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18 ESQUERDA PETISTA #11 - Setembro 2020 Por detrás dos mapas NACIONAL O primeiro caso de contamina- ção pela Covid-19 no Brasil veio a pú- blico na quarta-feira de cinzas, dia 26 de fevereiro de 2020 e menos de um mês depois, em 12 de março, foi confirmada a primeira morte pela infecção do ví- rus. De lá pra cá, o número de contami- nados e mortos pela pandemia tem se alastrado país afora. No dia em que este artigo está sendo escrito, 26 de agosto de 2020, Ha exatos 6 meses da primei- ra confirmação, registram-se 116.964 mil óbitos e 3.683.224 milhões de diag- nósticos; uma média de 1.215 mortes a cada 24 horas. É bom que se diga: esse número pode ser muito maior, pois a pandemia tem escancarado a agenda ul- traliberal de devastação social, onde os principais impactados pelo novo coro- navírus são majoritariamente a popula- ção mais pobre do país. Os mapas são instrumentos políticos fruto de escolhas do que se mostra e do que se esconde, ou melhor, invisibiliza Ana Lícia Aguiar Sepultamentos no Cemitério Nossa Senhora Aparecida (Manaus/AM) Foto: Alex Pazuello/Semcom

NACIONAL Por detrás dos mapas

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18 ESQUERDA PETISTA #11 - Setembro 2020

Por detrás dos mapasNACIONAL

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primeiro caso de contamina-

ção pela Covid-19 no Brasil veio a pú-blico na quarta-feira de cinzas, dia 26 de fevereiro de 2020 e menos de um mês depois, em 12 de março, foi confirmada a primeira morte pela infecção do ví-rus. De lá pra cá, o número de contami-nados e mortos pela pandemia tem se alastrado país afora. No dia em que este artigo está sendo escrito, 26 de agosto de 2020, Ha exatos 6 meses da primei-ra confirmação, registram-se 116.964 mil óbitos e 3.683.224 milhões de diag-nósticos; uma média de 1.215 mortes a cada 24 horas. É bom que se diga: esse número pode ser muito maior, pois a pandemia tem escancarado a agenda ul-traliberal de devastação social, onde os principais impactados pelo novo coro-navírus são majoritariamente a popula-ção mais pobre do país.

Os mapas são instrumentos políticos fruto de escolhas do que se mostra e do que se esconde, ou melhor, invisibiliza

Ana Lícia Aguiar

Sepultamentos no Cemitério Nossa Senhora Aparecida (Manaus/AM)

Foto: Alex Pazuello/Semcom

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Desde o início da pandemia, Jair Bolsonaro, além de adotar discursos ne-gacionistas, minimizando a gravidade da situação e na contramão das orienta-ções das agências mundiais de saúde e de seus próprios ministros da saúde, foi contra as medidas de isolamento social (com exceção de idosos e portadores de doenças crônicas) a pretexto de tratar-se de “apenas uma gripezinha”. Para o pre-sidente cavernícola, basta a cloroquina para tratamento de pacientes infecta-dos, mesmo sem comprovação de seus efeitos.

Transcorrido todos esses meses de pandemia, o Governo Federal impôs uma série de barreiras para a criação e funcionamento de fundos emergenciais de auxílio à população, e o Brasil segue sem um Plano de Emergência Nacio-nal. O resultado disso foi a rápida as-censão do país na liderança do ranking de mortos e contaminados na América Latina e a conquista do segundo lugar em nível mundial, ficando apenas atrás dos Estados Unidos.

A região Sudeste do país é a que possui maior número de mortos e con-taminados desde o início da pandemia, seguida pela região Nordeste. Em segui-da estão as regiões Norte, Centro-Oes-te e Sul. O estado de São Paulo está no topo dos mais afetados pela Covid-19 (776.136 contaminados e 29.194 óbi-tos). Atrás estão os estados do Rio de Ja-neiro (216.675 contaminados e 15.700 óbitos), Ceará (209.363 contaminados e 8.362 óbitos), Pará (195.297 contamina-dos e 6.102 óbitos) e Bahia (5.116 mor-tes e 245.021 contaminados) .

Mesmo com os altos registros de disseminação da covid-19, os estados têm adotado medidas de flexibilização

do isolamento social, que nada mais é do que a retomada da economia. Daí decorrem duas questões importantes: a primeira diz respeito ao fato de que apesar dos crescentes dados de contami-nação, o mercado não pode parar, ainda que o custo disso seja pago com vidas; a segunda é que, durante todo o perío-do da crise provocada pelo coronavírus, houve uma seletividade em quem pode e tem o direito de manter-se em isola-mento e quem não pode e não tem o direito de cumprir as medidas de pro-teção. Trata-se, especialmente, da po-pulação mais pobre, que possui acesso precário à saúde, à moradia digna, sane-amento básico e educação.

Estudos recentes realizados pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostram que os mais vul-neráveis ao contágio por Covid-19 são trabalhadores autônomos (onde se en-quadram as diaristas e os camelôs), se-guidos pelas donas de casa. De forma geral, os mais vulneráveis são também os usuários de transporte público, isto é, a população que continuou a vida la-boral ativa.

Cabe ainda ressaltar a continuidade da política de negligência e ataque aos povos indígenas brasileiros que, segun-do a Articulação Nacional dos Povos Indígenas no Brasil (APIB) são 27 mil indígenas contaminados e 2500 mortos.

Mapas da contaminação

Para além de um mapeamento do número de mortos e infectados, é neces-sário olhar o que está por trás dos nú-meros. Os mapas oficiais da covid-19 es-condem uma subnotificação de dados, uma vez que os nebulosos critérios de contabilidade do número de mortos e infectados são questionáveis. ROLNIK et al (2020) lembra-nos bem que os ma-pas são instrumentos políticos fruto de escolhas do que se mostra e do que se esconde, ou melhor, invisibiliza. Os ma-pas institucionais produzidos tendem a mostrar uma visão geral do número de infectados, mas escondem as realida-des específicas de cada localidade, isto é, grandes cidades, como é o caso da capi-tal paulista e outras regiões metropoli-tanas, onde o monitoramento passou a ser feito a partir de grandes distritos.

Logo no início de junho deste ano, o Ministério da Saúde retirou de seu portal de dados abertos (DATASUS) as informações dos casos de hospitali-zação a partir do CEP de cada pessoa contaminada. O que “dificulta ainda mais a compreensão sobre a dissemi-nação da pandemia no território brasi-leiro, limitando inclusive a formulação de estratégias adequadas para seu en-frentamento” (LabCidade, 9 de junho de 2020). É ainda importante ressaltar

Os mapas oficiais da covid-19 escondem uma subnotificação de dados, uma vez que os nebulosos critérios de contabilidade do número de mortos e infectados são questionáveis

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que foram “retirados de todos os ban-cos de dados a variável ‘CEP’, inclusi-ve das planilhas anteriores, ocultando não somente o presente, mas apagan-do a história” (idem). Isso pode sugerir mais um mecanismo do Estado brasi-leiro em esconder tanto o número de mortos e contaminados, mas também a promoção de uma leitura nebulosa do real quadro de contaminação por localidade. A importância do moni-toramento via CEP está centrada na possibilidade de identificação de “pos-síveis fatores sociais, territoriais ou de ineficiência de políticas públicas para a maior letalidade em um território es-pecífico e a partir desta identificação a construção das políticas emergenciais adequadas a cada lugar” (Rolnik et al. 2020), como, por exemplo, a disponibi-lidade de leitos hospitalares.

De forma a dificultar e invisibi-lizar ainda mais o mapa de contami-nação da Covid-19, na mesma modifi-cação da DATASUS de junho, a nova contagem, sobretudo do número de óbitos, passa a ser feita a partir da data da morte e não mais a partir da data da notificação do contágio. Dessa forma, se antes os mapas de contaminados já eram imprecisos e questionáveis, com essas alterações busca-se esconder e minimizar a gravidade da crise sanitá-ria e de saúde no Brasil, o que limita a compreensão da territorialidade da pandemia e da elaboração de políticas públicas eficazes no combate ao vírus.

Nesse sentido, o que está por trás dos mapas e dos números é uma vas-ta agenda de morte e devastação social promovida, principalmente, pelo go-verno federal, mas que ganhou adesão de diversos prefeitos e governadores.

Agenda celebrada pela famosa respos-ta de Bolsonaro aos jornalistas sobre o recorde de mortes de brasileiros por Covid-19: “E daí? Lamento. Quer que faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre” (O Globo, 30/04/2020). Mais do que naturalizar a morte, Bol-sonaro busca ainda eximir o governo das culpas e responsabilidades no com-bate ao coronavírus e promove em lar-ga escala o que tem sido chamado de necropolítica (Mbembe, 2016). Apesar dos diversos usos do conceito por dis-tintos estudiosos, o que está no núcleo do debate é que há poderes políticos e sociais ditando a escolha de quem deve morrer e quem deve viver e suas maneiras de vida. Dessa forma, impor-tante aqui é compreender não apenas as escolhas, mas os mecanismos utiliza-dos pelo Estado para fazer dessas esco-lhas, as únicas possíveis.

A dimensão territorial da conta-minação, do modo como é feita, igno-ra as diferenças e desigualdades territo-riais das cidades e a análise dos dados

por distrito. Além disso, através desse tipo de coleta de dados, que engloba dentro de um mesmo distrito zonas de favelas, moradias, ocupações populares e bairros abastados onde vivem a clas-se média, tem-se criminalizado e res-ponsabilizado a população mais pobre pela contaminação e disseminação da Covid-19. Isso tudo alimenta não ape-nas discursos, mas políticas de guerra contra determinadas populações con-sideradas problemáticas, há tempos, em relação ao desenvolvimento e he-gemonia do capital, tanto nas zonas urbanas quanto na disputa pela terra, como as áreas de ocupações populares nas cidades, consideradas um entrave para a especulação imobiliária e como áreas de demarcação de terras indíge-nas, vistas como um obstáculo aos in-teresses do agronegócio.

O argumento de que a Covid-19 tem as áreas pobres como ponto de alastramento do vírus e a falta da va-riável CEP na identificação dos terri-tórios comprometidos pelo vírus, tra-

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Foto: Ministério da Saúde

Ministério da Saúde vem omitindo informações sobrea real situação da pandemia

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zem à tona justificativas para o uso da violência estatal contra os residentes dessas localidades, bem como “refor-çar preconceitos de parte da sociedade, que enxergam as favelas como lugar de marginal, de bandido, de sujeira, e que, portanto, precisam ser eliminadas” (Rolnik et al. 2020).

Contra os processos de invisibili-zação do número de mortos e conta-minados, desde o início da pandemia consolidaram-se uma série de iniciati-vas populares a fim de promover re-gistros alternativos aos dados oficiais e monitorar o impacto da pandemia, bem como promover uma série de outras ações de combate ao vírus e de subsídio à população menos assistida pelo Estado (Telles et al., 2020), que também passam a ser mapeadas.

Articulações populares e sociais, ancoradas em coletivos territoriais, grupos de trabalho, movimentos so-ciais, sindicatos etc., com a iminente proliferação do vírus e o regime de isolamento e distanciamento social, se

viram obrigados a desdobrar suas ativi-dades para o novo contexto. Parte im-portante dessas iniciativas consolida-se na construção de mapas e plataformas digitais, articulando diversos operado-res sociais como pesquisadores, mili-tantes de diversas organizações sociais e profissionais de diversas categorias. “Nas suas diferentes conformações e modos de atuação, essas plataformas e redes de apoio parecem se configu-rar como verdadeiros operadores de escala, dando ressonância aos agencia-mentos locais e transterritoriais para lidar com os efeitos devastadores da pandemia. E também para contornar os efeitos nefastos da desinformação sistemática promovida pelos poderes públicos (idem)”.

Violências na pandemia

Desde o início da Pandemia o que se percebe é um aumento significati-vo no controle e vigilância dos espa-ços, atuando contra os trabalhadores a “pretexto de combater a contaminação do vírus por meio de fortes políticas re-pressoras e através dos já mencionados processos de invisibilização. No entan-to, na prática o que se observa é que o poder público tem sido o promotor e protagonista dos processos de violên-cia” (Aguiar, Barbosa, 2020).

As diversas formas de violência têm afetado de diferentes maneiras a popu-lação, como a negação dos serviços bási-cos e a letalidade policial como meio de controle ostensivo dos territórios.

Durante a pandemia, a letalidade policial cresceu exponencialmente em diversos estados brasileiros. No Rio de Janeiro as mortes por ação policial

atingiram o maior índice desde 1998, quase 5 mortes por dia, contabilizan-do 741 vítimas nos cinco primeiros meses do ano (Rodrigues, 2020), 75% delas sendo de pessoas negras. Segun-do a plataforma digital Fogo Cruzado, apesar de a diminuição do número de tiroteios na região metropolitana do Rio de Janeiro, o número de crianças mortas nos 4 primeiros meses de iso-lamento social, teve um aumento de 150% com 5 mortes registradas, foram 2 em 2019.

Na região metropolitana de Reci-fe, houve um aumento de 50% no nú-mero de tiroteios em relação ao ano anterior e só no mês de julho foi con-tabilizada uma crescente de 117% em feridos por arma de fogo. No estado de São Paulo, a letalidade policial cresceu 22% em comparação ao mesmo perío-do correspondente, de janeiro a maio em 2019, o que significa uma morte a cada seis horas. E, em maio de 2020, o número de mortos pela polícia militar em serviço representou um aumento de 43,6% em relação ao mesmo perí-odo de 2019 e os mortos por PMs de folga em abril agora correspondem a um aumento de 180% em comparação com abril passado (2019).

Os dados variam de um estado ao outro, mas o que tem de semelhante é a continuidade de uma prática racista e alvos comuns: a maioria das vítimas (68%) é negra e residente de áreas peri-féricas. Ao longo da pandemia, inúme-ras denúncias públicas, acompanhadas de imagens, retrataram o cotidiano violento dos moradores de periferias e ocupações urbanas, dos trabalhadores dos comércios populares das grandes cidades, do campo etc.

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Trabalhadores autônomos, dentre eles camelôs e empregadas domésticas, continuam circulando pela cidade em busca de sobrevivência financeira e que, além de ficarem sujeitos à contaminação do vírus por não terem o direito ao cumprimento do isolamento social, ainda estão sujeitos às violências estatais, tão utilizadas para fazer o controle das vidas e dos corpos

Somando-se a esses dados, regis-tra-se o aumento da violência de gê-nero, sobretudo da violência domés-tica contra as mulheres. No contexto geral do Brasil, os feminicídio aumen-taram 22% em relação ao ano passado, segundo o Fórum Brasileiro de Segu-rança Pública. No entanto, há menos denúncias. Esses dois dados sugerem, por um lado, que há subnotificação dos casos de violência contra a mu-lher; e por outro, que o confinamento durante a quarentena, em que as mu-lheres ficam em casa junto aos seus agressores, dificulta a efetivação das denúncias, além da falta de acesso aos equipamentos públicos de violência contra a mulher, como as delegacias e hospitais especializados. Um dado alarmante é o do Rio de Janeiro, onde até o mês de maio, houve um aumen-to de 50% de denúncias feita pelas mulheres. “Casa que não tem pão, ninguém tem razão”, é com essa frase que Bolsonaro justifica e legitima vio-lências contra as mulheres.

Esse breve quadro da violência du-rante a pandemia é relevador da natu-ralização das mortes, e no tratamento delas como “inevitável” aos olhos dos poderes públicos. A violência estatal é mais uma das facetas da gestão da vida e da morte praticada pelo Estado brasi-leiro, é o escancaro das desigualdades políticas e econômicas. Não há inte-resse em proteger o conjunto da classe trabalhadora, como também se incen-tiva e se armam dispositivos de con-trole dos territórios com uso ostensivo das forças policiais; legitimação e ins-titucionalização dos abusos por parte dos discursos e práticas da presidência da República. Considerando ainda que

o governo revogou as portarias do Co-mando Logístico do Exército, que nada mais é do que o menor controle sobre a produção e comercialização de armas, o que beneficia os traficantes de armas e as milícias e dificulta ainda mais a investigação de crimes e, consequente-mente, a busca por justiça. É mais uma cena da guerra vivida pelos brasileiros, em que os “cidadãos de bem” tem per-missão para matar.

A pandemia como pretexto

De acordo com os dados da Agên-cia Brasil, de abril a junho 107 milhões de pessoas solicitaram o auxílio emer-gencial do Governo Federal. No entan-to, até junho os beneficiários eram 59 milhões de pessoas. Ficaram de fora 42,2 milhões que foram considerados inelegíveis, e mais uma quantidade incontável da população que nem se-

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quer conseguiu concluir o cadastro no site da Caixa Econômica Federal.

É bom que se diga que os nebulo-sos critérios estabelecidos pelo Estado brasileiro para selecionar quem tem ou não direito ao auxílio emergencial, também fazem parte das escolhas de quem tem mais ou menos chance de viver em meio a pandemia. A saber, são milhares de trabalhadores, dentre eles uma massa de imigrantes, a po-pulação de rua e mulheres chefes de família que ficaram de fora do acesso ao medíocre auxílio emergencial ou ti-veram as parcelas bloqueadas. A conse-quência disso é um enorme contingen-te de trabalhadores que todos os dias precisa se lançar na disputa contra o Estado para defender suas vidas e seus modos de sobrevivência. Isso tudo faz parte dos dispositivos operantes nos desmontes dos serviços públicos, e da agenda ultraliberal.

Como parte desse mesmo proces-so, o Estado acelera uma agenda de desmontes já em curso, principalmen-te desde o golpe contra a presidenta Dilma e o povo trabalhador brasileiro. Nas palavras do ministro do Meio Am-biente Ricardo Salles, o governo preci-sa aproveitar o momento em que o país está com a atenção voltada à pandemia para “passar a boiada”. Isso, nada mais significa que acelerar a agenda de guer-ra e destruição contra o povo trabalha-dor brasileiro: desmonte dos serviços públicos, da assistência social básica, além das inúmeras barreiras criadas para dificultar o acesso aos poucos re-cursos de auxílios emergenciais. Em outras palavras, o Estado não promo-ve políticas de assistência social, não fornece auxílio emergencial amplo e

justo, criminaliza a população pobre, a persegue, nega direitos, e ainda escon-de vergonhosamente a violência poli-cial que pratica cotidianamente.

É o caso dos trabalhadores autôno-mos, dentre eles camelôs e empregadas domésticas que continuam circulando pela cidade em busca de sobrevivência financeira e que, além de ficarem sujei-tos à contaminação do vírus por não terem o direito ao cumprimento do isolamento social, ainda estão sujeitos às violências estatais, tão utilizadas para fazer o controle das vidas e dos corpos.

Logo no mês de março já se via ao que se referia Salles com o anúncio fei-to pelo governo federal de suspensão dos contratos de trabalho sem salários por até quatro meses, além da aprova-ção da MP 936 (agora lei 14.020), uma variante da antirreforma trabalhista de Michel Temer, que flexibiliza ainda mais os contratos de trabalho no Brasil e ataca mais uma vez os sindicatos.

Isso significa que os trabalhadores no Brasil avançam mais uma fase na história da precarização do trabalho. Os processos mais recentes de desregulação do Estado brasileiro, com a diminuição de direitos, de privatização e terceiriza-ção dos serviços públicos, isto é, toda agenda do ultraneoliberalismo em cur-so, é levada às últimas consequências pelo governo Bolsonaro como parte de um processo de institucionalização da instabilidade. Medidas como essas, so-madas a crise política e econômica que o país passa, agrava ainda mais o qua-dro do desemprego e precariedade do trabalho. Reflexo disso é a explosão do trabalho intermitente, da superexplora-ção da força de trabalho e o aumento do exército industrial de reserva, que

tem sido amplamente utilizado e pro-movido por grandes corporações res-ponsáveis por fornecimento de serviços através de aplicativos digitais.

Em meio à pandemia, em julho passado, os trabalhadores de apps evi-denciaram sua capacidade de mobiliza-ção, construindo uma paralisação de 24 horas e realizando grandes atos nas prin-cipais cidades brasileiras. Atravessando a cidade, muitas vezes ultrapassando 12 horas diárias de trabalho e sem direito a qualquer benefício (incluindo equipa-mento de segurança para enfrentar o ca-ótico e perigoso trânsito nas grandes ci-dades e materiais como máscara e álcool em gel, imprescindíveis para a proteção pessoal contra a infecção pelo coronaví-rus), estes trabalhadores, que muitas ve-zes “carregam comida com fome”, ilus-tram bem o que o ultraneoliberalismo reserva em termos de trabalho e ocupa-ção para os trabalhadores brasileiros, so-bretudo a juventude trabalhadora. Em contrapartida, as empresas de apps, de-sobrigadas do cumprimento de direitos trabalhistas tem ganhado cada vez mais o território brasileiro, aumentando os seus lucros.

A taxa de desemprego na pande-mia, segundo a última PNAD no IBGE, continua crescendo, alcançando 13,7% da população brasileira; quase 9 mi-lhões de pessoas perderam o emprego desde o início da pandemia. Doze esta-dos da federação tiveram aumento no número de desempregados.

Desde maio, o Sudeste e o Nordes-te foram as regiões mais impactadas com 31% e 20%, respectivamente, com o aumento do desemprego, coinciden-temente são também as regiões com maior incidência de casos de Covid-19,

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seguidos do Centro-Oeste (25%), Sul (17%) e Norte (14%). Em relação à sema-na anterior, a maior alta foi registrada na Região Norte (27%), seguida do Su-deste (6%), Nordeste e Sul empatadas, com 3%, e Centro-Oeste, com 1%” (CUT, 17/07/2020). Segundo o IBGE ainda, o desemprego entre os trabalhadores que se declararam pretos e pardos, a taxa é de 15,2% e 14%, enquanto para os decla-rantes brancos a taxa subiu de 8,7% para 9,8% em relação ao ano de 2019.

O número de trabalhadores com carteira assinada caiu 8,9% em compa-ração ao ano de 2019. Já os trabalha-dores informais também tiveram uma queda de 24,9% em relação ao ano passado e os trabalhadores por conta própria tiveram uma queda de 10,3%, um total de 21,7 milhões de pessoas em comparação a 2019. O setor de comér-cio foi um dos mais impactados pela pandemia, tendo dispensado 2,137 mi-lhões. Entre jovens entre 18 e 24 anos a taxa de desemprego ficou 27,1% no primeiro trimestre de 2020.

A juventude trabalhadora ocupa os postos de trabalho mais precarizados e informais. 53% dos trabalhadores de call center tem entre 23 e 25 anos de idade, destacando-se a grande quanti-dade de mulheres e jovens LGBTQIA+ nessa categoria profissional, que a cada dia se depara com mais precarização e exploração, tendo como exemplo o fato de cada vez mais os contratos de traba-lho serem caracterizados pela nova ca-tegoria de “trabalho intermitente”, com jornada reduzida e remuneração mui-tas vezes menor que o salário mínimo. Considerada atividade essencial duran-te a pandemia, os trabalhadores de call center são obrigados a se deslocar e a

compartilhar espaço com dezenas ou centenas de outros colegas, arriscando suas vidas diariamente.

Quando não desempregada, supe-rexplorada e/ou precarizada, o direito à própria vida é negado para essa juven-tude, especialmente a juventude negra das periferias. Somente em São Paulo, até abril, a Polícia Militar havia matado 255 pessoas, um aumento de 23,2% em relação à 2019. Dos que tinham registro de idade, 68 tinham entre 18 e 29 anos. Um deles foi David Nascimento dos Santos, 23, vendedor ambulante, assas-sinado após ser sequestrado pela Polícia Militar enquanto aguardava uma entre-ga do Ifood.

A consequência desse cenário é his-tórica para o Brasil, uma vez que atingi-mos o menor número de trabalhadores com carteira assinada, consequente-mente com o mínimo de direitos garan-tidos. O impacto disso na vida das mu-lheres também é profundo, elevando a graus máximos a já existente divisão sexual do trabalho. A necessidade de mais de uma ocupação devido aos con-tratos intermitentes, por exemplo, adi-ciona uma terceira jornada de trabalho

na vida da mulher trabalhadora, muitas vezes única responsável pelo trabalho doméstico.

Além disso, o Governo Federal ace-nou diversas políticas favoráveis à base bolsonarista, dentre as quais estão as igrejas evangélicas, que tiveram o per-dão de suas dívidas. A área ambiental foi uma das mais afetadas. O ministro Salles anunciou desmates de áreas menores a 150 hectares sem precisar de autorização do Ibama, atendendo aos interesses rura-listas. Além da prática já em curso neste governo da exploração de terras indíge-nas por garimpeiros e mineradores.

A educação também foi alvo du-rante a pandemia, como se não bas-tasse a exclusão de 25 mil bolsas de pesquisa destinadas às ciências hu-manas, houve também uma tentativa da base do governo em inviabilizar a aprovação do novo Fundeb. A imple-mentação do ensino remoto, sem as condições de acesso à internet e meios adequados ao ensino e aprendizagem marcam parte da enorme luta dos tra-balhadores da educação ao longo des-ses meses, luta essa que não cessa. Hoje, a batalha é em torno ao impedimento

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do retorno das aulas presenciais, que se for efetivada pode significar novos picos de contágio pela covid-19.

Conclusão

Hoje, a pandemia escancara as de-sigualdades e a política genocida dos atuais governos, inclusive estaduais e municipais. É justamente toda a agenda de desmonte e destruição promovida pelo governo Bolsonaro em consonân-cia com os interesses ultraneo liberais que operam o atual cenário de guerra. É essa agenda que também conforma os mapas oficiais de contaminação da Covid-19, que escondem e obscurecem os dados reais de mortos e contamina-dos, as condições sociais e econômicas dos territórios, os dados da violência policial. Longe desses mapas estão mi-lhares de famílias despejadas em plena pandemia, os mortos e contaminados nas prisões, os trabalhadores que so-frem diariamente as violências estatais etc. E, a partir das escolhas feitas do que pode e não pode ser mostrado e com-preendido nos mapas, também ajudam na conformação das escolhas de quem vive e morre e quais os modos de vida são tolerados e quais são combatidos a duras violências estatais.

Do outro lado da moeda estão os inúmeros trabalhadores brasileiros, coletivos, movimentos sociais, que

longe de serem meros receptores das políticas destrutivas, lutam cotidiana-mente contra e na disputa do Estado em defesa de suas vidas. Suas formas de articulação, reorganizadas e poten-cializadas a partir das necessidades e urgências impostas pela pandemia, reagem e se inserem em um campo de disputa em torno da produção e conformação dos mapas e de seus cri-térios, consequentemente, um campo de disputa em torno da agenda polí-tica e social. Nesse sentido, faz-se fun-damental, sobretudo aos sindicatos e partidos de esquerda, que persistam na luta contrária a normalização da morte, da necropolítica. Ao contrário do que afirma Jair Bolsonaro, ao dizer “...todo mundo vai morrer um dia”, a luta é para defender a sobrevivência, a dignidade das trabalhadoras e dos trabalhadores. Não é nem um pouco razoável aceitar que alguns precisarão morrer para que a ideia de economia desse estado genocida resista. Não é minimamente aceitável que os traba-lhadores sejam forçados a se arrisca-rem no trabalho, para gerar riquezas para muitos que sequer vivem no país, nem vivem o caos conduzido pelo go-verno, sob a justificativa de que há lei-tos de UTI e respiradores em porcen-tagens seguras, porque supostamente entramos em um platô, com números elevadíssimos mortes.

ANA LÍDIA AGUIAR é professora da rede estadual de ensino em São Paulo, militante do PT e doutoranda em sociologia

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Hoje, a pandemia escancara as desigualdades e a política genocida dos atuais governos, inclusive estaduais e municipais. É justamente toda a agenda de desmonte e destruição promovida pelo governo Bolsonaro em consonância com os interesses ultraneo liberais que operam o atual cenário de guerra