloBrasil

    www.redalyc.orgProjeto acadmico no lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

  • 109Educao e Pesquisa, So Paulo, v.29, n.1, p. 109-123, jan./jun. 2003

    Multiculturalismo e educao: do protesto de rua apropostas e polticas

    Luiz Alberto Oliveira GonalvesUniversidade Federal de Minas Gerais

    Petronilha Beatriz Gonalves e SilvaUniversidade Federal de So Carlos

    Resumo

    No presente artigo retomam-se alguns elementos analisados emestudo anterior de nossa autoria, intitulado O jogo das diferenas:o multiculturalismo e seus contextos. Considerando as profundasmodificaes no contexto do debate brasileiro sobre o tema,abordam-se aqui novas questes que, no nosso entender, tm fi-cado na superfcie das discusses no campo da educao, namedida em que elas tendem a focalizar o multiculturalismo comose fosse unicamente um movimento escolar ou educacional.Pretende-se salientar que, antes de serem introduzidas no campoeducacional, expresses do multiculturalismo se fazem presentesnas artes, nos movimentos sociais, em polticas. Aponta-se como omulticulturalismo implica o reconhecimento da diferena, o direito diferena, colocando em questo o tipo de tratamento que asidentidades tiveram e vm tendo nas democracias tradicionais.Finalmente, o artigo pretende tambm chamar a ateno para opeso do contexto de cada sociedade multicultural na definio depropostas e polticas, em educao. No plano internacional, nemsempre a reao contra o etnocentrismo seguiu na direo damulticulturalidade; encontramos tanto propostas nesse sentidocomo alternativas etnicamente centradas.Conclui-se que uma educao multicultural exigir um grande tra-balho de desconstruo de categorias, caso contrrio, o tema dapluralidade cultural, preconizado pelos Parmetros CurricularesNacionais, tender a ser tratado nas salas de aula, com significa-es que acentuam e atualizam discursos e atitudes precon-ceituosas e discriminatrias.

    Palavras-chave

    Multiculturalismo Educao Poltica de reconhecimento Aoafirmativa.Correspondncia:

    Luiz Alberto Oliveira GonalvesUFMG Faculdade de EducaoAv. Antnio Carlos, 662731270-901 - Belo Horizonte MGe-mail: [email protected]

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    Multiculturalism and education: from street protest toproposals and policies

    Luiz Alberto Oliveira GonalvesUniversidade Federal de Minas Gerais

    Petronilha Beatriz Gonalves e SilvaUniversidade Federal de So Carlos

    Abstract

    The present article follows on some of the elements investigatedin a previous text by the authors entitled Spotting thedifferences: multiculturalism and its contexts. Considering theprofound changes undergone by the context of debate of thistheme in Brazil, new issues are raised here which, in the authorsview, have been only touched upon in the discussions in thefield of education, since those discussions tend to focus onmulticulturalism as if it were a movement exclusively related tothe school or to education.It is the authors intention to highlight the fact that, before beingintroduced into the educational field, expressions ofmulticulturalism were felt in the arts, in social movements, and inpolitics. The authors point out how multiculturalism implies therecognition of differences, the right to difference, questioningthe kind of treatment that identities have been given intraditional democracies. Finally, the article also intends to drawattention to the significance of the context of each multiculturalsociety in the definition of education proposals and policies. Atthe international level, reactions against ethnocentrism have notalways taken the direction of multiculturality; one can findmulticultural proposals as well as ethnically centered ones.The authors conclude that a multicultural education will requirea large effort to deconstruct categories. Failure to do that canresult in the issue of cultural plurality, advocated by the NationalCurriculum Parameters, being treated in the classrooms on thebasis of meanings that kindle and renew prejudiced anddiscriminatory discourses and attitudes.

    Keywords

    Multiculturalism Education Politics of recognition Affirmative action.

    Contact:Luiz Alberto Oliveira GonalvesUFMG Faculdade de EducaoAv. Antnio Carlos, 662731270-901 - Belo Horizonte MGe-mail: [email protected]

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    Este artigo retoma algumas questesabordadas no ensaio de nossa autoria, O jogodas diferenas: o multiculturalismo e seus con-textos,1 que consideramos ainda importantes eatuais para compreender o multiculturalismo e,ao mesmo tempo, introduz novos elementos,uma vez que o contexto no qual havamos es-crito o referido ensaio sofreu profundas modifi-caes. Buscamos aqui abordar questes quetm permanecido na superfcie dos estudos quearticulam multiculturalismo e educao.

    Na ocasio em que escrevemos aqueletrabalho, 1988, o estmulo para refletir sobre otema estava muito ligado forma como o deba-te sobre o multiculturalismo estava sendo reali-zado no campo educacional brasileiro. Apenaspara lembrar, o que estava em foco na pocaeram os Parmetros Curriculares Nacionais. Eracom eles que dialogvamos, que discutamos.Nosso interesse estava voltado para as diretrizesdo tema intitulado Pluralidade Cultural.

    Sem negligenciar a importncia do deba-te, percebamos que se algumas questes de fun-do sobre a diversidade cultural e suas conexescom processos democrticos no fossem tratadascom o cuidado necessrio, corria-se o risco de sever a discusso de um tema to importante trans-formado em mero arranjo de contedos e mto-dos pedaggicos, fechados no crculo dos espe-cialistas em currculo. As conseqncias de toperversa inverso eram visveis a curto prazo:graves problemas vividos pelas sociedades multi-culturais transformavam-se em temas transversaisou eram tratados como se fossem um capricho-so estilo de vida. Ao invs de se compreendercomo e por que os movimentos multiculturaispunham (e continuam pondo) em questo as so-ciedades, as noes de direitos individuais e co-letivos, o Estado, e todas as instituies, inclu-sive e sobretudo a escola, o debate, poca,levava-nos para o interior das prticas escolares.Ali havia um sentido muito positivo, otimista e atconservador, pois, no mbito dos ParmetrosCurriculares Nacionais, esperava-se apenas que asprticas escolares reconhecessem no interior daescola as diferenas culturais, que respeitassem a

    diversidade, uma vez que a sociedade brasileira pluricultural.

    Devido a esse risco, apresentvamos onosso ensaio sobre o multiculturalismo, nosseguintes termos:

    O multiculturalismo o jogo das diferen-as, cujas regras so definidas nas lutassociais por atores que, por uma razo ououtra, experimentam o gosto amargo dadiscriminao e do preconceito no interiordas sociedades em que vivem (...). Isto sig-nifica dizer que muito difcil, se no im-possvel, compreender as regras desse jogosem explicitar os contextos socio-histricosnos quais os sujeitos agem, no sentido deinterferir na poltica de significados em tor-no da qual do inteligibilidade a suas pr-prias experincias, construindo-se enquantoatores. (Gonalves; Silva, 2001)

    Buscvamos destacar dois aspectos his-toricamente importantes: primeiro, o papel po-ltico do multiculturalismo e, segundo, a impor-tncia de seu contexto. Quanto ao primeiro as-pecto, tnhamos clareza de que, diacroni-camente, o multiculturalismo no surgiu comoum movimento no campo da educao. Foi e expresso artstica de reivindicaes, foi con-templado por polticas com diferentes enfoquese abrangncias. Dessa forma, necessariamenteinvadiu o campo educacional. Invadiu porqueminorias, no em nmeros, mas em poder einfluncia, h muito reivindicavam o cumpri-mento dos princpios de igualdade e eqidade,relativos s constituies de todos os pasesdemocrticos.

    J em relao ao segundo aspecto,entendamos que o contexto era de importn-cia capital para compreendermos os sentidos eos significados do multiculturalismo que, nostermos de Silvrio (2000, p. 86), pode ser visto

    1. GONALVES, Luiz Alberto Oliveira; SILVA, Petronilha B. G. e. O Jogodas Diferenas; o multiculturalismo e seus contextos. 3. ed. Belo Horizon-te: Autntica, 2001. (1 ed. 1998; 2 2000).

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    como um terreno de luta em torno da refor-mulao da memria histrica, da identidadenacional, da representao individual e social,bem como da poltica da diferena.

    Um terceiro aspecto que abordamos poca referia-se forma com que as teoriaseducacionais apresentavam o multiculturalismo.Enredavam-no nas teias da ps-modernidade.Por isso, pareceu-nos urgente recuperar as his-trias do multiculturalismo, para mostrar queelas remontavam ao sculo XIX, j retratandonaquele momento a luta dos povos oprimidos.

    Relendo cinco anos depois o nossoensaio sobre o multiculturalismo, fica-nos ain-da mais claro o lugar do qual falvamos naque-le momento. O nosso olhar sobre esse temaestava profundamente marcado por nossa longaexperincia de militncia. Ambos militamos emmovimentos negros, de mulheres e de minorias.Para ns, o multiculturalismo nunca foi tema,nem central nem transversal, muito menos umestilo de vida ou um modo de ser tal comousar brinco, tranar um rastafari, jogar tnis oupassar frias em Honolulu. Ao contrrio, umolhar que parte de nossa existncia de afro-brasileiros, e nos demanda estar o tempo todonos construindo, nessa ambigidade identitriaque certamente nos acompanhar at o nossoltimo momento.

    Embora tenhamos construdo a maiorparte de nossa trajetria de pesquisa no cam-po da educao, ao olhar o multiculturalismofizemos o caminho contrrio: fomos dos pro-testos de rua para as salas de aula examinarsuas prticas pedaggicas. Mas basta percorrera literatura em voga sobre multiculturalismo eeducao nos ltimos cinco anos, para obser-var que os modelos seguidos pela maior partedos trabalhos so de outra natureza. Em geral,so estudos produzidos por pesquisadores, nonecessariamente militantes, mas que fazem usobrilhante das teorias crticas.

    Reconhecemos, sem muita dificuldade,que, nesse perodo, textos excelentes sobremulticulturalismo e educao foram publicadosem revistas de grande circulao nos meios

    acadmicos e em coletneas (Canen, A., 1999,2000, 2001 a, 2001b; Pinto, 1999; Moreira eCanen, 2001; Silva, 2000; Willinsky, 2002;Silvrio, 2000; Pinto, 2000). Alm de, aindanesse mesmo perodo, termos sido brindadoscom obras que tratam do assunto com extremacompetncia (Semprini, 1999; Valente, 1999;McLarn, 2000). Hoje, j temos bons programasde ps-graduao em Educao que tm aco-lhido novos pesquisadores do multiculturalismo,da educao multicultural, currculo e formaode professores na tica da diversidade cultural.O nosso temor, em 1998, de que um projeto deeducao multicultural no Brasil ficaria com-prometido se dependesse da produo aca-dmica nacional, na poca insuficiente, foi sedissipando em conseqncia do aumento donmero de pesquisadores que tm se voltadopara o tema.

    Passemos, pois, s trs questes cujadiscusso queremos introduzir neste artigo.

    Primeira questo: tipos desociedades nas quais omulticulturalismo floresceu

    O retorno a essa questo se faz neces-srio uma vez que, hoje, tradues dos movi-mentos multiculturais em todo mundo tm for-tes repercusses na educao formal, na mdiae, sobretudo, nos meios artsticos, ou seja, emformaes sociais que tm um grande poder desublimar lutas, por vezes ferozes, que vitimammuitas pessoas nas teias do racismo, da discri-minao e da intolerncia.

    Como dissemos, o multiculturalismonasce no embate de grupos, no interior desociedades cujos processos histricos forammarcados pela presena e confronto de povosculturalmente diferentes. Esses povos, subme-tidos a um tipo de poder centralizado, tiveramde viver a contingncia de juntos construremuma nao moderna. (Bhabha, 1998, cap. III)No , portanto, por acaso que o debate acer-ca do carter multicultural dos agrupamentoshumanos tenha surgido, de forma bastante sig-

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    nificativa, como um problema, em sociedadesgeradas pelo colonialismo europeu.

    Nessa linha de raciocnio, podemos muitobem estudar comparativamente como os movi-mentos multiculturais se conformaram em pasescomo o Brasil, Canad, Estados Unidos, Cuba,Argentina, ndia, Paquisto, Nigria e muitosoutros.

    Esse aspecto importante, pois umadas crticas aos estudos multiculturais no Bra-sil recai sobre a velha e desinformada retricade que problemas culturais ou tnicos, envol-vendo intolerncia, no existem em nosso ter-ritrio. Cr-se que eles sejam importados, coi-sas de americano. Na realidade, os referidosproblemas esto bem vivos entre ns, e nossasociedade prdiga em produzi-los e reprodu-zi-los. Mais ainda, eles fazem parte de umpassado colonial que nos une a uma infinida-de de outras naes.

    Apesar das imensas diferenas que po-dem existir entre, por exemplo, Brasil, Canad,ndia, Estados Unidos e frica do Sul, h de sereconhecer que todos eles estiveram ligados aum poderoso centro de dominao: a Europaocidental. Isso talvez explique por que os mo-vimentos multiculturais nesses e em outrospases igualmente colonizados representam umareao ao monoculturalismo ou etnocentrismoque, com mais ou menos firmeza, domina hpelo menos trs sculos consecutivos. Comoideologia e prtica institucional, o monocul-turalismo no s pretende universalizar os pres-supostos e os termos de uma nica cultura,como nega ser cultura qualquer expresso quese recuse a moldar-se nos padres dessa cultu-ra dita maior (Goldberg, 1998).

    Em ltima instncia, o movimento mul-ticultural expressa reaes contra a vocaoassumida pela Europa ocidental, firmada a par-tir das conquistas do sculo XVI, para dominara natureza e as sociedades atrasadas, bem comode ocidentalizar o planeta (Liauzu, 1992, p.12).Atribuiu-se, assim, ao homem branco o direito eo dever de colonizar territrios das raas queclassificava como inferiores, estabelecendo-se

    uma hierarquia de relaes entre homens e so-ciedades (Liauzu., p. 13 e 17).

    Com essa mentalidade, cria-se, no scu-lo XVIII, o termo civilizao para designar evo-luo que se impe, mudana, progresso devi-do acumulao de bens.2 A civilizao seria,pois, um estgio superior atingido pelos povosmais esclarecidos e livres que se encontrariam,segundo se dizia no final do sculo XVIII,muito distanciados da barbrie dos africanos eda ignorncia dos selvagens. (Concorce, apudLiauzu, op. cit., p. 27-29)

    O fato que a inferiorizao desses po-vos pelos europeus resultou da articulao de umimaginrio social sobre os no-europeus, que tevepor base, de um lado, a teorizao cientfica arespeito da hierarquia das raas e, de outro, amisso civilizatria auto-atribuda e exercida pe-los europeus, que se concretizou na edificao doimprio colonial (Blanchard et al., 2001).

    O uso da cincia para justificar pressu-postos racistas, desigualdades jurdica, poltica eeconmica entre os colonizadores e os coloni-zados, foi amplamente praticado no sculo XIX,na Europa. Apropriaes da teoria da evoluodas espcies de Darwin feitas por pensadores in-gleses, como Francis Galton, deram origem auma srie de prticas eugenistas e racistas. Osmtodos naturalistas de classificao das esp-cies, inclusive a humana, combinados com umacerta perspectiva relativista, de que existem di-ferenas essenciais entre os povos, produzirameventos surpreendentes na Europa.

    Blanchard et al., estudando os referi-dos eventos, assinalaram que, no decorrer dosanos 1870, em diversos pases europeus, orga-nizaram-se, por incrvel que parea, no mbitode jardins zoolgicos, verdadeiros zos huma-nos. Estes, segundo os autores, eram chama-dos de exposies etnolgicas ou aldeias denegros. Eram verdadeiros espetculos zoolgi-cos com populaes descritas como exticas,

    2. Examinando como o conceito de civilizao foi sendo cunhado, Liauzuencontra um texto sobre sistema social, o Holbach, escrito em 1773, noqual ele expressa qual foi o agente histrico que permitiu ao mundo a ci-vilizao.

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    muitas vezes expostas em jaulas. Buscava-semostrar o raro, o curioso, o estranho, emoposio a uma racionalidade elaborada deacordo com padres europeus (...) legitimava-se a brutalidade dos colonizadores, animalizandoos conquistados.

    O artigo de Blanchard et al. um ver-dadeiro achado para quem estuda as polticasmulticulturais contemporneas. Ele nos alertapara os riscos de algumas propostas multi-culturalistas que se contentaram em reconhecera diferena entre os povos, pura e simplesmen-te; como se isso fosse suficiente para garantirmudanas de comportamento, atitudes de to-lerncia e boa convivncia. O estudo das expo-sies etnolgicas mostra que estas tinham,entre outros, o objetivo de reconhecer as dife-renas entre os povos, a fim de melhor justifi-car a inferioridade de uns em relao a outros.Tais exposies ilustram as estratgias e efeitosde postura e discurso dos colonizadores. Dis-curso este que, no entendimento de Bhabha(1998, p.167), um aparato que se apia noreconhecimento e repdio de diferenas raciais/culturais/histricas (...) apresentados com basena origem racial de modo a justificar a con-quista e estabelecer sistemas de administraoe instruo.

    preciso, alertam tanto o estudo deBlanchard et al. (2001) quanto o de Bhabha(1998), muita vigilncia epistemolgica paracomparar povos, culturas, pessoas, sem julgar. Omtodo usado nos zos humanos do sculoXIX europeu no era, de forma alguma, neutro,visto que o julgamento do diferente, do raro, doextico era feito a partir dos critrios de valoresdos donos da casa.

    Willinsky analisa, em outro contexto, osriscos que corre o multiculturalismo nas socie-dades contemporneas, quando se adotamposturas, procedimentos e discursos como osque vimos de criticar. No basta oferecer aosalunos, salienta ele, a possibilidade de um es-tudo comparativo das diferentes culturas paraque eles apreendam seu valor relativo (Willinsky,2002, p. 37). Nessa perspectiva, bastante ar-

    guta sua critica posio do filsofo CharlesTaylor, que defende uma postura relativista notrato com as diferentes culturas, porque acre-dita ser possvel, por meio dela, reduzir o etno-centrismo.3 No o que Willinsky pensa. Emsua argumentao, ele aponta dois problemas quevalem a pena serem comentados.

    O primeiro refere-se forma como se temorganizado a apresentao das diferentes cultu-ras para que possam ser comparadas. SegundoWillinsky (2002, p. 37), dependendo de como isto feito, a comparao leva fatalmente super-valorizao do Ocidente. Nesse particular, ele cita,como forma suprema de organizao das diferen-tes culturas, os museus, especificamente, o Mu-seu Britnico, cuja organizao das diferentesculturas que acolhe segue o padro definido pelacultura da qual o museu faz parte. No diferen-te o que acontece com o Louvre, uma das insti-tuies venerveis do mundo ocidental, entreoutras tantas instituies de mesma natureza.

    O segundo problema apontado porWillinsky, quanto postura relativista de Taylor, nosso conhecido de longa data. O autor a cha-ma de esforos protomulticulturais cujo objetivo ensinar aos jovens como os diferentes povosque constituem sua nao contriburam paraconstru-la. Ele cita ironicamente iniciativas quebuscavam fazer estudantes canadenses aprende-rem como os nativos americanos introduziram omilho, a batata, o tomate e o tabaco no Ociden-te, como se isso pudesse reduzir algum etnocen-trismo. No Brasil, essas iniciativas que, na verda-de, minimizam a contribuio dos povos na cons-truo da nao, focalizaram ndios e africanos.

    Na lgica de nossa exposio, parece-nos importante, nesse momento, assinalar comoo multiculturalismo vai sendo engendrado nassociedades colonizadas. Enquanto no centroeuropeu, o raro, o curioso e o estranho so expos-tos em espetculos pblicos, nas colnias, a re-volta contra essa viso eurocntrica cresce emtodos os sentidos. Inicia-se no perodo colonial e

    3. WILLINSKY op. cit. Taylor, autor do qual falaremos mais frente, es-creve sobre a poltica do reconhecimento, erigindo-a como a estratgiado multiculturalismo.

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    estende-se ao ps. O indo-britnico Homi K.Bhabha (1998) capta, de forma extraordinria, osentido dessa rebelio. Diz ele:

    (...) os limites epistemolgicos das idiasetnocntricas so tambm as fronteirasenunciativas de uma gama de outras vozese histrias dissonantes, at dissidentes mulheres, colonizados, grupos minoritrios,portadores de sexualidade policiada (...)(p. 167)

    Ele busca a evidncia das dissonnciase dissidncias, lendo atentamente um conjun-to de obras culturais, produzidas em contextosbastante diferentes uns dos outros: no teatrocontemporneo do Sri Lanka, na literatura e nocinema australiano, nos romances sul-africanos,nos poemas de Salman Rushdie e em muitasoutras obras.

    Embora engendrada desde h muito, arebelio multicultural tem, a partir da segundametade do sculo XX, uma visibilidade extraor-dinria. Nos Estados Unidos, por exemplo, aexpanso do multiculturalismo se d na conflu-ncia das lutas pelos direitos civis encabeadaspor afro-estadunidenses nos anos de 1960. Oclima poltico da poca favorecia a emergnciade aes afirmativas. Foi nesse contexto que afora propositiva de grupos segregados, e deprofessores e de estudantes que questionavam aestrutura social injusta e o monoplio do saberpor alguns, levou formulao de polticasmulticulturais.

    De l pra c houve uma profuso deprogramas nas universidades estadunidenses re-lativos s questes multiculturais: estudos sobreas mulheres, sexualidade, preferncias sexuais,estudos sobre os ndios e outros. Os primeirosEstudos Negros (Black Studies) so criados em1968, em San Francisco State University. No anoseguinte, outras tantas universidades, a comearpor Harvard, Yale, Columbia, cedendo s pressesdo movimento estudantil, concordam em incluirem seus quadros curriculares essa nova rea deestudos (Gonalves; Silva, 2001, p.47).

    Embora as universidades tenham tidoum papel importante na consolidao de pol-ticas multiculturais, foi no mundo artstico queelas ganharam visibilidade: literatura, artes pls-ticas e cinema, juntos, formam, hoje, talvez omaior arsenal multicultural nos Estados Unidos.

    Tais obras culturais possibilitaram a di-fuso das teses do multiculturalismo e, conse-qentemente, o combate aos preconceitos e discriminao culturais. Por exemplo, o filmeFiladlfia denuncia a intolerncia, a discrimina-o e o racismo. Outros filmes buscaram refletirsobre os excessos produzidos pelas posturasmulticulturais, quando levadas ao extremo. Umbom exemplo dessa reflexo o filme Faa acoisa certa, de Spike Lee.

    Em suma, a arte foi, e ser o veculomais privilegiado do multiculturalismo. Issotalvez ocorra porque ela situa a cultura, comonos diz Bhabha (1998), na esfera do alm. Pormeio da arte, podemos captar identidadesminoritrias, constitudas de forma fragmenta-das nas frestas do cotidiano. Talvez, por issoela sirva, como uma luva, aos movimentos cul-turais cujas causas vm da colocao de ques-tes de solidariedade e comunidade em umaperspectiva intersticial (p. 21).

    J, no Brasil, os confrontos no interiorda cultura tiveram os movimentos negros urba-nos como importantes protagonistas. Suas lu-tas datam do incio do sculo XX. Naquelemomento, as reivindicaes seguiam preferen-cialmente na direo da integrao da popula-o negra sociedade de classes (Fernandes,1964; Gonalves, 1997). A rebelio culturalemerge na metade do sculo XX: o teatro po-pular dirigido por Solano Trindade, no Recife,e o Teatro Experimental do Negro, no Rio deJaneiro, so exemplos marcantes de um ques-tionamento em relao hegemonia da cultu-ra euro-ocidental no pas.

    No final dos anos de 1970 e incio dosanos de 1980, com a emergncia de movimen-tos sociais protestando contra o regime militar,novas reivindicaes vo aparecer e todas for-muladas em uma perspectiva poltico-cultural.

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    Dito de outra forma, alm de exigirem acesso adireitos iguais, aqueles movimentos negros,feministas, de ndios, homossexuais e outros apontavam para a necessidade de se produzirimagens e significados novos e prprios, com-batendo os preconceitos e esteretipos quejustificavam a inferiorizao desses grupos(Gonalves, op.cit.).

    Com a promulgao da Constituio de1988, o racismo passa a ser considerado umcrime inafianvel. H um clima propcio paraa produo de uma legislao favorvel a pro-gramas de ao afirmativa e mesmo de proje-tos multiculturais, sobretudo no campo daeducao, nos sistemas estadual e municipal(Silva Jr., 1998).

    No Brasil, grande parte das prticasmulticulturais, na educao escolar e nas artesem geral, tem sido obra de organizaes no-governamentais.4 Nas universidades registram-se programas de pesquisa sensveis temticabem como iniciativas de ao afirmativa voltadasa grupos sub-representados no ensino superior,por exemplo, aos ndios.

    Na esfera pblica, as iniciativas soainda muito incipientes. O maior nmero deprojetos tem sido induzido pelo governo fede-ral: ministrios da Cultura, da Educao, daJustia, do Trabalho e da Sade. Nas unidadesfederadas, propostas multiculturais diferen-ciam-se em intensidade e no investimentoaplicado. H estados que j contam com asses-sorias relativas s demandas culturais femi-nista, afro-brasileira, indgena, e outras. Porexemplo, nos ltimos 15 anos, um estadocomo o de Santa Catarina, formado por col-nias de imigrantes europeus, passou a darvisibilidade tambm, por meio de programaseducacionais, s suas comunidades de descen-dentes aorianos.

    J na esfera municipal, torna-se dif-cil opinar sobre o que tem sido feito, devido disperso das iniciativas e ausncia de es-tudos sistemticos a respeito. Municpios quetm dado visibilidade s suas aes multicul-turais so, como nos estados, aqueles onde

    h grupos organizados que reivindicam o seudireito diferena. Mas, sem dvida, h neces-sidade de pesquisas para avaliar o que tem sidofeito e como.

    Silva Jr. (1998) j nos mostrou que existeuma legislao referente ao combate do racismorelativo aos negros e valorizao da cultura negra,principalmente nas capitais e em alguns municpiosbrasileiros. Resta saber se essa legislao tem sidoindutora de polticas ou iniciativas multiculturais.Estudos dessa natureza, por sua vez, podem nos levara conhecer outras legislaes de interesse multicul-tural. Bom exemplo disso foi a lei promulgada pelomunicpio de Belo Horizonte proibindo e punindo adiscriminao de indivduos ou casais homossexuaisem lugares pblicos: bares, boates, cinemas, teatros.Em suma, eles no precisam necessariamente ficarconfinados em guetos. Entretanto, no temos dadosque nos permitam dizer se essa lei produziu inicia-tivas multiculturais, mas sabemos, sim, que geroucomits de vigilncia de cumprimento da mesma. Umaspecto importante a ser ressaltado na experinciabrasileira que a prpria legislao tem sido uminstrumento indutor de polticas multiculturais. Issotem ocorrido tambm em outros pases.

    Um caso exemplar dessa forte relao entrelegislao e poltica pblica o Canad, que compar-tilha conosco um passado colonial e, ainda, de du-pla colonizao. Segundo Willinsky (2002), os cana-denses contam, desde 1987, com o Canadian Multi-culturalism Act. Essa lei tem levado o governo daque-le pas a promover grupos culturais, eventos tnicose programas escolares. Em 1996, foram gastos 18,5milhes de dlares com essas atividades.

    O que nos parece surpreendente, no casocanadense, a forma como os documentos oficiaisexpressam, sem subterfgios, a imagem de povo quepretendem construir. Nos atos de um de seus minis-trios, consta a seguinte afirmao: O Multicul-turalismo uma caracterstica fundamental da heran-a e identidade canadense e (...) serve de fonte va-liosa para mudar o futuro do Canad. Passado efuturo se juntam na perspectiva multicultural. E, a

    4. Uma dessas experincias analisada de forma magistral por Canen,2002. Cf. Candau, 2000.

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    partir disso, governo e comunidades canadenses pas-sam a desenvolver os programas. Willinsky (2002)elencou os seguintes:

    Programas de idiomas herdados (paraimigrantes), alm do ingls e francs. Oferta aoensino mdio e estudo das lnguas punjabi,mandarim, e japons.

    Absoro nas aulas de literatura deuma nova gerao de antologias literrias queamplia as indicaes anglo-norte-americanas daliteratura de lngua inglesa para um novo aspec-to de vozes e experincias.

    Oferta de aulas sobre inventores, ci-entistas e matemticos no europeus.

    Alm desses Programas, Will insky(2002) registra a iniciativa dos secretriosda educao das provncias canadenses decolocar em prtica programas anti-racistas,fazendo com que professores e alunos pos-sam intervir em casos de constrangimentoracial e cultural e, ainda, possam identificarcomo o racismo sistmico moldou, durantemuito tempo, as polticas e prticas de imi-grao, moradia, emprego e educao.

    Encerramos essa primeira parte conven-cidos de que, com os exemplos examinados aci-ma, pudemos dar um pequeno retrato do tipo desociedade no qual o multiculturalismo floresce.Como vimos, so sociedades que surgem com asgrandes conquistas das naes europias na eramoderna, combinam e recombinam povos, civi-lizaes, lnguas, crenas e assim por diante. Masreagem contra um centro cultural dominador.So chamadas de sociedades multiculturais.

    Dito isso, passemos para a segundaquesto que, a nosso ver, deve ser discutidatodas as vezes que estivermos lidando com otema do multiculturalismo e educao.

    Segunda questo: a diferena esuas complicaes

    A noo de sociedades multiculturaisnecessita de alguns esclarecimentos. Ainda que

    tenham emergido do conjunto das relaes co-loniais, elas trazem em si o dilema moderno dasidentidades. Como nos diz Martuccelli (1996,p.18), o problema determinante de uma soci-edade multicultural a busca de uma novaarticulao entre a identidade e o poltico. Oque isto quer dizer?

    No fundo, o multiculturalismo, no im-porta onde se manifeste, coloca o reconhecimen-to da diferena, o direito diferena, como odilema moderno das sociedades multiculturais.Assim agindo, pe em questo o tipo de trata-mento que as identidades tiveram, e vm tendo,nas democracias tradicionais.

    Por meio do princpio da liberdade, osindivduos so livres para construir suas iden-tidades, fazer escolhas de suas pertinnciassociais, polticas e culturais. Entretanto, nassociedades multiculturais, como nos lembramalguns autores, esse princpio garantido comrgida separao entre a esfera pblica e a pri-vada. Dentro dessa lgica, imigrantes, negros,minorias tnicas e religiosas, homossexuais,enfim qualquer identidade particular pode ex-primir-se como grupo culturalmente diferen-ciado, desde que o faa em sua vida privada. Oespao pblico fica, conforme a democraciaclssica, protegido da invaso de identidadesparticulares. Nada de se manifestarem nas es-colas, nas reparties pblicas, nos servios desade. Esses so espaos pblicos nos quais sedeveria garantir o outro grande princpio dademocracia clssica: o da igualdade. Este, nodizer de Martuccelli (1996), visa a uma repar-tio justa da riqueza produzida socialmente,independentemente dos traos peculiares aosindivduos (p. 32).

    Acabamos de descrever uma das pers-pectivas embutidas na noo de sociedademulticultural. Nela, a diferena entre os gru-pos sociais no problema, porque contro-lada. A esfera pblica o espao no qual seprocessar a integrao dos indivduos, nasociedade, e a esfera privada aquela na qualeles podem exprimir suas diferenas, suaspertinncias.

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    Grande parte dos crticos do multicul-turalismo defendiam a perspectiva acima, dentreeles, Schlesinger Jr. (1992), ao rejeitar os pro-gramas multiculturais nas escolas nos EstadosUnidos. Ele no era contra a preservao dasmemrias dos grupos, de suas tradies eespecificidades, s entendia que isso no deve-ria ocorrer nas escolas, pois estes eram espaospblicos nos quais deveriam vigorar semprevalores universais (Schlesinger Jr., 1992). Omximo de particularidade admitida por eleseria o desenvolvimento de um esprito nacio-nal estadunidense.

    Enfim, desde a sua emergncia, o multi-culturalismo, no contexto das sociedades demo-crticas, traz baila o debate entre pluralismo euniversalismo, ou seja, a reflexo sobre a exis-tncia ou no de Direitos do Homem de carteruniversal (Martuccelli, 1996, p.19), o que ocor-re em praticamente todos os pases nos quais osmovimentos multiculturais ocuparam a cena p-blica. O carter universalizvel dos direitos, con-forme o cnone da concepo clssica de de-mocracia, vem sendo objeto de discusso, dadoque as reivindicaes das minorias ou dos gru-pos culturalmente dominados no eram uni-versalizveis. E ainda, como nos diz Martuccelli(1996), os indivduos j no se satisfazem comuma identidade privada e, a partir da, a exten-so do processo de individualizao acompa-nhada de afirmao pblica das identidades. Oprincpio de igualdade problematizado poresses movimentos, uma vez que ele genricoou se refere a um sujeito genrico, membro deuma sociedade (...) sempre universalizado. Masa diversidade, seja individual ou cultural, nunca concretamente eliminada. Por isso, no contextomulticultural, ela passa a ser o alvo das polticasrequeridas pelos grupos culturalmente domi-nados.

    Recorrendo mais uma vez a Martuccelli(1996), somos levados a concordar com suaposio de que as diversidades s podem tor-nar-se politicamente significativas no interior deuma concepo liberal, para a qual a socieda-de deixa de ser um lugar de conflito para tor-

    nar-se o lugar de uma corrida social. A partirda, passa-se a entender a concepo de jus-tia social enquanto igualdade de oportunida-des, mas no mais enfatizando os elementoscomuns aos indivduos genricos e, sim, as suasdiferenas, seus particularismos coletivos. Entraassim em cena a noo de eqidade que, diferen-temente da igualdade, no nega, mas reconhe-ce a pertinncia poltica das especificidades cul-turais dos indivduos e dos grupos. Para se che-gar a dita igualdade de oportunidades preci-so dar tratamento diferenciado aos membros dascoletividades (p. 37-38).

    Foi dessa transmutao de princpiosque surgiram, em diferentes pases, aes afir-mativas, por exemplo, as cotas. No Brasil, estasaparecem favorecendo as mulheres em repre-sentaes polticas (Pinto, 2000; Soares et al.,2000; Soares, 2000). Em seguida, estendem-seaos portadores de necessidades especiais, crian-do-se porcentagem para sua absoro no qua-dro de funcionrios em instituies pblicas.Mais recentemente, esse tratamento diferenci-ado tem sido discutido em relao popula-o negra brasileira. Vale, aqui, ressaltar que asmudanas de concepo acima descritas sefazem acompanhar de aes polticas muitoconcretas e, de certa forma, foram sustentadaspor novos paradigmas tericos.

    Como mostramos anteriormente, o mul-ticulturalismo d um destaque diferena, aotratamento diferencial, para se chegar igual-dade de oportunidades. O referido tratamentoimpe como resposta, no plano da ao, nomais os princpios da democracia formal, masas estratgias chamadas, por alguns autores, depoltica do reconhecimento, por outros, depoltica de identidade e, ainda, de polticada diferena.

    Embora, na maior parte dos textos,esses termos apaream quase como sinnimos,lendo atentamente os trabalhos que a eles sededicam, percebemos nuances que no so sim-ples detalhes. Podem estar dizendo coisas mui-to diferentes. Por exemplo, Charles Taylor (1994)refere-se ao poltica do multiculturalismo

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    pelo termo poltica do reconhecimento (politicof recognition). Segundo ele, por meio doreconhecimento que os indivduos constroem eformam a prpria identidade. Esta pode ser pre-judicada caso as diferenas que constituem osindivduos e os seus grupos no tenham sidoreconhecidas ou tenham sido reconhecidas ina-dequadamente. Em ltima instncia, so impe-didos de terem uma relao positiva consigomesmos. Um exemplo dessa deformao doreconhecimento foi o que aconteceu, e aindaacontece, com as mulheres que, no contexto dacultural patriarcal, vem a identidade do gne-ro feminino ser depreciada no dia-a-dia, produ-zindo danos ao sentido de self das mulheres(Fraser, 2002, p. 70).

    O antdoto para essa situao, segundoTaylor (1994), seria confront-la com a tica domulticulturalismo que, no caso acima, libertariaas mulheres de um reconhecimento equivoca-do. tica que, segundo sua linha de raciocnio,significa reconhecer que h, de fato, diferenasentre os gneros. O que no impede que se lhessejam dados tratamentos diferenciados, a fim degarantir-lhes iguais direitos. A poltica mul-ticultural, no interior das sociedades democr-tico-liberais, estenderia os direitos igualmente atodos.

    J Willinsky (2002) usa o termo po-ltica de identidade para se referir a um tipode ao que nos ajudaria a responder comodeveramos ser conhecidos, considerados e tra-tados. Reconhecer a diferena, para ele, no suficiente, porque esse reconhecimento seapia em categorias que so, em grande par-te, construdas por quem est no poder e, porconseguinte, construdas imagem desse po-der. Dessa forma se construram e se mantmcategorias muito negativas em relao s mu-lheres, aos negros, aos ndios e outros. Emsuma, para Willinsky, essas categorias resultamdas divises histricas que excluem indivdu-os e grupos e, por isso, a poltica multiculturalno pode satisfazer-se apenas em reconhec-las, preciso question-las, desconstru-las,mudar o seu significado.

    Examinando a extenso de direitos agrupos que permaneceram longo tempo delesalijados, Willinsky (2002) defende a idia deque essa atitude foi tomada por quem estava nopoder, no porque houve um reconhecimentomais adequado dos dominados, mas, sim,porque houve reduo da eficincia polticadas categorias como ferramentas de excluso einstrumentos do poder.

    Seguindo outra perspectiva multicul-tural, Nancy Fraser (2002), ao analisar as polti-cas feministas, prope uma poltica de reconhe-cimento. A autora considera que o referido re-conhecimento recicla esteretipos de gnero aopromover o separatismo e o politicamente cor-reto; alm de obscurecer as causas sociais da mdistribuio sexista. Como alternativa, a autoraprope uma poltica de reconhecimento integra-da redistribuio da justia do gnero (p. 71).

    Parece-nos que esses trs exemplos depolticas do multiculturalismo contra as respos-tas que as sociedades democrticas tm dados questes relativas igualdade e extensode direitos e eqidade so suficientes paramostrar o quo complexo definir o papel daeducao nesses processos. Como dissemosanteriormente, grande parte das prticas mul-ticulturais so sustentadas por uma espcie decorpo terico que auxilia, orienta, a produodo conhecimento (Gonalves; Silva, 2001,p.15). Silva (1999), por sua vez, mostra que osdiversos paradigmas advm de diversos campostericos. Mas a corrente que domina as abor-dagens , como nos lembra Louro (2002), ops-estruturalismo, em suas vrias correntes. Aautora situa claramente o papel desses novosparadigmas, bem como mostra como eles searticulam com os movimentos multiculturais.Diz ela:

    A emergncia e a consolidao desses vrioscampos tericos participam de chamadapoltica de identidade, o movimento cultu-ral em programas tradicionalmente secunda-rizados (tais como as mulheres, os sujeitosnegros, as chamadas minorias sexuais, os v-

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    rios grupos tnicos) levantam sua voz, recla-mando o direito de se auto-representar, defalar por si e de si. Tal movimento contem-porneo, notvel em vrios pontos do globo,tambm se expressa de forma visvel no Brasil.E, se esses grupos no abandonaram os ob-jetos ligados ao acesso e ao gozo de bensmateriais, agora seguramente seu terreno deluta ampliou-se ou, talvez fosse melhor dizer,seu terreno de luta passou a se centrar nacultura. (p. 231)

    Tendo em vista que a cultura e suatransmisso contam, nas sociedades contem-porneas, com poderoso suporte dos sistemaseducacionais (sistemas estes que consomemgrande parte da vida dos indivduos) e comoa educao, qualquer que ela seja, est inte-gralmente centrada na cultura, pode-se en-tender porque os multiculturalistas fizeram dainstituio escolar seu campo privilegiado deatuao. Passemos, assim, terceira e ltimaquesto.

    Terceira questo:multiculturalismo e educao

    A reao educacional hegemonia da cul-tura euro-ocidental nas sociedades multiculturaisteve vrias vertentes. Para facilitar a exposio des-sas manifestaes nos limitaremo sua apresenta-o na relao entre educao e etnias.

    medida que as estratgias multiculturaisna rea da Educao compreenderam amplo con-junto de procedimentos que envolvem desde a pre-parao de docentes at o desenvolvimento de ati-vidades em sala de aula, podemos observar que empases nos quais j existem programas de educa-o multicultural todos os nveis educacionais soacionados para fazer funcionar os referidos progra-mas (Tapernoux, 1997; Richter, 2001).

    Os Estados Unidos so um bom exem-plo de como esses programas foram sendoadotados no sistema educacional. A comearpela preparao de docentes, os Black Studies,em termos de seus objetivos, do uma boa base

    acadmica e social. Formam um campo inter-disciplinar de pesquisa, focalizando pensamen-tos e prticas dos africanos e seus descenden-tes ao longo da histria.

    Destacam os problemas de acesso ao poder,bem como os de permanncia e uso domesmo. Estudam as relaes no eqitati-vas na distribuio das riquezas entre osdiferentes grupos raciais e classes sociais.Abordam aspectos crticos relativos a ques-tes de identidade, alienao e auto-ima-gem. Preocupam-se com problemas educa-cionais e descendncia tnico/racial, fam-lia e relaes de gnero. (Gonalves; Silva,2001, p. 48-49)

    Em suma, os estudos negros cumpremuma boa parte daquilo que os tericos domulticulturalismo entendem como uma postu-ra crtica das diferenas. No se satisfazem emreconhec-las, mas vo alm e buscam com-preender as causas scio-histricas das divi-ses a que os sujeitos foram submetidos. Pelomenos essa foi a proposta de Willinsky (2002),que reivindica uma educao multicultural queconteste as linhas divisrias e a importnciada diferena; que no aceite as divises en-tre os seres humanos como um fato da natu-reza, mas como uma categoria terica produ-zida por quem est no poder.

    Mas a reao contra o etnocentrismoeuropeu no seguiu sempre na direo damulticulturalidade. Ainda nos Estados Unidos,apareceu proposta de centrismo no europeu:o afrocentrismo. As concepes defendidas pe-los afrocentristas tm sido questionadas e con-sideradas falseadoras da histria. Entretanto, hdefensores que justificam a busca de refern-cias para os negros estadunidenses nas concep-es e vivncias prprias dos africanos (Hacker,1992, p. 301-316). De certa forma, esses defen-sores criticam o multiculturalismo ou pelo me-nos apontam para alguns problemas que a edu-cao multicultural pode trazer para os gruposculturalmente discriminados.

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    Hamilton, examinando as direes toma-das pelo multiculturalismo, seja em instituiesde ensino, organismos governamentais ou em-presariais, chama a ateno para prticas institu-cionais que obscurecem as referidas direes edesse modo ajudam a preservar relaes dedominao e de poder concorrentes (Hamilton,1997, p.167). A esse respeito, lembra Sanford(2001, p.27), que o multiculturalismo pode serealizar de uma forma em que brancos atendamas reivindicaes dos no-brancos, sem mudarseu sistema de pensamento.

    Certamente, compartilhando com essapreocupao que Guerrero (1997) prope umaeducao multicultural que proceda a umadescolonizao intelectual. Analisando os estu-dos ndio-americanos, sugere uma educaocentrada na comunidade indgena, preocupadaem manter suas tradies e cultivar habilidadesprprias a seu modo de ser, viver, aprender eensinar, com a finalidade de que estas sejamutilizadas no empreendimento acadmico e in-telectual (p. 50 e 58-61). No fundo, a propos-ta de Guerrero toca em um ponto fundamental.A contra-reao, ao projeto afro ou indo-centrados, vem daqueles que podem chegar aaceitar as diferenas dos grupos discriminadosdos sistemas educacionais, desde que no per-cam privilgios.

    Para alm dessas propostas de centra-mento cultural, h outras que abrem a educa-o multicultural para a formao de uma cida-dania planetria. Banks, (2000) sem abandonara idia de que os estudantes precisam identifi-car-se com sua nao, sem perder a identida-de cultural de origem, prope que a educaodos jovens estadunidenses deveria lev-los acompreender como sua comunidade cultural e

    sua nao influenciam outras naes. A isto elechama educao para cidadania que propiciaaos alunos um amplo entendimento de inter-dependncia entre as naes, uma atitudeaberta a outros povos e naes, identificaocom a comunidade mundial (Banks, 2000, p.3).

    Quando examinamos as experinciasmulticulturais em outras sociedades, fica claro opeso do contexto na forma de conduzir as pro-postas e polticas. Se as propostas etnicamentecentradas criaram embates no contexto esta-dunidense, no Brasil elas vm se desenvolvendosem traumas. Embora no tenhamos dados parauma leitura mais crtica, no podemos negar quea educao indgena no nosso pas tem, de fato,promovido as diferentes naes indgenas nocampo educacional. , sem dvida, uma educa-o etnocentrada: livros, professores, condiesambientais, tudo isso articulado ao patrimniocultural dos povos nativos. Entendem, eles, con-forme destaca ngelo (2002), que a educaopode ser um dos instrumentos pedaggicos so-ciais para construir as relaes interculturais,baseada no dilogo entre culturas (p. 39).

    Observando mais de perto a expansodo movimento multicultural na educao noBrasil, possvel vislumbrar, para os prximosdez anos, mudanas significativas nas nossasprticas escolares. Porm, uma lio da qual nopodemos nos esquecer a de que uma educa-o multicultural exigir, de ns, um enormetrabalho de desconstruo de categorias. Casocontrrio, o tema da pluralidade cultural preco-nizado pelos Parmetros Curriculares Nacionaislevar muito tempo para chegar s salas de aula,sem deixar de ser tratado com significaes queacentuam e atualizam discursos e atitudes pre-conceituosos e discriminatrios

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    Recebido em 22.04.03Aprovado em 16.06.03

    Luiz Alberto Oliveira Gonalves doutor em Sociologia pela cole des Hautes tudes en Sciences Sociales. Professor doDepartamento de Cincias Aplicadas Educao da Universidade Federal de Minas Gerais, publicou entre outros O Jogo dasDiferenas: o multiculturalismo e seus contextos, em co-autoria com Petronilha Beatriz Gonalves e Silva.

    Petronilha Beatriz Gonalves e Silva doutora em Cincias Humanas - Educao, com ps-doutorado em Teoria daEducao pela University of South frica, Pretoria. Coordena o grupo de pesquisas Prticas Sociais e Processos Educativos,integrado ao Programa de Ps-graduao em Educao da Universidade Federal de So Carlos. Entre suas publicaesdestaca-se Histrias de Operrios Negros (Porto Alegre: Nova Dimenso, 1987).