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Na “contracorrente” do desenvolvimentismo: autonomia organizativa, democracia partidária e o socialismo radical da Liga Socialista Independente (1956-1960) In the countercurrent of developmentalism: organizational autonomy, party democracy and radical socialism of Independent Socialist League (1956-1960) RESUMO Este artigo se dedica à apresentação, análise e discussão das definições programáticas e dos traços organizativos da Liga Socialista Independente – LSI, principalmente no que tange ao seu posicionamento diante das propostas gerais da política desenvolvimentista e nos seus traços institucionais relativos à autonomia organizativa e democracia interna.Buscamos neste trabalho cumprir os seguintes objetivos: 1) Exame dos princípios programáticos mais gerais e o debate das definições programáticas para a situação política brasileira, que se encontram definidos nas fontes documentais analisadas. a; 2) A caracterização dos traços organizativos definidos em Estatuto, considerando que tais traços são mais reveladores da existência de um projeto do que de uma identidade forjada na prática concreta da ação político-partidária da LSI. 3) A análise crítica das escolhas feitas pela Liga, levando em conta a formação social da sua militância e as limitações e possibilidades institucionais à sua disposição. Como fontes, utilizamos todos os números publicados do “Ação Socialista”, jornal e veículo central da Liga; o Projeto de Programa e Estatutos, formulado e aprovado por unanimidade quando da fundação da agremiação, em 1956 e o depoimento de Michael Löwy, ex-militante da LSI. Os resultados foram obtidos a partir da comparação com as duas outras agremiações de extrema- esquerda que lhes eram contemporâneas: o trotskista Partido Operário Revolucionário (POR) e o Partido Comunista do Brasil (PCB). Concluímos que os traços organizativos fundamentais da Liga- grande margem de autonomia em relação às instituições externas e uma democracia interna significativa – possibilitou à LSI uma formulação programática bastante original, especialmente se comparada às propostas dos demais partidos da esquerda marxista. PALAVRAS-CHAVE Partidos de esquerda no Brasil; Marxismo e desenvolvimentismo; Institucionalização Partidária; Autonomia organizativa; Democracia partidária. Mabelle Bandoli Mestre em Ciência Política, Universidade Federal do Paraná - UFPR e-mail: [email protected] Recebido: 07/10/2013 Aceito: 20/12/2013 50 50 teoria&pesquisa REVISTA DE CIÊNCIA POLÍTICA vol. 22, n. 2, p. 50-70, jul./dez. 2013 ttp://dx.doi.org/ h 10.4322/tp.2013.023 A R T I G O

Na Contracorrente Do Desenvolvimentismo Autonomia

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Na contracorrente do desenvolvimentismo autonomia

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  • Na contracorrente do desenvolvimentismo: autonomia organizativa, democracia partidria e o socialismo radical

    da Liga Socialista Independente (1956-1960)

    In the countercurrent of developmentalism: organizational autonomy, party democracy and radical socialism of Independent Socialist League (1956-1960)

    RESUMO Este artigo se dedica apresentao, anlise e discusso das definies programticas e dos traos organizativos da Liga Socialista Independente LSI, principalmente no que tange ao seu posicionamento diante das propostas gerais da poltica desenvolvimentista e nos seus traos institucionais relativos autonomia organizativa e democracia interna.Buscamos neste trabalho cumprir os seguintes objetivos: 1) Exame dos princpios programticos mais gerais e o debate das definies programticas para a situao poltica brasileira, que se encontram definidos nas fontes documentais analisadas. a; 2) A caracterizao dos traos organizativos definidos em Estatuto, considerando que tais traos so mais reveladores da existncia de um projeto do que de uma identidade forjada na prtica concreta da ao poltico-partidria da LSI. 3) A anlise crtica das escolhas feitas pela Liga, levando em conta a formao social da sua militncia e as limitaes e possibilidades institucionais sua disposio. Como fontes, utilizamos todos os nmeros publicados do Ao Socialista, jornal e veculo central da Liga; o Projeto de Programa e Estatutos, formulado e aprovado por unanimidade quando da fundao da agremiao, em 1956 e o depoimento de Michael Lwy, ex-militante da LSI. Os resultados foram obtidos a partir da comparao com as duas outras agremiaes de extrema-esquerda que lhes eram contemporneas: o trotskista Partido Operrio Revolucionrio (POR) e o Partido Comunista do Brasil (PCB). Conclumos que os traos organizativos fundamentais da Liga- grande margem de autonomia em relao s instituies externas e uma democracia interna significativa possibilitou LSI uma formulao programtica bastante original, especialmente se comparada s propostas dos demais partidos da esquerda marxista.

    PALAVRAS-CHAVE Partidos de esquerda no Brasil; Marxismo e desenvolvimentismo; Institucionalizao Partidria; Autonomia organizativa; Democracia partidria.

    Mabelle BandoliMestre em Cincia Poltica, Universidade Federal do Paran - UFPR e-mail: [email protected]

    Recebido: 07/10/2013 Aceito: 20/12/2013

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    vol. 22, n. 2, p. 50-70, jul./dez. 2013ttp://dx.doi.org/h 10.4322/tp.2013.023

    A R T I G O

  • bem definido de documentos oficiais, entre eles um estruturado Projeto de Programa e Estatutos.

    A Liga, fundada em 1956 por militantes rompidos com a IV Internacional1, propunha uma crtica radical ao modelo organizativo bolchevique (LSI, 1956). Defendia a formao de organizaes partidrias menos centralizadas no que diz respeito possibilidade de formulao e tomada de decises, trao caracterstico das teses de Rosa Luxemburgo (Bogo, 2010). O partido definiu em estatuto espaos para livre contestao e organizao de tendncias baseadas na discordncia poltica, pressupondo que qualquer militante poderia e deveria influenciar a linha poltica a ser adotada. A Liga propunha que se ampliasse a participao dos seus militantes em

    1 A Quarta Internacional (QI) uma organizao comunista internacional, fundada na Frana em 1938, aps Trotsky e seus seguidores serem expulsos da Unio Sovitica.

    IntroduoEste artigo se dedica apresentao, anlise e discusso das definies programticas e dos traos organizativos da Liga Socialista Independente LSI, principalmente no que tange ao seu posicionamento diante das propostas gerais da poltica desenvolvimentista e nos seus traos institucionais relativos autonomia organizativa e democracia interna (Panebianco, 2005). Apesar de no se declarar exatamente como uma organizao partidria (o que se explica pela rejeio dos seus militantes aos modelos at ento propostos pelas organizaes de esquerda, principalmente as que se filiavam ao bolchevismo), a LSI apresentou, durante a sua breve existncia, vrios traos que a identificam com os demais partidos clandestinos da poca a saber, o Partido Comunista do Brasil (stalinista/marxista-leninista) e o Partido Operrio Revolucionrio (de orientao trotskista). Em relao a alguns deles, tem ainda a vantagem de ter criado, imediatamente sua fundao, um corpo de

    ABSTRACT This article is dedicated to the presentation, analysis and discussion of programmatic definitions and organizational features of the Independent Socialist League - LSI, especially in regard to their attitudes towards the general proposals of development policy and its institutional features relating to organizational autonomy and internal democracy. This work aims at fulfilling the following objectives: 1) Examination of the general programming principles and discussion of programmatic settings for the Brazilian political situation, which are defined in the documentary sources analyzed. 2) characterizing organizational traits defined in the Statute, considering that such traits are more revealing the existence of a project than an identity forged in concrete practice of partisan political action of LSI. 3) A critical analysis of the choices made by the League, taking into account the social formation of its militancy and institutional constraints and possibilities at your disposal. As sources, we used all the published numbers of Socialist Action, journal and central vehicle of the League; the Draft of Programme and Statutes, formulated and adopted unanimously as the foundation of the club in 1956 and testimony by Michael Lwy, former militant of LSI. The results were obtained from the comparison with the other two associations of the extreme left who were contemporary to them: the Trotskyist Revolutionary Workers Party (POR) and the Communist Party of Brazil (PCB). We conclude that the basic organizational features of League - wide margin of autonomy from external institutions and a significant internal democracy - allowed the LSI quite unique programmatic formulation, especially compared to the proposals of other parties of the Marxist left.KEYWORDS Left parties in Brazil; Marxism and developmentalism; Party Institutionalization; Organizational autonomy, Party democracy.

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    um projeto de Estado Socialista, com definio de poderes e instncias pblicas de deciso poltica como Assemblia Geral, Poder Judicirio, entre outros.

    O documento traz ainda definies claras sobre os princpios programticos da Liga, que se aplicavam leitura da poltica brasileira na poca, s disputas nacionais e internacionais da extrema esquerda, s indicaes para organizao do poder poltico institucional relativas tanto ao regime democrtico-liberal quanto composio do Estado sob o socialismo e dinmica propriamente partidria. Alm disso, apresentamos os resultados da de leitura de todos os exemplares do jornal Ao Socialista, publicado pela LSI de junho de 1958 a meados de 1960, totalizando nove edies.

    Dessa forma, buscamos neste trabalho cumprir os seguintes objetivos: 1) Exame dos princpios programticos mais gerais e o debate das definies programticas para a situao poltica brasileira, que se encontram definidos no programa e tambm em textos publicados na imprensa partidria. Para mapear a sua posio em relao s proposies comunistas e do contemporneo POR, procuramos discutir especialmente esses ltimos escritos, j que se destinavam ao debate direto de propostas, alm de traduzirem os princpios gerais do programa na poltica cotidiana; 2) A caracterizao dos traos organizativos definidos em Estatuto, considerando que tais traos revelam mais um projeto que uma identidade forjada na prtica concreta da ao poltico-partidria da LSI. Essa ressalva amenizada pelo fato de que a prpria elaborao do Estatuto buscava responder s questes prticas colocadas pela ao poltica que os militantes desempenharam em outras organizaes. 3) A anlise crtica das escolhas feitas pela Liga, levando em conta a formao social da sua militncia e as limitaes e possibilidades institucionais sua disposio.

    A Origem da Liga como Desdobramento da Aspirao IndependnciaA ciso gerada pelo III Congresso da IV Internacional2 foi decisiva para a criao da Liga. Contrrio s teses

    2 O III Congresso da IV Internacional, realizado em 1951 em Paris. Nesse congresso, o ento secretrio-geral, o grego M. Raptkis (em codinome Michel Pablo) apresentou um polmico conjunto de teses que, ao serem aprovadas, reorientaram toda a poltica dos partidos filiados. Neles encontravam-se as bases de uma vertente do trotskismo que ficou conhecida como pablismo. A poltica proposta por Pablo e aprovada no III Congresso foi denominada como entrismo sui generis e sugeria infiltrar os partidos filiados IV Internacional nos partidos comunistas de seus pases, gerando a primeira diviso da organizao: em novembro de 1953, as sees partidrias que optaram por se opor s teses pablistas organizaram o Comit Internacional da

    diversos espaos decisrios, acreditando que essas formas de ao tambm permitiam aprimorar sua educao poltica e conscincia de classe (LSI, 1956).

    Os membros da Liga eram, em sua maioria, jovens estudantes universitrios - havia apenas um nico operrio, sapateiro de origem anarquista que vinha das fileiras do extinto Partido Socialista Revolucionrio (PSR) - localizados no Rio de Janeiro e em So Paulo. Na organizao militaram Hermnio Sacchetta, Paul Singer, Michael Lwy, os irmos Eder e Emir Sader, Gabriel Cohn, Maurcio Tragtenberg e Moniz Bandeira (Ferreira, 2005). Publicou o jornal Ao Socialista, que teve tiragem de 500 exemplares e manteve-se atuante at 1960. Em nossa opinio, a predominncia de quadros universitrios na agremiao um elemento bastante importante para a conformao programtica da Liga, especialmente para a apario, em seus textos, de temas e propostas polticas que se diferenciavam significativamente dos demais partidos da extrema esquerda brasileira na poca. Trataremos desse assunto na parte do texto que se dedica anlise programtica da LSI.

    A maioria dos militantes envolvidos na fundao e nas atividades da Liga j havia experimentado a atuao em outras organizaes. Hermnio Sachetta, por exemplo, tinha uma significativa bagagem poltica, acumulada em mais de vinte anos de militncia nas fileiras do PCB e do trotskista PSR. Talvez o mrito de reunir experincias to ricas tenha sido o exato contrapeso ao seu reduzidssimo efetivo - segundo Michael Lwy (apud Sachetta, 1992), o grupo nunca passou de vinte pessoas - estabelecendo um equilbrio que permitiu a elaborao das refinadas leituras que justificam, pela sua originalidade, a incluso da organizao nessa anlise.

    Entre os partidos da extrema esquerda brasileira dos anos 1950, nos textos da LSI que encontramos maior nmero de propostas alternativas s presentes nos documentos do PCB - principal organizao marxista da poca, que definia os termos e limites do debate poltico nesse campo. Na Proposta de Programa luxemburguista, pouco se aborda o tema da industrializao - princpio que conduz toda a linha programtica do Partido e dos trotskistas do Partido Operrio Revolucionrio (POR) como imperativo para o desenvolvimento econmico e poltico do pas. No documento h um espao substancial dedicado questo agrria (tratada de forma muito distinta da viso pecebista, que a vinculava idia de atraso e de permanncia de traos feudais no modo de produo), questo da educao e da maximizao dos espaos de atuao e deciso poltica dos trabalhadores em sindicatos, conselhos, rgos de gesto estatal, etc. Alm disso, o programa apresenta

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    de Michel Pablo, em 1952 Sachetta rompeu com o trotskismo. Segundo Luiz Alberto Moniz Bandeira (2008) (apud Oliveira, 2008) essa divergncia evoluiu para a tese de que a URSS era um Capitalismo de Estado - tese, alis, presente no Programa da LSI - e para a convico de que o modelo poltico bolchevique era o grande responsvel pelo fenmeno stalinista. No entanto, assim como Sachetta e Alberto Luiz da Rocha Barros, Bandeira afirma ter negado a conceituao da URSS como estado operrio degenerado e demais posies que considerava muito sectrias, formuladas por outros militantes dissidentes que almejavam construir um novo partido. O grupo acabou aderindo ao marxismo luxemburguista, corrente que, como veremos, orientou boa parte das formulaes da LSI.

    Sachetta, Bandeira e Rocha Barros se unem a alguns militantes trotskistas que tinham rompido com a IV [Internacional] e que eram revolucionrios (Oliveira, 2008: 41) e fundam a Liga. Em comum, seus primeiros membros tinham a postura de crtica forma de organizao partidria defendida por Lnin no Que Fazer? (publicado originalmente em 1903) e a busca da sntese efetiva entre revoluo e democracia, socialismo e liberdade (Lwy apud Sachetta, 1992). Exercendo um papel de liderana inconteste no grupo,

    Saccheta formulava uma orientao poltica que ia categoricamente a contrapelo dos lugares comuns da esquerda brasileira desta poca. Recusando o populismo, o nacionalismo, a ideologia do desenvolvimento e a poltica das reformas, ele insistia obstinadamente na necessidade de uma orientao classista, internacionalista, socialista-revolucionria. O inimigo era o capitalismo nas suas duas verses: a sociedade burguesa ocidental e o capitalismo de Estado sovitico. Seus editoriais no Ao Socialista, redigidos num estilo inconfundvel com muitos adjetivos raros a substantivos pouco usados denunciavam as vrias facetas da poltica das classes dominantes (e seus porta-vozes no movimento operrio) (Lwy apud Sachetta, 1992: 81).

    IV Internacional (CI). A frao que se manteve ligada direo de Pablo reuniu boa parte dos partidos trotskistas, de nome Secretariado Internacional (SI). Na Amrica Latina, o Congresso devia ainda decidir sobre a disputa entre as organizaes lideradas por Nahuel Moreno e J. Posadas para representar oficialmente a IV Internacional na Argentina e organizar o trabalho nos pases vizinhos. Na poca, Posadas se apresentava com uma poltica mais compatvel com a linha recm aprovada pela organizao. Seu grupo foi declarado seo argentina da IV, e ele se manteve como o encarregado da organizao do Bureau Latino-Americano da Internacional, o BLA. Seguindo na oposio direo pablista, Moreno apoiou o CI, e, em 1954, reuniu-se a dirigentes de outros partidos do continente para formar o Secretariado Latino-Americano do Trotskismo Ortodoxo (SLATO), uma organizao concorrente ao BLA.

    A crtica ao centralismo e a caracterizao da Unio Sovitica como um capitalismo de Estado aproximavam a LSI das teses luxemburguistas e as afastavam da IV Internacional. Mas algumas aproximaes com as anlises trotskistas so percebidas nas apreenses do capitalismo no Brasil. Como bem observa Pedro Roberto Ferreira (Ferreira, 2005), a utilizao de conceitos como desenvolvimento desigual e combinado identificam as formulaes da Liga mais com Trotsky e Lnin do que com Rosa Luxemburgo.

    A Liga Socialista Independente dava continuidade ao trotskismo no Brasil, ao entender que a burguesia industrial que se combinava com a agrria sob as determinaes de uma financeira e internacional, necessitava de um Estado na reproduo do seu capital, de um bonapartismo, sobretudo, frente aos movimentos sociais, polticos, mais graves, para frear os movimentos mais radicais do proletariado (Ferreira, 2005: 43).

    Adiantando algumas anlises, tambm presentes na Revoluo Burguesa de Florestan Fernandes (Fernandes, 2009)3, a LSI avaliava que o capitalismo monopolista, ao se deparar com formas de produo pr-capitalista, as submete sua lgica, gerando um desenvolvimento desigual e combinado dirigido pelo capital financeiro. O capitalismo tardio que se desenvolveu no Brasil [...] combinava situaes econmicas desiguais em seu territrio com reflexos nas organizaes polticas e partidrias da burguesia [...] (Ferreira, 2005). O regime poltico burgus brasileiro no experimentou grandes transformaes democrticas. Os traos autocrticos da dominao burguesa (Fernandes, 2009) e a herana dos longos perodos ditatoriais se faziam sentir mesmo nos intervalos democrticos.

    As conseqncias conferiam aos socialistas maiores dificuldades no trabalho de mobilizao e conscientizao dos trabalhadores, j que se mantinha a freqente combinao entre represso e manipulao imposta pela burguesia poltica nacional. A formao de um ambiente democrtico-burgus foi impossibilitada pela

    [...] estrutura econmica marcada pelo domnio da grande propriedade no campo, com os seus milhares de trabalhadores assalariados em condies miserveis, aliada ao predomnio da

    3 A relao de amizade e colaborao intelectual com Hermnio Sachetta se iniciou, segundo o prprio Florestan Fernandes, ainda nos anos 1940. As idias e a personalidade do militante so descritas por Fernandes em rico e emocionado depoimento publicado em 1991 na coletnea O caldeiro das bruxas e outros escritos polticos, pela Editora da Unicamp.

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    grande indstria a do alto comrcio nos centros urbanos, que monopolizavam o controle dos meios de produo, a produo e a distribuio dos produtos no mercado, gerando consumo para poucos. (Ferreira, 2005: 44).

    Nada mais apropriado, portanto, que a defesa intransigente de uma poltica pautada pela independncia de classe, o que afastava a LSI do POR e do PCB. Expresses como a revoluo em etapas, aliana com a burguesia progressista ou mesmo a superao dos restos feudais no faziam sentido em seu lxico. O apoio dos comunistas candidatura de Jnio Quadros e a insistncia do POR em se manter a reboque do PCB estavam fora dos horizontes polticos da Liga. Em comentrio elaborado sobre a disputa eleitoral entre Lott e Jnio, o Ao Socialista, em texto assinado por Hermnio Sachetta, afirma:

    A gravidade disso, para as rudimentares instituies democrticas brasileiras e, sobretudo, para os trabalhadores, repousa em que, eleito presidente, qualquer dos dois tender a evoluir para o bonapartismo, isto , para o poder unipessoal, supostamente acima das classes. E as presentes e catastrficas condies scio-financeiras do Brasil, que prometem agravar-se, ao extremo, no decurso deste ano, conforme os prprios economistas burgueses, propiciaro, com as greves e lutas de massas em ritmos ascendente, o clima para tentativas de ditadura, facilitada pela origem hbrida e formao mental de ambos os candidatos. Se que um dos candidatos chegue mesmo a tornar-se presidente, hiptese insegura, face ao descalabro da situao econmico-financeira e por fora dos dois blocos eleitorais em presena, ambos de cunho inelutavelmente demaggico. (Sachetta, 1992: 110).

    As prioridades da LSI estavam mais ligadas conscientizao dos trabalhadores atravs da progressiva ampliao de sua participao poltica atividade que a tradio luxemburguista acredita ser primordial para o amadurecimento da conscincia revolucionria. Por isso, defendia que as liberdades democrticas deviam ser radicalizadas, elevando ao mximo as potencialidades presentes nas instituies do regime liberal.

    Longe esto os socialistas marxistas de amar a legalidade burguesa. Mas de modo algum desejam v-la substituda por uma DITADURA BURGUESA, civil ou militar, que apenas poder trazer para o proletariado e s massas populares maior misria e mais dura opresso. Ao contrrio, o que reclamam os socialistas marxistas, que no crem absolutamente na burguesia e menos ainda em um ditador iluminado , antes, a ampliao

    em seus limites mximos, das atuais instituies democrticas. (Sachetta 1992: 106, grifo do autor)

    Como vanguarda revolucionria dos trabalhadores, os militantes da LSI assumiam a responsabilidade de promover a conscientizao dos espoliados, levando at eles o acmulo das formulaes tericas fundamentais produzidas pelos socialistas. De fato, o Programa oficial da Liga dedica boa parte das suas propostas s polticas relativas educao. interessante notar que muitas delas so dirigidas ao que a organizao chama de realizao imediata, ou seja: antes mesmo que se concretizasse a meta de substituir o Estado capitalista pela Sociedade Socialista (LSI, 1956).

    Socialismo com Democracia: Princpios Programticos para a Ao PolticaA preocupao com a ampliao dos espaos democrticos e de participao aparece com destaque nos princpios fundamentais que orientam o Programa da LSI. Em sua definio de socialismo, o documento afirma:

    O socialismo, quando critica as liberdades formais da democracia burguesa, no pretende destruir a liberdade, mas dar-lhe formas concretas que possam, efetivamente, ser utilizadas por todos. Como j foi afirmado, a questo da forma democrtica uma questo de contedo socialista. A luta pelo Socialismo inseparvel da luta pela Liberdade, do mesmo modo que a luta pela Liberdade hoje inseparvel da luta pelo Socialismo. (LSI, 1956).

    A definio programtica em dois momentos distintos - o da aplicao integral de seu programa no regime social em que ser totalmente suprimida a explorao do homem pelo homem (LSI, 1956) e o da progressiva realizao das reivindicaes imediatas - um dado importante. A nosso ver, essa diviso que permite Liga formular simultaneamente as metas gerais da organizao e seus objetivos polticos diretos, o que a tradio leninista denominaria como a necessria combinao de objetivos tticos (imediatos) com os objetivos estratgicos (de longo prazo).

    No que diz respeito aos princpios que orientavam sua organizao poltica, as propostas contidas no programa oferecem um panorama rico para a anlise. Elas versam desde a imediata defesa intransigente e ampliao das liberdades democrticas at a organizao do Estado em um regime pluri-partidrio socialista. A sntese entre socializao dos meios de

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    produo e democratizao poltica reafirmada como princpio fundamental da Liga. No seu programa, a democracia tratada como um princpio geral de organizao da sociedade, como um valor que deve nortear todas as relaes humanas. A militncia socialista e a organizao do Estado so apenas duas das inmeras dimenses polticas que deveriam ser orientadas pelo mesmo princpio.

    Definindo a democracia como o sistema em que o desenvolvimento de cada um condio do desenvolvimento de todos, e vice-versa, o Socialismo representa a forma mais completa e mais profunda da vida democrtica, pois significa a sua aplicao a todos os setores da atividade humana. Para o Socialismo, dentro das possibilidades reais oferecidas pelo desenvolvimento das foras produtivas, liberdade a possibilidade plena assegurada a todo ser humano de desenvolver e utilizar ao mximo as suas capacidades e virtualidades. Para o Socialismo, igualdade a posse efetiva da liberdade. a liberdade tornada concreta. (LSI, 1956)

    Em oposio a tais princpios fundamentais, a Liga elege seus maiores inimigos: Complementares em uma mesma realidade alienadora, os dois se fortalecem mutuamente, sendo o totalitarismo fruto poltico das necessidades de salvar o sistema capitalista em nossa poca de contradies finais. A supresso das liberdades polticas realizadas nos diversos regimes totalitrios indicam, para a LSI, a impossibilidade absoluta de combin-lo com o socialismo.

    medida que centralizam o controle e a dominao da economia e da sociedade nas mos de um nmero cada vez menor de pessoas, ou de um chefe nico, cria-se uma estrutura de relaes sociais propcia implantao de uma ideologia totalitria. As formas antidemocrticas das relaes sociais tanto criam trabalhadores em condies subjetivas de confuso, ignorncia e desalento, quanto permitem o monoplio totalitrio de informao, de pensamento e de educao. Esse processo particularmente perigoso e nefasto nos pases e povos de fraca ou nenhuma tradio democrtica. [...] Dentro da estrutura geral do capitalismo de Estado, a alternativa histrica , em suas grandes linhas, a seguinte: Totalitarismo ou Socialismo. (LSI, 1956)

    Evitar o fomento ao ambiente propcio poltica totalitria, criar relaes sociais orientadas pelos princpios democrticos, socializar o poder decisrio e promover a participao poltica so estratgias que os luxemburguistas acreditam fornecer antdotos eficazes s deformaes burocrticas vividas pelo comunismo sovitico. As chamadas condies subjetivas ganham destaque no programa da Liga,

    que subverte uma das principais bases do pensamento pecebista: a afirmao da meta do desenvolvimento das foras produtivas como prioridade absoluta para a transformao revolucionria da sociedade.

    No que diz respeito questo democrtica, o texto produzido pela LSI , tanto nas propostas de aplicao imediata(que contam, como observamos, com uma seo especfica do Projeto de Programa da Liga) e em algumas das propostas gerais (dispersas por todo documento), se compara, em alguma medida, aos documentos oficiais produzidos pelo PCB no mesmo perodo, especialmente com o texto aprovado pelo IV Congresso do Partido, em 1954 (PCB, 1954). Reivindicaes como ampliao do direito ao voto para analfabetos e setores militares, autonomia administrativa entre os rgos dos governos em nvel municipal, estadual e federal, bem como a possibilidade de revogao dos mandatos por iniciativa popular constam nos programas comunistas, bem como nos luxemburguistas. No entanto, observamos que as propostas de ampliao da participao direta dos trabalhadores em vrias instncias decisrias, bem como em conselhos gestores de fbricas e empresas so mais freqentes no programa da LSI. Alm disso, a defesa de determinados princpios da democracia liberal no acarreta, no texto da Liga, na reivindicao da construo de alianas com os chamados setores progressistas da burguesia, ou na sugesto da formao de governos de Frente Ampla, como o que se coloca nos documentos pecebistas em especial no texto aprovado no V Congresso do Partido (PCB, 1960), realizado depois da sua reorientao poltica (Segatto, 1995).

    O determinismo econmico e o produtivismo caractersticos do programa comunista tambm no se encontram nas linhas do documento fundador da Liga. As necessidades essencialmente polticas do projeto socialista so salientadas pela LSI, que aponta a importncia de manter sobre elas a ateno redobrada, mesmo depois da derrubada do Estado burgus pelo proletariado. A negligncia em relao permanente necessidade de socializar o poder poltico e aprofundar a democracia atravs da participao efetiva dos trabalhadores nos processos decisrios dentro e fora do partido teria sido uma das causas da derrocada totalitria da Revoluo Russa.

    A histria dos nossos dias tambm est a mostrar, clamorosamente, que as formas autocrticas do pretenso socialismo estaliniano de inspirao bolchevista no s submeteram os trabalhadores ao despot ismo dos Estados de regime monopartidrio como disseminaram uma nefasta confuso na conscincia militante das vanguardas operrias, fazendo com que o Socialismo, que a mais alta expresso da liberdade do homem, seja

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    apresentado como a total alienao dessa mesma liberdade em favor de grupos de chefes que se apossam do poder do proletariado. Essa crtica ainda vlida mesmo para os partidos comunistas que, aps o XX Congresso do PCUS, repudiaram o culto da personalidade, mas mantm ainda as formas organizatrias totalitrias que conduzem aos mesmos erros e traies da classe operria. (LSI, 1956, grifo nosso).

    Frisemos essa meno s formas organizatrias totalitrias atribudas aos partidos comunistas. Por ora, ela ser tratada como mais um indicativo da presena da democracia no programa da Liga como um valor em si, e no s como um regime poltico especfico, o regime democrtico-liberal (embora os luxemburguistas defendessem algumas das suas caractersticas, como veremos a seguir). Mas notemos que essa observao ser fundamental para, mais adiante, discutirmos o modelo organizativo que orientou as definies estatutrias do partido e seus traos institucionais.

    Feito esse parntesis, passamos s propostas polticas da LSI para a organizao poltica do Estado socialista. Sem mencionar a abolio das formas representativas de democracia, o programa defende a criao de [...] conselhos, sindicatos e outras formas de representao econmico-poltica dos produtores diretos [...] (LSI, 1956, grifo nosso), com representao proporcional de todas as tendncias anticapitalistas (LSI, 1956). O carter anticapitalista, marxista ou no, s poderia ser decidido pela Assemblia Nacional, que teria o poder de declarar a legalidade ou ilegalidade dos partidos.

    A Assemblia Nacional seria o rgo mximo do poder poltico do Estado e deveria funcionar como [...] cmara nica nacional dos representantes do povo, parlamento permanente e soberano [...] (LSI, 1956). As eleies dos representantes para a Assemblia Nacional - bem como para os demais rgos do Estado - se dariam por

    [...] voto secreto, universal e direto para todos os maiores de 18 anos, sem distino de sexo, nacionalidade, grau de instruo, crena religiosa, convico filosfica ou atividade profissional [...] (LSI, 1956).

    Dela se formaria uma Comisso Executiva Colegiada, subordinada diretamente mesma Assemblia. Todos os mandatos poderiam ser cassados por determinao dos eleitores.

    O poder judicirio deveria contar com autonomia funcional, e os princpios eletivos tambm se aplicavam a todos os seus graus e formas; o Estado devia ser laico, separando-se completamente das

    [...] diferentes igrejas ou crenas religiosas, de modo que nenhuma delas receba do Estado subvenes ou auxlios financeiros, nem mantenha com ele relaes de dependncia ou aliana [...] (LSI, 1956).

    A organizao em Unio Federativa seria mantida somente enquanto no fossem eliminadas as atuais desigualdades econmico-sociais nas diferentes regies do pas. Em respeito s convenincias gerais da reorganizao socialista da sociedade (LSI, 1956), a Liga defendia uma progressiva descentralizao administrativa, buscando fortalecer a iniciativa direta das regies e municpios.

    Em todo caso, essa e as demais diretrizes tinham carter provisrio, e se manteriam apenas durante o tempo em que o Estado se fizesse necessrio, [...] sobretudo para conter as tentativas de restabelecimento da ordem capitalista ultrapassada [...] (LSI, 1956). Sua existncia se justificaria apenas para garantir a [...] administrao sobre as coisas e no como forma de opresso e de automatizao dos homens [...] (LSI, 1956). Para que sua funo administrativa no se convertesse em uma deformao dos rumos almejados pelos socialistas, seria necessrio [...] combater toda burocratizao tecnicamente excessiva e politicamente reacionria dentro dos rgos estatais [...] (LSI, 1956), desencorajando a formao de uma camada de trabalhadores administrativos que se beneficiasse com remunerao superior dos operrios qualificados.

    Importante notar que todos os rgos de poder at aqui citados seriam comandados, segundo o programa da LSI, por mecanismos de representao poltica. Ainda que aumentem significativamente o alcance das esferas de deciso dirigidas por lideranas eleitas diretamente pela vontade popular, os luxemburguistas no chegam a afastar muito sua utopia de Estado Socialista das caractersticas bsicas do regime democrtico-liberal. Demonstra-se aqui que a sua preocupao com a ampliao das instituies democrticas j existentes extrapolava os limites da radicalizao progressiva da democracia burguesa, se estendendo para a Sociedade Socialista que deveria se construir aps o perodo revolucionrio.

    Em seus objetivos histricos fundamentais, a LSI afirma, alm da transformao do Estado capitalista em sociedade socialista, os seguintes projetos:

    No terreno econmico o objetivo da LSI tornar propriedade comum e efetiva dos produtores diretos toda riqueza produzida pelo seu trabalho, atravs da socializao dos meios de produo; No terreno cultural, o objetivo da LSI a educao da coletividade em bases democrtico-socialistas, visando fraternidade humana atravs de mais

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    altas formas de desenvolvimento pessoal e social, com a abolio de todos os privilgios de classes ou preconceitos de nacionalidade, sexo e raa; A LSI, embora assente seu esforo principal na libertao do proletariado, no se destina a lutar pelos interesses exclusivos de apenas um setor dos trabalhadores, mas pelos interesses de todos os que vivem do seu prprio trabalho. (LSI, 1956).

    Note-se que, alm do destaque educao da coletividade em bases democrtico-socialistas, os luxemburguistas afirmam no estabelecer hierarquias entre os diferentes setores dos trabalhadores, o que, como veremos, os distingue substancialmente das propostas pecebistas e trotskistas que viam no proletariado urbano industrial o grande sujeito da luta de classes. Essa alterao, mais do que uma simples divergncia ttica, assinala a peculiaridade do programa da LSI em relao aos demais.

    Essa particularidade se deve, a nosso ver, anlise que a Liga fazia da situao brasileira. Ainda que, como os trotskistas, os luxemburguistas se inspirem em muitas categorias encontradas nos textos de Caio Prado Junior e de Trotsky, as articulaes conceituais que realizavam se desenvolviam de uma forma bastante distinta daquela caracterstica dos textos do POR que, como vimos, precisava mediar as deliberaes do Bureau Latino Americano da IV Internacional com as disputas travadas no interior do PCB.

    Para a LSI, o Brasil era um pas no qual o capitalismo teria se desenvolvido de maneira retardatria, o que no o teria permitido resolver a questo agrria, nem se libertar da sua sujeio ao Imperialismo. Tal condio imporia uma redobrada explorao sobre seus trabalhadores, que se veriam oprimidos pela burguesia nacional e, atravs dela, pelo Imperialismo. A burguesia nacional - que para a LSI se dividia internamente em duas fraes de classe, a industrial e a latifundiria - contaria com uma escassa capitalizao, o que a levaria a buscar mais formas de extorso da mais-valia e a reclamar uma taxa de lucro de alto nvel, o que redundaria em [...] brutal explorao econmica, no apenas da classe operria, mas tambm da pequena burguesia, na cidade e no campo. (LSI, 1956).

    A evoluo capitalista do pas teria sido historicamente deformada pela sujeio imposta pelo capital financeiro, que, contendo a expanso industrial, se apossou direta ou indiretamente dos setores bsicos da nossa economia. Os recentes (e altos) investimentos diretos na indstria, no comrcio e na agricultura, se motivavam pelas as possibilidades crescentes de nosso mercado interno e pelo baixo preo de nossa mo-de-obra.

    Essa corrida de capitais imperialistas para o Brasil encontra, tambm, sua explicao no pujante movimento operrio e de libertao nacional em outras reas do mundo que est criando sucessivos problemas de expropriao aos magnatas, senhores dos meios de produo. Devemos acrescentar que, pela legislao vigente, o Brasil exporta anualmente, a ttulo de transferncia de lucros, muito maior capital que recebe. (LSI, 1956)

    Sobre a explorao da terra, os luxemburguistas ressaltam seu carter extensivo, baseado no latifndio. O Brasil conservaria [...] os traos gerais bsicos de uma economia colonial de monocultura latifundiria [...] (LSI, 1956) caracterizada por uma mo-de-obra muito barata e pela monopolizao da terra, com foco na produo de gneros tropicais e de matrias-primas para o mercado exterior e pela importao de produtos acabados a preos impostos, na venda e na compra, pelo capital imperialista. A propriedade pequena e mdia, em termos de rea, constituiria parcela pouco mais que desprezvel (LSI, 1956) da realidade do meio agrrio brasileiro. A estrutura fundiria brasileira seria, por sua natureza e pelos mtodos que adotava para a produo, um dos grandes entraves ao desenvolvimento econmico nacional. Condicionando os mtodos servis de explorao do trabalho e amparando a penetrao imperialista na esfera industrial, ela propiciaria tambm, em curto prazo, a [...] destruio de nossos melhores solos e recursos florestais [...] (LSI, 1956).

    No entanto, preciso ressaltar que esse quadro geral estaria longe de ferir os interesses da chamada burguesia nacional. Os luxemburguistas afirmavam que no fazia sentido acreditar que a burguesia industrial seria uma camada muito distante e oposta dos latifundirios. Suas disputas, na verdade, eram querelas entre fraes de uma mesma classe, e no entre uma classe de senhores feudais e outra, emergente, de capitalistas progressistas. Dessa forma:

    A soluo desses dois problemas - o agrrio e a sujeio ao imperialismo que, historicamente devia ter sido encontrada pela prpria burguesia nacional, hoje, dada a fraqueza e a integrao desta nos interesses gerais da economia capitalista, constitui misso histrica da classe operria e dos trabalhadores em geral. Essas tarefas histricas, de carter burgus, ainda no realizadas, sero resolvidas pelos trabalhadores em um processo nico e entrelaado com seus objetivos socialistas. Os passos iniciais deste processo sero dados ao concretizar-se a unidade de ao entre o proletariado urbano e rural. (LSI, 1956).

    A burguesia nacional, portanto, estaria mais interessada em resolver os problemas desse

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    capitalismo retardatrio, mas resolver a seu modo e a seu favor. Isso significaria que, longe das aspiraes progressistas atribudas pelo PCB, essa burguesia, ao reconhecer sua debilidade, se amparava no Estado para ampliar seu poder econmico e social, aumentando a presso sobre os ombros da classe trabalhadora. Esse movimento seria o distintivo fundamental do processo de industrializao do Brasil.

    Mais rapidamente do que nos pases altamente desenvolvidos o capitalismo de Estado, em nosso pas, faz hoje violenta incurso em todos os mbitos de nossa estrutura econmico-social. A burguesia nacional, retardatria e j senil, ampara-se diretamente no Estado para a soluo dos problemas econmicos e polticos fundamentais. No domnio da energia e da indstria pesada, ao Estado foi atribuda, pela classe dominante, a soluo das questes que o capitalismo privado incapaz de resolver. Mas no se limita apenas a este setor a presena do Estado. Sua interferncia se faz sentir, ativamente, nos preos e no amparo direto aos capitalistas e latifundirios, atravs da fixao de preos mnimos, subsdios, e manipulaes cambiais protecionistas, quase sempre em detrimento dos produtores diretos e consumidores em geral. As decorrncias polticas dessa estrutura econmica so evidentes. Alm de a acumulao capitalista se realizar protegida e estimulada pela mquina estatal, o Estado aprimora gradativamente seus recursos de coero sobre a coletividade. Na esfera sindical, atravs do Ministrio do Trabalho, no s vem enfeudando as entidades dos trabalhadores como promove, por todos os meios, a corrupo dos lderes sindicais. (LSI, 1956)

    Como soluo geral para essa situao, a LSI propunha que o movimento dos trabalhadores urbanos e rurais se unisse em torno da perspectiva de uma sociedade socialista, que reorganizaria a economia e restabeleceria as formas de propriedade no pas. Nesse sentido, destacam-se os projetos relativos socializao das terras e dos meios de produo industrial, bem como a nacionalizao dos bancos estrangeiros.

    [...] A terra passar a ser propriedade da nao, procedendo-se sua expropriao sem indenizao de seus antigos possuidores, estrangeiros e nacionais. A terra ser socializada e, segundo a importncia demogrfica e econmica das regies sero organizadas fazendas-nacionais e fazendas-cooperativas, assistidas material e tecnicamente pelo Estado. Dado que a fragmentao da terra, quando produtivamente organizada cria obstculos ao progresso social, o problema do latifndio ser resolvido pelo sistema de grandes unidades

    produtoras. [...]. As terras devolutas do Estado sero igualmente entregues aos trabalhadores. Criao de centrais agrcolas, fazendas-piloto, e disseminao de institutos agronmicos. Dada a diversidade do desenvolvimento econmico e da constituio geofsica das regies nacionais, onde e quando no for vivel a explorao coletiva imediata, ser facultado o parcelamento das terras em pores de trabalho e usufruto familiar, a ttulo precrio. 3 Indstria - Socializao dos meios de produo industrial, a partir dos setores bsicos. Expropriao e nacionalizao das empresas estrangeiras e grandes empresas nacionais, sem indenizao que passaro gesto direta dos trabalhadores. Planificao democrtico-socialista da produo em benefcio dos trabalhadores, realizada pelos prprios trabalhadores. Abolio dos trustes, monoplios ou cartis de qualquer ordem, imperialistas ou nacionalistas. [...] Oramento Os gastos pblicos sero orados e autorizados pelos conselhos, sindicatos e outras formas de representao econmico-poltica dos produtores diretos, atravs de sua representao nas assemblias regionais e na Assemblia Nacional, de modo a assegurar controle coletivo dos oramentos e o mximo de bem-estar pblico. Todos os bancos sero nacionalizados. Cancelamento das dvidas com o Imperialismo, j mais do que pagas. (LSI, 1956)

    As menes aos mecanismos de participao poltica direta se encontram nos projetos destinados aos espaos de atuao da maioria dos militantes da Liga. Elas aparecem como alternativa para a rea da educao, na gesto de universidades e escolas e para a produo industrial, que devia substituir a gerncia tradicional pelos conselhos de fbrica compostos por trabalhadores.

    O conjunto de exigncias que os membros da LSI definiram como reivindicaes imediatas apresentava propostas ainda mais voltadas aos contornos concretos da poltica brasileira. Na maioria das vezes, as questes levantadas indicam uma tentativa da Liga de responder aos imensos desafios colocados pelo carter autocrtico da dominao burguesa (Fernandes, 2009), mantido nos intervalos democrtico-liberais no pas. So exigncias que, de maneira ampla, objetivavam combater a debilidade das instituies democrticas brasileiras.

    As propostas imediatas do Programa da LSI seguem detalhadas em Anexo e foram divididas por ns em doze categorias, sendo nove especficas e trs mistas, de acordo com os temas tratados no texto. Essa diviso pretende oferecer um panorama mais detalhado dos assuntos que ocupavam as preocupaes dos seus militantes, alm de permitir

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    que infiramos as influncias de sua origem social na elaborao do programa da Liga. Os temas encontrados se apresentam com o seguinte peso no texto programtico: i) Organizao poltica e participao democrtica, que aparece em nove das propostas; ii) Direitos trabalhistas, com seis propostas, iii) Reformas econmicas, com oito propostas; iv) elaes Internacionais; v) Direitos civis (divididos em temas de igualdade de gnero, liberdade religiosa e reformas no sistema jurdico e penal), com seis propostas; vi) Sade, com trs propostas; vii) Educao, com trs propostas, sendo a ltima detalhada em dezessete sub itens especficos; viii) uma proposta para a Comunicao Social; ix) uma proposta para Assistncia Social.

    O nvel de detalhamento das propostas ligadas temtica da Educao merecem, a nosso ver, uma observao. Para alm das filiaes tericas e polticas com determinadas correntes do pensamento marxista, a preocupao com este tema nos parece bastante sintomtica da posio social dos militantes da Liga. Tendo boa parte de seus quadros provindos dos meios universitrios, a agremiao estabelece um corpo de polticas especficas que ausente nos programas de outros partidos da extrema esquerda da poca. Nas reivindicaes de organizaes como o Partido Comunista do Brasil (PCB) e do Partido Operrio Revolucionrio (POR), encontramos uma dedicao maior s questes sindicais e trabalhistas, alm das reivindicaes no plano da reestruturao econmica em bases nacionalistas e industrializantes4. O tratamento dado a essa questo, bem como a natureza das propostas se distinguem sobremaneira das usuais reclamaes por ampliao do acesso da populao educao e necessidade de formar operrios para a indstria em desenvolvimento. Fala-se em aumento dos investimentos na pesquisa cientfica, na necessidade de uma educao humanista e em transformaes no sistema de gesto das Universidades e escolas que garantissem a autonomia dessas instituies e a participao democrtica da populao na sua administrao. Percebemos, portanto, que as especificidades programticas da LSI em relao aos demais partidos marxistas se devem no somente sua filiao terica crtica ao bolchevismo e rejeio do iderio desenvolvimentista, mas se justificam, em alguma medida, pela ocupao e pela origem social e cultural de seus militantes. O aprofundamento dessa observao, no entanto, foge do objetivo deste texto que tem seu foco no debate sobre as singularidades programticas da Liga em

    4 Tal observao feita a partir dos resultados de nossa pesquisa de mestrado, que tambm deu origem ao presente artigo.

    relao s demais organizaes da extrema esquerda e a relao dessas singularidades com as caractersticas propriamente organizativas do grupo.

    A relao da Liga com o cotidiano da ao poltica - bem como a articulao das referidas proposies programticas com os desafios concretos que esse cotidiano impunha fica mais clara quando observamos sua postura diante dos debates travados com os demais partidos de esquerda. Nas linhas do Ao Socialista, os princpios esboados do Projeto de Programa ganham novas coloraes, permitindo que se notem os termos e os eixos das disputas em torno do desenvolvimento nacional.

    Em junho de 1958, o jornal traz um artigo no qual expe, alm dos processos que precederam a formao do grupo, as razes que o levaram a se afastar das demais agremiaes do campo da esquerda. A principal delas, segundo os luxemburguistas, seria a infidelidade aos princpios do socialismo cientfico, nicos capazes de conduzir as massas oprimidas ao regime socialista. Em suas palavras:

    O Partido Comunista do Brasil, que apresenta as deformaes dos partidos estalinistas de todo mundo: totalitarismo e subservincia burocracia sovitica, tem seguido, os ltimos anos, atravs de sua direo, uma poltica de traio aos interesses histricos da classe operria, procurando colocar as massas trabalhadoras a reboque da burguesia nacional. [...]. Alm dessas duas organizaes, burocratizadas e corrompidas, h que notar a existncia de pequenos grupos de militantes denodados, dos quais divergimos no deixando, porm, de reconhecer neles a coerncia na ao e a firmeza de princpios que os tornam respeitveis. Tais consideramos os anarquistas, apegados, para ns, a ideologias utpicas e mtodos de ao ineficazes: e os trotskistas, que achamos presos a uma linha poltica ultrapassada, que o prprio Leon Trotsky, ao que tudo indica, se preparava para rever, na poca de seu traioeiro assassinato em mos de agentes de Stlin (A Razo da LSI, 1958: 3).

    Na mesma edio, em um texto que tratava da Passeata contra a Carestia, afirma-se que as direes sindicais ligadas a posturas conciliacionistas com a burguesia nacional estariam perdendo espao nos movimentos de massas. O esgotamento das polticas de desenvolvimento e a radicalizao das revoltas populares tratariam de isolar as lideranas dos partidos ligados ao governo, inclusive os comunistas. A noo de uma aliana com os setores progressistas da burguesia para promover o desenvolvimento, vista como de um romantismo reformista, deveria ser substituda pela participao nos movimentos de

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    trabalhadores, unindo-se os militantes socialistas s nicas camadas capazes de levar adiante a resoluo dos problemas do pas.

    Dois fatos importantes destacaram o movimento: de um lado, elementos que exaltavam a massa ordeira e pacfica: de outro lado, e opondo-se, o povo que revidava apoiando palavras de ordem radicais como abaixo o patro burgus e viva o proletariado. Acreditamos que esses conciliacionistas, pelegos ou no, fracassem na sua tentativa de conter por muito tempo o avano das massas: suas balelas no sentido de entoar loas querida burguesia nacional e apregoar seu divrcio do imperialismo sofrero o impacto das massas politizadas, no seu caminho histrico da luta de classes: somente a classe operria pode ser conseqentemente anti-imperialista. [...] Os homens participam ativamente da histria, e a LSI pretende-se um movimento classista que atenda s aspiraes da massa [...]. Cumpre unir o proletariado pequena burguesia e no, como pretendem partidos reformistas como o PSB, PTB e PCB, unir toda a sociedade em torno da burguesia nacional. (Passeata Contra a Carestia, 1958: 4)

    Essa negao ao posicionamento do PCB, at aqui, aproxima bastante os luxemburguistas dos trotskistas do POR. As diferenas entre eles comeam a surgir quando se trata de avaliar as causas das limitaes impostas industrializao do pas, principalmente no modelo aplicado por Juscelino Kubitscheck. As consideraes da Liga trazem alguns elementos at ento ausentes das anlises trotskistas. Entre eles, uma formulao crtica mais precisa a respeito do Plano de Metas, na qual consideravam questes de poltica econmica como importantes medidores das caractersticas e conseqncias das medidas governamentais na vida dos trabalhadores.

    A instruo 113, esse arranjo infame de nossa burguesia progressista com o imperialismo internacional continua permitindo que a fina flor da picaretagem capitalista traga sua maquinaria velha ao Brasil, sem qualquer cobertura cambial, auferindo fabulosos lucros custa do dinheiro pingado da testa suarenta da classe operria. dessa maneira que se impinge aos ingnuos e aos que se fazem de ingnuos, o conto do vigrio da industrializao do pas. O famoso Plano de Metas ficou agora acrescido de mais uma meta inatingvel: a do congelamento. Baixar o custo dos gneros de consumo, especialmente os artigos alimentcios de primeira necessidade, implica antes resolver a questo agrria. Sabem os mgicos do congelamento que a produtividade do trabalho rural brasileiro baixssima: sabem que seus constantes aumentos de tributos oneram a

    importao de implementos agrcolas necessrios para aumentar a produtividade de agricultura; mas continuam eles, os mgicos do congelamento a aumentar suas taxas e impostos. (Carestia e Congelamento, 1958: 4)

    Para fazer frente a essa situao, a Liga propunha a organizao popular para que se exigissem as promessas governamentais de congelamento de preos. Outro trao que a distingue dos programas pecebistas e trotskistas, a LSI notava a importncia desse movimento ainda que ele se desenvolvesse fora das suas fileiras, reconhecendo a validade de todas as outras formas de organizao poltica, inclusive as extra-partidrias.

    O povo deve estar preparado e organizado para qualquer eventualidade, inclusive a sonegao de gneros e o mercado negro: organizado dentro dos sindicatos, dos centros acadmicos, das associaes populares, nos bairros, em todos os lugares e de todas as maneiras que lhe forem possveis. Somente os trabalhadores tm interesse no congelamento de preos, somente os trabalhadores organizados podero lev-lo a cabo. (Carestia e Congelamento, 1958: 4)

    As distines se apresentam tambm em relao ao Programa para o governo operrio e campons. No h, nos horizontes da Liga, hierarquias entre operariado urbano e trabalhadores do campo, nem a afirmao recorrente nos documentos comunistas e trotskistas sobre as limitaes da conscincia de classe do campesinato ou sua incapacidade para a resoluo das questes mais marcantes das relaes de produo no meio rural. Para os luxemburguistas, a unio entre os produtores diretos na construo um governo socialista seria o nico meio de liquidar os problemas vividos pelo povo. Nesse sentido, a luta contra o imperialismo, contra a carestia e pela reforma agrria e a efetiva ampliao das liberdades democrticas aos trabalhadores seriam tarefas a se cumprir no mesmo movimento que levaria o capitalismo a seu termo.

    A funo principal dos socialistas deve ser, pois, a de radicalizar a luta contra o imperialismo, ligando - luta contra o capitalismo em geral, mostrando que nos quadros do regime capitalista no h soluo definitiva possvel para o problema do imperialismo. preciso tornar a classe operaria e os trabalhadores em geral conscientes de que as tarefas democrticas (expulso do imperialismo, soluo da questo agrria) sero resolvidas em conjunto com as tarefas socialistas, atravs de uma aliana revolucionria entre o operariado urbano e os trabalhadores do campo, e no atravs de uma aliana nacionalista entre o

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    proletariado e a burguesia.Esta a primeira grande tarefa dos socialistas no movimento antiimperialista: mostrar s massas que a nica soluo para o problema do imperialismo , no o governo da burguesia nacional, mas sim o governo socialista operrio e campons. (O Socialismo e a Luta Anti-Imperialista, 1959: Matria de Capa)

    Em relao conjuntura poltica mais imediata, a LSI sugeria uma avaliao alternativa s hegemnicas. Nesse sentido, a caracterizao dos governos Getlio Vargas e Juscelino Kubitschek como campos de batalha entre as fraes agrria e industrial da burguesia nacional e a noo de um Capitalismo de Estado brasileira guiavam a leitura luxemburguista. Para a Liga, o Estado cada vez mais intervencionista, cumpriria a funo de amparar a frgil burguesia nacional diante da fora do imperialismo, sem ferir os interesses do latifndio nem romper com os modelos de submisso aos interesses externos.

    [...] A burguesia nacional se ampara, ento, diretamente no Estado de, com o fito de, por um lado, obter a soluo de problemas econmicos fundamentais que se sente incapaz de resolver e, por outro, cobrir os dficits do balano de pagamentos, decorrentes da insuficincia das exportaes ou das quedas dos preos das matrias-primas e produtos tropicais enviados aos mercados estrangeiros. Assim, o Estado no s se incumbe de financiar esses produtos de exportao a preos compensadores como, tambm, de desenvolver industrialmente o pas, avolumando-se desta maneira a INFLAO [...], sendo que a ele foi entregue, alm outros setores de menor importncia, particularmente o da indstria pesada. este carter intervencionista do Estado brasileiro o principal responsvel pelas disputas polticas que se verificam entre as duas alas em que se divide a burguesia brasileira: uma, defendendo a industrializao sob proteo estatal, a ala industrialista, outra, constituda principalmente pelos grandes plantadores de caf, a ala agrarista, exigindo dos rgos governamentais uma poltica anti-industrialista. [maisculas do autor] (BARRETO, 1959a: 2).

    A burguesia nacional e suas fraes de classe no teriam, portanto, nenhum interesse de questionar a submisso ao imperialismo. Seus lucros e sua posio de classe dominante estavam consolidados, por um lado, nas atividades de exportao de produtos agropecurios e matrias primas e, por outro, favorecidos pela proteo oferecida pelo Estado aos produtos do setor industrial, atravs das altas tarifas aduaneiras.

    As classes interessadas em romper esse ciclo seriam justamente aquelas que viveriam, no seu dia-a-dia,

    as provas concretas de que o desenvolvimentismo no resolveria as mazelas do pas. A concesso de crditos aos grandes produtores rurais dedicados produo para o mercado externo no acompanharia uma necessria poltica de subsdios atividade dos pequenos agricultores, que produziam, em sua maioria, gneros alimentcios de primeira necessidade consumidos no pas. A alternativa que lhes restava seria a dos aambarcadores, que manipulavam os preos no mercado sonegando produtos. O resultado seria, alm da progressiva concentrao dos lucros nas mos dos latifundirios e atravessadores, a escassez de alimentos para os trabalhadores urbanos.

    Se a razo da escassez crnica dos gneros de alimentao repousa no monoplio da terra pelos latifundirios, regiamente financiados pelo Banco do Brasil, a cousa agora assume aspectos trgicos com o delrio desenvolvimentista base da inflao, dos aventureiros e negocistas que se encontram no poder. O nacional-reformismo de JK e quadrilha feito para o imperialismo, que se associa s realizaes das metas e custa de expropriao brutal dos salrios reais dos trabalhadores pela inflao. E as metas no prevem o alimento do povo, mas automveis, navios, usinas para a Light, cousas que apenas imperialistas e burguesas progressistas nacionais podem comer. (Comida para os Trabalhadores e no automveis para os ricaos, 1959)

    A poltica de JK e seus tcnicos estaria presa ao esquema das metas desenvolvimentistas, estimuladas com inflao e capital estrangeiro - de quem o governo no poderia e nem desejaria fugir. O plano de metas, ao se cumprir, enseja um custo social que esmaga a classe operria [e] traz, sobretudo, mais fome e opresso aos trabalhadores (Ao Socialista, n 6, dezembro de 1959, pg. 4). Dessa forma, o projeto desenvolvimentista e a soluo brasileira defendida pelos seus mais novos adeptos, os crispinistas recm expulsos dos quadros do PCB, no teriam grandes vantagens a oferecer aos trabalhadores e s camadas mais exploradas da populao. Para a LSI, a idia geral defendida por estes grupos (pecebistas e crispinistas) estaria

    [...] assentada sobre um mito, engendrado pelo governo desenvolvimentista de JK e gulosamente defendido por estes nacionalistas pequeno burgueses e carreiristas de que as metas presidenciais e os progressos da advindos sero benficos aos trabalhadores brasileiros. estes benefcios os trabalhadores j esto sentindo sob a forma de carestia e subalimentao e isto porque no capital produtor a parte consagrada s mquinas e s matrias primas cresce mais rapidamente que

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    a parte consagrada ao aprovisionamento em meios de subsistncia. (BARRETO, 1959b: 3)

    A industrializao que vinha se delineando no Brasil teria mais atributos de um agravamento das contradies fundamentais da sociedade do que de um progresso que caminha de modo irrefrevel para a soluo dessas contradies. Combater a ideologia nacional-reformista, evitar as alianas com partidos que defendessem o ponto de vista da burguesia nacional, reconhecer e fortalecer as formas de luta poltica dos trabalhadores rurais e urbanos: so algumas das tticas assinaladas pela LSI, que ressaltava a importncia da conscientizao das massas para a sua estratgia. A nosso ver, elas conferem aos luxemburguistas seu carter distintivo diante das demais organizaes marxistas, traduzindo em projetos prticos alguns de seus principais propsitos ideolgicos, resumidos no depoimento de Michael Lwy5:

    A LSI se construiu em oposio ao nacional-desenvolvimentismo, o estalinismo e o reformismo do PCB. Para os fundadores da LSI - Sachetta, Paulo Singer, Mauricio Tragtenberg - a crtica inclui tambm o leninismo ou bolchevismo - a principal referncia neste terreno era a Rosa Luxemburgo. [...] Em geral, a LSI era uma organizao luxemburguista, coisa muito minoritria e contra a corrente na esquerda brasileira dos anos 1950. O PCB era denunciado como estalinista, o que inclua o nacionalismo, o reformismo, o autoritarismo interno, a submisso burocracia sovitica, etc. O que no impedia unidade de ao com os militantes do PCB em varias frentes - por exemplo, no movimento estudantil. No tenho explicao para a originalidade da LSI: coincidiu que num momento determinado, no auge da Guerra Fria, um pequeno grupo de intelectuais, jovens estudantes e alguns sindicalistas brasileiros, encontrou nos escritos de Rosa Luxemburgo uma alternativa atraente ao reformismo, ao nacionalismo, social-democracia e ao stalinismo. A idia chave era que no pode existir socialismo revolucionrio sem liberdade.

    A crtica ao PCB e sua postura poltico-ideolgica, porm, no se limitava s escolhas feitas pelo partido nos anos 1950. Sua deformao poltica e sua irresponsabilidade se deveriam natureza de sua organizao, que desde 1930 vinha se esmerando em infligir classe operria terrveis derrotas, emprestando-a, ao mesmo tempo, com os mais repulsivos dogmas oportunistas6. A explicao para a

    5 Entrevista concedida em 18 de abril de 2013.6 LSI. Bolchevismo e Socialismo Democrtico. Tese Aprovada na

    Conferncia de Fundao da Liga Socialista Independente Ao

    j longa histria de aventureirismo poltico residiria no prestismo caudilhesco que j se encontraria enraizado no Partido, quando a III Internacional se centralizou nas mos da burocracia stalinista, o que, para a Liga, levou s ltimas conseqncias, no Brasil, o carter totalitrio do bolchevismo7.

    Caractersticas OrganizativasA rejeio aos princpios de organizao adotados pelos comunistas e trotskistas foi o ponto de partida do movimento de criao da LSI. Segundo os prprios luxemburguistas, a deciso de fundar a organizao foi precedida pela realizao de um balano crtico das atividades socialistas e seus partidos no sculo XX e de um estudo geral de suas polticas organizatrias. As concluses a que chegaram relacionam o abandono absoluto dos princpios do socialismo com a condenao da antidemocrtica, ultra-centralista e monoltica dos partidos bolcheviques, o que os fez optar por uma forma organizatria que conjugue DISCIPLINA com DEMOCRACIA SOCIALISTA. (A Razo da LSI, 1958: 3, grifo do autor)

    Para os militantes da Liga, os princpios organizativos traduzidos pelas 21 condies8 para a adeso Internacional Comunista traduziriam a natureza antidemocrtica e ultimatista do bolchevismo. Em sua opinio, ao contrrio do que defendiam os bolcheviques, o partido s poderia reclamar a condio de parcela mais avanada da classe operria se no desejasse impor uma tutela coercitiva sobre a classe. A elaborao de formas mais democrticas de organizao faria parte, portanto, do contedo socialista do partido que, advertiam, era diverso da essncia liberal que, historicamente, caracterizou a democracia burguesa. (Bolchevismo e Socialismo Democrtico, 1959: 3). A organizao ultracentalizada que resultava dos modelos bolchevistas tanto na verso stalinista quanto no fracassado projeto trotskista, que seria nada mais que a outra face da moeda bolchevista, e viveria em funo da burocracia sovitica teria provado, portanto, no servir causa socialista.

    Socialista, N2, fevereiro de 1959 Pg 3. 7 LSI. Bolchevismo e Socialismo Democrtico. Tese Aprovada na

    Conferncia de Fundao da Liga Socialista Independente Ao Socialista, N2, fevereiro de 1959 Pg 3.

    8 Conjunto de diretivas da III Internacional, aprovada em seu II Congresso, que ocorreu entre os meses de julho e agosto de 1920, para os partidos comunistas do mundo inteiro. O documento ficou conhecido por seu carter extremamente centralizador e pelo endurecimento da disciplina imposta, a partir dele, aos PCs em relao URSS.

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  • Na contracorrente do desenvolvimentismo: autonomia organizativa, democracia partidria e o socialismo radical da Liga Socialista Independente (1956-1960)

    Como instrumento de ataque e destruio do Estado capitalista, os bolcheviques, liderados por Lnin e Trotsky, constituram um partido ultra-centralizado e seus lderes deveriam constituir o Estado maior da revoluo. Reduzindo a frmula suas concepes organizatrias impregnadas, mais que dos princpios de Marx e Engels, das tradies do populismo, do anarquismo e do socialismo revolucionrio russos, os lderes da ala esquerda do Partido Operrio Social Democrata Russo (bolcheviques) forjaram, de fato, um aparelho autocrtico formado, na expresso de Lnin, de poucos mas bons que se sobrepunha a todo movimento operrio e, ao mesmo tempo, dentro da rgida moldura partidria, subordinava todos os organismos aos rgo central, seu CC, reclamando dos militantes, ACIMA DA CONSCINCIA SOCIALISTA, subservincia de soldados diante do comando. (Bolchevismo e Socialismo Democrtico, 1959: 3, grifo do autor).

    Em seu estatuto, a Liga Socialista Independente (LSI) se propunha, ento, a constituir uma organizao da classe operria dos trabalhadores em geral, baseada no socialismo cientfico e inspirada no Manifesto Comunista de Marx e Engels, e estruturada pelos princpios de democracia interna. Seus membros estariam ligados por uma disciplina consciente e obrigatria para todos sem distino. (LSI, 1956)

    Entre os direitos conferidos ao membro da LSI - que seria admitido depois da indicao de um membro mais antigo e de um estgio de trs meses, passando pela aceitao da organizao de base e da Comisso Executiva Nacional enfatizamos, alm do direito de expresso de possveis divergncias com a maioria (com garantia de espao na imprensa da LSI ou em boletins intrapartidrios), o direito organizao poltica dessa divergncia em tendncias internas. Tal regra, ausente dos estatutos do PCB e dos textos do POR, normatizada nos seguintes termos pela Liga:

    Art.4 - Cada membro tem direito de: [...] Inc. c) Quando expressando uma tendncia com outros companheiros, editar um boletim interno e fazer-se representar, por eleio, em bases rigorosamente proporcionais ao nmero dos companheiros que tm sua tendncia, nos organismos dirigentes. Caracteriza-se como tendncia uma opinio ou conjunto de orgnico de opinies que no viole o programa e os estatutos. (LSI, 1956)

    O direito organizao interna em tendncias responderia necessidade de no repetir os vcios apontados pelos luxemburguistas na estrutura bsica do partido bolchevique. A garantia do funcionamento

    do pluripartidarismo, bem como da ampla e concreta representao das discordncias, alm de materializar o princpio da democracia partidria, teria a funo de aproveitamento dos quadros militantes do partido, o que teria se perdido na experincia russa. Em suas palavras:

    O Partido bolchevique, por meio de seus comits militarizados, atribua classe operria e aos demais setores afins a funo de mera massa de manobras numa operao de guerra. O fator conscientizao, isto , o esclarecimento da conscincia proletria imprimindo-lhe uma perspectiva racional dos objetivos socialistas, era praticamente posto de lado. Mesmo dentro da prpria organizao, o centralismo-democrtico, se por ventura alguma vez foi aplicado e respeitado, isto s ocorre nas esferas mais altas do Partido. A srie de expurgos nas fileiras bolcheviques, com a eliminao e expulso em massa de militantes, de modo geral por resistncia a imposies autocrticas do vrtice, se iniciou logo aps a tomada do poder e sucessivamente vem at nossos dias, com flutuaes convulsivas e sacrifcio de milhes de militantes e operrios: o Partido no conseguiu sequer assimilar seus prprios quadros. [...] O EXCLUSIVISMO LENINISTA na luta pelo poder e em sua instaurao, destruindo, por todos os meios, as outras tendncias socialistas e inaugurando o regime do PARTIDO NICO, evoluiu, a ERA STALINIANA, para o MONOLITISMO TOTALITRIO, com a chacina da massa dos prprios bolcheviques. (Bolchevismo e Socialismo Democrtico, 1959: 3, grifo do original)

    Apesar de elaborar estas crticas e de sugerir, no seu estatuto, algumas modificaes na aplicao de seus pressupostos, os luxemburguistas afirmavam que o centralismo democrtico criado pelos bolcheviques era uma boa formulao terica de organizao partidria. De fato, encontramos em seus estatutos muitas similaridades com os princpios descritos nos estatutos pecebistas, ainda que sempre acompanhadas das ressalvas sobre a necessidade de respeitar os fruns de livre debate. Reivindicando o princpio da democracia interna que implica liberdade como conscincia da necessidade de disciplina livremente consentida, a Liga estabelece:

    Art.8, inc.b) Os organismos superiores devem obrigatoriamente prestar contas de suas atividades aos organismos pelos quais foram eleitos e podem ser, pelos mesmos a qualquer tempo destitudos.c) A minoria deve submeter-se deciso da maioria, cumprindo-a obrigatoriamente, resguardados internamente seus direitos de crtica e representao conforme o previsto por estes

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    estatutos. A maioria no forar os companheiros a exprimir externamente opinies das quais no compartilha. Nesse sentido vale o lema: Liberdade de discusso e unidade na ao. (Bolchevismo e Socialismo Democrtico, 1959: 3)

    Em contraposio ao regulamento pecebista, a Liga define que, no mbito de sua competncia, so autnomos todos os organismos da LSI. Somado s orientaes para a relao com as com as demais instituies externas Liga, esse trao remete, em certa medida, a um tipo de organizao estruturada sobre o que Duverger (Duverger, 1987) chama de ligaes horizontais entre os organismos de base. Sugere a Liga aos seus militantes:

    O aproveitamento da legalidade burguesa, fundamental para a organizao da atividade socialista e a organizao socialista das massas, deve ser estendido at os limites mximos. A par da estrutura fundamental partidria, rgos e organismos das mais variadas espcies, e que sirvam de penetrao e aglutinao de largas camadas de trabalhadores, devem ser constitudos. Se, para o arcabouo central, isto , a Liga Socialista Independente, ou que outro nome venha a ter, condies de disciplina necessria so reclamadas, no atinente aos setores colaterais de nossa atividade - escolas de Socialismo - maior flexibilidade e, por assim dizer, tolerncia, deve ser adotada. [...] Na medida em que as condies polticas do pas permitirem, as eleies dos rgos dirigentes em todos os graus se processaro em assemblias pblicas. (Crtica ao Reformismo e Novos Rumos, 1959: 3)

    Observemos, no entanto, que a existncia dessas ligaes horizontais, tanto com as organizaes colaterais, quanto nos organismos internos, no suprime a existncia dos laos verticais com as instncias superiores do partido. Tal como afirmado por Duverger, opor os partidos de ligaes horizontais aos partidos de ligaes verticais um equvoco:

    [...] pode-se apenas opor os partidos a ligaes puramente verticais e horizontais, estando entendido que as primeiras geralmente predominam sobre as segundas. Nos partidos de articulao fraca, as ligaes horizontais atingem seu mximo: elas desenvolvem-se num plano duplo, o dos dirigentes e dos membros. Uma ligao horizontal resulta com efeito, seja do contato direto entre os membros dos grupos de base do partido, seja de contatos entre os dirigentes de dois comits locais vizinhos, de duas federaes vizinhas, etc. (Duverger, 1987: 86)

    Se levarmos em conta o partido desenhado nas definies estatutrias e nos jornais da LSI bastante

    diferente, como veremos a seguir, da estrutura que operava na prtica - a defesa da manuteno das relaes horizontais no chegam, a nosso ver, a colocar em questo sua caracterizao como um partido estruturado fundamentalmente em ligaes verticais, por dois motivos: i) porque h previso de processos de escolha de dirigentes e composio dos cargos por mecanismos de representao que se aproximam do que Duverger chama de articulao forte, ou seja: com participao das entidades de base, atravs de instrumentos hierarquicamente organizados, transformando a estrutura do partido em

    [...] uma comunidade organizada, onde todos os elementos de base tm um lugar definido que determina sua importncia respectiva [...] (Duverger, 1987: 79);

    ii) porque a horizontalidade da ligao com as instituies externas no se aplicaria a todas as organizaes com as quais os militantes mantivessem relaes, sendo a lgica de ao nos sindicatos, por exemplo, diferente da lgica adotada nas mencionadas escolas de socialismo9.

    Dessa forma, os Estatutos definem ainda que a LSI seria organizada, pela base, atravs da constituio de clulas de empresas (industriais, comerciais, agrcolas), agrupamentos (culturais, recreativos, de ensino, etc.) e de territrios, observando-se a seguinte estrutura: a) Reunio plenria de base e secretariado de base; b) Conferncia distrital e Comisso distrital; c) Conferncia de zona e comisso de zona; d) Conferncia regional e Comisso regional; e) Congresso e Comisso nacional. Assim como nos partidos comunistas, encontramos o modelo clssico do partido organizado por clulas, sendo estas o ncleo primordial da ao dos militantes de base.

    Os rgos de direo funcionariam da seguinte forma: a) A Comisso Nacional, que seria, nos intervalos entre dois Congressos, a instncia suprema da LSI; b) A Comisso Executiva Nacional, que no intervalo de duas reunies consecutivas da Comisso Nacional, agiria em seu nome e tomaria os poderes desta; c) Secretariado Nacional, constitudo por um primeiro secretrio que lhe coordenaria todas as atividades, por um secretrio de organizao, por um secretrio de finanas e, finalmente, por um secretrio sindical e de organizao de massas. A instncia suprema da LSI seria o Congresso, definido como a

    9 O Ao socialista n 3, publicado em junho de 1959 afirma que a poltica sindical da LSI seria tratada, oportunamente, em documento especfico, ressaltando que a ao dos militantes nesses espaos seguiria uma lgica diferente da descrita at ento.

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    assemblia dos delegados eleitos pelas Conferncias Regionais (LSI, 1956)

    O Congresso, como instncia suprema, tomaria as decises obrigatrias para todo o partido, em carter irrevogvel e sem a possibilidade de alterao, at a realizao de um novo Congresso. Nesse ponto, encontramos mais uma diferena substancial em relao ao estatuto do PCB: apesar de apresentar uma definio similar, o regulamento comunista abre algumas brechas para que os escales mais altos da direo partidria alterassem as decises congressuais, o que, como vimos, foi amplamente utilizado no perodo de reorientao de sua linha poltica. Em seu lugar, a LSI indica a possibilidade da convocao de um Congresso extraordinrio por iniciativa da prpria Comisso Nacional, de organismos que representem dois teros dos membros da LSI ou por metade dos membros da mesma. Em casos de no convocao pela Comisso Nacional, do Congresso Extraordinrio, haveria ainda a possibilidade de as organizaes reclamarem o direito de formar uma comisso para sua preparao e organizao.

    Concluso: Algumas Consideraes Sobre os xitos Programticos e Organizativos Concretos da LigaA adoo crtica de algumas caractersticas do centralismo democrtico, aliada rejeio daqueles que seriam seus principais desvios autoritrios, formam um conjunto que, a nosso ver, d organizao descrita nos Estatutos da Liga um desenho que combinaria uma organizao bem estruturada com expressivos espaos de participao e representao das bases. Apresentaria, segundo os termos propostos por Duverger (1987), um partido estruturado sobre entidades de base (clulas) unidas entre si por articulaes fortes, com predomnio de ligaes verticais entre os organismos internos, e manuteno de ligaes horizontais com organizaes de base colaterais ao partido, mas com um modelo de repartio do poder interno relativamente descentralizado.

    Mas, durante a pesquisa, nos deparamos com a ausncia de indcios de que tal Projeto de Programa e Estatutos teria passado pelo crivo de um frum decisrio oficial, que lhe garantisse o primeiro sopro de legitimao coletiva. Alm disso, a liderana de Hermnio Sachetta foi se delineando como um trao fundamental para a definio dos rumos da organizao, o que nos levou a interrogar o real alcance das definies acima descritas principalmente no plano organizativo.

    Em relao s definies programticas, a confirmao das linhas gerais descritas no documento se ilustra, como vimos, nas edies do jornal Ao Socialista e nas avaliaes que trazia sobre as principais questes daquela conjuntura poltica. Em nenhum momento se encontram grandes variaes ideolgicas nos seus textos, mesmo nos artigos que no eram elaborados por Hermnio Sachetta.

    Mas os demais dados obtidos sobre a organizao partidria mostraram discrepncias em relao ao modelo organizativo definido nos estatutos. Em entrevista, o ex-militante da Liga, Michael Lwy, nos afirmou que o documento aqui analisado teria sido aprovado no em Congresso, mas no coletivo de militantes, que no teria ultrapassado o nmero dos 20 membros. A nica divergncia, entre Hermnio Sachetta e Paul Singer, teria surgido em torno da caracterizao da Unio Sovitica como um Capitalismo de Estado (tese que prevaleceu, defendida por Sachetta) ou coletivismo burocrtico (defendida por Singer).

    A estrutura interna e a diviso das funes de direo no eram, portanto, formalizadas. A determinao das tarefas, bem como a ocupao dos cargos, seguia uma lgica mais orientada para as tarefas prticas. Nas palavras de Lwy:

    No havia cargos de direo formalizados. Apenas uma diviso do t rabalho, com companheiros se encarregando de certas tarefas: agitprop (agitao e propaganda), a redao do jornal, o trabalho estudantil (eu), o trabalho sindical, etc. Hermnio Sachetta era redator do jornal da LSI, o Ao Socialista; era sua nica responsabilidade formal. Mas de fato ele era o dirigente carismtico da organizao. No se colocava a questo da alternncia [nos cargos de direo].

    Algumas das definies oficiais se mantiveram na prtica da organizao. No tocante autonomia organizativa, a LSI dedicou apenas dois artigos do seu corpo de normas para definir as diretivas centrais de sua ao. E eles no poderiam ser mais significativos: no artigo 7, estabeleceu-se que vedado aos membros da LSI fazer parte de uma agremiao poltica sem estar autorizado pelo organismo a que pertence e pelo organismo imediatamente superior, sob pena de ter sua inscrio cancelada, numa clara aluso ttica do entrismo do POR; e no Artigo 14, a Liga reafirma: no mantm compromissos com quaisquer entidades polticas nacionais e internacionais. O que no a impediu de sublinhar: [...] os problemas dos trabalhadores do Brasil so, fundamentalmente, os mesmos dos trabalhadores do mundo inteiro. (LSI, 1956).

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    No havia, como eu disse, uma direo formalizada. Disciplina tambm era na base do consenso. Havia ampla democracia interna, embora, geralmente, pelo menos nos primeiros anos, prevalecesse a opinio do Sachetta. Desacordos srios apareceram s no fim, por volta de 1959-60, quando alguns de ns eu, os irmos Sader e outros propusemos que a LSI participasse do processo de reagrupamento da esquerda radical, que veio a dar na fundao da POLOP, em 1960. Sachetta e outros companheiros se opunham; se bem me lembro, em algum momento houve uma maioria favorvel, o que resultou na dissoluo da LSI na POLOP. Mas pouco depois Sachetta voltou a reorganizar a LSI com os companheiros que partilhavam sua opo.

    De modo geral, no perodo em que se manteve ativa, a LSI parece ter materializado algumas das experincias mais originais entre as analisadas nesta pesquisa. Obviamente, suas limitaes eram muitas e aparecem tanto na efetivao dos princpios organizativos, quanto na traduo, para a complexa conjuntura dos anos 1950, da sua Declarao de Princpios - na qual encontramos elaboraes grandiloqentes que pintam um vasto horizonte de utopias e aspiraes polticas, entre elas a definitiva abolio da explorao do trabalho alienado, a extino de toda e qualquer forma de opresso e a realizao da vida humana em sua plenitude processo que mostra uma Liga mais fincada ao cho medida que precisa delinear seu projeto.

    No entanto, as inovaes tambm so perceptveis. Seu programa (assim como as avaliaes presentes nos artigos do Ao Socialista), alm de orientar a militncia para agir concretamente em uma realidade peculiar como a brasileira, levava a cabo a independncia que a Liga expressava no seu nome. Essa aspirao independncia impunha organizao o duplo desafio de no se afastar das metas ideolgicas originais (resumidas na bandeira do socialismo com liberdade), e de se tornar capaz de trazer contribuies polticas distintas daquelas anunciadas pelas organizaes a quem no desejava se atrelar. Sua estrutura partidria, ainda que no tenha resolvido plenamente os problemas da necessidade de conjugar uma ao coordenada com o respeito e a manuteno dos espaos democrticos, se distinguiu consideravelmente das demais organizaes de esquerda, que padeciam com sucessivas crises de legitimidade causadas por prticas autoritrias e estruturas engessadas pela submisso s instituies patrocinadoras internacionais.

    O reduzido nmero de militantes, a heterogeneidade de sua origem social e o isolamento poltico so fatores

    A autonomia organizativa da Liga foi confirmada por Lwy, bem como sua predisposio ao dilogo com outras organizaes. No cenrio nacional, os luxemburguistas no se furtavam s alianas pontuais com os demais partidos de esquerda; no cenrio internacional, mantinha contatos freqentes, atravs de seus militantes, com outros partidos e movimentos do campo socialista. Lwy descreve essas relaes da seguinte forma:

    Sem dvidas a organizao era plenamente autnoma do ponto de vista internacional, embora houvesse algumas tentativas de contactos internacionais. Havia afinidades com a LSI norte-americana (Max Schachtman), sobretudo via Paulo Singer, com International Socialists (Tony Cliff) da Inglaterra, e com Silvio Frondizi na Argentina (meu contato). Pessoalmente tive tambm contactos com o POUM espanhol (Wilebaldo Solano), com a Unione Socialista Independente (Lucio Libertini) da Itlia, etc. Obviamente era um ganho em relao submisso do PCB linha sovitica. Em relao Quarta Internacional a questo mais complexa : a seo brasileira, o POR, chegou a se aproximar da LSI durante certa poca. Mas ela era ligada com a corrente internacional de Posadas (que rompeu com a direo da Quarta). A autonomia da LSI, em relao ao posadismo, acho que tambm era um ganho. Mas, retrospectivamente, acho que o fato de a LSI no ter afiliao internacional era uma limitao.

    Os esforos para a construo e manuteno de uma organizao autnoma, como vimos, se devia profunda repulsa ao modelo bolchevique, caracterizado, em nvel internacional, pela subordinao das sees nacionais liderana sovitica e, no plano nacional, pela rgida hierarquia entre os dirigentes e os militantes de base, chegando conformao de partidos extremamente burocratizados.

    No entanto, a proeminncia de Sachetta como lder carismtico poderia nos levar a questionar a efetividade dessa crtica na democracia interna da LSI. A ausncia de questionamentos e a recorrncia resoluo das questes por consenso, com prevalncia da sua opinio se manteriam nos primeiros anos de atividade da Liga, quadro que s viria a se alterar quando se colocou a possibilidade da fuso com outros grupos de esquerda (entre eles, o POR), j no incio dos anos 1960. Naquela ocasio, os desacordos se intensificaram e o resultado foi a migrao de alguns de seus militantes (entre eles, o prprio Michael Lwy) para um novo partido, a POLOP. O processo descrito no seu depoimento:

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  • Na contracorrente do desenvolvimentismo: autonomia organizativa, democracia partidria e o socialismo radical da Liga Socialista Independente (1956-1960)

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    Peridicos

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    Depoimentos

    Michael Lwy. Entrevista concedida em 18 de abril de 2013.

    que acarretaram o progressivo esvaziamento da LSI. Em 1960 esse processo se completou com a extino do Ao Socialista e com a migrao de seus militantes para a Organizao Revolucionria Marxista Poltica Operria (ORM - POLOP), partido que teve reconhecida atuao na oposio ao regime militar.

    Ainda que sua histria tenha se interrompido to brevemente e que a organizao tenha tido poucas chances de submeter seus princpios programticos ao crivo impiedoso da prtica poltica concreta, acreditamos que sua experincia ofereceu elementos riqussimos anlise aqui realizada.

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  • Bandoli

    mnimo vital; extenso da legislao trabalhista aos trabalhadores do campo;

    IV- Direitos trabalhistas/ reformas econmicas. Reaparelhamento, moralizao e racionalizao

    dos servios de imigrao e de migrao interna, de modo a estimular o povoamento e o desenvolvimento agrrio e industrial do pas e a evitar a explorao e a servido dos trabalhadores rurais.

    V- Reformas econmicas. Pagamento da dvida da Unio aos Institutos; Nacionalizao das fontes e empresas de energia,

    transportes e indstrias extrativas consideradas fundamentais e sua gesto por delegados dos trabalhadores e representantes dos poderes pblicos, em direo mista;

    Supresso dos impostos indiretos e aumento fortemente progressivo dos que recaiam sobre a propriedade territorial, a terra, o capital, a renda em sentido estrito e a herana;

    Expropriao e nacionalizao das terras no exploradas em flagrante contradio com o interesse pblico, a partir das situadas em regies assoladas pelas secas, entregando-as as cooperativas dos trabalhadores. Assistncia tcnica e financeira s cooperativas de trabalhadores instaladas nos latifndios e s organizadas pelos pequenos agricultores. Desapropriao pelo Estado de reas em torno das cidades e vilas, entregando-as a cooperativa de trabalhadores para produo de gneros de imediato consumo local (cinturo verde);

    Eliminao dos intermedirios e aambarcadores do financiamento e distribuio da produo, especialmente dos gneros de primeira necessidade, atravs de Centrais de Abastecimento, geridas pelos sindicatos e pelo Estado. O Estado dever fornecer crdito barato e fcil ao pequeno produtor sob simples penhor agrcola e construir uma rede eficiente de silos, articulada com o sistema rodo-ferrovirio estatizado que transportar de graa, ou a preo de custo, os produtos agrcolas acima mencionados. Para favorecer o transporte rpido de gneros alimentcios, o Est