Upload
trinhthien
View
212
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
“NÃO HÁ NADA DE NOVO NO REINO”: JUSTIFICATIVAS PARA A
EXPLORAÇÃO DO CAMPO, DA INGLATERRA AO BRASIL1.
Hiolly Batista Januário de Souza2
Resumo: O presente trabalho busca fazer uma breve observação sobre as justificativas
para a propriedade privada e exclusiva partindo do texto de Ellen Wood e sua
apresentação da obra de John Locke, perpassando obras de Karl Marx e Antonio
Gramsci, para tentar mostrar como que, dentro do atual sistema capitalista, temos o
desenvolvimento de justificativas cada vez mais elaboradas sobre a propriedade, mas
que, em essência não mudaram ao longo do tempo. Por último tentaremos mostrar,
brevemente, como que as ideias de Locke chegam até o Brasil, através do texto de
Ricardo Abramovay.
Palavras-chave: melhoramento da terra; propriedade exclusiva; campo.
Nosso ponto de partida para chegarmos a esse conciso trabalho que
apresentaremos foi o texto da autora britânica Ellen Wood sobre o A origem agrária do
capitalismo, no qual vislumbra em John Locke, filósofo inglês do século XVII, um
legitimador teórico da propriedade privada nos moldes capitalistas, bem como da
intensificação da exploração dos trabalhadores. Tal texto se refere também à um outro
ponto que nos é caro: o conceito de melhoramento, que tentaremos elucidar ao longo da
exposição.
Reportar-nos-emos aos escritos de Karl Marx e Antonio Gramsci para verificar
como esses estudiosos observaram as criações “espirituais” da sociedade moderna e a
forma como essas justificam e legitimam a existência das classes e de seus lugares
sociais. Iremos nos referir com quase exclusividade ao Estado e o papel por ele
desempenhado na efetivação das práticas capitalistas e na defesa da propriedade
privada, a partir das indicações e apontamentos que os textos nos forem revelando.
Por último, tentaremos contextualizar a partir do texto de Ricardo Abramovay e
como que as ideias de “melhoramento” e os imperativos do mercado acabaram por
chegar ao Brasil do século XXI, tendo um ar de novo, mas cujas bases se encontram no
1 Trabalho surgido a partir de texto apresentado à disciplina Instituições e Relações de Poder, no PPGH-
UNIOESTE. 2 Mestranda no PPGH, pela linha Estado e Poder, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
UNIOESTE). Bolsista-técnica na UNIOESTE, trabalhando na secretaria da Revista Tempos Históricos e
no Lamidi. E-mail: [email protected].
século XVI, mais precisamente na Inglaterra e seus filósofos, cujos pensamentos e
práticas sobreviveram aos séculos e nos afetam cotidianamente.
Segundo Ellen Wood em A Origem do Capitalismo, mais precisamente em seu
capítulo quatro “A origem agrária do capitalismo” a autora tenta reverter a ideia de que
a ligação entre capital e cidade é “natural”, como se o capitalismo houvesse surgido e se
desenvolvido entre os muros citadinos. Segundo Wood ao fazer essa naturalização
entre as cidades e o capitalismo busca-se “disfarçar sua singularidade [do capitalismo]
como forma social historicamente específica, que teve um começo e tem potencialmente
um fim” (WOOD, 2001, p. 76), ou seja, cria-se a impressão de ser algo natural àquilo
que não o é, fazendo-nos crer na intransponibilidade do capitalismo como forma de
sociabilidade, como se ele fizesse parte, juntamente com a propriedade privada e as
classes sociais, de uma “natureza humana”.
Com o propósito de ir contra essa associação direta E. Wood afirma que o
capitalismo “com todos os seus impulsos sumamente específicos de acumulação e
maximização do lucro, não nasceu na cidade, mas no campo, num lugar muito
específico e em época muito recente da história humana” (WOOD, 2001, p. 78).
Durante o texto a autora vai mostrando como que historicamente o capitalismo se
constituiu na Inglaterra a partir do século XVI, tendo suas bases materiais e políticas no
campo, pois a “centralização política singular do Estado inglês [século XVI] tinha bases
e corolários materiais. (...) A base material em que se fundamentava essa economia
nacional emergente era a agricultura inglesa, que se singularizava de diversas maneiras”
(WOOD, 2001, p. 82) e prossegue afirmando que na Inglaterra
fazia muito tempo que a terra era incomumente concentrada, cabendo
aos grandes proprietários uma parcela também incomumente grande
dela. Essa concentração da propriedade significava que os
latifundiários ingleses podiam usar sua propriedade de novas
maneiras. O que lhes faltava poderes “extra-econômicos” de extorsão
de excedente era mais que compensado por seus crescentes poderes
econômicos. (WOOD, 2001, p. 83).
Ao longo do desenvolvimento de seu texto a autora vai discorrendo sobre como
o mercado da terra passa a se fazer presente, gerando uma dependência nunca antes
observada na história da humanidade do mesmo, sendo uma sociedade na qual o
mercado deixa de ser um “simples mecanismo de troca ou distribuição” e se eleva à
categoria de “determinante e regulador principal da produção social” (WOOD, 2001, p.
78). Com essa constatação E. Wood afirma que “não foram as oportunidades
proporcionadas pelo mercado, mas os imperativos deste que levaram os pequenos
produtores mercantis à acumulação”, e afirma que o “efeito dos imperativos de mercado
foi intensificar a exploração para aumentar a produtividade – tanto a exploração do
trabalho alheio quanto a auto-exploração praticada pelo fazendeiro e sua família”
(WOOD, 2001, p. 85).
Dando sequência ao exposto por Ellen Wood vemos que com o imperativo do
mercado e a intensificação da exploração com vistas ao lucro temos que “as concepções
tradicionais de propriedade tiveram que ser substituídas por novas concepções
capitalistas de propriedade – não apenas como „privada‟, mas como exclusiva.”
(WOOD, 2001,p. 90, grifos nossos), já que o “cercamento [concentração fundiária] (...)
significou a extinção, com ou sem demarcação física das terras, dos direitos comunais e
consuetudinários de uso dos quais dependia a sobrevivência de muitas pessoas”
(WOOD, 2001, p. 91).
Só lembrando que a propriedade privada não é exclusividade do capitalismo,
apenas escolhemos esse período histórico para a elaboração de nosso artigo, por sê-lo
justamente nosso objeto de interesse. Pois segundo Karl Marx a “escravidão na família,
ainda latente e rústica é a primeira propriedade, que aqui, diga-se de passagem,
corresponde já à definição dos economistas modernos, segundo a qual a propriedade é o
poder de dispor da força de trabalho alheia” (MARX, 2007, p. 37).
A partir do ponto em que a autora trata das novas concepções capitalistas de
propriedade, da alteração de apenas privada para o sentido de privada & exclusiva é que
nos deteremos para o subsequente desenvolvimento de nosso artigo. Em A teoria da
propriedade de Locke, subtítulo do capítulo quatro “A origem agrária do capitalismo”,
temos a apresentação do filósofo inglês John Locke (1632-1704), considerado um dos
ideólogos do liberalismo econômico.
Ellen Wood utiliza para a continuação de sua análise sobre as origens agrárias do
capitalismo o capítulo cinco da obra de J. Locke Segundo tratado sobre o governo e
disserta sobre tal trabalho em que o pensador inglês do século XVII afirma que o
“direito natural de propriedade se estabelece quando um homem „mistura seu trabalho‟
com alguma coisa, isto é, quando, por meio de seu trabalho, ele a retira de seu estado
natural ou modifica sua condição natural” e prossegue afirmando que toda “a tese de
Locke sobre a propriedade privada gira em torno da ideia de melhoramento. O tema que
perpassa todo o capítulo é que a terra existe para se tornar produtiva e lucrativa, e é por
isso que a propriedade privada, que emana do trabalho, suplanta a posse comum”
(WOOD, 2001, p. 93). Continuando com sua análise sobre o pensamento de Locke
escreve que o filósofo “pretende dizer (...) é que a terra não melhorada é um deserto,
donde qualquer homem que a tire da posse comum e se aproprie dela – que retire terras
da área comunal e as cerque – para melhorá-la, está dando algo à humanidade, e não
retirando” (Wood, 2001, p. 93).
Todo o trabalho desenvolvido por J. Locke, tal como nos apresenta E. Wood, se
dirige no sentido de defender através da ideia de um contrato social existente em que a
propriedade privada e exclusiva é uma necessidade para o desenvolvimento e
melhoramento não só da terra, mas da economia, da política, e, por que não, da
sociedade como um todo. Wood prossegue com seus apontamentos acerca de J. Locke
onde este defende que “o latifundiário que confere à sua terra um uso produtivo, que a
melhora, mesmo que seja através do trabalho de terceiros, está sendo diligente, não
menos – e talvez mais – do que o criado que labuta” (WOOD, 2001, p. 94). Aqui nos
resguardamos o direito de uma interferência: nesse trecho temos que o proprietário
ganha os louros da produtividade, é ele quem fica com os lucros obtidos a partir do
trabalho de outrem, mesmo que ele não tenha posto a mão em uma única enxada a fim
de revolver a terra para o plantio, no entanto temos até nossos dias a valorização do
detentor da propriedade em detrimento do trabalhador, ou seja, os “empregadores de
mão-de-obra, em outras palavras, recebem o crédito pela produção” (WOOD, 2001, p.
94).
A mudança de pensamento acima exposta – a classe dominante, proprietária se
enxergando enquanto produtora – é, segundo E. WOOD, uma apropriação tipicamente
capitalista e
implica que a propriedade é usada ativamente, não para um consumo
ostensivo, mas para investimento e para a extração de lucros
crescentes. A riqueza não é adquirida pelo simples uso da força
coercitiva para extrai mais trabalho excedente dos produtores diretos,
à maneira dos aristocratas rentistas, nem pelo ato de comprar barato e
vender caro, como faziam os comerciantes pré-capitalistas, mas pelo
aumento da produtividade do trabalho (produção por unidade de
trabalho).
Ao fundir o trabalho com a geração de lucro, Locke talvez
tenha-se tornado o primeiro pensador a construir uma teoria
sistemática da propriedade a se basear em algo semelhante a esses
princípios capitalistas. (WOOD, 2001, p. 95, grifos nossos)
E. Wood nos diz que é “preciso recordarmos que a definição de propriedade, na
época de Locke, não era apenas uma questão filosófica, mas uma questão prática muito
imediata” (WOOD, 2001, p. 95).
Em A ascensão da propriedade capitalista e a ética do “melhoramento”,
subtítulo do capítulo quatro que nos serve de base para o presente texto, Wood se detém
no surgimento do conceito de melhoramento da terra na Inglaterra dos séculos XVI e
XVII, na qual o termo se refere a forma como a terra é explorada. A autora afirma que
no início da era moderna, a produtividade e o lucro estavam
inextricavelmente ligados no conceito de melhoramento, que resume
bem a ideologia de um capitalismo agrário em ascensão. (...) o
melhoramento significava um pouco mais do que métodos e técnicas
novos ou melhores de cultivo. Significava, em termos ainda mais
fundamentais, novas formas e concepções da propriedade. (WOOD,
2001, p. 89).
Assegurando esse pensamento do melhoramento, os proprietários ingleses
passaram a ver entraves para o seu desenvolvimento econômico nas terras comunais,
nas terras de direito consuetudinários, enfim, nas porções que estavam, à época, ainda
fora do jugo capitalista e de suas ideias de maximização dos lucros, de aumento da
exploração, etc.
Wood nos mostra como que os latifundiários viam a questão das terras: “Do
ponto de vista dos latifundiários e dos fazendeiros capitalistas adeptos do
melhoramento, a terra tinha que ficar livre de qualquer dessas obstruções, para que eles
tivessem um uso produtivo e lucrativo das propriedades” (WOOD, 2001, p. 90), um
exemplo histórico sobre a forma como os proprietários de terras passam a agir
encontramos em duas obras de E. P. Thompson: Costumes em comum – Estudos sobre a
cultura popular tradicional e Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra, em que
podemos observar como que as normas sociais vão se alterando a fim de favorecerem
cada vez mais as classes dominantes em sua acumulação e expansão econômica e
política.
A autora finaliza seu texto afirmando que essas transformações que se deram na
Inglaterra durante o século XVI também alteraram a luta de classes, já que para o
camponês inglês era imperativo a luta contra o cercamento, que retirava dele a
propriedade da terra e limitava seu acesso a ela.
Quando na apresentação do texto de Ellen Wood destacamos a passagem em que
ela nos diz que “as concepções tradicionais de propriedade tiveram que ser substituídas
por novas concepções capitalistas de propriedade – não apenas como „privada‟, mas
como exclusiva.” (WOOD, 2001, p. 90, Grifos nossos), logo essa nova forma de
encarar a propriedade privada passa a ter uma teoria, que nesse caso nos foi exposta a
partir de uma leitura de John Locke, mas adentraremos agora no mantenedor, efetivador
e propagador, por assim dizer, dessas teorias na vida prática da sociedade: o Estado. E
para tentarmos fazer a ligação entre um e outro utilizaremos a definição de Virgínia
Fontes (2010), sobre o papel do Estado, que para ela é “o de defender as condições
gerais que permitem a expansão do capital, legitimando e legalizando uma forma de ser,
gerindo uma sociabilidade adequada, educando-a, além de coagir os renitentes pela
violência, aberta ou discreta” (p. 216).
Uma das características mais aclamadas do capitalismo e de sua sociabilidade é
a liberdade que ele nos proporciona, seja de ir e vir, de propriedade, de escolha, etc., no
entanto essa liberdade ilimitada tem nas leis criadas e gerenciadas pelo Estado suas
limitações. Karl Marx, ao analisar a França à época do golpe que levou Louis Bonaparte
a se tornar o novo imperador francês em meados do século XIX atesta que
Com efeito, cada uma dessas liberdades é proclamada como direito
absoluto do cidadão francês, mas sempre acompanhada da restrição à
margem, no sentido de que é ilimitada desde que não esteja limitada
pelos „direitos iguais dos outros e pela segurança pública‟ ou por „leis‟
destinadas a restabelecer precisamente essa harmonia das liberdades
individuas entre si e com a segurança pública.
(...)
Assim, desde que o nome da liberdade seja respeitado e impedida
apenas a sua aplicação afetiva – de acordo com a lei, naturalmente – a
existência constitucional da liberdade permanece íntegra, inviolada,
por mais mortais que sejam os golpes assestados contra sua existência
comum. (MARX, 2006, p. 32-33).
John Locke elabora sua teoria para justificar uma prática que estava já posta em
ação na sociedade inglesa nos séculos XVI e XVII e que vemos só ganhar força e se
solidificar com o passar dos séculos, com o desenvolvimento do Estado e da
propriedade capitalista.
A Inglaterra de Locke que serve de objeto para Ellen Wood, é um país
monárquico, que tinha em seu parlamento a grande força após as Revoluções Inglesas e
que dera a oportunidade política para o desenvolvimento do Estado inglês. Já K. Marx
analisa a França de meados do século XIX, décadas depois da Revolução Francesa de
1789 que vislumbrava nas leis e no parlamento uma espécie de casa superior, por assim
dizer, já que dali sairia as normas que manteriam o desenvolvimento da nação,
entretanto para K. Marx, no “parlamento a nação tornou em lei a sua vontade geral, isto
é, tornou sua vontade geral a lei da classe dominante”, desta forma, fica toda a
sociedade submetida aos interesses que não são seus propriamente ditos, mas de uma
parcela que pertence aos estratos sociais mais abastados, levando todos os outros a
defenderem não os seus interesses, mas daqueles grupos. Tal ideia é expressa de forma
ainda mais clara no seguinte trecho
As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias
dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da
sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A
classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe
também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão
submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos
daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. (MARX,
2007, p. 47).
O trecho acima citado é também defendido por A. Gramsci da seguinte forma:
“a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como „domínio‟ e como
„direção intelectual e moral‟. Um grupo social domina os grupos adversários, que visa a
„liquidar‟ ou a submeter inclusive com a força armada, e dirige os grupos afins e
aliados” (GRAMSCI, 2002, p. 62), temos apenas o acréscimo da coerção física que não
vimos explicitada no excerto de Karl Marx ao qual nos referimos, mas que também
encontramos nesse autor, afinal a dominação da classe dominante não se dá unicamente
pelos meios de convencimento, mas também pelos de coerção.
Elucidamos a defesa de Locke à propriedade privada e exclusiva quando
entendemos que o filósofo era um proprietário de terras e membro da classe dominante
inglesa do século XVII, e o porquê suas ideias ganharam coro e força, juntamente com
outros liberais com o passar do tempo.
Seguindo a lógica apresentada por V. Fontes e K. Marx, que expomos acima,
chegamos à Gramsci que, ao falar do Estado se remete à ele da seguinte forma
Se todo Estado tende a criar e a manter um certo tipo de civilização e
cidadão..., tende a fazer desaparecer certos costumes e atitudes e a
difundir outros, o direito será o instrumento para esta finalidade (ao
lado da escola e de outras instituições e atividades) e deve ser
elaborado para ficar conforme tal finalidade, se maximamente eficaz e
produtor de resultados positivos.
(...)
O direito é o aspecto repressivo e negativo de toda a atividade positiva
de educação cívica desenvolvida pelo Estado. (GRAMSCI, 2007, p.
28, grifos nossos).
Ao evidenciarmos esses autores (Fontes, Marx e Gramsci) buscamos fazer
entender que a forma como temos escritas e aplicadas as leis, a constituição do direito e
a ação do Estado tem o ponto comum da defesa da propriedade privada teorizada por
Locke – lembrando que tal filósofo não foi o único, mas sim o que nos serviu de base
para a elaboração desse trabalho -, e que vai se aperfeiçoando com o passar do tempo,
mas que mantém sua essência surgida entre os séculos XVI e XVII na Inglaterra
analisada por E. Wood perpassa o século XIX na França evidenciada por K. Marx,
chegando ao direito de A. Gramsci em meados do século XX na Itália.
Até esse momento nos detivemos a mostrar, mesmo que de forma breve, como
que, ao longo do processo de desenvolvimento histórico vemos como a teoria (filosofia
com Locke, as leis com Gramsci e Marx) está intimamente ligada às classes dominantes
e de como buscam fazer de seus interesses os interesses globais de uma sociedade.
Nosso ponto de partida foi o trabalho de Ellen Wood, mais precisamente sua exposição
sobre John Locke e de como sua teoria justificava a concentração fundiária na
Inglaterra, movimento que proporcionou a acumulação necessária para o
desenvolvimento capitalista, bem como a eclosão de evolução da Revolução Industrial
do século XVIII.
A partir do texto Paradigmas do capitalismo agrário em questão, de Ricardo
Abramovay tentaremos associar o exposto por E. Wood e sua Inglaterra dos séculos
XVI e XVII, e o Brasil contemporâneo.
Para o prosseguimento de nossa redação utilizaremos o capitulo Os limites da
racionalidade econômica de Ricardo Abramovay. Em sua pesquisa o autor vai situando
o camponês e sua reprodução social dentro da contemporaneidade e de como ele sofre
com os imperativos do mercado apresentando os entraves que existem entre a existência
desses trabalhadores rurais e seu modus operandis e o mercado tal qual nos apresenta,
criticando a racionalidade que se quer impor com base exclusivamente econômica,
entrando em conflito com as formas e a cultura camponesa, cujo mercado não possui
sensibilidade e nem interesse de compreender. Abramovay segue dizendo que na
“maioria dos casos, os economistas não analisam de maneira minimamente satisfatória
o ambiente social onde a vida camponesa transcorre e suas leis operam”
(ABRAMOVAY, 2007, p. 110). Ele exemplifica o modo de produção camponês que é
“ele mesmo uma certa unidade entre relações sociais (família) e forças produtivas (forte
peso do trabalho manual), que gera um tipo de comportamento cujo eixo de
determinação é fundamentalmente interno”(ABRAMOVAY, 2007, p. 110), sendo de
base familiar, onde a cultura permeia todas as ações, o distanciamento das relações
econômicas acabam por não encontrar uma fácil penetração nesses meios, levando ao
uso de coerção e um árduo trabalho de convencimento desses camponeses.
Ricardo Abramovay dá prosseguimento aos seus escritos buscando fazer um
contraponto entre o que se espera de uma sociedade capitalista e a forma como os
camponeses se organizam socialmente, com um estilo de vida não regido por leis
puramente econômicas, mas que se intercalam com as condições e costumes locais,
assim afirma que é a
família e a comunidade, de certa forma, emprestam sentido à
atividade camponesa. Trabalho e vida não são duas dimensões
cindidas: as crianças, as mulheres, enfim, um organismo único
produz com base no objetivo de gerar não só os meios de vida,
mas sobretudo, um modo de vida. (...) a terra não é um simples
fator de produção, as outras unidades produtivas não são apenas
concorrentes, e os comerciantes não são só sanguessugas
(ABRAMOVAY, 2007, p. 112).
Para o autor antes citado “o mercado acaba por substituir o código que orienta a
vida camponesa e por aí solapa suas possibilidades de reprodução social”
(ABRAMOVAY, 2007, p. 115), temos aqui um ponto que nos remete ao texto de Ellen
Wood quando esta vai nos mostrando como que o mercado vai se configurando e
alterando os modos pelos quais os proprietários e os camponeses ingleses dos séculos
XVI e XVII viam seu modo de produção, o acesso à terra e seu trabalho, sendo o
mesmo fato analisado por Abramovay no Brasil contemporâneo, mudando, grosso
modo, apenas a localização geográfica do ocorrido.
Um traço que podemos observar entre o que E. P. Thompson trata em seu livro
Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular, mais precisamente no capítulo
intitulado Economia moral da multidão inglesa do século XVIII é o fato de existir uma
moral que regeria a economia onde, segundo Abramovay, os mais abastados teriam
obrigações morais com os menos favorecidos, e é justamente quando aqueles deixam de
dar assistência aos mais pobres que temos sublevações sociais. O autor complementa
que o “direito à subsistência e reciprocidade são os dois princípios morais que regem a
vida da aldeia” (ABRAMOVAY, 2007, p. 121), mas que não sobrevivem aos
imperativos do mercado, assim não há “nada mais distante da definição do modo de
vida camponês que uma racionalidade fundamentalmente econômica” (ABRAMOVAY,
2007, p. 125).
Durante todo o texto, Ricardo Abramovay conduz nossa apreciação no sentido
de pôr-nos em contato com a incompatibilidade existente entre o modo de reprodução
social camponês e os imperativos do mercado e vai apresentando as formas como que
esse passa a incorporar os camponeses dentro de seu modo de reprodução, já que o
capitalismo se pressupõe global para sua existência e manutenção. Dessa forma temos o
camponês que passa a “melhorar” a sua terra (melhoramento que diz respeito ao tratado
elaborado por J. Locke e por nós acima explorado a partir de E. Wood), e entra numa
lógica de fazer sua terra produzir cada vez mais. Acaba por aplicar nela insumos e
defensivos agrícolas que consegue através de financiamento rural, que com o tempo o
endivida e se veem presos, como os pequenos proprietários lembrados por E. Wood na
“dura escolha do capitalismo agrário: na melhor das hipóteses, a auto-exploração
intensa, e na pior, a perda da terra e a substituição por empresas maiores e mais
produtivas” (WOOD, 2001, p. 87), ou seja, ou o camponês aumenta sobremaneira a
exploração de si e de sua família a fim de quitar as dívidas contraídas, ou perde sua
terra, se proletarizando.
Apesar de mostrar que o camponês, ao invés de ter seu modo de vida
simplesmente engolido pelo mercado e suas normas, se reformula despojando-se de
suas formas tradicionais, e consegue prolongar sua existência dentro do sistema
capitalista, no entanto R. Abramovay reconhece que a “ampliação dos horizontes sociais
e a instauração do cálculo econômico racional como critério das relações materiais entre
as pessoas não permitem que o caráter localizado e tradicional do campesinato
sobreviva. O capitalismo é por definição avesso a qualquer tipo de sociedade e de
cultura parciais” (ABRAMOVAY, 2007, p. 139).
Abramovay conclui seu texto afirmando que o “ambiente no qual se desenvolve
a agricultura familiar contemporânea é exatamente aquele que vai asfixiar o camponês,
obrigá-lo a se despojar de suas características constitutivas, minar as bases objetivas e
simbólicas de sua reprodução social”, assim, tal qual os camponeses ingleses do século
XVI sofreram as pressões iniciais de uma sociedade capitalista que se desenvolvia, os
camponeses brasileiros sofrem as pressões desse sistema já desenvolvido e que impõe
suas regras tendo por objetivo a maximização dos lucros e, ainda, a concentração
fundiária, ficando os pequenos proprietários com sua luta particular de não ser devorado
pela roda capitalista, isso nos séculos XVII ou no XXI.
Finalizamos nosso breve artigo com a certeza de que muito ainda tem para se
falar sobre como as ideias e a prática que sustentam o sistema capitalista resiste e se
adapta a fim de manter-se como dominante dentro das sociedades humanas. Buscamos
com esse texto mostrar como que os pensamentos defendidos nos idos dos séculos XVI
e XVII atravessaram os séculos XVIII e XIX, chegando até nós. Temos ainda em pleno
século XXI ideias nascidas lá atrás, mas que são reformuladas, sem alterarem sua
essência, para justificarem a propriedade privada, a busca pela maximização dos lucros
e a aniquilação de tudo o que represente resistência ao contínuo desenvolvimento e
ampliação do modelo capitalista de reprodução social.
Bibliografia:
ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrários em questão. São
Paulo: Edusp, 2007.
FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de
Janeiro: EPSJV/ Editora UFRJ, 2010. Cap. IV.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Volume 3. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.
__. Cadernos do cárcere. Volume 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
MARX, Karl. O dezoito brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2006,
4° edição.
__. ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. São Paulo: Paz e
Terra.
___. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
WOOD, Ellen Meikisins. A origem do capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
Cap. IV.