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MÚSICA DE DUAS DIMENSÕES CORRESPONDÊNCIAS ENTRE OS UNIVERSOS INSTRUMENTAL E ELETROACÚSTICO HELEN GALLO DIAS

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  • MSICA DE DUAS DIMENSES CORRESPONDNCIAS ENTRE OS UNIVERSOS INSTRUMENTAL E ELETROACSTICOHELEN GALLO DIAS

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  • MSICA DE DUAS DIMENSES

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  • CONSELHO EDITORIAL ACADMICO

    Responsvel pela publicao desta obra

    Dra. Lia Vera Toms

    Dr. Nahim Marun Filho

    Dr. Marcos Fernandes Pupo Nogueira

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  • HELEN GALLO DIAS

    MSICA DE DUAS DIMENSES

    CORRESPONDNCIAS ENTRE OS UNIVERSOS INSTRUMENTAL

    E ELETROACSTICO

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  • 2014 Editora Unesp

    Cultura AcadmicaPraa da S, 10801001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) 3242-7172www.editoraunesp.com.brwww.livrariaunesp.com.brfeu@editora.unesp.br

    CIP BRASIL. Catalogao na publicaoSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    D53m

    Dias, Helen GalloMsica de duas dimenses [recurso eletrnico]: correspondncias

    entre os universos instrumental e eletroacstico / Helen Gallo Dias. 1. ed. So Paulo: Cultura Acadmica, 2014.

    Recurso digital

    Formato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-7983-592-6 (recurso eletrnico)

    1. Msica eletrnica. 2. Msica e tecnologia 3. Arte e tecnologia. 4. Cultura e tecnologia. 3. Livros eletrnicos. I. Ttulo.

    14-18430 CDD: 786CDU: 781

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (Unesp)

    Editora afiliada:

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  • Para Eric, meu grande companheiro e incentivador

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  • SUMRIO

    Prefcio 9

    Parte 11 A msica eletroacstica mista: interseco primeira

    entre os universos instrumental e eletroacstico 152 Questes atuais relacionadas msica eletroacstica

    mista 273 A esfera compositiva na msica eletroacstica mista 414 As esferas da interpretao e da escuta na msica mista 69

    Parte 25 A influncia do pensamento eletroacstico

    na msica puramente instrumental 896 As obras para piano de Ligeti a partir de 1976:

    conexes com o seu passado compositivo 1097 Aspectos advindos da experincia eletrnica de Ligeti

    que se evidenciam em sua obra para piano 1198 Os estilemas da obra pianstica de Ligeti a partir

    do pensamento eletroacstico 163

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    9 Consideraes finais: as correlaes entre o virtuosismo e o universo eletroacstico na obra pianstica de Ligeti 189

    Referncias 193ndice remissivo 201Sobre a autora 207

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  • PREFCIO

    Musica su due dimensioni, obra para flauta, piano e sons eletr-nicos composta em 1952 por Bruno Maderna, inaugura o gnero eletroacstico misto. O seu ttulo evidencia de modo magistral as naturezas to diversas dos universos instrumental e eletroacstico. Como observa Maderna, embora a msica instrumental e a eletroa-cstica constituam de fato duas dimenses claramente distintas, a partir da segunda metade do sculo XX ocorreram abundantes tentativas de unio entre ambas.

    No universo da msica instrumental propriamente dita, tal in-terseco pode ser observada a partir de dois aspectos. O primeiro a influncia do universo eletroacstico sobre a prpria concepo compositiva destinada a um instrumento musical, com a ampliao do seu universo idiomtico, por meio de caractersticas advindas do gnero eletroacstico. O outro reside na prpria msica eletroa-cstica mista, na qual os universos instrumental e eletroacstico complementam-se, mas nunca fundem-se totalmente, tornando-se um a extenso do outro.

    Neste livro, concentraremos nossa ateno nesses dois aspectos. Na primeira parte, abordamos a relao entre msica eletroacstica e instrumental no contexto da msica mista e os problemas que emergem dessa unio. Embora muito rica do ponto de vista tm-

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    brico, a msica mista um campo de intensas discusses, conhe-cidas como querela dos tempos. Defende-se o uso exclusivo dos sons em tempo real, em detrimento dos sons eletroacsticos pr--gravados ou em tempo diferido, alegando-se que estes ltimos im-pem limitaes interpretativas aos instrumentistas. Analisamos os meandros desse embate, o que imprescindvel para conhecer o gnero eletroacstico misto, a partir do vis da composio, inter-pretao e escuta.

    Na segunda parte, o leitor poder conhecer o modo como par-ticularidades da msica eletroacstica integraram-se composio instrumental, mais especificamente, obra pianstica do composi-tor hngaro Gyrgy Ligeti, a partir da segunda metade da dcada de 1970. Apesar de ter sido breve o perodo em que teve contato com a msica eletrnica no Estdio de Msica Eletrnica de Co-lnia, entre 1957 e 1958, Ligeti afirmou ter encontrado nesse uni-verso por ele recm-descoberto as possibilidades de libertar seu pensamento compositivo da tradio clssico-romntica a que es-tava restrito em seu pas e com a qual desejava romper. Assim, o compositor inseriu elementos do pensamento eletroacstico na sua obra para piano e, a partir disso, construiu novos estilemas no universo pianstico propriamente dito. Usualmente empregado na esfera literria, o termo estilema, neste livro, ser usado em referncia a um procedimento escritural tpico do autor, s marcas distintivas do seu estilo.

    Desse modo, o leitor poder apreender a florescncia dessa re-lao entre msica eletroacstica e instrumental e todas as imbri-caes que isso envolve. Em um segundo momento, a partir de comentrios analticos sobre a obra pianstica de Ligeti, poder compreender de que forma o pensamento eletroacstico influen-ciou a concepo compositiva puramente instrumental.

    A autora

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  • AGRADECIMENTOS

    Este livro originou-se da dissertao de mestrado e da tese de doutorado desta autora, desenvolvidas sob a orientao de Flo Me-nezes no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho e realizadas com bolsa auxlio da Capes. Per-corri um longo caminho, que resultou nesta publicao, mas que no conseguiria trilhar sem o auxlio de tantas pessoas durante a jornada.

    Em primeiro lugar, agradeo ao Flo, ator fundamental nesse processo, e no apenas por ter sido o orientador das minhas pesqui-sas. Sou muita grata a ele por sua generosidade, por compartilhar comigo todo o seu vastssimo conhecimento e por termos, ao longo de todos esses anos, construdo uma amizade pela qual tenho enor-me apreo.

    Agradeo tambm minha famlia, pelo suporte e incentivo pe-renes, e em especial ao meu irmo Djair Dias Filho, que muito me auxiliou com suas revises textuais, sobretudo nas tradues dos textos do ingls e do francs para o nosso vernculo.

    Sou grata tambm ao meu grande amigo Leonardo Martinelli, que muito me ajudou, em particular na fase de preparao e reviso deste livro. Obrigada por ter sido to compreensivo ao longo desse processo.

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    Por fim, o meu agradecimento queles cujo apoio foi essen-cial para esta publicao se tornar realidade: Boosey & Hawkes Inc., na pessoa de Elias Blumm; s Edies Flopan, de Flo Mene-zes; Schott Musik GmbH & Co. KG, representada por Dagmar Schtz-Meisel; e Stockhausen-Stiftung fr Musik, especialmente a Kathinka Pasveer, pelas autorizaes para reproduo gratuita dos excertos de partituras apresentadas neste livro.

    Agradeo tambm ao querido monsieur Lucas Marn, que editou alguns dos exemplos musicais da segunda parte deste livro.

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  • PARTE 1

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  • 1 A MSICA ELETROACSTICA MISTA: INTERSECO PRIMEIRA ENTRE OS

    UNIVERSOS INSTRUMENTAL E ELETROACSTICO

    O gnero misto inserido no panorama musical eletroacstico: origem e conflitos resultantes de seu surgimento

    No final da dcada de 1940, nos anos subsequentes ao trmi-no da Segunda Guerra Mundial, a Europa assistiu ao surgimento quase simultneo da msica concreta (musique concrte) na Frana e da msica eletrnica (elektronische Musik) na Alemanha. Inicial-mente, ambas apresentavam diferenas marcantes no que se refere aos materiais de suas composies. Enquanto a vertente concreta inclua em suas obras os sons do cotidiano, a corrente eletrnica ge-rava seus materiais musicais a partir da sntese aditiva, que consiste em um processo de sobreposio de sons senoidais. Apesar da gran-de importncia da msica concreta para o desenvolvimento musical do ps-Segunda Guerra, foi no seio da vertente eletrnica que se iniciou a fuso entre o universo instrumental e o eletroacstico.

    De acordo com o compositor belga Henri Pousseur (1966), a msica eletrnica surgiu de duas ideias aparentemente contradi-trias. Em um primeiro momento, originou-se da necessidade de enriquecimento dos recursos que os compositores tinham sua disposio, sobretudo no que se refere busca de sons complexos,

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    classificados durante muito tempo como rudos. Essa necessidade foi reforada tanto por experincias anteriores, como as de Igor Stra-vinsky, Arnold Schoenberg, Edgar Varse, Anton Webern, entre outros, quanto pela ateno voltada aos prprios rudos produzidos no mundo contemporneo. Em segundo lugar, para Pousseur, a msica eletrnica foi fruto do desejo implacvel dos compositores por controle e organizao estritos, cujas bases encontravam-se na obra de Webern, a qual tambm inspirou as experincias seriais integrais do incio da dcada de 1950. Assim, buscava-se calcar procedimentos compositivos em aspectos racionais, quantitativos e mtricos do material musical.

    Segundo Pousseur, tanto a primeira motivao, de carter mais imaginativo, quanto a segunda, de cunho mais racional, no eram independentes. Ao contrrio, complementavam-se e constituam a base de uma oposio binria entre imaginao e clculo. Em um primeiro momento, sob a influncia primordial de Webern, foi no terreno da msica eletrnica que os compositores engendraram formas de controle sonoro inimaginveis e infactveis no contexto instrumental, dentre elas, a atomizao do som em seus constituin-tes mnimos, a busca pela estruturao serial do prprio timbre, a autonomia do compositor com relao aos intrpretes e aos gestos instrumentais ausentes na msica puramente eletroacstica/sem instrumentos e a completa realizao das estruturas musicais as mais elaboradas rtmica e frequencialmente, pouco factveis na m-sica instrumental, devido s limitaes humanas.

    No entanto, dentre tais tentativas, frustrou-se aquela referente elaborao serial do timbre. Mesmo sendo possvel utilizar procedi-mentos seriais para a estruturao tmbrica, esse processo mostrou--se incuo do ponto de vista perceptivo: seus resultados no eram apreendidos pelo ouvinte no ato da escuta. Em consequncia, a pr-pria busca pela elaborao serial na msica eletroacstica comeou a experimentar, pouco a pouco, algumas modificaes. Mudanas de concepo ocorreram j nessa fase inaugural, como em Gesang der Jnglinge (1955-56), de Karlheinz Stockhausen, que mesclou o uso de sons provenientes de sntese e aqueles produzidos pela voz

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    de um adolescente. Na poca, quando a dicotomia entre a vertente concreta e a eletrnica ainda estava bem delineada, a insero, no repertrio eletrnico, de elementos sonoros preexistentes, no pro-duzidos sinteticamente ou seja, de sons concretos , relativizou a importncia at ento decisiva da escolha das fontes sonoras utiliza-das nas composies eletroacsticas.

    Gesang der Jnglinge inaugurou, desse modo, o processo de su-perao da cesura entre a msica eletrnica e a concreta. Ainda de acordo com Pousseur, por meio dessa obra Stockhausen mostrou que era possvel utilizar sons no eletrnicos sem cair na superfi-cialidade compositiva o grande estigma das obras concretas, de acordo com os compositores eletrnicos. Por meio de transforma-es desse material no eletrnico ou mesmo de um dilogo entre alto-falantes e performance ao vivo, abriram-se caminhos para que clculo e imaginao constitussem partes indissociveis da msica eletroacstica (Pousseur, 1966, p.165). O termo eletroacstica passou a ser empregado a partir do momento em que a diferen-ciao entre msica concreta e msica eletrnica perdeu o sentido (Menezes, 1996, p.39 ss.).

    A obra Gesang der Jnglinge sinalizou a dissoluo do dualismo to caracterstico da msica eletrnica na primeira metade dos anos 1950: a oposio dos aspectos imaginativos aos meios intelectuais e quantitativos de uma composio. Ao mesmo tempo, a introduo gradativa de sons concretos nas composies eletrnicas corrobo-rou a prtica da msica eletroacstica mista, inserindo o universo instrumental no mbito eletroacstico, como forma de enriqueci-mento tmbrico dessas obras.

    Musica su due dimensioni, de Bruno Maderna, considerada a primeira obra do gnero eletroacstico misto. Embora tenha sido composta em 1952, um ano antes das primeiras experincias de Stockhausen no que se refere ao serialismo total na msica eletr-nica, essa obra alinhou-se ao pensamento dos compositores ligados ao Estdio de Colnia e instituiu a msica mista como uma das aquisies fundamentais dessa vertente. Revisada por Maderna em 1958, Musica su due dimensioni constitui um exemplo do que logo

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    seria buscado, em especial no que se refere questo do timbre e da escritura.1 Flo Menezes observa:

    Se os meios eletrnicos propiciaram o apogeu da escritura ins-trumental, libertando a princpio o compositor de todo e qualquer entrave causado pelas limitaes do gesto interpretativo em face das estruturas seriais, era natural que o compositor, mais cedo ou mais tarde, procurasse resgatar o universo instrumental, estabele-cendo dialeticamente correlaes entre ambas as dimenses sono-ras: a instrumental e a eletroacstica. [...] O to almejado continuum de timbres da era serial [...] projetava-se, sob um ngulo totalmente diverso, para este meio caminho em que as possveis interseces entre os instrumentos e as estruturas eletroacsticas pudessem ser delineadas. (Menezes, 1999, p.14-5)

    O texto reproduzido sinaliza duas possibilidades geradas pela msica eletroacstica no mbito instrumental. A primeira alude ao prprio ttulo da obra de Maderna e constitui o cerne da msica eletroacstica mista: a reunio dos universos instrumental e eletroa-cstico em uma nica obra. Isso abriu caminho para a explorao de determinados aspectos da morfologia sonora dos instrumentos, elaborando-a em um nvel nunca experimentado at ento, e resul-tou em um considervel enriquecimento tmbrico das composies como um todo. Expandiram-se as possibilidades dos compositores no que diz respeito elaborao do seu texto musical, e o dilogo entre essas duas esferas to distintas tornou-se palco propcio para

    1 Utilizamos o termo escritura, cunhado por Menezes (1999), entendido como elaborao processual, procedimento compositivo, e que se contrape escrita. Neste contexto, a escrita nada mais do que a notao da escritura. De acordo com o autor, d-se preferncia ao vocbulo escritura, mais conotativo de um processo compositivo e portanto mais prximo ao contexto relativo elaborao [...], em vez de meramente escrita, mais condizente com o aspecto superficial e caracterolgico (grfico) da apresentao de um texto (p.61, grifos do autor). Uma discusso mais ampla sobre o tema pode ser encontrada em Boulez (1989, p.293 ss.) e Perrone-Moiss (2005, p.30 ss.), bem como nos captulos seguintes deste li vro.

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    que, a partir de meados da dcada de 1950, os materiais musicais fossem trabalhados sem o obstinado rigor da primeira fase serial integral.

    Alm disso, a reincluso de intrpretes promovida pela msica mista remete tradio musical pr-eletroacstica e, deste modo, estabelece uma espcie de continuidade histrica mais evidente entre os gneros puramente instrumental e acusmtico ou seja, a msica eletroacstica pura. Em contraposio msica acusmtica, a insero de instrumentos acsticos possibilita relativa variabilida-de na performance de uma mesma obra. Isto porque cada intrprete possuir uma leitura particular de determinada composio musi-cal, o que produzir diferentes nuanas cada vez que for executada. Tal variabilidade, tpica da performance, confere certo nvel de in-determinao obra, que se mantm como que aberta e inacabada at o momento em que o instrumentista a interpreta.

    Contudo, o gnero eletroacstico misto no teve unanimidade. Seu surgimento fez emergir posturas sectrias, favorveis apenas msica instrumental ou msica eletroacstica. Uma vez superado o antigo embate msica concreta versus msica eletrnica, ele foi substitudo pelas divergncias entre os defensores da msica acus-mtica e os do ps-serialismo. Pelo fato de o universo eletroacstico ter rompido as amarras relacionadas escritura instrumental, os compositores acusmticos alegam que o retorno s prticas mu-sicais pr-eletroacsticas nega as conquistas provenientes da ce-sura com a abstrao tpica da escritura tradicional, por eles vista como um elemento j superado, devido aos recursos da msica eletroacstica.

    Por outro lado, os defensores do ps-serialismo enaltecem o resgate do gesto instrumental, inexistente no panorama inicial da msica eletroacstica devido ausncia do intrprete. Nesse pen-samento, claro o intuito de estabelecer um continuum histrico entre msica tradicional e eletroacstica mista. Objetiva-se ampliar o horizonte de ao do instrumentista e do gesto instrumental, com a justificativa de que a ausncia desses fatores, tal como ocorre na msica acusmtica, provoca certo estranhamento ao ouvinte (Ma-

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    noury, 1988). Os recursos tecnolgicos constituem os meios para atingir esse objetivo, ao se tornarem veculos de expanso do gesto instrumental.

    No seio da prpria msica mista tambm h divergncias, o que sinaliza a grande complexidade inerente juno entre as es-feras eletroacstica e instrumental. No que se refere aos modos de difuso eletroacstica, existe uma corrente que privilegia o uso da msica mista em tempo real, em oposio msica mista em tempo diferido (sons eletroacsticos pr-gravados). Para essa vertente, os sons em tempo real tornariam as obras mistas mais semelhantes s composies convencionais de cmara ou para orquestra , apro-ximando-as da prtica pr-eletroacstica. Alm disso, a utilizao de sons pr-gravados no possibilita ao intrprete uma atmosfera de performance confortvel.

    Esse pensamento d margem, por sua vez, a outras discusses que tm sido recentemente abordadas pela comunidade eletroa-cstica. A preferncia pelo progresso tecnolgico, em virtude da preservao dos gestos do intrprete, suscita, no panorama con-temporneo, certo desprezo pela forma inicial de interao: os sons eletroacsticos pr-gravados para os quais o primeiro suporte foi o disco e, logo depois, a fita magntica concomitantes ao do instrumentista-intrprete.

    Discusses relativas msica mista: viso geral

    O compositor Philippe Manoury (1998b) utiliza uma termi-nologia elucidativa para referir-se aos diferentes modos de difu-so eletroacstica no mbito da msica mista. Em primeiro lugar, nomeia de tcnicas em tempo diferido as transformaes sonoras realizadas por meio de programas computacionais especficos para esse fim, obtidas a partir das fontes instrumentais no momento da performance e que permitem maior variabilidade nas interpreta-es musicais. Nas chamadas tcnicas em tempo diferido, os sons eletroacsticos so fixados em suporte tecnolgico em momen-

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    to anterior execuo musical da obra mais precisamente, no momento de sua concepo e elaborao em estdio , e cabe ao intrprete integrar-se a essa estrutura, adaptando seu tempo de interpretao ao tempo prefixado dos eventos sonoros eletroacsti-cos. Nesse caso, as variaes interpretativas de uma obra dependem apenas do instrumentista, pois os sons eletroacsticos so previa-mente elaborados pelo compositor.

    A evoluo nas pesquisas de sntese sonora atravs de compu-tadores, iniciadas por volta da dcada de 1950 e desenvolvidas no decnio seguinte (Pousseur, 1966), trouxe algumas mudanas no que se refere aos suportes tecnolgicos utilizados na msica eletroa-cstica. Com o passar das dcadas, os discos e, posteriormente, as fitas magnticas foram substitudos por programas especficos para computadores. Outro fruto dos avanos tecnolgicos nesse mbito foi o surgimento de sistemas de udio em tempo real, que ampliaram as possibilidades nas esferas da composio e interpre-tao desse gnero e, em consequncia, foram aclamados como uma soluo eficaz para um dos aspectos mais criticados no uso de sons eletroacsticos pr-elaborados em estdio: a falta de flexibilidade interpretativa que esse tipo de difuso imporia ao instrumentista na performance, no que se refere especificamente questo do tempo musical. A partir disso, surgiram discusses sobre qual tipo de difuso eletroacstica seria o melhor a ser empregado nas com-posies mistas.

    As divergncias em torno da msica eletroacstica mista so, basicamente, de duas ordens: posicionamentos relacionados a aspectos prticos ou seja, questes inerentes performance e reflexes de cunho esttico-compositivo. O ponto central das dis-cusses est no uso do tempo diferido versus tempo diferido. Nessa esfera, o fator mais discutido , sem dvida, aquele que remete s questes prticas na execuo desse repertrio. Aspecto geralmente explorado pelos intrpretes, o ponto crucial encontra-se nos emba-tes relativos ao tempo cronolgico na msica mista: parte dos ins-trumentistas considera a performance com suporte fixo limitadora, devido ao fato de ser necessrio seguir rigorosamente as indicaes

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    de tempo inclusive com o comum emprego de cronmetros , o que ocasionaria certo desconforto e falta de liberdade para a expres-so das ideias musicais dos executantes. McNutt considera que,

    para o instrumentista, a performance com suporte fixo semelhante a trabalhar com o pior parceiro humano imaginvel: desatencioso, inflexvel, sem resposta e totalmente surdo. Ao mesmo tempo que o intrprete domina a ateno do pblico, ele est ironicamente submisso ao seu parceiro de msica de cmara, concentrando a maior parte de sua ateno em adequar-se ao seu acompanhante mesmo tendo sobre si a inteira responsabilidade de manter o grupo coordenado! (McNutt, 2003, p.299)

    No entanto, embora a questo do tempo cronolgico seja de extrema relevncia para o intrprete, a problemtica da obedincia a um tempo exterior a ele no se restringe ao repertrio misto. No caso da msica eletroacstica mista em tempo diferido, essa dis-cusso surge apenas com outro formato, pois o ambiente de perfor-mance diverge do tradicional. Em obras nas quais no so utilizados recursos eletroacsticos e que pressupem direo musical por in-termdio de uma regncia (obras orquestrais, por exemplo), ou at mesmo em formaes camersticas, natural que o intrprete tenha de adequar suas aes s indicaes do regente ou aos outros membros do grupo, a despeito de se tratar de uma composio cuja escrita ou no tradicional. Podemos argumentar que o tempo do regente ou dos outros instrumentistas envolvidos em uma prtica de cmara humano, ao passo que o do contexto misto dado por um suporte no humano. Entretanto, o problema, em essncia, o mesmo: em ambos os casos, trata-se da submisso do intrprete a um tempo que exterior ao seu prprio tempo.

    Assim, o ponto crucial dessa questo, na verdade, est no tempo subjetivo de uma obra: na msica em tempo diferido, apesar das amarras condicionadas pelo decurso inflexvel do tempo das estru-turas eletroacsticas fixadas sobre suporte, h variaes nos atos interpretativos dos instrumentistas, de acordo com as concepes

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    de cada intrprete. Alm disso, o tempo subjetivo consiste em um dos objetos de ateno dos ouvintes, o que no exclui a interpreta-o intelectiva da obra, que efetuada na apreenso do contedo musical e instaurada no prprio ato de escuta. Em suma, na msica eletroacstica mista, parte da composio resultado de aes que no provm do ser humano. Porm, obedecer a um tempo cronol-gico uma realidade comumente enfrentada por um instrumentista na prtica orquestral ou de cmara, subsistindo ainda a problemti-ca da prpria recepo da obra.

    Alm desse aspecto, a obedincia a um transcurso temporal prefixado sobre suporte assenta-se, na maioria dos casos, em deter-minados momentos de sincronia absoluta. Para atingir tais sincro-nias, comum o uso de cronmetros, mas entre os pontos a serem sincronizados existe, via de regra, relativa liberdade de execuo instrumental, que d margem a distintas interpretaes de uma mesma obra.

    No que se refere s discusses alinhadas questo esttica, a mais recorrente aquela que trata da relao entre seres humanos e mquinas, aspecto fundamental para as reflexes realizadas ao longo deste livro. Brian Belet (2003) afirma, ao mencionar as ino-vaes tcnicas introduzidas no fazer musical ao longo dos tempos, que elas produziram alteraes nos trs aspectos mais fundamentais da msica: na composio, visto que, ao se inserirem novidades no referido contexto, o compositor pde adotar novos tipos de abor-dagens nesse campo; na interpretao, afetada, por exemplo, pelas mudanas no modo de fabricao dos instrumentos, que levaram necessidade de readaptao da tcnica instrumental; e na escuta, a qual, devido s inovaes nas ideias e nos gestos, teve de se moldar s diferentes realidades propostas.

    possvel observar a ocorrncia do mesmo processo na msica eletroacstica mista, porque nesse mbito, assim como no repert-rio tradicional, a relao composiointerpretaoescuta igual-mente importante. Alm disso, no caso da msica eletroacstica mista, a referida trade foi e ainda inevitavelmente afetada pela introduo de sons produzidos eletronicamente. Belet assevera que

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    a insero dos sons eletroacsticos melhor, o uso de aparelhos eltricos/eletrnicos na produo dos materiais sonoros, bem como no controle das estruturas musicais foi

    to fundamental na histrica da msica do Ocidente quanto a mudana da tradio oral para a tradio escrita, ocorrida h mil anos, da mesma forma como o foi o aumento das possibilidades de acesso msica escrita, proporcionado h 500 anos pelo advento da impresso. (Belet, 2003, p.305)

    Nesse mbito de discusses estticas, abordar a interao2 ou mesmo a influncia do pensamento eletroacstico na msica ins-trumental implica analisar a relao dos seres humanos com as m-quinas, bem como suas resultantes, tendo como ponto de partida a intruso dos elementos no humanos nos processos criativos e interpretativos musicais. Belet afirma ainda que h uma dinmica social dualista (Garnett, 2001) com relao s mquinas, pois, ao mesmo tempo que facilitam a vida humana, tambm geram certos malefcios. O autor considera que, por ser fruto do sculo XX, o gnero eletroacstico traz embutido em si toda a carga de discus-ses referentes ao uso das mquinas e do seu papel na sociedade contempornea, bem como a mudana no modo de enxerg-las no dia a dia. E, pelo fato de esse problema assumir relevncia no espec-tro de debates sociais da atualidade, as mencionadas discusses so igualmente importantes no mbito musical.

    Garnett (2001) considera inegvel a existncia de uma viso ambivalente no que diz respeito tecnologia das mquinas. Ao mesmo tempo que minimizam os esforos no trabalho braal, per-mitem controlar a vida e os valores humanos. No entanto, o autor discorda da ideia de Belet, e afirma que a viso das mquinas como

    2 Garnett (2001) define a interao como um aspecto integrante da msica eletroacstica mista, o qual remete ao repertrio eletroacstico que pressupe a participao de um ou mais intrpretes/instrumentistas. A partir disso, podemos dizer que a interao , na verdade, a base do repertrio misto, trata--se de seu caracterizador mais evidente e imediato.

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    opressoras daqueles que as operam j no faz mais sentido, pois a tecnologia concede um interessante poder aos indivduos que a utilizam. Desse modo, as mquinas gerariam muito mais benefcios do que malefcios aos seres humanos. Ao transportar essa ideia para a esfera musical propriamente dita, Garnett acredita que, embora haja uma inevitvel modificao estrutural, decorrente do uso de computadores na msica, ela proporciona maiores possibilidades ao compositor no que se refere ampliao do universo sonoro de uma obra. Portanto, essa nova gama sonora, consequncia de ele-mentos no humanos no fazer musical, deve ser utilizada de forma a enriquecer o resultado compositivo final, o que consiste em um grande desafio para o compositor.

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  • 2 QUESTES ATUAIS RELACIONADAS

    MSICA ELETROACSTICA MISTA

    A representao do som na msica eletroacstica: os conceitos de escrita e escritura

    Um dos principais aspectos do universo eletroacstico diz respeito escrita, ao modo de representao grfica da escritura musical. Segundo Manoury (1998b), tal questo decisiva no que se refere cesura entre msica instrumental e eletroacstica, isto porque a primeira pressupe o registro das informaes musicais por meio da escrita, cuja funo aglutinar conceitos musicais, bem como fixar tais ideias. Mais ainda, a escrita abrange tambm o poder de abstrao e simbolismo embutido nesse processo, os quais so complementares (ibid.). Ainda de acordo com esse autor (1998a), o poder de abstrao da escrita instrumental consiste na possibilidade que oferece de se trabalhar com objetos abstratos, apartados de seus contextos finais, cuja estruturao permite nveis independentes ou interpenetrados. Dentro desse nvel abstrato inerente escrita instrumental est a sua natureza simblica, j que o signo musical define de modo parcial as caractersticas de deter-minado evento, no o representando fisicamente, mas indicando ao instrumentista como dever ser realizado.1

    1 Para Menezes (1999), o propsito da escrita musical no definir o fenmeno sonoro no que se refere aos seus aspectos fsicos, mas, ao contrrio, [indicar]

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    Pelo fato de a notao tradicional ser simblica e consistir na re-presentao grfica do som musical, um fenmeno imbudo de certa subjetividade,2 a escrita instrumental no possui carter descritivo, pois o que consta na partitura no abrange toda a complexidade do fenmeno sonoro. Assim, apenas o substrato da composio pode ser registrado.

    Alm disso, por ter sculos de existncia, a escrita instrumental envolve signos que, por conveno, so referenciais para a cultura musical do Ocidente e, portanto, consiste em uma prtica cristali-zada devido ao seu longo uso. De acordo com Ebbeke, no incio da notao musical

    no era concebvel, para alguns tericos, fixar [a voz de] tenor por meio de um sistema de signos abstratos a partir da altura e durao do som [...]. Para outros, no entanto, no era de se rejeitar a hip-tese de que um sistema de signos, a partir do momento que atin-gisse uma forma de validao mais geral, se repercutiria tambm nos contedos musicais que ele prprio ajudou a fixar, a saber, ainda, as reflexes segundo as quais o sentido musical no poderia constituir a no ser por meio da prpria utilizao da altura e da durao do som. (Ebbeke, 1990, p.70-1, grifo nosso)

    Por isso, de acordo com a concepo tradicional, a escrita um meio de registrar e transmitir, na forma de signos relativamente

    aos intrpretes smbolos grficos convencionais pelos quais se produz o resul-tado esperado (p.56). por isso que aqui afirmamos, baseados tambm em Manoury (1998a), que a escrita musical possui carter abstrato e simblico.

    2 Roederer (2002) afirma: A atribuio de altura, intensidade e qualidade a um som musical o resultado de operaes de processamento no ouvido e no crebro. subjetivo e inacessvel a uma medio fsica direta [...]. Entre-tanto, cada uma dessas sensaes primrias pode ser associada, em princpio, a uma quantidade fsica bem definida do estmulo original, i.e., a onda sonora, que pode ser medida e expressa numericamente por mtodos fsicos (p.21). Assim, embora o som seja um fenmeno que ocorre no campo fsico, suas propriedades no so totalmente mensurveis.

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    arbitrrios, contidos na partitura, as ideias musicais de um compo-sitor. As indicaes da partitura representam apenas a parcialidade do fenmeno sonoro, e tais signos so decodificados no momento da execuo instrumental de uma obra. Assim, existe ntima re-lao entre escrita e interpretao, pois a ltima comea a atuar de forma menos reprodutora e mais criativa no contexto musical quando a primeira chega ao seu limite.

    Toda escrita dotada de valores relativos, que so interpret-veis, e de valores absolutos, que no so passveis de interpretao. So exemplos de valores absolutos as alturas dos eventos musicais, e de valores relativos, as dinmicas, as quais se constituem, nesse contexto, nos objetos da interpretao musical. Esta seria, portanto, resultante do hbito de leitura em si e de certa forma imaginria, fruto da capacidade de percepo dos timbres instrumentais no processo de decodificao da partitura (Manoury, 1998b). No h, portanto, uma total predeterminao na escrita, pois a mensagem, embora registrada pelo compositor na forma de texto, ser com-pleta e formar de fato um todo musical apenas quando o instru-mentista decodific-la e trabalhar os valores relativos da partitura (ibid.). Nesse contexto em que a ideia compositiva revela-se mais importante do que a sua mera notao, pode-se pensar na noo de escritura (elaborao processual, procedimentos de composio), por oposio escrita (notao).

    D-se preferncia ao vocbulo escritura, mais conotativo de um processo compositivo e portanto mais prximo ao contexto relativo elaborao [...], em vez de meramente escrita, mais condizente com o aspecto superficial e caractereolgico (grfico) da apresentao de um texto. (Menezes, 1999, p.61, grifos do autor)

    A msica eletroacstica pura, dita acusmtica, afronta a abstra-o de modo diverso da escrita instrumental. Isso acontece porque o compositor trabalha desde o incio com a realidade sonora, com o som em si, e constitui tarefa fundamental resgatar no trabalho em estdio o potencial abstrato das inmeras categorias possveis

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    anteriormente veiculadas pela escrita de uma partitura comum. No entanto, embora a notao musical propicie uma interao entre o compositor e o seu projeto diferentemente do que ocorre no caso da eletroacstica , de acordo com Bennett essa dimenso propor-ciona um ganho em outro sentido:

    [Essa] transio entre experincia sensorial [ideia] e representa-o abstrata [notao] apresenta uma importncia notvel do ponto de vista compositivo e, na msica eletroacstica, possvel apenas de um modo bastante limitado. Em contrapartida, nesta ltima [na msica eletroacstica] deparamo-nos com uma relao muito mais estreita com o material sonoro do que aquela inerente msica instrumental; o processo compositivo , ele mesmo, uma intensa experincia sensorial. (Bennett, 1990, p.39)

    Ou seja, medida que existe certa perda da relao compositor/trabalho no que se refere ao embate ideias versus notao visto que esta inexiste em seu sentido mais tradicional , h um enriquecimen-to na relao compositor/obra justamente por se estabelecer uma intensa proximidade entre ele e o universo sonoro com o qual lida.

    A escrita na msica eletroacstica constitui um tpico que in-dubitavelmente alvo de divergncias. De um ponto de vista his-trico e de acordo com a concepo tradicional do termo escrita, muitos afirmam que a msica eletroacstica no passa por esse processo e confunde-se, portanto, escrita com escritura. Bennett (1990) reala, por exemplo, uma marcante mudana na forma de registro e transmisso no mbito da msica eletroacstica: ao invs de existir nela a escrita, como na msica instrumental, a partitura d lugar s gravaes.3 Devido ausncia de intrprete, tornou-se possvel dispensar a existncia da escrita musical, o que resultou em um sistema de notao vagamente uniformizado. As tentativas de preencher tal quesito observadas, por exemplo, na construo

    3 O autor refere-se, nesse trecho, msica acusmtica (eletroacstica pura).

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    de partituras de escuta (audiopartituras) e/ou de realizao no se assemelham ao processo tradicional de escrita, j que concebidas em momento posterior composio, ou seja, no tm a finalidade de serem executadas/interpretadas.

    Alm disso, Bennett considera que a substituio da partitu-ra pelas gravaes trouxe ao panorama musical contemporneo notvel mudana da cultura escrita para a cultura oral.4 Portanto, essa transformao contradiz o conceito de Menezes (1999), pelo qual a representao adquiriria importncia maior do que a prpria realidade representada, e a inteligibilidade conceitual substituiria a percepo sensvel. A representao em si adquire uma maior importncia do que a realidade representada; a inteligibilidade con-ceitual toma o lugar da percepo sensvel (ibid., grifos do autor), pelo fato de

    a escritura [...] [revelar] em si mesma a tendncia, em consequncia de seu carter virtualmente durativo, a tomar a representao da coisa pela coisa ela mesma, tornando acessvel a via de uma distan-ciao por vezes suficientemente perigosa e imemorial com relao percepo sensvel e concreta dos fatos de linguagem. (Menezes, 1999, p.47, grifos do autor)

    No entanto, se a escrita no de fundamental importncia para o gnero eletroacstico, o mesmo no ocorre com a escritura. De acordo com um vis histrico, Manoury (1998a) afirma que no existe de fato a escrita em sua tradicional acepo na msica eletroa-cstica; assim, esse gnero no passaria pelo processo de escritura, como a msica instrumental.

    4 A respeito das tradies orais, Manoury (1998b) pontua: Um rpido sobre-voo histrico mostra claramente que, ao longo dos tempos, a escrita passou a ser vista como algo que possui uma grande preciso. Isto significa que ela suplantou progressivamente todo um saber que provm das tradies orais. De tais tradies acabaram por surgir, depois de certo perodo, os maus hbi-tos que no tm mais lugar de ser a partir do momento em que a linguagem e a estilstica evoluram [...] (p.66, traduo nossa).

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    Porm, se atentarmos para o fato de a escrita consistir em um meio de definir o comportamento dos objetos no discurso musical, de esses comportamentos e a morfologia do som constiturem a totalidade do discurso, de os recursos da informtica permitirem estabelecer valores para os componentes musicais, como ocorre na escrita instrumental, possvel realizar uma comparao entre os diferentes estados da escrita tradicional e os diferentes nveis de transformao a que um material pode ser submetido (Manoury, 1998a, p.51), e, desse modo, o conceito de escritura se faz presente.

    Ainda segundo Manoury, a msica eletroacstica apresenta transformaes que se referem a um material em especfico, ao passo que na msica instrumental elas podem ser independentes desse material. Em outras palavras, aos parmetros musicais como durao, altura, intensidade e timbre, no mbito da eletroacs-tica, somam-se conceitos de nvel mais elevado (Murail, 1991), tais como densidade, registro, mbito, espectro, vetorizao, entre outros, o que resulta em novos procedimentos de escritura pro-priamente dita, como mixagem, fuso, interpolao, reverberao, transferncias e espacializao.

    A ideia da ausncia de escrita na msica eletroacstica pode ser complementada por meio das premissas de Ebbeke (1990). Se de fato a substituio de uma msica notada pela sua gravao evi-dencia a passagem de uma cultura escrita para uma transmisso oral, poderamos concluir que a anlise e a reflexo a respeito desse gnero praticamente inexistente, porque a escrita tambm no integraria esse contexto. No entanto, o autor afirma:

    O julgamento [...] pelo qual a msica eletroacstica, no mbito em que no toma por base, na maior parte das vezes, nenhuma nota-o, e no mbito em que a documentao da gnese tcnica porque ela claramente representa um fato musical no pertinente, o julga-mento segundo o qual a msica eletroacstica, por todas essas razes, inacessvel leitura e anlise (significando portanto que no pode ser tida como obra de arte musical), [liga-se] definitivamente a uma justificativa de um sistema de preconceitos. (Ebbeke, 1990, p.76)

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    Embora no exista uma escrita nos moldes convencionais ou seja, uma partitura, de carter simblico e abstrato , h de fato um tipo de escrita na msica eletroacstica de cunho mais icnico, que determina outros fatores no contemplados na notao tradicional. Avana-se nesse terreno no sentido de possibilitar, por exemplo, o tratamento e a visualizao do espectro sonoro, da morfologia do som e da prpria estruturao snica da obra. Ocorre, portanto, um deslocamento de suporte fsico, no a sua ausncia: se a msica ins-trumental trabalha com o papel, os suportes hodiernos necessrios notao da msica eletroacstica so, em grande parte, embora no exclusivamente, os programas de computador.

    Alm disso, como cada universo musical trabalha a composi-o de um modo bastante particular, natural que as maneiras de registrar as composies difiram substancialmente. Ao adentrar nessa questo, no muito difcil deparar com antigos preconceitos acoplados ciso entre msica instrumental e eletroacstica, no que se refere ao pensamento dos prprios compositores, ligados a uma ou outra vertente. Trata-se de uma diviso em dois grupos: o dos compositores que atuam no universo instrumental/vocal e o dos eletroacsticos. O primeiro grupo considera os compositores eletroacsticos bricoleurs, incapazes de lidar com a escritura ins-trumental, ao passo que os ltimos consideram os primeiros presos academia e ao conservadorismo (cf. Manoury, 1998b). Nos pri-mrdios da msica eletroacstica, tais vises preconceituosas eram mais evidentes, mas os grandes compositores do gnero provaram ser perfeitamente possvel trabalhar com ambos os universos e a mesma mestria. Um bom exemplo Kontakte5 (1958-60), de Karl-heinz Stockhausen, para pianista, percussionista e sons eletrnicos, obra que examinaremos adiante.6

    5 A respeito dessa obra, ver Pousseur (1966, p.166 ss.) e Menezes (1996, p.41). 6 Manoury (1998b) observa que Kontakte pode ser considerado o primeiro

    exemplo dos confrontos possveis entre o universo instrumental e o eletroacs-tico, quando em ambos aplicada uma mesma tica formal.

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    Independentemente da discusso acerca da existncia da escrita no contexto da msica eletroacstica, no resta dvida de que se faz presente a noo de escritura, entendida como elaborao, tanto no mbito instrumental quanto no eletroacstico.

    A querela dos tempos: analisando o embate

    Os antagonismos no mbito da msica eletroacstica mista vo alm daqueles que circundam o par escrita/escritura. H uma dico-tomia causada pela prpria diversidade de tcnicas para a produo dos sons eletroacsticos, denominada por Manoury (1998b) de querela dos tempos. Este termo refere-se s divergncias existentes na atualidade com relao ao uso das tcnicas em tempo real ou em tempo diferido. Esta discusso, numa esfera compositiva, adquire propores diversas daquelas que abordamos anteriormente, rela-tivas liberdade interpretativa do instrumentista ou falta dela no uso de um ou outro meio de difuso eletroacstica.

    Diante disso, fundamental ressaltar algumas caractersticas bastante particulares a cada uma das tcnicas de difuso dos sons eletroacsticos. Desde que surgiram, os sons eletroacsticos em tempo diferido sofreram poucas mudanas. Apenas foi trocado o seu suporte inicial o disco e, logo depois, a fita magntica pelos computadores ou outras mdias mveis, tais como os compact discs (CDs) e os digital video discs (DVDs). O surgimento da msica mista foi praticamente concomitante ao da prpria msica acus-mtica, e os sons eletroacsticos gravados em fita magntica cons-tituram um tipo de tecnologia que sofreu poucas alteraes desde a dcada de 1950 (ver Bennett, 1990, p.32 ss.). O suporte pode ter sido modificado, mas o princpio preservou-se desde a sua gnese: os sons so gravados em momento anterior performance da obra.

    As tcnicas em tempo real, por sua vez, surgiram um pouco mais tarde e aprimoraram-se com o passar dos anos. Devido aos progressos tcnicos na rea da sntese sonora, sempre foram benefi-ciadas com a evoluo das pesquisas tecnolgicas. Desse modo, no

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    incomum detectar certas posturas sectrias, comumente adotadas pelos defensores dos sons em tempo real, que atribuem eletroa-cstica em tempo diferido o estigma de antiga ou ultrapassada. Ao mesmo tempo, os avanos tecnolgicos na rea da eletroacstica em tempo real so vistos como suprfluos por aqueles que defendem a eletroacstica em tempo diferido, pois desviariam a ateno do compositor do prprio embate com a obra para uma espcie de deslumbramento tecnolgico.

    Apesar de as tcnicas em tempo real propiciarem aos instru-mentistas maior liberdade do ponto de vista do tempo cronolgico, no que se refere elaborao compositiva ou seja, escritura geravam, at pouco tempo atrs, uma perda inevitvel, pois no possibilitavam uma profunda elaborao da morfologia sonora.

    Se a msica live se distingue por uma maior flexibilidade, em contrapartida ela no atenta, a no ser em raros casos, para a com-plexidade musical, como ocorre em grande parte das obras para fita magntica [eletroacstica em tempo diferido]. (Bennett, 1990, p.35)

    Na atualidade, porm, programas tais como o Max/MSP alar-gam de modo considervel o mbito das intervenes em tempo real, de forma que essas limitaes j no se fazem necessariamente presentes. Fazemos tal afirmao porque, em uma obra mista com sons em tempo real, os sons eletroacsticos derivaro, em grande parte, dos sons produzidos pelos prprios instrumentos musicais tambm envolvidos na esfera compositiva, o que resulta, inevita-velmente, em semelhanas morfolgicas entre os dois universos.

    Assim, devido ao fato de tais transformaes serem quase simul-tneas performance instrumental ainda que o som eletroacstico no seja literalmente produzido em tempo real, mas com um atra-so nfimo, imperceptvel ao ouvinte , mais difcil realizar uma elaborao dos sons eletroacsticos que revele uma independncia espectral em relao s fontes instrumentais. Portanto, enquanto os sons eletroacsticos em tempo real podem trazer certo confor-

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    to e flexibilidade temporal ao instrumentista, do ponto de vista compositivo pode existir prejuzo, at certo ponto, no que tange elaborao snica da obra. A esse respeito, Menezes afirma:

    A crtica de cunho bouleziano [...] de que o tempo fixado em suporte no pode se tornar orgnico numa interao bem-suce-dida no faz nenhum sentido, porque uma interao efetiva no depender do fato de os sons eletroacsticos serem fixados ou no, mas sim da elaborao de tal interao no mbito compositivo, de acordo com as possibilidades morfolgicas. (Menezes, 2002b, p.306, grifos do autor)

    Com base nessas afirmaes, consideramos que o aspecto deter-minante da flexibilidade de uma obra eletroacstica mista no o tipo de tcnica utilizada na construo dos sons no instrumentais, mas sim a forma como o compositor concatenar suas ideias e orga-nizar os eventos musicais da sua composio.

    Uma das estratgias compositivas para que isso ocorra reside no conceito de fuso e contraste entre estruturas eletroacsticas e instrumentais.7 Por esse conceito, a fuso consiste na necessida-de de determinadas transferncias localizadas de caractersticas espectrais de um universo sonoro para outro. Para tanto, mais interessante que o compositor trabalhe com sons provenientes dos prprios instrumentos musicais utilizados na composio, ao invs de eleger outras fontes. Isso resultar em uma identidade sonora entre ambas as esferas e, como consequncia, a resultante ser a fuso das partes instrumental e eletroacstica. O contraste, como o prprio termo sugere, consiste na diferena absoluta entre os uni-versos sonoros. Sua presena se faz necessria porque justamente por meio da percepo do contraste que o ouvinte poder apreen-der de modo apropriado a fuso entre os universos instrumental e eletroacstico.

    7 Ver Menezes (1996, p.13-20; 2002b, p.305-11), cujos textos tratam exata-mente dessa questo.

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    A partir disso, fica evidente que na msica eletroacstica em tempo real sempre existiu, at certo ponto, a preponderncia inevi-tvel da fuso, pois os sons eletroacsticos derivam diretamente das fontes instrumentais. Embora isso seja interessante, por projetar a emisso instrumental no espao acstico, enriquecendo a sonorida-de dos instrumentos e ampliando o som, do ponto de vista audi-tivo o uso exclusivo desse recurso acaba limitando as possibilidades de elaborao sonora de que um compositor poderia lanar mo em uma obra mista.

    Por outro lado, reconhecida a importncia do contraste entre a parte eletroacstica e a instrumental, uma obra mista no pode conter apenas momentos de completa distino entre esses univer-sos. O compositor poderia trabalhar as infinitas possibilidades de explorao sonora existentes entre os dois extremos considerados nesse contexto e, para que ele atue dentro desse prisma, torna-se inevitvel pr-elaborar o material eletroacstico que far parte da obra. As ideias de Bennett vm ao encontro de tais premissas e re-foram a questo da querela dos tempos:

    Se certo que a msica para fita magntica oferece sonoridades e sensaes diferentes [referindo-se aqui questo da inflexibili-dade temporal que esse suporte pode conferir ao instrumentista], esta diferena no se constitui como um argumento favorvel superioridade da msica live [...]. Se a msica live se distingue por possuir maior flexibilidade, ela no atenta, em contrapartida, a no ser em raros casos, para a complexidade, assim como ocorre em muitas obras para fita magntica. (Bennett, 1990, p.34 ss.)

    Alm disso, ao realizar uma anlise histrica da msica eletroa-cstica, percebemos que, desde os seus primrdios, tratou-se de um gnero cujo momento de criao das obras uma experincia sensorial para o compositor, pois ele trabalha com o som em si, dedicando uma ateno refinada para a prpria estruturao dos sons. E um controle desse tipo dificilmente aplicvel no contexto da eletrnica em tempo real, porque a elaborao minuciosa da

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    morfologia sonora s possvel mediante um trabalho anterior execuo da obra, em estdio. Ou seja, o argumento que defende a continuidade histrica oferecida pela eletrnica em tempo real j que nela a figura do intrprete volta a ter destaque rebatido com outro de cunho histrico: a essncia primordial do gnero eletroa-cstico consiste no trabalho rigoroso em estdio, em fase anterior performance da obra, de modo a garantir aos sons compositivos uma elaborao rica do ponto de vista espectromorfolgico.

    At pouco tempo atrs, o compositor eletroacstico podia en-contrar-se diante de um impasse: privilegiar o intrprete e fazer uso dos recursos em tempo real, relegando ao segundo plano a ela-borao compositiva, ou primar pela continuidade histrica que a msica em tempo diferido proporciona, no atentando para os avanos tecnolgicos no mbito da sntese e do tratamento sonoros em tempo real. Esse o dilema que os adeptos da querela dos tem-pos propem.

    Na poca atual, existem caminhos alternativos para o compo-sitor, vias de trabalho que transitam pelas duas esferas. possvel aliar, por exemplo, uma meticulosa elaborao compositiva, reali-zada em estdio, com a ateno s necessidades dos instrumentistas, sem adotar uma ou outra postura sectria. Isso pode ser obtido com a utilizao do reconhecimento de partitura (Manoury, 1998b), tal como nos oferecido hoje pelo programa Max/MSP. Embora seja comumente chamado de seguidor de partitura (partition suivi), no se trata de um seguidor propriamente dito,8 mas sim de um siste-ma que detecta os pontos nos quais devero ser acionados certos trechos musicais eletroacsticos elaborados em tempo real, a partir de determinadas aes do instrumentista, o que Manoury (1998b) denomina partituras virtuais (partitions virtuelles). Assim,

    o reconhecimento de uma partitura executada por um intrprete se limita geralmente a marcar pontos de referncia dentro de uma

    8 Manoury (1998) tambm afirma que o termo seguidor de partitura impr-prio para esse dispositivo.

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    sucesso cronolgica de eventos que admite uma certa tolerncia ao erro. Espera-se um evento anteriormente memorizado e o proces-sador deve reconhec-lo instantaneamente. A partitura instrumen-tal anteriormente codificada, e o processador compara os eventos detectados com aqueles que so cronologicamente supostos [...], o que feito por meio de uma janela de anlise que no trabalha com o reconhecimento de eventos isolados, mas sim com uma cole-o de eventos. (Manoury, 1998b, p.75, traduo nossa)

    Portanto, a partir desse recurso seria possvel promover um entrelaamento das tcnicas em tempo diferido e em tempo real. Estruturas anteriormente elaboradas em estdio, que possuem um momento exato para serem disparadas no discurso temporal de uma obra, seriam acionadas a partir das aes do instrumentista, o qual, por sua vez, teria maior conforto, do ponto de vista cronolgico.

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  • 3 A ESFERA COMPOSITIVA NA MSICA

    ELETROACSTICA MISTA

    O conceito de morfologia da interao: sua aplicao na composio eletroacstica

    A questo da inflexibilidade temporal assunto recorrente ao tratar-se a msica mista com sons eletroacsticos em tempo diferi-do. Nesse contexto, em que uma das partes musicais refere-se aos sons eletroacsticos pr-gravados, muitos instrumentistas sentem esse ambiente de performance desconfortvel e dotado de liberdade interpretativa ilusria, visto que nele impossvel reproduzir as-pectos da interao humana, como o contato visual e a respirao em sincronia.1

    Embora esses aspectos elementares da interao humana de fato inexistam, discordamos que haja apenas uma liberdade ilusria na interao com sons em tempo diferido. Os desafios propostos pela prtica da msica eletroacstica com sons prefixados em suporte tecnolgico no diferem daqueles comumente enfrentados pelos instrumentistas na prtica da msica tradicional. Por isso, uma

    1 McNutt (2003) afirma que a performance da msica eletroacstica uma espcie de msica de cmara em que alguns integrantes do conjunto so invi-sveis (p.299).

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    abordagem a respeito da eletroacstica mista no pode circunscre-ver-se apenas ao referido assunto.

    Um aspecto fundamental, que vai de encontro ao argumento da falta de flexibilidade interpretativa na msica mista em tempo diferido, que a efetiva interao, nesse contexto musical, no de-pende essencialmente do tipo de difuso utilizado na obra, mas da maneira como a composio elaborada. Ou seja, poderamos utilizar como escopo um atributo derivado da esfera compositiva, muito mais ligado escritura processual da prpria composio do que consequncia de um fator eminentemente tcnico (ver Mene-zes, 2002b, p.306).

    Assim, a flexibilidade que deve haver em uma composio eletroacstica mista relaciona-se maneira como o compositor or-ganiza os eventos musicais e como procede para construir o dis-curso da obra. Interao e flexibilidade, portanto, so questes essencialmente ligadas ao ato criador de uma obra eletroacstica mista, tornando-se responsabilidade exclusiva do compositor.

    Ao tratar o aspecto da escritura momento em que a elaborao compositiva de uma obra torna-se o foco principal de ateno , relevante a ideia da fuso e do contraste entre as partes instrumental e eletroacstica, tal como abordada por Flo Menezes (1999, 2002b). As discusses a esse respeito so praticamente inexistentes, embora os fenmenos da fuso e do contraste constituam o fundamento da prpria msica eletroacstica mista, isto porque, desde os seus primrdios, ela pressupe uma dialtica entre parte instrumental e eletrnica. O prprio ttulo da obra de Maderna, Musica su due dimensioni, evidencia que se trata de duas dimenses musicais cla-ramente distintas.

    Por outro lado, promover uma relao entre os dois universos musicais poca da criao inaugural de Maderna possua outros intuitos: enriquecer a escritura instrumental, no que se refere aos timbres, e reaver ao mbito da eletrnica a presena do intrprete, suprimida at ento. Dentro desse panorama, no qual a busca por correlaes entre os dois modos de produo sonora tornou-se evi-dente, a fuso encontra-se estreitamente relacionada aos anseios

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    dessa primeira gerao de compositores, pois consistia na transio entre as escrituras instrumental e eletroacstica, um modo de criar caractersticas sonoras comuns a ambos os universos (Menezes, 1999). No que tange ao contraste, ele tambm era visado pelos compositores em suas estratgias de criao e tambm se fazia pre-sente nesse perodo inicial.

    Em vista disso, se partirmos do pressuposto de que fuso e con-traste constituem aspectos integrantes de uma obra mista, encon-traremos o carter inovador da abordagem de Menezes (1999) no conceito de morfologia da interao, que considera as possibilida-des oferecidas pelos estgios de transio entre esses dois extremos. Desse modo, embora para Menezes o princpio de oposio binria entre ambos seja fundamental em uma obra desse gnero, ele con-sidera imprescindvel a existncia de pontos intermedirios entre a fuso e o contraste, para que assim se efetive uma elaborao compositiva satisfatria. A partir disso, possvel afirmar que tais aspectos so intrnsecos ao prprio gnero eletroacstico misto e, portanto, remetem antes estrutura de uma obra que ao tipo de emisso nela utilizado (ibid.).

    Os diversos estgios de transio entre a fuso e o contraste podem ser apreciados em Profils cartels (1988), obra de Menezes para piano e sons eletroacsticos quadrifnicos (em tempo dife-rido). Do ponto de vista da elaborao compositiva, os alicerces dessa obra so fruto das elucubraes do compositor: do ponto de vista formal, tem-se uma composio bipartite, em que a segunda parte consiste na forma-pronncia2 da palavra francesa solidarit (solidariedade). Com relao s tcnicas harmnicas utilizadas, h a associao dos mdulos cclicos,3 possveis no contexto do sistema

    2 Criadas na dcada de 1980 e desde ento desenvolvidas por Flo Menezes (1996), as formas-pronncia tm as constituies fonolgicas das palavras como base, consistindo, portanto, na inteno musical de transpor ao tempo de uma composio ou seja, sua forma a forma mesma dos fenmenos fonticos (p.215, grifo do autor).

    3 Menezes (2002a) define mdulo cclico como um campo intervalar cclico e expansivo, derivado de uma estrutura frequencial de base estrutural dos

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    temperado, s projees proporcionais,4 realizveis na esfera do sis-tema no temperado e aplicadas, portanto, na parte eletroacstica. Percebemos a um entrelaamento de tcnicas que personifica o prprio carter contrastante e ao mesmo tempo solidrio entre o universo sonoro instrumental e o eletroacstico, mesmo que essa personificao ocorra apenas de modo simblico.

    Nesse contexto, por meio da morfologia da interao que o compositor obtm ferramentas para construir um discurso musical consistente, explorando as possibilidades intermedirias entre a fuso e o contraste, ainda que sua formulao terica tenha ocor-rido em poca posterior da concepo de Profils cartels.5 Me-nezes (2002b) prope nessa teorizao uma taxonomia constituda por dez estgios, nos quais os universos sonoros podem apresentar maior similaridade ou distino espectral, de acordo com o extremo do qual se encontram mais prximos. Se mais avizinhados da fuso, certamente haver a maior semelhana; se o resultado consistir essencialmente em uma distino espectral entre eletrnica e ins-

    momentos constituintes da forma musical, designada por entidade harmnica. [...] Desejou-se, pois, levar s ltimas consequncias a estruturao mesma de tais entidades, projetando para alm e a partir de seus limites extremos sua prpria estrutura interna, resultando da um nmero limitado de transposies da entidade sobre si mesma [...]. Aps um nmero determinado de transpo-sies, recai-se necessariamente nas mesmas notas originrias da entidade. Tem lugar, ento, um fenmeno cclico, e constitui-se assim um mdulo (com notas recorrentes) cujo nmero de transposies determinado pelo intervalo, comprimido na oitava, entre as notas extremas da entidade-de-base (p.365, grifos do autor).

    4 As projees proporcionais so um mtodo de manipulao intervalar que [permite] transpor, no espao harmnico, as variaes de dimenso per-ceptiva tpica das operaes efetuadas sobre a escala temporal, quais sejam: dilataes e compresses de estruturas intervalares. [...] A nova tcnica contra-por-se-ia, sob este aspecto, aos mdulos, j que estes implicam nica e neces-sariamente ampliao, ou seja, expanso do campo harmnico da entidade originria (Menezes, 1999, p.86, grifos do autor).

    5 A obra na qual se baseia Menezes para a elaborao terica relativa fuso e ao contraste entre os universos instrumental e eletroacstico Atlas folisipelis (1996-97), para obos, percusses de peles, sons eletroacsticos quadrifnicos e eletrnica em tempo real ad libitum.

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    trumentos, trata-se de estgio mais prximo do contraste (ibid.). Vejamos esse amplo desvelar de combinaes espectrais a seguir, em Profils cartels.

    Profils cartels e a morfologia da interao

    Observemos o quadro a seguir.

    Quadro 1 A morfologia da interao (Menezes, 2002b)6

    6 Extrado de Menezes (2006), p. 398.

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    De acordo com Menezes, partindo-se do extremo da fuso, que pode ocorrer tanto por meio da virtualizao o extremo dessa ta-xonomia, no qual h uma simulao eletroacstica dos sons instru-mentais quanto atravs da similaridade textural (Exemplo 1) no qual as caractersticas espectrais semelhantes da parte instrumental e eletroacstica dificultam a distino auditiva de ambos os uni-versos , o estgio que se encontra mais prximo a transferncia no reflexiva. Neste caso, h a dissoluo do som instrumental pela eletroacstica, que projeta, por sua vez, aquilo que foi exe-cutado pelo instrumentista. No Exemplo 2 a seguir o brevssimo momento [ l ]7 contido na segunda parte da obra, com apenas nove segundos de durao , o acorde arpejado da parte do piano ab-sorvido pelos sons eletrnicos, que conservam as caractersticas enunciadas pelo instrumentista.

    Exemplo 1 Fuso por meio da similaridade textural edies flopan (www.flomenezes.mus.br)

    7 A forma-pronncia de Profils cartels calcada na palavra solidarit. Cada um dos denominados momentos corresponde explorao de um dos fonemas dessa palavra, que encontra em forma dilatada sua correspondncia textural e temporal na forma-pronncia (Menezes, 1996, p.218).

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    Exemplo 2 Transferncia no reflexiva edies flopan (www.flomenezes.mus.br)

    Um pouco mais distante do extremo da fuso est a interfern-cia convergente, estgio em que o universo instrumental realiza determinadas intervenes na parte eletroacstica. No entanto, inexiste o contraste absoluto entre tais universos sonoros, o que pode ser verificado no Exemplo 3.

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    Exemplo 3 Interferncia convergente edies flopan (www.flomenezes.mus.br)

    Dentro dessa taxonomia, observamos tambm dois estgios que equilibram os extremos desse panorama: a transferncia reflexiva, na qual um dos universos surge a partir do outro, interage com aquele que o originou e integra-o e anula-o pouco a pouco, cuja ocorrncia pode ser observada no momento [ d ] de Profils cartels (Exemplo 4);

    Exemplo 4 Transferncia reflexiva edies flopan (www.flomenezes.mus.br)

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    e a contaminao direcional da textura, inicialmente contrastante, mas que resulta em fuso, devido metamorfose de uma das esferas sonoras. No Exemplo 5 (no incio da seo B da primeira parte dessa obra), notamos que a contaminao direcional engloba tambm ou-tros estgios no processo de metamorfose espectral, tais como a inter-ferncia no convergente que ser tratada adiante e a transferncia reflexiva, at resultar na fuso entre as partes.

    Exemplo 5 Contaminao direcional da textura edies flopan (www.flomenezes.mus.br)

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    Nos exemplos 6 e 7, encontramos a interferncia potencializa-dora, que permite potencializar os sons instrumentais no espao por meio dos recursos eletroacsticos, contudo sem constituir con-traste ou fuso propriamente ditos.

    Exemplo 6 Interferncia potencializadora edies flopan (www.flomenezes.mus.br)

    Exemplo 7 Interferncia potencializadora edies flopan (www.flomenezes.mus.br)

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    Por fim, h a interferncia no convergente, o estgio mais pr-ximo do contraste, que ocorre no momento [ o ] de Profils cartels (Exemplo 8; pode ser observada tambm no Exemplo 4).

    Exemplo 8 Interferncia no convergente edies flopan (www.flomenezes.mus.br)

    O estgio anterior caracteriza-se por apresentar uma distino relativa, na qual um universo sonoro acentuado pelo outro, sem que haja fuso entre ambos ou diluio de um no outro.

    De modo semelhante ao extremo da fuso, o contraste tambm ocorre de duas maneiras diferentes: por meio da distino textu-ral ou do silncio estrutural, expresses mximas das diferenas entre as partes instrumental e eletroacstica. A distino entre ambas pode ser facilmente detectada. No caso do contraste por meio da distino textural, os dois universos esto presentes e em total divergncia (Exemplo 9), ao passo que, no segundo caso, um dos nveis no interage com o outro, permanecendo em silncio (Exemplo 10).

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    Exemplo 9 Contraste por meio da distino textural edies flopan (www.flomenezes.mus.br)

    Exemplo 10 Contraste por meio do silncio estrutural edies flopan (www.flomenezes.mus.br)

    A partir dessa anlise, tornam-se evidentes as infinitas possi-bilidades no que se refere interao, ao considerarmos o contexto da msica mista com sons eletroacsticos em tempo diferido. Nela, a fuso, o contraste e todas as variantes abrangidas entre ambos os

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    extremos imbricam-se no mesmo discurso, auxiliando a estrutura-o da obra e garantindo que as partes instrumental e eletroacstica no sejam completamente apartadas. A questo da flexibilidade na organizao estrutural fica ainda mais clara nesta descrio, feita por Menezes, de um trecho de Profils cartels.

    Enquanto a fita expande e desacelera gradualmente seus perfis harmnicos a partir de uma subdiviso em 43 intervalos no interior de uma quarta central, o piano parte, com o mesmo perfil, de sua mxima extenso, comprimindo-o e acelerando-o paulatinamente em direo ao d sustenido central. Exatamente no meio desse duplo percurso, tem-se a coincidncia absoluta entre ambos os instrumentos (piano e fita) [...]. Aps a coincidncia, a discre-pncia entre os dois universos acstico e eletrnico torna-se latente, mas a ltima nota do piano ser tambm o ltimo som a sobrar na fita, varrendo o espao em direo ao piano, e supri-mindo definitivamente toda e qualquer oposio [ver Exemplo 11]. (Menezes, 1996, p.218-21)

    Exemplo 11 Profils cartels, momento [ r ] edies flopan (www.flomenezes.mus.br)

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    Em vista disso, uma abordagem que releve a morfologia da inte-rao mostra-se pertinente no contexto da eletroacstica mista em tempo diferido.

    Kontakte, de Karlheinz Stockhausen: o elemento da fuso na eletroacstica em tempo diferido

    Na defesa da inflexibilidade dos sons em tempo diferido, ponto de vista de alguns instrumentistas, e levando em conta que fuso e contraste so as bases da interao entre meios instrumentais e eletroacsticos, percebemos que Kontakte (1958-60), composio de Karlheinz Stockhausen para pianista, percussionista e sons ele-trnicos, constitui uma contradio. Essa obra revela a factibilidade de elaborao de um discurso musical flexvel com o uso de sons prefixados em suporte.

    De notvel relevncia histrica, Kontakte mostra com clare-za a limitao da ideia de falta de flexibilidade propiciada pelos sons eletroacsticos em tempo diferido. Em um primeiro momento destinada eletrnica solo, na verso mista dessa obra, concebida posteriormente, foi feito o acrscimo das partes instrumentais para percusso e piano parte eletrnica. Isso mostra que perfeitamen-te possvel executar a primeira verso de Kontakte sem a perfor-mance instrumental. Menezes comenta:

    Kontakte, inicialmente para tape solo (ainda que sua concep-o original tenha nascido como obra eletroacstica mista), poste-riormente vertida para piano, percusso e tape, sem nenhuma alterao com relao ao tape original, que todavia conserva sua validade como msica eletroacstica pura. (Menezes, 1999, p.17, grifos nossos)

    Se imaginarmos um contexto considerando que os sons em tempo diferido aprisionam o intrprete e tornam inflexveis tanto

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    o discurso musical quanto o tempo, a obra em questo deve com-provar tais aspectos. No entanto, no o que ocorre em Kontakte: ao levar s ltimas consequncias o continuum de macrotempo e microtempo musicais (Menezes, 1996) em um perodo em que os compositores ligados vertente eletrnica comeavam a aban-donar o conceito de total controle do som por meio do serialismo, Stockhausen desenvolveu uma estrutura compositiva em que a impresso perceptiva, para o ouvinte, de extrema flexibilidade, a despeito do rigor estrutural no que tange aos elementos utilizados.

    Em conferncia ministrada em 2001 na Universidade de Es-tocolmo, ao se referir especificamente ao processo compositivo de Kontakte, Stockhausen (2001) relata que, aps Studie I e Studie II, que considera experincias compositivas de cunho muito abstra-to, sentiu a necessidade de seguir uma orientao. Nesse caso, essa orientao dizia respeito necessidade de buscar um novo princpio organizador das obras, dada a insatisfao com os processos autom-ticos oriundos do pensamento serial para a estruturao do som, cujo resultado foi o incio da busca da superao do antagonismo entre meios intuitivos e intelectuais. Esse novo objetivo, que se instaurou no s nos ideais de Stockhausen, mas tambm nos de outros com-positores ligados corrente eletrnica, justificado por Pousseur:

    Se a apreenso sinttica e intuitiva das coisas a condio pri-meira de todas as operaes ulteriores, entre as quais, das racionais (e com efeito podemos dizer que, sendo operaes, formaes, elas so sempre racionais, num ou noutro sentido), ento no somente possvel mas absolutamente necessrio trabalhar com critrios qualitativos considerados em todos os nveis. (Pousseur, 1966, p.168)

    Ou seja, era evidente, a partir daquele momento, a necessidade de considerar tambm os elementos perceptivos de uma composi-o musical em outros termos, a j mencionada procura do equi-lbrio entre o intuitivo e o racional dentro da esfera compositiva (Pousseur, 1966).

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    Nesse novo contexto, no qual eram rompidos alguns paradig-mas iniciais da msica eletrnica, Stockhausen analisou as duas fases da seguinte forma:

    O modo de compor, a produo e o mtodo de elaborao do som pressupunham [...] a definio de suas propriedades singula-res [referindo-se aqui aplicao do mtodo serial para a elaborao do som], enquanto a nossa percepo apreende um determinado evento sonoro como um fenmeno unitrio [...]. (Stockhausen, 1961, p.142)

    Em vista da necessidade de buscar um princpio organizador que abrangesse tais constataes, Stockhausen (1961) formulou sua concepo de tempo musical unitrio, pela qual as diferentes cate-gorias da percepo, isto , as que dizem respeito cor, harmonia, e melodia, mtrica e rtmica, dinmica, forma, correspondam a distintos campos parciais desse tempo unitrio (p.144, grifos do autor). O compositor acreditava que os parmetros sonoros a altura, o timbre, a intensidade e a durao no deveriam ser vistos como dissociados e independentes uns dos outros, mas sim como constituintes do prprio tempo musical, unos, j que a percepo humana capta-os como um todo. Assim, nessa nova conjuntura, Stockhausen definiu que uma composio consiste na organizao temporal de eventos sonoros, os quais so, por sua vez, uma orde-nao temporal de impulsos sonoros.

    Se Stockhausen trabalhou nesse sentido com relao microfor-ma, do ponto de vista da macroforma ou seja, da estrutura global da composio , experimentou em Kontakte o que denominou de forma momento, na qual cada seo (ou momento) possui caracte-rsticas prprias e independente daquela que a precedeu ou da que suceder a ela.8

    8 Segundo Bosseur (1990), essa concatenao que ocorre na forma momento favoreceria uma compreenso do tempo musical como existncia imanente no tempo em que se manifesta (p.70).

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    O compositor formulou uma espcie de complementao s suas prprias ideias no ano de 1953, ao escrever o texto Da situao do mtier: composio do som (Klangkomposition). Nessa poca, a aplicao da tcnica serial para a estruturao do som da qual ele mesmo havia sido pioneiro, em Studie I ainda era vigente. Ao abordar a questo do processo compositivo e da organizao dos elementos musicais no mbito da eletrnica, em dado momento Stockhausen questionou a ideia de a msica ser uma ordem deter-minada de sons, cujo sentido consiste nica e exclusivamente no fato de que essa ordem seja percebida com um certo interesse, estabele-cendo a seguinte comparao:

    Perceber com interesse quer dizer aqui: que se realize no ouvinte a satisfao da totalidade de sua capacidade de excita-o e recordao consciente e inconsciente, [...] que no tenham lugar nem a saturao ou o cansao, nem a monotonia ou a ansie-dade. [...] Assim como se poderia preparar com maior ou menor habilidade uma refeio para uma pessoa sendo ela estranha ou no medindo-se adequadamente a quantidade e a qualidade das opes de escolha. Se o preparo for to excepcional que se faa esquecer de qualquer outra coisa, o prazer com relao forma e combinao dos pratos poderia proporcionar uma satisfao muito maior do que a mera sensao de saciedade. (Stockhausen, 1996, p.60)

    Stockhausen (1996) afirmou que, em Kontakte, procurou re-duzir todos os parmetros a um denominador comum, partindo da premissa de que as diferenas da percepo acstica so todas no fundo reconduzveis a diferenas nas estruturas temporais das vibraes (p.142, grifos do autor). No perodo em que o ideal de serializao do timbre tinha fora, o compositor declarou:

    Torna-se, portanto, intil discutir sobre qual seria a hora certa para se poder dar margens e livre curso fantasia. diverso

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    para cada compositor o momento e o lugar onde a forma austera da disciplina serial, que por vezes causa [...] a impresso de um certo automatismo, comea a se fragilizar. (Stockhausen 1953, p.61, grifos do autor)

    Coincidentemente, foi isso o que ocorreu nas suas prprias composies, inclusive em Kontakte. Nesta obra, o foco compositi-vo sofreu uma ligeira modificao: a partir do princpio da unidade do tempo musical, ele buscou criar sons eletrnicos que se relacio-nassem, do ponto de vista auditivo, s famlias de instrumentos j conhecidos. Ao proceder dessa maneira, buscou estabelecer contato entre o universo eletrnico e o acstico. A respeito dessa organizao adotada por Stockhausen em Kontakte, Pousseur escreveu:

    Em vez de continuar a organizar sua estrutura de acordo com pontos de vista puramente quantitativos e mtricos, [...] ele se per-guntava a que tipo de material vibratrio tais elementos poderiam ser mentalmente associados: madeira, metal ou pele. Dessa forma, disps todos os semelhantes, segundo sua maior ou menor similari-dade com tais tipos de base, e comps em seguida sua pea seguindo essa palheta qualitativamente pr-organizada. (Entretanto, no preciso que se esquea que seu conhecimento acerca das estruturas internas tinha certamente contribudo a tal organizao!) A fim de fazer com que essa referncia fosse to funcional quanto poss-vel, acrescentou, para as execues de Kontakte em concerto, dois instrumentistas tocando diferentes instrumentos de percusso de madeira, de metal e de pele, compreendendo a um piano. (Pous-seur, 1966, p.168)

    Tal modo de proceder teve como resultado uma obra em que as partes eletrnica e instrumental soam como um todo amalgamado, no qual so evidentes as inter-relaes de ambas as esferas sonoras. Alm disso, ao realizarmos uma escuta atenta da obra, percebemos

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    com clareza que o uso do argumento da inflexibilidade do tempo nas composies com sons eletroacsticos em tempo diferido por parte da comunidade eletroacstica no encontra nela nenhum apoio, pois Kontakte possui um discurso bastante fluido no que se refere ao perceptivo.

    A busca por pontos de convergncia entre os sons produzidos pelo compositor e os instrumentais tambm d a impresso de que, em muitos momentos, cada uma das partes ressalta as caracters-ticas sonoras da outra. Essa estratgia compositiva proporciona ao ouvinte a referencialidade para os sons produzidos de forma sinttica, criando uma espcie de elo perceptivo entre os universos eletrnico e acstico, os contatos (Kontakte, em alemo) que Sto-ckhausen almejava que do origem ao ttulo da pea (Menezes, 1999).

    A partir do conceito de morfologia da interao,9 podemos pres-supor que em Kontakte existam momentos de fuso e contraste entre as duas partes. Como Stockhausen opta por construir uma relao estreita entre os universos eletroacstico e instrumental, a fuso mais preponderante e, neste caso, tambm se caracteri-za pela absoluta similaridade entre a parte eletroacstica e a ins-trumental, ou, ao menos, pela semelhana considervel entre um aspecto de ambos os universos sonoros. Nesse contexto, a parte do piano que, via de regra, possui a funo de conectar ou dividir os pontos de contato entre os universos sonoros, e ela mesma que preserva, em muitos casos, certa independncia sonora com relao eletrnica, aspecto que podemos observar logo no incio da obra (Exemplo 12).

    9 Como j vimos, para Menezes (2002b), a morfologia da interao a possibi-lidade de explorar compositivamente os estgios transicionais entre fuso e contraste (p.308) em uma obra eletroacstica mista.

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    Exemplo 12 Kontakte, seo IB Stockhausen Foundation for Music, Krten, Germany (www.karlheinzstockhausen.org)

    Podemos notar que a parte instrumental caminha de um modo divergente, do ponto de vista da sincronizao dos eventos musicais. H inegvel semelhana sonora entre eletrnica e instrumentos. No entanto, a parte do piano ainda preserva certa autonomia com relao ao universo eletroacstico, ao passo que a percusso com-pletamente absorvida pelo ltimo. Na seo XIIA2 (Exemplo 13) ocorre algo semelhante.

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    Exemplo 13 Kontakte, seo XIIA2 Stockhausen Foundation for Music, Krten, Germany (www.karlheinzstockhausen.org)

    Em contrapartida, o contraste tambm se faz presente, em menor proporo, e se revela por meio do silncio estrutural entre as partes, como podemos perceber no Exemplo 14.

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    Exemplo 14 Kontakte, seo X (2032,5 a 2049,5) Stockhausen Foundation for Music, Krten, Germany (www.karlheinzstockhausen.org)

    Os estgios de transio entre fuso e contraste no so fenme-nos perceptveis nessa obra. Em certos trechos, a percusso funde-se tanto com a eletrnica quanto com o piano, mas a linha deste ltimo permanece distinta da eletrnica, embora se conecte aos sons da per-cusso. Nesses trechos, que bem poderiam funcionar como elemen-tos de transio, Stockhausen opta por uma relao d