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Afreudite – Ano VIII, 2011 – n.º 15/16 pp. 64-72 Música e Psicanálise 64 Música e Psicanálise Fábio Belo 1 Introdução Na Carta 52, Freud propõe uma metáfora: aquilo que é percebido é traduzido de um sistema psíquico para outro. O recalcamento pode ser compreendido como uma falha nessa tradução: aquilo que pode passar adiante, do inconsciente para a consciência, só segue seu caminho se for traduzido para uma nova linguagem, uma língua mais bem organizada, mais «ligada», mais egoíca. Aquilo que é distónico com relação ao eu, que não pode ser acolhido nessas malhas, resta, no inconsciente, exigindo novas traduções. Laplanche retoma essa teoria de Freud e lança uma das bases de sua teoria da sedução generalizada (TSG). Para o autor francês, a criança vive nas origens de sua vida psíquica uma situação na qual se encontra, necessariamente, como recetor das mensagens provenientes dos adultos que cuidam dela. Essas mensagens são veiculadas no dia-a-dia, nos cuidados básicos, na educação e em todos os outros contatos entre o adulto e o bebê. Essas mensagens são não-verbais (o toque, o olhar, por exemplo) e verbais (a palavra em suas múltiplas formas e entonações). É ainda característica fundamental dessas mensagens o fato de serem enigmáticas. Isso porque são comprometidas com o inconsciente do adulto que as emite, portando significados que o próprio emissor desconhece. São mensagens que têm um duplo caráter: por um lado, veiculam elementos que «ligam», que auxiliam no que irá advir como eu do bebê; por outro lado, endereçam elementos «desligantes», excitantes que atuam na direção contrária, isto é, provocam ruturas nas redes egoícas incipientes. As mensagens que podem ser traduzidas formam o Eu, os restos dessas mensagens, aquilo que permanece sem tradução, formam o Isso. Do lado do eu, a pulsão sexual de vida. Do lado do Isso, a pulsão sexual de morte. 1 Psicólogo, Mestre em Teoria Psicanalítica, Doutor em Estudos Literários. Professor Adjunto I, da Universidade Federal de Minas Gerais. Psicanalista. www.fabiobelo.com.br

Música e psicanálsie

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Artigo de Fábio Belo, sobre as relações entre música e psicanálise. A partir da obra de Jean Laplanche e da análise do filme "Casamento Silencioso".

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    Msica e Psicanlise 64

    Msica e Psicanlise

    Fbio Belo1

    Introduo

    Na Carta 52, Freud prope uma metfora: aquilo que percebido traduzido de um

    sistema psquico para outro. O recalcamento pode ser compreendido como uma falha

    nessa traduo: aquilo que pode passar adiante, do inconsciente para a conscincia, s

    segue seu caminho se for traduzido para uma nova linguagem, uma lngua mais bem

    organizada, mais ligada, mais egoca. Aquilo que distnico com relao ao eu, que

    no pode ser acolhido nessas malhas, resta, no inconsciente, exigindo novas tradues.

    Laplanche retoma essa teoria de Freud e lana uma das bases de sua teoria da seduo

    generalizada (TSG). Para o autor francs, a criana vive nas origens de sua vida

    psquica uma situao na qual se encontra, necessariamente, como recetor das

    mensagens provenientes dos adultos que cuidam dela. Essas mensagens so veiculadas

    no dia-a-dia, nos cuidados bsicos, na educao e em todos os outros contatos entre o

    adulto e o beb. Essas mensagens so no-verbais (o toque, o olhar, por exemplo) e

    verbais (a palavra em suas mltiplas formas e entonaes). ainda caracterstica

    fundamental dessas mensagens o fato de serem enigmticas. Isso porque so

    comprometidas com o inconsciente do adulto que as emite, portando significados que o

    prprio emissor desconhece. So mensagens que tm um duplo carter: por um lado,

    veiculam elementos que ligam, que auxiliam no que ir advir como eu do beb; por

    outro lado, endeream elementos desligantes, excitantes que atuam na direo

    contrria, isto , provocam ruturas nas redes egocas incipientes. As mensagens que

    podem ser traduzidas formam o Eu, os restos dessas mensagens, aquilo que permanece

    sem traduo, formam o Isso. Do lado do eu, a pulso sexual de vida. Do lado do Isso, a

    pulso sexual de morte.

    1 Psiclogo, Mestre em Teoria Psicanaltica, Doutor em Estudos Literrios. Professor Adjunto I, da Universidade Federal de Minas Gerais. Psicanalista. www.fabiobelo.com.br

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    Essa nova terminologia proposta por Laplanche visa explicitar que a pulso sexual de

    forma constitutiva, pois advm do outro, nisso que se pode designar a situao

    originria ou situao antropolgica fundamental. Laplanche critica o biologicismo

    presente no conceito de pulso de morte, tal como formulado por Freud no Alm do

    Princpio do Prazer. Para o autor, a pulso de morte a pulso sexual atuando de forma

    mais disruptiva e mais violenta, numa palavra: menos egoca. O que a contm

    exatamente o Eu, investido tambm da pulso sexual, mas agora regida por um outro

    princpio: o de ligao, conteno.

    Algo fundamental na TSG justamente no abandonar o carter sexual da pulso. Sua

    fonte, que seja o corpo do sujeito ou ainda mais originariamente o corpo do outro, s

    pode ganhar o carter pulsional propriamente dito se for investido sexualmente pela

    alteridade. Isso nos leva ao que queremos discutir nesse artigo, isto , as teorias

    psicanalticas em torno da sublimao e, mais especificamente, da msica.

    1. A verdade do apoio a seduo

    Toda relao de um sujeito, com qualquer objeto, sexual. Ou, no mnimo, pode-se

    dizer, atravessada por ele, talvez, colonizada por ele. A famigerada acusao dirigida a

    Freud de pansexualismo tem um qu de verdade. No no sentido de seus detratores, que

    pensavam que o psicanalista reduz tudo ao sexo. No sentido, porm, de afirmar que o

    sexual algo bem mais amplo que o sexo genital determina nossas relaes com o

    mundo (qualquer objeto).

    Quando pensamos na relao entre o sujeito e a msica, necessariamente, a partir da

    psicanlise, perguntamos: qual a funo libidinal que a msica exerce sobre esse

    sujeito em particular? ela objeto atravs do qual algo se simbolizou? Ou ela excita no

    sujeito algo desorganizado, da ordem da angstia? Ou ainda: qual msica, o qu da

    msica, excita-angustia o sujeito?

    A contribuio da psicanlise no passa por um estudo erudito da msica. Comea pelo

    bsico: se h prazer ou angstia na msica porque ela investida libidinalmente pelo

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    sujeito. E se assim porque a msica j no msica em si, mas instrumento de

    simbolizao de uma outra coisa, uma outra mensagem, que encontrou nessa forma um

    modo de traduo.

    Uma hiptese geral: a primeira forma de msica com a qual temos contato o ritmo do

    corao materno dentro ou j fora do tero. No creio que essas experincias precoces

    sejam determinantes por si s do que ser, mais tarde, a relao do sujeito com a

    msica. Como insisti, esses ritmos do corpo materno s ganharo seus efeitos enquanto

    mensagem se forem investidos pela me (ou pelo adulto que cuida do beb) como

    significativos. Ali onde Freud postulou o apoio, Laplanche faz observar a seduo. O

    sexual apoia-se sobre uma funo biolgica: tal como a sexualidade oral aparece

    apoiada na funo alimentar, um suposto prazer ou desprazer experimentado na msica

    se apoia nessas primeiras experincias ainda aqum de qualquer significao ligadas

    aos ritmos da situao originria. O batimento cardaco, o balano do colo materno, as

    canes de ninar. Como esses ritmos, sons, tons foram transmitidos? Comprometidos

    com quais mensagens, quais sensaes? Foram veculos para quais fantasias

    inconscientes da me?

    2. O intraduzvel

    A hiptese que levanto explica porque encontramos na grande maioria dos textos sobre

    msica a sensao de que ela nos leva regio do intraduzvel. A msica parece ser o

    lugar da cultura mais propcio para se evidenciar o carter enigmtico de toda

    mensagem. Um ritmo ou sua mnima variao, na sua forma mais simples, parece

    querer dizer algo. E toda tentativa de traduzir parece fadada ao fracasso, pois evidente

    que essa traduo no a mesma nem entre os sujeitos, nem ao longo do tempo no

    mesmo sujeito. Uma msica pode significar muito na infncia e nada mais tarde. Um

    ritmo pode nos emocionar de forma estranha durante um tempo, mas esse efeito pode

    no se manter.

    Num texto importante sobre a relao entre a psicanlise e a msica encontra-se a

    interpretao que me parece clssica: a msica vista como um processo regressivo

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    quase alucinatrio, algo que escapole do domnio racional (cf. Lambotte, 1996: 694)2.

    Ela ainda aponta para os vestgios de um gozo para sempre desaparecido, o gozo de

    um tempo anterior ao advento do significante, e que se manifesta na prpria insatisfao

    que renova o desejo (Lambotte, 1996: 698).

    Se h mesmo algo de arcaico trazido pela msica, ele certamente da ordem do

    intraduzvel:

    Dessa forma, no lugar mesmo do trao de perceo, do Wz, o que registrado antes mesmo de ser uma primeira vez traduzido, passivamente registrado, o que preciso situar como uma mensagem a ela mesma ignorada, um significante enigmtico. O intraduzvel, o recalcado que se depositar a cada estgio posterior, o eco, o resduo, desse intraduzvel interno mensagem mesma. a transcendncia da situao originria esta relao da criana com um adulto que significa o que ele no sabe que ser traduzida, transportada, transferida com mais ou menos restos, mais ou menos resduos.3

    Transcendncia da situao originria: a passividade do beb diante do adulto que lhe

    aporta os cuidados comprometidos com o sexual reencontrada na msica de forma

    radical. Afinal, no a audio o sentido mais passivo que temos? O mais dificilmente

    protegido contra os estmulos externos? Para recuperar uma noo pouco explorada:

    quais tipos de paraexcitao (Reizschutz) so possveis para proteger o sujeito nessa

    entrada especfica? irrecusvel: fechar os olhos e a boca so defesas bem anteriores

    bem posterior e complexa aprendizagem de tampar os ouvidos e ainda estamos muito,

    muito longe da estratgia (impossvel?) de deixar entrar por um ouvido e sair pelo

    outro. Observe o leitor, de passagem: esse conselho popular parece sugerir que contra

    o estmulo auditivo s mesmo esvaziando o prprio sujeito de todo contedo, de

    qualquer superfcie que possa registrar os rudos potencialmente perturbadores.

    2 LAMBOTTE, M.-C. (1996). Psicanlise & Msica. In KAUFMANN, Pierre (Ed.). Dicionrio enciclopdico de psicanlise: o legado de Freud e Lacan. Trad. Vera Ribeiro e Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, pp. 692-701. 3 LAPLANCHE, Jean. (1992). Traumatisme, traduction, transfert et autres trans(es). In La revolution copernicienne inacheve. Paris: Aubier, p.269.

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    3. Sexualizar a sublimao

    A partir da teoria da seduo generalizada, proposta por Laplanche, possvel criticar a

    ideia de sublimao como destino dessexualizado da pulso. Nessa breve reflexo sobre

    a msica, espero ter deixado claro que a relao do sujeito com ela no escapa ao

    pulsional.

    As perguntas que norteiam essa investigao so essas: Quais so as bases pulsionais

    de uma atividade cultural em geral? (...) ser que h um destino no-sexual da pulso

    sexual, mas um destino que no seja da ordem do sintoma?4 (Laplanche, 1989: 98).

    Mais especificamente: quais movimentos pulsionais esto em jogo na relao do sujeito

    com a msica? Haveria alguma relao possvel entre o sujeito e a msica que no fosse

    atravessada pelo sexual?

    Laplanche critica um destino no-defensivo da pulso, um destino que no seja

    diretamente sexual. Para ele, a criao artstica preserva algo do sexual (Laplanche,

    1989: 210). O autor prope a tese de que a sublimao uma espcie de neocriao

    repetida, continuada, de energia sexual, portanto uma reabertura contnua de uma

    excitao e no de uma canalizao de energia preexistente (Laplanche, 1989: 211). A

    criao artstica seria uma forma de se lidar com o trauma, um novo modo de ligar a

    pulso. Portanto, Laplanche desabona a ideia de uma dessexualizao e advoga, a partir

    do modelo do trauma, que toda criao uma tentativa de traduzir o excesso sexual

    depositado no sujeito em sua situao originria. Assim ser tambm na relao de cada

    um de ns com a msica: seja na criao, seja na audio.

    4. A msica e a seduo

    Quem canta seus males espanta: assim ensina o senso comum. Basta ouvir, todavia, os

    profissionais da msica para saber como pouco sublime essa prtica sublimatria.

    bem evidente aqui como a sublimao est distante de uma dessexualizao de uma

    4 LAPLANCHE, Jean. (1989), Problemticas III: a sublimao. Trad. lvaro Cabral. So Paulo: Martins Fontes.

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    determinada prtica cultural. Sabemos do sadismo dos profissionais de msica, as

    exigncias de infinitas repeties, a crtica sempre cida, o masoquismo dos msicos

    que se impem treinos mesmo sob dores intensas. Quem canta pode tambm trazer para

    si muitos males: o que nos ensina o saber clnico.

    No pode ser dessexualizado um instrumento to poderoso de seduo. Se no campo

    animal isso regido pelo instinto, no humano as modulaes de ritmo so infinitas e os

    propsitos de seduo igualmente incontveis. Msica para seduzir, para comemorar a

    vida, para celebrar a morte do inimigo, para nos distrair e tambm para nos concentrar.

    Ritmos que levam ao sono e ao despertar, que geram prazer ou intensa irritao.

    Mais uma hiptese: por simbolizar os momentos mais arcaicos da vida psquica, a

    msica ganhar contornos mortferos ao longo de sua histria. Como objeto

    metaforizante dos componentes sexuais do amor materno, a msica carrega em si, com

    a mesma fora, elementos de ligao e desligamento. Pulso sexual de vida dos

    acalantos, das festas, da composio clssica. Pulso sexual de morte das sereias dos

    mitos, das cigarras das estrias infantis, das composies contemporneas que levam ao

    limite a prpria composio musical. Lembro, en passant, o caso dos castrati: no

    teramos aqui a juno do mortfero e do ertico? No seria essa castrao em prol da

    msica uma homenagem ao feminino e, ainda mais primitivamente, identificao do

    menino com a me?

    Campo prprio seduo generalizada, a msica acolhe e veicula infinitas mensagens.

    Da poltica ao amor, do cmico ao trgico, do trivial ao mais srio. Essa plasticidade de

    sentidos serve de advertncia: a msica no est necessariamente em nenhum dos lados,

    nem da morte, nem da vida. Ela serve aos dois senhores com a mesma desenvoltura.

    5. Sintoma e inspirao

    A partir da TSG, toda simbolizao uma forma de fazer advir Eros, pulso sexual de

    vida, o Eu e suas redes de conteno, ali onde havia o sexual em estado desligado, o

    demonaco, o Isso. Ao invs de tentar distinguir esse movimento geral de organizao

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    do sexual de um outro, dessexualizante, a sublimao, Laplanche prefere diferenciar

    duas formas de simbolizao ou de sublimao: uma ligada ao sintoma, outra ligada ao

    que se pode designar inspirao.

    Quanto ao sintoma, h farta literatura: a sublimao no bem-sucedida a ponto de

    neutralizar o sexual. Sabemos que a dessexualizao s existe sob compromisso.

    Melhor pensar numa forma menos conflitiva de satisfao pulsional, a partir da qual o

    Eu possa estar mais acolhido.

    Quanto ao outro polo, o da inspirao, Laplanche quer inverter o vetor da criao: no

    se trata de algo que sai de dentro para fora, preciso relembrar que h uma mensagem

    anterior implantada no sujeito a partir da qual ele cria, traduz. Essa inspirao

    externa pode ser mantida em diversas obras. Laplanche nos convida a pensar como a

    arte pode preservar suas origens alteritrias ao mesmo tempo em que mantem seu aspeto

    particular, narcsico, de arranjo pulsional5. possvel pensar que algumas obras

    fechem menos o sentido que desejam veicular, mantendo o enigma do que significam

    em aberto. As artes mais distantes da linguagem verbal ou representativa parecem ter

    vantagem em conseguir esse efeito de guardar o enigma.

    Em resumo: criar no ex nihilo, a partir da pulso e a pulso no nasce do sujeito,

    implantada nele pelo outro, na situao originria. Todo movimento de criao uma

    tentativa de controlar o pulsional, de faz-lo circular de forma menos conflitiva com as

    redes egocas. Esse movimento pode ser mais sintomtico, mais narcisista, ou pode

    conseguir ser mais bem endereado ao outro. apenas nesse sentido que preservamos

    algo da ideia de sublimao como uma atividade cultural: no que ela seja

    dessexualizada, mas que ela, ao apontar para o outro como lugar de endereamento

    consegue reabrir esse espao como lugar de origem. Agora, o outro deve tambm

    traduzir o que o artista quer dizer, deve ser tomado pelo enigma proposto nem sempre

    com respostas fceis.

    5 LAPLANCHE, Jean. (1999). Sublimation et/ou inspiration. In Entre sduction et inspiration: lhomme. Paris: Quadridge/PUF, pp. 301-338.

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    6. Casamento Silencioso

    Como concluso, gostaria de propor a anlise do filme Casamento Silencioso, do diretor

    Horatio Malaele6. O filme comea com uma equipe de filmagens procura de

    fenmenos sobrenaturais num local onde antes havia um vilarejo. Nessa cidade, algo

    trgico ocorrera. Justo no dia do casamento de Iancu e Mara, Stlin morre. Instala-se

    uma lei que probe qualquer manifestao de alegria e, com isso, a msica, em

    particular estava banida por uma semana.

    Os moradores da vila, ento, organizam uma festa o mais silenciosa possvel. E essa

    cena da festa que me interessa analisar aqui. O primeiro ponto importante que um tipo

    de regresso acontece: os talheres so proibidos, pois fariam barulho. Dessa forma, as

    pessoas comem com as mos. O silncio tamanho que pode-se ouvir os rudos

    intestinais de um conviva e, posteriormente, o seu longo e sonoro peido. At o zumbido

    de uma mosca se faz ouvir, para seu azar, pois ela morta (silenciada) com um tapa na

    cabea de um dos convivas.

    Num determinado momento, quando o pai da noiva a v triste por ter uma festa

    arruinada, ele no se segura e grita: Msica!. Todos danam, cantam e se divertem at

    que so brutalmente interrompidos pelo exrcito que leva todos os homens presos e os

    mata pela desobedincia.

    Como esse filme pode contribuir para o debate entre psicanlise e msica? Acredito que

    nele fica evidente que a msica est em contraposio s instncias de represso. Se isso

    verdade do ponto de vista poltico, talvez seja tambm do ponto de vista psquico.

    Sabemos como as msicas so um alvo importante da censura sob os regimes

    ditatoriais. Sabemos tambm como elas se valem das homofonias, das metforas, dos

    deslizamentos de sentido para escaparem censura. Mais uma vez, no entanto, devemos

    reconhecer que a msica tambm ser usada por essas instncias repressoras. No filme,

    alis, os membros do partido comunista daquela pequena vila andavam sob o som de

    um pequeno tambor ritmando seus passos.

    6 Ttulo original: Nunta Muta. Filme de 2008.

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    dessa forma que interpreto a regresso dos hbitos civilizatrios durante a festa: ali

    onde a msica deveria estar, aparecem os rudos do corpo. No por acaso o rudo anal.

    Ferenczi j ensinou como os gases intestinais so privilgio dos adultos interditados

    severamente aos filhos pequenos7. Mais uma vez, encontramos um apoio biolgico que

    ser colonizado, por assim dizer, pelo sexual e pela cultura. A flatulncia ganha, muito

    cedo, a ateno da criana pela algazarra que provoca nos adultos ao redor: seja pela

    proibio, seja pela graa que causa. importante ressaltar a ambivalncia presente

    nesses sons involuntrios produzidos pelo corpo. A msica no pode ser vista como

    uma forma de organizar esses sons do corpo? Ela tambm no pode assumir formas

    agradveis e agressivas? No ela tambm o que usamos para silenciar outros sons?

    Penso ainda que h algo importante sendo metaforizado nesse silenciamento da msica

    devido a um luto imposto. O que significa fazer o luto de algum que desconhecemos,

    que no amamos? No se pode obrigar ningum ao luto, ainda mais quando a morte do

    objeto deve ser comemorada, como deve ter sido no caso de Stlin para muitos. Temos

    uma hiptese a explorar: o silncio imposto msica como o luto de um objeto no

    conhecido, mas cuja sombra emudecedora se impe sobre o Eu.

    7 FERENCZI, S. (1992). Os gases intestinais: privilgio dos adultos. In Psicanlise II. Trad. lvaro Cabral. So Paulo: Martins Fontes, p. 79. (Obras Completas, II).