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MUNDIALIZAÇÃO, O NOVO RURAL BRASILEIRO E EDUCAÇÃO. Marcos Cassin 1 Monica Fernanda Botiglieri 2 “A ordem global busca impor, a todos os lugares, uma única racionalidade. E os lugares respondem ao mundo segundo os diversos modos de sua racionalidade”. Milton Santos INTRODUÇÃO Pensar o meio rural brasileiro e a educação que nele se realiza hoje é considerá-lo como espaço de relações capitalistas de produção, hegemônicas e determinantes, com um desenvolvimento histórico de industrialização e urbanização do campo, de diversidades regionais e fundamentalmente inserido na lógica do capital internacional, o que Chesnais (1996), denominou “A Mundialização do Capital”. Portanto, partimos da idéia de que o meio rural de uma sociedade capitalista é um dos elementos dessa formação social, que não pode ser analisado como uma particularidade, desarticulado, isolado das relações capitalistas e de seu desenvolvimento. Contudo, ainda que o percebamos como parte de uma totalidade, devemos tomá-lo ao mesmo tempo em sua singularidade. MUNDIALIZAÇÃO: UMA RACIONALIDADE UNIVERSAL. A partir da década de setenta do século passado a ordem capitalista mundial passou a criar uma nova racionalidade universal, esta sustentada por quatro pilares, definidos por Marta Harnecker em seu livro “Tornar Possível o Impossível”: ...os avanços de uma nova revolução técnico-científica e os seus efeitos no processo produtivo e na natureza; o papel cada vez mais preponderante que vêm adquirindo os meios de comunicação de massa a partir da crescente globalização da economia; a imposição do neoliberalismo como sistema hegemônico; e o papel que desempenha a dívida externa na subordinação das economias do Terceiro Mundo aos interesses das grandes potências (Harnecker, 2000, p. 111). A revolução técnico-científica A recente revolução técnico-científica, também chamada “revolução eletrônica- informática”, constitui-se em mudanças fundamentais nas telecomunicações, na microbiologia e nas indústrias, em que “máquinas-ferramentas” de Controle Numérico 1 Sociólogo e professor do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. 2 Aluna e bolsista do programa “Ensinar com Pesquisa” do curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. 1

Mundialização, novo rural brasileiro e educação

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MUNDIALIZAÇÃO, O NOVO RURAL BRASILEIRO E EDUCAÇÃO.

Marcos Cassin1

Monica Fernanda Botiglieri2

“A ordem global busca impor, a todos os lugares, uma única racionalidade. E os lugares respondem ao mundo segundo

os diversos modos de sua racionalidade”.Milton Santos

INTRODUÇÃO

Pensar o meio rural brasileiro e a educação que nele se realiza hoje é considerá-lo como espaço de relações capitalistas de produção, hegemônicas e determinantes, com um desenvolvimento histórico de industrialização e urbanização do campo, de diversidades regionais e fundamentalmente inserido na lógica do capital internacional, o que Chesnais (1996), denominou “A Mundialização do Capital”.

Portanto, partimos da idéia de que o meio rural de uma sociedade capitalista é um dos elementos dessa formação social, que não pode ser analisado como uma particularidade, desarticulado, isolado das relações capitalistas e de seu desenvolvimento. Contudo, ainda que o percebamos como parte de uma totalidade, devemos tomá-lo ao mesmo tempo em sua singularidade.

MUNDIALIZAÇÃO: UMA RACIONALIDADE UNIVERSAL.

A partir da década de setenta do século passado a ordem capitalista mundial passou a criar uma nova racionalidade universal, esta sustentada por quatro pilares, definidos por Marta Harnecker em seu livro “Tornar Possível o Impossível”:

...os avanços de uma nova revolução técnico-científica e os seus efeitos no processo produtivo e na natureza; o papel cada vez mais preponderante que vêm adquirindo os meios de comunicação de massa a partir da crescente globalização da economia; a imposição do neoliberalismo como sistema hegemônico; e o papel que desempenha a dívida externa na subordinação das economias do Terceiro Mundo aos interesses das grandes potências (Harnecker, 2000, p. 111).

A revolução técnico-científica

A recente revolução técnico-científica, também chamada “revolução eletrônica-informática”, constitui-se em mudanças fundamentais nas telecomunicações, na microbiologia e nas indústrias, em que “máquinas-ferramentas” de Controle Numérico Computadorizado (CNC) se compõem de um microprocessador com capacidade de memorizar informações e fazer cálculos posteriormente transmitidos a uma máquina que efetua a operação produtiva. Outras novidades tecnológicas foram os sistemas CAD/CAM (Computer Aided design/ Computer Aided Manufacturing), equipamentos que permitem projetar e definir peças numa tela de computador e enviar as especificações diretamente às máquinas de CNC, além dos Controladores Lógicos Programáveis (CLPs), equipamentos que administram processos contínuos de produção. Tratando especificamente dos robôs, é possível afirmar que já representam um salto qualitativo na automação da produção, pois permitem uma manipulação reprogramável e multifuncional. Esses novos instrumentos de trabalho no processo produtivo significam transformações que refletem alterações nos campos econômico, político, social e cultural.

1 Sociólogo e professor do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.2 Aluna e bolsista do programa “Ensinar com Pesquisa” do curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

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Esta revolução tecnológica, que significou um novo paradigma tecno-econômico, começou a ter forma no início da década de setenta do século passado e entre seus principais elementos destacam-se a informática e as telecomunicações por um lado e o novo modelo gerencial originariamente experimentado, em grande escala, pelos japoneses.

O novo modelo gerencial, conhecido como toyotismo, tratava da gestão empregada pelas empresas automobilísticas do Japão em oposição ao método fordismo/taylorismo. Seu sucesso decorreu de uma melhor adaptação à economia global e ao sistema de produção flexível.

Esse sistema refere-se a uma produção mais personalizada e à colaboração entre a direção da empresa e os trabalhadores, a fim de alcançar uma mão-de-obra polivalente e o controle de qualidade total:

...o toyotismo não é pré nem pós-fordista, mas sim um modo novo e original de gerir o processo laboral: o aspecto central e distintivo da via japonesa foi desespecializar os trabalhadores profissionais e, em vez de dispersá-los, torná-los especialistas multifuncionais (Harnecker, 2000, p. 144).

O modelo toyotista de gerenciamento caracteriza-se ainda pelo “Just-in-time”, um sistema que envolve a produção como um todo, alterando seu setor detonador, fazendo com que deixa de existir a seção de estoque e, deste modo, o departamento de vendas determina o que e quanto deve ser produzido, ou seja, só se produz o que já está vendido. Isso só foi possibilitado pelos avanços da nova revolução tecnológica e o processo descrito também passou a ser conhecido pela expressão “estoque zero”, em que a empresa funciona sem estoque e com o que denominaram “sistema de qualidade total”.

Essas mudanças no processo produtivo constatam o sentido intrínseco da busca da internacionalização e globalização dos mercados por parte do capital, o que é elemento da própria constituição do modo de produção capitalista. Tal processo de globalização, como essência do capitalismo, é também explicitado pelo professor Luís Fernandes, ao afirmar que:

...o capitalismo se formou, estruturou e desenvolveu como sistema global desde o seu início. Foi precisamente a transformação do capital “natural” (imóvel, territorializado e, portanto, passível apenas de acumulação restrita) em capital “abstrato” (móvel, desterritorializado e, portanto, passível de acumulação ampliada) que viabilizou o desenvolvimento do capitalismo na Europa (Fernandes, 1997, 33).

Globalização

Embora a globalização seja um aspecto considerado inerente ao capitalismo, é necessário reconhecer que a velocidade com a qual vem ocorrendo hoje jamais foi presenciada na história, esta possibilitada pelos avanços tecnológicos, principalmente, na informática e nas comunicações.

Esse desenvolvimento proporcionou a constituição de uma economia mundial caracterizada pela expansão extraordinária dos mercados financeiros internacionais e Marta Harnecker, em “Tornar possível o impossível”, ao se referir a Samir Amin, no que diz respeito à dominação da lógica financeira sobre os investimentos produtivos afirma que ela é conseqüência da crise da acumulação do capital, ou seja,

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...o aumento de excedentes de capital que não podem encontrar saída na expansão do sistema produtivo devido à estrutura da distribuição das receitas, marcada por uma crescente desigualdade, ameaça o capital com a sua desvalorização.

A gestão capitalista da crise, portanto, consiste em procurar arranjar, para esse excedente sem saída rentável na expansão do sistema produtivo, colocações financeiras para evitar a sua desvalorização. Mas a formação de lucro suplementar sem ter como base a produção de novos valores agrava o desequilíbrio da economia real, ou seja, a crise (Harnecker, 2000, p. 171).

O contexto atual também é marcado por mudanças qualitativas no terreno da produção, como por exemplo a internacionalização de seu próprio processo, o que significa a possibilidade de fabricação de distintas partes do produto final em diferentes lugares. Outro autor que compartilha a idéia da globalização do capital como processo histórico que remonta às suas origens, é o professor Octávio Ianni, este que assim como Marta Harnecker analisa o contexto atual a partir de ocorrências transformadoras do ponto de vista quantitativo e qualitativo do capitalismo:

...como modo de produção e processo civilizatório. Uma transformação quantitativa e qualitativa no sentido de que o capitalismo se torna concorrente global, influenciando, recobrindo, recriando ou revolucionando todas as outras formas de organização social do trabalho, da produção e da vida. Isto não significa que tudo mais se apaga ou desaparece, mas que tudo o mais passa a ser influenciado, ou a deixar-se influenciar, pelas instituições, padrões e valores sócio-culturais característicos do capitalismo. Aos poucos, ou de maneira repentina, os princípios de mercado, produtividade, lucratividade e consumismo passam a influenciar as mentes e os corações de indivíduos, as coletividades e os povos (Ianni, 1999, p. 184).

Para o autor, a globalização não anula as dimensões da interdependência e do imperialismo, pelo contrário, as duas dimensões se reproduzem e se recriam com maior força. Com relação a essas categorias, Ianni afirma que

...são generalizadas, no sentido de que abarcam indivíduos, coletividade e povos em todos os continentes, ilhas e arquipélagos. São determinações que se reproduzem todo o tempo, reiterando, modificando ou mesmo aprofundando as desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais. Pode-se mesmo dizer que a dinâmica da reprodução ampliada do capital, em escala mundial, tem propiciado uma acentuada concentração do poder econômico, agravando a questão social em âmbito também mundial (Ianni, 1999, p. 185).

Neoliberalismo

A globalização capitalista atual se consolida através de um projeto social, político e ideológico, além de econômico. Esse conjunto de intervenções na sociedade também é chamado de projeto neoliberal, este que nasceu na Europa e na América do Norte após a 2ª Guerra Mundial, como intervenção teórica e política iniciada pelo texto “O Caminho da Servidão” escrito por Fredrich Hayek. Os escritos de Hayek datam de 1944 e tinham como objetivo atacar a proposta programática do Partido Trabalhista da Inglaterra para as eleições de 1945.

Com a vitória do Partido Trabalhista inglês e demais partidos social-democratas, foram se construindo e consolidando na Europa, as bases do Estado de Bem-Estar. A conquista da proposta social-democrata fez com que Hayek limitasse suas críticas políticas e ideológicas a círculos restritos, e

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...em 1947, enquanto as bases do Estado de bem-estar na Europa do pós-guerra efetivamente se construíam, não somente na Inglaterra, mas também em outros países, neste momento Hayek convocou aqueles que compartilhavam sua orientação ideológica para uma reunião na pequena estação de Mont Pèlerin, na Suiça. Entre os célebres participantes estavam não somente adversários firmes do Estado de bem-estar europeu, mas também inimigos férreos do New Deal norte-americano. Na seleta assistência encontravam-se Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi, Salvador de Madariaga, entre outros. Aí se fundou a Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos. Seu propósito era combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de um tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro (Anderson, 1995, pp. 9-10).

As idéias neoliberais defendidas por Hayek e seu grupo passaram a ganhar terreno vinte anos depois, em decorrência da grande crise econômica do início da década de setenta, esta que levou o mundo capitalista a cair numa longa recessão.

Com a crise, a proposta neoliberal ganhou força como alternativa de superação, desde que fossem seguidas as referências apontadas em seu projeto, ou seja,

...manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com contenção dos gastos com bem-estar, e a restauração da taxa “natural” de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar os agentes econômicos. Em outras palavras, isso significava reduções de impostos sobre rendimentos mais altos e sobre as rendas. Desta forma, uma nova e saudável desigualdade iria voltar a dinamizar as economias avançadas (Anderson, 1995, p. 11).

Esse receituário neoliberal, descrito por Perry Anderson para tirar as economias capitalistas avançadas de suas crises só se tornou proposta hegemônica no final da década de setenta e início dos anos oitenta, com a eleição Margareth Thatcher na Inglaterra em 1979 e Ronald Reagan nos Estados Unidos da América, no ano seguinte.

O projeto neoliberal na década de oitenta passou a ser hegemônico no conjunto dos países capitalistas desenvolvidos, e nas décadas seguintes, avançou pelos países da América Latina e Ásia. Favorecido pelo fim da experiência socialista no leste europeu, o neoliberalismo também foi implantado entre os países do antigo bloco socialista.

Dívida Externa

A crise econômica dos anos setenta levou os bancos privados dos países avançados a reterem um grande volume de capitais e, com necessidade de dar fluidez a esses, tais bancos criaram uma política de concessão de créditos aos países subdesenvolvidos.

Marta Harnecker diz que tal política...

...manipulava e elevava as taxas de juro para financiar o déficit dos países desenvolvidos, isto promoveu um êxodo de capitais latino-americanos para os países europeus e, sobretudo, para os Estados Unidos, o que contribuiu para agravar a situação financeira dos nossos países. Os

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empréstimos entravam como dinheiro público e saíam como dinheiro privado (Harnecker, 2000, p. 203).

Essa situação levou os países a não conseguirem cumprir com o pagamento de suas dívidas externas e as instituições financeiras internacionais, lideradas pelo Fundo Monetário Internacional, passaram a cobrar as dívidas e a impor uma reestruturação das economias destes a partir do receituário neoliberal. Entre as medidas exigidas pelo FMI, duas tornaram-se peças

...centrais da reestruturação econômica: em primeiro lugar, o controle da inflação por meio da adoção de uma drástica política de austeridade fiscal, do endurecimento da política monetária e creditícia e da redução dos salários reais; e, em segundo lugar, a maior privatização possível do setor público, sobretudo das suas companhias mais rentáveis, aceitando que estas fossem parar nas mãos do capital estrangeiro (Harnecker, 2000, p. 204).

Portanto, o problema da dívida externa dos países subdesenvolvidos, está articulado a implementação e hegemonização do neoliberalismo e da globalização capitalista que se sustentam através dos projetos econômico, social, político e ideológico.

ESPAÇO RURAL: UMA RACIONALIDADE LOCAL.

A reorganização do capital, segundo Marta Harnecker, nos leva a retomar a contribuição de Milton Santos ao pensar o espaço rural enquanto localidade que responde a racionalidade universal, mas também possui a sua própria e assim cria e recria seu espaço particular.

Nossas preocupações de pesquisas têm tido como objeto de análise o espaço rural em sua forma específica de organizar o trabalho e a educação, que respondem à lógica do capital, mas ao mesmo tempo transformam elementos particulares de afirmação e de negação desta lógica.

Antes de analisarmos a relação trabalho rural e educação, acreditamos necessário apontarmos algumas questões da “organização do trabalho e educação” em seu caráter mais geral, nos remetendo a estudos que tem como centro de suas análises o interior do processo de trabalho e a qualificação dos agentes de produção e outros que apontam os limites dessas análises, uma vez que deixam de problematizar as relações mais amplas existentes entre a produção da ciência e da tecnologia e o processo de produção capitalista.

Essa polêmica nos parece demonstrar a insuficiência de análises mais estruturais e universais, que apontem para o processo de produção enquanto unidade do processo de trabalho e das relações de produção, além da carência de novas pesquisas sobre a relação trabalho e educação que tenham o processo de produção como lócus, na busca de suas conexões, determinações, rupturas e continuidades na organização do trabalho, como também da educação e da escola na sua lógica universal e local.

Ainda na perspectiva de temas e referenciais teóricos a serem recuperados com a intenção de contribuir na discussão, acreditamos ser fundamental a retomada das teses defendidas por Nicos Poulantzas, em seu livro “As Classes Sociais no Capitalismo de Hoje”, entre elas a já enunciada anteriormente:

O processo de produção é pois composto da unidade do processo de trabalho e das relações de produção. Mas, no seio desta unidade, não é o processo de trabalho – incluindo a tecnologia e o processo técnico – que detém o papel principal: são as relações de produção que dominam sempre o processo de trabalho e as forças produtivas, imprimindo-lhes seu traçado e seu modo de proceder. É

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esta mesma dominação das relações de produção sobre as forças produtivas que dá à sua articulação a forma de um processo de produção e reprodução (Poulantzas, 1978, p. 22).

Poulantzas, na citação acima, também aponta para a distinção entre processo de produção e processo de trabalho como da determinação das relações de produção sobre o processo de trabalho e a relação entre processo de produção e tecnologia. Sobre este último ponto, o autor é mais enfático em outro trecho do mesmo livro, onde argumenta que:

...o processo de produção não é definido por dados “tecnológicos”, mas pelas relações dos agentes com os meios de trabalho e, assim, entre eles, portanto, pela unidade do processo de trabalho das “forças produtivas” e das relações de produção. Os processos de trabalho e as forças produtivas, inclusive “a tecnologia”, não existem em si, mas sempre na sua relação constitutiva com as relações de produção. Não se pode então falar, em sociedades divididas em classe, de trabalho “produtivo” neutro e em si. É trabalho produtivo, em cada modo de produção dividido em classes, o trabalho que corresponde às relações de produção deste modo, isto é, aquele que dá lugar à forma específica e dominante de exploração. Produção, nestas sociedades, significa ao mesmo tempo, e num mesmo movimento, divisão de classes, exploração e luta de classes (Poulantzas, 1978, p. 21).

A recuperação de Poulantzas e da determinação, em última instância, das relações de produção, como também a temática “Trabalho e Educação” têm aqui como objetivo relacionar-se à discussão “Trabalho Rural e Educação”, a organização do trabalho em seu caráter mais particular, na perspectiva de como a reorganização do capital se insere no campo e qual o impacto na reorganização do trabalho rural e seus reflexos na formação, qualificação e empregabilidade do trabalhador.

Quanto ao processo de trabalho no meio rural, este deve ser entendido de forma integrada ao desenvolvimento do capitalismo e como síntese de seu processo histórico, além de compreender a introdução das relações capitalistas, a industrialização e urbanização do campo de forma combinada e desigual nas diferentes regiões, entendendo que as novas e velhas relações de trabalho do campo estão sempre subordinadas às relações de produção capitalista, ou seja, ao capital.

No Brasil encontramos diversas formas de organização e relações de trabalho no meio rural, desde os grandes proprietários de terras que compram a força de trabalho dos não proprietários, os operários rurais, médios e pequenos proprietários, passando ainda pelos meeiros, parceiros, pequenos proprietários que compram força de trabalho nos períodos de safra e vendem a sua própria nos períodos de entressafra. Diante de uma multiplicidade de relações, devemos procurar entendê-las em sua singularidade e sua totalidade, pois trata-se de uma realidade determinada historicamente pelas relações locais, porém, estas subordinadas sempre aos interesses gerais do capital.

A composição desigual na ocupação, nas relações de trabalho, na propriedade e na distribuição e comercialização dos produtos, também se manifestam na incorporação de novas tecnologias e formas de organização do trabalho. Essa incorporação não se dá de forma homogênea, mas diversificada e, ao mesmo tempo, integrada a determinadas necessidades e interesses. Como ilustração de tal situação, faz sentido citarmos as denuncias ocorridas na região de Ribeirão Preto de mortes por exaustão de trabalhadores rurais do corte de cana. Segundo essas, produtores de cana e usineiros ameaçam mecanizar o corte de cana se os trabalhadores não cumprirem as metas estabelecidas por eles, o que indica que as novas tecnologias muitas vezes aumentam a exploração dos trabalhadores, seja ao serem introduzidas realmente, ou pelo artifício da ameaça em implantá-las.

O NOVO RURAL BRASILEIRO E EDUCAÇÃO.

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Com relação ao novo rural brasileiro e educação, cabe primeiramente explicitar a que educação estamos nos referindo: educação regular, oferecida pelos sistemas municipal e estadual; educação profissional, obtida através do Sistemas Nacionais de Aprendizagem (SENAR, SENAI E SENAC), cursos técnicos, entre outros, ou a formação a partir da inserção do sujeito no trabalho.

Outra questão é a definição de urbano ou rural, pois segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que utiliza as Pesquisas Nacionais por Amostragem Domiciliares (Pnads), tem as seguintes defnições:

Na situação urbana consideram-se as pessoas e os domicílios recenseados nas áreas urbanizadas ou não, correspondentes as cidades (sedes municipais), às vilas (sedes distritais) ou às áreas urbanas isoladas. A situação rural abrange a população e os domicílios recenseados em toda a área situada fora desses limites, inclusive os aglomerados rurais de extensão urbana, os povoados e os núcleos (IBGE, 2007)

O critério domiciliar adotado pelo IBGE para caracterizar o corte urbano/rural leva José Graziano da Silva a afirmar que a população rural de 21% apontada pelas Pndas de 1995 poderia ser elevada a 40%, se utilizado como um dos parâmetros para definir um aglomerado urbano municípios com população acima de 20 mil habitantes3.

Para nós, os dados aumentam a convicção de que não devemos tratar de educação do/no campo, mas de uma educação geral que permita ao aluno compreender sua particularidade enquanto elemento de uma totalidade e que o campo na sociedade capitalista se organiza a partir das necessidades e lógica do capital.

Portanto, ao analisarmos a organização da educação no meio rural brasileiro hoje, não podemos minimizar o papel político/ideológico e econômico que essa educação cumpre em sua singularidade, mas também deve-se percebe-la em sua articulação com os interesses do capital.

A educação no campo não está à parte dos referencias traçados pelo capital internacional que se expressaram na “Conferência Mundial de Educação para Todos” realizada em Jomtien, na Tailândia, em março de 1990, na “Declaração de Nova Delhi”, assinada em dezembro de 1993 pelo Brasil, China, Bangladesh, Egito, México, Nigéria, Paquistão e Índia, reafirmando seus compromissos assumidos na Conferência Mundial, e no Brasil a lógica do capital se materializou com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o novo Plano Nacional de Educação, os Parâmetros Curriculares, as Diretrizes Curriculares, a política de privatização do ensino, entre outras tantas reformas pela qual a educação brasileira tem passado.

Nessa perspectiva, as propostas progressistas de educação do campo que almejam construir referências de resistência ao capital no campo educacional devem retomar princípios universais de educação, como os que Marx apresentou aos delegados do “I Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores em 1866” no texto “Instruções aos Delegados do Congresso da AIT”. Neste, Marx pela primeira vez define o conteúdo pedagógico do ensino socialista:

Por educação, entendemos três coisas:

1. Educação intelectual;

2. Educação corporal, tal como é produzida pelos exercícios de ginástica e militares;

3. Educação tecnológica, abrangendo os princípios gerais e científicos de todos os processos de produção, e ao mesmo tempo iniciando as crianças e os adolescentes na manipulação dos instrumentos elementares de todos os ramos de indústria.

A divisão das crianças e dos adolescentes em três categorias, de 9 a 18 anos, deve corresponder um curso graduado e progressivo para a sua educação intelectual, corporal e politécnica. Os custos

3 O Censo Demográfico de 1991 registrou que 16,6% da população brasileira moravam em municípios com menos de 20 mil habitantes.

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destas escolas politécnicas devem ser em parte cobertos pela venda das suas próprias produções (Marx e Engels, 1978, p.223).

Outra referência necessária para pensarmos a educação como principio universal é Antonio Gramsci. Paolo Nosella em seu livro “A escola de Gramsci” apresenta suas preocupações com relação ao papel da escola na sociedade moderna:

A minha preocupação foi, portanto, compreender a escola proposta por Gramsci no caldo dos acontecimentos econômicos e políticos em que foi elaborado. A segunda preocupação que motivou este meu trabalho é demonstrar que para Gramsci a escola moderna tem no industrialismo seu princípio pedagógico. Trata-se de uma tese sobejamente enunciada, mas que reclama maiores explicações. De um lado, é necessário enfatizar que Gramsci destaca a escola tradicional embasada nas formas produtivas pré-industriais. Polemiza, por isso, com a escola jesuítica, autoritária, metafísica, doutrinária e classista, eficiente e orgânica somente nas sociedades arcaicas. De outro lado, Gramsci também discorda das modernas escolas que fazem do industrialismo seu principio pedagógico de forma “interessada” (interesseira, mesquinha, imediatista). Estas escolas consideram erroneamente que o instrumento de trabalho é apenas “objeto material, uma máquina singular, um utensílio individuado”(O.N 1987, 413) (Nosella, 2004, p.24).

A vinculação que Gramsci faz da escola moderna com o industrialismo, apresentada por Nosella, aponta o trabalho como principio pedagógico da escola moderna tendo como objetivo criar capacidades intelectuais e para o trabalho, ou seja, o principio de escola unitária de caráter geral e desinteressada.

Se a escola é suspensão do trabalho produtivo, não é, porém, dele fuga, negação ou esquecimento. Assim como a fábrica se enuclea ao redor do instrumento de trabalho moderno considerado objeto material de produção, a escola se estrutura ao redor desse mesmo instrumento de trabalho entendido, porém, como processo de desenvolvimento científico, criativo e ético da história dos homens. O instrumento de trabalho para a escola unitária é um feixe de relações políticas, sociais e produtivas. É, sobretudo, a possibilidade concreta de liberdade universal (Nosella, 2004, p.25).

Tendo como objeto de análise o novo rural brasileiro para a discussão da relação Trabalho Rural e Educação e tomando os referenciais acima, cabe levantarmos a tese de que a organização do trabalho rural não exige uma educação diferenciada no que diz respeito ao ensino regular, educação básica, ainda mais a partir de meados da década de oitenta do século passado com a mecanização, informatização, utilização de insumos químicos e biológicos e o aparecimento das agroindústrias. Segundo José Graziano, essa nova realidade rural brasileira apresenta-se como novo rural composto

Basicamente de quatro grandes subconjuntos, a saber:

uma agropecuária moderna, baseada em commodities e intimamente ligada às agroindústrias, que vem sendo chamada de o agribusiness brasileiro;

um conjunto de atividades de subsistência que gira em torno da agricultura rudimentar e da criação de pequenos animais, que visa primordialmente manter relativa superpopulação no meio rural e um exército de trabalhadores rurais sem terra, sem emprego fixo, sem qualificação , os “sem-sem” como já os chamamos em outras oportunidades, que foram excluídos pelo mesmo processo de modernização que gerou o nosso agribusiness:

um conjunto de atividades não-agrícolas, ligadas à moradia, ao lazer e a várias atividades industriais e de prestação de serviços;

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um conjunto de “novas” atividades agropecuárias, localizadas em nichos especiais de mercados.

O termo “novas” foi colocado entre aspas porque muitas dessas atividades, na verdade, são seculares no país, mas não tinham, até recentemente, importância econômica. Eram atividades de “fundo de quintal”, hobbies pessoais ou pequenos negócios agropecuários intensivos (piscicultura, horticultura, floricultura, fruticultura de mesa, criação de pequenos animais, etc.), que foram se transformado em importantes alternativas de emprego e renda no meio rural nos anos mais recentes. Essas atividades, antes pouco valorizadas e dispersas, passaram a integrar verdadeiras cadeias produtivas, envolvendo, na maioria dos casos, não apenas transformações agroindustriais, mas também serviços pessoais e produtivos relativamente complexos e sofisticados nos ramos da distribuição, comunicações e embalagens. Tal valorização também ocorre com as atividades rurais não-agrícolas derivadas da crescente urbanização do meio rural (moradia, turismo, lazer e prestação de serviços) e com as atividades decorrentes da preservação do meio ambiente (Graziano, 2002, p.ix-x).

Esse novo rural brasileiro de atividades agropecuárias e agroindustriais é também acompanhado de um conjunto de atividades não-agrícolas e/ou urbanas.

Um novo ator social já desponta nesse novo rural: as famílias pluriativas que combinam atividades agrícolas e não-agrícolas na ocupação de seus membros. A característica fundamental dos membros dessas famílias é que eles não são mais apenas agricultores e/ou pecuaristas: combinam atividades dentro e fora de seu estabelecimento, tanto nos ramos tradicionais urbano-industriais, como lazer, turismo, conservação da natureza, moradia e prestação de serviços pessoais. Em resumo, deixaram de ser trabalhadores agrícolas especializados para se converterem em trabalhadores (empregados ou por conta própria) que combinam formas diversas de ocupação (assalariada ou não) em distintos ramos de atividades (agrícolas e não-agrícolas) (Graziano, 2002, p.x).

Com essa reorganização do espaço rural, a mecanização e informatização, o uso de insumos industrializados, as agroindústrias e um conjunto de atividades não-agrícolas, mostram, segundo Graziano4, que a renda obtida dessas atividades, em 1998, já superava a de atividades agrícolas das famílias rurais. Importante destacarmos que essas novas tecnologias no campo têm diminuído o tempo de trabalho em relação ao tempo de produção das atividades agrícolas, aumentando o período de não-trabalho nessas atividades, possibilitando assim que as famílias rurais dediquem parte de seu tempo em ocupações não-agrícolas, o que autores têm chamado de elementos part-time.

Esse novo contexto da organização do trabalho no meio rural brasileiro e os critérios de domicilio do IBGE, adotados para definir o corte entre urbano e rural novamente nos levam as propostas de educação do/no campo. Se pensarmos a educação regular enquanto universal, laica e gratuita, que crie capacidades intelectuais e para o trabalho como exposto acima, a proposta de educação do/no campo somente faria sentido como aprendizagem profissional. Contudo, ao nosso entender sequer tal característica é real, pois hoje temos um conjunto de profissões ligadas à produção agrícola e não-agrícola no meio rural que são desenvolvidas por profissionais com domicílio na cidade, portanto típicos cidadãos urbanos, além de inúmeras profissões que não se distinguem em rural ou urbana, como caldeireiros, químicos, motoristas, programadores, administradores entre tantas outras.

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4 José Graziano da Silva & Mauro Eduardo Del Grossi, O novo rural brasileiro: atualização para 1992-98. In: www.ie.unicamp.br.

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