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141 Na Belém da belle époque da borracha (1890-1910): dirigindo os olhares Geraldo Mártires Coelho O que no léxico da História Cultural ficou configurado como belle époque indica um complexo processo de relações culturais, sociais e mentais, mas tam- bém materiais e políticas, desenvolvidas no interior de um corpus reconhecido historicamente como o da cultura burguesa e da sua afirmação no interior dos quadros hegemônicos do capitalismo industrial no final do século XIX. Em nome da identidade de um tempo cujos sujeitos sociais emergiram das novas condições econômicas e sociais dominantes no mundo do capital, a belle époque implica reconhecer linguagens, gostos, atitudes, estéticas, sociabilidades que, construídos em escalas diferenciadas nos espaços hegemônicos da cultura bur- guesa, reproduziram-se, em escala planetária, também na condição das formas de ser e de agir em tempos que abrigavam o proclamado triunfo do Progresso e da sua homologia, a Civilização. 1 A mitologia da belle époque foi expressiva e enraizada o bastante para cons- truir suas representações e mundializá-las. Nesse sentido, Paris emerge, no final do século XIX, na condição de uma grande e poderosa metáfora, espaço-síntese de uma forma de vida requintada, elegante, culta e civilizada. Os mecanismos e os comportamentos da sociabilidade burguesa produziram, assim, imagens de uma Idade de Ouro da vida social, cujas vias e veias de circulação orgânica eram os boulevards de Paris. A belle époque, em última análise, edulcorou a dramática dialética da revelação e do encobrimento, da aparência e da essência, no limite em que, segundo o pensamento marxista, tudo o que era sólido se evaporava no ar na Paris fin de siècle. 2 Os valores, os códigos e os rituais da cultura da belle époque, na condição de teatro da civilização, espalharam-se, em maior ou menos escala, pelas socie- dades contemporâneas. Paris, Lisboa, Buenos Aires, São Petersburgo, Viena, 1 ORTIZ, Renato. Cultura e modernidade. 2 WEBER, Eugen. França fin de siècle.

Na Belém da belle époque da borracha (1890-1910): dirigindo os

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    Na Belm da belle poque da borracha (1890-1910): dirigindo os olhares

    Geraldo Mrtires Coelho

    O que no lxico da Histria Cultural ficou configurado como belle poque indica um complexo processo de relaes culturais, sociais e mentais, mas tam-bm materiais e polticas, desenvolvidas no interior de um corpus reconhecido historicamente como o da cultura burguesa e da sua afirmao no interior dos quadros hegemnicos do capitalismo industrial no final do sculo XIX. Em nome da identidade de um tempo cujos sujeitos sociais emergiram das novas condies econmicas e sociais dominantes no mundo do capital, a belle poque implica reconhecer linguagens, gostos, atitudes, estticas, sociabilidades que, construdos em escalas diferenciadas nos espaos hegemnicos da cultura bur-guesa, reproduziram-se, em escala planetria, tambm na condio das formas de ser e de agir em tempos que abrigavam o proclamado triunfo do Progresso e da sua homologia, a Civilizao.1

    A mitologia da belle poque foi expressiva e enraizada o bastante para cons-truir suas representaes e mundializ-las. Nesse sentido, Paris emerge, no final do sculo XIX, na condio de uma grande e poderosa metfora, espao-sntese de uma forma de vida requintada, elegante, culta e civilizada. Os mecanismos e os comportamentos da sociabilidade burguesa produziram, assim, imagens de uma Idade de Ouro da vida social, cujas vias e veias de circulao orgnica eram os boulevards de Paris. A belle poque, em ltima anlise, edulcorou a dramtica dialtica da revelao e do encobrimento, da aparncia e da essncia, no limite em que, segundo o pensamento marxista, tudo o que era slido se evaporava no ar na Paris fin de sicle.2

    Os valores, os cdigos e os rituais da cultura da belle poque, na condio de teatro da civilizao, espalharam-se, em maior ou menos escala, pelas socie-dades contemporneas. Paris, Lisboa, Buenos Aires, So Petersburgo, Viena,

    1 ORTIZ, Renato. Cultura e modernidade. 2 WEBER, Eugen. Frana fin de sicle.

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    Belm e Manaus, cidades de topografias sociais e fsicas distintas, integravam--se ao circuito mundial da cultura burguesa, na medida em que abrigavam elos da cadeia mundial do mercado. A cultura burguesa da belle poque transitava pelos mesmos canais da circulao das mercadorias, dos capitais e dos bens de produo, o que implicava bem definir o sentido da mundializao da economia capitalista e do capital simblico da cultura burguesa.

    A belle poque, entendida como manifestao da Idade de Ouro da cultura urbana da burguesia contempornea, e cujos quadros tradicionais, como visto, remetem para a Paris do final do sculo XIX e comeo do XX, sempre foi um domnio visitado pela narrativa social brasileira. As prprias transformaes ur-banas de cidades como Belm e Rio de Janeiro no mesmo perodo foram tratadas como dimenses especulares da belle poque matricial, parisiense, nas latitudes sociais e mentais do trpico brasileiro.

    A leitura da crnica de um Olavo Bilac e de um Joo do Rio, para a jovem Capital Federal vivendo a sua belle poque,3 e mais a visitao s prticas culturais de suas elites sociais como um todo,4 assim como a leitura de um Humberto de Campos5 e a de um Eustquio de Azevedo,6 para Belm do Par, revelam que seus autores acreditavam que os valores essenciais da cultura e da sociabilidade urbana e burguesa da Paris fin de sicle haviam sido transpostos para as cidades brasileiras em causa.

    O Rio de Janeiro, Belm ou ainda Manaus,7 mas no o Brasil como um todo, civilizam-se, parodiando o jornalista Figueiredo Pimentel, um dos arautos da bel-le poque e da cultura dos boulevards do Rio de Janeiro, e cuja coluna, O Bincu-lo, publicada no jornal Gazeta de Notcias, fizera-se o leme da burguesia comer-cial da Capital Federal no incio do sculo XX. E civilizar o Rio de Janeiro, como tambm ocorrera em Belm um pouco antes, era montar e manter um teatro que procurava deixar para trs o que de portugus e arcaico sobrevivia nos cenrios dessas metrpoles.

    3 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. 4 NEEDELL, Jeffrey D. Belle poque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do sculo. 5 CAMPOS, Humberto. Carvalhos e roseiras. 6 AZEVEDO, J. Eustquio. Antologia amaznica: poetas paraenses. 7 DIAS, Edinea Mascarenhas. A iluso do fausto: Manaus: 1890-1920.

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    Esse aforismo civiliza-se pretensamente histrico atravessou dcadas do pensamento social brasileiro, da mesma forma como alimentou, no pas, um forte imaginrio acerca de um progresso e de uma civilizao que aqui se es-tabeleceram na condio de universais. O natural pendor dos nossos homens de letras e de nossos artistas teria conseguido produzir, em solo cultural to diversificado, a ambincia social e mental de cidades como Paris, Viena, Lis-boa, So Petersburgo, vitrines das proclamadas, e assim cultuadas, conquistas do Progresso e da Civilizao.

    Desde os anos finais do Imprio que a europeizao e o branqueamento do Brasil, pensados como imagens e decorrncias do Progresso e da Civilizao, assumiram, por fora de uma identidade discursiva, a face visvel e relevada da nao brasileira. Compreensvel, portanto, que para as mentalidades das elites urbanas do Brasil, a belle poque coroasse o empenho histrico para a construo do pas real, cujas estruturas fundadoras encontravam-se no pas imaginrio. Da Natureza passvamos Cultura, chegvamos Histria. E Histria, nesse sentido, implicava, como antes foi referido, o Progresso e sua homologia, a Civi-lizao, cenrios materiais e materializados, mas densamente simblicos em sua dimenso e representao discursiva, onde atuava e construa a sua identidade o novo homem civil.

    Mais recentemente, nos domnios da Histria Social, da Histria Cultural e da Literatura, a belle poque brasileira, suas linguagens simblicas e suas re-presentaes sociais, como anteriormente salientado, tm sido objeto de uma nova leitura. Tanto em termos do Rio de Janeiro como de Belm e de Manaus, cenrios referenciais do civilizar-se brasileiro na passagem do sculo XIX para o XX, a belle poque passa a domnios outros do pensamento social. Essa pas-sagem, claro est, processa-se em vrios planos, na medida em que o universo visitado abriga campos formalmente diferenciados da sua orgnica, ainda que, de um modo ou de outro, digam respeito s formas e representaes com que o capitalismo industrial e a cultura burguesa mundializaram-se.8 No caso da Amaznia, revisitar a belle poque das grandes capitais regionais implica, em ltima anlise, mergulhar em domnios da histria regional por muito tempo encobertos pela prpria fcies do seu discurso fundador. Somente pelas vias de

    8 ORTIZ, Renato. Mundializao e cultura.

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    um outro discurso, o da problematizao da genealogia narrativa da belle poque amaznica, ser possvel manter em aberto o passado recente da sociedade e da cultura regionais.

    * * *

    Numa das mais conhecidas passagens do Manifesto Comunista de 1848, Marx e Engels, a propsito do poder de subverso da economia capitalista, e de modo a realar a dissoluo das bases materiais e mentais da tradicional sociedade euro-peia, diziam que, diante do avano do modo de produo do capitalismo indus-trial e das novas relaes sociais de produo, tudo o que era slido se evapora no ar.9 A definio da era do capital industrial, do capital financeiro, significava, tambm, diria Eric Hobsbawm, a construo de uma nova era, mundializada enquanto poder e cultura, a era dos imprios.10 No lxico histrico, imprio im-plica o sentido de mundializao, tomando-se os exemplos clssicos do imprio macednico e do imprio romano, mundializaes do poder material e do poder cultural da Macednia e de Roma na Antiguidade. Ainda na Idade Moderna, a expanso ultramarina ibrica produziu outra leva de mundializao do poder material do mercantilismo e do poder cultural das sociedades luso-hispnicas da Europa, processo de hegemonia, de mediao e de sntese desenvolvido na longa durao entre as culturas envolvidas na sua historicidade.11

    No caso da mundializao dos processos inerentes ao modo de produo ca-pitalista industrial fontes de matrias-primas, mercados, mo de obra e suporte do capital financeiro seu desenvolvimento ocorreu sobre realidades sociais e figuraes histricas j incorporadas dinmica da economia europeia moderna desde a era do Mercantilismo. Por conta dessa agregao de condies materiais e culturais j historicamente consolidadas, no caso especfico da belle poque, a expanso, a mundializao da cultura burguesa a partir dos centros hegemnicos do capital foi mais dinmica e abrangente. Pelos canais de circulao do capital circulava, igualmente, o discurso do Progresso e da Civilizao, na forma das

    9 LASKI, Harold J. O Manifesto Comunista de 1848, p. 96.10 HOBSBAWM, Eric. A era dos imprios.11 GRUZINSKI, Serge. Ls quatres parties du monde: histoire dune mondialisation.

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    muitas representaes assumidas por esse mesmo discurso, inclusive as prprias do seu capital simblico.

    Por isso mesmo, nos quadros da belle poque elevar-se-ia um proclamado culto s artes em geral, em particular literatura, msica e cena lrica, pois novas linhagens estticas estaro presentes nas agremiaes e associaes liter-rias e musicais. O cuidado com a indumentria e o gestual, e as manifestaes exteriores do bom gosto sero a razo de ser do dandy que dominar os cenrios urbanos. Mas no s! Tambm sobressair o ideal da cidade planejada, limpa e higinica, o encobrimento da pobreza e da mendicncia, a sociabilidade mun-dana. Mesmo com a presena da mendicncia, como na Paris de Baudelaire, os sujeitos sociais da belle poque investiro no sentido de reservar os centros da vida urbana e mundana para si.

    Essa forma e esse modelo de um novo viver transformam-se no iderio da cultura do homem civil do final do sculo XIX. Sepultadas as revolues e superadas as descontinuidades produzidas pelos processos revolucionrios na Europa contempornea, retomava-se historicidade do tempo histrico, dia-crnico, historicista, finalista e utpico. Todo esse grande cenrio , em sntese, o caleidoscpio dos signos e dos ritos que alimentaram o mito da belle poque como representao da Idade de Ouro do Progresso e da Civilizao, um estado de construo do sujeito histrico que se realizaria universalmente graas s conquistas da cincia, fora dos maquinismos e aos processos civilizacionais mundializados.

    Existiu uma belle poque na Amaznia? A resposta a essa pergunta implica um feixe de problemas conceituais e empricos com que se defrontam os histo-riadores brasileiros em geral e os amaznidas em particular. Afinal, a mesma questo aplicar-se-ia ao Rio de Janeiro do final do sculo XIX e comeo do XX, quando, j foi anteriormente referido, a cidade, a Capital Federal, aos olhos da sua burguesia, do poder pblico e dos seus homens de letras, enfim, civilizava-se. A indagao, em si mesma, uma daquelas arguies cujas respostas buscadas avanam problematicamente no sentido de iluminar um dado recorte da hist-ria recente da Amaznia. Se, por questo de aceitao de um lxico aplicado leitura das realidades culturais, sociais e materiais pelas quais passou a Amaz-nia da borracha, e forando-se uma correlao com os cenrios da Europa do capitalismo industrial, da cultura e da sociabilidade burgueses do final do sculo

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    XIX e incios do XX, admite-se, por transposio e adequao terminolgica, que a Amaznia de ento viveu a sua, repita-se, a sua belle poque.

    Se, no entanto, por belle poque forem considerados apenas os quadros hist-ricos da Belm fin de sicle, com as formas de sua sociabilidade urbana e com os ritmos de seu consumismo, perde-se de vista o complexo de transformaes que a Amaznia comeou a sofrer finda a primeira metade do sculo XIX. Bens de consumo e bens culturais de Paris j estavam presentes no cotidiano de Belm; a navegao a vapor pelo Amazonas, nascida em torno de Mau e sua Companhia de Navegao e Comrcio do Amazonas (1852), iniciou a interiorizao dessa nova etapa do cotidiano econmico e social no Par.12 Viajantes e cronistas estran-geiros por aqui passados a essa altura, como o naturalista ingls Henry Walter Bates, chegado ao Par em 1848 e aqui permanecendo at 1859, admiravam-se com a presena, em Belm e Santarm, de bens e valores da cultura francesa do ento Segundo Imprio.

    Significativo, nesse sentido, o fato de Bates, achando-se em Santarm, em 1854, fosse abordado pelo frequentador de um sarau com a seguinte pergunta: de que lado do rio Paris fica situada?.13 O fato em si mesmo adiante, como ser melhor trabalhado em outra passagem, evidencia que no existe um tempo for-mal da belle poque, tratando-se, no caso, dos contatos da Amaznia com o que a cultura da Frana j mundializava no Segundo Imprio. No final do Oitocentos, novos registros seriam produzidos sobre os franceses na Amaznia, precisamente num momento em que as representaes da belle poque da Belm da borracha, contingenciadas e condicionadas a Paris, haviam disseminado em meio s elites do ltex o consumo de bens procedentes, agora, da Frana republicana.14

    A navegao a vapor, antes mesmo da abertura do Amazonas navegao internacional em 1867, foi um fator crucial para a progressiva redefinio das bases da economia e da cultura amaznicas. Depois, vencidas as barreiras que impediam a franquia dos Amazonas navegao internacional, esse processo ga-nhou uma outra e mais demarcada dinmica. Se, do ponto de vista econmico, a exportao do ltex e a importao de bens de consumo europeus ganharam

    12 SANTOS, Roberto. Histria econmica da Amaznia: 1800-1920, p. 55 e s.13 BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas, p. 143.14 COUDREAU, Henri. Les franais en Amazonie.

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    nova dimenso, o mesmo ocorreu quando a questo observada pelo prisma da sociedade e da cultura. No anteato da belle poque da borracha, membros de famlias abastadas do Par e do Amazonas partiam em viagens para a Europa, geralmente para estudar, enquanto europeus interessados no mercado amaz-nico chegavam aos desembarcadouros de Belm.

    Em 1859, no ano em que Bates deixava o Par e a Amaznia, um outro via-jante europeu peregrinava pela regio: o mdico alemo Robert Av-Lallement. A exemplo de Bates, Av-Lallement, em seu livro No Amazonas,15 notou que homens e mulheres do Par vestiam-se francesa, e que cultivavam uma so-ciabilidade com fortes marcas europeias, como o piano nas casas e o gosto pelo canto e pela dana. possvel assegurar, assim, que apenas iniciada a segunda metade do sculo XIX j era visvel a presena cultural francesa na Amaznia, anunciando, por assim dizer, a chegada da belle poque, conduzida, entrados os anos de 1870, pela mundializao do consumo do ltex.16 Observada a questo pela lgica da expanso do capitalismo industrial e da cultura da sua burguesia, enfatizava o discurso sustentador desse processo especular que em marcha esta-vam o Progresso e a Civilizao.

    A percepo dos extremos desse arco que permite, em ltima anlise, que o observador no caia nas muitas armadilhas instaladas pelo reducionismo his-trico e sociolgico, principalmente no tocante ideia de que a belle poque amaznica manifestou to somente um mimetismo imediato e imediatista. Se-ria como se, de um momento para outro, segmentos da sociedade finissecular de Belm, de Santarm e de Manaus descobrissem nas lojas de suas cidades um conjunto de produtos diferentes, estranhos, e que os passassem a usar porque vieram de um lugar misterioso, desconhecido e extico chamado Paris...17 E que os cafs e os teatros parecessem fantasmagorias surgidas do encantamento da floresta...18

    Ora, na lgica dos processos culturais, as relaes entre as linguagens e as re-presentaes do eu e do outro, tratando-se da presena francesa na Amaznia da

    15 Apud DAOU, Ana Maria. A belle poque amaznica, p. 35. 16 COELHO, Geraldo Mrtires. Anteato da belle poque: imagens e imaginao de Paris na Amaznia de 1850, p. 199-215.17 AFFONSO, Joo. Trs sculos de modas.18 DAOU, Ana Maria. A belle poque amaznica, p. 29.

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    primeira metade do sculo XIX, foi uma relao de ajustes entre mundos sociais dominados, em princpio, por disjunes. Tratando-se da Amaznia e do seu lugar correspondente na cultura brasileira naquele contexto, a cultura que depois se afirmaria com a belle poque, reconhecidamente francesa, foi constituda na malha de uma enorme variedade de trocas criadoras de concretudes histricas, narrativas e imagens. Tal processo, como no poderia deixar de ser, imprimiria belle poque amaznica, haja vista a ento realidade cultural brasileira, uma fisionomia singular no que concerne s dimenses culturais, polticas e estticas visveis na Belm da borracha.19

    medida que a borracha subia de importncia e de cotao no mercado in-ternacional, mais a Amaznia se integrava, pelas vidas das relaes de dependn-cia, aos centros hegemnicos do capitalismo industrial e financeiro. E as vias de circulao do capital seriam as mesmas de circulao do capital simblico, vale dizer, da cultura burguesa em acelerado e amplo processo de mundializao. bom repetir observao anterior relativamente ao que escreveram Marx e Engels, em 1848, no Manifesto Comunista, a propsito do poder de subverso do capitalis-mo: tudo que era slido evaporava no ar. Nesse sentido, j a Belm de 1850 acusava, nos panoramas da cultura e da sociabilidade urbana, que elementos e valores das formas antigas da cultura lusitana, tratando-se de uma representao de suas elites comerciais, comeavam a desmanchar. Como foi salientado anteriormente, segmentos da sociedade local vestiam-se, divertiam-se e comportavam-se fran-cesa...

    Desse ponto de vista, portanto, no h como negar que Belm e a Amaznia como um todo conheceram a sua belle poque, entendida, claro, como mani-festao e representao de padres da cultura burguesa que se mundializava, numa nova etapa, a partir dos anos de 1850. pedaggico lembrar as palavras do prncipe Albert, na abertura da Exposio Internacional de Londres, em 1851, cujo emblema maior foi o Palcio de Cristal: as conquistas do Progresso e as reali-zaes da Civilizao sero levadas aos quatro cantos do mundo.20 o caso, ento, de se perguntar: seria a belle poque qualquer coisa de diferente do que vaticinara na capital britnica o marido da rainha Victria? No necessariamente, mesmo

    19 VELOSO, Mariza; MADEIRA, Anglica. Leituras brasileiras: itinerrios no pensamento social e na literatura, p. 35.20 BERMAN, Marsahall. Tudo que slido desmancha no ar: a aventura da modernidade, p. 223 e s.

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    observando-se, por exemplo, que alguns dos cones da sua representao eram bens de consumo franceses que, viu-se em passagem anterior, nos mesmos idos de 1850 j circulavam na Amaznia. Tomando-se, contudo, a belle poque, mes-mo a amaznica, como espelho do Progresso e da Civilizao, seus processos, reais e simblicos, fundam-se sobre um mesmo tempo e uma mesma cultura.

    Insista-se na questo levantada em passagens anteriores, relativamente ao fato de a Amaznia ter conhecido ou no a belle poque. O essencial nesse pro-cesso no a migrao/transposio dos valores, representaes, linguagens e rituais da cultura da burguesia europeia. Antes, preciso perceber em que medida a sociedade local, os seus segmentos cultos e letrados, sentiam-se como partcipes do processo de construo dos cenrios materiais e mentais que abri-garam as formas do Progresso e da Civilizao aqui chegados. Caso contrrio, a belle poque seria apenas uma metfora, um complexo processo de mimese, o que realmente no aconteceu. Veja-se, nesse sentido, o grande inventrio de imagens realizado na obra Belm da Saudade.

    O sentido de pertencimento a um tempo entificado e mtico, transformando o sujeito singular em cidado do mundo, em homem da modernidade, sintoni-zou e enquadrou os nossos intelectuais, os nossos homens de letras no interior do painel maior da cultura da Europa fin de sicle. Um Olavo Bilac, um Joo do Rio, um Figueiredo Pimentel, no Rio de Janeiro, um Augusto Montenegro, um Justo Chermont, um Eustquio de Azevedo, em Belm do Par, sentiam-se como sujeitos de uma cultura e como construtores culturais matricialmente fora do lugar, mas legitimada pela gentica social da sua orgnica originria. E a matriz, o fenmeno especular desse processo, como j mencionado, era a Paris fin de sicle,21 cuja apropriao, reproduo e adaptao de suas linguagens contagiou as elites da capital do Par.

    Era preciso, pois, criar condies para que os compostos dos processos civi-lizacionais europeus pudessem florescer em latitudes culturais outras. Veja-se, por exemplo, que o argumento poltico legitimador de um teatro lrico no Par e no Rio de Janeiro, mesmo com dcadas de diferena nas manifestaes favo-rveis a um e a outro, foi o mesmo: a msica e a cena lrica andavam a par com a civilizao... Arguir a lgica do discurso dos intelectuais da belle poque para-

    21 SEIGEL, Jerrold. Paris bomia: cultura, poltica e os limites da vida burguesa: 1830-1930.

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    ense e conhecer a constituio e a funcionalidade das prticas institucionais por eles desenvolvidas ou das quais foram partcipes, significar tambm conhecer a identidade e a viso de mundo do sujeito do Progresso e da Civilizao cria-do pela mundializao da cultura, e tribuno do grande e planetrio discurso da modernidade burguesa.22 Para um pas que sara da condio colonial/imperial, e que convivera com a escravido at 1888, progredir e civilizar proclamavam dis-cursos de grande produtividade poltica, institucional e, claro, esttica.

    Lanar o olhar sobre a belle poque em Belm retomar antigos percursos da memria histrica, da memria coletiva e do prprio discurso da histria. Dife-renas substanciais assinalam as formas e os lugares dessas narrativas, ainda que, como ser depois arguido, um mesmo veio, um mesmo fio parea conduzir o corpo dos muitos discursos construdos sobre a Belm que viveu o boom da bor-racha amaznica e conheceu representaes da cultura urbana e da sociabilidade deflagradas pela mundializao dos padres e dos ritos culturais da burguesia europeia fin de sicle. O impacto das mudanas processadas no cotidiano urbano da Belm que passava do sculo XIX para o XX foi poderoso o bastante para gerar a necessidade de narr-lo.23 E essa narrativa, observe-se mais uma vez, deu--se tambm na forma da imagem, nas fotografias e nos cartes postais que pro-curavam capturar e congelar as vises radiantes da Idade de Ouro do Progresso e da Civilizao,24 inclusive do requinte da decorao das moradias da elite da borracha.25

    No h dvida a respeito da importncia dos jornais para a memria mun-dana da belle poque em Belm, principalmente pelos caminhos da crnica e dos registros que factualizavam a sociabilidade urbana. Nas pginas dos peridicos A Provncia do Par e Folha do Norte, ambos j circulando na capital do Par no final do sculo XIX e, poca, jornais tecnicamente modelares dentre os poucos existentes na imprensa brasileira, possvel flagrar fraes do discurso dos sujei-tos civilizacionais da belle poque da borracha. Lojas, cafs, teatros, moda, tert-

    22 COELHO, Geraldo Mrtires. O brilho da supernova: a morte bela de Carlos Gomes. 23 SARGES, Maria de Nazar. Riquezas produzindo a belle poque: 1870-1912. 24 CASTRO, Fbio. Cartografias da modernidade de Belm: a memria da Belm do incio do sculo em cartes-postais, p. 23-27.25 BASSALO, Clia. O art nouveau em Belm.

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    lias, conferncias, exposies, e mais, claro, a exaltao da cidade urbanizada e saneada aparecem na condio de grande quadro, de poderoso panorama do cotidiano de uma capital tocada pelas vrias representaes de um novo tempo, como a histria vem reconhecendo.26 A imprensa peridica de Belm da poca, e mais os jornais de agremiaes e de associaes profissionais inventariavam, por assim dizer, os lugares, as formas e os sujeitos que emprestavam uma dada visibilidade belle poque de Belm.27

    Da dbcle da economia da borracha, nos anos de 1910, aos dias de hoje, a Belm da belle poque conheceu visitaes espordicas da pesquisa histrica, no mais das vezes nos domnios da histria econmica e no nos campos da histria cultural. Nesses casos, o olhar do historiador estava mais claramente voltado para a cadeia produtiva do ltex e para os mecanismos de financiamento, co-mercializao e circulao do produto. A cidade modelar da civilizao tropical era, em essncia, a praa comercial, seus bancos, suas casas importadoras e ex-portadoras, seus estabelecimentos de crdito, seu variado comrcio e sua capaci-dade de alimentar os tentculos que levavam o comrcio ao seringal e traziam o seringal ao emprio urbano da capital.28

    * * *

    Entre o final dos anos de 1990 e o comeo dos anos de 2000, no apenas as incurses da histria econmica da Amaznia contemplavam, na condio de componente do seu objeto cientfico, leituras e olhares para a sociedade e a cul-tura que se desenvolveram ao influxo do extrativismo da borracha e da cadeia da sua comercializao. Em outras palavras novas abordagens foram constru-das de modo a escapar aos modelos de anlise antes reinantes e, assim, privile-giar os domnios da cultura, da sociabilidade e do cotidiano dos grupos sociais. Essas leituras privilegiaram principalmente um grande domnio da Belm da

    26 Cf.: MEIRA FILHO, Augusto. Antnio Jos de Lemos o plasmador de Belm: em defesa de um nome; SALLES, Vicente. A msica e o tempo no Gro-Par; SARGES, Maria de Nazar. Memrias do velho intendente. 27 BARATA, Manoel. Formao histrica do Par. 28 WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amaznia: expanso e decadncia (1850-1920).

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    belle poque, um domnio de grande visibilidade e elevado significado como dis-curso: as prticas intelectuais e suas relaes sociais e polticas.

    O grande e recente investimento histrico e historiogrfico na belle poque amaznica, em que pese os novos problemas e as novas abordagens que prope, concentrou a sua abordagem, como antes foi salientado, sobretudo nos cenrios e nas paisagens sociais e culturais urbanas das cidades que o Progresso e a Civi-lizao fizeram despontar em meio floresta tropical brasileira. Essas leituras revelam-se na condio de novos artefatos tericos, metodolgicos e empricos, e seus movimentos, repita-se, no giram necessariamente em torno de uma mesma rbita, a dos compostos fsicos e espaciais das capitais da belle poque amaznica. Tal contingncia impe-se pela prpria natureza da estratgia terica e meto-dolgica construda por seus autores. Assim exige o dilogo que eles alimentam com o passado, recriando quadros e leituras, o que em momento algum desauto-riza ou compromete o objeto enquanto identidade epistemolgica.

    De qualquer modo, as leituras econmicas da Belm e da Amaznia da borra-cha marcavam um avano narrativo significativo comparativamente s crnicas meramente mnemnicas e saudosistas que, por vezes, pontuavam em publicaes do gnero. Trata-se, como j foi mencionado, da cidade urbanizada, saneada, dotada de grandes equipamentos urbanos, vale dizer, a cidade metaforicamente considerada como organismo gestado pelo Progresso e pela Civilizao, e cujo conjunto de representaes encontra-se na Belm do intendente Antnio Lemos (1897-1912) e na Manaus do governador Eduardo Ribeiro (1892-1906), cidades, adiante-se, cuja interveno do Estado foi tambm disciplinadora e segregadora no sentido de manter os seus respectivos centros como espelhos civilizacionais e civilizadores, espaos fechados ao atraso e barbrie.

    Para alm das realidades materiais e polticas da belle poque da borracha, h registros narrativos da Belm do ltex que procuram recuperar e dialogar com o epicentro da cultura letrada e mundana da ento capital do Par. Homens que viveram as realidades intelectuais e sociais da Belm do ltex deixaram registros expressivos de um tempo em que eram eles sujeito e objeto. Nomes como Hum-berto de Campos, Theodoro Rodrigues, Eustquio de Azevedo, Paulino de Brito e Joo Lcio de Azevedo para citar apenas um pequeno nmero de homens de letras da Belm fin de sicle produziram uma crnica, uma memria, um registro textual de modo a exaltar o tempo social em que viviam, eles, repita-se,

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    sujeitos do Progresso e da Civilizao.29 De que modo, contudo, esses universais comparecem e reproduzem os seus pressupostos no discurso dos gens de lettres da belle poque da Belm da borracha? Responder a essa arguio significa lan-ar o olhar para alm das avenidas, jardins, servios pblicos, urbanizao, pre-cisamente a face externa e mais reconhecida da Belm que viveu, para lembrar expresso da poca, as folies du ltex.

    Nesse sentido, parece evidente que muitos podem ser os percursos em dire-o s mentalidades da Belm da belle poque. Alguns desses percursos j foram apontados em itens anteriores, e dizem respeito aos muitos retratos, aos vrios exteriores da capital paraense nos anos de ouro da economia do ltex. Foi refe-rido, entretanto, que muitos homens de letras da Belm da borracha viveram a condio de intelectuais do tempo do Progresso e da Civilizao, cujos discursos mais claros estavam nos equipamentos e nas prticas sociais da vida moderna: comunicaes, eletricidade, higiene e do saneamento urbanos, navegao a va-por e atividade intelectual reflexiva dos novos tempos. Para tanto, esses homens de letras, au del de la vie de bohme, fundaram e mantiveram associaes cultu-rais e produziram um dado tipo de narrativa que pretendiam fosse especulares relativamente s matrizes intelectuais da Europa, leia-se, da Paris, e cujos espec-tros a borracha parecia haver deslocado como fantasmagorias tropicais.

    Explicando melhor, a Belm que caminhava para o final do sculo XIX e incio do XX conheceu e conviveu com um mosaico de associaes culturais, literomusicais, sociedades literrias, sociedades musicais, agremiaes culturais de profissionais do comrcio, e mais um bom nmero de jornais e de revistas nascidos como veculos dessa ao dos escritores locais, alguns dos quais no in-terior dessas agremiaes.30 A maior parte desses pequenos grmios de homens de letras e suas respectivas publicaes, como abaixo ficar registrado, tiveram vida rpida e fugaz, mas nem por isso deixaram de ser importantes como espe-lhos a refletir a relao entre exterior e interior da Belm da belle poque, entre a cidade moderna e a rede de micro-organismo da sua sociabilidade urbana e intelectual. Registre-se, no tocante s associaes musicais, que muitas delas

    29 AZEVEDO, J. Eustquio. Antologia amaznica, p. 21 e s.30 DUQUE ESTRADA, Osrio. O Norte: impresses de viagem, p. 12-81.

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    atuaram em municpios do interior do Par, cultuavam, no raro, Carlos Gomes, e mantinham um expressivo papel para a sociabilidade local.31

    Dentre as muitas agremiaes intelectuais atuantes na Belm que vencia o Oitocentos e chegava aos anos iniciais do sculo XX, estavam as seguintes: Oficina Literria, Club Coelho Neto, Apostolado Cruz e Souza, Grmio Estudantino Paraen-se, Grmio Literrio Fagundes Varela, Escola Literria Antnio Lemos, Oficina das Letras, Cenculo dos Novos e Sociedade dos Homens de Letras do Par, Centro Lite-rrio Amaznico, Unio Estudantina Gonalves Dias, Galeria de Letras Rio Branco, Sociedade de Homens de Letras do Par, Escola Literria Olavo Bilac e, ainda, a Academia de Poetas Paraenses.32

    Algumas das associaes de intelectuais da Belm da belle poque tiveram vida mais ou menos longa, enquanto que outras, principalmente as que mantiveram relaes sociais e institucionais com o Estado e valeram-se da legitimao oficial e contaram com o mecenato oficial, venceram e afirmaram-se, com suas legendas acadmicas, sobre o tempo histrico. Essas agremiaes, ainda que de domnio privado, contariam em seus quadros sociais com alguns dos nomes-chave do apa-relho de Estado, e assim transformavam-se, pelo processo do habitus de classe, em agncias ao mesmo tempo orgnicas e reflexivas da cultura e da poltica cultural pblicas na Belm que fechava o sculo XIX e chegava ao XX. Foi o caso, em Belm, do Instituto Histrico e Geogrfico do Par e da Academia Paraense de Letras, associaes abertas em 1900 e que reuniriam em seus quadros sujeitos sociais reconhecidos, formando um colegiado no necessariamente de homens de letras tout court, segundo uma mais precisa significao de escritor.

    As revistas literrias, igualmente efmeras, no deixavam, por isso mesmo, de projetar o prprio estilhaamento da modernidade. Eram, pois, veculos, espe-lhos, mesmos, de exibio das imagens de um tempo de rapidez e de velocidade, e que se processava igualmente no mundo das ideias. O Ateneu, A Alvorada, A Revista, O Lbaro, Boemia Literria, O Par Moderno, O Parnaso, O Extremo Norte, O Bomio, Par-Revista, O Ideal, A Voz Literria, A Revista do Equador, O Par Mo-derno, A Revista Acadmica, para no alongar mais a lista, inscreviam-se, dentre outros ttulos, nessa frentica participao dos escritores paraenses na inveno/

    31 SALLES, Vicente. Sociedades de Euterpe, p. 99 e s.32 AZEVEDO, J. Eustquio. Antologia amaznica, p. 32-33.

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    revelao de um organismo intelectual anunciador de uma Amaznia inscrita no interior dos quadros da mundializao da economia e da cultura, espao da Civilizao e do Progresso.33

    A exemplo do que depois seria observado na belle poque do Rio de Janeiro, onde livrarias como a Garnier e a Laemmert ofereciam aos homens de letras ttulos chegados da Europa, alm de representarem locais de reunies em torno de escritores como Machado de Assis, em Belm duas grandes livrarias respon-diam pelos anseios literrios da elite intelectual da borracha: a Tavares Cardoso e a Clssica. No primeiro desses estabelecimentos, quando cidado da imigra-o portuguesa no Par, trabalhou depois tornando-se seu proprietrio Joo Lcio de Azevedo, o futuro e grande historiador portugus da presena dos jesutas na Amaznia e da vida de Antnio Vieira, e cujo primeiro livro, Estudos de histria paraense, ele o publicou na Belm de 1893. Entrados os anos de 1910, nesses cenrios da capital amaznica do ltex ainda peregrinou Ferreira de Cas-tro, tambm imigrante portugus, egresso do seringal Paraso, no rio Madeira, e que, em 1930, em Portugal, daria estampa o relato da sua experincia na Amaznia, na forma do romance A selva.

    Tambm espaos a possibilitar o exerccio intelectual por parte dos homens de letras da Belm da belle poque, a exemplo do que sucederia no Rio de Janei-ro, foram os jornais surgidos na passagem do sculo XIX para o XX. Os peridi-cos, de uma maneira geral, dedicavam grandes espaos a artigos e crnicas, com inflexo sobre a literatura e as artes, de que foram exemplos os seguintes ttulos: Gazeta de Notcias, Dirio do Gro-Par, O Liberal do Par, Dirio de Notcias, A Provncia do Par, Folha do Norte, O Condor, Ordem e Progresso, O Jornal, A Tesoura e O Par. A imprensa cotidiana de Belm, haja vista a sua natureza e o seu poder de atuar sobre os sujeitos sociais da belle poque da borracha, possua, mesmo, jornais ostentando identidades prprias, como o A Voz do Caixeiro, o que retratava, por outro lado, a expresso do comrcio na capital do Par do ltex.34

    Em outras palavras, entre 1880 e 1900, as dcadas de maior desenvolvimento da economia da borracha, quando Belm era a terceira mais importante cidade

    33 Ibid., p. 32-33.34 BARATA, Manoel. Formao histrica do Par, p. 247-277.

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    brasileira, informa o j citado Manoel Barata que um considervel nmero de jornais identificava-se com a vasta rede da atividade comercial e dos empregados do comrcio: Dirio do Comrcio, Jornal do Commercio, O Empregado do Comrcio, O Caixeiro, O Ateneu, afora aqueles mais diretamente relacionados comunidade portuguesa da imigrao, como A Colnia Portuguesa e O Eco Portugus, sem falar ainda das folhas avulsas lanadas aquando de efemrides relacionadas histria de Portugal. Na condio de instrumento de um processo cultural expressivo, a imprensa revelou-se como uma das legendas da contemporaneidade da Belm da borracha.

    Os jornais, como j salientado, combinavam, invariavelmente, matria infor-mativa e sees culturais, e nestas com o visvel predomnio da Literatura, His-tria e Cincia. Grande parte das matrias publicadas vinha de jornais franceses e lisboetas, principalmente na forma de artigos que, reproduzidos, fortaleciam a qualidade dos peridicos locais. Com as dificuldades de comunicao e transpor-te entre o Rio de Janeiro e o Par, a presena da imprensa fluminense era mais rarefeita em Belm. No caso dos jornais franceses, no custa enfatizar, mais uma vez, que o francesismo, no Par e no Brasil fin de sicle, foi um dos mais ntidos emblemas da afirmao dos segmentos urbanos letrados da sociedade brasileira, sabidamente um processo simblico de elevada capacidade de diferenciao so-cial no interior de um universo dominado pelos escombros da escravido.

    Obviamente, no era devido apenas ao afrancesamento cultural tout court da elite letrada da borracha o fato de as pginas de jornais da Belm do ltex abriga-rem o positivismo de Comte, a filosofia de Taine ou o socialismo de Proudhom. A fisionomia do jornal/jornalismo de ento era propcia ao uso mais elstico de suas pginas para matrias voltadas problemtica cientfico-filosfica de um Darwin e de um Spencer, as chamadas questes do tempo, alm, claro, da pr-pria atividade literria. Afinal, como evidenciavam os jornais da Europa culta do final do sculo XIX, vrias eram as estratgias para disseminar os fundamentos do Progresso e da Civilizao. Nesse caso, a imprensa peridica era essencial, at porque dispunha de forte apelo no cotidiano de capitais como Paris ou Lisboa, exatamente os espelhos onde se miravam os sujeitos sociais da belle poque da borracha.

    No caso dos jornais portugueses conhecidos na Belm da borracha, e graas, em grande parte, ao papel social exercido pelo Grmio Literrio Portugus, cujas

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    portas abriram-se em 1867, ao avanar o sculo XIX para o seu final, textos de escritores portugueses circulavam na Belm dos peridicos. quela altura, saliente-se, escritores portugueses como Ea de Queirs, Camilo Castelo Bran-co, Tefilo Braga, Oliveira Martins e Ramalho Ortigo ocupavam pginas dos mais importantes jornais brasileiros. Ao observar-se o painel estampado pela imprensa fluminense de ento, uma imprensa, como se sabe, francamente con-trolada pelos portugueses, natural que em Belm do Par, onde crescera a imi-grao portuguesa e onde se fortaleceu a comunidade lusitana da imigrao, imigrantes lusitanos, muitos dos quais tiveram acesso alfabetizao, passassem a integrar a rede de consumo desse jornalismo.

    Uma boa peregrinao pelas pginas da novelstica carioca de Lima Barreto revela, com clareza e acidez, a hegemonia exercida quela altura pelos chama-dos grandes capitalistas portugueses sobre o jornalismo do Rio de Janeiro, na condio de proprietrios dos mais importantes peridicos da Capital Federal. Independentemente da crtica de Lima Barreto ao virtual controle da imprensa da Capital Federal por negociantes lusitanos, dispensa enfatizar o papel que os jornais exerceram na constituio do comportamento cosmopolita dos sujeitos sociais hegemnicos do Rio de Janeiro da belle poque. A imprensa, quer em Be-lm, quer no Rio de Janeiro, revelou-se como um espao, uma dimenso pblica capaz de projetar o valor da ao dos homens de letras do Brasil.

    No meio social culto da Belm da borracha, matrias vrias de autoria de grandes nomes das letras portuguesas, como os mencionados anteriormente, estavam, como visto, nos jornais da cidade. A imprensa contribua, assim, para um maior conhecimento da produo literria e da ensastica lusitana em meio ao universo dos homens de letras de Belm, assim como no mundo da imi-grao portuguesa no Par, fato que ampliava o espectro da prpria leitura e o significado social da sua realizao. Como os jornais eram constitudos na condio de empresas, esse processo de circulao cultural, assinalou-se linhas acima, ocorreu tambm nas principais capitais brasileiras na medida em que o final do sculo XIX marcou-se pela intensificao das dinmicas da mundiali-zao da cultura. A aquisio e o consumo da literatura no eram diferentes, enquanto dados da cadeia produtiva, da aquisio e do consumo de produtos manufaturados.

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    Em 1889, deram-se as efusivas e mesmo cvicas comemoraes do primeiro centenrio da Revoluo Francesa, quando os coraes e as mentes das elites le-tradas da Belm da borracha e das elites urbanas cultas do Brasil como um todo voltaram-se para Paris, a capital do Gro-Par era uma vitrine. Abertas as portas do Teatro da Paz no ano de 187835 e ento comeada a primeira temporada lrica num teatro de pera construdo no meio da floresta tropical, a civilizao cinze-lara seu grande espelho, afirmando o poder simblico de uma cultura que mun-dializara suas linguagens e suas representaes. A pera, abrigada pelo Teatro da Paz, cujas portas abriram-se em 1878, e de que foi exemplo marcante a produo de Carlos Gomes, a pera, repita-se, ocupava quase que simultaneamente a cena lrica de Milo, Lisboa, So Petersburgo, Rio de Janeiro e Belm do Par.36

    Ao findar a dcada de 1850, como foi registrado em outra passagem, estabe-lecimentos comerciais vendiam rendas francesas e livrarias davam a conhecer a literatura de Lamartine.37 Entrada e avanada a dcada de 1880, em movimento definido operou-se a construo da rede de espaos que construam e faziam mo-vimentar os comportamentos mundanos. O grande cenrio em que seriam repre-sentadas as aes do sujeito social do Progresso e da Civilizao estava montado, condies para que ganhassem forma as linguagens da sociabilidade urbana da Belm da borracha. Inclusive a definio do patrimnio intelectual de suas elites cultas!

    Bancos, casas comercias, teatros de revista, cafs, agremiaes musicais, jor-nais, grupos de escritores, escolas comerciais compunham a face visvel, urbani-zada e proclamadamente europeizada de uma cidade que o ritmo da economia do ltex agilizava.38 Nesse sentido, multiplicavam-se os processos de reproduo dos elementos da cadeia mundializada da cultura que a sociedade hegemnica do capitalismo industrial produzira no final do sculo XIX. Tratava-se, preci-so voltar a enfatizar, daquilo que o discurso do progresso do otimismo burgus apontava como a inevitvel e necessria mundializao da civilizao e das van-tagens que traria para os povos do mundo. Como foi assinalado em passagem

    35 DERENJI, Jussara. Teatros da Amaznia.36 COELHO, Geraldo Mrtires. O brilho da supernova, p. 19 e s.37 COELHO, Geraldo Mrtires. Um pouco aqum da belle poque ou quando o Francesismo se insinua no Par oitocentista, p. 60-69.38 SARGES, Maria de Nazar. Riquezas produzindo a belle poque, p. 47 e s.

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    anterior, assim proclamou o prncipe Albert, em Londres, na Exposio Inter-nacional de 1851, cujo cone por excelncia foi o clebre Palcio de Cristal.

    O consumo das letras francesas, fosse na forma da literatura, da sociologia ou da filosofia inclusive a filosofia cientfica ou ainda o das filosofias cientficas inglesas, sobretudo do Evolucionismo, marcou a formao das elites cultas da Belm da borracha. Este um domnio da belle poque amaznica mais difcil de trabalhar, na medida em que implica o tratamento de um bem cultural cuja especificidade, na maioria das vezes, dispe de registros pblicos fragmentados. De qualquer modo, como foi assinalado anteriormente, possvel acompanhar, no registro de jornais de 1850 para frente, referncias chegada a Belm de ttulos de uma diversificada literatura francesa, o que certamente explica o fato de alguns dos principais jornais de Belm do final do sculo XIX contarem com espaos destinados a matrias literrias e cientficas. No caso mais visvel das letras francesas, de Lamartine a Comte, passando Saint-Simon e Hugo, os cr-culos letrados da Belm fin de sicle mostravam-se fortemente contingenciados pela cultura acadmica da Frana oitocentista.

    Somente em relao presena e fora do Positivismo de Comte em Be-lm, importante ressaltar que Jos Verssimo, residente na capital do Par entre 1880 e 1884, atuou como doutrinador positivista. Nas pginas de jornais como Dirio do Gram-Par e Gazeta de Notcias, Verssimo trabalhou sistemati-camente o pensamento comtiano, e as matrias que estampou no segundo desses peridicos serviram de fundamento para a obra intitulada Emlio Littr, dada estampa por ele em 1881. Dois anos depois, e para alm da sua linha de reflexo terica, publicaria Jos Verssimo a sua Revista Amaznica, sada em 11 nme-ros e que, transformada em espao de exerccio intelectual dos nossos homens de letras, circulou at 1884.39 Entre 1896 e 1897, atuou em Belm a associao cultural Ordem e Progresso, reunindo engenheiros, homens pblicos e homens de letras. Seu jornal, igualmente intitulado Ordem e Progresso, foi pgina dou-trinria e espao de filosofia poltica, estampando em seu cabealho a mxima doutrinria de Comte: O amor por princpio, a ordem por base e o progresso por fim.

    A afirmao do Positivismo em meio aos quadros das elites cultas da Belm do final do sculo XIX duplamente reflexiva. Pela tica poltica, filtra-se a

    39 COELHO, Geraldo Mrtires. O brilho da supernova, p. 139 e s.

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    presena da doutrina positivista em meio aos republicanos brasileiros, muitos dos quais fizeram a campanha republicana inspirados nos ensinamentos de Benja-min Constant no Rio de Janeiro, a exemplo de Lauro Sodr. Pelo prisma filosfi-co, chega-se ao discurso do Progresso na forma pela qual foi redefinido no Brasil do final do Oitocentos, e do qual o mesmo Lauro Sodr, governador do Par (1891-1897), foi um arauto de grande representatividade. De uma maneira geral, portanto, era bem expressiva a marca do Positivismo na conduo do pensamen-to e das prticas dos intelectuais da Belm da belle poque da borracha.

    Alguns indicadores podem lanar luz sobre a vida intelectual incluindo, claro, a sua dimenso cientfica da Belm que atravessou a segunda metade do sculo XIX. Na medida em que a cultura um dos nveis, o simblico, das rela-es concretas das sociedades entre si, fica evidente o atrelamento do homem de letras da Belm de ento s matrizes do pensamento europeu e s leituras que a intelligentsia europeia produziu acerca do sentido de Progresso e de Civilizao. Afinal, observou-se em passagem anterior, a belle poque encarnou e representou o otimismo burgus diante da inevitabilidade do progredir e do civilizar que o tempo das conquistas tcnicas e das realizaes materiais do capitalismo exaltava.

    Na Belm da segunda metade do sculo XIX, tratando-se de instituies vol-tadas a campos distintos do conhecimento, de se notar, inicialmente, a organi-zao da Sociedade Filomtica Paraense (1866), para, em seguida, ter-se a institui-o do Museu Etnogrfico e de Histria Natural (1871) depois Museu Paraense Emlio Goeldi.40 Em 1894, foram dados os passos necessrios para a constituio da Mina Literria, sem dvida, como ser visto, um dos mais visveis espaos de significao social e cultural na Belm da belle poque. No processo formatador de um novo cenrio social, como o foi o da belle poque, a constituio de um campo intelectual expressivo e atuante tornara-se um dos componentes da mo-dernidade, um espao onde, em tese, as ideias e as prticas responderiam pelas exigncias de um novo e dinmico tempo. Fica evidente, assim, que na Belm da borracha cincia e literatura eram pensadas como atributos e virtudes do sujeito social de um mundo novo, e no qual Progresso e Civilizao revelavam-se como imperativos categricos da Histria.

    40 CRISPINO, Lus Carlos Bassalo; BASTOS, Vera Burlamaqui; TOLEDO, Peter Mann de. As origens do Museu Paraense Emlio Goeldi: aspectos histricos e iconogrficos.

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    As dinmicas que levaram instalao, em janeiro de 1895, da associao cultural Mina Literria revelam que a constituio de uma corporao de ho-mens de letras era estratgica definio de um campo intelectual socialmente representativo, reconhecido e legitimado na Belm cosmopolita e mundana do final do Oitocentos. Natural, nesse sentido, que a Mina Literria, reunindo um grupo de moos talentosos, formasse uma organizao toda especial [que] devia afrontar a burguesia chata, numa terra onde s se cuida de cmbio e de borracha. Ostentando tal identidade, era de se esperar, segundo os seus arau-tos, que a associao intelectual no ficaria inclume s ferroadas dos meda-lhes incompetentes que viam nela uma farsa e nos seus membros um grupo de ridculos e tolos.... O que interessava aos mineiros, alm do culto s letras e escritura, era tambm fazer o Par intelectual conhecido em todo o sul do Brasil e no estrangeiro, elevando, assim, as letras nortistas.41

    Uma das principais figuras desse movimento, J. Eustquio de Azevedo, bem define a figura do intelectual, mas, sobretudo, do polgrafo, do escritor de mui-tas narrativas que dominou os cenrios letrados do Brasil urbano do final do sculo XIX, em particular do Rio de Janeiro nos anos da belle poque carioca. Artigos, crnicas, conferncias, poesia, novelas, e mais tradues de escritores ingleses e franceses, saam da pena de Jacques Rolla, pseudnimo por muito tempo usado por Eustquio de Azevedo. A reforar a sua identidade como ce-nculo das letras, a prpria Mina Literria possua a sua revista, intitulada A Revista, veculo de divulgao de trabalhos de seus mineiros.42

    O aparecimento da Mina Literria foi registrado e enaltecido naquela mes-ma oportunidade nas pginas de O Paiz, do Rio de Janeiro, precisamente por revelar o esforo dos homens de letras que, observados pelo culo assestado da Capital Federal, tocavam a vida intelectual de um Brasil perifrico, ainda car-regando as marcas da sua condio provincial. Esses homens de letras forma-vam uma espcie de cruzados da literatura e do saber nos limites impensveis do pas. A Mina Literria mantinha uma organizao marcada por uma certa forma de esoterismo, relacionando-a terra profunda e os seus membros qua-lidade, ao valor dos minerais nobres, das gemas raras e preciosas. A Mina Liter-

    41 AZEVEDO, J. Eustquio. Antologia amaznica, p. 20.42 Ibid., p. 31.

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    ria mostrava-se simbolicamente prxima dos ideais de uma filantropia manica e... carbonria. Seus quadros reuniam a quase totalidade dos homens de letras de Belm, reconhecidos por seu papel intelectual e por sua identidade social. Mi-neiros eram tambm, na condio de membros honorrios, homens de Estado como Lauro Sodr, governador do Estado (1891-1897), Serzedelo Correia, Paes de Carvalho, Amrico Santa Rosa, Tito Franco de Almeida, e ainda o Baro de Guajar e o Baro de Maraj, todos scios honorrios da Mina Literria,43 o que emprestava associao cultural uma legitimao poltica de fato.

    Bem mais do que uma sociedade de dilettanti, a Mina Literria, nos quatro anos de sua existncia (1895-1899), procurou manter uma atividade editorial correspondente sua identidade social, atividade expressivamente significativa considerando-se as dificuldades editoriais num mercado fora do eixo livreiro de Rio de Janeiro e So Paulo. Afinal, o livro era um produto, um bem de mercado, regida a sua existncia pelas leis da oferta e da procura, da venda e da compra. Dos ttulos dados estampa sob a chancela da Mina Literria, alguns indicam a presena, o consumo e a redefinio textual do naturalismo de Zola em meio aos intelectuais de Belm, como o fez, alis, o prprio Eustquio de Azevedo. Outros ttulos publicados revelam o gosto ecltico da poca, marcado pela crnica, pelo texto, pela poesia de circunstncia, formas, em ltima anlise, das fantasmagorias estticas que a belle poque produziu para o divertissement nos sales da cultura mundana do tempo.

    Quase sempre sob a presidncia do governador Lauro Sodr, o colegiado da Mina Literria realizava um sem-nmero de sesses, geralmente solenes, para receber visitantes ou para conceder o ttulo de scio honorrio da agremiao, sem falar, claro, da comemorao das datas magnas da histria brasileira. Mo-mentos expressivos foram, por exemplo, a concesso do ttulo de scio honorrio a Joo Lcio de Azevedo, j ento comendador, e a celebrao da visita, em 1899, de Coelho Neto a Belm, o que levou a agremiao a editar um livro intitulado Coelho Neto e a Mina Literria, distribudo na sesso que homenageou o autor de A Capital Federal. Nesse mesmo ano a associao fechava as suas portas, em par-te pela concorrncia que experimentou de uma nova agremiao de homens de

    43 Ibid., p. 21.

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    letras, o Centro Literrio Amaznico, em parte, diz um de seus dirigentes, pelos efeitos da poltica local.

    Em outras palavras, findo o governo de Lauro Sodr, em 1897, a Mina Lite-rria, leia-se, a representao institucional mais visvel do campo intelectual da Belm da belle poque, acusou a mudana. Seus integrantes ressentiam-se pela perda das relaes que antes mantinham com o Estado. Manifestavam, assim, a sua fragilidade institucional diante de outras realidades que dominariam o campo poltico, haja vista que o novo governador, Paes de Carvalho, seria prxi-mo do intendente Antnio Lemos. Marcadas pela orgnica do poder, as relaes entre o campo intelectual e o campo poltico foram, no Par de ento, reflexi-vas do quadro de fora e de mando, a exemplo do que se verificaria no Rio de Janeiro do comeo da Repblica, sobretudo depois da abertura da Academia Brasileira de Letras (1897).

    Para os dirigentes da Mina Literria, uma agremiao de letras que, e assim mostrou-se mais acima, mantinha em seus quadros honorrios as lideranas polticas mais expressivas do Par, o fim do governo de Lauro Sodr instalou um novo tempo nas relaes entre os seus escritores e o Estado. Para um Eust-quio de Azevedo, seu grande artfice e principal dirigente mineiro, nessa fase tenebrosa, no Par, os intelectuais de diferentes credos no podiam nem cum-primentar-se....44 Essa fase tenebrosa representava o choque poltico entre Lauro Sodr e Antnio Lemos, o confronto entre lauristas e lemistas, j clara-mente definido em 1899, quando a Mina Literria fechou suas portas. Passados estavam dois anos da investidura lemista frente da administrao municipal de Belm!

    Na virada do sculo XIX para o XX, durante o consulado do intendente Antnio Lemos (1897-1911), os investimentos do Estado na modernizao ur-bana de Belm, com suas largas avenidas, jardins, praas e monumentos, e mais servios de saneamento e higiene conferiam uma feio cosmopolita cidade. A exemplo do que tambm faria Pereira Passos no Rio de Janeiro, Antnio Le-mos, na capital do Par, era um cruzado contra a barbrie e o atraso, o que tam-bm se manifestava no combate aberto aos grupos populares e de baixa renda do

    44 Ibid., p. 30 e s.

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    centro da cidade,45 forando-os a procurar os subrbios da capital.46 A partir do final do Oitocentos, o centro de Belm seria dominado por uma arquitetura re-finada, elegante, ecltica, na forma de construes que contavam, no raro, com arquitetos e matrias-primas procedentes da Europa.

    Esse cenrio, ajustado aos paradigmas do Progresso e da Civilizao, to caro s elites instaladas na sociedade e no Estado de um Brasil que se civilizava, causa-va espanto a homens como Euclides da Cunha, que passou por Belm nos albores do sculo XX. A iconografia do perodo, sobretudo na forma de cartes-postais, revela, com efeito, a fisionomia de uma cidade que parecia pertencer a um outro tempo e a um distinto espao. A belle poque da Belm da borracha firmara suas imagens, expandira seus mitos, enraizara suas legendas. Como na Paris de Bau-delaire, aqui tambm miserveis cortavam as avenidas, mas, como proclamava o discurso do Progresso e da Civilizao, as conquistas culturais e tcnicas do tempo os resgatariam para os domnios da Idade de Ouro...

    Passados os anos de ouro da belle poque da borracha, estabelecida a crise do lugar do ltex amaznico no mercado internacional, Belm herdou lugares da memria do contexto sociocultural de capital da borracha, na forma de seu mo-numentalismo, da sua esttica e tambm da narrativa do seu cotidiano presente nos jornais e demais publicaes da poca. verdade que tais lugares da mem-ria representam ideias, e, assim, so referentes a um momento histrico e a uma dada sociedade e seu recorte, na relao que a memria mantm com a sua pr-pria contemporaneidade. No tocante borracha, o que se tem buscado passar da memria histria, vale dizer, busca-se construir a narrativa histrica, terica e metodologicamente falando, de modo a revelar os muitos discursos e as vrias intertextualidades que nutrem as forma da realidade e da imaginao da belle poque da Belm da borracha.

    45 SARGES, Maria de Nazar. Memrias do velho intendente, p. 101 e s.46 SOARES, Karol Gillet. As formas de morar na Belm da belle poque (1870-1910).

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