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Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999 ANTROPOLOGIA, NARRATIVAS E A BUSCA DE SENTIDO * Sônia Weidner Maluf Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil Resumo: Neste artigo, procuro desenvolver uma abordagem antropológica da narra- tiva como forma de interpretação da experiência individual e coletiva e como veículo de sentido. A discussão tem como pano de fundo um estudo sobre as novas culturas terapêuticas e religiosas no Brasil, em que são abordados a pessoa, sua experiência e os sentidos dados a essa experiência. A reflexão se debruça sobre duas formas de narrativa que emergiram na pesquisa de campo: as narrativas “terapêuticas” e as narrativas autobiográficas. A dimensão subjetiva e pessoal, marcante nas narrativas contadas pelos “filhos de Aquário” sobre seus itinerários espirituais, encontra no fluxo do conjunto das narrativas outra dimensão, aquela que fala da experiência e de seus sentidos sociais. Palavras-chave: antropologia, narrativa, religião. Abstract: In this article I discuss an anthropological approach of narrative as a form of interpretation of collective and personal experience and as a vehicle of sense. The discussion has as backdrop a study about new religious and therapeutic cultures in Brazil, where we approach the person, her experience and meanings of these experi- ences. The reflection is based in two forms of narrative that has arisen from the field- work: therapeutic and autobiographical narratives. The personal dimension, central in narratives related by “Aquarius children” about their spiritual itineraries, found in the middle of the narratives, another dimension: that one who speaks about the experience and their social meanings. Keywords: anthropology, narrative, religion. * Este texto é uma versão modificada do Cap. II de minha Tese de Doutorado, Les enfants du Verseau au pays des terreiros. Les cultures thérapeutiques et spiriutelles alternatives au Sud du Brésil. Paris, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1996.

Narrativas y La Busqueda de Sentido

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Narrativas y busquedas de sentido. Una antropologia de la subjetividad

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69Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999Antropologia, narrativas e a busca de sentidoANTROPOLOGIA, NARRATIVAS E A BUSCA DE SENTIDO*Snia Weidner MalufUniversidade Federal de Santa Catarina BrasilResumo: Neste artigo, procuro desenvolver uma abordagem antropolgica da narra-tiva como forma de interpretao da experincia individual e coletiva e como veculo de sentido. A discusso tem como pano de fundo um estudo sobre as novas culturas teraputicas e religiosas no Brasil, em que so abordados a pessoa, sua experincia e os sentidos dados a essa experincia. A reexo se debrua sobre duas formas de narrativa que emergiram na pesquisa de campo: as narrativas teraputicas e as narrativas autobiogrcas. A dimenso subjetiva e pessoal, marcante nas narrativas contadaspeloslhosdeAquriosobreseusitinerriosespirituais,encontrano uxo do conjunto das narrativas outra dimenso, aquela que fala da experincia e de seus sentidos sociais.Palavras-chave: antropologia, narrativa, religio.Abstract: In this article I discuss an anthropological approach of narrative as a form of interpretation of collective and personal experience and as a vehicle of sense. The discussion has as backdrop a study about new religious and therapeutic cultures in Brazil, where we approach the person, her experience and meanings of these experi-ences. The reection is based in two forms of narrative that has arisen from the eld-work: therapeutic and autobiographical narratives. The personal dimension, central in narratives related by Aquarius children about their spiritual itineraries, found inthemiddleofthenarratives,anotherdimension:thatonewhospeaksaboutthe experience and their social meanings.Keywords: anthropology, narrative, religion.*Este texto uma verso modicada do Cap. II de minha Tese de Doutorado, Les enfants du Verseau au pays des terreiros. Les cultures thrapeutiques et spiriutelles alternatives au Sud du Brsil. Paris, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1996.70Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999Snia Weidner MalufEm um de seus lmes, o cineasta alemo Wim Wenders discute a idia de que todas as histrias vividas poderiam ser resumidas em trs ou quatro hist-rias. Toda a obra de Wim Wenders pode ser resumida em uma nica inteno de fundo: resgatar a importncia da narrativa, do narrar, do contar histrias nica forma de falar da experincia humana, partilhar essa experincia e encontrar nela sentido.De alguma forma, essas duas dimenses esto presentes nos dramas e dilemas vividos pela antropologia contempornea. A primeira delas fala da diversidade e da universalidade da cultura: contar muitas, innitas histrias, ou buscar em toda essa variedade a histria, aquela que sintetizaria a experi-ncia humana, no singular. A outra dimenso trata de algo que est no fundo de todas essas histrias e experincias descritas e recontadas pela antropo-logia: a busca de sentido, ou seja a necessidade de ir alm da literalidade. Para recolher todas essas histrias, ouvi-las, fazer sua leitura, o antroplogo acaba, em muitos momentos de seu trabalho, fazendo como os anjos de Wim Wenders,1 que se debruam sobre os humanos, sobre seus ombros, tentando escutar seus dilogos interiores, suas queixas, seu sofrimento, suas histrias. Momento central desse encontro com o outro, onde se busca, alm de olhar, ver; alm de ouvir, escutar; alm dos fatos, sentido.Pesquisando a emergncia de uma nova cultura teraputica e espiritual no Brasil durante os anos 90, percebi, como outros autores, a diversidade dos recursos, tcnicas, liaes religiosas e espirituais por onde circulam as pes-soas. Este um fenmeno que atinge diferentes classes sociais, mas me ative a uma rede de locais e de contatos entre indivduos de classe mdia urbana. A pesquisa de campo foi realizada centralmente em Porto Alegre, mas algumas incurses em outros locais, como Florianpolis e So Paulo, no Brasil, e Paris, na Frana, foram realizadas, me permitindo uma comparao baseada tambm em algumas observaes feitas por mim e no apenas em estudos de outros autores.Essa nova cultura se apresenta como um campo de interseco entre di-ferentes formas de espiritualidade e vivncia religiosa, prticas teraputicas heterodoxas (ou alternativas, para usar uma categoria mica) e a vivncia de experincias eclticas por indivduos de classes mdias urbanas. As diferen-tes terapias, espaos de cura e de crescimento espiritual freqentados abrem, 1 Cf. o lme Asas do Desejo, Wim Wenders, 1987.71Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999Antropologia, narrativas e a busca de sentidopara cada indivduo, possibilidades de escolha um repertrio de vivncias, que cada um percorrer segundo suas escolhas e itinerrios singulares. Cada percurso individual por essas experincias confunde-se com a histria de vida, modicando-a e dando-lhe novos sentidos. Se, por um lado, de cada doutrina religiosa ou espiritual ou de cada uma das tcnicas teraputicas utilizadas, seria possvel perceber uma cosmologia e uma noo denida de pessoa uma imagem acabada, um retrato ideal, provido de qualidades fsicas e morais absolutas ou seja, uma noo substancialista ou essencialista da pessoa e da cosmologia, por outro, essa noo pouco tem a ver com os sujeitos que circulam pelas redes teraputicas e espirituais. o sujeito portador de uma ex-perincia mpar e singular que pode reunir experincias e doutrinas religiosas e espirituais to dspares e lhes dar um sentido. Perguntar quem esse sujeito remete desde j a uma escolha terica e metodolgica. Com efeito, dicil-mente atravs da descrio da tcnica de cura em si ou da doutrina religiosa enquanto tal ser possvel chegar aos sentidos da experincia. preciso levar em conta a experincia singular (ligada a uma dimenso coletiva e social) e o signicado dado a essa experincia por sujeitos singulares.Parafraseando M. Rosaldo (1980), eu diria que podemos compreender melhor a participao em um ritual ou em uma consulta com um terapeuta alternativo atravs da linguagem emocional empregada pelo indivduo para contar sua experincia do que atravs da explicao da organizao e da estru-tura do ritual ou da tcnica teraputica em si.A pesquisa de campo, de uma certa maneira, j havia traado uma par-te desse percurso metodolgico. Eu muito escutei: narrativas de histrias de vida, de itinerrios pessoais, de experincias teraputicas, de consultas, de rituais. Nas situaes em que pude observar ou participar diretamente, foi ain-da a dimenso narrativa ou discursiva que predominou. Diante do terapeuta, o paciente conta sua histria, expes seus sintomas, formula suas queixas. O terapeuta coloca questes, interpreta. Em situaes onde predomina o trabalho corporal, o corpo lido como um texto que conta a histria pessoal. Tambm nos rituais coletivos uma dimenso narrativa se faz presente: as msicas can-tadas (por exemplo os hinrios do Santo Daime), a voz do mestre ou do ini-ciado, as preces, as instrues daquele que dirige as sesses de meditao, etc.Esses diferentes tipos de narrativa e de situao narrativa foram toma-dos como maneiras, caminhos, veculos da experincia e do sentido mesmo que se trate de um sentido precrio, ou porque temporrio ou porque nunca 72Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999Snia Weidner Malufinteiramente ao alcance da compreenso. A possibilidade de interpretao innita.Por outro lado, nem a experincia nem o sentido (ou os sentidos) so redutveis narrativa, ao discurso, ou ao texto em seu signicado mais largo.Neste artigo, vou discutir basicamente duas abordagens da narrativa ou de situao narrativa que a pesquisa de campo me proporcionou.As narrativas teraputicasA idia de narrativa teraputica que emergiu do campo pesquisado uti-lizada em seu sentido mais amplo, recobrindo todo o uxo narrativo ligado experincia teraputica e espiritual. Sentido e possibilidades de enunciao so igualmente variados.Os autores que primeiro trabalharam a questo da narrativa teraputica situam as narrativas ou o discurso teraputico, na sua acepo mais ampla, em relao a situaes particulares. Labov (1977) analisou a conversao te-raputica localizando-a sobretudo no quadro da sesso de terapia. A partir do objeto emprico que consistia na gravao de quinze minutos de uma sesso, escolhidos de um registro maior, ele considerou que isso bastaria para uma anlise aprofundada da interao entre o terapeuta e seu paciente e para for-malizar as estruturas que governam o uso da linguagem e da produo de formas lingsticas.2 Outros estudos de discurso e da conversao teraputica utilizaram esse procedimento, que Labov denomina de microanlise, como The ve rst minutes, que ele considera uma anlise detalhada e meticulosa da conduta verbal registrada.3ArthurKleinman(1988),quedemonstrauminteressemaisclnicoe antropolgico que lingstico, analisou diversos casos do que ele denomina narrativas de doena, enfocando a doena e seu signicado (o modo como ela vivida pelo indivduo). Utilizando sua prpria experincia clnica (de psiquiatra), Kleinman buscou colocar em evidncia a polissemia, a multivoca-lidade da doena, sobretudo a doena crnica e a condio do doente crnico.Se esses dois autores focalizaram sua anlise do discurso teraputico e das narrativas de doena sobre a situao clssica da sesso teraputica,4 2 Cf. Labov (1977, p. 6).3 Cf. Labov (1977, p. 6).4 Apesar de Kleinman (1988, p. 49) considerar tambm como illness narratives narrativas recolhidas em outros contextos: The illness narrative is a story the patient tells, and signicant others retell, to give 73Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999Antropologia, narrativas e a busca de sentidoKleinman, no entanto, ao contrrio de Labov, alargou seu universo de an-lise a um nmero mais signicativo de pacientes e ao processo teraputico como um todo (o que inclui o conjunto das sesses realizadas por um mesmo paciente). Ele reconhece que seus pacientes se identicam mais com o papel de doente (ligado a situaes relacionadas sua famlia, aos cuidados, ao tra-tamento, ao regime alimentar, etc.) do que com o papel de paciente (restrito situao clnica). No entanto, nas narrativas que eles contam durante as sesses teraputicas que ele prefere buscar o signicado da doena.Outros autores, trabalhando no campo das narrativas sobre doena, do signicado da doena, da polissemia da experincia e da doena como proces-so, tm dado uma grande contribuio ao campo da antropologia da sade e da narrativa.5 Para vrios desses autores, as narrativas das experincias de doena so centrais para uma compreenso dos modelos interpretativos dos grupos pesquisados, de suas explicaes sobre a doena e sobre a histria vivida pelo narrador ou pelos atores sociais implicados. Uma outra perspectiva importante adotada por esses estudos a da idia da negociao do sentido da doena (ou da experincia num sentido mais amplo), o que traz implicaes para a possi-bilidade de negociao das prprias aes teraputicas e do processo de cura.No caso das experincias teraputicas e espirituais que pesquisei, o foco das narrativas contadas foi colocado no sobre a vivncia da doena mas sobre a vivncia teraputica. At porque as pessoas com quem conversei utilizam muito pouco o conceito de doena ou outras noes que pudessem remeter idia de doena, preferindo noes menos duras, como crise, mal-estar, sofrimento para descrever aquilo que as levou terapia, experincia reli-giosa ou espiritual. Essas noes deniriam um estado subjetivo e no a uma sndrome especca e denida, como seria o caso da noo de doena. O sofri-mento descrito de modo vago e indenido, apesar de ser bastante detalhado no que se refere a determinadas experincias do sujeito em sua vida cotidiana. A dor ou o sofrimento representam, para os sujeitos entrevistados, a condio de qualquer ser humano que ainda no iniciou o caminho da busca espiritual.Notemos ainda que a experincia clnica6 apenas uma das formas da vivncia teraputica nesse grupo. Esta ltima no se limita s sesses e aos coherence to the distinctive events and long-term course of suffering. (A narrativa de doena uma histria que o paciente conta e que muitos outros recontam, para dar uma coerncia a diferentes aconte-cimentos e longa durao do sofrimento).5 Ver, entre outros, Good (1994) e Langdon (1996, 1997).6 Ou seja, a experincia da situao teraputica em si.74Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999Snia Weidner Maluftrabalhos teraputicos, da mesma maneira que a experincia religiosa no se circunscreve ao ritual. Essa vivncia diz respeito a um estado de esprito e a uma cultura partilhada, que interferem no cotidiano, no trabalho, nas relaes familiares e sociais, assim como nas narrativas de vida individuais na ma-neira em que cada um conta sua histria pessoal e se representa nessa histria.7Alm disso, no quadro deste estudo, o lugar da antroploga exterior clnica, ao contrrio daquele onde se situa, por exemplo, Kleinman, que construiu suas anlises a partir de sua experincia anterior como terapeuta. Apesar de ter observado e participado de sesses teraputicas e rituais, minha experincia etnogrca no se limitou a esses espaos (o que me permitiu constatar que a vivncia teraputica e espiritual se estendia alm da clnica e alm do templo).Da mesma forma, as narrativas contadas no se reduzem ao discurso te-raputico restrito ao espao da clnica ou ao ritual. As narrativas e os discursos teraputicos so expressos em todo lugar,8 dentro e fora desses espaos. possvel distinguir trs tipos de situao onde esta enunciao aconte-ce. A primeira a prpria situao clnica ou ritual. O aspecto discursivo ou narrativo compreende aqui um largo espectro de enunciaes possveis, que vo dos diversos tipos de narrativa verbal do paciente (suas queixas, sua histria dos acontecimentos vividos) s diversas formas de leitura do terapeu-ta: a leitura do corpo, tomado como texto (leitura corporal), a leitura das cartas de tarot, do mapa astrolgico, etc. O discurso do terapeuta pode tambm adquirir diferentes formas: descrio de um certo perl do paciente, formula-o de um diagnstico, interpretao dos sintomas e dos elementos de anlise que emergiram durante a consulta e as prescries.A segunda situao de enunciao diz respeito aos espaos coletivos, onde os indivduos so levados a falar de si. As narrativas pessoais que acon-tecem nesses espaos so um momento importante de denio do ethos do grupo. Falar de si, de suas experincias pessoais singulares e ntimas em uma esfera coletiva constitui, com efeito, um aspecto essencial da armao de si e 7 Sobretudo porque nem sempre o paciente que traz as narrativas de doena e de cura mais signicativas. Nas camadas populares (rurais ou urbanas), por exemplo, as narrativas teraputicas podem se mostrar um momento importante de transmisso oral da cultura e da sociabilidade feminina (conforme constatei em estudo anterior: Maluf, 1993). possvel que uma das dimenses de um folclore feminino (Fonseca, 1994) passe pelas narrativas que as mulheres fazem entre elas sobre as doenas na famlia.8 Maines (1993, p. 20) se refere ubiqidade do contar, que tem lugar, segundo ele, em todas as ativi-dades humanas.75Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999Antropologia, narrativas e a busca de sentidoda demarcao simblica de uma identidade individual e coletiva. Nesse mo-mento, diferentes discursos e signicados so expressos, sendo o discurso da clnica ou reproduzido e conrmado, mostrando a adeso ao discurso do espe-cialista, ou desautorizado e substitudo por outras interpretaes, mostrando o carter precrio e provisrio da vivncia no interior da instituio (seja ela te-raputica ou religiosa) diante de outras experincias coletivas ou individuais.A terceira situao narrativa aquela que permite o encontro etnogrco, a saber: as narrativas conadas antroploga, que podem acontecer sob a for-ma de uma narrativa de vida ou autobiograa, ou da descrio das experin-cias teraputico-religiosas (que no deixam de ter um carter autobiogrco), contadas por pacientes e por terapeutas (tanto em entrevistas formais, como em conversas gratuitas com os sujeitos da pesquisa).Na realidade, as fronteiras entre essas trs situaes no so to denidas quanto na classicao apresentada. Esta tem aqui apenas um sentido heurs-tico: tentar compreender o carter extensivo da experincia. Poderamos ainda falar de uma quarta situao narrativa, que se refere construo da escrita antropolgica, aquela que descreve e busca interpretaes para as narrativas e para os sistemas simblicos de onde ela emerge e que nela se inscrevem.9 No entanto, minha inteno aqui no de fazer uma antropologia ou uma socio-logia10 da narrativa em seu sentido mais amplo.Alm disso, o interesse antropolgico que despertam essas narrativas no se circunscreve aqui identicao da estrutura do discurso ou das formas de comunicao (e de interao) entre os interlocutores. O que me interessa , de um lado, pensar a variedade e a riqueza observadas como parte de um processo ao mesmo tempo subjetivo e social e, de outro, o exame da situao de enunciao ou de performance e da prpria narrativa em sua totalidade. O objetivo buscar os sentidos, os signicados da narrativa e da situao narra-tiva (interpretar no somente o que foi dito, mas o que foi dito nesta situao precisa), buscando inseri-los no contexto mais amplo de itinerrios pessoais e coletivos.No quadro do projeto de interpretao antropolgica da cultura terapu-tica e neo-religiosa das classes mdias urbanas brasileiras, o prprio objeto 9 Essa questo tem sido largamente discutido nestes ltimos dez anos. Ver particularmente os estudos de antroplogos estadunidenses, como Geertz (1989); Clifford e Marcus (1991), entre outros.10 s recentemente que essa preocupao alcanou a sociologia. Ver sobre a questo Maines (1993).76Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999Snia Weidner Malufque, no nal das contas, inspira os instrumentos da interpretao. Ao mesmo tempo em que se constituem em retricas da experincia, as narrativas apare-cem aqui como um instrumento de aproximao vis--vis da pessoa que vive essa experincia e partilha essa cultura, e como um modo de compreend-las.11Autobiografia e narrativa de vidaSo, sobretudo, as narrativas de vida que trazem mais fortemente essa dimenso de desvendamento ou de revelao da pessoa, dando um sentido a sua experincia.No caso desta pesquisa, as entrevistas e as descries das vivncias ritu-ais e teraputicas encaminhavam sempre a histrias de vida, porque a expe-rincia contada se insere sempre em uma durao e a modica. O sentido de uma experincia s pode existir na durao, na sua incorporao em um itinerrio pessoal.12As autobiograas que relatam trajetrias teraputico-espirituais se ar-ticulam em torno de uma mudana pessoal. Starobinski (1970), discutindo a questo da interpretao e da narrativa autobiogrca, percebeu que, para existir um motivo suciente para se fazer uma autobiograa, seria preciso passar por uma transformao radical: converso, incio de uma nova vida, irrupo na graa.13 Essa necessidade de contar fundamentalmente um ato interpretativo, onde o indivduo reete sobre sua prpria histria e lhe d um sentido.14A distncia necessria para essa interpretao no , assim, apenas tem-poral, mas tambm identitria. Conforme Starobinski (1970, p. 92):11 Maines (1993) se refere pessoa como organismo autonarrativo e auto-reexivo que se transforma. Essas transformaes podem ser conceitualizadas em termos de narrativas a possibilidade de adquirir uma biograa e, desta maneira, contar sua histria de vida. Pode-se objetar que Maines se refere a uma noo de pessoa aquela do indivduo moderno, capaz de fazer esta auto-reexo (ver Mauss, 1995). Por outro lado, alguns autores consideram que essa capacidade de contar sua prpria biograa remonta a uma poca antiga. Ver, por exemplo, Momigliano (1985), que analisou a importncia da biograa para os historiadores gregos clssicos.12 preciso tambm lembrar que no existe narrativa de vida completa. Sobre isso, ver Bertaux, (1979, p. 210).13 Cf. Starobinski (1970, p. 91).14 Ou, conforme Berteaux (1979, p. 210) [] le sujet ne rcite pas as vie, il rchit sur elle tout en la racontant ([] o sujeito no narra sua vida, ele reete sobre ele ao mesmo tempo em que a conta).77Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999Antropologia, narrativas e a busca de sentido porque o eu passado diferente do eu atual que esse ltimo pode verdadeira-mente se armar em todas as suas prerrogativas. Ele no contar somente o que lhe aconteceu em um outro tempo, mas sobretudo como, de outro que ele era, ele tornou-se ele mesmo.15 esse trabalho de transformao que reunir todas as experincias e prticas narradas, que lhes dar um sentido e colocar o sujeito que conta em uma posio diferente do sujeito que o objeto de sua narrativa. Aquele que narra tambm o resultado dessa transformao, o desfecho de sua histria, ou pelo menos o desfecho temporrio. Em todas as narrativas de vida que tra-am um itinerrio teraputico e espiritual, essa transformao se faz presente. Ainda mais, a prpria capacidade de relatar essa histria pessoal torna-se tam-bm um signo da transformao ocorrida. Essa capacidade de auto-reexo no seria, alis, um dos objetivos do trabalho teraputico?A leitura e a reexo antropolgica que tomam essa narrativa como ob-jeto, tornam-se, assim, a interpretao de uma interpretao.16 A diferena que, se a interpretao contida na narrativa de vida visa a histria individual, o objetivo da interpretao antropolgica alcanar os contedos e os sentidos sociais da experincia.Na leitura antropolgica, o olhar deve focar duas direes complemen-tares. Inicialmente, preciso pensar a narrativa como produto de uma multi-plicidade de interferncias, das quais algumas aparecem no prprio contexto de sua enunciao. Isso nos remete noo de multivocalidade e, portanto, a uma leitura que saiba escutar as mltiplas vozes que se exprimem no interior da narrativa. Em outros termos, conforme escreveu Boltanski (1982, p. 23), preciso ter uma percepo sincrtica do que dito.Mas isso no deve comprometer a outra direo sobre a qual a reexo deve se debruar. Existe, em toda narrativa de vida, uma problemtica central, um o que ajuda a tecer o itinerrio narrado. Encontrar esse o, discernir 15 Cest parce que le moi rvolu est diffrent du je actuel, que ce dernier peut vraiment sfrmer dans tou-tes ses prrrogatives. Il ne racontera pas seulement ce qui lui est advenu en un autre temps, mais surtout comment, dutre qul tait, il est devenu lui-mme.16 Evoquemos, ainda, Starobinski (1970, p. 160-161), que analisa assim seu prprio trabalho de interpreta-o de um texto de Rousseau: [] le texte qui ma paru apporter le scnario exemplaire de 1interpre-tation na pu devenir si parlant que parce que je lai interprt en recourant aux thories e aux concepts mme dont je lui attribui la premonitions ([] o texto que me pareceu trazer o roteiro exemplar da interpretao s tornou-se assim to falante porque eu o interpretei recorrendo s prprias teorias e aos conceitos os quais eu lhe atribuo a premonio).78Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999Snia Weidner Malufessa problemtica tambm um dos propsitos do empreendimento antropo-lgico. Em outros termos, a interpretao antropolgica deve saber revelar a quintessncia17 da experincia e da auto-reexo que constituem a narrao.Mashaindaoriscodeque,nessaleitura,intervenhaaquiloque Starobinski designou como uma conseqncia da entropia do vocabulrio das cincias humanas: o processo atravs do qual a cienticidade inicial se degrada em faro, em um modo confuso da sensibilidade18 que coloca em risco o mtodo, alm do que ele pode trazer percepo. De qualquer ma-neira, o momento seguinte dever consistir em um esforo de sistematizao do que foi percebido em uma linguagem capaz de dar conta dos signicados sociais da experincia.A situao narrativaAs condies de enunciao da maior parte das narrativas foram aquelas de uma situao explcita de pesquisa. Na maior parte das conversas informais e das entrevistas realizadas, das consultas, dos cursos e dos rituais observados, eu coloquei, se assim posso dizer, as cartas na mesa.19 Isso quer dizer que eu tentei sempre deixar aparecer explicitamente minha posio de pesquisadora. Sem, no entanto, ter a necessidade de anunciar minha identidade a cada vez que eu ia observar um ritual ou quando diante de um informante em poten-cial. Muitas vezes eu passei desapercebida, sobretudo nos espaos pblicos ou coletivos, como restaurantes naturais, livrarias, lojas de artigos esotricos, e tambm em alguns rituais e trabalhos coletivos, como as ocinas ou as tera-pias em grupo.Foi, sobretudo, nas conversas mais aprofundadas com meus informantes que eu expus claramente o objetivo de meu trabalho. Algumas vezes o des-conforto inicial devido a um olhar por demais investigador ou a uma escuta muito atenta de minha parte se agravava pela presena do gravador colocado entre eu e meu interlocutor.20 Mas, no nal das contas, esse desconforto se 17 Cf. Berteaux (1979, p. 220).18 Cf. Starobinski (1970, p. 159).19 Expresso de Berteaux (1979, p. 207).20 Apesar dos inconvenientes da utilizao do gravador, esses registros foram preciosos para o trabalho posterior de leitura e de interpretao dessas narrativas. Mas as anotaes feitas em meu dirio de campo foram igualmente preciosas, sobretudo no que diz respeito observao dos rituais ou dos trabalhos teraputicos e pelas numerosas conversas que no foram gravadas.79Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999Antropologia, narrativas e a busca de sentidorevelou apenas mais uma questo a mais a ser resolvida nessa frico e nesse dilogo interculturais.Em muitos momentos, minha presena explcita como antroploga faci-litou o acesso a certas informaes e a situaes de enunciao de narrativas que no teriam aparecido de outro modo.Os entrevistados ou interlocutores se mostraram sempre disponveis e desejosos de falar, de contar suas histrias e de descrever suas experincias, convidando-me para participar dos rituais e dos trabalhos coletivos, me pro-pondo consultas, me colocando em contato com outras pessoas da rede. Eu me perguntei bastante sobre as razes dessa disponibilidade. Alguns deles a justicavam pelo esclarecimento positivo que, de alguma forma, esse tipo de pesquisa traria, por mais crtica que fosse, contribuindo para que um nmero maior de pessoas pudesse conhecer a realidade das terapias alternativas e das novas espiritualidades.Alm disso, o fato de terem sido escolhidos como tema de estudo signi-cava para eles uma valorizao de seu trabalho.21 Mas mostra tambm que eles valorizam o discurso acadmico e universitrio: nesse sentido, tornar-se objeto desse discurso os valoriza. A imagem em geral positiva dada antro-pologia por aqueles que transitam no universo estudado se mostrou um fator determinante para o estabelecimento de uma relao de cumplicidade entre ns. Diversos dos meus informantes falavam da antropologia com uma certa familiaridade, citando livros e autores.22 A antropologia , ainda, identicada, por uma grande parte deles, como a disciplina que reestabeleceu o verdadei-ro carter da magia e do esoterismo em geral.23No entanto, no so essas as nicas motivaes que animam o seu discur-so para a antroploga. A partir do momento em que se estabelece um dilogo, 21 Claudia Fonseca (1992) faz uma observao pertinente propsito da pesquisa de campo que ela fez em uma favela de Porto Alegre, em comparao com uma cit de transit (conjunto residencial temporrio para subproletrios, p. 43) que ela havia pesquisado em Paris. Ela explica que enquanto pesquisadora e estrangeira no bairro, ela foi sempre vista, na favela brasileira, como algum que poderia ajudar as pessoas (p. 51). interessante notar que, em uma pesquisa sobre classes mdias, uma relao semelhante possa se instaurar entre pesquisadora e pesquisados.22 O que uma indicao do nvel de formao escolar e cultural desse grupo.23 Entre os antroplogos citados por eles, guram o historiador Cario Ginzburg e a antroploga e egipt-loga Margareth Murray esta ltima vista como aquela que revelou, pela primeira vez, o verdadeiro sentido dos rituais da feitiaria europia da Idade Mdia. Murray desenvolveu a teoria de que a feitiaria europia, perseguida pela Inquisio, era a religio pag europia, estruturada em torno do culto deusa e ao divino rei.80Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999Snia Weidner Malufoutros fatores intervm. De um lado, nessa relao singular entre duas pesso-as, o sentimento de empatia criado pode levar o narrador a contar sua histria com o nico objetivo de ser escutado.24 De outra parte, preciso sublinhar a inuncia do contexto cultural de onde emerge esse grupo social, cujo ethos encoraja o indivduo a falar de si, a expressar ao outro sua intimidade e suas vivncias pessoais. As narrativas ouvidas pela antroploga se inscrevem em um quadro social que valoriza a expresso pblica, ou coletiva, das experi-ncias ntimas e privadas dos sujeitos.25 Pode-se dizer que existe, no interior dos segmentos sociais pesquisados, uma postura autobiogrca previamente interiorizada.26Narrativas pessoais, itinerrios singulares e sentido partilhadoA dimenso subjetiva e pessoal, marcante nas narrativas contadas pe-los lhos de Aqurio sobre seus itinerrios espirituais, vai encontrando, no uxo dessas narrativas ouvidas pela antroploga, outra dimenso, aquela que fala da experincia e de seus sentidos sociais. Para compreender essas novas formas do fenmeno religioso e teraputico no Brasil, foram escolhidos como eixo da interpretao os itinerrios pessoais e as narrativas sobre esses itine-rrios e essas experincias tomando essas narrativas como sendo tambm elas prprias formas de interpretao do vivido. Foi a singularidade de cada percurso individual e sua inscrio em um sentido social da experincia que permitiu uma compreenso do fenmeno que no teria sido possvel a uma abordagem restrita s instituies e s doutrinas religiosas ou enumerao de doenas e de tcnicas de cura.O drama-dilema da antropologia a tenso permanente e irresolvida en-tre o singular e o universal, entre as muitas histrias e a nossa histria comum foi aqui tomado em sua positividade. Como diria Wim Wenders, h algo em comum nessa necessidade de recuperar a capacidade humana de narrar hist-rias: a busca de sentido, mesmo que seja um sentido precrio e temporrio, a ser modicado pela experincia individual e coletiva.24 O antroplogo, graas a seu dom de escutar, faz parte, de alguma forma, daquilo que Walter Benjamin chamou de comunidade de ouvintes. Cf. Benjamin (1985, p. 205).25 Sobre essa questo, ver Figueira (1985, 1988).26 Lon se prend dj comme objet, on se regarde distance (Berteaux, 1979, p. 216). (A pessoa se toma como objeto, se olha distncia).81Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999Antropologia, narrativas e a busca de sentidoRefernciasBENJ AMIN, W. O narrador: consideraes sobre a obra de Nicolai Lescov. In: BENJ AMIN, W. 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