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2 a Edição

Nas Cercanias Da Memoria

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Page 1: Nas Cercanias Da Memoria

2a Edição

Page 2: Nas Cercanias Da Memoria

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

José Carlos Carles de SouzaReitor

Rosani SgariVice-Reitora de Graduação

Leonardo José Gil Barcellos Vice-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação

Bernadete Maria DalmolinVice-Reitora de Extensão e Assuntos Comunitários

Agenor Dias de Meira JuniorVice-Reitor Administrativo

UPF Editora

Karen Beltrame Becker FritzEditora

CONSELHO EDITORIAL

Alvaro Della Bona Carme Regina Schons Cleci Teresinha Werner da Rosa Denize Grzybovski Elci Lotar Dickel Giovani Corralo João Carlos Tedesco Jurema Schons Leonardo José Gil Barcellos Luciane Maria Colla Paulo Roberto Reichert Rosimar Serena Siqueira Esquinsani Telisa Furlanetto Graeff

CORPO FUNCIONAL

Cinara Sabadin DagnezeRevisora-chefe

Daniela CardosoRevisora de textos

Graziela Thais Baggio PivettaRevisora de textos

Sirlete Regina da Silva Design gráfico

Rubia Bedin Rizzi Diagramadora

Carlos Gabriel Scheleder Auxiliar administrativo

Page 3: Nas Cercanias Da Memoria

NEMEC - Núcleo de Estudos sobre Memória e Cultura

2a Edição2014

Page 4: Nas Cercanias Da Memoria

Editora UPF afiliada à

Associação Brasileira das Editoras Universitárias

Copyright do autor

Cinara Sabadin Dagneze Daniela CardosoGraziela Thais Baggio Pivetta Revisão de textos e revisão de emendasSirlete Regina da SilvaProjeto gráfico e produção da capaRubia Bedin RizziDiagramação

Este livro, no todo ou em parte, conforme determinação legal, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa e por escrito do(s) autor(es). A exatidão das informações e dos conceitos e opiniões emitidas, as imagens, as tabelas, os quadros e as figuras são de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es).

UPF EDITORACampus I, BR 285 - Km 292,7 - Bairro São JoséFone: (54) 3316-8374CEP 99052-900 - Passo Fundo - RS - BrasilHome-page: www.upf.br/editoraE-mail: [email protected]

Page 5: Nas Cercanias Da Memoria

Agradecimentos

– À Universidade degli Studi di Verona, pela infraestrutura colocada gentilmente à disposição, em particular ao

Departamento de Disciplinas Históricas, Artísticas e Geográficas.

– Aos professores Dr. Emilio Franzina e Federica Betagna pelo acompanhamento, disponibilidade e zelo acadêmico

– gratidão e reconhecimento.

– À Universidade de Passo Fundo, em especial ao Programa de Mestrado em História, por ter me propiciado o

estágio de pós-doutoramento.

Page 6: Nas Cercanias Da Memoria

Sumário

Apresentação ........................................................................................... 10Considerações iniciais ............................................................................ 20

Nossas intenções ............................................................................................ 20

PriMEirA PArtE As cercanias da memória: conceitos, noções e campos afins / 27

CAPÍtULO 1Uma guinada historiográfica? ............................................................... 28

Passado e presente intencionalizados ......................................................... 32CAPÍtULO 2

Memória e lembrança ............................................................................. 37Memória como fragmento histórico-social ................................................. 40

CAPÍtULO 3A memória no cotidiano ......................................................................... 44

CAPÍtULO 4A dimensão fenomenológica da memória ........................................... 50

Memória e experiência de percepção .......................................................... 57Memória e vida cotidiana na perspectiva da fenomenologia .................. 60

CAPÍtULO 5Memória, modernidade e mudança social .......................................... 62

CAPÍtULO 6Memória e pós-modernidade ................................................................ 71

CApítUlo 7Memória e patrimônio ............................................................................ 81

Monumento/documento ............................................................................... 83Sociedade, tradição e suas simbologias ...................................................... 91Mobiliário social ............................................................................................. 95

Page 7: Nas Cercanias Da Memoria

7Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

CAPÍtULO 8tempo, espaço e experiência da memória ......................................... 101

Memória e identidade ................................................................................. 103O tempo na memória ................................................................................... 105Memória e experiência ................................................................................ 109Memória, tempo e poder ............................................................................. 118

CAPÍtULO 9Memória e oralidade: intenções, problemas e expectativas ............ 122

Buscar a totalidade ....................................................................................... 123Sua base histórica ......................................................................................... 123Pressupostos teóricos ................................................................................... 125Os pressupostos da narração ...................................................................... 128Dimenticare per vivere intencionalidades pessoais e históricas ............... 133Lembrar e esquecer: dinâmicas dialetizadas ............................................ 135A consciência histórica, social e individual se reconstrói sob um fundo de esquecimento ........................................................................ 138Selecionar memórias .................................................................................... 140Memória e história ....................................................................................... 142Algumas precauções .................................................................................... 147O manuseio e a concepção de documento oral ........................................ 150Humanizar a história? ................................................................................. 158

SEGUNDA PArtE tempos, espaços e signos:a correlação entre memória coletiva e

individual no processo de lembrança / 162

CAPÍtULO 10A natureza social do pensar e do relembrar ...................................... 163

Premissas ....................................................................................................... 163A dimensão coletiva de memória em Halbwachs ................................... 165A linguagem como manifestação do coletivo .......................................... 168O entourage sociale e a dependência da memória individual .................. 174Contratualidade cultural e histórico-social .............................................. 178o encontro/desencontro entre memória social e coletiva ...................... 182Memória e o quadro familiar ...................................................................... 189Espaços e tempos do quadro coletivo ....................................................... 192

Page 8: Nas Cercanias Da Memoria

8 João Carlos Tedesco

CAPÍtULO 11Memória e velhice (fragmentos de empiria) ..................................... 195

A afetividade na memória ........................................................................... 198

CAPÍtULO 12Ambiguidade de memória: o laudatário, o ufanismo e os ressentimentos ....................................................................................... 201

O sentimento do vivido em temporalidades entrecruzadas .................. 205

CAPÍtULO 13A objetualidade de memória grupal................................................... 208

Memórias de quadros simbólicos .............................................................. 210A genealogia de um passado coletivo ....................................................... 211Exteriorização pública e local de memórias coletivas e individuais..... 214temporalidades contínuas .......................................................................... 216Desejo de transmissão, de experiência e de visibilidade ....................... 219Fidelidade, experiência e filiação de memória ......................................... 229

CAPÍtULO 14Filtragem de memória .......................................................................... 235

Dialética entre memória, esquecimento e silêncio .................................. 236Memória como valor de uso e o uso como valor simbólico ................... 240

tErCEirA PArtE Ressignificação de memórias / 247

CAPÍtULO 15Memória, cultura e identidade étnica ................................................ 248

O cenário empírico: fonte e base de memória de idosos ........................ 256

CAPÍtULO 16ritualização verbal e não verbal da cultura na memória ................ 275

Memória e etnia ............................................................................................ 276A centralidade da família ............................................................................ 280O mundo do trabalho .................................................................................. 282O ambiente de vida social e o espaço construído .................................... 284A força do simbólico .................................................................................... 287

Page 9: Nas Cercanias Da Memoria

9Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

Os tempos, sua fragmentação, heterogeneidade e hierarquia ............... 291O espaço e o momento do lúdico ............................................................... 293O papel da narração na vida cotidiana ..................................................... 295

CApítUlo 17 Estragos e reconstruções do tempo na memória / 299

A importância e a necessidade de transmitir ............................................ 299Marcos de referência de mudança ............................................................. 308Lembrança de afazeres, fazeres e saberes ................................................. 314Memória da migração para o urbano ........................................................ 321Memória de gênero ...................................................................................... 330

CONSiDErAçõES FiNAiSreferências ............................................................................................. 344idosos entrevistados ............................................................................. 357

Page 10: Nas Cercanias Da Memoria

Apresentação

O livro do professor João Carlos Tedesco, que ora apre-sentamos, traz em si a tessitura das redes sociais pelas quais a cultura, como um texto do passado, tem sua dimensão mais dinâmica e, ao mesmo tempo, mais complexa para o trabalho do pesquisador. A sua incursão nessa rede é apresentada por meio de uma tentativa de “cercamento monitorado” da me-mória. Noções como lembranças, esquecimentos, identidades são discutidas de forma peculiar, lastreadas em larga revisão de literatura, para demonstrar que existe um sentido quase “clandestino” na produção simbólica do passado.

A pergunta que o autor apresenta no livro diz respei-to à busca desse sentido clandestino: como é possível de ser reconstituído o sentido da memória, não da memória em si, mas, sobretudo, as atribuições e as tarefas dela no presente?

Para ir ao encontro de respostas, Tedesco organiza um mag-nífico canteiro de obras, no qual os materiais básicos são a me-mória como passado, a experiência como o fazer e o refazer e o significado como sentido. Para o autor, esses materiais básicos são apenas um primeiro passo heurístico e estruturante, forman-do, assim, os sistemas de referência dos conteúdos passíveis de serem reconstituídos. O segundo passo é envolver tais noções com categorias como espaço, tempo e movimento, que, por sua vez, lhes emprestam a dimensão fenomenológica e a possibilidade da mudança social no horizonte das expectativas do tempo presente, cujo pano de fundo é uma revisão dos pressupostos da obra de Halbwachs.

Assim, entre as formas mais sublimes do conhecimento está aquela que possibilita conectar passado-presente por meio de vestígios. Nesse processo, as ciências humanas podem reve-

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11Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

lar a condição humana naquilo que ela tem de mais fascinante e de mais temeroso.1 É entrar – com o perdão do vício – para dentro do “pianíssimo” mais íntimo do cotidiano das pessoas e lá encontrar o sentido e o significado da ação, como diria Max Weber.

Nessa perspectiva, a noção de experiência assume condi-ção especial nos estudos históricos. Não basta apenas a cons-ciência daquilo que esteja mudando e que fora condenado às trevas pela razão histórica moderna; de que estamos vivendo num tempo de experiências multiculturais, multitemporais e de interesses pluriorientados em termos de conteúdos, os quais nos podem deixar perplexos frente aos nossos desgasta-dos modelos explicativos.

Essa tentativa de caracterização da cultura historiográ-fica é uma marca cultural contemporânea, identificada aqui como modernidade tardia. É certo que tais movimentos tem ampla receptividade nas disciplinas sociais, e nem poderia ser diferente. Entretanto, já entendemos que o conhecimento do passado como meio de redenção do homem no futuro pro-duziu monstros terríveis, e o Século XX é exemplar, bem como silenciador da utopia. Talvez o passado só exista mesmo como experiência, como imaginação e como afetividade presentista, cujas leituras são aquelas que nos remetem para o seu funda-mento metodológico do como é possível ser reconstituído tal sentido clandestino.

Dessa forma, entendemos que esse é o momento ou tem-po de experiências que podem possibilitar a problematização do presente pelo passado no sentido de reconstituirmos as ideias de futuro no passado e, sobretudo, de compreendê-las como os argumentos para uma cultura da mudança. Nessa orientação, a cultura como texto representativo das experiên-

1 A busca desse sentido é o propósito central da obra de DOSSE, François. O império do sentido: a humanização das ciências humanas. Bauru: Edusc, 2003.

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12 João Carlos Tedesco

cias humanas somente se deixa explicar e compreender a par-tir de três funções específicas. Vejamos:

a) cultura como o processo de generalizações de motivos, de ações e de representações de perspectivas de futuro no sentido de orientações dos objetivos individuais e coletivos para o futuro agir;

b) cultura é a soma de ações orientadas em modelos de explicação da experiência, integrando os aspectos perti-nentes à multiplicidade, à heterogeneidade da conduta de vida e às relações sociais;

c) cultura é a representação exemplar de critérios de regulamentação de experiências que, por sua vez, sedimentam e estabilizam a construção de modelos legítimos e normativos da práxis social.

Essas três possibilidades, como potencialidades da ex-periência histórica, podem agora ser diferenciadas em um número extraordinário de funções específicas da cultura pro-priamente dita, dentre as quais podemos destacar as de mo-tivação, de orientação, de satisfação, de disciplinação, de dife-renciação, de recrutamento, de estratificação, de legitimação, de integração e, finalmente, de significação.

Metodologicamente, essas funções envolvem um am-plo espectro de leituras das experiências. Pois bem, em que podemos perceber o envolvimento da experiência? Segundo a leitura de Tedesco, podemos perceber o envolvimento não apenas na materialidade da experiência, mas, sim, em estru-turas de representação, tais como a lembrança, a memória, a tradição, o simbólico, o imaginário, o psicológico, o local da cultura e, no caso da historiografia, em textos como resultado da racionalização e estetização das experiências.

De outra forma, não é desprezível que a situação atual mostre que a saturação de perspectivas seja concebida como a condição maior de produção de sentidos. De forma que os

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13Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

custos da modernização seletiva não seriam mais percebidos como obstáculos metodológicos, mas como recursos, como a própria matéria-prima para sua (re)utilização por meio dos esforços da metanarrativa, da metaficção ou, ainda, da inter-textualidade.

Portanto, o tempo de experiências presentes, percebido através da fascinação histórica e do envolvido tanto pela esté-tica como pelas funções do conhecimento histórico, é um cam-po fértil, mas também traz consigo alguns desafios, tais como: a analogia entre a reconstrução da biografia e a interpreta-ção crítica feita por esta às estruturas simbólicas; a ciência não desempenharia mais seu papel de motor do pensamento, pois essa função estaria ocupada pela política; a história com plausibilidade científica não pode ter mais a função de propor identidades, pois a historiografia é o resultado de racionali-zações metodológicas; a história, para poder dar conta des-sa busca de significações sobre experiências, precisa ampliar seus lastros de conteúdos.

Esses desafios são os pontos com os quais o autor se de-bate na segunda parte do livro, chamando atenção para a ambiguidade da memória, os filtros, os signos vinculados a questões como a velhice, a identidade étnica e a linguagem. Tais desafios orientariam as possibilidades de reconstituição do passado, primeiramente, sob a chancela do “tal como deve-ria ter sido”. Essa perspectiva traz consigo o sentido de uma leitura de significado romântico de como queríamos que fosse. Entretanto, nós já compreendemos que esse passado nunca existiu nessa forma a não ser na afetividade mais subjetiva. Portanto, resta-nos a leitura do passado, que nos remete para o sentido metodológico do como é possível ser reconstituído.

Ficam, para o(a) historiador(a) de hoje, os desafios im-postos pela economia política dos significados ante aquilo que Walter Benjamin referia sobre o conceito de história: o que

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chamamos de progresso é essa tempestade. No entanto, fica a consciência de que aquilo que denominamos de “conhecimento histórico” está situado entre o fascínio da estética e o temor de suas respectivas funções no contexto de crise da razão, quan-do não de sua ausência dentre os critérios de plausibilidade.

Essas são algumas das razões pelas quais a leitura do livro é profícua. Entretanto, torna-se necessário que tal noção tipológica de cultura precise ser construída em debate perma-nente com o seu objeto de estudos. Isso, no sentido metodoló-gico, pode excitar o problema que geralmente aparece com o uso de modelos. Dito de forma mais evidente, isso quer dizer da facilidade de cairmos na vala do reducionismo ou ficarmos presos nos picos do relativismo.

Assim, o conteúdo perspectivado no livro forma, simulta-neamente, os elementos da constituição da metodologia com a sua respectiva aplicabilidade. A utilização dessa orientação e de suas respectivas funções, em seu conjunto, está exata-mente no fato de elas conjugarem, por um lado, a ampliação do horizonte analítico do que seja seu objeto e, por outro, dis-ciplinarem as concepções interpretativas dentro dos parâme-tros de plausibilidade do conhecimento.

Então, desde já é preciso desvincular a concepção sim-plista de modelo e de que este modelo – a revisão de Hal-bwachs – poderia ser um guia pelo qual se deveria pautar e encaixar uma determinada realidade. Além disso, devemos eliminar a concepção de modelo que possa configurar-se em um modelo da realidade, tornado agora objeto de estudo. Des-cartada essa crítica inicial, a ideia de modelo a ser utiliza-da aqui é entendida como um instrumento de trabalho que, orientado teoricamente, é capaz de estabelecer significados entre dados.2

2 Conforme FONTES, Virgínia. História e modelos. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAIN-FAS, Ronaldo (Org.). Domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 355-356.

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15Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

Tomando-a dessa forma, ela possibilita uma dupla ope-ração cognitiva: por um lado, têm-se os procedimentos heurís-ticos necessários para a construção do próprio modelo através da constelação de conteúdos; por outro, mas que está rela-cionado a este, o modelo deve ter implícitos os critérios bási-cos de sua própria aplicação.3 A segunda parte do livro é um exercício, por excelência, da postura metodológica do autor. Com essa orientação, argumentamos a favor do fato de que o trabalho metodológico, com uma ou mais revisões, sempre deve apresentar esses dois aspectos vinculados para que, por meio dele(s), se consiga estabelecer as diferentes articulações de um ou de um grupo de fenômenos. E, mesmo nesse caso, a utilização de modelos ainda não é garantia para resultados eficazes.

Assim, a questão pertinente do conhecimento preci-sa ser inserida numa problemática mais ampla que lhe dê legitimidade frente a outras questões relevantes no estudo do passado. Não temos dúvidas de que a problemática deve partir de questionamentos e debates atuais, que, ao nosso ver, estão situados num cenário de polêmicas. A primeira en-gendra os elementos da constelação de fatores oriundos de debates sobre a história desde a sua constituição como dis-ciplina, mas que, no tempo presente, assume importância fundamental no mapeamento do debate pela sua dimensão cultural.4 Tais fatores podem ser apresentados com as se-guintes formulações: o que estou fazendo quando escrevo história?;5 devemos fazer tábua rasa do passado?;6 a histó-

3 Idem, p. 356.4 ‘Este debate está dimensionado por vários autores em CHAUVEAU, A.; TÉ-

TARD, Ph. (Org.). Questões para a história do presente. Bauru: Edusc, 1999.5 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 1982.6 CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábua rasa do passado? São Paulo: Ática,

1995.

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16 João Carlos Tedesco

ria tem um sentido?7 ou, ainda, com Josep Fontana, quando ele discute a história depois do fim da história.8

É bem verdade que tais perguntas são fáceis de serem formuladas em nossa época, caracterizada por um certo des-crédito da razão – instrumental –, quando não de sua ausên-cia. Mas são perguntas de difícil debate na tentativa de se vislumbrar soluções metodológicas mesmo que provisórias. Mesmo com conteúdos e posturas teóricas diferentes, todas essas formulações carregam em si uma crítica contundente, a qual toca no nervo epistemológico-metodológico das nossas disciplinas, causando alguns tremores, por um lado.

Por outro, também não basta apenas a consciência de vi-vermos numa época de profundas mudanças socioestruturais, de novas configurações nos significados do conhecimento, de experiências (multi)culturais e de pluralidade de tempos his-tóricos combinados. Esse aspecto, num primeiro momento, nos deixa perplexos ante a incapacidade de explicação de nos-sos modelos analíticos.

A época é de revigoramento do significado estético cultu-ral e de inserção hermenêutica e fenomenológica na compre-ensão de ações do passado através da nova história cultural.9 Dessa forma, está sendo rompido o exclusivismo de uma ver-dade científica sobre o passado. Aliás, na argumentação de Hans-Ulrich Wehler, caracterizando o pensamento histórico na virada do século, a nova história cultural apontaria para um déficit teórico, e essa seria uma tendência impregnada de

7 BODEI, Remo. A história tem um sentido? Bauru: Edusc, 2001.8 FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998.

p. 267s; Idem. História depois do fim da história. Bauru: Edusc, 1998.9 Em termos gerais, tais aspectos são discutidos em diversas perspectivas, as

quais carregam em si a característica propositiva. Ver SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Bauru: Edusc, 1999; CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 1999; WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Bauru: Edusc, 2000.

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17Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

abstinência política.10 Tal afirmação é dura, porém, se coloca-da em confronto com as possibilidades de diferentes leituras a partir da memória, pode ser relativizada.

Mas se, por um lado, existe uma crítica severa à nova his-tória cultural pela perda de sentido, por outro, estão surgin-do, na comunidade de pesquisadores, posturas de contraponto a esses questionamentos. Tais posturas buscam exatamente construir sentido lá onde ele foi criticado como inexistente, sur-gindo, primeiramente, perspectivas propositivas para a cons-trução de sentidos novos ante a crise da razão histórica.11

A segunda perspectiva está vinculada à própria dinâmi-ca das mudanças paradigmáticas, provocadas pela crise da razão civilizatória-iluminista e que são passíveis de serem ob-servadas nos últimos anos por meio da historiografia.12

Pelas colocações apresentadas para introduzir a leitura do livro, é possível, em tese, afirmar que estamos vivencian-do um locus de luta entre as noções de espaço e tempo, cuja compreensão precisa de uma topoanálise diferenciada.13 A ca-tegoria espaço está cada vez mais presente na textura das ex-periências atuais em detrimento da perspectiva do progresso cumulativo e do tempo linear.

10 WEHLER, Hans-Ulrich. Historisches Denken am Ende des 20. Jahrhunderts. Göttingen: Wallstein Verlag, 2001. p. 69-86.

11 São exemplos dessas posturas propositivas, em termos de busca de sentido, os trabalhos de DOSSE, François. A história à prova do tempo: da história em migalhas ao resgate do sentido. São Paulo: Ed. da Unesp, 2002; RÜSEN, Jörn. Perda de sentido e construção de sentido no pensamento histórico na virada do milênio. Revista História: Debates e Tendências, Passo Fundo, v. 2, n. 2, p. 9-22, dez. 2001.

12 Em termos gerais, essas mudanças ainda podem ser conectadas às posturas de KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1987. Na história esse debate está em CARDOSO, Ciro Flamarion. História e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

13 O termo “topoanálise” é de BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Essa análise também pode percorrer os caminhos da cultura e identidade. Ver então MATHEWS, Gordon. Cultura global e iden-tidade individual. Bauru: Edusc, 2002. Ou, ainda, pela globalização e meios de comunicação, ver MATTELART, Armand. A globalização da comunicação. Bauru: Edusc, 2000; SARTORI, Giovanni. Homo videns. Televisão e pós-pensamento. Bauru: Edusc, 2001.

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18 João Carlos Tedesco

Na afirmação de Bachelard, o teatro do passado seria o da memória, ao passo que a função do espaço é reter o tempo numa espécie de câmara de compressão. Nesse sentido, o ca-lendário temporal só poderia ser estabelecido em seu processo produtor de imagens.14 O espaço agora seria tudo, pois o tem-po não animaria mais a memória,15 o que, em outros termos, garante para a noção experiência um locus especial no debate dentro das ciências humanas numa espécie de revanche da experiência (antropológica) sobre a análise estrutural e do lo-cal da cultura sobre a explicação.16

Como resultado da delimitação do local da cultura te-mos a fascinação histórica do pertencimento, cuja forma de exposição poderia ser a identidade, a função da experiência e sua respectiva representação sob a forma de narrativa. Nessa perspectiva, a descrição densa das experiências do passado enfatiza extraordinariamente as representações discursivas, porém, agora, sem a dinâmica do tempo projetado futuro numa espécie de ciência do tempo passado.17

Essas duas perspectivas na cultura historiográfica são marcas do movimento turbinal da cultura contemporânea, identificado como Spätzeit.18

É certo que tais movimentos possuem receptividade na história como disciplina e influência no pensamento históri-co pelo presentismo, e nem poderia ser diferente. Entretan-to, nós já entendemos que o passado nunca existiu de forma

14 A produção de imagens na atualidade é objetivo do livro de KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001.

15 Idem, p. 21-29. Para uma análise diferenciada, ver JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1997.

16 Discutimos isso recentemente em DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográ-fica: memória, identidade e representação. Bauru: Edusc, 2002.

17 O termo “descrição densa” é de GEERTZ, Clifford. A interpretação das cultu-ras. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. Ver debate em KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: Edusc, 2002, p. 105-159.

18 Conforme MOSER, Walter. Spätzeit. In: MIRANDA, Wander (Org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 33-54.

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19Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

estruturada, a não ser como experiência, como imaginação e como afetividade contemporaneizada. E, nesse sentido, a lei-tura possível é aquela que remete para a fascinação histórica subjetiva do querer compreender o passado nas suas múlti-plas possibilidades peculiares e, de outro modo, remete para o sentido metodológico do como é possível de ser reconstruído.

Nessa perspectiva, entendemos que o tempo da fascina-ção sobre a memória pode possibilitar a problematização do passado pelo presente com base em dois vetores principais: primeiro, o sentido de reconstituirmos ideias de futuro no passado e, segundo, compreendê-las como estrutura narrati-va de argumentos para uma cultura da mudança.

Para finalizar, queremos enfatizar mais uma vez que João Carlos Tedesco, em seu livro, não elege respostas fáceis, mas nos ajuda a compreender a especificidade da cultura na-quilo que se denominou de “sentido clandestino”.

Astor Antônio DiehlPrimavera de 2003

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Considerações iniciaisExplorar o passado significa descobrir o que se dissimula na profundidade do ser.

J. P. Vernant

Nossas intenções

O tema memória vem cada vez mais instigando analis-tas das áreas de ciências humanas e sociais; suas abordagens são variadas e seus campos de investigação adentram para inúmeras esferas do campo social, do político, do cultural, dos imaginários e das representações. Inserida nesse cenário de análise sociocultural e histórico, a presente reflexão quer tentar dar um singelo contributo sobre alguns elementos que compõem essa preocupação toda das áreas humanas e sociais nos estudos sobre memória.

Na primeira e segunda partes, analisaremos aspectos em torno da importância, da conceituação e de alguns pressupos-tos teórico-metodológicos na análise da memória na perspecti-va socio-histórica e, em parte, antropológica. Tentaremos iden-tificar elementos e focos de análise que justificam e explicam a importância e a disseminação de estudos sobre memória na atualidade. Em ambas as partes, ainda que de uma forma muito fragmentada e sem um núcleo temático central, busca-mos trazer sempre presente aspectos empíricos de fragmen-tos de lembranças de idosos, segunda e terceira geração de imigrantes italianos, e também análises de cunho cultural presentes numa vasta literatura já produzida sobre cultura e etnia italiana no sul do Brasil.

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21Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

Faremos uma revisão de literatura sobre o campo da me-mória, dando ênfase ao horizonte dos símbolos, do papel da narração, da lembrança, da experiência, da temporalidade e dos espaços, na tentativa de compreender processos que per-mitiram a reconstituição de fragmentos de memória expres-sos por idosos que permanecem no meio rural e de alguns que migraram há mais de quarenta anos no meio urbano.19

Centraremos nossa análise em três dimensões da me-mória, ou seja, a abordagem social, a coletiva e a individual; adentraremos pela história social e cultural; pincelaremos um pouco de memória e antropologia do campesinato em uma discussão centrada no grupo familiar, no trabalho e nos vín-culos sociais e cotidianos. Apresentaremos, também, uma re-visão de literatura sobre memória oral e biográfica no sentido de mostrar sua importância para a análise das questões de memória na atualidade.

Na terceira parte, descreveremos e analisaremos alguns fragmentos de memória, fruto de pesquisa de campo que fize-mos em um estudo realizado no meio rural sobre memórias de família, memórias genealógicas e memória de vínculos co-munitários e religiosos com descendentes diretos de imigran-tes italianos num pequeno espaço da região colonial do Rio Grande do Sul. A ideia central dessa parte é tentar entender o conteúdo da memória e da cultura étnica italiana expresso em vozes e análises.

Este estudo sobre memória e história regional, sob o veio dos relatos orais de idosos, foi iniciado no ano de 1999 na re-gião do Alto Taquari, mais especificamente na chamada En-costa Superior do Nordeste do Rio Grande do Sul. Naquele momento, tínhamos a preocupação de analisar a relação entre

19 Nosso espaço de pesquisa foi a região da Encosta Superior do Nordeste do Rio Grande do Sul, mais especificamente os municípios de Veranópolis, Nova Bassano, Nova Prata, Guaporé e Serafina Corrêa.

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colonos, carreteiros e comerciantes do final do Século XIX até a década de 1950.20 Procuramos reconstituir memórias de ido-sos localizados no meio rural da referida região e correlacio-ná-las com a cultura camponesa e com os novos formatos de família que se constituíram no meio rural pós-década de 1980.

Outra parte do material foi analisada nesse momento e complementada com novas histórias de vida, depoimentos orais e análises contextuais com 18 famílias de colonos que tem idosos (todos com mais de 78 anos) em suas residências, em coabitação no meio rural, e 12 famílias de urbanas que coabitam com idosos que migraram do meio rural da região para cidade. São 12 idosos, dos quais quatro são viúvos, e 18 idosas, entre as quais há três viúvas.21 Os contatos foram fei-tos direta e informalmente a partir de um vínculo de conhe-cimento que se desenvolve há mais de quatro anos com essas famílias e com outras também da região. Por isso, não nos preocupamos com representatividade, muito menos com as-pectos de ordem formal da entrevistas. Nossos contatos foram os mais abertos e “despojados” possíveis de referenciais me-todológicos. Informações acumuladas em outras análises, re-síduos e fragmentos de memória, narrativas aleatórias, ilus-trações (fotos, objetos, visitas em porões, abertura de antigos baús) foram nos revelando aspectos da experiência de idosos, atribuindo significados e sentimentos do passado de uma for-ma bastante espontânea, pouco ou nada programada; a inten-ção era sempre deixar falar, ainda que entendêssemos que, para os idosos, o simples fato de falar já era uma conquista de nossa parte e uma bela oportunidade de torná-los agentes e

20 De parte desse material, surgiram dois livros, um deles intitulado Colonos, carreteiros e comerciantes. O Alto Taquari no final do século XIX e início do Século XX. Porto Alegre: EST, 2000; o outro, Memória e cultura. Porto Alegre: EST, 2002.

21 Ver a relação de alguns deles, os que mais estivemos em contato, no final, após a bibliografia geral.

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sujeitos de suas vivências, permitindo que pudessem se pre-sentificar pelo passado por intenções transtemporais.

Os relatos orais foram feitos diretamente, em momentos alternados e em situações também diferenciadas, individual-mente, nos espaços comunitários, com a presença da família, caminhando e olhando aquilo que os idosos “gostam de mos-trar”, com a presença coletiva de alguns deles em momentos de jogo de carta “no salão da capela”, situações em que algu-mas idosas cuidavam dos netos/as, dentre outras. Tentamos fazer uma etnografia de alguns aspectos de seu cotidiano so-ciocultural.

O objetivo dessa análise empírica era perceber um ethos, um universo cultural e estrutural em conflito/tensão, que se manifesta, basicamente, na forma oral pelos idosos22 e é sen-tido no confronto de temporalidades e espacialidades que se alteram e se alternam nos vividos correspondentes.

A ideia central do trabalho empírico fundamenta-se na tentativa de compreensão das reinvenções, das reinterpreta-ções e das permanências de modos de vida, historicizados e institucionalizados, culturalmente, pelo ritmo da vida coti-diana, presente, passada e projetiva dos idosos.

Para tanto, reconstruímos memórias de (i)migrantes na forma de fragmentos de histórias de vida e de memória pesso-al. Buscamos perceber a presença ou não de representações do ser imigrante em espaços e tempos diferenciados e a relação entre memória individual e coletiva. O que queríamos era com-preender como os idosos reinterpretam e inventam as experi-ências vividas no lugar rural e no lugar urbano, num tempo vivido entre a década de 1920 até períodos atuais, com especial

22 Quando não especificamos, diferencialmente, em termos de gênero, estamos entendendo idosos no masculino e no feminino. Obedecemos, com isso, à oralidade de muitos de nossos entrevistados, que geralmente se referiam aos “nonos” contemplando os cônjuges.

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atenção para as décadas de 1960 e 1970, período de intensa alteração nos quadros da organização da vida rural e de fluxos migratórios para regiões rurais e urbanas do sul do Brasil.

Nesse sentido, pretendemos, com a presente análise numa abordagem socio-histórica e cultural, contribuir para a compreensão dos imaginários23 e representações que se cons-tituem por meio da presença e da ausência de idosos em espa-ços diferenciados, em famílias de descendentes de imigrantes italianos na dimensão das particularidades e totalidades, dos liames das histórias particulares na problemática coletiva (étnico-cultural e espacial).

Nesse sentido, o presente estudo busca refletir sobre alguns significados simbólicos que permeiam os universos culturais, sobre a mobilidade social, sobre as permanências e as alterações nas diferentes fronteiras espaciotemporais, no caso, mais especificamente, os vínculos do camponês/idoso nos meios rural e urbano. Acreditamos, como uma das hipó-teses norteadoras de nosso trabalho, que os valores culturais, superpostos em múltiplas camadas de tempos históricos e culturais e de espaço são representações por meio das quais os idosos de segunda/terceira gerações de imigrantes perce-bem a resistência, a mudança, a reinvenção cultural e a pos-sibilidade de pluralidade identitária.

No espaço urbano, por exemplo, mesclam-se resíduos de diferentes espaços e diferentes tempos, práticas culturais apreendidas no mundo rural e outras incorporadas no urba-no. O estudo dos lugares24 encontra-se no confronto da espa-

23 Falando sobre a questão do imaginário, é bom já dizer que o entendemos como um conjunto de representações que vão além dos limites dados pela experiência e pelas associações que resultam. A realidade de cada um, de cada grupo, de cada sociedade produz, possui, convive e dinamiza imaginários, crenças, curio-sidades, sonhos, desconhecidos, desejos, repressões, utopias, imagens abstratas, fantasmas, construções míticas, sistemas de representação. O imaginário é uma espécie de “contato” que os homens estabelecem entre o visível e o invisível.

24 CERTEAU, M. A invenção do cotidiano (Artes de fazer). Petrópolis: Vozes, 1994.

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cialidade-temporalidade e da subjetividade-objetividade, da memória individual e coletiva. É por isso que, para o grande estudioso da memória Pierre Nora, os lugares “são lugares mistos, híbridos e mutantes, intimamente entrelaçados de vida e de morte, de tempo e de eternidade, numa espiral do coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado, do imóvel e do móvel”.25

Falando empiricamente de lugares, sabemos que, da dé-cada de 1960 até a de 1980, junto com o processo modernizan-te da agricultura, com o cenário visível e atrativo da urbani-zação, com a necessária alteração dos processos produtivos tradicionais, com a redefinição da ordem moral e vivencial da família, dentre outras, muitas famílias foram deslocadas para o meio urbano, ou, então, permaneciam próximas a al-gum filho, porém não mais coabitando.

Sabemos que o deslocamento não significa meramente uma alteração espacial; altera-se muita coisa e, acima de tudo, alteram-se os referenciais de memória. Na década de 1990, e com mais intensidade nos seus últimos anos, consta-ta-se uma certa alteração dessa trajetória, ou seja, há uma certa redução da intensidade do fluxo migratório para a cida-de e apresenta-se uma maior possibilidade de coabitação de idosos nas famílias.

Vários fatores estão contribuindo para essa possível pre-sença de idosos nas famílias: recursos financeiros provenien-tes da aposentadoria, possibilidade de cuidar de filhos libe-rando mulheres/esposas para atividades promotoras de remu-neração financeira, uma maior consciência de valorização do espaço e das alterações provenientes do horizonte cotidiano dos idosos. Com isso, reestruturam-se a memória e o conteúdo da lembrança no seio familiar pela presença dos idosos.

25 NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo: Educ, n. 10, 1993. p. 22.

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O cenário empírico motivou-nos a lançar mão das noções de pertencimento, enquadramento, de integração grupal e co-munitária, de família como unidade de trabalho, de convívio e de parentesco, de etnia, de ethos, de reciprocidade, de tra-dição e modernidade, de cotidiano e de temporalidades entre-cruzadas, de experiência, de ressentimentos, de imaginários sociais e culturais, de modernidade e de tradição. São esses alguns dos temas que procuraremos, em correlação com o ce-nário empírico e com o que trabalhamos nos dois livros já in-dicados, tematizar no presente estudo.

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PriMEirA PArtE

As cercanias da memória: conceitos, noções e

campos afins

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CAPÍtULO 1

Uma guinada historiográfica?

Porque não só a vida dos santos e dos mártires, mas também as histórias dos noviços, com as suas fraquezas podiam servir de ensinamento.

Foucault

Na verdade, preocupações e análises sobre memória sem-pre se fizeram presentes no campo social e das ciências huma-nas. O campo da memória envolve noções de temporalidades, lembrança, oralidades, subjetividades, factualidades, espa-cialidades, instrumentalidade objetal, etc. Suas técnicas e seus instrumentos analíticos e metodológicos é que não foram problematizados como estão sendo contemporaneamente. É nesse sentido que se manifesta, a partir da década de 1970, uma grande tendência da historiografia, mais voltada para o campo da cultura e do social e, mesmo das ciências sociais em geral e da antropologia social, interessada em adentrar para análises da memória, do cotidiano, não mais tanto de povos e de agrupamentos societais tradicionais, mas das chamadas sociedades complexas em geral e da experiência de vida de grupos em espaço de mudanças socioculturais.

Como diz Passerini, essa guinada analítica, se é que hou-ve, manifesta-se na tendência de estudar menos os outros, o distante, o excepcional e mais de assuntar-se “naquilo que é vizinho, cotidiano, normal; se exprime nas tentativas dos mo-vimentos políticos para reencontrar suas próprias raízes his-tóricas e culturais, como fizeram os movimentos de libertação

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nacional e racial, os movimentos das mulheres, o movimento operário, as minorias étnicas e linguísticas”.26

Atualmente, a memória está no centro de um grande de-bate teórico. Para além das sínteses totalizantes da história, existem memórias diversas, algumas contraditórias entre si, que radicam reconhecimento social. Sua persistência, fasci-nação, nos últimos anos, parece ser expressão de um entre-cruzamento de diversos caminhos, os quais problematizam campos do conhecimento e contradições no interior das pró-prias disciplinas.27 Percebemos que cada vez mais os elemen-tos mediadores da memória, sejam objetais, de consciência coletiva e individual, de políticas de lembrança e de esque-cimento, etc., servem de suporte à cultura, à identidade so-cial e étnica, à tradição, à possibilidade de materialização de formas simbólicas da vida cotidiana, bem como aos dramas e tramas históricos.

O interesse das ciências sociais pela memória deve-se ao reconhecimento da importância da dimensão temporal nos fenômenos humanos, na reflexão de que tanto a conti-nuidade quanto a descontinuidade da vida em sociedade está implicada em mecanismos de lembrança e de esquecimentos, de seleção e de elaboração daquilo que o passado deixa para trás de si mesmo. No fundo, diríamos que a memória está presente mais ou menos em todas as manifestações da vida Essa tendência não esteve, até, então, ausente de profundas polêmicas, embates, refutações, ingenuidades e aceitações, tanto no que se refere à análise propriamente dita quanto ao

26 PASSERINI, L. Storia e soggettività: le fonti orali, la memoria. Bologna: La Nouva Italia, 1988. Ver, também, da autora Storia orale. Torino: Rosenberg & Sellier, 1978.

27 PASSERINI, op. cit.

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campo historiográfico e metodológico na apreensão dos seus conteúdos.28

A abordagem acerca da memória, por exemplo, continua controversa mesmo após inúmeros escritos, debates e con-frontações teóricas, em suas dimensões analíticas, metodoló-gicas, epistemológicas, envolvendo a questão das técnicas de apreensão, das temporalidades que se cruzam e/ou se anu-lam, dos espaços e dos contextos de lembrança, dos sujeitos que recordam, dentre outras. Como diz Bourdieu, a plurali-dade de expectativas e de memória é o inevitável corolário da existência de uma pluralidade de mundos e de uma pluralida-de de tempos sociais.29

Discutir memória nas suas várias dimensões, seja indi-vidual, coletiva e social, suas relações com a história, suas manifestações orais e materiais, seus lugares institucionais, informais e circunstanciais, suas dimensões epistemológicas, seus silêncios temporais, suas formas de enquadramento etc., é algo mais do que desafiador e, como já dissemos, está ga-nhando cada vez mais lugar nas análises e nos debates do campo social e antropológico. Os estudos de memória, especi-ficamente, estão auxiliando tanto as análises acerca do vivido presente/cotidiano quanto de fatos e tempos passados; estão se apresentando, em sua maior parte, como uma forma de fazer o tempo passado se presentificar analítica e oralmente; de construir e reconstruir o social de vividos; de entender for-

28 Como diz Jedlowski e também Le Goff, os homens não recordaram sempre do mesmo jeito, não atribuíram à memória o mesmo significado, não tiveram à disposição os mesmos instrumentos para auxiliar na lembrança. Isso é im-portante para poder constituir uma história social da memória que tanto Le Goff quanto Nora, Rossi e outros desenvolveram. A passagem de sociedades de cultura oral para a de escrita, a difusão

29 BOURDIEU, P. apud PESAVENTO, S. J. Fronteiras do milênio. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2001. Ver JEDLOWSKI, P. Memorie. Temi e problemi della sociologia della memoria nel XX secolo. Rassegna Italiana di Sociologia, ano XLII, n. 3, lug./set., 2001. p. 373-392. Ver, também, do mesmo autor Il sapere dell’esperienza. Milano: Il Saggiatore, 1994.

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mas e representações simbólicas históricas e educacionais; de compreender tempos e espaços que necessitam de valores e significados culturais nem sempre em harmonia entre vividos e concebidos, expressos nas condições de existência passadas, atuais e projetivas.30

É evidente que tudo isso faz parte de um cenário, de uma realidade que determinados ramos das ciências estão proble-matizando em razão de novos valores, de novas alterações culturais, econômicas, geográficas, da possibilidade de ins-trumentalizar novos recursos de análise, sejam eles do arca-bouço técnico (informática, internet, por exemplo), na esfera da oralidade, da narração, da abertura de arquivos, de novos valores democráticos e de cidadania social e de subjetiva/in-dividual.31

É nesse sentido que localizar o novo campo de discus-são requer não esquecer que, em meio a um amontoado de informações cotidianas e imagens de passados socio-históri-cos, a memória, a lembrança e o esquecimento estão cada vez mais sendo abalados, num contexto de alterações profundas, de desintegrações de valores e representações que ligavam os indivíduos ao processo social, o presente com o passado, as categorias sociais que configuram a memória social. Entende-mos ser fundamental a reconstituição da memória, porque a sociedade da informação, da técnica e da racionalidade econô-mico-consumista faz o tempo andar mais rápido, permite dar funcionalidades diversas aos espaços e às coisas; os objetos perdem significados mais depressa e têm reduzido seu tempo de duração e de significação.

30 ROSSI, P. Il passato, la memoria, l’oblio. Bologna: Il Mulino, 1991.31 Ver JEDLOSKI, P. Memoria. Rassegna Italiana di Sociologia, XXXVIII, n. 1,

mar. 1997, p. 135-147.

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A esfera da memória e dos depoimentos orais, genealógi-cos e biográficos32 está contribuindo, em muito, para o campo de análise histórica, ligando temporalidades, fazendo-as se entrecruzar, bem como resgatando atores sociais silenciados, dimensões do real muito pouco visíveis. É nesse sentido que a proliferação de estudos em torno do campo de análise da me-mória revela um olhar das ciências humanas, sociais, históri-cas e pedagógicas sobre si mesmas; um olhar crítico, inovador, problematizador e projetivo do passado e do futuro.

Passado e presente intencionalizados

A memória é um campo de batalhas.

A. Thomson

Leroi-Gourhan registra que, na nossa sociedade, e em es-pecial nas sociedades sem escrita, há sempre especialistas de memória, “homens-memória”, sejam eles genealogistas, tra-dicionalistas, sacerdotes, pais de família, intelectuais, idosos, portadores de ideologias históricas, dentre outros, os quais têm a função importante de manter a coesão do grupo, de ga-rantir futuro ao passado e o significado no presente.33

Le Goff já dizia que a memória desenvolvia um papel importante no mundo social, cultural, junto aos escolásticos e

32 O campo de análise biográfica é muito intenso na historiografia atual. Há uma vontade manifesta pelos vários estudos (históricos, jornalísticos, empresariais, midiáticos etc.) de contar a vida de personagens marcantes em vários campos da sociedade, muitos deles com objetivos de expressão personalista, autocentrista (self-made-man); outros, com a intenção de prestar contas à sociedade; outros, ainda, intencionando servir de fonte histórica. Há os que, após um tempo de silêncio, publicam fatos, envolvimentos pessoais, como forma de romper com silêncios, ressentimentos e más interpretações. A indústria cultural, no caso brasileiro, dinamiza esse horizonte e transcreve-o para os meios midiáticos e jornalísticos, obtendo grande aceitação do público consumidor.

33 LEROI-GOURHAN. Il gesto e la parola. Milano: Mondadori, 1978. Tomo II.

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nas formas rudimentares de historiografia do mundo medie-val ocidental. Diz ele que, nesse período, os velhos eram ve-nerados sobretudo porque se viam neles “homens-memória”, prestigiosos e úteis. A unidade da memória reside na inten-cionalidade das aquisições, das transformações e recuperação das recordações e esquecimentos. Diz Le Goff que são as pes-soas que escolhem os elementos destinados a se transformar em recordação.34 Não há dúvidas de que o passado condiciona características das lembranças futuras; não se sobrepõe ao presente para permitir meramente a sua identificação, mas, sim, para permitir a escolha e a intencionalidade do que me-lhor lhe interessa armazenar na memória.

A noção de intencionalidade é fundamental para enten-der a fenomenologia da memória. “Com efeito, em cada singu-lar momento, a experiência disponível exprime a energia da consciência presente. A vida da consciência é embasada em um quadro intencional que projeta ao redor do nosso passado, o futuro, o ambiente humano, a situação física, ideológica e moral. O arco intencional é o elemento constituinte da uni-dade dos sentidos. A memória não é a consciência basilar do passado, mas um esforço para reabrir o tempo a partir da implicação do presente.”35

A memória é, desse modo, a capacidade de conservar determinadas informações com auxílio de funções psíquicas, sendo essas capazes de atualizar impressões passadas, que se representam como tal.36 O passado condiciona o presen-te e vice-versa. Sabemos que muitos dos esquecimentos não são atribuídos aos problemas biológicos de memória, mas aos subjetivamente intencionais. As noções de interesse, de

34 LE GOFF, J. Memoria. Enciclopedia Einaudi. Torino: Einaudi, 1979.35 MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia della percepzione. Milano: Il Saggiatore,

1987. p. 157 e 217.36 LE GOFF, J. Op. cit., p. 1068.

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intencionalidade perceptiva, de funcionalidade, de possibili-dade de livre-escolha, de experiências prévias, como veremos adiante, são muito caras à fenomenologia aplicada à memória em suas várias abordagens.

Lidar com memória é mexer com gente, com interpreta-ções presentificadas e, por que não dizer, intencionalizadas; com representações sociais e fatos históricos naturalizados e/ou pouco explicados em termos de origem, objetivo, intencio-nalidades, manifestas em condições de existência do passado, na atualidade e com intenções projetivas. Não obstante as suas questões de ordem metodológica e de processos técnicos de investigação, poderíamos avançar mais e indicar inúmeras outras dimensões que o campo da memória revela, fundamen-talmente, na esfera dos atores sociais e políticos, fatos his-tóricos, identitários, de imaginários sociais cristalizados ou em processo.37 Não se pode perder de vista a longa duração, a tradição na modernidade e vice-versa, bem como estrutu-rações sociais que, aparentemente, manifestam-se presentis-tas (conjunturais e fugidias), dilemas da modernidade e seus valores projetivos na esfera ética e histórica sob o veio das temporalidades e factualidades entrecruzadas, silenciadas, ilustradas por representações e imaginários sociais de longa data e pouco visíveis, pouco explicados e/ou histórica e po-liticamente condicionados ao esquecimento. Sabemos que é comum, no processo histórico e social, a produção do esqueci-mento ou do silêncio alter/auto-imposto para ajustar o passa-do com as intenções e ressentimentos ainda consequentes do presente e das perspectivas futuras.

Ajustar ciclos e tempos históricos de ações, de sociabili-dades e de desenvolvimento social é também função da me-mória política e coletiva/grupal. Com isso, não significa com-

37 Ver ARIÉS, Ph. I segretti della memoria. Firenze: La Nuova Italia, 1996; ver, também, TADIE, J. Y.; TADIE, M. Il senso della memoria. Bari: Dedalo, 2000.

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pleta supressão de lembranças. Sabemos também que, nos processos históricos e políticos das sociedades, em diversas temporalidades, sempre se fizeram presentes memórias con-dicionadas, reprimidas, não enquadradas e não lembradas no coletivo histórico.38 A memória coletiva pode ser induzida a esquecer e/ou a não ser justiciada pela lembrança e por ações de ordem política, jurídica, criminal e ideológica do tempo presente e não do tempo memorizado.

Battini nos descreve, por exemplo, como os processos de desconstrução, seleção, esquecimento e adaptação funcional da memória aos diferentes projetos políticos e sociais do pre-sente foram importantes para a modificação das sentenças, da decisão judicial de quem culpabilizar (noção de relativida-de de culpabilidade) e a quem conceder indulgências históri-cas no pós-Segunda Guerra Mundial pelos países aliados.39

Nesse sentido, não se sabe qual será o destino e o uso da memória. O que se sabe é que seu caráter é contraditório. Atualmente, não só a tradição e o passado em geral perdem o caráter normativo para o futuro que tinha em precedência, mas a própria vida social, cultural e identitária é colocada

38 Ver sobre isso um excelente texto de A. THOMSON, Quando a memória é um campo de batalha. Entrevistas com militares: envolvimentos pessoais e políticos com o passado do Exército Nacional. Projeto História, São Paulo: PUC, n. 3, 1998.

39 O autor mostra como o contexto europeu dos primeiros anos pós-guerra foi fundamental para que não fosse posto em prática os processos de crime de guerra de Noremberg, principalmente para os comandantes fascistas italianos e parte de nazistas alemães. O autor mostra como foi possível relativizar as indulgências, cristalizar uma lembrança unilateral distorcida e parcial da tra-gédia, construir uma memória funcional ao cenário da restauração europeia e hegemonia americana em meio ao cinismo, a injustiças e à falsa consciência (inclusive contra os responsáveis pela “limpeza étnica” colocada em prática nos territórios polonês, soviético, do Leste europeu... contra centenas de milhares de alemães no pós-guerra). “A Europa do pós-guerra se arbitrou logo a distinguir e a separar as novas formas de violência e de limpeza étnica pós-bélica reali-zada pelos alemães daquela perpetrada pelos nazistas nos anos precedentes, predispondo-se a conviver com duas memórias: aquela dos crimes cometidos pelos nazistas durante a guerra e aquela dos alemães culpados coletivamen-te.” BATTINI, M. Peccati di memoria: la mancata Norimberga italiana. Bari: Laterza, 2003. p. 151-152.

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em discussão; por isso, as grandes questões contemporâneas giravam em torno da esfera cultural, identitária, de moderni-dade, tradição, subjetividade, dentre outras.

A subvalorização do passado são, ao mesmo tempo o re-vigoramento da nostalgia, de novos sentimentos (co-presença, pertencimento e identificação étnica), o incremento turístico e cultural dos espaços, lugares, tempos e templos de memória, tais como museus, restauros, antiquários (esses muito desen-volvidos em sociedades mais antigas, principalmente na Eu-ropa), atestam esse caráter contraditório e a indefinição do destino da memória.

Pensamos como Jedlowski quando diz que a memória é ainda aquilo que fornece aos indivíduos o sentido da própria colocação no tempo, interligando o passado, o presente e o futuro numa rede de afetos, de reflexão e de esperança, ainda que sabedores de que, na realidade, o passado não perma-nece mais idêntico a si mesmo; ao contrário, é incorporado seletivamente e reformulado constantemente, com base nas alterações das exigências da vida.40

40 JEDLOWSKI, op. cit., 1997. p. 144.

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CAPÍtULO 2

Memória e lembrançaA memória coletiva é o que resta do passado no vivido dos grupos, ou, então, o que esses grupos fazem do passado.

P. Nora

É possível entender a memória como a capacidade de um sistema complexo, seja ele vivente ou artificial, de armazenar informações, de modificar, com base nessa, a própria estru-tura, de modo que cada tratamento sucessivo de novas infor-mações seja influenciado pelas aquisições precedentes. Num sentido comum, por memória entende-se a faculdade humana de conservar traços de experiências passadas e, pelo menos em parte, ter acesso a essas pelo veio da lembrança. É nesse sentido que a memória parece fazer referência a uma ideia de persistência ou de reinvocação de uma realidade e de uma maneira intacta e contínua.41

Para Baddley, a memória é a capacidade de armazenar informações e de ter acesso a essas. Sem a memória, seríamos incapazes de ver, de escutar ou de pensar; não teríamos uma linguagem e, de fato, nem mesmo um sentido de nossa iden-tidade de pessoas. Diz o autor que, sem memória, seríamos vegetais e, intelectualmente, mortos.42

A lembrança recoloca a esperança na capacidade de recu-perar alguma coisa que se possuía, um tempo que se esqueceu.

41 JEDLOWSKI, P. Memoria. Rassegna Italiana di Sociologia, XXXVIII, n. 1, gen./marz. 1997. p. 135-146.

42 BADDLEY, A. La memoria. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 3.

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Nesse sentido, a memória precede cronologicamente a lembran-ça e pertence à mesma parte da alma a que pertence a imagina-ção. Ela passa a ser uma coleção ou recolhimento de imagens com o acréscimo de uma referência temporal. Nesse sentido, a reminiscência não é algo passivo, mas é sempre uma tentativa de recuperação de um conhecimento ou sensação já existente anteriormente. É por isso que relembrar implica um esforço deliberado da mente, uma espécie de escavação ou de voluntá-ria busca entre os conteúdos da consciência, seja numa pers-pectiva racional ou irracional, micro ou macro, genérica ou específica, ou, então, como expressão individual ou coletiva.43

A memória coletiva, por meio da narração, reafirma sua força de transmissão, pois, para continuar a recordar, é ne-cessário que cada geração transmita o fato passado para que possa se inserir nova vida em uma tradição comum. Desse modo, o acolhimento do conteúdo narrativo e a necessidade de recordá-lo tornam-se um dever.44 O ato narrativo, na medida em que é possível sua elaboração e apropriação, constrói um sentimento de identidade coletiva do grupo e um sentido de pertencimento dos indivíduos, ajuda a conhecer o grupo e a organizar as próprias relações internas.

Sentir e contar histórias em comum significa dar pos-sibilidade de criação e de fortalecimento comunitário.45 Os idosos por nós entrevistados determinam um tempo de per-tencimento, que não é “o de hoje”, tempo esse de criação e de participação ativa no seio comunitário, de identificação de um sentimento de um agir regido pela profunda autodetermina-ção de si. Para Benjamin, na modernidade, a memória não

43 ROSSI, P. Il passato, la memoria, l’oblio. Sei saggi di storia delle idee. Bologna: Il Mulino, 1991.

44 NORA apud MONTESPERELLI, P. Memoria e ricerca social. Roma: Carocci, 2000. p. 173.

45 JEDLOWSKI, P. Storie comuni. La narrazione nella vita quotidiana. Milano: Mondadori, 2000. p. 78-79.

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foi silenciada, mas desvirtuada. A mediação da narração foi fragilizada:

É como se fôssemos privados de uma faculdade que parecia inalienável, mas mais certa e segura de todas: a capacidade de trocar experiências. Uma causa desse fenômeno torna-se eviden-te, ou seja, as ações da experiência caíram. E, pode-se dizer que continuam a cair sem limites.46

Nora diz que a memória é um quadro de interpretações mais do que um conteúdo, é um embate, um conjunto de es-tratégias, um símbolo em movimento com tendências à con-servação. Essa tendência se apresenta pela sua possibilidade ameaçante de desaparecer, de ser selecionada e de ser herdei-ra seletiva de uma herança coletiva de identificação histórica vazia e de símbolos semiapagados. Entendendo a dimensão do movimento de memória e suas consequências, diz que o representativo, o simbólico, o interpretativo têm seus aconte-cimentos, sua cronologia, sua erudição, sua própria condição de possibilidade, sobretudo quando sob influência epistemoló-gica e analítica da história.47

O grande teórico da microistória, Ginzburg, mostra como é possível articular na lembrança um núcleo racional/irracio-nal e expressa-lo numa possível visão de “razão articulada”.48 Segundo o autor, é possível fazer correlação e avançar do indí-cio à generalização, reconhecer que o particular convive com o geral, que é possível partir do efêmero para fazer uma geo-logia profunda no qual esse efêmero se constrói e se insere.49

Ginzburg analisa e retrata a possibilidade de o tempo e a história serem pesquisados não só através dos grandes

46 BENJAMIN, W. Il narratore. Torino: Einaudi, 1976. p. 248.47 NORA, P. (Sous la direction de). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1997.

v. I. p. 20-22.48 Sobre essa questão, ver BLOCH, M. Apologia della storia. Torino: Einaudi,

1969.49 Ver O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela

Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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acontecimentos, das modificações institucionais e das desco-bertas técnico-científicas, mas, também, das coisas mínimas, dos resíduos (lembrar Pareto e Simmel!); porém, essas “coi-sas minímas” devem ser tomadas com a devida consideração. As pequenas coisas podem ser indícios, traços, sinais, ritmos múltiplos, mentalidades, imaginários, sentimentos coletivos de atividades práticas e do pensamento.50

Ligando a questão da memória com o núcleo racional/irra-cional, em concordância com Lazzarin, entendemos que o ato ob-jetivo/subjetivo de recordar os processos vividos que cada um de nós organiza e reinvoca no passado, do ponto de observação do presente, possui a capacidade de estruturar a experiência num patrimônio utilizável para si e comunicável aos outros. Porém, entendemos não ser essa a única dimensão da memória, aquela pode ser entendida como estrutura de interiorização e exterio-rização de fatos, circunstâncias e vividos organizados, espacial e temporalmente, para transmitir ao externo a representação pessoal e/ou coletiva da própria história ou da de outrem.

Memória como fragmento histórico-socialCada um de nós carrega sempre consigo e dentro de si uma quantidade de pessoas distintas.

Halbwachs

Após revisarmos um conjunto de obras sobre memória (histórica, social, cultural, midiática...) e intencionarmos tra-balhar com memórias de idosos, temos a convicção de que o

50 A análise do moleiro que enfrenta e desafia a significação e a veracidade de alguns dogmas do catolicismo é um exemplo dessa correlação entre atividade cotidiana (da cultura camponesa do norte da Itália do Século XVI) e fragmen-tos de escritos de dogmática religiosa. Ginzburg exalta a dimensão do vivido como veículo por meio do qual força os segredos, o ethos cultural e a dimensão escondida, muitas vezes, dissimulada. Segundo o autor, para fazer fluir essas dimensões, é necessário penetrar nos interstícios, servir-se do marginal e in-terrogar os silêncios.

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campo da memória nos auxilia na percepção de mecanismos, de símbolos e processos macro que provocaram as próprias al-terações no tempo e no tempo de nossos idosos entrevistados.

Entendemos também que se, atualmente, encontramos só resíduos, fragmentos e partes do passado, no futuro pode-remos, com um pouco de esforço, habilidade, conhecimento histórico, cultural e social, reconstituir o todo pelos fragmen-tos; poderemos lhe dar corporalidade. Essa é a esperança e a intenção de grande parte dos estudos sobre memória e de sua intensa dinâmica no meio acadêmico, jornalístico e midiático. Fragmentos podem não ser meramente sobras; podem, sim, tornar-se totalidades, plausíveis e passíveis de identidade, de junção/unificação e de arqueologia socio e histórico-cultural.

Malgrado o já consolidado campo de análise da memória, continuamos, ainda, com uma grande dificuldade em unir me-mória e história; o mesmo podemos dizer de memória e técni-ca moderna, de esquecimentos (ressentimentos) e ufanismos de memória, da relação entre bens simbólicos (valores de uso e usos de valor – esse muito presente nos objetos e patrimônios de memória e de expressão cultural) com a mercantilização de bens e patrimônios públicos, sociais, culturais e históricos, entre o vivido e o institucional, entre simbologia e funcionali-dade de objetos de memória, entre o considerado velho e o que se julga novo. Esses elementos todos não devem ser causas de desmotivação heurística e hermenêutica da memória, muito menos de uma visão dicotômica da realidade; devem servir, sim, como elemento problematizador do real presente, das temporalidades e de seus processos sociais.

Relembrar o passado, como fizeram os nossos idosos en-trevistados, não significa apenas recordação verbalizada e fragmentada. Além da questão do conhecimento histórico-cul-tural, memória é cidadania. Fazer aflorar a lembrança e a so-ciabilidade dos simples é fazer aparecer formas de vivências

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determinadas pelo lugar social e pelos referenciais significati-vos e imaginários de um determinado grupo étnico-social em períodos históricos e espaços variados.

Nesse sentido, as memórias podem ser convergentes, contrastadas, múltiplas, as quais incorporam variadas expe-riências tanto pessoais quanto coletivas; podem ou não estar em movimento, construir redes simbólicas, invisíveis, práti-cas objetivadas circunstancialmente, como é o caso do espaço do trabalho, da dimensão da fé, da alimentação (comida), da etnia e suas correspondências culturais, espaciais e tempo-rais,51 nas demarcações entre o público e o privado, entre o histórico e o vivido, entre o social (institucional) e o cultural.

Acreditamos que a memória permite romper naturaliza-ções e inevitabilidades na história; pode fazer dimensionar a esfera da construção, do vivido, do histórico e cultural ainda que entendidos na sua constante redefinição.52 Público/priva-do, temporal/espacial, doméstico/cultural, moderno/tradicio-nal, família/trabalho, dentre outras aparentes polaridades ou fronteiras, foram demarcadas distintamente no tempo e no espaço; portanto, não são universais, nem estáveis, nem produzidas num movimento progressivo. Se assim o fizermos, correremos o risco da reificação e da dimensão a-histórica da cultura e da sociedade, ocultando origens, tensões, fronteiras, heterogeneidades, continuidades, redefinições, criticidade e complexidade.

É possível transformar tudo isso num momento heu-rístico e hermenêutico, valorizar os tempos, subjetividades, entender contextos, conflitos e enquadramentos sociais, bem como ligar lembranças com silêncios (perguntar-nos por que

51 Ver BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

52 VEYNE, P. (Org.). História da vida privada: do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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alguns ou algumas coisas são lembradas e outras não; por que e por quem foram documentados os eventos; quem os guar-dou), cruzar os fatos documentais com oralidades possíveis, dar dimensões de temporalidades e espacialidades totalizan-tes aos fatos aparentemente insignificantes, pequenos, locais e cotidianos.53

53 BOSI, E., op. cit.

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CAPÍtULO 3

A memória no cotidiano

Estudos do cotidiano estão contribuindo para a renova-ção temática e metodológica das ciências sociais, para am-pliar e reorientar noções tradicionais, abstratas e genéricas em vários campos das ciências sociais, históricas e pedagógi-cas. A chamada “crise de paradigmas”, “crise de identidade” da história, “crise da modernidade”, etc. produziu essa grande tendência de adentramento por esse campo, ao mesmo tempo em que se realimentou pelo aparecimento da construção de um campo de análise social do cotidiano.

A história social, a cultural, a pedagogia histórico-crítica, a microssociologia, a Nova História, a Escola dos Annales,54 a pós-modernidade, a antropologia cultural e do cotidiano... descobriram novas perspectivas de estudo, fundamentalmen-te pós-década de 1980. Os temas são variados, múltiplos, transversais, inter e multidisciplinares, agrupados, em gran-de parte, na esfera do cotidiano, do gênero, na cultura, dos atores sociais, na noção de resistência, no privado, na politi-zação social, etc.55 Segundo Matos,

[...] essas novas perspectivas e influências possibilitaram a reorien-tação do enfoque histórico, com o desmoronamento da continuidade, o questionamento de abordagens globalizantes do real [...], per-mitindo também o questionamento da universalidade do discurso histórico; tiveram como preocupação abrir trilhas renovadoras,

54 DOSSE, F. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Ensaio, 1992; ver, também, LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne. Paris: L’ Arche, 1981. v. III.

55 PASSERINI, L. (a cura di). Storia orale, vita quotidiana e cultura materiale delle classi subalterne. Torino: Rosenberg e Sellier, 1978.

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desimpedidas de cadeias sistêmicas e de explicações causais, criar possibilidade de articulação e inter-relação, recuperar diferentes verdades e sensações, promover a descentralização dos sujeitos históricos e a descoberta das histórias de “gente sem história”, pro-curando articular experiências e aspirações de agentes, aos quais se negou lugar e voz dentro do discurso histórico convencional.56

Os estudos do cotidiano multiplicaram-se, especialmen-te na década de 1990, e tornaram-se, malgrado suas bases epistemológicas e suas interpretações temporais, uma gran-de possibilidade de recuperar outras experiências, o mundo de experiências comuns e subjetividades; de problematizar e criticizar o próprio vivido e concebido cotidiano temporal, os valores sociais cristalizados, a institucionalização cultural e histórica; de recuperar resistências, figuras ocultas, dife-rentes dimensões da experiência, indo além dos dualismos, fragmentações e formas de dominações tradicionais,57 fazen-do aflorar a trama da multidimensionalidade que constitui o social, a heterogeneidade, a complexidade, as descontinuida-des, as multiplicidades, a transitoriedade dos conceitos, do so-cial, da história, do conhecimento, das perspectivas, do tempo e do espaço,58 da historicidade inerente ao processo de conhe-cimento. Muitos dos estudos do cotidiano recuperaram vozes, redimensionaram o campo da linguagem falada, escrita, da cultura popular e folclorista, das memórias, dos diários, das biografias, das iconografias, dos jornais, etc.

56 MATOS, M. Z. S. de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru: Edusc, 2002. p. 24.

57 HELLER, A. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. Sobre os vários paradigmas, no campo social, que compõem os estudos do cotidiano, ver TEDESCO, J. C. Paradigmas do cotidiano. Introdução à constituição de um campo de análise social. Passo Fundo/Santa Cruz: UPF Editora/Edunisc, 2002, 2. ed.; ver, também, JEDLOWSKI, P. Il tempo dell’esperienza. Milano: Franco Angeli, 1986; ver BRAUDEL, F. Le struture del quotidiano. Torino: Einaudi, 1982.

58 THOMPSON, P. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992; ARIÉS, Ph. O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.

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Para Matos, o historiador tem dificuldades de entender o oculto no emaranhado fragmentado das informações; de per-ceber o implícito; de fazer aflorar “as estruturas do cotidiano”; de mostrar que o cotidiano é parte integrante da história e que, além de descrito, pode ser analisado, correlacionado e articulado conjuntural e estruturalmente; de fornecer a rein-venção da totalidade histórica no espaço e no tempo (de)limi-tado do objeto em questão.59 “Quanto mais interpretamos e valorizamos os fatos da vida cotidiana, tanto mais enxerga-mos e compreendemos o óbvio, mais forte se torna a nossa capacidade teórica. [...]. Não nascemos apenas históricos, mas também teóricos”.60

Para Simmel, a sociedade representa, globalmente, a ação recíproca dos indivíduos que a compõem. O homem, em sua forma pessoal, interior, desenvolve-se visivelmente na in-teração com sua forma social, que evolui ao seu redor entre o princípio de individualização e o princípio de sociação. Nessa ideia do princípio de sociação, surge a noção de organismo impessoal. Simmel coloca que a interação, mesmo a mais ele-mentar, não tem significação sociológica além da imediatici-dade das ações recíprocas. As formas participativas de viver manifestam-se pelo surgimento da objetividade social na sub-jetividade do vivido, na sua imediatez. Das formas partici-pativas é que vem a noção de sociedade, que, para Simmel, é resultado do contrato social, que não termina e que permite que o indivíduo exista. As formas de socialização dos contatos sociais caracterizam-se por meios particulares de orientações recíprocas, segundo as quais os indivíduos estabelecem uma ligação social. A memória pode ser um elemento mediador dessa ligação social dos grupos.61

59 MATOS, M. I. S. de., op. cit.60 HELLER, A. Teoria della storia. Roma: Editori Riuniti, 1983. p. 84.61 SIMMEL, G. La metropoli e la vita dello spirito. Milano: Armando, 1995.

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A realidade social é constituída através de processos de interação, que são processos de socialização, os quais abrem sempre novas vias em direção à socialidade. Essas vias são múltiplas, produto de invenção dos indivíduos que as per-correm, buscando constantemente novos espaços em via de afirmação de sua personalidade e de constituição de novos grupos.

Não é possível estabelecer a análise da realidade social sobre a base da oposição entre indivíduo e sociedade, pois esta última não é senão uma representação na qual o indiví-duo vive em uma rede de processos de interação e leva nele a consciência de socializar ou de estar socializado. O homem que conhece, age e se representa é desenhado por Simmel no interior dos processos de interação.

No que diz respeito à vida cotidiana, que é o que nos in-teressa, Norbert Elias é claro ao demonstrar que a construção dos costumes e das ações reflete de maneira exata a estrutura do quadro englobante do conjunto dos indivíduos que a ha-bitam. A vida coletiva dos homens é um aspecto de sua vida cotidiana. Desse modo, a estrutura da vida cotidiana é parte integrante da estrutura de tal ou qual camada social, na me-dida em que essa camada não seja vista de maneira isolada das estruturas de poder da sociedade global.62

Criticando a concepção de autonomia da esfera da vida cotidiana, Elias defende a indissociabilidade entre vida coti-diana e as mudanças estruturais da sociedade, a divisão do trabalho e aos processos que envolvem as orientações esta-tais. Coloca em evidência a comparação precisa entre o com-portamento e a experiência dos homens e as fases diferentes da evolução social; inclusive as mudanças de personalidade podem ser correlatas com as mudanças da estrutura social

62 ELIAS, N. O processo civilizador (uma história dos costumes). Rio de Janeiro: Zahar, 1984.

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sob seus diversos aspectos, como, por exemplo, a crescente diferenciação social, o aumento dos canais de interdependên-cia, a centralização, os controles sociais, etc. O autor diz cla-ramente que o cotidiano é um dado societal, cuja análise não pode estar desvinculada das estruturas societais globais de poder; é um locus por excelência de interface da natureza e da cultura. A vida cotidiana dos homens continua a ser pro-duzida a partir de dados culturais, como lugar da produção e da reprodução dos ritmos socioculturais e de sua articulação com os ritmos siderais.

Para compreender de dentro a vida cotidiana, é necessá-rio ter presentes algumas características que lhe são essen-ciais: ambivalência, complexidade, duplicidade, polissemia, localidade, banalidade e insignificância. Esse relativismo compreensivo perspectiva o real, pluraliza os pontos de vista e as razões, as conexões causais, as regras internas, os fina-lismos e os conceptualismos. O conhecimento sensível, pela experiência, quer compreender o dado social que dá acesso à socialidade (empatia comunalizada) e às experiências comuns dos homens, “considerando que é a banalidade cotidiana, o vivido comum, fundamentos da trama societal, que estão na origem dos movimentos de massa”.63

Simmel deixa claro como as sociedades nascem a partir de pequenos grupos estreitamente unidos, nos quais as for-mas de socialização não se objetivam unicamente em formas uniformes como a família e o Estado. Daí a atenção especial de Simmel para os fenômenos microssociais e uma concepção relativista frente ao desenvolvimento histórico. A sociologia, para o autor, tem o objetivo de descrever, analisar, explicar

63 DURAND, J. P.; WEIL, R. Sociologie contemporaine. Paris: Vigot, 1989.

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as formas de interação social, da socialização, independente-mente do conteúdo dessas formas.64

Desse modo, o formismo apresenta-se como condição de possibilidade, como fundante de uma sensibilidade relativista de métodos e teorias (advoga a produção de teses locais); pro-põe uma sociologia como ponto de vista (anticonteúdos siste-máticos), pesquisas simples enraizadas nos modos de ser po-pulares (do já dito bom senso comum, do discurso do social em vez de só sobre o social, se é que, à maneira de Baudrillard, o social ainda existe!), com obsessão ao rigor. A sociologia deve adentrar para as dimensões qualitativas e fenomenológicas da sociabilidade. É o que veremos a seguir.

64 WATIER, P. La sociologie et les répresentations de l´activité sociale. Paris: Meridiens Klincksieck, 1996.

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CAPÍtULO 4

A dimensão fenomenológica da memória

Se esquecer é trair, recordar significa condenar-se à memória da dor.

Proust

Como vimos, o campo fenomenológico65 adentra “em cheio” no horizonte da vida cotidiana e do senso comum. Es-sas duas dimensões se diferenciam, mas, ao mesmo tempo, alimentam-se, complementam e fornecem as bases para o campo da fenomenologia, tanto da memória quanto do campo social.

Vimos que é comum dizer que a vida cotidiana possui uma estrutura de repetição, que é difícil imaginar a vida humana em geral sem os ritmos habituais, sem as rotinas que constituem a esfera individual e a existência social. É comum, na análise da fenomenologia, a afirmação da impossibilidade do ser e do agir social sem as operações pré-reflexivas ou pré-refletidas em comum, sem um mundo dado já por conhecido, socializado, tá-cito e tenaz, que muda, porém conservando-se, ou se alterando, lenta e silenciosamente. É comum, também, perceber a esfera do cotidiano como o horizonte do óbvio, da carência do extra-ordinário, do ser convencional sem ser demais interrogado (e nem possua as condições para tanto), do ser pragmático, ou seja, que resolva, dê conta das exigências, necessidades e dese-

65 Aqui não faremos mais do que uma simples síntese de alguns dos pressupostos básicos do campo em questão com o objetivo de indicar alguns elementos que poderão ser interessantes quando do estudo sobre memória e, principalmente, de memória social e cultural de idosos. Os autores básicos que revisamos foram Henri Bergson, Peter Berger e Schutz (detalhes na bibliografia).

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jos subjetivos, bem como nos possibilite conhecer as coisas que nos rodeiam e os comportamentos das outras pessoas.66

Não obstante, entendemos que a esfera do senso comum é uma espécie de base teórica de compreensão, de saber, de atenção em relação ao que fazemos, aos papéis que cumpri-mos, ao que se apresenta na forma repetitiva na vida coti-diana, ao que se mostra como natural, que descarta (e não motiva) a dúvida, ao que é dividido com os outros e é anônimo.

Poderíamos dizer que o senso comum se funda num pen-samento comum, a priori dado como consentido, suposto e de difícil demonstração, e que também não é tudo nem só o que o homem pensa ou poderá pensar na vida cotidiana.

O senso comum não impede ainda que não motive, nem, consequentemente, dificulte o ponto de vista, a subjetividade, a expressão da experiência individual e configurada, particu-larmente, ao horizonte do possível e não só do dado.67 Porém, não há dúvidas de que, na multiplicidade do agir social e in-dividual, em correlação com o senso comum, ao selecionar, dentre os infinitos objetivos e intenções possíveis, o senso co-mum apresenta ações que são plausíveis no âmbito da nossa cultura, fornecendo um quadro de instrução que favoreça a organização da conduta, a possibilidade de atingir objetivos (pragmatismo) que se pressupõe serem os mais sensatos em termos de resultados.

As noções de pré-juízo (pressupostos e juízos passados e preventivos), de tipificação (abstração da qualidade específica de algo, representação da realidade, condução do particular ao geral...), de memória social e de consciência prática (tradição existente nos confins de uma comunidade que se transmite

66 Para uma análise mais aprofundada sobre os autores e as abordagens do campo da fenomenologia do cotidiano, ver TEDESCO, J. C. Paradigmas do cotidiano. Introdução à constituição de um campo de análise social. Passo Fundo/Santa Cruz: UPF Editora/Edunisc, 2002, 2. ed.

67 JEDLOWSKI, P. Il sapere dell’esperienza. Milano: Franco Angeli, 1991.

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por gerações sucessivas), de pré-científico (pré-compreensão do mundo da qual partem significados atribuídos antecipa-damente e intersubjetivamente), de memória coletiva e cons-ciência ordinária (conhecimento partilhado e pressuposto, o qual permite a interação e a familiaridade das interações dos membros), de experiência e pertencimento (adesão, significa-dos vividos na história, nos grupos sociais, inteligibilidade e intersubjetividade e que possui historicidade), dentre outras, são caras à fenomenologia que aborda o senso comum e a me-mória.43

O senso comum deixa evidente que existe uma trama de pressupostos que regula implicitamente a nossa vida e cuja ruptura poderá nos deixar no caos. Porém, às margens de incertezas, um algo mais, um etecétera, a dúvida, podem se apresentar como contraposição, ruptura e estratégia frente às ideias de objetivação, de naturalização, de pressuposto, de fato social, de experiência de socialização e de obviedade, tão comuns nas abordagens clássicas sobre senso comum e vida cotidiana.

O senso comum deve ser percebido como dinâmica, como processo variável, histórico e contextual, como sistema de ex-pectativas e como experiência. Esta última é importante frisar, pois é um vivido e um saber caracterizado na sua singularidade.

Na noção de experiência está implícita a ideia de dife-rença, pois é expressão de seus sentidos. Senso comum e ex-periência não se excluem, não são um externo e um interno ao indivíduo; são, sim, a dialética que permite e que constitui a vida cotidiana. A experiência permite questionar o óbvio, o comum, o acordo intersubjetivo e desenvolvido como natural e reconhecido por todos; permite resgatar a dúvida, distanciar-se do óbvio e valorizar as questões que o senso comum quer evitar; permite pensar por dentro e por fora do senso comum, dando novos significados e funções à vida cotidiana.

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Diz Jedlowski que a experiência é um confronto com o ris-co; é algo como uma viagem e seu movimento é complexo, ou seja, move-se do senso comum, nega-lhe a imediatez e denomi-na novamente as coisas. Nesse sentido, o indivíduo apropria-se do vivido e sintetiza-o,68 fornece uma nova orientação para a vida, como via de acesso à sabedoria. Benjamin diz que a ex-periência “é um fato de tradição, tanto na vida privada quan-to na coletiva. Ela não consiste tanto de singulares eventos exatamente fixados na lembrança, mas, sim, de dados acu-mulados, frequentemente inconscientes, que se apresentam na memória”.69

Se pensarmos nas simbologias da vida cotidiana atual, veremos que, para o idoso camponês, a fotografia parece evo-car um sentimento maior de vida e de realidade;70 possui uma força evocadora de microexperiências de vida e de morte, ao mesmo tempo na qual se possibilita que a memória se au-to-alimente. A memória necessita de imagens. Desse modo, o esquecimento é dificultado. Nesse caso, a memória é parte de uma consciência simbólica, é um sentir mais profundo da vida, do tempo e da identidade.

A fotografia, como veremos na segunda parte, permite reconstituir e reparar, reconhecer e proteger fatos, identida-des, lugares, tempos, objetos; é um suporte de sentimentos, presentificação de ausentes, mensagem visual e produtora de realidades; faz “parar a vida” como diz Barthes,71 mas tam-bém revela a consciência da sua passagem e da sua transfor-mação. É por isso que os símbolos são linguagens; linguagens de consciência e de formulação dessa.

68 JEDLOWSKI, P. op. cit. p. 66.69 BENJAMIN, W. Di alcuni motivi in Baudelaire. Torino: Einaudi, 1962. p. 88.70 SARTRIANI, M. L. Memoria e autorappresentazioni nello scambio de immagini

fra nuclei familiari di immigranti italiani all’estero. In: PITTO, C. (a cura di). Per una storia della memoria. Antropologia e storia dei processi migratori. Calabria: Jonica, 1980. p. 159-201.

71 BARTHES, R. La camera chiara. Nota sulla fotografia. Torino: Einaudi, 1980.

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Para a fenomenologia, principalmente a husserliana, toda a consciência é consciência de algo. Essa dimensão ob-jetal tem implicações no plano da memória, pois a lembrança de alguma coisa é imediatamente lembrar-se de si, ou seja, o sujeito, a consciência, a experiência são passíveis de intencio-nalidade, de presença, de correlação entre atos e correlatos. Para a fenomenologia, o que deixa lugar para quem; é uma espécie de olhar interior que demanda intersubjetividade, im-pressões, retenções, estratégias de exteriorização, fluxos de tempos subjetivos e atualidade de aparição.72

Halbwachs atribui à memória um olhar exterior, uma entidade coletiva que nomeia grupo ou sociedade. “Para se lembrar, temos necessidades de outros.” Essa é a frase para-digmática do autor, que coloca em evidência a ideia de que a experiência individual pertence a um grupo. Noções de reco-nhecimento, testemunho, lembranças intercambiadas, mem-bro/pertencimento, engajamento, unidade interna da consci-ência, representações coletivas e influência social são funda-mentais para a compreensão do olhar externo da memória em Halbwachs. “Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva”, diz o autor.73

A experiência, como já vimos, é uma síntese, um passado sintetizado e tornado disponível no presente, como uma tra-dição, porém que não reproduz apenas na singularidade do indivíduo. Diz Jedlowski74 que a experiência é uma síntese na qual os conteúdos da memória individual se fundam com aqueles da memória coletiva, memória essa tanto material quanto simbólica, que se radica em uma ordem prática, habi-tual, cognitiva, fundada de elementos objetivos e subjetivos e

72 Ver RICOEUR, P. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000. p. 115-146.73 HALBWACHS, M. A memória coletiva, p. 94.74 JEDLOWSKI, P. Op. Cit, p. 83.

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que permite um conjunto peculiar de modalidade de percep-ção, de sensibilidade e de enfrentamento prático e psicológico.

A experiência na memória permite, como diz Simmel, incorporação de sentidos aos objetos e reconhecimentos dos elementos recorrentes do próprio ambiente cotidiano.75

A tradição fenomenológica (principalmente em Berger e Luckmann) defende que a análise da vida cotidiana deve se abster de toda hipótese causal e genérica. Essa visão entende os atores, em si mesmos, como ponto de partida da observação.

Schutz76 defende a ideia de que a linguagem cotidia-na esconde uma riqueza de visões tipificadas e previamen-te construídas, já elaboradas nas ações mais ordinárias. As referidas ações guardam conteúdos inexplorados, ou seja, há uma reciprocidade de perspectivas que estrutura socialmente o mundo da vida do indivíduo. A ideia central de Schutz é que toda a ação humana repousa sobre um conjunto de informa-ções que nos são, em seu sentido amplo, fornecidas pelos ou-tros. Essas informações são socialmente determinadas e reve-lam-se sempre incompletas para interpretar o mundo. Nessa ótica, o sujeito pensante opera seus percursos sociais com a ajuda de um stock de conhecimento mais ou menos preciso, mais ou menos aplicável no mundo da vida, em que ele entra em interação com os outros sujeitos, gerando seus percursos da mesma maneira. “O homem encontra na sua vida cotidia-na a todo momento um stock de conhecimento disponível que lhe serve de esquema de interpretação de suas experiências

75 SIMMEL, G. La metropoli e la vita spirituale. In: MALDONADO, T. (a cura di). Tecnica e cultura. Milano: Feltrini, 1979.

76 Para Schutz, o mundo social e o natural são bem diferentes. A noção de com-preensão envolve método, epistemologia e vivido experienciado no conhecimento cotidiano, permite compreender as ações do ser humano em correlação e em situação (o ator e seus problemas) com o mundo social. Uma análise nesse sentido encontra-se em JUAN, S. Les formes élémentaires de la vie quotidienne. Paris: PUF, 1996.

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passadas e presentes e determina também antecipações das coisas futuras.”77

A realidade social é vista por Schutz como produto de interações, do somatório de objetos e fatos da vida cultural e social que o senso comum experiencia nas (inter)ações. A in-tercomunicação e a linguagem manifestam e exteriorizam esse mundo nos seus fins práticos. Os mundos do indivíduo (pri-vado) podem ser intercambiados, estar em consonância com o mundo dos outros e ser transcendidos a um núcleo comum. As idealizações permitem encontros e manutenção de um mundo comum. Há um saber social, segundo Schutz, que se desenvol-ve nas ações humanas (interações) e que não pode ficar de fora.

Schutz expressa claramente que a significação não é inerente à natureza enquanto tal, mas é o resultado de uma atitude seletiva e interpretativa do homem na natureza. A ob-servação dos fatos, dos dados e dos acontecimentos, nas suas interações, vai criando estruturas internas próprias de signi-ficação e de pertinência para os indivíduos que, nesse mundo, vivem e pensam. O papel do cientista social está em atribuir significados conceituais àquilo que os indivíduos produzem em sua (inter)ação cotidiana.

[...] deixado a si mesmo, o senso comum é conservador e pode legitimar prepotências, mas interpenetrado do conhecimento científico pode estar na origem de uma nova racionalidade, uma racionalidade feita de racionalidades [...]. O conhecimento cientí-fico pós-moderno só se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum.78

Esse mundo é pré-selecionado e pré-interpretado por uma série de construções próprias ao senso comum, portanto sobre uma realidade cotidiana; são os objetos de pensamen-

77 SCHUTZ, A. Fenomenologia del mondo social. Buenos Aires: Paidós, 1972. p. 142.

78 SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1987. p. 56-57.

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to que determinam o comportamento, que definem o objeto de ação, enfim que ajudam a encontrar o ambiente natural e social.

As representações comuns e as tipificações estruturam atividades e significações que modelam o mundo do conheci-mento comum. Mais bem desenvolvida por Simmel, a noção de tipificação permite situar os indíviduos na sociedade. O conhecimento que os indivíduos têm e podem ter de uns e outros é uma condição da vida social, mas também do saber sociológico.

Em correspondência com Schutz, significa dizer que todo o conceito que toma lugar num modelo de agir humano deve ser construído de tal maneira que uma ação produzida por um indivíduo no seio do mundo vivido e de acordo com a cons-trução típica seja compreensível tanto para o indivíduo quan-to para seus semelhantes e que esteja no quadro do pensado cotidiano.79 Satisfazer esse postulado garante a consistência das construções do sociólogo em relação às construções formu-ladas pela realidade social em seu pensar cotidiano.

Memória e experiência de percepçãoOs homens e a sociedade não têm recordado do mesmo jeito nem têm tido à disposição os mesmos instrumentos para recordar.

Matera e Fabietti

Falamos algo sobre fenomenologia social por ser ela passível de aplicação ao horizonte da memória, por buscar entender a dimensão subjetiva da memória, descrever como os fenômenos se apresentam à consciência (motivações e ra-

79 PAIXÃO, L. A. A etnometodologia e o estudo do poder: notas preliminares. Análise e Conjuntura, Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, v. 1, n. 2, maio/ago. 1986. p. 93-110.

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cionalidades subjacentes às interações sociais), entender as concepções que os indivíduos carregam quando constroem o mundo social em que vivem.80

A fenomenologia é uma espécie de psicologia social inte-ressada nas formas de comportamento público (intencionali-dades expressivas), na interação, na co-presença (a aceitação ou não de regras, a comunicação, a manifestação visual e oral, a postura e o movimento do corpo, o espontâneo, a roupa...); pode auxiliar também na compreensão de situações de face a face numa entrevista, por exemplo, entender as inúmeras estratégias de manipulação e interferência da subjetividade e da identidade individual e social.

Para a fenomenologia, a interação é manifestação de in-divíduos em representação, requerendo que esses se transfor-mem em personagens. É desse modo que os imponderáveis da vida social (resíduos) aparecem, estruturam-se na (situ)ação e ocasião social. A fenomenologia quer interpretar a re-alidade social atrás dos olhos do ator, realidade essa fundada em ações espontâneas, mescladas às atividades que se sobre-põem (temporalidade vivida e sua consequente experiência, escolaridade, profissões, ganhos, classes, etnias...), propician-do ao sujeito a competência e a defesa para atuar nos espaços interativos (pensar nos estigmas sociais, nos ressentimentos e nos ufanismos na análise de memória de algum fato). En-contramos muito isso em nossa análise empírica, como vere-mos melhor na terceira parte do trabalho.

A aplicação da fenomenologia à análise da memória bus-ca subjetivar os elementos da lembrança. Bergson diz que a

80 Simmel nos faz pensar no dinheiro como articulador de formas sociais de in-teração cotidiana, como categoria abrangente da visão de mundo. Para o autor, o dinheiro envolve desejo, frustração, prazer estético, sacrifício, troca, riscos, precisão, expectativas racionais e simbólicas, otimismo, segurança, dentre outros; revela o tecido normativo e ambivalente da modernidade (desejo/frustração, liberdade/alienação, etc.).

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memória é uma espécie de auto-análise da imagem presente referenciada ao passado, representação de signos de consciên-cia, representação que precisa enfrentar o espaço e o tempo. Mesmo que haja estágios de memória (infra e inconsciente), o passado não morre, vive em estado de potencialidade e la-tência.81

Bergson localiza-se no cenário revolucionário das ciên-cias sociais do fim do Século XIX e início do XX. Segundo o autor, fazendo uma correlação entre matéria e memória, essa última começa da sensação, ou seja, um objeto estimula as fibras sensitivas, os aparatos sensoriais e se converte em ima-gem consciente. Desse modo, a memória permitirá reproduzir tal imagem ainda que o objeto não se encontre mais no cam-po da percepção. A consciência tem a capacidade de escolher atentamente quais são as percepções que se deseja conservar. A percepção e a memória possuem um objetivo instrumental e intencional; daí que a memória se torna, então, aquilo que comunica à percepção o seu caráter subjetivo.

Bergson afronta o problema do reconhecimento, ou seja, vai buscar no passado as representações mais condizentes para inserir-se nas situações presentes; diferencia memória-hábito (a qual possui um caráter de repetição de algo até se tornar hábito) de memória-imagem (o registro que fica im-presso, está radicada no presente e objetiva o futuro, é movi-da pela vontade, pela imaginação). Para o autor, a memória não é um fenômeno coletivo, nem social, mas um estatuto es-piritual, como memória em si mesma.82

A dimensão material e pragmática da memória, sua exi-gência de exterioridade atrapalha e, muitas vezes, bloqueia o curso da memória. Os graus de importância dos fatos de me-mória vão denotando as lembranças e os esquecimentos. Na

81 Ver BOSI, E. Memória e sociedade.82 BERGSON, H. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

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verdade, perpassa a ideia de que há sempre uma experiência da percepção dos fatos, do mundo externo, do que resulta o papel mediador da imagem na/da memória. A memória é uma espécie de autoanálise da imagem presente referenciada ao passado; representação de signos de consciência; representa-ção essa que precisa enfrentar o espaço e o tempo (lembrar do corpo, da força física, da ligação entre corpo e atividade, corpo e capacidade de lembrar, velhice...).

A memória corporifica-se no presente e interfere na for-mação das representações presentes; por isso, a diferença en-tre a memória-hábito (utilidade, repetição/ação, socialização, enquadramentos...) e a memória-lembrança (sonho, singula-ridades, evocações, individualizado, espírito livre...).83 A me-mória seria o lado subjetivo de nosso conhecimento acerca das coisas, daria segurança, pois levaria o sujeito a reproduzir formas de comportamento que já deram certo; teria a função prática de limitar a indeterminação.

Memória e vida cotidiana na perspectiva da fenomenologia

Como falamos, Bergson compreende que na vida cotidia-na se faz mais presente a memória-hábito, ou seja, a repeti-ção de gestos e palavras, exigências de socialização, ação e conhecimentos úteis ao trabalho e às exigências sociais e ao adestramento cultural. O cotidiano social caracteriza-se pela inteligência imediata, sentimento de presença imediata no mundo, um cenário instituído que se funda sobre a base de uma racionalização do mundo e do domínio técnico da natu-reza.

83 BERGSON, Matéria e memória.

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O cotidiano constitui-se de sistemas simbólicos, de téc-nicas, regras de comportamentos, papéis, representações so-ciais, linguagens diversas, que normatizam formas de agir, de se entender como moderno, de interagir com o tempo e nos espaços variados em que cotidianamente nos inserimos, de, no limite, sermos sociáveis.

No entanto, racionalidades adaptativas fazem-se presen-tes; a tradição, a integridade e as continuidades que resistem ao contratempo da mudança, as lógicas práticas, os resíduos/fragmentos, os imponderáveis e os sistemas de valores podem se manifestar. É desse modo que, para a fenomenologia, o passado não morre; é esquecido, porém, em estado de poten-cialidade. O que decreta a redução da possibilidade de memó-ria é a dimensão material e pragmática da vida. A memória estaria guardada por inteiro como ela foi para quem a viven-ciou, como páginas impressas em nosso espírito (inconscien-te); por isso, seria a possibilidade de reaparição, de despertar, de reconhecer as lembranças.84

Bosi, fazendo uma análise muito interessante de memó-ria de idosos italianos que viveram o período varguista da década de 1940 no Brasil, afirma que a memória tem a fun-ção social de guardar o tesouro espiritual da comunidade, da família, da tradição e da honra. A perda da narração, de dar conselhos, de trocar experiências (em virtude do triunfo da informação e da pressa) reduz o potencial social, subjetivo e fenomenológico da memória. Situada nesse horizonte, a cons-ciência presente e cotidiana é induzida a não acolhê-la mais, a bloquear o seu curso temporal.85

84 BOSI, E. Memória e sociedade.85 Id. ibid

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CAPÍtULO 5

Memória, modernidade e mudança social

O debate atual sobre modernidade entrecruza-se com o desenvolvimento do campo de discussão sobre a memória. Esse cruzamento sublinha seu caráter dinâmico, plural, am-bivalente, conflitual, dá ênfase à passagem do coletivo ao in-dividual e à cultura midiática que prepondera em ambas.

Modernidade e memória tematizam projeção, projeto – vontade de duração no tempo, um caráter ambivalente, de significados partilhados, de tensões – de “uma contaminação cultural, de uma humanidade sempre mais móvel e interde-pendente [...] de incertezas, fragmentações, precariedades, de tempos breves e incapazes de projeção e de narração de um tempo longo”.86

Memória e modernidade possuem raízes sociais e cultu-rais comuns, surgem de um mundo em transformação profun-da e que provoca redução de valores tradicionais e gera des-continuidades recorrentes, que oferece instrumentos técnicos cada vez mais sofisticados na exteriorização da capacidade humana de recordar.

Na modernidade, a memória não aparece mais como um depósito, mas como uma pluralidade de funções, uma comple-xa rede de atividades de seleção, de filtragem, na reestrutura-ção em correspondência com as necessidades e as demandas

86 RAMPAZI, M. Presentazione. Rassegna Italiana de Sociologia, a. XLII, n. 3, lug./set. 2001. p. 368.

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do presente tanto em nível individual quanto ao social.87 Pre-sente e passado são passíveis de interferência e de filtragem social e humana.

Há sempre, em Halbwachs, a ideia da seleção, de síntese e de reconstrução da memória coletiva em razão dos interes-ses do presente. Ela é um fator de identidade do indivíduo/grupo, mas também sua expressão e manifestação do momen-to presente.

Em correlação com essas proposições, são as interpretações da me-mória como lugar de conflitos entre versões diversas do passado e, enfim, observação da capacidade de memória de institucionalizar-se em práticas sociais de comemoração, de escrita, de arquivação, que consentem em determinar versões do passado, de fixar-se e eventualmente de impor-se sobre o outro.88

Para Halbwachs, determinados eventos continuam a ga-nhar espaço de lembrança porque continuam a significar para os grupos sociais. Portanto, poderá haver uma reconstrução ou não coletiva do passado, até porque as memórias coletivas são plurais. Existem diversos grupos numa sociedade, do que re-sulta que, para o autor, muita coisa vai depender do contexto e da capacidade de poder dos grupos em fornecer explicação plausível a determinados fatos e processos da realidade.

A ideia de moderno pressupõe uma ideia de futuro, de transtemporalidade. O que é moderno hoje pode tornar-se antigo amanhã. A cultura ocidental moderna pensou a cul-tura em si como um vir-a-ser, por isso, a contraposição das culturas tradicionais e das modernas. Essa dimensão produz implicações para a memória, pois as dimensões temporais se alteram. A tradição constitui-se nesse horizonte do velho/

87 JEDLOWSKI, P. Memorie. Temi e problemi della sociologia della memoria nel XX secolo. Rassegna Italiana de Sociologia, p. 373-391. Ver, também, ROSA, A. et al. Tracce. Studi sulla memoria collettiva. Napoli: Liguori, 2001.

88 JEDLOWSKI, P. Memoria. Rassegna italiana di sociologia, XXXVIII, n.1, p.135-47, mar. 1997, p. 52.

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novo. Para a memória, a ideia de passado ganha dimensão de presente; no entanto, para a consciência histórica, o passado é passado.

Segundo Le Goff, o desejo de conservação do passado ca-minha na mesma intensidade com a qual se distancia.89 Po-rém, o moderno é transformação incessante; o que caracteriza a modernidade é sua capacidade de, principalmente no hori-zonte material, superação e de alteração.90 Nesse sentido, o processo mercantil no capitalismo, a racionalização e a divi-são do trabalho foram muito bem analisados por Marx, Weber e Durkheim, respectivamente, ambos modernos, críticos da modernidade.

No que pudemos entender, a tese básica de Halbwachs é de que a memória, tanto no plano individual quanto no co-letivo, constitui-se como processo de reconstrução. Ela não é um depósito (como o era em Bergson), mas é algo que com-porta um aspecto social ineliminável, que conserva tanto os processos de sedimentação dos acontecimentos passados na consciên cia quanto os de sua conservação e de seu reconhe-cimento.

Em Les cadres..., Halbwachs mostra como as categorias sociais da linguagem, das representações do tempo e do espa-ço constituem a fixação e o reconhecimento das recordações individuais. “Na memória, portanto, o passado não está sem-pre acessível em modo direto e não está conservado em modo definitivo. A mediação com o presente o constitui de volta em forma diversa.”91 É por isso que a memória, em Halbwachs, precisa ser entendida como manifestação de um conjunto di-nâmico, espaço não só de seleção, mas de reinterpretação e re-

89 LE GOFF, J. Memoria. In: Enciclopedia, v. VIII, Torino: Einaudi, 1979.90 BERMAN, M. Tudo o que é solido desmancha no ar. São Paulo: Companhia

das Letras, 1994.91 JEDLOWSKI, P. Memoria, esperienza e modernità: memorie e società nel XX

secolo. Milano: Franco Angeli, 1989. p. 47.

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formulação do passado, portanto, em transformação/renova-ção de sentido. Sua função está mais ligada em preservar os elementos do passado que garantem aos sujeitos sua própria continuidade e sua afirmação identitária, do que propriamen-te fornecer uma imagem fiel do passado.

Já dissemos que a mudança é a norma institucionalizada nas sociedades modernas, nas quais o que legitima o conteúdo da tradição é a racionalidade; daí a dificuldade, segundo We-ber, de manutenção da tradição.

Se existe algo que constitui, de modo unívoco, o sentido da me-mória na modernidade, é a percepção da passagem do tempo. Em outros termos, é a relação que essa possui com a percepção da transitoriedade da existência humana. Frente à passagem do tempo, frente à percepção da radicalidade da morte num mundo privo de horizontes transcendentes, frente à visão de mudança e do caráter definitivamente passado do que é passado, a memória é uma faculdade ambivalente.92

Benjamin, citando Baudelaire, já dizia que, no capitalis-mo ocidental, a cidade se transforma mais rapidamente do que o coração de um homem, ou seja, as mudanças são tantas e com um ritmo de velocidade que o indivíduo, em meio a isso tudo, sente-se imóvel, e aquilo que aprendeu a amar tem a sensação e a objetividade de andar em ruínas, principalmente o mundo em que sua existência se constituiu. Nas palavras pouco animadoras de Benjamin, “o progresso é um anjo que procede no futuro com o olhar atônito voltado para trás a con-templar acúmulos de ruínas”.93

É desse horizonte de análise que advêm as noções de tempo perdido, de nostalgia em Benjamin e, mesmo, em Sim-mel, noções essas importantes para as análises de memória

92 JEDLOWSKI, P., op. cit., 1989. p. 91.93 BENJAMIN, W. Immagini di città. Torino: Einaudi, 1971. p. 84; ver, também,

do autor Sul concetto di storia. Torino: Einaudi, 1997.

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narrativa de idosos.94 “Isso é evidente ao nível da passagem das gerações. Pois o mundo muda, as categorias com as quais as gerações passadas definiram o próprio mundo tornam-se obsoletas pelas gerações que as seguem.”95 As reflexões de Simmel sobre a modernidade fundamentam-se na questão do surgimento da grande metrópole e da economia monetá-ria madura e suas repercussões sobre outras esferas da vida, principalmente no campo dos sentimentos e da experiência subjetiva.

Metrópole e monetarização expressariam a concentra-ção, intensificação, difusão e extensão da modernidade; am-bas provocariam um aumento da troca, do consumo, da dife-renciação social, incremento da funcionalidade das relações sociais. A experiência torna-se, a partir daí, diferenciada e descontínua (fragmentada). A cultura transforma-se em cul-tura de coisas e de objetos; produz-se reificada, autonomiza-da, dissociada e distanciada socialmente.

Na sociedade moderna, segundo críticos da modernida-de, os valores perdem seu caráter relacional, deixando lugar para a teleologia meio-fim, para a quantidade, para o aumen-to do individualismo e da funcionalidade das relações sociais.

94 Não obstante a vasta literatura sobre a crise da duração, que caracteriza a modernidade, há também uma vasta bibliografia que analisa a possibilidade de convivência, em conflito, entre a chamada “tradição” e a sua consequente modernidade. Não há dúvida sobre as profundas transformações que se operam na vida cotidiana, no campo tecnológico, nas formas de organização social, no progresso industrial, ou seja, alterações no mundo objetivo. Porém, na esfera da subjetividade, os processos não andam com a mesma velocidade. Família, etnia, moralidade, tradição, religião, ética social, parentesco [...] aglutinam-se à dimensão objetiva da transformação para, ainda que em grau menor, encontrar espaços de atuação, estratégias de convivência. Nesse sentido, percebemos que modernidade e tradição não se excluem, mas se retroalimentam, em sinergia, ainda que movidos, em grande parte, pelos pressupostos da primeira. No âm-bito da memória, não há dúvidas de que a perda da faculdade de narrar, de intercambiar experiências produziu a crise da continuidade. A intelectualização da experiência promoveu a racionalização e a burocratização da memória e seu resguardo em lugares institucionalizados social, política e culturalmente, como bem observou e analisou Pierre Nora.

95 JEDLOWSKI, P., op. cit., p. 71.

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Nesse cenário, os valores pessoais reduzem-se a valores mo-netários e o estilo de vida torna-se um contraposto de elemen-tos estanques e fragmentários. Diz Adorno que experiência é a continuidade da consciência, na qual perdura o que não está mais presente, na qual o exercício e a associação criam no in-divíduo a tradição. O conceito de experiência, na perspectiva sociológica, necessita das noções de duração, de sedimenta-ção, de tradição e de nostalgia.96

A ideia de experiência torna-se problemática com a mo-dernidade; a experiência da modernidade, como já vimos, é uma experiência de mudança contínua, de tempo acelerado, de eventos que transcorrem rapidamente e se sucedem, de au-sência de correspondência de um “antes”, o qual é um peso de que é necessário se desvincular para construir um novo real; requer um cenário do imprevisível, do incerto, de eventos, de aceleração da história, da não incorporação do passado como orientação e atribuição de sentido à experiência presente, da perda da mediação dos quadros culturais na constituição da identidade individual; produz uma continuidade fundada na capacidade pessoal, da autonomização, na impossibilidade de sedimentar uma experiência maturada. Exige um homem cuja memória foi educada a não lembrar, senão por breve tempo, até que outra “coisa” mais importante se imponha à sua atenção e roube a recordação precendente; é o intensificar da vida nervosa como resposta aos estímulos nervosos e con-traditórios, como coloca Simmel.97

96 ADORNO, T. W. apud CARRERA, L. Il futuro della memoria. Milano: Franco Angeli, 2001. p. 39.

97 SIMMEL, G. La metropoli e la vita dello spirito. Milano: Armando, 1995. p. 36. O autor fala da hipertrofia da consciência, do indivíduo a-histórico, do aventureiro, da pobreza de experiência, da intelectualização da experiência, da distância do mundo, etc., como expressões fortes da realidade produzida pelos referenciais econômicos, culturais e sociais da modernidade na sociedade capitalista.

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Halbwachs já dizia que um pensamento só toma consis-tência quando possui uma duração suficiente.98 Os excessos de eventos produzem novos tempos, novas identidades, no-vas experiências passageiras e novas invenções, dificultando a possibilidade de sedimentar a memória. Para Benjamin, o papel da mídia é fundamental na construção desse tempo ace-lerado na modernidade. Para o autor, a economia produziu a racionalidade econômica do tempo. A banalização da exte-riorização da memória pelos meios de comunicação retirou o potencial mediador da narração, da expressão do patrimônio comunitário.

Nesse cenário, a tradição é substituída pela informa-ção pontual, substituível e efêmera, rompendo o potencial e o exercício de associação, da continuidade da consciência (tradição), tornando o indivíduo o único “testemunho” de sua identidade. Benjamin diz que o olhar autobiográfico torna-se o único capaz de fornecer ao indivíduo o horizonte da própria continuidade.99

Na análise de Weber, e também de Simmel, está claro que, quanto mais a experiência moderna assume os traços de uma experiência intelectual, mais os aspectos não instru-mentais da memória tendem a ser deixados de lado; com isso, traumatiza-se e privatiza-se a esfera dos valores e dos signifi-cados culturais mais profundos da sociedade.

Segundo Simmel, a essência da experiência moderna está no aventureiro, que é o exemplo extremo do individualis-mo a-histórico, do que vive no presente: “A essência da aven-tura é de ser cortada fora do resto da vida e da sua continui-dade.”100 Os eventos seguem, sem se sedimentar, de forma que

98 HALBWACHS, M. A memória coletiva…99 JEDLOWSKI, P. Il testimone e l’eroe. La società della memoria. In._______;

RAMPAZI, M. (a cura di), op. cit., p. 21.100 JEDLOWSKI, P. op. cit., p. 80.

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cada fato novo aparece como independente do que lhe prece-deu; desse modo, desenvolvem-se as noções de descontinuida-des, de autonomia entre passado e futuro, tão em evidência entre os pós-modernos.101

Não podemos esquecer que as análises sobre modernida-de colocam em evidência as diferenças nas condições de vida do homem contemporâneo em relação a contextos sociais e históricos anteriores. O crescimento da cultura objetiva cami-nhar em correlação com o atrofiamento do saber individual, com sua fragmentação e especialização. Desse modo, a iden-tidade individual torna-se frágil, havendo sempre mais ne-cessidade de uma reconstrução de uma biografia pessoal por meio da retomada do passado.

Com essa atrofia da experiência, segundo Benjamin, os nexos que ligavam os vividos individuais à memória no tem-po foram irremediavelmente perdidos. Essa subtração da ex-periência faz com que sua comunicação caia no anonimato. Segundo o autor, a imensa quantidade de ações que se suce-dem de forma automática e que produzem uma cotidianidade induzem uma série de experiências não realmente assimila-das, mas registradas no nível de uma consciência superficial. Com isso, no amontoado de informações incessantes e num mundo de temporalidade incerta, à memória não é mais dada a função de continuidade da identidade, e, sim, de desconti-nuidade, de estranheza temporal da própria temporalidade, tempo esse artificial, que vive “de uma exterritorialidade sem participar de alguma relação temporal”, diz Benjamin.102

101 A pós-modernidade, principalmente com Maffesoli, vai utilizar muitas noções da crítica à modernidade de Simmel para constituir seu arcabouço teórico. As noções de efêmero, presentismo, proximia, fugacidade e transitório são suas peças-chave.

102 TRAPINO, A. Sentimenti del passato. La dimensione esistenziale del lavoro storico. Firenze: La Nuova Italia, 1997. p. 249.

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Isso tudo tem profundas implicações no campo da me-mória e das responsabilidades sociais e, mesmo, perante a história e a cultura, pois um indivíduo que perde o sentido da relação com o próprio passado perde também um elemento fundante de sua identidade, ou seja, a capacidade de perce-ber sua própria continuidade, de se reconhecer como “mesmo” no decorrer do tempo. Sem essa percepção, não pode haver responsabilidade. As responsabilidades na história na vida do indivíduo não se resumem ao presente. A memória históri-ca e a memória política fazem reconstituir responsabilidades (lembrar o nazismo, o fascismo, a resistência, a escravidão, o racismo, a degradação ambiental, dentre outras).

Marcuse dizia que a memória, malgrado sua redução fun-cional e simbólica com a modernidade, pode também ser um reservatório de força subversiva. Os ressentimentos históricos, étnicos, afetivos, raciais, dentre outros, atestam isso. O pensa-mento utópico e revolucionário em Marcuse constitui-se justa-mente nessa capacidade de “tomar distância do presente”.

Tanto Benjamin quanto Marcuse e Weber analisaram muito bem o quanto a referência ao crescimento do saber científico de um tipo de saber que “consome” as suas próprias ideias reduz o potencial da importância da memória e disso se alimenta e “cresce” continuamente.

No mundo em que vivemos, o problema a enfrentar não é mais só o do declínio da memória coletiva e a sempre menor consciência do próprio passado, mas é a distorção deliberada dos testemunhos históricos, a invenção de um passado mítico construído para servir os poderes. Somente o historiador, com sua rigorosa paixão pelos fatos, pelas provas e testemunhos, pode realmente montar guarda contra os agentes do esquecimento, contra os assassinos da memória, contra os conspiradores do silêncio.103

103 YERUSHALMI, Y. H. Riflessioni sull’oblio. Parma: Pratiche Editrice, 1990. p. 23-24.

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CAPÍtULO 6

Memória e pós-modernidade

A pós-modernidade social104 move-se baseada em alguns conceitos básicos, entre os quais diversidade de interpreta-ção, flexibilidade e liberdade de manifestação, importância da localização e da identificação dos atores em seu contexto, o cuidado com a emotividade, a subjetividade e a aproximação.

Para a pós-modernidade, ainda que nós pensemos es-tar buscando a objetividade do conhecimento acerca do real, estaremos assumindo uma postura relativista. Em outras palavras, estaremos fazendo “leituras do real”. Por isso, sua tendência de defesa do antigrande relato, da antitradição, a defesa das traduções, em vez de tradições contemporaneiza-das. Nessa perspectiva, a memória entra em cheio!

A pós-modernidade defende a chamada destruição criado-ra das identidades; seus princípios básicos são a redução da identidade à subjetividade, à pluralidade e à transitoriedade. As identidades sociais são feitas e refeitas a partir das novi-dades culturais e das mudanças sociais. Nesse processo, estão em constante confronto o velho e o novo, em reelaboração os critérios de autovalidação pública dos sujeitos, estes, variá-veis de acordo com a multiplicidade de situações sociais do cotidiano e com as transformações econômicas e culturais que caracterizam as sociedades contemporâneas e que proporcio-nam um contínuo reajustamento das matrizes identitárias dos sujeitos (por isso, um fato qualquer pode ganhar significa-

104 Ver Lyotard e Maffesoli, dentre outros. Sobre o campo da pós-modernidade social, ver o terceiro capítulo de nosso livro Paradigmas do cotidiano.

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ção e fatos tradicionais podem cair no esquecimento; poderá haver, inclusive, contraposições temporais e ambivalências do mesmo fato). A memória presente apresenta muitas dessas ambivalências temporais de significados sobretudo no campo ideológico-político (nazismo, resistência, militarismo no Bra-sil... são alguns exemplos disso).105

Para a pós-modernidade, há uma busca narcísica nos in-divíduos no tempo histórico e social para a autossatisfação, um descentramento do mundo (em relação às utopias, finalis-mo, racionalização...) e um recentramento dos sujeitos pau-tados pela valorização de novos signos culturais106 (consumo, lazer, corpo, a estética, o ócio [o chamado “ócio produtivo” do italiano De Masi, o qual muito está servindo para essa visão], o virtual, o maquinismo de um lado e o naturismo do outro).

Ao que nos parece, a pós-modernidade cristaliza-se num desejo de viver em hibridismo (de estar no meio e entre as coisas, objetos e natureza, de agregar-se em torno de ques-tões sensíveis e pouco estruturais da sociedade, como, por exemplo, no global, o pace italiano), numa grande descrença das ideologias de Welfare State, de segurança social, política, econômica e ética, tornando claro que essas se fragilizaram, instaurando uma espécie de ficção na vida coletiva, com pre-sumíveis efeitos sobre o modo como os indivíduos se vêem, apresentam e avaliam a si próprios e, igualmente, o modo como vêem, apresentam e avaliam os outros (aqui o papel da velhice entraria em cheio, a simbologia das ditas “coisas anti-gas”, do passado em geral).

Não podemos esquecer que a pós-modenidade não está tão interessada em usar o presente para dar garantia de fu-turo ao passado. Essa nova “estrutura de sentimentos” (Ben-

105 FORTUNA, C. As cidades e as identidades. Narrativas, patrimônios e memória. RBCS, a. 12, n. 33, 1997. p. 126-141.

106 Id. ibid.

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jamin) dos indivíduos implica uma deslocação das nossas me-todologias de análise das genealogias e das relações sociais fixas e formais para uma compreensão do caráter mais fluido, fugidio, movediço e presentista da sociedade, do tempo e das coisas/fatos no tempo.

Na pós-modernidade, espaço e tempo ganham códigos diferentes. O espaço e o tempo institucional perdem espaço para o que agrega subjetividades e interações. A cidade, por exemplo, produz estranhamento e anonimato, porém permite a explosão de espaços, de culturas, de tempos variados, da he-terogeneidade. Nela há uma deslocalização/transferência no olhar de sentido, há uma temporalidade do olhar, uma merca-dorização do tempo e da memória. Os sentidos e significados passam hoje pela epistemologia estilizada, parcelar, transitó-ria, ambivalente e descontextual.107

O cotidiano dos sujeitos é marcado por práticas limina-res (vêm e se vão), por novas concepções de tempo e da memó-ria, por reconceptualizações do espaço, da estética e da moral. Há uma aceitação radical da vulnerabilidade.

A tradição necessita da rememoração, de um fato impor-tante vivido por uma ou por várias pessoas para ganhar corpo e continuidade no tempo. A reconstituição de uma tradição geralmente é feita com recursos mediadores dos ritos e dos símbolos. As pessoas ou grupos que recorrem à tradição nor-malmente o fazem com a intenção de dar sentido ao presente, objetivando responder às provocações do tempo presente.108 O campo da memória está sempre cheio de reflexões pessoais e de lembranças familiares, e a lembrança é uma imagem inse-rida dentro de outras imagens, uma imagem genérica trans-portada ao passado.

107 FORTUNA, op. cit.108 RIVERS, D. P. B. Tradição, memória e pós-modernidade: implicações nos fatos

religiosos. Estudos de Religião, ano XII, n. 15, dez. 1998. p. 50-61.

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Como toda a experiência humana, a lembrança é tam-bém uma experiência continuamente interpretada, porque toda percepção se faz dentro de um quadro interpretativo, corrigido e transformado pelas novas experiências. Assim, experiência e interpretação relacionam-se dialeticamente. Noções comuns pertencentes a um grupo são fundamentais para reconstruir o evento passado através da lembrança. Po-rém, nas sociedades atuais, a memória coletiva, segundo Ri-vers, está muito enfraquecida, pois não está mais totalmente regida pela tradição ou pelo religioso. A informação contínua e a eternidade do presente anulando toda a referência ao pas-sado imediato e mediato levam a que o indivíduo esteja cada vez menos dependente de grupos sociais. Tanto a memória quanto o indivíduo apresentam-se fragmentados em muitos espaços, tempos e grupos.109

No fundo, a dificuldade está em saber pressentir o que se presentifica; está, muitas vezes, na insensibilidade frente às possíveis consequências das mudanças em curso. O conflito está entre o atropelo dos fatos e a amarração a referenciais que insistimos em manter, o que muitas vezes nos cega frente à complexidade do mundo e faz das ciências sociais um campo de análise limitado.

Por isso, falar em epistemologia pós-moderna hoje, para muitos, pode soar ambíguo. Para alguns, significa estar na moda, exorcizar demônios, ser sensível a uma nova estética civilizacional e reencantar o mundo; para outros, nada mais é do que uma invenção de marketing societal, ou seja, readaptar o social ao presentismo consumista, fugidio e fragmentário de uma chamada economia de escopo, que anula o passado e fornece as bases no presente para um incipiente perspectivar do futuro.

109 RIUERS, op. cit., p. 56.

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Para os críticos afoitos à chamada pós-modernidade, tanto no campo da ciência quanto no social e no simbólico, essa nova ética, travestida em estética, é importante na medida em que permite e induz uma autocrítica da modernidade, sobretudo em suas bases epistêmicas mais históricas e generalizadoras.

A modernidade foi vista como presente, como racionali-zação da civilização ocidental que objetivava a modernização social sob a consolidação da economia e sociedade capitalistas. A força de trabalho livre, o Estado moderno, a organização ra-cional da produção, a profissionalização da atividade política e burocrática, a autonomização e emancipação da ciência, da arte, da esfera moral, do polissemismo cultural, o crescimento das forças produtivas, dentre outras, foram racionalizações de uma modernização social.

As ciências sociais avançaram modernamente na ligação homem e sociedade. Profundas discussões no campo da cultu-ra, da dissolução do senso comum, da tradição, da memória, etc.; suas grandes narrativas, muitas até bem legitimadas, seu campo discursivo no âmbito da identidade, do progresso, da revolução, da história, enfim, de um homem capaz de deci-dir sobre a sociedade, de projetar, de garantir sua imortalida-de sobre a terra, sobre a natureza física.110

A modernidade produziu contra-revoluções, produziu reencantamentos, subjetividades, a des-não-anti-razão, a pós-anti-transbaixa-alta modernidade, o cotidiano, o vivido, as existências coletivas sem condução predeterminada, os micropoderes, os microespaços, as micropartículas societais, as diferenças, as pluralida des, as crises conceituais, dentre outras.

Com a chamada “crise das epistemologias” da moderni-dade, as ciências sociais se vêem desafiadas a adotar novos

110 RIUERS, op. cit.

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métodos, novos pressupostos, a produzir novos conceitos, a fazer parcerias multi e transdisciplinares, a flexibilizar nor-teamentos, a produzir e/ou revigorar novos clássicos, novas bases teóricas, que possam dar conta do imperativo do deci-framento do presente. Isso tudo consolida-se como uma exi-gência das múltiplas formas de lutas e de conflitos sociais, de convivência multicultural e além-fronteira (mundialização) e do capitalismo na sua versão neoliberal como roupagem nova de um mesmo processo civilizatório.

As ciências sociais sempre tiveram preocupações episte-mológicas ligadas às suas fronteiras, porém mantendo sem-pre o espírito deslizante (interdisciplinariedade) uma vez que inúmeros objetos são comuns. A angústia de compreender os rumos da modernidade, bem como o imperativo de captar o social, contemporaneizando velhas questões com novas abor-dagens, sempre esteve no âmago dos vários campos do conhe-cimento social.111

Na chamada fenomenologia compreensiva de Maffesoli, há uma crítica profunda às abordagens sociológicas que redu-zem o mundo social ao mundo da produção, principalmente de cunho marxista e funcionalista. Ele tenta resgatar o lado de sombra do social baseado em minúsculas situações do coti-diano, no imaginário, na utopia e no não racional, em última instância, no senso comum. O autor não acredita que o conhe-cimento científico possa dar conta da complexidade do social (influência weberiana) e de seu antagonismo; propõe, então, uma vigilância à respiração social, à experiência do mundo vi-vido coletivamente, ao imaginal, ao pluralismo da vida, longe dos mitos da razão, do progressismo e da institucionalização do intelectual.

111 TAVARES DOS SANTOS, J. V. A aventura sociológica na contemporaneidade. In: ADORNO, S. (Org.). A sociologia entre a modernidade e a contemporaneidade. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1995. p. 73-84.

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A ética da estética que o autor defende pressupõe exte-riorização e transcendência, desejo de viscosidade, o coletivo, o estar-junto. É por isso que se pode logo dizer que há gozo estético na vida cotidiana, no imaginário grupal, em todas as fusões pontuais já referidas – musicais, esportivas, religiosas – que fazem da vida uma obra de arte. A ênfase na busca do qualitativo, a ambiência hedonista, a insistência na erotiza-ção da existência, a epifanização do corpo e a importância da aparência, eis, entre outros, os indícios mais seguros de tal vontade de arte. Essa vontade de arte não se reivindica, nem mesmo se reconhece como tal, mas é causa e efeito de um espírito do tempo que não é mais futurista, mas se dedica a valorizar um inegável gozo no presente.112

O autor, ironicamente, chama de “imoralismo ético” a sólida e subterrânea consciência que o corpo coletivo tem de si mesmo. A noção de ética é contraposta à de moral. Essa, sinteticamente, segundo o autor, baseia-se no dever-ser, nas normas e padrões de comportamento social. A ética manifesta o querer-viver, traduz continuidade e responsabilidade para com o conjunto social; remete ao equilíbrio e à relativização recíproca de um conjunto social: “[...] o imoralismo ético da massa conserva, com o passar do tempo, e de uma maneira astuta e encarniçada, uma multiplicidade de atitudes consi-deradas aberrantes pela moral indicada.”113

A ruptura epistemológica provocada pelos pós-modernos é reconhecida por alguns que se intitulam autocríticos da mo-dernidade como fragilização dos modernos. Reconhecem, no entanto, que os pós-modernos são precisos em apontar a am-biguidade nas metanarrativas da emancipação da humanida-de, da unidade da razão, da experiência histórica da moderni-zação como projeto central iluminista. A razão que mergulha-

112 MAFFESOLI, M. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.113 MAFFESOLI, M. Dinâmica da violência. São Paulo: Vértice, 1987. p. 128.

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va na racionalização e na secularização, manifesta no interior da modernização, aparece como potencial contraditório para alguns modernistas; encontra agora um outro sujeito, um outro projeto, sem identidade histórica, sem fronteira para o social e para o indivíduo. Consumir e consumir por consumir; sem céu, sem história, sem revolução, sem projetos culturais e sociais previamente conexos e unificados nos moldes da já consolidada civilização industrial. Viver o cotidiano, o ecletis-mo, o pacifismo, esperar a próxima novidade, enfim, viver a espontaneidade e a sedução.

Contra o historicismo radical e a utopia social e linea-rista, os pós-modernos pensam nas atitudes invariantes do presente e da condição humana. Noções de civilização, de racionalização, perspectivas de longa duração são completa-mente rejeitadas nos cânones da pós-modernidade. Daí é que brotam também as maiores críticas. Outras críticas nascem de sua concepção estética ou, mais precisamente, de sua si-nergia com a ética. Segundo alguns críticos, ao defender a ideia de que, na base de qualquer representação ou ação, há sempre uma sensibilidade coletiva extralógica que serve de fundamento à existência social, Maffesoli corre o risco de um excesso de esteticismo, levando o ato estético para além da ética. Sua concepção de morte ao indivíduo em prol do cole-tivo, do nós-fusional e da comunalização, segundo alguns crí-ticos, além de inutilizá-lo e de abstraí-lo em prol da massa, despersonifica o sentido estético da existência coletiva.

Outra crítica profunda que Maffesoli recebe é no tocante à falta de relação entre o micro e o macroestrutural, o cotidia-no e as estruturações sociais. O fato de não reduzir o mundo social à esfera da produção não significa absolutizar o coti-diano como esfera que se basta a si mesma, como único es-paço em que se pode apreender a socialidade. Para o autor, o presente é que merece atenção; ao devir histórico, dá poucas

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perspectivas. O presente precisa ser vivido ao máximo, inten-sa e qualitativamente. O autor, em várias obras, continua se defendendo dizendo que seu presentismo radical não significa ausentar a história, pois essa influi sobre o cotidiano; o que o autor quer é negar os projetos da história, os mitos de vida eterna profanados como motor da vida social.

Para o autor, os conceitos são relativos. Ele recusa sua definição operatória, pois quer descrever os fenômenos hu-manos tais como são: na sua diversidade, descrição e imagi-nação. Também recusa a tradição determinista ou positivista que considera irracional a esfera da imaginação (imagem), da intuição, da experiência e do sentimento; o que quer é aceitar a multicausalidade na compreensão dos fenômenos humanos, opondo-se às conexões causais concretas.

Não há dúvidas de que a modernidade se associa à racio-nalização da sociedade em vários de seus níveis, privilegiando aspectos de mobilidade, funcionalidade, transtemporalidade (desencaixe), transcendendo as particularidades locais ou na-cionais. No entanto, isso não significa que tenhamos de en-tender o real no seu lado oposto, ou seja, pela razão interna, sensível, presentista e localista, como se a modernidade esti-vesse superada e os modernistas não se tivessem dado conta de que o mundo ou as transformações em curso foram e estão sendo negligenciadas.

O que podemos dizer, em linhas gerais, é que, para os pós-modernos, vivemos num contexto no qual a metalingua-gem, a grande teoria, é um hors-sol; a pluralidade de regras e comportamentos (os tribalismos na aldeia global), a atomiza-ção do social, o pluralismo descentralizado, as variedades de inclinações e de julgamentos não têm lugar na centralidade dos mitos, dos universos ideológicos universais.114

114 GIDDENS, A. As consequências da modernidade, São Paulo: Unesp, 1991, aumenta mais a polêmica caracterizando o período atual como sendo de uma

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De certa forma, os pós-modernos, nas suas abordagens, pelo menos, colaboram para nos fazer reconhecer as transfor-mações e algumas das especificidades em curso. No entanto, a ideia de pós é muito forte, é anuladora; dá ideia de um radical antes e depois. Isso faz perder a dimensão do processo, de continuidade com superação e preservação que se constrói a partir dela no âmbito do conflito e das contradições.

A razão instrumental, a colonização do cotidiano, a possi-bilidade de emancipação pela razão, as novas lutas de classes, o mundo do trabalho, com suas novas formas de alienação e de mais-valia global, a sociedade do mercado e do capital, dentre outras questões, desafiam-nos para a compreensão menos presentista e localista da vida social. Porém, segundo Diehl, a expressão “pós-modernidade” revela o ambiente frag-mentário e saturado do mundo atual, como “sintoma cultural ingênuo da revolta contemporânea [...], porém, também como rejeição ou desmistificação dos fragmentos ou metanarrati-vas epistemológicas do moderno [...], ou seja, deixa de lado a capacidade de pensar o utópico”.115

Alta Modernidade, expressando, com isso, continuidade com especificidades, radicalizadas, construídas a partir dela.

115 DIEHL, A. A. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru: Edusc, 2002. p. 145, 148 e 152.

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CApítUlo 7

Memória e patrimônioAs imagens do passado em cada época se corres-pondem com os pensamentos dominantes.

Halbwachs

Em teoria, e no plano antropológico da memória coletiva, cada sociedade tende, necessariamente, a conservar seu pró-prio patrimônio cultural e a transmiti-lo de geração a geração aos seus membros. Conservar, transmitir, sobreviver, difun-dir-se e rememorizar são elementos da esfera biológica que pertencem também ao horizonte antropológico e que podem servir de base para a análise histórica do social. A memória patrimonial pode ter uma dimensão coletiva, no sentido de patrimônio cultural, artístico, linguístico e de normas de con-vivência.116

Desse modo, a memória coletiva tende a estar em conso-nância com o conjunto das representações de formas de vivi-dos temporais que cada grupo social produz, institucionaliza, pratica e transmite por meio de formas variadas de sociali-zação e de interação entre os membros e, desses, com outros.

Diferentemente do que a pós-modernidade pensa e ana-lisa, nesse contexto de mercantilização da cultura, percebe-se a necessidade de construir uma biografia, uma história da própria vida que esteja com possibilidade de fornecer, ainda que limitadamente, um senso de continuidade do tempo num contexto de fragmentação. A memória patrimonial, indepen-

116 Ver BARTELETT, F. La memoria. Milano: Angeli, 1974.

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dentemente do fato de para quem esteja servindo, possui essa característica.

Percebe-se, pelas análises de história social e cultural e, mesmo, política, ainda que em contraposição ao movimento forte na sociedade em direção ao esquecimento e à indiferença para com o passado, uma necessidade manifesta de sentir-se pertencente a uma coletividade mediante o intercâmbio de valores. As comemorações, os monumentos de memória po-dem auxiliar na formação de uma identidade individual no sentido coletivo do pertencimento, enquanto testemunho con-creto de um passado pessoal e familiar.117

Historiadores confirmam que a memória patrimonial sempre esteve, historicamente, ligada à aristocracia e à Igre-ja. O iluminismo pensou-a como de interesse na instrução pública, como exercício da cidadania e propriedade da nação (constituição de Estados nacionais, justificativa ideológica para a construção de uma identidade nacional).

Com o tempo pós-Revolução Industrial, com a raciona-lização e intelectualização social e econômica da sociedade, a dimensão fenomênica do patrimônio social perdeu grande parte de seu significado. É por isso que a memória patrimo-nial passou a ser entendida e relacionada com a seleção e atribuição de determinados valores, que passam a se tornar representação social e histórica, ou seja uma relação estabe-lecida entre um objeto material/simbólico ou imagem presen-te e algo ausente. Sua significação não está apenas nas suas características físicas e morfológicas, mas no que passará a representar, como a identidade de determinado grupo, cidade nação, etnia, agrupamento cultural, determinado evento, pe-ríodo histórico ao qual pertenceu.118

117 Ver na Revista Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 31 e 32, 2001, vários textos sobre educação patrimonial.

118 LE GOFF, J. Memoria...

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Entendemos ser a memória patrimonial uma construção social, da qual se disputam seus enunciados discursivos, sua atribuição de valor, suas práticas, as quais assegurem sua pre-servação e inviolabilidade. Existe um campo de disputas119 por significados e pela legitimação e hegemonia do mesmo inseri-do num campo entre classes, etnias e grupos em luta material e simbólica.

A ideia é de institucionalizar a memória de determinado grupo, o que implica reconhecimento e interesse em manter como sua memória. Segundo Gourarier, as estruturas mate-riais, uma vez instituídas como patrimônio, passam a dispor do estatuto de inviolabilidade, adquirindo caráter de verdade a ser reproduzida para toda a sociedade, podendo ser compa-rável a objetos sagrados.120

Monumento/documento

A memória torna-se sempre suspeita para a história: a história é a deslegitimação do pas-sado vivido.

Nora

Le Goff distingue monumento e herança do passado de documento. Na sua visão, a função dos primeiros está ligada à memória, à perpetuação do passado, com o atributo de evocar; do segundo, é provar e testemunhar, atingindo seu triunfo com a escrita.

Segundo o autor, a história possui um papel importante na esfera da memória patrimonial principalmente na atribui-

119 Bourdieu nos oferece um quadro interessante desse horizonte do campo das disputas pela legitimidade discursiva dos objetos simbólicos. Ver, do autor, A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

120 GOURARIER, Z. Le musée entre le monde de morts et celui des vivants. Ethnologie Française, n. 1, t. 14, jan. 1984. p. 67-76.

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ção de “valor histórico” ou documental a determinado bem, podendo haver, porém, “restauração interpretativa” na de-terminação do valor de uso político, ideológico, econômico e cultural (aí estão presentes os conflitos no campo da proprie-dade, do imobiliário urbano quando da justificação discursiva em torno de preservação e de tombamentos).

Outro aspecto que o historiador aborda é no sentido de compreender como e por que aquela sociedade definiu tal patri-mônio como significativo. A ideia é mostrar como as sociedades lidam com seu passado e sua memória e como o patrimônio de-monstra a percepção do tempo histórico e da historicidade dos processos sociais, ainda que, em grande parte, conservados em lugares pouco visíveis, em termos populares, e muito ainda ins-titucionalizados em termos de interpretação e de possibilidade de compreensão significativa pela grande maioria da população, ou, então, pela intensificação da velocidade do tempo e das coi-sas no tempo.

Pensar nos objetos passados e do passado é deixar o tem-po presente se esvair sem significado, ou seja, vazio. Le Goff diz que é possível que a memória patrimonial seja “o resulta-do de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, das sociedades que a tem produzido [...], o resultado de um esforço produzido [...] para impor a própria imagem de si”.121

Já vimos que Le Goff diferencia e, ao mesmo tempo, cor-relaciona documento e monumento: o primeiro como sendo escolha do historiador; o segundo, como herança do passado. A característica deste é que lhe é dada a capacidade, voluntá-ria, ou não, de perpetuar sociedades históricas, serve de tes-temunho histórico e de matéria-prima para a história. Diz Febvre que “a história se faz com os documentos escritos, cer-

121 LE GOFF, J. Documento/Monumento. In: Enciclopedia Einaudi. Torino: Einaudi, 1981.

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tamente. Quando existirem. Mas se pode fazê-la, se deve fa-zê-la sem documentos escritos se não existirem”.122Continua o historiador dizendo que o analista social deve produzir seu mel mesmo que não existiram flores; deve usar a palavra, os sinais, as paisagens... enfim, com tudo aquilo que pode haver correlação, dependência e importância para os homens.

Para Le Goff, o documento não é inócuo, mas é o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente da história da época da sociedade que o produziu, mas também das épocas sucessivas em que um se fez presente e teve significado, du-rante as quais continuou a ser manipulado, quem sabe com o silêncio.

Na análise do autor, a história é a (re)constituição cientí-fica da memória coletiva.123 Desse modo, o que se apresenta, e é composto simbolicamente (pela escrita e/ou pelo objeto mo-numental), é o resultado de uma escolha resultante das for-ças que operam nesse cenário, entre as quais estão os histo-riadores. Na noção de monumento (herança do passado) e de documento (escolha do historiador) está presente a ideia de continuidade, de duração, de significação atemporal. É nesse sentido que um documento pode se tornar um monumento. O critério para isso é o esforço de análise crítica, contextual, me-morial e relacional do material/objeto. Lucien Febvre já dizia que a engenhosidade do historiador está em fazer as coisas mudas falar dos homens, do contexto social, tornar “transpa-rente” os meios que produziram o objeto material.124

122 FEBVRE, L. apud LE GOFF, J. Documento/monumento, p. 41.123 Ver LE GOFF, J. Documento...; ver BARTHES, R. La camera chiara. Torino:

Einaudi, 1980. Uma análise sobre os monumentos imagéticos e sobre especi-ficamente a fotografia na história; ver D’AUTILIA, G. L’indizio e la prova: la storia nella fotografia. Milano: La Nuova Italia, 2001.

124 FEBVRE, L. por Le Goff, J., op. cit., 1981. p. 41. Febvre insiste na análise crítica do documento como monumento, na necessidade de perceber as con-dições de sua produção histórica, sua(s) intencionalidade(s), a mentalidade que o gerou, a percepção de uma memória coletiva cristalizada ou projetiva, a desmistificação de sua significação aparente, de desmembrar os tempos

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Benjamin foi um dos primeiros cientistas sociais a ana-lisar o papel social, cultural e econômico da produção imagé-tica, ou seja, seu potencial persuasivo, sua onipresença possí-vel e cotidiana de cada ser social, seu cenário na era da epro-dutibilidade técnica e funcional o capitalismo e da chamada indústria cultural a qual permite acesso do objeto de arte ao público (sociedade de massa).

A dimensão coletiva e individual da memória patrimo-nial não pode ser entendida como um conjunto homogêneo e coerente de representação do passado.

Halbwachs já dizia que a memória coletiva deve ser pensa-da como uma dinâmica em tensão contínua, num jogo de confli-tos, seleções, interpretações do passado (lembrar aqui a ambi-guidade de muitas comemorações no campo político, na ambiva-lência na significação da Semana Farroupilha para os gaúchos), suas relações com o poder, com a política, com os mecanismos de esquecimento público de fatos, de formas de gerir o social, a identidade,125 com a responsabilidade nos confrontos com a história.

A ideia de monumento à memória está ligada ao possí-vel ceticismo sobre a possibilidade de materialização de uma

passado, presente e futuro do conteúdo ilustrado que não só humano, mas temporal e espacial.

125 Halbwachs analisou muito bem, em A memória coletiva, o caráter de “construção” que é típico da memória coletiva, quanto à sua relação estreita com a construção da chamada “identidade coletiva”, os confrontos e a reconstrução do passado no cenário da “pluralidade” de memórias coletivas que vivem no interior da sociedade. Tanto em nível individual, como já falamos, quanto ao nível coletivo, a memória é uma função da identidade. No entanto, estreitar demais a ligação entre memória e identidade pode fazer esquecer que a memória também poderá romper ou contradizer a identidade que estabelece num determinado tempo. No plano individual e subjetivo, a psicanálise mostrou amplamente como um dos motivos de interesse da memória está mesmo na sua capacidade de conservar traços que tenham encontrado espaço na consciência e que, portanto, podem não fazer parte do horizonte identitário. Por isso, como diz Halbwachs, a memória podem ter também um caráter crítico e desestabilizante. Isso também vale para o plano coletivo. Desejos, traumas, ressentimentos, aspirações... podem provocar a desfetichização da memória e de identidades variadas e interessadas no presente.

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forma simbólica que está implícita na utilização de um lugar preciso, que, como tal, antes ou depois, perde sua força de atração.126Os monumentos são sempre mediadores de me-mória. Glória, fama, alegoria, valor cultural, social e políti-co, histórico, controle social, poder, regionalismo, aspirações políticas... são algumas das expressões mediadas pelo monu-mento de memória.127

Os espaços de memória podem ser móveis ou imóveis. Arquivos, diários, romances, textos culturais (poesias), a nar-ração oral... servem de memória funcional, de memória-ar-quivo, como modalidades de recordações. A memória patri-monial é sempre uma tentativa de legitimar/desligitimar. A aliança entre memória e poder exprime-se na elaboração de forma estruturada do conhecimento histórico. Os poderosos hegemonizam não só o passado, mas também o futuro: que-rem ser recordados e, para esse fim, erguem monumentos em lembrança de suas atividades, fazem-no de modo a que essas venham a ser lembradas, cantadas pelos poetas, eternizadas em monumentos e arquivadas. O poder legitima-se retrospec-tivamente e perpetua-se em modo prospectivo.128

A memória patrimonial evita e, ao mesmo tempo, con-gela a memória; produz barreiras que evitam a comunicação crítica, alternativa, relativizada; pode produzir um funda-mentalismo de memória (lembrar o culto às personalidades de Stalin, Hitler, Mussulini, Saddam...).

126 GARBINATTO, V. O historiador e as imagens. Ciências & Letras, n. 31, p. 273-283. Ver também em outros volumes da referida revista excelentes aná-lises sobre educação patrimonial, sobre o papel dos símbolos de memória, da educação para a memória, etc.

127 ASSMANN, A. Ricordare. Forme e mutamenti della memoria cultural. Bologna: Il Mulino, 2001.

128 ASSMANN, A., op. cit.

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Congelar o tempo num lugar ou um lugar congelado no tempo?

A história é a representação sempre problemá-tica e incompleta do que aconteceu. Nora

Pierre Nora já dizia que a tendência característica do mundo moderno é a aceleração da história, ou seja, o senti-mento de ruptura com o passado. Daí a ideia de deixar vestí-gios, de lugares de memória, de congelar o tempo de algo.

A memória patrimonial e monumental presta-se para tanto.129Os lugares de memória seriam expressão de uma busca desenfreada pelas chamadas “identidades ameaçadas”, memórias enfraquecidas, tempos lineares, imagens da perda. Muitas vezes, prédios e monumentos de grande importância cultural, segundo os valores definidos por um número limita-do de agentes, são totalmente desconhecidos e negligenciados por sua comunidade mais próxima.130 Os objetos de memória são objetivações das recordações, de um passado que não se quer esquecer, que deve conviver com a lógica de uma socie-dade de consumo a qual se funda sobre a rápida deterioração dos valores comunicativos dos bens e sobre sua rápida subs-tituição.

Há objetos que assumem no imaginário coletivo um enor-me valor simbólico (veremos isso melhor na segunda parte, quando da análise da vida camponesa, bem como da vida ur-bana ressignificada pelos valores do urbano em conjunto com estratégias de reconstrução da memória da vida rural). A prá-

129 CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, n. 11, v. 5, 1991. p. 173-191.

130 LUPORINI, T. J. Educação patrimonial: projetos para a educação básica. Ciências & Letras, n. 32, p. 325-338.

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tica social e cultural da memória reenvia a capacidade da me-mória de exteriorizar-se e objetivar-se, isso é, de tomar forma e sedimentar as representações sociais de um certo passado em determinados objetos, símbolos, artefatos culturais e comuni-tários.

Os objetos de memória, subjetiva e objetivamente, de-pendendo do contexto, dos grupos e significados em questão, tem um poder evocativo, ao mesmo tempo em relação de re-ciprocidade.

Os objetos dão uma certeza que advém de sua materialidade, do fato que quando queremos relembrar eles estão prontos, como passivos recipientes da nossa projeção, das nossas interpretações dos eventos passado. Se pode, portanto, sublinhar que os objetos são dotados de um poder de memória que lhes rende significados. Esse poder, obviamente, não deriva do objeto enquanto tal, mas do fato que ele incorpora e projeta significados importantes para a pessoa que o adquiriu, recebeu ou encontrou em uma situação ou contexto particular que se quer recordar. É através desses objetos que se cria uma continuidade entre passado e presente, e através deles que se mantém viva a lembrança do passado.131

Em geral, os lugares que para cada um são significativos representam eventos de memória, possibilitam ligar a própria memória aos fatos. As recordações culturais servem a uma co-munidade porque possibilitam radicar a própria existência no passado e reforçar a identidade presente. O papel das datas, dos lugares, dos objetos simbólicos, dos símbolos externos... é justamente este: garantir a continuidade, a legitimidade, o enraizamento espaciotemporal e confirmar a própria identi-dade dos grupos. Dizem Fabietti e Matera que, “sob o plano temporal, a memória reinvoca eventos que ela mesma coloca em qualquer ponto no espaço, lugares de memória sobre os

131 JEDLOWSKI, P. Il senso del passato. Milano: Angeli, 1991. p. 55.

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quais a identidade projeta e da qual retira a própria história, as vicissitudes que lhe pertencem”.132

Os lugares de memória são a ocasião da exteriorização da memória; são âncoras de suporte externo para se fixar na memória dos grupos; condensam a imagem de um passado; são pontos de visibilidades evocativos, senso de pertencimen-to de indivíduos a um determinado grupo; construção de me-mória coletiva, radicamento e sobrevivência da tradição e de suas crenças; produção política e religiosa da memória,133 re-presentação pública e objetiva da memória. Enfim, os lugares são produtos materiais da atividade humana que adquirem um alto valor simbólico pelo fato de condensarem algumas representações cruciais do passado da comunidade.134

Os objetos significativos estão sempre em relação com a identidade em construção. A lembrança ganha corpo nos objetos significativos, que gestionam a memória. Os objetos são portadores de significados simbólicos que “os indivíduos podem reconhecer a partir de seu pertencimento a uma co-munidade e as consequentes possibilidades de se inserir na memória coletiva da referida comunidade”.135 Desse modo, é sempre a memória coletiva que atribui significados a esses.

No dizer de Halbwachs, os grupos religiosos necessitam apoiar-se em algum objeto, em qualquer coisa que dure. A re-ligião exprime-se, assim, em forma simbólica. Lugares e obje-tos de memória têm necessidade de suportes, de testemunhas para poder existir. A linguagem e a simbologia do objeto ex-pressas pela oralidade (narração) e a escrita podem fornecer esse suporte.

132 FABIETTI, U.; MATERA, V. Memorie e identità. Roma: Meltemi, 1999. p. 35.133 Halbwachs faz referencia a isso em seu livro sobre as Memorie di Terrassanta

quando analisa a reconstrução e o “reconhecimento” dos lugares tornados sagrados em Jerusalém.

134 Id. ibid., p. 63-64.135 Apud CARRERA, L. Il futuro della memoria. Milano: Franco Angeli, 2001.

p. 37.

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Sociedade, tradição e suas simbologias

Para poder relembrar, necessita-se também saber esquecer.

Wiehl

Não existe sociedade sem tradição, assim como não exis-tem conteúdos culturais e estruturais que caracterizam a dinâmica histórica que não se manifestam como intersecção perenemente mutável entre o patrimônio passado e as cons-tantes exigências de inovações da vida coletiva. Desse modo, a tradição configura-se como o percurso de um caminho já traçado, como ritualização, e que encontra no passado a sua legitimação. É esse passado que possui certo direito e que de-termina, ainda que inconscientemente, em larga medida, as nossas posições e nossos comportamentos.136

É importante ter presente que, entre o presente e o pas-sado, apresentam-se traços, vestígios, símbolos mediante os quais se pode compreender o passado; trata-se de recordações, imagens, relíquias... Porém, esses elementos são imperfeitos, pois o passado não pode, em nenhuma situação, ser reconsti-tuído na sua forma integral e qualquer que seja sua recons-tituição será sempre duvidosa. Imagens, fantasias, sonhos e projetos expressam subjetividades, ou, então, são suportes de memória coletiva que, em termos temporais e transgeracio-nais, podem se alterar ou não serem passíveis, na totalidade, de expressão simbólica e objetal.

A memória não só se exterioriza num objeto, mas se con-densa, se sintetiza, assumindo um grande valor simbólico. É por isso que a destruição de um objeto da memória torna-se um ato de destruição do passado e do que a memória quer

136 PRANDI, C. Tradizioni. Enciclopédia Einaudi. Torino: Einaudi, 1981.

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representar. Existem conflitos entre o funcional e o simbólico dos objetos de memória: um se legitima em ações concretas e presentes; outro, no passado, com implicações simbólicas para o presente. Intervir sobre o objeto simbólico é intervir sobre a forma cultural vivida daquela memória: “Memória co-letiva, esquecimento e identidade estão ligados entre si e, to-dos os três agem segundo processos de caráter reconstrutivo. O desafio cotidiano da convivência entre grupos se reduz, em definitivo, ao bom uso da relação que esses grupos realizam com a memória e de sua identidade.”137

A memória patrimonial possui sua expressão nos mais variados processos sociais, simbólicos, objetais etc. A lingua-gem, a documentação, o conhecimento elaborado e o senso co-mum, o artesanato, a cultura de grupos, os monumentos, os templos, os obeliscos, as obras de arte, os artefatos, os espaços, dentre outros, manifestam essa infinidade de circunstâncias e ambientes construídos que sintetizam um mobiliário social e histórico, cristalização material de significados históricos e vividos pessoais, ou seja, uma herança cultural de cada povo.

A tradição possui sempre uma dimensão cultural que é transmitida de geração a geração enquanto lhe for atribuído valor. Sabemos que tanto a sociedade como seus indivíduos são dotados da capacidade de esquecer e de reinventar signi-ficados; só assim podem enfrentam com os meios mais ade-quados os novos problemas que em geral se apresentam.138 As transformações rápidas e improvisadas da sociedade reduzem significativamente as velhas tradições. Porém, paradoxal-mente, impõe-se, como contraposição a isso, um recurso a um passado mítico, para reconstruir um sentido de continuidade de persistência de sua existência no tempo, num processo de

137 BETTINI, L. Il perdono storico. Dono, identità, memoria, oblio. Il Mulino, a. XLIX, n. 389, mag./giu. 2000. p. 425.

138 Ver, nesse sentido, vários textos do número 31, da revista Ciências & Letras.

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tensão do vínculo societário e de transformação social. Nesse sentido, manipular a memória poderá significar manipular a história e vice-versa.139

Numa sociedade e época como a atual, de inovações con-tínuas e de mudanças nas práticas cotidianas, o sentido de continuidade, elemento importante na manutenção do fluxo de estabilidade de elementos identitários, não pode simples-mente repetir processos espontâneos e automáticos dos mo-delos e significados tradicionais. Jedlowski refere que a tradi-ção e a memória podem tornar-se objetos de ação consciente e intencional ao evitar que as mudanças se tornem, pelo es-quecimento do passado, um regresso a modos primitivos de organização social e de civilização.140

Hoje, principalmente na Europa, notadamente em nome da indústria do turismo e da padronização estética do am-biente urbano construído, restaura-se muito, porém dificil-mente o restauro conserva a linguagem simbólica original e raramente se consegue restabelecer uma interpretação perdi-da. Autores acreditam que a concepção de que um monumen-to possua uma linguagem única e tenha um sentido original já se esvaiu. A interpretação que prepondera, em correspon-dência com a obra de arte, é que múltiplos significados são justapostos no curso de sua existência histórica, por isso seu caráter aberto, suas várias leituras possíveis e parciais, suas alterações e sua visão hermenêutica das interpretações no in-tervalo de tempo que separa o presente de sua origem.

Já vimos que os monumentos são suportes materiais de memória coletiva e transgeracional. É desse modo que se abrem para reinterpretações, colocando em circulação o con-

139 Ver excelente contribuição, nesse sentido, na obra de GREGORY, T. (a cura di). L´eclisse delle memorie. Roma: Laterza, 1994; ver, também, CHIARETTI, G. et al. Conversazioni, storie, discorsi. Roma: Carroci, 2001.

140 JEDLOWSKI, P. Memoria, esperienza e modernità.

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teúdo da memória e expressando também sua possível vul-nerabilidade. Daí a importância dos rituais, das reinvenções, ressignificações constantes no tempo presente e na capacida-de de projeção de vida futura dos homens e dos objetos/símbo-los significativos.141 A função do monumento como expressão de memória patrimonial vai perdendo e/ou alterando seu sig-nificado ao longo do tempo; perdendo sua função memorial, sobretudo com o desenvolvimento de outros dispositivos de memória, como a escrita e a fotografia. Le Goff refere que a função do monumento é sempre permitir vestígios públicos de fatos e de personagens históricas, ainda que isso possa servir para apagar a real dimensão do vivido e esconder conteúdos de memória.

Porém, segundo Passerini, há um contraste entre silên-cio e monumento à lembrança. Na opinião da autora, isso ma-nifesta uma marca do nosso tempo, ou seja, a memória ne-cessita, especialmente no campo político, de um certo tempo de silêncio para depois ser lembrada, geralmente por meio de sinais públicos, sejam eles monumentos, escritos, literatura, etc. Os genocídios da Segunda Guerra, a literatura sobre o acontecimento, sobre o fascismo, sobre a colonização na Amé-rica Latina, regimes totalitários como os existentes em vários países da ex-União Soviética, na Espanha, no Brasil, dentre muitos outros, expressam esse silêncio como repressão da me-mória e “amnésia imposta”.142

141 SCHONEN, S. La mémoire: connaissance active du passé. Paris: Mouton, 1974.

142 PASSERINI, L. Memoria e utopia. Il primato dell´intersoggettività. Milano: Il Saggiatore, 2003.

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Mobiliário social

A noção de patrimônio que aqui queremos desenvolver dá a ideia de Pater, de vínculo, de transferência de herança material, espiritual e institucional. A memória patrimonial revela relações sociais que nela se engendraram; há uma ideia implícita de deixar vestígios num tempo linear. Porém, é necessário fazer uma análise crítica das escolhas do que foi, do que é e será preservado (o dito e o não dito).143

Como já dissemos, no horizonte do patrimônio cultural estão presentes bens e valores materiais e imateriais, trans-mitidos por herança, de geração a geração, na trajetória de uma comunidade. Sendo assim, é um processo contínuo de transmissão de valores e crenças, de saberes e modos de fazer e de viver que caracterizam um grupo social; é uma “marca” que identifica, que adquiriu um sentido “comum” e compar-tilhado.

É desse modo que as ideias de velho e de novo devem ser entendidas em suas contradições temporais e espaciais, em consonância com o imaginário da população, de determi-nados grupos, da força social presente no contexto específico em questão. Sem essa compreensão prévia, não teremos con-dições de entender por que os idosos que entrevistamos tanto do meio rural quanto do urbano relativizam o novo, ou algo do novo, como sendo apenas uma simples alteração de processos, conhecimentos, formas do velho, ou seja, algo já, em parte, experienciado por eles.

Canclini afirma que há uma certa desconexão hoje entre neoliberalismo, memória história e patrimonial. O primeiro manifesta centralização e funcionalidade do mercado e dos

143 LUPORINI, T. J. Educação patrimonial: projetos para a educação básica. Ciências & Letras, n. 31.

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bens simbólicos, o esquecimento da história das lutas sociais e das tradições; prega a homogeneização cultural, o interna-cional popular (patrimonial), a midialização (midiação) dos espaços patrimoniais (grandes museus, espaços turísticos e burocratizados...); enfim, uma tendência de apagamento de memória e de reconstrução seletiva da mesma.144 A partici-pação social na definição patrimonial indica a possibilidade educativa não formal (dimensões da organização política, da cultura política e espaciotemporal), da histórica local da per-cepção de costumes, ideias, mentalidades vigentes na época de sua produção.145

Cientistas sociais brasileiros, tais como Pesavento e Ian-ni, relatam que todas as sociedades, ao longo de sua história, elaboram para si um sistema articulado de ideias e imagens de representação coletiva, por meio do qual constroem sua identidade. Articula-se, assim, todo um imaginário social, que inclui uma visão sobre o passado, a construção de perso-nagens-símbolos e a atribuição de valores, características e hábitos a povos que habitam uma determinada região.146 Esse processo implica a construção idealizada de identidades, sím-bolos de referência regional que lhes dêem caráter distinto (lembrar aqui a cultura do regionalismo no Rio Grande do Sul e do nordeste brasileiro, a Liga Norte na Itália e suas lingua-gens simbólicas de cunho regional em âmbitos espaciais, ét-nicos e culturais, dentre outros); implica recortar, selecionar, inventar, criar, manipular vivências e fatos, reconstituindo o passado segundo determinados fins, manipulando a memória coletiva. Nesse horizonte, a produção discursiva é fundamen-

144 CANCLINI, N. G. O patrimônio cultural e a construção imaginária do social. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, n, 23, 1994. p. 95-111.

145 JEUDY, H. Memória social. Rio de Janeiro: Forense, 1990.146 PESAVENTO, S. J. Gaúcho: a integração do múltiplo. In: KERN, A. et al. Rio

Grande do Sul. Continente múltiplo. Porto Alegre: Riocell, 1993. Ver IANNI, O. Teorias da globalização. Petrópolis: Vozes, 2000.

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tal na criação de imagens e sentidos na ligação entre lingua-gem e mundo (imaginário).

A memória patrimonial favorece simbólica e objetivamen-te a invenção das tradições e seus ritualismos. Hobsbawm147 refere que por tradição inventada entende-se todo um con-junto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas, de natureza ritual ou simbólica, as quais visam inculcar certos valores e normas de comporta-mento através de repetição, o que implica, automaticamen-te, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer uma continuidade com um passado apropriado. Esse processo implica funções políticas e sociais da tradição, sua manipulação por determinados gru-pos.148 Esse mobiliário social é constituído de memória indi-vidual, coletiva, grupal, étnica; composto por ideias, formas visuais, sentimentos, gostos, trocas linguísticas, cria teias de conexões e relações.

As noções de cultura, de comunidade, de grupo social, de sentimento de pertencimento, de autoestima, de percepções comuns, de integração, que são experiências compartilhadas localmente, tendem a fortalecer e são fundamentais para a dimensão da tradição.149

O patrimônio cultural ajuda a promover a intensidade da integração cultural, enriquece a memória, reforça a au-to-estima e a apropriação da herança cultural por comuni-

147 HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

148 LUCENA, C. T. Artes de lembrar e de inventar: (re)lembranças de migrantes. Belo Horizonte: Arte e Ciência, 1999.

149 Um exemplo desse processo é o Monumento ao Carreteiro da localidade de Otávio Rocha, município de Flores da Cunha no Rio Grande do Sul. A carreta na região colonial do Rio Grande do Sul foi um instrumento que propiciou a chegada dos imigrantes a essa região; auxiliou, por mais de meio século, na mobilidade dos produtos; ligou espaços, pessoas, mercadorias, inovações; constituiu profissões (carreteiro, madeireiro, muladeiro, ferreiro, seleiro, mar-ceneiro, carpinteiro, dono de casas de pasto, comerciantes, dentre inúmeras outras).

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dades ameaçadas pelo esquecimento.150 Análises históricas demonstram que há uma tendência muito grande de a memó-ria histórica tradicional referendar o patrimônio consolida-do, de difundir seu pertencimento coletivo e social, bem como representado a todos indistintamente e apresentado como inquestionável. Em geral, existe muito pouco envolvimento de grande parte das pessoas na construção dos significados e objetos patrimoniais. Daí também sua grande negligência/esquecimento, desconhecimento e abertura de caminho para a tirania do saber histórico e/ou de alguns especialistas.151

Percebe-se, pela revisão de literatura feita, que os aspec-tos mais dinâmicos na preservação patrimonial são a família e suas genealogias (em geral de imigrantes e os que enrique-ceram), de instituições (empresas), dos caminhos, das praças e jardins, das antigas fábricas, estações ferroviárias desati-vadas, das festas e comemorações, dos prédios e monumentos (castelos, igrejas, obras de arte como representação da nobre-za, do religioso e do estético...). Acreditamos que sejam todas tentativas de representar o passado, de fornecer pistas, indí-cios, rastros, metáforas ou não de uma temporalidade funcio-nal ou não ao presente. As condições do imagético estendem-se para além da materialidade; são fenomenológicas, sociais, históricas, culturais, políticas, etc. Daí o fato de historiadores terem presente a ideia de crítica das fontes (pensar nas fotos, nos dispositivos hoje geradores de evidência. A fotografia é um instante congelado da realidade?).

150 Não obstante, a carreta pode significar, para alguns, possibilidade e facilidade de extração de sobretrabalho do colono, para outros, manifesta labuta, sacrifício, dominação. Os significados da memória, assim como do esquecimento, refletem fatores biológicos, sociais, objetais e imateriais profundamente imbricados. Uma análise sobre o significado simbólico e material da carreta em meio aos imigrantes italianos ver nosso livro, Colonos, carreteiros e comerciantes. Porto Alegre: EST, 2001.

151 Ver LUCENA, C. T. Artes de lembrar e de inventar: (re)lembranças de mi-grantes. Belo Horizonte: Arte e Ciência, 1999.

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Na análise de Le Goff, de Nora e de outros, imagens não falam e, sim, mostram, materializam e simbolizam; dão corpo, forma e cor à imaginação; podem ser manifestação in-terior composta de representações e signos, manipuladas, en-quadradas, pensadas, de modo que uma análise com exagero de objetivação pode não dar conta de seus significados.

Nora observa que a memória coletiva, como expressão do que resta de vividos de grupos ou do que os grupos fazem do passado, pode opor-se à memória histórica. Diz o autor que a história, nos últimos tempos, escreve muito não sobre o que restou da memória coletiva, mas sobre as memórias coleti-vas, renunciando a uma temporalidade linear e adentrando em tempos vividos radicados no social e no coletivo (linguís-tico, demográfico, econômico, cultural...). A história move-se e analisa os lugares de memória; lugares topográficos, como arquivos, bibliotecas e museus; lugares monumentais, como os cemitérios ou a arquitetura; lugares simbólicos, como as comemorações, as peregrinações, os aniversários; os lugares funcionais como os manuais, as autobiografias... bem como os lugares e os atores criadores e dominadores da memória coletiva, os diversos usos feitos da memória.152

Não obstante, esse mobiliário social, segundo Le Goff, continua sendo um reservatório móvel da história, um dos elementos mais importantes da sociedade em desenvolvimen-to e desenvolvidas, das classes dominantes e dominadas, to-das em luta pelo poder ou pela sobrevivência.

Falando em tradição como memória coletiva, Leroi-Gou-rhan diz que é indispensável à espécie humana, é fundamen-tal para sua reprodução, para o que se convencionou chamar “identidade individual e coletiva”; é um instrumento de poder, poder pelo domínio da lembrança, da tradição, da sua própria

152 Ver revista Ciência & Letras, vários autores.

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manipulação, de retorno ao passado para servir o presente e o futuro.153

Temos claro que o mobiliário social é uma construção, está em constante luta pelo reconhecimento (campo de for-ças), representação social, ligação com a burocracia pública, identificação grupal com tendência generalizante, reprodu-ção, conservação, esquecimento...

Essa é a dialética social e histórica dessa construção. A análise da relação entre memória, tempo e espaço, como com-plemento dessa, poderá nos auxiliar na compreensão do tema patrimônio.

153 NORA, P. Mémoire collective. In: LE GOFF, J. (a cura di). La nouvelle histoire. Paris: Retz, 1978. p. 399.

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CAPÍtULO 8

tempo, espaço e experiência da memória

A memória é a síntese fundamental do tempo que constitui o ser do passado, o que faz passar o presente.

Deleuze

De certa maneira, já vimos que, para Nora, a crise da memória manifesta a desconexão do presente em relação ao passado. O autor fala em “progressiva decadência em um pas-sado irrevogavelmente morto”, uma desconexão “daquilo que o vivido ainda se radicava no calor da tradição, no silêncio dos costumes e na repetição do passado”. Para o autor, há uma “onda subterrânea de historicidade”, ou seja, o que se vê da memória é a sua “fuga no fogo da história”.154

Não obstante, acreditamos que a memória seja o espaço no qual se produz uma síntese entre o cotidiano e a experi-ência vivida. Sem acesso aos materiais de memória, faltará a possibilidade de autorreflexão por meio da qual tomam forma as escolhas de comportamento. Já vimos que o cotidiano é o espaço por excelência dos materiais de memória.155 Memória e ação estão estritamente interligados, uma não pode existir sem a outra. A relação entre memória e ação permite-nos di-zer que o tempo da memória não é só o passado. A projeção ao passado baseia-se nos critérios de leitura a partir do que se

154 LEROI-GOURHAN, A. op., cit., p. 269.155 NORA, P. Entre mémoire et histoire. In:_______ (a cura di). Les lieux de

Mémoire, 1991. v. I, p. XVII-XLII.

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é e do que se está fazendo no presente, com base também no que se entende ser ou fazer no futuro.

Bachelard já nos dizia que,

[...] quando queremos narrar o nosso passado [...], a nossa história pessoal é aquela que, conscientemente, queremos dar-lhe duração, uma continuidade através da razão, não através da duração. Assim, a nossa experiência da nossa própria vida passada é apoiada sobre atos racionais em tempo recorrente.156

Os atos racionais de que fala Bachelard nada mais são do que a significação identitária de fatos aos quais a recordação se remete e seleciona. Esses juízos de fatos representam os parâmetros de uma racionalização ex post, os quais produzem deformações e seleções das recordações no decorrer do tempo e respondem às exigências de estabelecimento da continuidade da vida, uma conexão de “atos de vida” em uma linha contínua e coerente com um projeto de futuro social e pessoal.157

É desse modo que é interessante acentuar e diferenciar a temporalidade da memória e a temporalidade que entra na memória:

Seja para os indivíduos, seja para os grupos sociais, a história (individual ou coletiva) toma o caminho dos materiais da memória através do esforço de reconstruir uma duração da experiência densa de significados, os quais são eliminados os interventos mortos, os rotineiros.158

Nessa dimensão da “duração da experiência”, tempo e espaço são carregados de valores, de símbolos socialmente definidos, disseminados pelos grupos dos quais os indivíduos participam. A dimensão do tempo como processo social cons-titui-se numa referência indispensável para normatizar as formas de memória de grupos e para o agir humano em geral.

156 RAMPAZI, M. Tempo e spazio della memória. In: ________; BELLONI, M. C. Tempo, spazio, attore sociale. Milano: Franco Angeli, 1999.

157 BACHELARD, G. La dialectique de la durée. Paris: PUF, 1950. p. 34.158 Ver LUCENA, C. T., op. cit.

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Segundo Halbwachs, nosso tempo é derivado do perten-cimento aos grupos, e esse envolvimento reforça o sentimento de co-participação. O indivíduo isolado teria dificuldade de mensurar e de ter a consciência do tempo; poderia, inclusive, ignorar a passagem desse. O indivíduo necessita de referên-cias, de representações sociais do tempo, de testemunhos, de discurso coletivo que o sustente, memórias e experiências de outros, de influência social, de narrações, de símbolos compre-ensíveis e códigos de percepção comum para poder se guiar no tempo e no espaço e para constituir categorias comuns que consentem conhecer e comunicar tempos passados, recorda-ções singulares e formas grupais de memória dessa.

Tempo e interesse grupal pelas formas desse estão em es-treita correlação. Esquecer ou lembrar tempos passados, segundo Halbwachs, depende do interesse e da resposta à ocupação dos grupos. Quando há uma “vibração de consciência”, uma “comu-nhão afetiva”, uma congruência com os valores e as perspectivas cognitivas, é sempre possível constituir experiência e reproduzi-la grupalmente. Diz o autor que

[...] os quadros sociais da memória não são simples formas vazias, nas quais as recordações, vindas de fora, se inserem, mas os quadros são, ao contrário, os instrumentos dos quais a memória coletiva se serve para recompor uma imagem do passado que em cada época está em acordo com os pensamentos dominantes da sociedade.159

Memória e identidade

Diz Ferrarotti que, pelo acúmulo das lembranças, a me-mória constrói a pessoa como conjunto de ideias e valores com tendência de coerência, ou seja, como a “personalidade da pes-soa”. A identidade não é dada de uma vez por todas; não é, nun-

159 BACHELARD, G., op. cit., p. 243.

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ca, uma aquisição permanente, assim como não é a memória um bem frágil e precário. A identidade se faz pouco a pouco, com base na experiência vivida, rememorada, retida anterior-mente. Nesse sentido, a memória é o componente essencial para a identidade do indivíduo e sua integração social. Para o autor, a memória é dinâmica por excelência, possui funções de conservar, recriar, garantir futuro, selecionar, transformar, reclamar, evocar, ocultar, porém é também uma faculdade de esquecer.160

A identidade altera-se com a continuidade das transfor-mações, bem como as produz. Blondel afirma que, no entre-cruzamento entre memória e identidade,

[...] num certo sentido, a memória está na origem da identidade, mas, no fundo, é a identidade que está na origem da memória. Nós não somos a soma das nossas recordações, mas aquilo que somos determina o conjunto das nossas recordações.161

Na relação entre memória e identidade estão presentes as noções de construção, de seleção, de registração, de sig-nificado, de criação e de consciência subjetiva. A memória é constituída por uma dimensão dinâmica, um esforço de signi-ficação, não só de seleção, mas de reinterpretação sucessiva do passado. A imagem que o indivíduo tem de si mesmo é, portanto, o produto da sua experiência social e das formas de mediação simbólica dessa experiência.

A memória, diz Jedlowski, é um conjunto móvel de pro-cessos e de representações que produzem autopercepções. Nessa mobilidade de processos, seleções de elementos, “fil-tros culturais” mutantes em relação ao presente, múltiplas diferenças e identidades coletivas,162 produzem-se diversos pertencimentos e diversas relações com a memória.

160 HALBWACHS, M. Les cadres... p. XVIII.161 FERRAROTTI, F. L´Italia tra storia e memoria. Roma: Donzelli, 1997.162 BLONDEL, C. apud CARRERA, L. Il futuro della memoria. Milano: Franco

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“A lembrança do indivíduo se forma no contato social com outros mais ou menos significativos no âmbito das rela-ções formais ou informais por meio de mediações comunicati-vas linguísticas e culturais diversas.”163

O tempo na memória

Quem tem experiência sabe aconselhar, narrar e escutar.

Benjamin

A experiência do tempo é a que dá o caráter temporal aos eventos e aos fatos; daí a importância do uso oral das fontes no sentido de buscar decifrar a experiência do tempo vivido em relação ao objeto descrito pelo sujeito narrante. Segun-do Bachelard, é dessa experiência do tempo que é possível definir a sua duração ou não; a permanência, a sucessão e a simultaneidade são modos e relações de tempo. Por consequ-ência, do mesmo modo que não podemos mais definir o tempo pela sucessão, não podemos definir o espaço pela coexistência; será necessário que cada um, espaço e tempo, encontre de-terminações inteiramente novas. Tudo o que se move e muda está no tempo, mas o tempo, ele mesmo, não muda, não se move, muito menos é eterno; ele é a forma de tudo o que muda e se move, mas é uma forma imutável e imóvel.164

O tempo não é uma realidade objetiva, mas uma objeti-vação convencionalmente construída sobre a qual se rege, em grande parte, a vida das formas culturais e dos fatos históricos. O tempo não é algo externo ao homem; é sempre reprodução convencional, em formas diversas, nas suas várias dimensões

Angeli, 2001. p. 14.163 JEDLOWSKI, P. Storie comuni.164 CARRERA, L. Il futuro della memoria... p. 29.

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e épocas. Cada cultura atribui ao tempo determinados valo-res e tem constituído uma específica experiência do tempo. Segundo Mongardini, foi só com a modernidade que o tempo adquiriu uma importância central nos valores culturais.165

Na análise de Luhmann e de Simmel, em correlação com o dinheiro, o tempo é um dos maiores elementos reguladores da sociedade moderna.166 A estrutura mercantil urbana, técnica e de trabalho produz a excelência do tempo quantitativo e a redução insignificante do tempo como experiência.167 A seg-mentação do tempo na sociedade moderna produz, também, significações, percepções, ritmos, conflitos, diferenciação de tempos sociais, individuais, subjetivos, formais e estruturais/abstratos, tanto no âmbito cotidiano,168 da cultura, quanto no da história.

As exigências de racionalização que, com a industrialização, se consolidam nos diversos setores da sociedade moderna, as novas exigências de previsibilidade, de organização e de programação de atividades sempre mais complexas e entrecruzadas, demandam progressivamente uma estandartização da medida do tempo sobre a base cada vez mais rígida em relação àquelas fornecidas pelos calendários.169

Não é de hoje que o nosso mundo foi invadido pelas ima-gens técnicas e que o real mudou de lugar ou foi substituí-do por outra coisa, seja pelos próprios signos que deveriam representá-lo e que, então, se impõem, ou melhor, se apre-sentam em seu lugar, seja pela proliferação incontrolável da imagerie ou, ainda, pelos jogos de linguagem regulados pela cibernética.170 Segundo Benjamin, como já vimos, os meios

165 DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 46.166 MONGARDINI, C. Il problema del tempo nella società contemporanea. In:

BELLONI, C.; RAMPAZI, M., op. cit., p. 35.167 LUHMANN apud MONGARDINI, C., op. cit., p. 35.168 JEDLOWSKI, P. Il tempo dell’esperienza. Milano: Franco Angeli, 1986.169 GROSSI, W. Les temps de la vie quotidienne. Paris: Mouton, 1974.170 JEDLOWSKI, P. Tempo del quotidiano, tempo dell’esperienza. In: BELLO-

NI, C.; RAMPAZI, M., op. cit., p. 138.

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técnicos de nossa época promovem a caça ao esquecimento; há uma acumulação e uma circulação incontrolável e instantâ-nea das imagens (que leva à sua morte precoce, seu desgaste imediato, sua existência sem duração), atingindo rapidamen-te a sua saturação, a inércia, a entropia de sentido. Saturado o esquecimento, diminuída sua potência, a memória reduz-se a uma má repetição, incapaz de gerar diferença. Guardamos tudo para que possamos esquecer tudo instantânea e absolu-tamente, sem resto ou vestígio.171

O passado não se conserva inteiro no decorrer do tempo nem com a totalidade da consciência do espaço, como analisou Bergson, mas se constrói e se reconstrói a partir de faltas, de ausências. Esse processo nos faz admitir que o gesto de se debruçar sobre o que já se foi implica um gesto de edificar o que ainda não é, o que virá a ser.172 Por isso, a possibilidade de dimensionar cronologias múltiplas e entrecruzadas.

Modernidade e tradição, como já dissemos, na prática, não são totalmente excludentes; uma não é resíduo da exis-tência da outra no decorrer do tempo, ou mera cicatriz mar-cada num instante qualquer da duração ou da dinâmica da ruptura ou do fazer seu aparecimento.173 Segundo Guimarães, por sua própria natureza, à memória caberia a tarefa de rea-lizar um retorno àquilo que cada vez se distancia mais e mais. Porém, exausta de proceder a repetição, sem forças para su-portar o que lhe é destinado, incapaz de suportar o fracasso fundador de sua busca, a memória procura fixar-se em algu-ma cicatriz, corte, descontinuidade ilusória, capaz de demar-car, ainda que fugazmente, o recuo incessante da origem.174

171 GUIMARÃES, C. Imagens da memória: entre o legível e o invisível. Belo Horizonte: Ed. UFGM, 1997. p. 46.

172 BENJAMIN, W. Il Narratore...173 CASTELLO BRANCO apud GUIMARÃES, op. cit.174 FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

p. 347.

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Na análise do autor, a memória é constituída por uma textura de imagens. Retratos, inscrições, cenas, composições, enfim, signos ou conjuntos de signos, que compõem uma imagem ou conjunto de imagens, são os suportes nos quais a memória se inscreve, formando múltiplas formas.

É nesse sentido que há na lembrança rememorações e va-zios. A memória é marcada pela descontinuidade dos registros de tempo e pela heterogeneidade dos níveis que a compõem. É nessa dimensão do tempo no espaço e o espaço cultural no tempo da memória que muitas tradições, como já vimos, são, ou podem ser, inventadas e/ou redefinidas. Aliás, como diz Lu-cena, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. Contudo, na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições “inven-tadas” caracterizam-se por estabelecer com ele uma continui-dade bastante artificial. Isso porque toda a tradição inventa-da, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal.175

Os tempos e os ritmos sociais, biológicos, individuais e coletivos ganham, na vida cotidiana, significados de duração, de dados, de organizadores das atividades e relações, os quais os indivíduos interiorizam como pré-condições não só para a ação, mas para o próprio constituir-se como indivíduo situado socialmente, como habitus social, como condição de pertencer a uma dada sociedade.176 Porém, o tempo e o espaço da me-mória são uma tentativa de racionalização ordenada ou não, subjetiva e objetivamente, com referência aos significados atribuídos à lembrança.

Rampazi define esse tempo significativo como um tem-po especializado da memória ao qual se busca dar sentido e coerência. Desse modo, o passado não é um tempo estanque,

175 GUIMARÃES, C., op. cit., p. 21-37.176 LUCENA, op. cit., p. 9, 10-21.

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109Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

mas um campo de possibilidade auferida ao presente sobre o passado.

Nessa fase de reflexão, a distância temporal entre eventos se anula: passado e futuro vêm relacionados ao presente. A memória perde profundidade temporal, torna-se uma espécie de contexto espacial, o território da experiência que está sedimentada não permite responder com eficácia os problemas que as reflexões atuais colocam.177

Halbwachs deixa claro em Les cadres... que o que é im-portante preservar do passado está conexo aos valores simbó-licos que o presente projeta para o futuro dos elementos vivi-dos significativos para o indivíduo como expressão de grupos. Lynch diz que “nós preservamos os sinais presentes do pas-sado e controlamos o presente em função das nossas imagens do futuro”.178

Memória e experiência

O invisível pode tornar-se visível por meio do discurso.

Bachelard

O conceito de experiência é complexo:179 pode estar en-volto na ideia do que se vive (só em parte consciente), no processo por meio do qual o sujeito se apropria do vivido e o sintetiza, no exercício controlado, repetitivo, subjetivamente depurado, na via de acesso ou ter um dote de sabedoria, no exercício e na aquisição da capacidade de elaboração, no vivi-do, particularmente significativo e carregado de expectativas de competência,

177 ELIAS, N. Saggio sul tempo. Bologna: Il Mulino, 1986.178 RAMPAZI, M. Tempo e spazio della memoria. In: _______; BELLONI, C. op.

cit., p. 247.179 LYNCH, K. apud RAMPAZZI, op. cit., p. 247.

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[...] que, em qualquer modo, não entra nas nossas expectativas de rotinas, e as modifica, seja para compreender o processo com o qual, na prática repetida, determinadas competências e expectativas se consolidam e dão lugar a uma capacidade comprovada de responder às circunstâncias de modo apropriado”.180

Fala-se em experiência como passado presente, no qual eventos podem ser recordados; incorpora-se algo do passado no presente, como faculdade de conter os diversos vividos numa continuidade dotada de sentido.

Benjamin fala que a modernidade181 apresenta uma grande característica atrofiadora da experiência. A experiên-cia é um fato ligado às tradições, tanto na vida privada quan-to na coletiva: “Essa não consiste tanto de singulares eventos exatamente fixados na lembrança, mas de dados acumulados, frequentemente inconscientes, que se apresentam na memó-ria.”182 Na compreensão do autor, a realidade da época moder-na parece ser caracterizada pela ideia de que na vida cotidia-na se tem menos experiência de alguma coisa. Somos cada vez mais informados, porém ser informado não é sinônimo de haver experiência.183 Benjamin fala da experiência como algo que é possível ter, não como algo possuído, mas como qua-

180 Sabedores de sua complexidade, não vamos aqui nos alongar muito nem tentar fazer uma análise hermenêutica dos significados variados de experiência. Nem para isso teríamos condições. Aqui a indicamos apenas no sentido de relacionar com o vivido histórico, seja pessoal, seja grupal/coletivo e que fornece maté-ria-prima para os relatos significativos de memória. Não a entendemos em seu sentido pragmático, mas, sim, em seu universo simbólico e significativo de vivido que quer e adota estratégias de reprodução num cenário de limites de lembrança. Segundo Gadamer, em Verità e metodo, (p. 68), “a verdade das experiências contém sempre uma referência a novas experiências. Por isso, aquilo que chamamos de especialista não é só o que conseguiu ser através das experiências feitas, mas quem está ainda aberto a outras experiências”.

181 JEDLOWSKI, P. Il sapere dell’esperienza... p. 82.182 O cenário da modernidade começa com o final do século XVIII quando do

surgimento da grande indústria, da mercadoria, do novo e sempre idêntico. Benjamin diz que nenhum período histórico conheceu a reprodução do idêntico como o promovido pela indústria. A alma da modernidade é a indústria; o mercado é seu órgão sensorial mais importante; a mercadoria é seu ambiente construído.

183 BENJAMIN, W. Di alcuni... p. 88.

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lidade humana. A noção de experiência em Benjamin e em Adorno está intimamente relacionada com a de memória. A experiência é a continuidade da consciência, na qual perdura o que não está mais presente, diz Adorno.

A experiência está intimamente em conexão com a memó-ria. Na noção comum de experiência estão presentes elemen-tos como repetição, vivido, passado, relação entre ambiente objetivo e consciência individual, diferença em relação ao que se sabe. Adorno dizia que a experiência é a continuidade da consciência, na qual perdura o que não está mais presente, na qual a repetição e a associação criam no indivíduo a tra-dição. Para Benjamin, na ideia de experiência está presente a noção de tradição, dados cumulativos que confluem na me-mória. Tanto Adorno quanto Benjamin analisam o conceito de experiência num cenário histórico de profunda redução do potencial da experiência, da narração e de autoconsciência.

Memória, esquecimento e recordação convivem, (re)presen-tam-se, pois “a função da memória [...] é a proteção as impressões. A recordação tende a dissolvê-las. A memória é essencialmente conservadora, a recordação é destrutiva”.184

A ausência de ritos de tradição, de simbologias e dos va-lores materiais e simbólicos dos cultos conduz a que se per-cam os materiais da memória; provoca, concomitantemente, a degradação dessa, o abandono pelos indivíduos dos conteúdos de sua própria memória. As modificações no ambiente obje-tivo são registradas na experiência na medida em que vêm a constituir o fundo histórico mutável sobre a qual se sedimen-tam. Esse processo problematiza a memória e introduz modi-

184 No livro Di alcuni..., Benjamin desenvolve as análises sobre a experiência na modernidade. Esse livro é um de seus últimos escritos, fruto de sua passagem por Paris; contém inúmeras correspondências trocadas com Adorno nas quais desenvolve e contextualiza o cenário e os processos consequentes da atrofia da experiência na modernidade, aliás esse tema é o foco central de grande parte de sua obra.

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ficações no aparato sensitivo do indivíduo, um fechamento da memória profunda ao acesso aos objetos do vivido cotidiano familiar.

A vista, o ouvido, o tato, são os sentidos que o nascimento da metrópole modifica em modo mais forte. Mas também o olfato e o gosto devem adequar-se a um modo perceptivo modificado. Sobre-tudo, aquilo que permanece imune de transformação radical é a sensibilidade interna do indivíduo, relativa ao conjunto do próprio corpo. Todas essas modificações são sintetizadas a uma geral con-sideração das modificações nos ritmos que a vida humana é vivida nas cidades.185

Na análise benjaminiana de experiência está presen-te uma dialética de proximidade e de distância. O autor diz que, na sociedade mercantil, quanto maior a vizinhança e a aproximação com os objetos, maior e mais profundo será seu distanciamento. O papel dos jornais tem uma profunda impli-cação no processo, no horizonte da “reprodutibilidade técnica” e de mundo da superfície da experiência midiatizada.

Como já dissemos, a vida cotidiana fornece os materiais de cada experiência, porém há sempre uma dialética entre cotidianidade e experiência. Segundo Jedlowski, quando há cotidianidade, não há experiência. Não é possível haver “experiência” de tudo.186 É por isso que a experiência, para Benjamin, é um passado em síntese, tornado disponível no presente como tradição; não um passado como manifestação individual, mas inserido numa memória coletiva, numa cul-tura que se manifesta por uma linguagem e por símbolos co-dificados, ritualizados pela tradição.187 É esse o processo que se esvai com a modernidade e seus valores econômicos, ideoló-gicos, políticos e culturais do capitalismo, segundo Benjamin.

185 BENJAMIN, W. L’opera d’arte nell’epoca della sua reproducibilità tecnica. Torino: Einaudi, 1966.

186 BENJAMIN apud JEDLOWSKI, P. Il tempo dell’esperienza. Milano: Franco Angeli, 1986. p. 108.

187 JEDLOSKI.P. Il tempo...

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O moderno tornou-se uma perpétua transformação, um “sempre novo”, uma aceleração do tempo sem precedente. Na análise crítica de Benjamin, com isso, concretiza-se uma abre-viação dos espaços da experiência; cada objeto da experiência se torna fugidio, volátil, transitório; há uma impossibilidade de sedimentar experiência, de encontrar sentidos, de consti-tuir memória coletiva, de dar conteúdo cultural aos fatos, de se apropriar individualmente de quadros coletivos vividos e de incorporá-los num horizonte de sentido.

A modernidade transformou o tempo num recurso escas-so. A dimensão temporal da sociedade industrial moderna é caracterizada fortemente pela subsunção do tempo ao universo mercantil. A reificação do tempo, como duração abstrata, inde-pendentemente de seu conteúdo, constitui a base sobre a qual se apoiam os dois grandes processos que acompanham o nascimen-to e o desenvolvimento da sociedade capitalista: a mercantiliza-ção do trabalho e do seu produto. Nesse sentido, desenvolvem-se o produtivismo, que domina o agir da sociedade industrial moderna, a subsunção do tempo ao universo dos recursos econômicos, a quantificação progressiva e a maximização da produtividade. A racionalidade econômica submete e funcio-naliza o agir social à sua lógica: “A reificação da dimensão temporal provoca assim a tendencial derrota de todos aqueles empenhos do tempo que não possam ser considerados produ-tivos nos termos da racionalidade econômica.”188 Esse cenário de economia do tempo, do trabalho e do mercado produz o que Benjamin e, posteriormente, Lefebvre chamaram de econo-mização da vida, ou seja, uma representação do tempo como entidade cuja existência aparece como independente da expe-riência que dela se tem.

188 JEDCOSKI, op cit.

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A análise de cunho marxista é fértil no sentido de clare-ar as questões de ordem temporal presentes no capitalismo, ou seja, este pertence à ordem econômica e cada economia se resolve com a economia do tempo. Nessa lógica econômica bus-ca-se produzir uma maior quantidade de tempo, pois cada vez lhe é mais necessário e cada vez lhe falta mais. O avanço tec-nológico, em tese, reduziria o tempo necessário para o desen-volvimento e a produção de algo, bem como para a mobilidade física, da informação e da mercadoria. No entanto, esse é o paradoxo: quanto mais se poupa, mais se precisa; aliás, pou-pa-se, reduz-se o consumo porque justamente mais se precisa. Lefebvre diz que vivemos numa sociedade produtora do tem-po,189 do que a velocidade é uma manifestação. Criaram-se e desenvolveram-se um imaginário e uma representação social de que a quantidade de tempo de que dispomos não é suficien-te e é inadequada para dar conta das exigências cotidianas.

A disponibilidade de tempo passa a ser sinal e sintoma de desqualificação social: quem é ou quer ser alguma coisa na vida não tem tempo; só têm tempo as pessoas não importan-tes, os membros de estratos marginais. De qualquer modo, sua homogeneidade simbólica atinge a todos, ganha um valor formal e orientador da vida comum dos indivíduos que partici-pam da subsunção e da reificação do tempo à forma mercantil de cada aspecto da vida social. “Os dispositivos cotidianamen-te experimentados para poupar tempo parecem colocar em evidência um mecanismo de contrafinalidade: mais se ganha tempo, mais esse se reduz. A racionalização e a economização da vida que legitima o tempo têm estragado a cronocracia e

189 DUPUY, J. P. Valeur sociale et encombrement du temps. Paris: CNRS, 1980. p. 228; ver, também, sobre isso PAOLUCCI, G. Una figura della temporalità moderna: la scarsità di tempo. In: BELLONI, C.; RAMPAZZI, M., op. cit.

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115Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

produzido o seu contrário: a colonização do tempo provoca a morte do tempo.”190

A modificação no ambiente, no tempo social (sua acelera-ção), a intensa presença da técnica em cada aspecto da vida cotidiana promovem uma ruptura na cultura subjetiva e um crescente desenvolvimento da cultura objetiva, como analisou Simmel (outro moderno e grande crítico da forma moderna de gerir a vida cotidiana). A cultura objetiva, para Simmel, é aquela objetivada nos produtos humanos, nas realizações técnicas; é aquela feita coisa. A cultura subjetiva depende desta última pela simples razão de que o homem se torna cul-to quando se apropria pessoalmente dos conteúdos da outra, como patrimônio de um indivíduo de algo tornado cultural-mente coisa.191

O aventureiro é a figura emblemática da análise da mo-dernidade em Simmel, a qual contraria a noção de experiência pela fragmentação, descontinuidade, diferenciação, intelectu-alização e racionalidade técnica, do dinheiro e do progresso e, cada vez menos, pelo sentimento através do corpo (mãos), pelas experiências vividas (lembrar da significativa figura do blasé tão bem desenvolvida pelo autor!), da crítica à unila-teralidade do intelecto e da racionalidade da técnica. Nesse horizonte, a experiência se retrai e passa a ter uma função e uma realidade/permanência crítica.

É nessa perspectiva que cabe à experiência crítica pro-mover a elaboração de sentido; resta sempre algo de sentido ainda que num cenário no qual se reduziu a capacidade de elaborar o conjunto dos próprios vividos e de incorporá-los a um desenho coerente com o tempo, com a história e com as necessidades presentes e futuras.

190 LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne. Paris: L´Arche, 1981. v. III.191 PAOLUCCI, G. Una figura della temporalità moderna: la scarsità di tempo.

In: BELLONI, C.; RAMPAZI, M., op. cit., p. 169.

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Benjamin diz que a experiência comporta três momen-tos distintos, mas que se complementam: a familiaridade (o hábito, a frequência), a profundidade (essa, segundo o autor, foi afetada pela cultura urbana e mercantil, que produziu a facilidade do esquecimento) e a autoconsciência, a qual pro-duz a biografia.192

Na análise de Jedlowski, a vida cotidiana é a que fornece os materiais para a experiência coletiva e individual, porém ambas se correlacionam numa perspectiva dialética. O tempo do cotidiano e o tempo da experiência se conjugam na conside-ração de um particular tempo vivido, o tempo da memória.193

Se localizarmos Thompson na discussão sobe experiência e memória, veremos que o autor lhe atribui grande impor-tância para o campo da interpretação histórica. Thompson analisa a plebe inglesa do século XVIII, utilizando a noção de cultura como foco de análise e como base para o estudo das lutas sociais. A sua concepção de cultura está correla-cionada com a ideia de experiência, com formas de ação da “experiência humana”. Nesse horizonte, a dimensão moral do campesinato inglês do final do século XVIII é expressa como densidade simbólica e de resistência constituída pelos costu-mes, pelo parentesco, pelos impulsos milenaristas. Esses ele-mentos, na análise do autor, forneciam as bases para as lutas e rebeldias, para a valorização da cultura tradicional, para a contraposição à expropriação de direitos e da ruptura dos valores tradicionais do trabalho e do descanso. Desse modo, o autor descreve a dinâmica da vida social com suas normas, valores, tabus, crenças e obrigações, movida pela experiência dos homens, sujeitos e construtores do futuro.194

192 SIMMEL apud Jedlowski, 1986, op. cit., p. 94.193 JEDLOWSKI, P. Tempo del quotidiano, tempo dell’esperienza. In: BELLONI,

C.; RAMPAZI, M. op. cit.; ver, também, BRAUDEL, F. Le strutture del quoti-diano. Torino: Einaudi, 1982.

194 BENJAMIN, W. Il narratore. Torino: Einaudi, 1976.

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117Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

Para Thompson, os homens constroem a história e as es-truturas. Os indivíduos são portadores de experiências, fruto de sua situação passada, presente e intencional, resultante, também, de suas relações de produção.

As experiências, no horizonte cultural, fornecem as bases para o trabalho da consciência social. A experiência é, para Thompson, um vivido experimentado como “sentimento”, como constituinte da vida cotidiana, como constitutiva de um con-junto de valores implícitos e incorporados na cultura. Thomp-son reconstitui a noção de subjetividade da história, recolocan-do a questão da tradição, do ser social e da consciência social, do papel ativo e da racionalidade dos sujeitos que atuam na história, da capacidade de tornar inteligíveis aspectos obscuros do passado, como a economia moral dos pobres, a racionalidade de suas práticas lúdicas, de reconstituição das tradições popu-lares do século XVIII, as quais constituem matéria-prima e/ou substrato para a conformação de sujeito das classes.

A noção de sentido é um conjunto de práticas e de valo-res que sofreram influência de repressão econômica e política. Esse processo é visto como elemento ativo, ou seja, sentimen-tos e valores que assumem um caráter político de combate às novas racionalidades econômicas que rearticulam o trabalho, a comida, a caça, a propriedade, os rituais tradicionais de cul-tura, do direito consuetudinário etc.

No tocante à memória, na interpretação de Thompson, esta serve de objeto da história, pois a reconstituição de uma racionalidade interna aos grupos reconhece a existência de uma “tradição clandestina”, de uma “experiência histórica”, de uma “consciência dos costumes”, como espaços de lutas, um campo de trocas, um marco de “cultura tradicional rebel-de”. Thompson, na análise do campo da memória e da sua ligação com a história, fornece perspectivas de recuperação do imperativo da memória, o qual possibilita resgatar os sujeitos

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que viveram, fizeram e sofreram a história; permite recupe-rar uma variedade de experiências que transcendem o hori-zonte das classes, como é o caso do gênero, das identidades, da cultura, dos modos de vista, da cotidianidade, etc.195

Memória, tempo e poder

Pelo fato de os processos de memória se constituírem numa seleção, numa construção, abre-se um grande espaço para as estratégias de poder, para a construção de uma iden-tidade útil ao poder e à legitimação desse. A relação entre memória e poder coloca em evidência a natureza da “constru-ção” da memória, bem como a questão dos limites da própria memória. Esse processo nos diz que poderá haver uma plura-lidade de memória em correspondência à multiplicidade dos grupos que se constituem. Com isso,

[...] faz emergir que a memória não é só a sede dos processos de seleção dos eventos do passado úteis a consolidação da identidade adotada e funcional ao poder do momento, mas também o lugar no qual permanecem os traços dos eventos que não foram selecionados da memória ao poder.196

Assim como a memória, pela sua dimensão de origem, de proveniência histórica passada, pode servir para produzir, justificar, legitimar e reproduzir o poder, pode também servir para destituí-lo; pode servir para recuperar significados que possam colocar em xeque a estrutura do poder atual, desligiti-mar ações, crenças e tradições que o significam. Regimes dita-toriais, monarquias e dinastias dos tempos atuais são expres-são dessa tentativa de fazer entender, em nome da memória,

195 SORGENTINI, H. Reflexión sobre la memória y autorreflexión de la historia. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, 2003. p. 103-128.

196 Ver THOMPSON, E, P. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; ver, também, A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

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119Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

que a história parou, que a origem divina, dinástica, ou seja o que for, consolida-a pela passagem do tempo.197 Os rituais de memória são importantes para dificultar a possibilidade dialética entre recordação e esquecimento, entre o que precisa ser mostrado e lembrado (funcional ao poder) e o que poderia lhe causar crise interna, o que lhe dá legitimidade hoje e lhe permite prospectivar (desejo de ser recordado no futuro).

É nesse sentido que a memória pode permitir a articu-lação entre alternância, continuidade e descontinuidade, dis-tanciamento e proximidade ao poder no tempo e no espaço. Linearizar o tempo e centralizar o espaço são formas de dar sentido a um presente com referência a um passado; é, como diz Weber, dar legitimidade do passado do tempo. É evidente que não se pode só reduzir a falta de tempo à sua dimensão econômico-quantitativa, como pura calculabilidade. Autores como Sevè referem que a necessidade do tempo pertence à mesma categoria de necessidades que derivam da posição do indivíduo no sistema de relações sociais. Daí entrarem nesse horizonte projetos de vida, finalidades e desejos individuais, a consciência de que o tempo à disposição de cada um é finito, levando a que algumas exigências e aspirações intensifiquem a realização de projetos e programas e escolhas relativas à alocação do tempo.

De qualquer forma, continua a imposição de uma visão utilitarista do tempo, aquilo que Heller chamou de “futuriza-ção do tempo presente”,198 ou seja, de reduzir o presente a um

197 MATERA, V.; FABIETTI, U., op. cit., p. 122.198 O retorno à Itália dos Savóias, sua representação, aceitação e repulsão social

atual na sociedade italiana, é expressão disso, bem como a discussão sobre o fim das dinastias, dos reinados em vários países, principalmente na Inglaterra. As monarquias fixam sua legitimidade no tempo passado, porém os regimes ditatoriais e totalitários temem a memória, buscam suspender a temporalidade, aliam-se ao esquecimento, fundam-se num eterno presente, dando futuro à continuidade. O mundo passa a ser um dado, natural e imutável, elaborado pela visão de mundo, que está e quer permanecer no poder. As comemora-ções, a obsessão pela ritualidade presente são tentativas de frear a passagem do tempo. Para o ditador não há necessidade de passado; passado e futuro

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projetual, a um mero instrumento de realização de um ulte-rior distante, o que acaba impondo também uma aceleração do tempo a um futuro antecipado, a uma instrumentalização do presente em razão de realizações projetadas nos múltiplos domínios do cotidiano, empobrecendo a experiência desse. O tempo considerado como máximo rendimento acaba também por monetizar virtual ou realmente a experiência, por subor-dinar e instrumentalizar o agora em função de um depois, o presente àquilo que deve ser feito. O paradigma do tempo-quantidade, malgrado a desigualdade na sua distribuição e aproveitamento social, adentra para as necessidades subje-tivas, para os desejos da própria experiência cotidiana dos indivíduos. A necessidade do tempo é expressão do desejo de dispor do próprio tempo para viver.

Desse modo, poderá existir, e tendencialmente existe, uma forte correlação do sistema motivacional do indivíduo (os horizontes de expectativas) com a alocação do tempo que a gestão da vida cotidiana impõe, ou seja, a heterogeneidade e a fragmentação do agir, que, num determinado momento, homogeiniza a experiência comum e dificulta a possibilidade do indivíduo de criar uma hierarquia autônoma de decisão e de opção.199 Esse fenômeno tem o poder de anestesiar a ideia mesma de tempo, de sincronizar, espacial e temporalmente, a riqueza do vivido diacrônico, a capacidade de sedimentar a experiência nas conexões de tempo e de memória.

É na vida cotidiana que isso se processa, mas é também nessa que é possível recuperar elementos históricos, proces-suais e de continuidade com o passado; também as formas de subjetividades e intersubjetividades e a razão da existência,

apresentam risco para a ditadura. Desse modo, como diz Jedlowski (1990), a memória tem sempre uma dimensão crítica que pode ser desestabilizante.

199 HELLER, A. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

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121Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

da fantasia,200 a consciência como consciência contínua e não residual. É desse modo que os múltiplos vínculos entre tem-pos e espaços individuais e intersubjetivos parecem permitir a capacidade de salvaguardar aspectos da dimensão da expe-riência e da consciência da mutabilidade, da instabilidade e da contraditoriedade do universo sociocultural. Desse modo, a noção experiência, malgrado seu contexto de redução prag-mática e/ou de limite significativo, carrega consigo a ideia de resposta, de processo ativo, de adequamento ao ambiente, situa-ção determinante do sucesso ou do fracasso na resolução do pro-blema que o ambiente coloca, dos fins que se entende perseguir.

É por isso que insistimos no fato de que a experiência não é um dado, mas um objeto, um produto de uma atividade, um processo ativo que possui sentido e continuidade de escolha: “Não podemos nos esquecer que essa escolha estava implícita no projeto cultural originário da modernidade, no qual a ex-periência, desvinculada dos liames com a tradição, propunha-se como caminho individual de realização e de descoberta de si.”201 A memória oral é esse exercício individual, essa desco-berta de si mesmo, reflexão e exteriorização da experiência, bem como um correlacionar constante entre tempo presente e tempo passado. A seguir, veremos melhor isso e atentaremos para as implicações contextuais, analíticas, metodológicas e de expressão oral.

200 SEVO, L. Marxismo e teoria della personalità. Torino: Einaudi, 1977.201 DURAND diz que a fantasia é uma reserva infinita de eternidade contra o

tempo. Ver, do autor, Les structures antrhopologiques de l´imaginaire. Paris: PUF, 1960

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CAPÍtULO 9

Memória e oralidade: intenções, problemas e expectativas

Quem comanda a narração não é a voz, é o ouvido.

I. Calvino

Adentramos na questão da memória e da oralidade por-que a utilizamos muito para entender aspectos da memória familiar, o papel da família na transmissão da memória e as diferenças percebidas entre gênero e gerações, por entender-mos que a história oral202 fornece oportunidade de reconstruir aspectos de personalidades individuais inscritas na existên-cia coletiva e, também, pelo fato de as fontes orais dizerem respeito à memória e essa ser um fato individual mediado, moldurado, pressionado, influenciado pelas condições do meio.203

Matos diz que explorar as relações entre memória e his-tória é colocar em evidência atores de sua própria identida-de, reconhecer que as lembranças são as artes do indivíduo, que redimensionam as relações entre passado e presente. O passado é também construído segundo as necessidades do presente; por isso, é importante ter presente os usos políticos desse mesmo passado e como ele se expressa.204

202 JEDLOWSKI, 1986, op. cit., p. 162.203 Muitos autores não utilizam mais a expressão “história oral” e, sim, “fonte

oral”, por ser aquela excludente de outro tipo de fazer história. No entanto, devido ao seu uso comum, continua seu emprego, ressalva-se, porém, seu sentido de não exclusividade.

204 MATOS, op. cit., ver também LUCENA, op. cit.

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123Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

Buscar a totalidade

Passerini coloca em ressalva o fato de que não é porque esse campo se voltou mais para os oprimidos, os esquecidos e escondidos, os marginalizados que sua legitimidade se funda. Para a autora, corre-se o risco de tornar uma ideologia po-pulista exaltadora do passado e justificadora da ideologia do presente.

O novo papel que ela introduz na história são discursos, os quais as referências à realidade podem ser múltiplas e devem ser decifra-dos. A história oral não trata só do discurso escolhido, mas tem a ambição de afrontar a linguagem na sua totalidade, não só aquela dos homens ilustres, mas aquela da gente comum, não só as línguas cultas, mas os dialetos, não só a expressão explícita, mas os códigos não-articulados de qualquer um que não tem voz oficial e que essa o impede de falar e de deixar testemunho de sí e da própria vida. 205

Segundo a autora, a história oral não deve se privar de buscar a totalidade: “Não possa fazer menos de atuar em uma reinterpretação política e simbólica do passado, uma retotali-zação da história que a reconheça como autoprodução dotada de um sentido.”206

Sua base históricaMemória e esquecimento tornam-se condições de possibilidades de um para o outro.

Nora

O papel do testemunho como fonte de conhecimento histó-rico, como fonte confiável e autêntica, desde a Antiguidade, sem-pre foi objeto de discussão. Heródoto, por exemplo dizia que o

205 FERREIRA, M. de M. História oral e tempo presente. In: BOMMEIHY, I. E. (Org.). (Re)introduzindo a história oral no Brasil. São Paulo: USP, 1996. p. 16.

206 PASSERINI, L. Storia e soggettività. Firenzi: La Nuova Italia, 1988. p. 33.

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124 João Carlos Tedesco

testemunho se esgotaria na terceira geração, ou seja, em alguém que escutou de alguém que escutou de quem viu. O que não era visto não poderia mais ser relatado. Tucídides, corroborando a ideia, fragilizava e desconfiava da memória, dizendo que seria incapaz de garantir fidelidade do relato à realidade. Para ele, os documentos escritos seriam fundamentais em substituição aos depoimentos orais. Muitos historiadores do Século XIX diziam que a história só seria possível com documentos escritos, o que levou Févre a rebater, com já vimos, a dizer: “quando eles exis-tem”. Isso porque, se não os possuirmos, devemos ser capazes de “fabricar o mel mesmo na ausência das flores habituais”.207

Segundo Passerini, a história oral existiu muito antes, de modo subterrâneo, antes mesmo da invenção do grava-dor, quando de transcrições de memória, de testemunhos, de conversas feitas por historiadores. Em muitos estudos de historiadores, antropólogos e sociólogos sobre a África foram abundantemente utilizados os recursos de fontes e materiais orais, porém sem haver uma maior problematização no cam-po historiográfico e sem a pretensão da mesma de seu direito de cidadania na/como análise histórica.208

Foi a partir de 1960, principalmente na Inglaterra e, posteriormente, nos Estados Unidos,209 que a história e os de-poimentos orais ganharam corpo. As crianças, os loucos, as minorias sociais, raciais, sexuais, oprimidas etc. passaram, a partir daí, a ganhar voz; emergiu o apelo da vivência, do in-divíduo cotidiano, da família, da sexualidade, do nascimento e da morte, que iriam resultar na busca de identidade e na

207 PASSERINI, op. cit., 1988. p. 48.208 FREITAS DUTRA, E, de. Para uma sociologia histórica dos testemunhos:

considerações preliminares. Locus. Revista de História, v. 6, n. 2, Juiz de Fora: EDUFJF, 2000. p. 75-82.

209 PASSERINI, L. (a cura de). Storia orale, vita quotidiana e cultura materiale delle classi subalterne. Torino: Rosenberg e Sellier, 1978. Ver também VAN-SINA, J. La tradizione orale. Roma: Officina, 1977.

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125Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

nostalgia passadista, na moda do biográfico e no retorno às raízes.210

Na análise de Ferreira, uma história bem-feita, sem fon-tes orais, é uma história incompleta. A fonte oral é uma fonte viva, inacabada, parcial. A história que produz é também uma história inacabada. A fonte oral, por ser viva, é parcial; exige confronto com o outro, diferenças e unidade, diálogo, entrevis-tas, processo de aprendizado, conversas, enfim, subjetivida-des, não bem vistas por algumas correntes mais tradicionais do campo da história e de algumas filosofias e metodologias da ciência de base cartesiana e adeptas à ortodoxia. Pensamos que o desafio maior está em saber delimitar a fronteira entre o descrever e o entender. Diversidade, flexibilidade, liberdade são características do uso da história oral; a sua identificação ao pós-moderno se dá pela sua imprevisibilidade, flexibilida-de e elasticidade metodológica e analítica.

Pressupostos teóricos

O uso do termo “história oral” indica um conjunto de pes-quisas e de debates sobre a crítica histórica específica que se pode aplicar às fontes orais na sua possibilidade de ampliação científica e democratização (alargamento não só da gama de objetos históricos considerados, mas também do público que a história pode abarcar) e o uso, tipo e tendências de fontes são mais adaptadas.211

210 Ver também PASSERINI, L., 1977, op. cit., uma análise histórica da história oral, suas implicações, preocupações, focos de análise, tendência e polêmicas. Em A. Portelli e F. Ferrarotti, também é possível encontrar análises nesse sentido, bem como estudos de casos com referenciais de uso da oralidade como fonte histórica.

211 FERREIRA, M. M. História oral e multidisciplinaridade. Rio de Janeiro: Diadorim, 1994. p. 32.

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A mediação simbólica e a experiência de vida expressam-se nas narrações, na interpretação do mundo e no conferi-mento dos significados. Reconhecer esses processos e traba-lhar no sentido de melhor utilizar esse dados com a pesquisa histórica e social é um dos grandes desafios da história oral. Tratar as fontes orais de modo adequado com essa sua carac-terística significa reconhecer o universo da tradição, do coti-diano, da cultura política, da memória, que radica suas bases e sua possibilidade de lembrança na experiência cotidiana e na linguagem comum.212

Segundo Passerini, a história oral não é inovadora por-que trata da oralidade, mas por desenvolver, num cenário e num contexto das ciências humanas e, em especial, da histó-ria, uma crítica ao positivismo, à dimensão histórica da socie-dade regulada por leis de características físicas ou biológicas quantitativas e mensuráveis; por desenvolver, também, uma crítica complementar ao evolucionismo linear e inconcluso, desconexo, em muitos casos, com a realidade dos fatos; por desenvolver, ainda, uma crítica às interpretações da antro-pologia cultural organicista e estruturalista, a qual isolou e reduziu o papel do indivíduo e da história, em grande parte, como processo e como autoprodução.

A história oral é uma fonte, um documento diferente, que pode ser uma entrevista gravada, a qual necessita de localiza-ção, de identificação dos atores em seu contexto (seu trabalho, seu mundo, os acontecimentos com os quais participou), de emotividade, de subjetividade, de aproximação do entrevista-dor com o objeto (entender o ator por dentro, no cerne de sua cultura política). Para especialistas nessa questão, como é o caso de Janaina Amado e Marieta Ferreira, malgrado as inú-meras polêmicas que ambas apresentam em torno da questão

212 VANSINA, J. La tradizione orale. Saggio di metodologia storica. Roma: Officina Edizioni, 1977.

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da história oral, a história oral pode ser vista como disciplina que possui técnicas específicas de pesquisa, procedimentos metodológicos singulares e um conjunto próprio de conceitos.

No entanto, a história oral pode ser vista, e é isso que as autoras defendem, como metodologia, ou seja, não como uma simples técnica nem como simples ordenamento de procedi-mentos de trabalho.213 Para essas autoras, a história oral é um espaço de contato e influência interdisciplinares; conside-rações no âmbito social (histórico-social), subjetivo; registra indivíduos “sem voz”. Fatos pinçados aqui e ali nas histórias de vida dão ensejo a percepções de como um modo de entender o passado é construído, processado e integra a vida de uma pessoa.

Influenciados por Bourdieu, Ginzburg, Thompson e ou-tros membros da corrente da história social e cultural, mui-tos defensores da história oral buscam dar centralidade ao indivíduo, mostrando que os sujeitos lutam para, no mínimo, ter uma margem de liberdade em suas ações, as quais não po-dem ser vistas como irrelevantes ou não pertinentes. As ações suscitam mudanças sociais. Bourdieu diz que é interessante ter presente a noção de trajetória, de deslocamento e de acon-tecimentos sucessivos, bem como o habitus social, cultural e econômico que conduz a expressão linguística da memória.

213 Ver PASSERINI, L. Sette punti sulla memoria per l’interpretazione delle fonti orali. In: Italia Contemporanea, 1981. n. 143. p. 83-92; ver, também, nesse sentido, PORTELLI, S. La memoria e l’evento. Senso critico, n. 4, 1980.

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Os pressupostos da narração

A minha presença, as minhas perguntas, podem fazer ver de um outro ponto de vista.

Bermani

Segundo Miranda,214 uma das tendências da historiogra-fia contemporânea é o desenvolvimento de uma ressubjetivi-dade, rememorização, ressimbolização dos sentidos culturais sob o veio das compensações do passado. Nesse sentido, me-mória e identidade ganham contornos analíticos e são me-diadas pelo veio da ressignificação da lembrança no horizon-te do tempo, do espaço e do movimento das representações socioculturais. Tempo, espaço e experiência, ambos sofrendo e produzindo elementos inovadores e corrosivos, integrações/desintegrações, fragmentos e contextos, possuem a capaci-dade de socialização de memória e de identidade, sejam elas mentalidades coletivas (grupos, tradição, representações so-ciais) ou individuais.

A narração de memória, por ser uma linguagem localizada no tripé tempo, espaço e experiência, tem a característica de poder se desgastar, ressignificar, deslinearizar tempos (sejam eles sociais, históricos, culturais e econômicos), de poder perder velocidade (aqui no sentido de dinamismo), força, informação, transparên-cia na sucessão temporal. Os rituais, os símbolos, os mitos, as comemorações e os contos são linguagens “refrescadoras” do tempo da memória, do tempo histórico, do tempo passí-vel de receber ressignificação. Esses elementos narrativos do tempo, do espaço e da experiência (os quais ligam memória com identidade) têm o poder de entrecruzar temporalidades,

214 AMADO, J.; FERREIRA, M. de M. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 156.

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de dialetizar presença/ausência,215 de contextualizar a inter-pretação histórica, de projetar, problematizar, temporalizar o futuro (perspectivar), a memória narrada.

A narrativa, segundo Le Goff, é sempre um relato aberto, não é um mero recordar, mas é um horizonte do refazer, da invenção, do autoconvencimento; passa a ser experiência.

Recordação não significa que o que havia sido estava retornando; e, sim: o que havia sido, mostrava ao retornar, o seu lugar. Quando eu recordava, eu descobria, que foi assim que se passou, exatamente assim. É só com isso, então, que a experiência passa a tornar-se-me consciente, definível, verbalizável, traduzível em palavras. Por isso a recordação, para mim, não é um mero relembrar, mas estar com as mãos na obra e a obra da recordação atribui à vivência o lugar que lhe compete na sequência que a manterá viva. A narração sempre poderá passar para o relato aberto, para a vida maior, a invenção.216

O narrador, ao contar sua vida, sua presença em fatos históricos, sociais; ao se apoderar de conhecimentos vividos (experiência); ao relatar situações de co-presença, torna-se, então, um decifrador dos sinais visíveis, os da natureza e os da história, cravados menos no mundo externo do que na lin-guagem que o designa.217

A fonte oral é importante no esclarecimento das trajetó-rias individuais e da orientação dada aos fatos históricos;218 permite articular o passado no presente, desenvolver a arte dialógica entre entrevistado e entrevistador, desenvolver no entrevistado a arte de ouvir. A fonte oral é uma fonte viva, inacabada, nunca exaurida; interpreta suas experiências e seus costumes inventados, recriados e vivenciados em dife-rentes camadas de tempo e de espaço, o enfoque das tempora-lidades, das invenções e subjetividades.

215 MIRANDA, W. (Org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

216 LEFEBVRE, H. La presence et l’absence. Paris: Casterman, 1980.217 HANDKE apud GUIMARÃES, C., p. 61.218 GUIMARÃES, C., op. cit.

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As memórias são compostas da multiplicidade de ima-gens que constituem vários passados, vão e vêm, atendendo às solicitações do presente.219 Essa relação é capaz de estabe-lecer contemporaneidade com o passado pela voz do narrador; dessa forma, o passado é restaurado no presente.220 Às várias gerações transmitem-se tradições pelo veio da oralidade, im-primindo subjetividades, contextualizações, reapropriações de representações passadas e presentes, ajustadas e compar-tilhadas às atuais identidades individuais e grupais.

Segundo Portelli, a verdade pessoal passa a coincidir com a imaginação compartilhada.221 É desse modo que, ao narrar, a memória se faz ação, porém uma ação contextualizada, pas-sível de modificação pela própria ação; torna-se um sujeito que reflete sobre esse mesmo contexto e sobre si mesmo, que busca, escolhe estratégias adequadas, escolhe fatos, situações e raciocina sobre o melhor tempo adequado para a lembrança, o tempo mais significativo e mais carregado de subjetividade.

Na narração de memória, os interlocutores buscam fazer uma hermenêutica do conteúdo de linguagem. “Na estrutura do discurso, anterior a produção textual, há um processo de seleção, reelaboração, tradução da linguagem simbólica inte-riorizada em linguagem acessível ao interlocutor.”222 Há, na lembrança narrada, segundo Passerini, dois pólos, o da me-diação simbólica e o da experiência de vida. É por isso que as fontes orais “exigem ser tratadas como forma de narração, de interpretação do mundo, de conferimento de significados”.223

O conteúdo da manifestação da lembrança é selecionado, é um alternar-se contínuo de recordação e esquecimento como

219 PORTELLI, A. Sonhos ucrânios: memória e possíveis mundos dos trabalha-dores. Projeto História, São Paulo: PUC, n. 10, 1993. p. 41.

220 LUCENA, op. cit.221 MATOS, op. cit., p. 24-26.222 PORTELLI, A. A morte de Luigi Trastulli e outras histórias: forma e signi-

ficado da história oral. São Paulo: PUC, 1995. Texto.223 RAMPAZI, M. Memória e biografia. In: _______. p. 129.

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consequência de um juízo de significação, portanto suscetível de modificação ou de transformação no tempo, em consonân-cia também com o nível da experiência do indivíduo em rela-ção ao objeto de lembrança.224

Na análise de Matos, tem-se presente que a história oral revela subjetividade, identidades e diferentes experiências de vida. A recordação poderá variar de acordo com a mudança de identidade pessoal, que leva a novas interpretações do passa-do.225 Halbwachs entende memória como um ato narrativo.226

No momento em que narro eventos da minha vida transcorrida, não posso fazer menos de fazer uso da linguagem e das formas linguísticas que são próprias dos grupos os quais pertenço e faço referência. Na narração, os meus diversos pertencimentos se ex-primem em palavras e em modos narrativos que se mostram como fragmentos. Se é verdade que é o momento presente o momento no qual narro que organiza a seleção do material e a sua ordem, então, nas palavras que uso, nos juízos, nas frase feitas que uso, o meu ser social se exprime e expõe para ser analisado.227

Halbwachs deixa claro que uma memória coletiva não é feita de recordações, mas de uma linguagem na qual essas pas-sam a ser transmitidas. A noção de linguagem em Halbwachs pressupõe intersignificação prévia e a posteriori (dialética e reconstrução de lembranças a partir da força e presença/au-sência do coletivo/grupo). A importância da significação e da intercambialidade é que dá à narração seu significado tempo-ral dos fatos, do objeto lembrado, sua (re)vivificação.

A narração oral permite a percepção de diferenciações de gênero, de idade, classes, valores, locais; permite recuperar histórias de vida e identidades, pois o depoente (re)constrói

224 PASSERINI, L. Vita quotidiana e potere nella ricerca storica. Padova: Marsilio, 1983. p. 100. Ver também sobre essa questão MACIOTI, M. Biografia, storia e società. Napoli: Ligouri, 1985.

225 RAMPAZI, M., op. cit.226 THOMSON, A. Desconstruindo a memória: questões sobre as relações da

história oral e da recordação. São Paulo: PUC, 1995. Texto.227 Ver PASSERINI, L. Storia e soggettività. Firenze: La Nouva Italia, 1988.

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sua identidade à medida que narra sua história de vida. “Ao contar sua trajetória de vida e expor suas opiniões, ao conferir sentido aos gestos, o ator se torna sujeito dos seus próprios atos e percebe seu papel singular na totalidade social em que está inserido.”228

Inseparável uma da outra, memória, temporalidade e ex-periência se recriam cada vez que se põem a imaginar aqui-lo que aconteceu no passado. Ao contrário de Bergson, Janet chega a dizer que as recordações não têm data.229 A narração é uma construção literária (com alto grau de simbolização, imaginação, intenções subjetivas e signos) feita lentamente ou não (atualmente, parece que anda mais rápido!) por meio de aperfeiçoamentos graduais, diz Valery.230

O homem reescreve a história reconsiderando os senti-dos sobre a base de sua experiência, reestruturando os pen-samentos que nutriu sobre algo, sobre objetos pessoais ou fa-tos do passado. Aquisição e expressão de memória, ou seja, a narração da recordação, produzem-se nas modificações de sentido, nas formas, nos momentos e nas (situ)ações de sua manifestação e absorção. “A atualização das lembranças ma-nifesta-se através de diversos mecanismos que frequente-mente percorrem o caminho inverso a respeito daquele de sua aquisição.”231

Associações, estímulos externos e graus de afetividade são importantes para reformular os caminhos da significação da narração de lembrança. As fotos, por exemplo, de pessoas ausentes e com grau de afetividade intensa ganham impor-tância maior do que quando de sua presença; há uma me-

228 JEDLOWSKI, P., op. cit., p. 59229 JANOTTI, M. L. M. O desafio da história oral. Ciência Hoje, v. 8, n. 48, 1988.

p. 32.230 JANET, P. Evolution de la mémoire et de la notion de temps. Paris: Desclée

de Bourvier, 1978. p. 69.231 VALERY, P. apud TADIE; TADIE, op. cit.

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mória implícita (que comumente é cotidiana, é hábito e re-produção); outra que é explícita, manifesta em momentos de imprevistos, de extraordinário.

Paul Valery diz que não nos recordamos dos atos elemen-tares, ou seja, aquilo que é funcional não é passado. Por isso, a memória reclama lembrança e, por sua vez, narração/expres-são, quando se vê ameaçada, quando se sente esquecida. Um exemplo disso é o desejo expresso por grande parte dos idosos entrevistados de querer se fazer ouvir, de não serem vozes es-quecidas e de reivindicar a continuidade da memória implícita e voluntária (aquela a que se recorre no cotidiano para resolver as situações confrontadas e que seja funcional), de uma memó-ria-ação (aquela vivida “no meu tempo” como eles dizem).

Memória-reflexa, memória-implícita, memória-hábito, memória-experiência... são funções de base da vida cotidiana. As lembranças que foram armazenadas constituem o patri-mônio pessoal da memória do trabalho, da vida cotidiana e da cultura232 e necessitam de espaço/tempo, significação e vivido para a narração.

Dimenticare per vivere intencionalidades pessoais e históricas

A história é o jogo do desvelamento e do encobri-mento, de manifestação e de ocultamento.

Heidegger

A memória coletiva pode ser induzida a esquecer e/ou a não ser justiciada pela lembrança, ou, então, por ações políti-cas, jurídicas e ideológicas do tempo presente e não do tempo memorizado.

232 TADIE; TADIE, op. cit., p. 141.

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Como veremos mais adiante, é comum na história a pro-dução do esquecimento ou do silêncio alter/auto-imposto para ajustar o passado com as intenções/ressentimentos ainda con-sequentes do presente e das perspectivas futuras. Ajustar ci-clos e tempos históricos de ações, de sociabilidades e de desen-volvimento social é função da memória política e coletiva. Isso não significa completa supressão de lembrança; o que existe é uma memória condicionada, reprimida, não enquadrada, não lembrada no coletivo histórico.233

Michael Pollak é contundente ao afirmar que as memó-rias subterrâneas prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível; afloram em momen-tos de crise, com sobressaltos bruscos e exacerbados, querendo ganhar espaços de desvelamento no presente.234 Pollak refere que a esfera do silêncio da memória é mais consciente.

Evitar falar, poupar alguém de ter a consciência de estar em meio a lembranças pouco edificantes, como é o caso, por exemplo de memórias envergonhadas de uma família, de um sobrenome, de uma opção por um movimento histórico que ganhou ambivalência histórico-temporal, como o nazismo, o fascismo etc., não é algo incomum no universo da memória, sobretudo na sua dimensão histórica e cultural. O que está em jogo é a busca da eliminação do estigma da vergonha pela esfera do silêncio e da passagem do tempo. Há uma noção de temporalidade que se ordena com o “não dito” e se confia em seu esquecimento.

233 TADIE; TADIE, op. cit. p. 146.234 Ver sobre isso o excelente texto de THOMSON, A. Quando a memória é um

campo de batalhas: entrevistas com militares: envolvimentos pessoais e polí-ticos com o passado do Exército Nacional, Projeto Historia, São Paulo: PUC, 1998. Já falamos que o livro de BATTINI é, também, muito representativo dos processos de desconstrução, seleção, esquecimento, adaptação à funcio-nalidade aos diferentes projetos políticos e sociais do presente, da luta pela modificação das sentenças (noção de relatividade histórica da culpabilidade) e das indulgências históricas que a memória pode promover. Ver BATTINI, M. Peccati di memoria. La mancata Norimberga italiana. Bari: Laterza, 2003.

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Sabemos que o que é esquecido não some, mas perma-nece no profundo, à espera de ocasião capaz de desocultá-lo.

A memória possui uma estranha condição: o passado deixa traços e, às vezes, são traços indeléveis, mas, porém, é o presente que lembra, e o passado se veste, em boa medida, como ao presente agrada. O testemunho faz a mediação entre o ontem e o hoje, leva o passado entre o presente, entretanto, dentro daquilo que nesse chamamos de passado.235

Lembrar e esquecer: dinâmicas dialetizadas

O conjunto de nossas recordações faz de nós aquilo que somos, mas aquilo que somos determina o conjunto de nossas recordações.

Carrera

Diz Gadamer que

[...] memória não é, portanto, memória em geral e para qualquer coisa. Há memória para alguma coisa, para outra não. Existem coi-sas que se quer conservar na memória, outras que se quer esquecer. [...]. A relação de conservar-relembrar pertence [...] ao fenômeno do esquecer, o qual não é só perda ou ausência, mas uma condição da vida do espírito. Só através do esquecimento o espírito conserva a possibilidade de renovação total, a capacidade de ver tudo de novo com olhos novos, de maneira a fundar uma articulada unidade com o que é familiar, com o que novamente lhe parece.236

Gadamer afirma que o desmedido desenvolvimento téc-nico aplicado à informação coloca em perigo a memória, pois dificulta a capacidade de esquecer.

235 POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. p. 3-15.

236 JADLOWSKI, P. Il testimone e l’eroe: la socialità della memoria. In:_______, op. cit., p. 27.

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“São todas as informações de que se tem necessidade, súbito obtidas; não seria melhor porém se eu esquecesse alguma coisa, e a devo procurar de novo, e encontro, quem sabe, alguma coisa outra da que buscava? Isso significa propriamente buscar: colocar perguntas, que levam a mais perguntas que não estavam previstas [...]. Pen-samos somente em saudar o milagre de esquecer, e a iluminante força mágica do recordar”.237 Para o autor, entre o esquecimento e a memória, os limites não são nunca definitivos; ao contrário, por meio de ambos, entrecruzam-se apelos recíprocos, um diálogo que transforma, renova, redefine a memória em si mesma.238

Afirma Le Goff que

[...] a memória coletiva constituiu um importante lugar na disputa pelo poder conduzida por forças sociais. Apoderar-se da memória e do esquecimento é uma das máximas preocupações das classes, dos grupos dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos, os silêncios da história são revela-dores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.239

Alguns grupos étnicos possuem uma tradição de memó-ria; possuem uma memória “por excelência”. Como diz Le Goff, alguns grupos possuem a “obrigação de lembrar” (é o caso do povo hebreu e de muçulmanos); outros necessitam es-quecer (exemplo das vítimas do nazismo ou de seus adeptos, escravocratas e vítimas da escravidão...).

Porém, a tradição de memória, a qual constrói o tempo e o pertencimento cultural não permite a aceitação da ambi-valência do esquecimento, ou seja, ao mesmo tempo, perda e possibilidade de salvaguardar a própria identidade coletiva; a ambivalência se dá também no desejo de expressão (exemplo da experiência nazista no Diário de Anne Frank e de muitos outros) e no sentimento negativo da mesma. Segundo Olivie-ro, as sociedades e os indivíduos produzem um certo equilí-brio entre lembrar e esquecer, entre as memórias que agre-

237 GADAMER, H. G. Verità e metodo. Milano: Bompiani, 1983. p. 38-39.238 Idem, p. 93.239 MONTESPERELLI, P. Memoria e ricerca social, p. 182.

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gam e que estão na base da coesão social e pelas quais é ne-cessário velar, ou deixar de lado, por serem desagregadoras. Desse modo, memória e esquecimento não se anulam, nem se excluem, mas entrecruzam-se e podem até se compensar.240

É evidente que, por mais sofrível, incompreensível e in-desejável que seja, o esquecimento possui uma função social, assim como o possui a memória como expressão de uma his-tória comum, de garantir uma identidade coletiva, superando ressentimentos, os quais eternizam ódios e impedem a proje-ção no tempo. Memória e esquecimento precisam ser dosados com sabedoria e equilíbrio. Cada povo, para saber viver, diz Todorov, precisa saber recordar e saber esquecer. Querer sem-pre recuperar fatos, coisas perdidas, pode trazer o risco de ser nostálgico e melancólico, de erigir um culto à memória pela memória, sacralizando-a; é uma outra forma de torná-la esté-ril. O trabalho de luto, a realidade da perda, ajuda o indivíduo a liberar-se da angústia, possibilita-lhe saídas e libera-o da dominação da lembrança.241

A narração é importante não só pelo intercâmbio da ba-gagem de conhecimento, mas pela capacidade de elaboração, de reconstrução, da importância do coletivo, do ser dizível, recordável e comunicável, de vividos individuais em comuni-cação coletiva através da memória, permitindo objetivações, tradições, reenquadramentos, experiências de elaboração e assimilação na memória.242

240 LE GOFF, J. Memoria. Enciclopédia Einaudi, p. 1070.241 OLIVIERO, A. Ricordi individuali, memoria collettiva. Torino: Einaudi, 1994.242 TODOROV, S. Les abus de la mémoire. Paris: Arléa, 1995. p. 46-47.

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A consciência histórica, social e individual se reconstrói sob um fundo de esquecimento

A luta do homem contra o poder torna-se a luta da memória contra o esquecimento.

M. Kundera

O passado não pode ser inteiramente recordado, porém também não pode ser inteiramente esquecido (nesse sentido, Freud nos auxiliou muito!). Remover algo significa também escolher o que lembrar, colocar à parte os conteúdos doloro-sos. Em algumas circunstâncias é interessante esquecer de ter esquecido alguma coisa. A consciência histórica recons-trói-se sob um fundo de esquecimento e poderia se tornar in-fértil se mantivesse viva na memória a totalidade dos terrí-veis acontecimentos.

Ao mesmo tempo, como coloca Jedlowski, a narração do sofrimento, do horror, pode se tornar o ponto de chegada de um delicado processo de elaboração da lembrança e da fun-ção social da memória, bem como um processo de libertação da recordação. Narrar, escrever, enfim, poderá ser também a estrada para o esquecimento; colocar as lembranças na forma narrativa pode ser também um ato de distanciar-se delas.

Ao contrário, como já vimos, Todorov243 fala da possibili-dade de fundar uma ética da memória que se assenta em duas maneiras de narrar. A primeira seria a recuperação literal, ou seja, que não queira ser totalmente real, da lembrança. Essa criaria uma certa vinculação entre passado e presente de modo que o primeiro estenda sua consequência ao segundo sem que esse possa superá-lo ou reelaborá-lo; seria uma espé-cie de dependência do segundo ao primeiro. Pode ser também

243 JEDLOWSKI, P. Memoria, esperienza...

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tornar eterno o sentimento traumático. A outra forma seria a recuperação exemplar da recordação.

Nesse horizonte, os eventos vêm recuperados em sua dimensão histórica, sem que seja reduzida ou relativizada a dramaticidade do fato. Os fatos podem se tornar exemplos, modelos sobre os quais se constrói o futuro; o passado torna-se princípio de ação para o presente. Desse modo, há “um acordo com o passado”, não vem recordado de uma forma “obssessi-va”, nem esquecido; que saiba ser um guia do presente sem que esse permaneça sufocado ou paralisado.244

Como já falamos, tanto o esquecimento quanto a recor-dação possuem uma estreita correlação com o poder. Regu-lar, esconder, esquecer, lembrar, comemorar, produzir versões (“oficiais”, geralmente), tradições... fazem parte da “estraté-gia política e cultural” de quem manipula a memória. “O po-der de criar e estabilizar a memória é sinal de poder em geral em todos os níveis de organização social.”245

A exteriorização da memória possui uma ligação com o poder na medida em que esse produz o tempo, produz referen-ciais temporais, “calendários oficiais”, tempos que refletem pública e individualmente eventos que são necessários serem redcordados, que “bisogna fare festa”.246 “Quanto mais o pre-sente é privo de uma referência sólida no passado, tanto mais se torna necessário criar momentos comuns de comemoração que incutam o sentido do recordar juntos.”247

As “vontades de memória” são de ajustamento para o po-der, em geral objeto de seleção, de pertencimento social. O totalitarismo geralmente destrói referenciais tradicionais de pertencimento (família, igrejas, sindicatos...) para impedir a

244 TODOROV, S. op. cit.245 CARRERA, L. Il futuro della memoria. Milano: Franco Angeli, 2001. p. 66.246 CAVALLI, A. Lineamenti di una sociologia della memoria. In: JEDLOWSKI,

P.; RAMPAZI, M. (a cura di), op. cit., p. 34.247 ELIAS, N. Saggio sul tempo. Bologna: Il Mulino, 1986. p. 67.

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constituição selecionada de um senso comum, de critérios de referências que orientam a experiência da vida cotidiana. Es-ses regimes têm necessidade de um passado e de um presente que estabeleça uma relação de recíproca conveniência, que se reaviva nos contatos sociais, nas comemorações e nos rituais linguísticos de conservação e de esquecimento.

Entretanto, a memória não possui uma unidimensiona-lidade; possui, sim, um caráter plural. Essa pluralidade re-cupera sua dimensão complexa: de um lado, apresenta seu caráter seletivo de reconstrução do passado; de outro, lem-branças alternativas podem produzir desestabilização, cri-ticidade aos processos seletivos, à univocidade da memória do poder, das estratégias de memória. Esses “fragmentos de memória”248 possibilitam descobrir os traços ocultos legitima-dores da falsa linearidade da história institucional. “Recordar o passado pode dar origem a instituições perigosas, e a socie-dade estabelecida parece temer os conteúdos subversivos da memória.”249

Os agentes do esquecimento, os conspiradores do silên-cio, os destruidores de memória, os fabricadores da tradição... temem, expressam e tentam anular a possibilidade subversi-va da memória.

Selecionar memóriasDepois da guerra civil tiveram direito de ter memória só aqueles que venceram.

J. Semprun

Segundo Namer, é muito comum na história e na bio-grafia haver um processo de seleção de memória. Existem os produtores de memória, os transmissores e os destinatários.

248 CARRERA, L. op. cit., p. 69.249 JEDLOWSKI, Memoria, esperienza e modernità.

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Ambos determinam critérios de valor e não são independen-tes da estrutura de poder envolta no grupo ou na sociedade.

Em cada um desses três níveis se verificam processos de seleção. Os produtores de memória selecionam aquilo que vale a pena ser memorizado. Desse modo, apresentam uma intenção ou uma von-tade de memória. Os transmissores de memória selecionam aquilo que vale a pena ser transmitido. E, finalmente, os destinatários escolhem entre aquilo que foi transmitido e aquilo que verdadei-ramente será ativado. Produtores, mediadores e destinatários são indivíduos inseridos nos grupos sociais e seus critérios, são, por-tanto, sempre sociais. Sobre esses critérios pode existir consenso, porém, geralmente, se dão sob a ótica do conflito, negociação e compromisso. Os critérios de seleção possam ser mais ou menos estáveis, mais ou menos implícitos, organizados em maneira mais ou menos hierárquica.250

Existem mediadores de memória, os quais tornam pos-sível seu acesso. Seleção, filtragem, critérios se dão em cor-respondência com o destinatário. Há uma funcionalidade da memória em razão de intencionalidades e capacidades de as-similação e de necessidade da mesma.

Como vimos antes, o trabalho de enquadramento de me-mória, ou seja, de fazer referência ao passado para manter a coesão grupal, para legitimar ações desses e/ou de instituições ou, então, para evitar oposições irredutíveis, define fronteiras grupais, possibilidades ou não de alteração pelos materiais que a história dispõe. Fabietti defende a ideia de que as di-mensões da memória e do esquecimento são relevantes não só quando há um encontro entre culturas, mas também quando esse assume um caráter de etnocídio.

Os esquecimentos deliberados são comuns nos processos de filtragem e de subjetividade de memória.

250 MARCUSE apud CARRERA, L., op. cit., p. 71.

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A história de nosso século, como sabemos bem ainda quando bus-camos esquecer, é cheia de censuras, cancelamentos, ocultamentos, desaparições, condenações, retrações públicas e confissões, traições, declarações de culpabilidade e de vergonha. Muitas obras históricas foram reescritas cancelando os nomes dos heróis de um tempo, catálogos editoriais foram mutilados, foram reeditados livros com conclusões diferentes daquelas originais... Primeiramente foram queimados livros, depois se fizeram desaparecer bibliotecas na tentativa de negar os fatos, de obstaculizar a reconstrução dos even-tos, de impedir de contar as vítimas, de impedir as lembranças.251

Memória e históriaUma vez registrada, a palavra se destaca da fon-te e ganha vida própria na mão do pesquisador.

A. Portelli

Halbwachs não parte de um ponto de vista histórico-cultural. O seu interesse é perceber os processos de coesão grupal das lembranças coletivas; não são só as lembranças a estabelecer o grupo, mas também o grupo a estabelecer as lembranças enquanto tal. A memória coletiva demonstra que sua estabilidade está ligada à estruturação e à estabilidade do grupo. Na concepção funcionalista e construtivista da me-mória não há espaço para lembranças fragmentárias e dis-funcionais.252

Para Nora, existe uma memória social com seus siste-mas de sinais e símbolos. Por meio dos símbolos comuns, os indivíduos participam de uma memória comum e de uma comum identidade. Os portadores dessa memória não têm necessidade de se conhecer para pertencer e reconhecer sua comum identidade. A nação é um exemplo disso, pois realiza

251 CAVALLI, A., op. cit., p. 34.252 ROSSI, P. Il passato, la memoria, l’oblio. Sei saggi di storia delle idee. Bologna:

Il Mulino, 1991. p. 26.

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sua unidade por meio de uma simbologia política. A memória coletiva e a análise historiográfica – não a história – estão em disputa e em processo de exclusão, o que, no final, acaba por destruir a primeira.

Hoje entendemos que a memória e a história não são sinônimos, mas de fato opostos [...]. A memória é um fenômeno atual, a cul-tura vivida sempre no presente. A história, ao contrário, é uma representação do passado. [...]. A memória reconduz a lembrança à sua socialidade, a história a distancia disso: o seu objetivo é a dismistificação. A memória vive no interior de um grupo, do qual funda a sua coesão; a história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém e assim se torna universal.253

Tanto Nora quanto Halbwachs sublinham o caráter cons-trutivo da identidade que a lembrança possui. Ambos promo-vem uma oposição entre memória vivida e memória abstrata, esta última é identificada com a história, com a objetividade, portanto neutra para a identidade.254

Sabe-se que, com o passar do tempo, as oposições entre história e memória tornam-se sempre menos significativas. Sabe-se que narrações históricas são reconstruções baseadas na memória, porém ligadas às condições de interpretação, de parcialidade e de identidade. Alguns autores defendem que memória e história são duas modalidades de recordar, as quais não necessariamente precisam se excluir.

Assmann propõe definir “memória funcional” como me-mória vivente, com características tais como ser inerente ao grupo, ser seletiva, possuir eticidade e orientação em dire-ção ao futuro. As disciplinas históricas interessam-se por um segundo tipo de memória: uma espécie de memória das memórias, uma “memória-arquivo”, a qual não deixaria cair no esquecimento conhecimentos e experiências de vida uma vez que fossem importantes. Vividos tornados “objetos” sem

253 ASSMANN, A. op. cit., p. 146.254 NORA, P. Les lieux...

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proprietários podem ser reelaborados e reincorporados a uma memória funcional.255

A memória funcional atribui significados à experiência, modela a vida e as relações; pode permanecer sem história, sem ser verbalizada ou expressa; permanece amorfa e deses-truturada. A memória-arquivo, ao contrário, são recordações não organizadas e não utilizadas que permanecem fora da memória funcional. A memória-arquivo pode ser a base da memória funcional e, portanto, não ser dualística, mas pros-pectiva, cooperativa e associativa. A memória-arquivo pode fazer com que as memórias funcionais existentes possam ser relativizadas criticamente, renovadas ou modificadas.

A memória-arquivo conserva, em nível coletivo, o utilizável, o diver-so, o anacrônico e o saber especialístico neutro para a identidade, mas também o repertório das ocasiões perdidas e das opções alter-nativas e das oportunidades não utilizadas. A memória funcional ao contrário, é uma memória estruturada de um processo de escolha, de ligação, de construção de sentido; é sempre ligada a um sujeito que se constitui como seu portador. A memória-arquivo não se fun-da na identidade, mas tem uma função não menos importante na recepção de um número de datas e de qualidades diversas daquilo que encontra acesso na memória funcional.256

Outros autores evitam contrapor história e memória; ao contrário, identificam a memória como um novo paradigma historiográfico. Segundo Niethammer, a memória que serve para orientar a história possui duas faces, definidas como “tradição” e “resíduo”. A primeira seria a memória consciente e voluntária; a segunda, uma memória involuntária, não ain-da ou não mais capaz de aflorar à consciência. Nesse sentido, a história (do ponto de vista da historiografia crítica) é o pro-

255 ASSMANN, A., op. cit., p. 148.256 Ibidem.

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duto de um processo de diferenciação cultural e se desenvolve através da emancipação da memória.257

Para De Certeau, a história é uma narração, na qual es-paço e tempo se cruzam, produzindo novos tempos e novos espaços. Nesse cruzamento não existe univocidade nem estabi-lidade. A narração é um movimento linguístico de espaço/tempo criativo, sem fronteiras, “topológico” – para usar um termo seu – é sempre enunciador. Desse modo, a história será reduzida a espaço linguístico, a uma experiência narrativa de eventos intercruzados sobre uma base móvel de tempos.258

Alguns autores, dentre os quais Halbwachs, já visto, ex-pressam que é difícil aproximar história de memória em vir-tude da racionalidade e da distância crítica de uma e da par-ticipação emotiva, fragmentada, incompleta e presentificada de outra. No entanto, Philipe Ariès defende a tese de uma necessária e possível integração, de uma espécie de dialética entre história e memória, na qual o recurso à memória cole-tiva e às memórias privadas permite aos historiadores aban-donarem o terreno dos eventos públicos, da cronologia oficial para fixar-se no mundo da vida privada, nas “mentalidades”, na história local, as quais, segundo o autor, foram submetidas e derrotadas no momento do triunfo da história sobre a “me-mória”, sobretudo a memória cultural.259

O encontro entre culturas, geralmente, foi representado de forma dramática, como evento traumático responsável por modificar a memória histórica, cultural e identitária. Porém, isso não basta. As culturas são hoje complexas, não são en-tidades homogêneas, definidas e descritas em sua totalidade. As culturas não param; há processos escondidos, silenciados e imperceptíveis que, todavia, provocam consistentes “derive

257 Idem, p. 153.258 Apud ASSMANN, A., op. cit., p. 158-159.259 Ver DE CERTEAU, M. L’ écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975.

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di memoria” nos indivíduos e na comunidade.260 Nessa discus-são do papel da história, Nora é ainda mais polêmico. Para ele, a memória verdadeira está na mente dos vivos, por isso, não necessita do suporte da história: “A memória é sempre suspeita para a História, cuja verdadeira missão é destruí-la e a repelir. A História é deslegitimação do passado vivido.”261

Pelo fato de manifestar um vivido não significa que te-nhamos de pensar a memória como fonte documental, ou, en-tão, que essa esteja isenta de um processo crítico ou de um tratamento teórico-metodológico que requer todo trabalho com qualquer forma de registro acerca do passado. Há, se-gundo, Fabietti, uma circularidade hermenêutica que se ins-taura entre o presente, o vivido e a lembrança do passado, um processo em movimento, forças impessoais da história e do destino humano, as quais contribuem para a reformulação da identidade individual e coletiva.262

A coerência nos discursos, os ritos mediadores personi-ficados nos guardiões da memória, a referência constante à experiência vivida (ao passado simplesmente) e a fidelidade nas reconstruções a posteriori colaboram para (re)enquadrar os fatos no horizonte temporal e evitar seus desvios. Porém, sabemos que nem sempre isso é possível. A dialeticidade da memória precisa ser levada em conta. Há uma construção, desconstrução e reconstrução da memória; a história biográfi-

260 A ideia e/ou imagem de uma história que sufoca e destrói os vividos, as memó-rias privadas e locais exercerá uma sedução imensa, uma difusão e persistente clima de polêmica entre memória e história, no campo da literatura comparada e da narrativa, da história oral, da história das mentalidades. Ariès é uma grande referência nesse campo de discussão. Ver ARIÈS, Ph. Historia da vida privada III. Da Renascença aos Séculos das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

261 FABIETTI, U., op. cit.262 MONTENEGRO. A. T. História oral e interdisciplinaridade. A invenção do

olhar. In: VON SIMSON, O. (Org.). Os desafios contemporâneos da história oral. Campinas: Unicamp, 1996. p. 197-212.

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ca ou de vida em geral assim o atesta, ordena acontecimentos que balizaram uma existência.

Thompson diz que cada vez que uma tradição é articula-da tem de lhe ser dado um significado apropriado ao contexto, ou ao gênero em que foi articulada. Essa necessidade de rein-terpretação está muitas vezes por trás das transformações no seio da própria tradição. A tradição oral combina, mais do que separa, mitologia, genealogia e história narrativa. A capaci-dade de uma sociedade para transmitir a sua memória so-cial sob uma forma lógica e articulada não depende, portanto, também do domínio da escrita.

A transmissão da memória articulada depende, num senti-do mais geral, da maneira como uma cultura representa a lin-guagem; vai depender do modo como uma sociedade/comunidade utiliza a linguagem como veículo de expressão e comunicação sem ficar totalmente dependente do contexto social imediato.263 Com isso, não significa dizer que se deva relaxar na tentativa (nem sempre fácil!) da compreensão dos distintos contextos histó-ricos que abarcam a produção da memória e da lembrança. Recuperar o contexto, perceber os macrointeresses em jogo, os conflitos e contradições que significaram o período e a ex-periência relatada, é um imperativo para os que utilizam o recurso dos depoimentos orais.

Algumas precauções!

Há algumas precauções que praticamente todos os estu-diosos do assunto que revisamos levam em consideração, as quais giram em torno da confiabilidade da memória, da ne-cessidade de confrontá-la com outras fontes de informação e

263 AUGE, M. Le forme dell’oblio. Dimenticare per vivere. Milano: Il Saggiatore, 1998.

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outros depoentes, da sensibilidade, abertura e paciência para localizar/contextualizar e ouvir mais de uma vez a fonte oral, ou seja, promover mais de um encontro; da necessidade de retornar ao sujeito da informação e lhe apresentar a análise produzida pelo pesquisador, dentre outras.

Utilização do gravador, de recursos de filmagens e outras fontes de informações (objetos, iconografias...) requer, segun-do alguns analistas do tema, sensibilidade na percepção de sua riqueza, de seus limites e da aceitação do sujeito da lem-brança. Hobsbawn já dizia que a memória não é um mecanis-mo de gravação, mas de seleção, que constantemente sofre alterações, portanto, oralidade e subjetividade estão muito próximas; ao mesmo tempo, fazer história sem pressupor es-ses ingredientes é cair numa análise ingênua.

As fontes orais permitem, não pela anulação, mas pela complementaridade recíproca, dar base para as fontes escri-tas guardadas nos arquivos. Ao incorporar a linguagem oral, incorpora indivíduos e/ou coletividades muitas vezes esque-cidas, pouco valorizadas ou, então, excluídas do processo his-tórico pela história, principalmente as ligadas às classes po-pulares, às minorias étnicas e aos agrupamentos sociais, às questões de gênero, etc.264

264 Thompson, segundo análises revisadas, foi um dos que melhor usou, inovou, problematizou e confiou na utilização da fonte oral. Seu estudo clássico sobre os Eduardianos, no primeiro decênio do Século XX, na Grã-Bretanha, busca, de um ponto de vista da história social, incluir a experiência dos indivíduos comuns. O autor serve-se da história, da antropologia e da sociologia para fazer um estudo comparativo entre cidade e campo, diferenciações de gênero, de idade e de classes sociais na análise das entrevistas. O objetivo do autor, com isso, era mostrar de que modo os indivíduos, diferencialmente classifi-cados, vivem os grandes processos históricos de mudança social. O uso da história de vida é abundante em sua obra com a intenção de perceber como os personagens, representantes de estratos sociais, viveram as mudanças culturais da emigração, a vida familiar e comunitária dos bairros periféricos, etc. O autor combina, abundantemente, dados empíricos com fontes literárias, estatísticas demográficas, observações de contemporâneos e da historiografia sobre o tema. O autor retrata a cotidianidade da sociedade eduardiana, da passagem da economia moral (esse é o foco central) ao livre comércio, da religião ao crime, da agitação operária ao feminismo, dentre outras.

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Confrontar fontes orais com documentos, bases escritas e/ou demais evidências do passado, quando possível, é um bom recurso metodológico e que pode ampliar o referencial científico da investigação. Muitos autores, críticos ou não da história oral, defendem a questão da subjetividade, ou para mostrar os limites da história oral, ou para defendê-la. No entanto, a subjetividade não é só do depoente e de quem in-terpreta, mas também de quem pergunta e faz os registros.265

Há uma rearrumação de várias lembranças na tentativa de dar lógicas a discursos dispersos no tempo (ter presente o método indiciário de Ginzburg), tempo esse que pode ser longínquo. Quem depõe repensa e constrói seu discurso. Por isso, segundo a autora aqui indicada, o mais importante na entrevista de história oral é o fenômeno de estruturação dos fatos de memória. Nele atuam mecanismos extremamente sutis, que estão relacionados à construção da identidade pes-soal. Memória e identidade estão intimamente ligadas.266 O informante não expõe apenas informações e dados soltos, ele constrói e expressa um discurso. Nesse discurso podem estar não ditos, emaranhados, intencionalidades pouco visíveis (ex-pressas), porém que ganham significação dentro de um con-texto de ligações de fatos e situações.

O historiador, ao possibilitar a fala, torna-se também parte de uma cumplicidade de emoção, ainda que o que está sendo dito não seja de seu agrado, seja o oposto ao que ele, como profissional, pensa.267

Portelli fala em evitar nossos pressupostos ou projetos teóricos que poderão comprometer o conteúdo dos depoimen-tos. É importante saber o contexto, que se tenha uma visão

265 ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: CPDHC, 1989.

266 AUGRAS, M. História oral e subjetividade. In: VON SIMSON, O. (Org.). Os desafios contemporâneos da história oral. Campinas: Unicamp, 1996. p. 27-36.

267 AUGRAS, op. cit., p. 29.

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global do assunto, formular hipóteses e problematizar.268 É por isso que rememorar não é o mesmo que viver novamente o passado; depende da leitura do sujeito que a produz numa sociedade que se diferencia daquela à qual se refere lembran-ça.269 De Certeau já dizia que “a memória produz num lugar que não lhe é próprio, como os pássaros que põem seus ovos no ninho de outras espécies”.270

Portelli é um dos que insistem na possibilidade e na ne-cessidade de junção entre memória e história; fala que a in-formação histórica escrita e a oral não se excluem; possuem características comuns, características autônomas e espe-cíficas, funções que só uma ou outra pode resolver (ou que uma absorve e resolve melhor do que a outra) e demandam instrumentos autônomos de interpretação.O autor insiste na valorização da linguagem popular do informante, no desafio do pesqu Idem, p. 224. isador em entender esse horizonte, que pode ser gramaticalmente pobre, mas rico de significados, de entonações, de sinais não visíveis...271

O manuseio e a concepção de documento oralA memória vive graças à comunicação; quando cessa a comunicação, cessa a memória e tem-se o esquecimento.

Halbwachs

Como vimos, o trato com o documento oral é muito impor-tante, implica imaginação, saber que a subjetividade e a ora-lidade são também seus elementos constitutivos; saber que

268 FÉLIX, L. O.; GRIJÓ, L. A. Histórias de vida: entrevistas e depoimentos de magistrados gaúchos. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 1999.

269 BRAND, A. História oral: perspectivas, questionamentos e sua aplicabilidade em culturas orais. In: História – Unisinos, v. 4, n. 2, 2000. p. 195-227.

270 LUCENA, op. cit.271 PORTELLI, A. Problemi di metodo: sulla diversità della storia orale. In:

BERMANI, C. Introduzione alla storia orale. Toma: Odradek, 1999. v. I. p. 150.

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há um sentimento do vivido, que o movimento da memória continuamente se aproxima e se afasta da objetividade du-rante o ato da rememoração, de que as lembranças pessoais são dotadas de preceitos de comportamentos, de apresentação de imagens; de que há um conjunto de intenções conscientes e inconscientes que selecionam e elegem o que é importante, significativo e dizível.272

É por isso que o papel do historiador e do cientista social no trato com a história oral requer conhecimentos prévios dos conteúdos em questão, das técnicas lançadas para a obtenção de dados (pelo menos em parte e as mais comuns); requer recolher a palavra falada; criar, de algum modo, seu próprio arquivo; garantir a segura conservação do seu material muito mais do que o uso que possa fazer imediatamente, pois, quem sabe, amanhã aquilo que se tornou irrelevante hoje poderá servir para outro pesquisador; zelar pela integridade do ori-ginal registrado e das transcrições e evitar manipulações.273

A história oral poderá dar os seus melhores resultados quando se colocar a questão claramente de sua finalidade e de seu significado. A expectativa com relação à história oral é que, segundo Passerini, reaviva-se a esperança de contribuir através dela na resposta às exigências que hoje se acentu-am, de reconstruir uma visão não mutilada da realidade hu-mana.274 A história oral poderá, assim, contribuir na efetiva descoberta e dinâmica entre passado e presente, “poderá cola-borar no sentido de colocar as premissas de uma cultura que não seja mais só formalmente, mas substancialmente de to-

272 Portelli afirma que a fonte oral é mais caracterizada em espaços e sujeitos que não possuem a hegemonia da escrita, em estratos socioculturais centrados na tradição narrativa popular, nas quais a capacidade de se informar e de se significar intersubjetivamente é mais desenvolvida.

273 MATOS, op. cit., p. 82; ver também LUCENA, op. cit.274 PORTELLI, A. Memoria collettiva e raconto orale. In: LAZZARIN, G. (a cura

de). Tempo, memoria, identità. Firenze: La Nuova Italia, 1986.

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dos, sem perder a herança da referida cultura precedente”.275 Falando sobre a biografia e contendo a noção de trajetória como série de posições sucessivas, Giovanni Levi,276 citando Bourdieu, refere que

[...] a história de vida, no privilégio concedido à sucessão longitu-dinal dos acontecimentos constitutivos da vida, considerada como história em relação ao espaço social no qual eles se realizam, não é em si mesma um fim. Ela conduz à construção da noção de trajetória como série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações. Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito” cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto de metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações. Os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado.277

Memória é sempre uma reconstrução psíquica e inte-lectual, porém seletiva do passado, de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional. Portanto, toda me-mória é, por definição, “coletiva”. Seu atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir a alteridade, ao “tempo que muda”, as rupturas que são o destino de toda vida humana; em suma, constitui um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros. No entanto, não há uma representação e presença do passado que sejam com-partilhadas nos mesmos termos por toda uma coletividade.278

275 PASSERINI, L., 1986, op. cit., p. 65.276 Idem, p. 66.277 LEVI, G. Usos da biografia. In: AMADO, J.; FERREIRA, M. de M., op. cit.,

p. 167-182.278 LEVI. G. Usos da biografia, p. 169.

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É preciso admitir que a memória tem uma história que é preciso compreender. Para Rousso, um dos vários problemas da relação entre história e memória é que existe na história da memória uma discrepância entre o que essa história erudi-ta (a dos historiadores) possa dizer de um acontecimento pas-sado e as percepções que prevalecem no mesmo momento no seio de uma sociedade, num tempo e num local determinados, e que certamente têm peso infinitamente maior.279

Segundo Portelli, é exatamente porque as experiências são incontáveis, mas devem ser contadas, que os narradores são apoiados pelas estruturas mediadoras da linguagem, da narrativa, do ambiente social, da religião e da política. As narrativas resultantes não só podem como devem ser enten-didas criticamente.280

Para o autor, o documento escrito é dotado de uma forma imutável e preexiste ao seu uso; a fonte oral, ao contrário, é uma fonte potencial até não ser acionada pelo entrevista-dor, dependendo da forma de questionamento, do diálogo, da inter-relação que se constitui, de pré-noções/preconceitos de ambos (entrevistado e entrevistador), do que ambos, talvez diferenciadamente, consideram como relevante.281 A comuni-cação funciona sempre em várias direções, e o entrevistador, em qualquer modo, busca sempre estudar o entrevistado. É por isso que a entrevista é um produto de ambos, porém ma-nifestado na forma que transparece ser um fluxo contínuo de narração sem perguntas e respostas, e, o que é mais impor-tante, segundo Portelli, raramente o conteúdo do testemunho oral será o mesmo duas vezes seguido; modifica-se a relação interpessoal, há um maior conhecimento recíproco e clareza

279 ROUSSO. H. A memória não é mais o que era. In: AMADO, J.; FERREIRA. M. de M., op. cit., p. 93-101, cit., p. 94-95.

280 Idem, op. cit., p. 97.281 PORTELLI. A. O massacre de Civitella Val di Chiana: mito e política, luto

e senso comum. In: AMADO, J.; FERREIRA. M. de M., ob. cit., p. 108.

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sobre o objeto da pesquisa.282 Com isso, Portelli enfatiza a im-portância da consciência da infinitude da memória-história, da necessidade de repetir, retornar, comparar entrevistas e conteúdos. Para o autor, grande parte do conteúdo informado será resultado de uma seleção produzida pelo momento e pela relação que se constitui. No entanto, é bom constatar que Por-telli salienta que essa potencial parcialidade das fontes orais se reflete sobre todas as ordens de fontes, “a história oral co-munga a própria parcialidade de toda a pesquisa histórica”.283

Afirma Portelli que o narrador de hoje é diferente do de antigamente: ele lê, tem condições de se informar, escreve, co-munica-se, sua consciência subjetiva e sua condição material estão mais evoluídas, fato que, por haver reduzido a prática do conhecimento pela via da tradição oral, poderá alterar o juízo e o significado da forma narrativa, da alteração do significado da memória. Porém, ao mesmo tempo, o narrador pode recons-truir significados, opiniões, juízos sobre o conteúdo narrado. “As fontes orais são objetivas. Isso naturalmente vale para to-das as fontes, ainda se muitas vezes a sacralidade da escrita

282 PORTELLI, A., op. cit., 1999. p. 160.283 Numa coletânea chamada Introduzione alla storia oral, organziada por

Cesare Bermani, v. II, Roma: Odradek, 2001, Portelli desenvolve um texto belíssimo intitulado “La memoria e l’evento: l’uccisione di Luigi Tratelli”, Terni 17 mar. 1949. No texto encontra-se uma análise muito interessante de memória operária e de como essa memória coletiva foi reconstruída e expressa pela ótica da manipulação, de invenções, de falsificações em razão da luta e de domínio das classes envolvidas, do momento político vivido pela Itália no período recente ao pós-Grande Guerra. O uso da fonte oral revela, num cenário de interpretação manipulada, um contexto de conflito político, de conflito no interior do próprio movimento operário, a correlação de forças sociais, a forma de interpretação periodizada dos tempos correlatos com os fatos socioistóricos sem sequência temporal e, sim, personificada (antes, depois da guerra, como partegiano, como militar, membro do partido…). O autor mostra que a memória coletiva dos fatos é ativa, é a história da his-tória que se produziu como uma memória coletiva, simbólica, psicológica e formal, objetivando racionalizar um contexto de lutas sociais, de memórias ressentidas, de tensões na relação entre capital e trabalho (e no interior de cada uma dessas esferas). As incertezas e manipulações sobre o fato da morte de Luiggi Trastelli refletem as incertezas, ambiguidades e ambivalências da sociedade italiana no recente pós-guerra.

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induza a isso esquecer. Todavia a não objetividade é um dado caracterizante e constitutivo das fontes orais, enquanto fon-tes contemporâneas à pesquisa, mais do que ao evento.”284

Já falamos acerca de alguns dos inúmeros problemas e das muitas implicações que envolvem o uso e as técnicas das fontes orais. Thompson nos alerta para um outro fato: a ques-tão da presença de outras pessoas no momento da entrevista e o espaço considerado mais adequado para a obtenção de res-posta e as possíveis alterações de linguagem corresponden-te. Segundo Thompson, “frequentemente se percebe também que os antigos grupos tendem a dar uma imagem comum do passado, mas entrevistados individualmente fornecem um quadro diferente e diverso”.285 Tendo presente essas inúmeras questões, reconhecer essas dificuldades, ser vigilante em ter-mos epistemológicos e metodológicos, introduzir estratégias para controlar e corrigir possíveis elementos a priori promo-tores de distorções já é um bom caminho para dar sequência ao método da história oral.286

Thomspon deixa claro que não existe uma separação en-tre o micro e o macro no horizonte da história, quando na busca da fonte oral; que existe uma interconexão dialética.

Nenhum tema da história é intrinsecamente “micro” ou “macro”, principal ou marginal, grande ou pequeno. Tudo depende do modo pelo qual é estudado. O estudo local pode pecar por miopia, mas é possível também que a eternidade seja um grão de areia [...]. Deve-mos ter a capacidade de perguntar em cada evento que significado teve na vida da gente comum.287

284 PORTELLI, A., op. cit., 1999. p. 162.285 PORTELLI, op. cit., 1999. p. 159.286 THOMPSON, P. op. cit., p. 48.287 Um grande estudo que se tornou polêmico no campo historiográfico dos anos

1970, pelo uso e crítica histórica das fontes orais encontra-se em JOUTARD. P. Trata-se do livro Légende des Camisards. O autor propõe um uso rigoroso das fontes orais no sentido de estabelecer objetividade na análise. O livro retrata o movimento dos Camisards contra Luis XIV pela defesa de sua forma de expressão religiosa protestante. O autor defende a ideia da concomitância da oralidade com o documento, com a pesquisa arquivística e uma etnologia no

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Ainda no campo das polêmicas, alguns autores dizem que o uso das técnicas da história oral deve se restringir à produ-ção de história de vida. Alguns propõem, inclusive, modalida-des de história oral. A primeira, história de vida, centrada em um personagem; a segunda, história temática, voltada para esclarecer um tema; terceira, tradição oral, de caráter mais coletivo (mitos, festas, rituais...). Thompson fala da necessi-dade de evitar a imposição de uma entrevista a quem não se dispõe para tanto, bem como evitar o risco de gravar apenas depoimentos dos que ele chama de “especialmente seguros e bem articulados”; defende a ideia de que a singularidade das amostras aleatórias e padronizadas de informação seja subs-tituída pelo método de amostragem estratégica. Os critérios a serem seguidos dependem do tipo de pesquisa em curso. É possível desencadear-se uma rede de informantes. Não há uma grande concordância no uso de questionários previamen-te elaborados. Alguns defendem que haja apenas uma pau-ta prévia orientadora. Thompson insiste na importância das perguntas “historicamente relevantes”, o que exige conhecer as “práticas” e terminologias locais.288

Existem os que defendem a inevitabilidade dos confron-tos com arquivos e testemunhos, documentos escritos, compa-ração crítica com outras informações existentes sobre o assun-to em questão. Para alguns, sem essas possibilidades, o relato oral de memória ficará comprometido. Acrescentam-se a isso a leitura do contexto, o uso de fontes múltiplas, convergentes

campo/espaço do ocorrido; defende a necessidade de diferenciar e classificar as entrevistas segundo idade, proveniência geográfica, origem sociocultural, sexo, religião de origem; a necessidade de ulteriores pesquisas e retorno ao campo antes de fazer generalizações e resultados dessa mesma; insiste na busca da consciência coletiva do fato; introduz uma discussão sobre representação coletiva e identidade cultural do grupo analisado, bem como o papel ativo da memória na reinterpretação da história. Ver JOUTARD, Ph. La légende des camisards. Une sensibilité au passé. Paris: Gallimard, 1977.

288 THOMPSON, P. op., cit., p. 105.

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e divergentes, confrontando-as. Para Thompson, é impossível afastar o viés subjetivo presente nos depoimentos; eliminar significa expurgar o caráter humano do depoimento.289

De tudo o que já dissemos, não podemos esquecer que a história oral não é uma mera recuperação de reminiscên-cias descomprometidas; é, sim, uma reconstituição do vivi-do, um contextualizar e ressignificar fragmentos de vida no tempo vivido e percebido. O próprio Halbwachs afirmou que a memória não é um mecanismo de gravação, mas de seleção, o que implica significados de oralidade, das estruturas me-diadoras da linguagem, do ambiente social, da subjetividade, bem como dos silêncios das (des)(re)construções de significa-dos dialetizados entre vividos, concebidos e percebidos em temporalidades diferentes, entrecruzadas ou não.

O novo que introduz na história são os discursos, nos quais as referências à realidade podem ser múltiplas e devem ser decifra-das. A história oral não trata de discursos escolhidos, mas tem a ambição de afrontar a linguagem na sua totalidade. A exigência é a de afrontar o estudo dos seres humanos não só a respeito do poder político, das estruturas econômicas, das organizações sociais, mas também os comportamentos interpessoais, os mecanismos psicológicos e cognoscitivos, as ideias, as imagens que estão na cabeça dos indivíduos.290

289 BRAND, A. História oral: perspectivas, questionamentos e sua aplicabilidade em culturas orais. História – Unisinos, v. 4, n. 2, 2000. p. 205.

290 BRAND, op. cit., p. 208.

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Humanizar a história?

Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado.

G. Orwell

O desafio do uso da linguagem, que, por si só, já é uma totalidade-em-ato, se expressa nas relações não só políticas, estruturais e organizacionais econômicas e socialmente, mas nos interpessoais, nos mecanismos psicológicos e cognitivos idealizados e imaginados na consciência dos indivíduos que a expressam.

A história oral é sempre uma construção contínua de suas fontes, de seus recursos, de ações diretivas, de prepara-ção para entrevistas. Estão presentes nesse processo, cons-tantemente, duas subjetividades, a do entrevistador e a do entrevistado, algo não muito diferente da história documen-tal e das fontes escritas.291

A psicologia tem nos ensinado que a memória humana não é reprodução exata do passado; ao contrário, frequente reinvenção de um passado ou fuga desse. Porém, por isso mes-mo, recordar, segundo Passerini, é uma atividade de intensa criação, com os outros, de espaços comuns de compreensão e interpretação do mundo.

A atividade de relembrar procede de longe a um duplo movimento: de um lado, retornar sempre mais para trás no passado; de outro, atualizar a experiência vivida, fazendo-se parte do presente. A memória deve tornar-se produção de significados. O processo de recordar desafia a história oral em fazer um esforço de reelaboração e transmissão de sig-

291 PASSERINI, L. Conoscenza storica e storia orale: sull’utilità e il danno delle fonti orali per la storia. In:_______ Storia orale (Org.). Torino: Rosenberg e Sellier, 1978. p. VIII.

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nificados do passado para o presente. Passerini entende que a memória deva ser um ato narrante na tentativa de confe-rir significados condivisíveis a certos eventos ou aspectos do mundo; entende que a narração, no mesmo tempo-memória, é sempre autobiográfica, constitui transmissão de uma expe-riência de vida e tradução, isto é, reformulação e inovação de alguma coisa que se recebeu de gerações precedentes e que se quer passar às gerações futuras.

Portelli292 alerta-nos para o fato de que, com a fonte oral, não nos encontramos frente a um objeto, mas frente a uma fase, a um processo. A fonte oral é uma fonte construída in-terpessoalmente, no sentido de que é produto de um ato lin-guístico no qual são duas pessoas que falam.293 A proposta de trabalho com fontes orais deve ser expressão de um esforço em percorrer uma estrada, não de mão única nem cumulativa no tempo, mas numa perspectiva de inter-relação entre o que se considera individual e coletivo, local e nacional, marginal e central, privado e público. “O objeto da história é o singular, um acontecimento, uma sucessão de acontecimentos, de per-sonagens que não se produzem senão uma vez só, porém seu objetivo é de colher, em geral, o regular”.294

Inúmeras tensões são constantes no horizonte da análise das tradições tanto escritas quanto orais; além dessas duas

292 Paul Thompson analisa muito bem as implicações críticas atribuídas à história oral, como também presentes ou passíveis de presença na história escrita/documental sobre suas possíveis deformações, sobre a pretendida veracidade da quantificação estatística, da autobiografia, do uso de jornais, de dados censitários, etc. Ver THOMPSON, P. Problemi di metodo nella storia orale. In: PASSERINI, L. Storia orale. Torino: Rosenberg e Sellier, 1978. p. 31-68. Portelli diz que é necessário deixar de lado a ideia de que a narração indivi-dual seja uma ilha e que os grandes fatos coletivos não tenham comunicação com isso. Ginzburg trabalha com a noção de cultura popular na esfera da circularidade com a cultura hegemônica, numa perspectiva que pode estar em diferenciação, mas também uma constante relação de troca e de interpretação.

293 PORTELLI, A. Memoria collettiva e raconto orale. In: LAZZARIN, G. (a cura di). Tempo, memoria, identità. Firenze: La Nuova Italia, 1986. p. 136.

294 Ver também GRIBAUD, M. Storia orale e struttura del racconto autobiografico. Quaderni Storici, n. 39, 1978.

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há aquela entre comportamento e narração, entre a particu-laridade e o genérico, como e onde procurar as fontes mais certas, quais as questões mais pertinentes e quais as cir-cunstâncias, os significados mais explícitos na narração... No nosso caso específico, poderíamos nos perguntar se os idosos são testemunhas fortes e de forte personalidade na narração? Nas palavras de Passerini, “os anciãos narradores não se dei-xam impor modelos, frequentemente ignoram as perguntas, subordinando o entrevistador, deixando-o em situação de con-tra-interrogatório ou em uma situação embaraçosa”.295

Autores nos alertam de que devemos ter cuidado para não cair numa moda vulgar e consumista, sem responsabili-dade de tradução de suas exigências metodológicas e cientí-ficas, como é o caso, no Brasil, de muitas ditas biografias e/ou autobiografias midiáticas, feitas em geral por jornalistas afoitos pela mercantilização e pela temporalidade do marke-ting da figura biografada. Halbwachs, por exemplo, refere a dificuldade de ordenar e integrar um com o outro os inúmeros fragmentos de memória correspondentes à participação de in-divíduos em grupos diferentes no decorrer do tempo.296

A tentativa da história oral, segundo Thompson e tam-bém Passerini, é de permitir a humanização da história, através da linguagem narrativa de protagonistas ou não, da consciência social de que, sem as atividades dos indivíduos concretos (como diria Marx), não há produção de história.297 A grande questão de fundo é a de sempre: quem faz a história? A ideia é fazer um esforço de interpretação do sentido político e psicológico dos testemunhos e das testemunhanças, consi-derar a sociedade na sua complexidade e o indivíduo também

295 LE GOFF, J. Storia. In: Enciclopedia Einaudi, Torino: Einaudi, 1981. p. 1055.296 PASSERINI, L., op. cit., 1978. p. 113.297 Ver BERMANI, C. La storia orale. Roma: Odradek, 2000.

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nesse horizonte, ainda que se esteja descrevendo aspectos es-pecíficos de uma realidade micro/local.

Enfim, entendemos que o papel do historiador e de todo e qualquer cientista social interessado nos estudos de memó-ria é fundamental. As implicações metodológicas que cercam o objeto de análise de história oral, da história documental e biográfica alertam-nos para a vigilância dos instrumentos utilizados para a interdisciplinaridade, para o engajamento analítico, para a transcendência e problematicidade do tempo e do conteúdo do discurso. Isso tudo, em meio a outras ques-tões, revela-nos a importância e a finalidade social e humana/cidadã da história oral.

Temos a convicção de que lembrar é um reviver, é um reinscrever-se no momento, no contexto; é um imprimir-se. Por ser tudo isso e por utilizar a narração, o recurso oral passível de ser documentado, acreditamos que a lembrança, principalmente na forma de narração, poderá ocasionar mu-danças na produção do conhecimento histórico, na localização espaciotemporal e cidadã de indivíduos, grupos e categorias sociais, bem como promover um acerto de contas desses com a história, com a responsabilidade ético-social, tão necessários nos dias de hoje.

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SEGUNDA PArtE

tempos, espaços e signos: a correlação entre memória

coletiva e individual no processo de lembrança

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CAPÍtULO 10

A natureza social do pensar e do relembrar

O social é não só a origem, mas a salvaguarda última da recordação.

Halbwachs

Premissas

O objetivo, nesta parte, é fazer uma revisão das obras de Halbwachs, analisando aspectos correlatos a sua abordagem sobre memória, tais como coletivo, grupo, biografia, quadro familiar, experiência, tradição, modernidade, história, narra-ção, simbologia, etc. Lançamos mão dessas análises por con-siderá-las importantes na fundamentação de nossa análise empírica (da terceira parte) sobre a memória de idosos, em suas lembranças, seus quadros de significação, suas estra-tégias, simbologias e representações sociais, bem como sua experiência de vida cotidiana em tempos e espaços variados. Analisar Halbwachs é uma empreitada um tanto difícil, pois suas obras são complexas, seus comentadores são poucos; o contato com suas obras ainda não é acessível ao público em geral visto que ainda não são todas traduzidas para o portu-guês.298

Grande pesquisador, ativista político, Halbwachs deixou uma vasta obra multidisciplinar. É pouco conhecido fora da Fran-

298 Ao que vem ao nosso conhecimento, nenhum livro de Halbwachs foi ainda traduzido para o português brasileiro. Há uma tradução portuguesa de A memória coletiva. Para a nossa análise, utilizamos essa tradução e a italiana da mesma obra, bem como a versão em francês das demais.

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ça, malgrado esteja havendo um grande interesse na tradução de suas obras em vários países, como é o caso dos últimos anos na Itália e na Espanha. No Brasil, é ainda, em grande parte, desco-nhecido. O autor desenvolveu estudos sobre estatística, demogra-fia, sociologia, psicologia social, metodologia e epistemologia das ciências sociais; realizou pesquisas na área da psicologia social tematizando questões como agregação, socialização, morfologia social, necessidades, intersubjetividade, institucionalização, o problema do suicídio, da consciência e da memória coletiva.299 No entanto, sua maior influência apresenta-se nos estudos so-bre a memória e os quadros sociais da mesma; seguidor de Dürkheim, objetivava constituir um programa de expansão de sua sociologia.300

A instrumentalidade na obtenção dos relatos de memó-ria, seja esta nos âmbitos coletivos, individuais e/ou biográ-ficos, vai nos dizer da atualidade ou não do pensamento de Halbwachs, bem como oferecer a base da mediação necessária e confiável para os estudos de lembrança, de resgates tempo-rais, do papel da oralidade em seus vínculos sociais.

299 Suas obras mais conhecidas são: La classe ouvrière et les niveaux di vie; La morphologie sociale; La topographie légendaire des Evangiles en Terre Sainte; Les cadres sociaux de la mémoire; La mémoire collective (ver melhor indicação na bibliografia final).

300 Parisiense, filho de professor, nasceu em 1877; desde cedo seguiu a profissão de seu pai ensinando em liceus; ganhou uma bolsa de estudos e foi estudar em Berlim. Após uma breve estada em Berlim, retornou à França e passou a lecionar em grandes universidades, como é o caso da Universidade de Strasbourg, na Sorbonne e no Collége de France, neste último na cátedra de Psicologia Social. Grande ativista político, foi, logo no início da Segunda Guerra Mundial, alvo da Gestapo, tendo sido preso e deportado para o campo de concentração de Buchenwald, local onde veio a falecer meses antes do término do conflito mundial.

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A dimensão coletiva de memória em Halbwachs

Não estamos nunca sozinhos.

Halbwachs

Comecemos então dizendo que, para o autor, as lembran-ças de cada um se confirmam, se modificam ou se perdem no interior de um sistema de inter-relação. Desse modo, o autor em questão não faz uma verdadeira sociologia da memória, mas, antes, uma sociologia da recordação, ou melhor do recor-dar-se.301 Seu ponto de partida é a memória individual e sua tese fundamental é que a memória individual é uma constru-ção social.

Pelo que entendemos da análise de Halbwachs, rememo-rar, reconstruir, alterar, localizar, racionalizar e dar lógica à lembrança dependerá do domínio individual das noções fami-liares do grupo de pertencimento, dos pontos de reparo, do nível de interação com os fatos no vivido individual/grupal, da mor-fologia do grupo, da sucessão de quadros diferentes, das modifi-cações e descontinuidades dos grupos (entrada/saída de indiví-duos), da utilidade/interesse da lembrança para o grupo (níveis de lembrança e de esquecimento conscientes e inconscientes).

A ideia de memória coletiva identifica um singular gru-po, ou, no limite, toda a sociedade. A dimensão social da me-mória manifesta uma pluralidade de memórias coletivas; a memória social incorpora uma multiplicidade de memórias coletivas. O social prevalece sobre a memória coletiva, consi-derada a submemória de um grupo que é parte de um vasto social, ou seja, da sociedade global.302

301 JEDLOWSKI, P.; RAMPAZI, M. (a cura de). Il senso del passato. Milano: Franco Angeli, 1991.

302 NAMER, G. Mémoire et société. Paris: Méridiens-Klincksieck, 1986; ver, também, FERRAROTTI, F. La storia e il quotidiano. Roma-Bari: Sagittari Laterza, 1986.

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Halbwachs busca refutar a tese de Bergson segundo a qual o indivíduo dispõe de uma memória individual não redu-zida à memória social.303 A sua tese básica é a de que o indi-víduo se apropria dos elementos de sua memória – das lem-branças – através de seu pertencimento e interação a um gru-po com o qual compartilha as suas lembranças. A passagem da memória individual à coletiva necessita da mediação dos quadros sociais de memória. Desse modo, indivíduos e grupos compartilham as mesmas lembranças e os mesmos princípios organizativos da memória. Para Halbwachs, o movimento de memória é sempre uma tentativa de reconstrução do passado a partir da inteligência individual e da sociedade, dos meios que nos estão fixados e dispostos como categorias de inteli-gência e de memória (o lugar, a forma, o nome, a reflexão, o tempo, os símbolos...).

Os quadros de memória se constituem a partir dessa ex-periência, desse interesse, dessa significação e dessa identi-dade que se constitui coletivamente, se identifica, se agrupa, se diferencia, se altera, se consolida e se correlaciona com as dimensões passadas e presentes do tempo e dos vividos. Nes-se ambiente teórico, é possível dizer que o passado não se con-serva no todo, intacto, mas se reconstrói. A memória coletiva não é ressurreição ou um reviver puro do passado enquanto tal, mas, sim, reconstrução em função do presente.

O autor refletiu profundamente sobre a possibilidade da lembrança de corresponder e ritualizar a memória de um gru-po social de pertencimento atual ou no passado. Nesse senti-do, a memória torna-se complexa, pois será fruto da multipli-cidade dos agrupamentos sociais. A memória é o resultado de um trabalho permanente no decorrer do tempo, no qual seus

303 CAVALLI, A. Lineamenti di una sociologia della memoria. In: JEDLOWSKI, P.; RAMPAZI, M. (a cura di). Il senso del passato. Milano: Franco Angeli, 1991.

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conteúdos são, de tempos em tempos, conservados ou aban-donados por grupos humanos concretos. O afrouxamento ou o fortalecimento de um implica o mesmo resultado no outro, ainda que possa essa relação se dar pela ótica do conflito, da tensão entre memória individual e memória coletiva.

Se o passado se conserva, se conserva na vida dos homens na forma objetiva de sua existência e nas formas de consciência que a esses corresponde. Recordar é uma ação que se processa no presente e, do presente, depende. A reconstrução do passado corresponde aos interes-ses, aos modos de pensar e as necessidades da sociedade presente.304

O papel da memória coletiva é sustentar em nível cogni-tivo e simbólico o sentido de identidade coletiva. A memória coletiva pode assumir uma veste mais ou menos instituciona-lizada, objetivando-se em práticas específicas, em lugares de cultos ou em coisas/objetos significativos, mas a sua origem e a sua reprodução se situam no nível das práticas comuni-cativas; sua função principal é favorecer a coesão do grupo social e garantir sua identidade.305 No curso desse processo, verificam-se mecanismos de seleção do passado relevante e que possam basear-se em critérios consensuais ou, então, ser objeto de conflito,

[...] pois qual seja o critério de seleção, representa, no fim, uma atribuição de valor [...], não são jamais independentes da estrutura de poder que, de tempos em tempos, caracteriza o grupo ou a so-ciedade. O poder de criar e de estabilizar a memória é, com efeito, sinal de poder em geral a todos os níveis da organização social.306

Na análise de Namer, a memória coletiva carrega as diferentes contraposições e contradições dos fenômenos que reiteravam memórias precedentes e que puderam se suceder

304 JEDLOWSKI, P. Introduzione (tradução italiana de La memoria collettiva). Milano: Unicopli, 2001. p. 31.

305 JEDLOWSKI, op. cit.306 CAVALLI, A. Lineamento di una sociologia della memoria. In: JEDLOWSKI,

P.; RAMPAZI, M. op. cit., p. 34.

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no tempo. A importância dessas memórias no presente vai de-pender da forma como vêm transmitidas e ritualizadas. Daí o papel da democracia, da mistificação, da reinvenção, da difu-são e da mass-média, da capacidade de reiteração, das revolu-ções, etc. Para o autor, a mídia produz uma memória coletiva anônima, potente e sem regras, que legitima o excesso e a passividade. “Hoje a televisão legitima qualquer terrorista, pois o mundo inteiro pode vê-lo e admirá-lo. [...]. A memória comum televisiva substitui a memória coletiva.”307

Ora, dessas afirmações deriva uma concepção de me-mória não como algo dado, mas passível de modificações e de usos pelos grupos no poder dominante e seus rituais de conservação; a memória pode ser reconstruída a partir das exigências dos grupos sociais ativos, é dinâmica e conflituo-sa, produtora e produto de tempos sociais e de fatos históri-cos. É com base nesses pressupostos que desenvolveremos e desmembraremos uma análise de suas ideias principais e de como essas poderão auxiliar nos estudos de memória de ido-sos, objeto da terceira parte.

A linguagem como manifestação do coletivo

Uma importante condição para lembrar é nossa capacidade de esquecer.

Whitrow

A linguagem é um elemento fundamental na organização da memória, é o elemento fundante da identificação social da memória individual. A lembrança é um produto da interação linguística que lhe dá ordem e compreensão num fluxo comple-

307 NAMER, G. Memoria collettiva e democrazia. Rassegna Italiana de Sociologia, p. 399.

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xo de operações. Namer já dizia, interpretando Halbwachs,308 que a memória se manifesta como prática narrativa; daí a importância das vozes, das fontes orais, de descobrir as fontes mais legítimas para exteriorizar experiências e conhecimen-tos, de fazer sua experiência um potencial de narração.309

Segundo Passerini, as análises de Halbwachs vêm mos-trar como a memória compartilhada, através do tempo e do es-paço, apresenta funções de identidade cultural em constante mudança, não como fidelidade ao acontecido, mas como inten-sa vontade de viver o presente e o futuro. Nesse ajustamento, não necessariamente há aspectos de redução e empobrecimen-to, mas, sim, a reelaboração das lembranças abre os olhos so-bre seu significado do passado que não tinha sido evidenciado anteriormente, e o passado prolonga-se em tradição de longa duração. A linguagem, desse modo, torna-se o elemento dessa transtemporalidade da tradição. É importante ter presente que, dessa concepção, não se retira a originária conflitualida-de, nem a obra de seleção e de formação que preside a lem-brança, sobretudo no que tange à dimensão do poder formal e do difuso subterrâneo das relações interpessoais.310

Halbwachs problematiza a ideia de identidade individu-al fazendo uma diferença entre autobiografia e memória so-cial (coletiva). Diz o autor que

[...] a memória individual, para confirmar uma lembrança, ou para precisá-la, ou para suprir alguma lacuna, pode basear-se sobre a memória coletiva, inserir-se, confundir-se com ela por um momento, tem, todavia, uma vida própria, e cada relação externa é assimilada e incorporada progressivamente na sua base. E, por sua vez, a memória coletiva, abarca a memória individual, mas não se confunde com ela.

308 Ou seja, Memória coletiva, Les cadres sociaux de la mémoire e Memoria di Terrasanta (indicamos o título na tradução que revisamos. Ver na bibliografia final a indicação completa dessas obras).

309 Ver sua Introdução à edição francesa de La mémoire collective...310 PASSERINI, L. Postfazione (da tradução em italiano de La memoria collettiva).

Milano: Unicopli, 2001.

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As lembranças coletivas frequentemente se oferecem como ponto de referência nos quais as lembranças individu-ais possam ser reconhecidas e colocadas com mais certeza.311

A memória individual apoia-se na coletiva seja pela sua estrutura de sentido, seja, também, pelo conteúdo linguístico que vem confirmado, no qual o indivíduo é inserido. As re-cordações que nos são mais pessoais são o resultado de um complexo processo de interseção de intfluência de grupos di-versos, cada um tendo um tipo de influência específica sobre o resultado final.312

Os indivíduos participam de vários grupos em sua exis-tência, seja contemporaneamente, seja na sucessão do tem-po; cada um desses grupos é portador de valores, linguagens, culturas diferentes. Essa “comunhão do olhar” sobre o mundo é, ao mesmo tempo, consequência e pressuposto de pertenci-mento ao grupo. Interiorização, socialização, representação da realidade, interpretação dos eventos, reconhecimento como portador de uma própria memória coletiva são alguns dos pressupostos para ser sentido e se sentir parte dos grupos.

A relação entre memória coletiva e memória individual, em Halbwachs, possui um sentido circular, não meramente de causa/efeito. Cada indivíduo sintetiza diversas memórias coletivas dos grupos a que pertence.313 Para os adeptos da me-mória coletiva e de seus quadros sociais e coletivos, uma das primeiras características de toda memória está na sua dupla natureza: além de ser um conjunto de lembranças e de ima-gens, pode ser também considerada um conjunto de repre-sentações associadas a valores e normas de comportamento. Nesse sentido, ela se liga com a história pública, com os siste-mas sociais socializadores que constituem, linguisticamente,

311 CARRERA, L., op. cit., p. 17.312 Ibidem.313 HALBWACHS, M. Les cadres...

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os modos de agir, pensar e sentir, exteriores aos indivíduos e dotados de um poder coercitivo (pensar nas instituições, na memória nacional e política).

Pelas representações coletivas, as imagens do passado tomam forma lentamente na consciência não mais do indiví-duo, mas do social, sedimentadas no longo decorrer da exis-tência. As representações coletivas funcionam como elemento de correspondência entre a experiência do indivíduo e a dos grupos; constituem a esfera de confluência dos valores, das crenças, dos modelos de comportamento, interiorizadas no longo percurso secular da duração.314

A base social/coletiva da memória constitui-se na famí-lia, nas classes, nos grupos de referência (escola, empresa, partido, etnia, raça, nação...), na religião, na tradição, dentre outras, as quais, institucionalmente, formam o sujeito e auxi-liam na determinação de sua visão de mundo.

O sentido social da memória coloca a dimensão do tem-po na lembrança: o tempo presente. Nesse sentido, as noções de refazer, reconstituir, repensar fazem, em grande parte, excluir a identidade entre imagens de um tempo e de outro.

314 Ver a crítica de M. BLOCH à concepção de tempo em Halbwachs quando do aparecimento do livro Les cadres sociaux de la mémoire, em seu livro Histoire et historiens. Paris: Colin, 1985. Sobre essa questão do tempo, da longa du-ração, ver BRAUDEL, F. Capitalismo e civiltà materiale. I, Torino: Einaudi, 1977. Nesse livro, Braudel faz um inventário da vida cotidiana de populações do passado (Séc. XVI-XVIII), dos elementos do imaginário, das necessidades concretas e dos objetos de sua satisfação: a comida, o corpo, o convívio e a de-pendência de animais, seus significados, dentre outros. O autor refletiu sobre a imobilidade do tempo e a temporalidade da natureza. Para o autor, o papel do imaginário cotidiano era fundamental para manter essa imutabilidade do tempo; diz que, “com efeito, não estamos, nesse caso, só no âmbito das coisas, mas, sim, no das coisas e das palavras, entendendo esse último termo além de seu sentido ordinário. Trata-se de linguagem, com tudo o que disso o homem carrega, insinua, rendendo-se inconscientemente prisioneiro frente ao seu prato de arroz ou ao pedaço de pão cotidiano. Joga com tudo isso a civilização. Estranho conjunto de bens, de símbolos, de ilusões, de fantasia, de esquemas intelectuais. Enfim, até no mais profundo da vida material se instaura uma ordem de tendências, de pressões insconscientes da economia, da sociedade e de civilização” (p. 249).

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O elemento socializador da memória é a linguagem, suas re-presentações, sua temporalidade, suas convenções, suas di-ferenciações em termos de significados e símbolos. Há uma (re)construção social da memória, a qual implica filtragem, enquadramentos e convencionalização.315

Halbwachs diz que “as convenções verbais constituem o quadro mais estável e mais elementar da memória coletiva; as recordações se fazem cada vez mais de palavras, ou me-lhor, de vários fragmentos da memória que vêm silenciados e que são relacionados ao mundo da fala”.316 A categoria socio-cultural da linguagem e a representação do tempo e do espaço são formas a priori nas quais os conteúdos das memórias indi-viduais se depositam. É por isso que os limites da linguagem denotam os limites do mundo, da compreensão e na expressão dos indivíduos. Através da linguagem é possível estabelecer relações com o mundo, é possível comunicar experiências, fundar tradições comuns, subjetivar experiências, intercam-biar e se apropriar de símbolos e de memórias coletivas.

A pessoa recebe do passado não só dados da história es-crita; mergulha suas raízes na história vivida, sobrevivida das pessoas. A verdadeira socialização se dá no concreto, no cotidiano, no interior; há correntes do passado que só desa-parecem na aparência e que podem reviver numa rua, numa sala, em certas pessoas, no jeito de falar, na alimentação etc.; são resquícios de outras épocas, fragmentos do tempo.317

A memória, sem o trabalho de reflexão e de localização, seria uma imagem fugidia; o sentimento precisa acompanhá-la para que ela não seja uma repetição do estado antigo, mas

315 A noção de convencionalização permite-nos entender os mecanismos de adaptação da memória e sua linguagem em relação ao universo cultural e ideológico em questão. É uma espécie de modelagem no ato de transferência de uma situação evocada para os que a evocam. Ver Bosi, op. cit.

316 HALBWACHS, M. A memória coletiva, p. 114.317 BOSI, E., op. cit.

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uma reaparição. A memória concentra-se mais em pontos em que a significação da vida se concentra (só realmente fica o que significa); há tempos vazios (tempo de trabalho para mui-tos), tempos sociais que absorvem tempos individuais, formas heterogêneas de viver e conceber o tempo; no “meu tempo”, como diziam muitos dos nossos idosos entrevistados (tempo de realização de seu saber e de sua implicação no real), é a época que pertence aos homens mais jovens que nela se reali-zam por suas atividades.

Enfim, a função social da memória seria a de lembrar, a de ser memória da família, do grupo, da instituição, da socie-dade. A memória coletiva de determinado grupo é uma memó-ria estruturada, a qual possui hierarquia e classificação (diz o que é comum a um grupo e o que o diferencia), bem como as fronteiras socioculturais que articulam os sentimentos de pertencimento. Sendo o homem um ser social, sua memória só pode ter sentido no quadro coletivo. A relatividade da me-mória será condizente com os quadros sociais e temporais que o indivíduo viverá em sociedade. Os mediadores são bens sim-bólicos, assim como os objetos que representam status eleva-do na hierarquia social, objetos transferíveis de uma geração para outra (sobrenome e heranças). Esses elementos dão a ideia de um tempo cíclico (pensar na relação dos avós com os netos, relação essa de continuidade, de desejo de deixar presa sua presença, de serem testemunhos de existência de pesso-as, de lugares, de paisagens, de (situ)ações de pertencimento, de emblemas quase sagrados, enfim, fragmentos do tempo, de linguagens dos sentidos e de emoções).

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O entourage sociale e a dependência da memória individual

O estudo da memória nos ensina que todas as fontes históricas estão desde o princípio banha-das de subjetividade.

J. Vansina

No que se refere à memória coletiva, Halbwachs diz que exprime, em vez de um “conhecimento” positivo do passado, uma mediação entre os conteúdos do passado disponíveis e as necessidades ideais dos grupos.318 Nesse sentido, a memória diferencia-se da história.

Se, de fato, enquanto projeto consciente de conhecimento do passa-do, a memória não pode fazer menos de que adequar-se ao problema da objetividade dos fatos históricos e de sua cronologia. No entanto, a memória não está tanto interessada no conhecimento e, sim, na prática. Do passado não conserva imagens “fiéis”, mas imagens que servem ao presente e são significativas para continuidade da vida de um grupo. Se a história é a interpretação dos eventos passados que se coloca em algum modo sempre do externo, de um ponto de vista que é concebido como presente próprio, enquanto distinto do passado, a memória é, ao contrário, a continuidade do passado num presente que dura. Nessa continuidade, as imagens do passado são constantemente remodeladas e selecionadas de novo com as exigências de adequação às necessidades do hoje.319

Para Halbwachs, a memória coletiva não é estanque, nem pura ou isenta de interesses. Numa sociedade estratificada que luta por espaços, a memória não passa à margem disso tudo. O campo da memória é um espaço de conflito/tensão de estratificação, de fragmentos diversos de memória, de traços ocultos, de testemunhos, os quais sobrevivem em imagens do

318 Essa obra foi publicada em 1950 como obra póstuma, após o autor ter escrito, em 1941, Topografie légendaire des Evangelis en Terre Sainte, no qual havia recolhido análises empíricas que alimentariam a tese da memória coletiva.

319 LE GOFF, J., op. cit., p. 212.

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passado. Essas se apresentam num jogo, cuja legitimação está em sua capacidade de justificar a ordem das coisas presentes da legitimidade e a tradição, que almejam presentificar no fu-turo. É por isso que a memória coletiva manifesta um conjunto de representações do passado que permanecem conservadas e transmitidas entre seus membros, pela sua função prática de integração.

Que se trate de sua família ou de sua igreja, de seu partido ou da minoria étnica a qual pertence, o indivíduo está imbuído do afeto e dos interesses que o ligam a qualquer um desses grupos a compar-tilhar lembranças, a forjar interpretações comuns, a compartilhar o sentido daquilo que é memorável.320

Apesar de sua complexidade e ambiguidade, a memória social é apresentada pelo autor como um resíduo de memória coletiva, como uma lembrança de memória coletiva dispersa na mente de quem, no passado, havia feito parte do grupo. É uma memória na sociedade sem o suporte de algum grupo. Halbwachs é claro ao afirmar que, em todo o pano de fundo de sua análise, a memória individual depende do entourage sociale. “Este ambiente é caracterizado pela sua língua. [...], o aspecto da gente e os lugares, os costumes, aquilo que é familiar.”321 Porém, a memória social também, como âmbito material e espiritual, condiciona o indivíduo. É a memória dos outros em geral que nos circunda e que conserva nossas lembranças. “Nós completamos as nossas lembranças, aju-dando-nos, ao menos em parte, com o máximo dos outros.” A memória social é aquela de um ambiente geral da linguagem, a forma e o esquema geral do tempo e do espaço.322

Em termos de influência sobre e no indivíduo, a memória social está num nível mais baixo do que a memória coletiva;

320 JEDLOWSKI, P., op. cit. p. 51.321 HALBWACHS, M. Les cadres..., p. XV.322 HALBWACHS, M. Les cadres..., p. 23.

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é uma memória imediata, não estruturada, porém necessá-ria para a construção da lembrança histórica, da tradição, do pensamento e do significado moral. A memória coletiva é normativa, possui um efeito moral na sociedade e no grupo; é a memória do dom, do empréstimo, da dívida que deve ser paga; a memória social é uma obrigação técnica, não portado-ra de moralidade.323

Passerini enfatiza que existirá sempre uma separação maior entre a estrutura da memória coletiva evidenciada com a expansão das recorrências à memória individual. Não obs-tante, Halbwachs é claro nos Les cadres... ao dizer que há um anel que liga, que permite a busca da memória, ou seja, sem a base comum do grupo, ou, no limite, da espécie, não se desenvolve a memória individual. Segundo o autor, sem a me-mória individual, não é possível a compreensão da intersub-jetividade, da empatia, consequentemente, da transmissão e da tradição.

Passerini insiste na ideia de que o historiador não po-derá indagar sobre o papel do indivíduo na história sem ter presente, de uma maneira ou de outra, o modo das agregações sociais, ainda que no plano da subjetividade.

A reorganização da memória coletiva de que falava Halbwachs, é, em última análise, trabalho de individuação. Os contributos da individualidade vão cercados, não tanto na matéria da lembrança, mas no modo no qual reinventa a própria posição na história e a relação entre indivíduos e os outros. Do ponto de vista da pesquisa histórica, interessa-nos os pontos de encontro e de fricção entre as duas formas de memória, ou melhor, entre os aspectos diversos de uma mesma memória. Esperamos que as reflexões e o acúmulo de trabalhos científicos sobre a memória coletiva tenham aberto o caminho sobre a memória individual.324

323 NAMER, G. L’affectivité du temps de la mémoire. In: L’ Homme et la société. Paris: L’Harmattan, 1989.

324 PASSERINI, op. cit., 2001. p. 264.

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A memória social dinamiza e/ou traz presentes os cha-mados “subterrâneos da memória”. A história e a memória oral são duas dinâmicas que provocam e resgatam os confli-tos da memória, retomando o silêncio, remexendo feridas, de-núncias, as zonas de sombra e os resíduos.325 As memórias subterrâneas fazem seu trabalho de subversão no/do silêncio muito calmamente. Os momentos de crise, de exacerbação do estigma, de alterações temporais, são férteis para romper com as zonas de silêncio, com as fronteiras entre o dizível e o indizível.326

Nesse sentido é que se revela a importância de analisar os ressentimentos e ufanismos de memória como represen-tantes de quadros sociais, culturais, étnicos, políticos. Alguns autores dizem que é impossível à memória escapar contem-poraneamente dos procedimentos históricos. Esse movimento é inexorável e sem volta; toda memória, atualmente, é uma memória exilada, que busca refúgio na história; restam-lhe, assim, os lugares de memória.

Muitas tradições são inventadas; fazem parte dos pro-cessos de ritualização e formalização de práticas políticas na sociedade moderna; fundamentam-se numa releitura de fragmentos culturais de longa duração; direcionam-se para símbolos, festejos, celebrações que lhe dão visibilidade; exer-ceram grande influência na vida da nação, revestindo-se de forte carga emotiva, de sinais de identidade, de soberania na-cional. As tradições inventadas recriaram e transformaram a história da nação, instituindo saberes e memória a partir dos quais se selecionaram, se institucionalizaram e se propa-garam rituais, práticas e representações que conformaram a constituição “subjetiva” da nacionalidade.327

325 Ver TEDESCO, J. C. (Org.). Usos de memória.326 Ver BOSI, op. cit.327 Ver HOBSBAWM, E.; RANGER, J. T. A invenção das tradições...

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A história fornece o alimento para o enquadramento ou não da memória, por meio de interpretações, de coerências discursivas, de ordenação de fatos, construindo mitos, figuras centrais, referências culturais. Ao que nos parece, o objetivo é dar, mesmo em meio às tensões de memória, um sentido ou não de perenidade, de cristalização e de continuidade. Nesse sentido, os ritos e sua simbologia, são fundamentais; o famo-so non dimenticare, muito presente em rituais de lembrança pública política, possui uma carga histórico-simbólica muito forte e uma eficácia pe’dagógico-social.

Contratualidade cultural e histórico-social

Halbwachs faz sempre referência à alteridade, à presen-ça do eu sob o olhar do outro.

Veremos que, na maior parte dos casos, nós fazemos recurso a nossa memória só para responder às perguntas que nos são feitas pelos outros, à que suponhamos que esses poderiam nos fazer [...], colocamo-nos em seus pontos de vista, considerando-nos como integrantes de um ou mais grupos como eles.328

Estão sempre presentes o recurso linguístico e o elemen-to social na lembrança. “Na maior parte dos casos, se eu lem-bro alguma coisa, é porque os outros me incitam a lembrar; é a memória dos outros que vem em socorro da minha; é a minha que se apoia na deles.”329 É por isso que a visão do coletivo, do outro, da experiência coletiva constitui, para Hal-bwachs, aquilo que se convencionou chamar de “comunidade do olhar”.330

328 HALBWACS, M. A memória coletiva. p. 16.329 Idem., p. 26.330 NISIO, F. V. Comunità dello sguardo: la sociologia ethica di Maurice Halbwa-

chs. Rassegna Italiana di Sociologia, a. XLI, n. 3, lug./set., 2000. p. 323-360. Sobre o pensamento de Halbwachs, ver, também, AMIOT, M. Le systéme de

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Reconhecimento, localização, sentimento de familiarida-de comum e social, linguagem, imagem, percepção, experiên-cia, proximidade física e de pensamento são elementos cons-tantes na análise dos quadros de memória em Halbwachs.331 Pertencer dá ideia de uma ressonância moral, de vizinhança, de compartilhar do mesmo sangue, do mesmo espaço, de uma contratualidade cultural e simbólica, acima de tudo, de coo-peração solidária, afetiva e parental, memória e identidade coletiva, genealógica (parentesco, biografia e consanguinida-de), política (Estados nacionais através da língua, da origem, da cultura...).

A ideia de pertencimento carrega consigo a necessida-de de ancorar o grupo/comunidade a algo que dê garantia de continuidade, de eternidade tanto para o futuro quanto para o passado, ainda que esse processo possua uma base histó-rico-temporal de curta duração e uma tradição não de base comum. O pertencer pode se dar pela simples identificação identitária, cultural, imaginária… e sua temporalidade alte-ra-se, renova-se e entrecruza-se, porém há sempre interação de uma “situação de contemporaneidade” (no caso em ques-tão, ser idoso, ser descendente de italiano, falar o dialeto, en-frentar os mesmos desafios culturais e físicos, “migrar sem nada”, “trouxemos de lá muito do que temos aqui”). É por isso que sentir-se pertencendo carrega uma simbologia que une indivíduo a uma totalidade histórico-cultural e temporal. Os nomes, por exemplo, associam-se a tradições, a moralidades, ao elemento continuidade. O nome, o “bom nome da família”, é uma categoria totalizante que desafia a linearidade do tem-po, assim como o é a família. Ambos desafiam o limite de vida de seus membros constituintes.332 Diz Halbwachs que

pensée de Maurice Halbwachs. Revue de Synthèse, v. 2, n. 6, 1992.331 HALBWACHS, M. Les cadres...332 Ver uma excelente análise sobre isso em LINS de BARROS, M. M. Autoridade

e afeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.

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nada dá melhor a ideias desse gênero de lembranças que os nomes, que não são nem noções gerais, nem imagens individuais, e que entretanto designam, ao mesmo tempo, uma relação de parentesco, e uma pessoa. Os nomes se assemelham aos sobrenomes dos quais a gente se serve para representar os objetos no que eles supõem um acordo entre mem-bros do grupo [...]. Eu sinto, então, que me será suficiente pronunciar este nome em presença de outros parentes para que cada um deles saiba do que eu falo, e se prepare em comunicar tudo o que ele sabe a esse respeito. Importa pouco, aliás, que eu não proceda efetivamente a esta sondagem: o essencial é que eu saiba que ela é possível, ou seja, que eu fique em contanto com os membros da minha família [...]. Há, pois, bem atrás do nome, as imagens que seriam possíveis, em certas condições de fazê-las reaparecer, mas esta possibilidade resulta da existência de nosso grupo, de sua persistência e de sua integridade.333

Natureza e cultura imbricam-se nesse processo. Não é só a memória familiar, a qual, acima de tudo, envolve nomes e sobrenomes, que conta nesse processo, mas também a lin-guagem (o dialeto, a “língua mãe”), a moradia, o território, a posição social, aspirações e valores sociais, visões de mundo, comportamentos, parentesco, etc., disso resultando um con-densar de experiências características de grupos sociais par-ticulares.334 As próprias histórias individuais de vida incorpo-ram as histórias de famílias, e essas são uma forma de memó-ria coletiva.335 As noções de comunidade e de proximidade são importantes para tornar legítimo o espaço da memória.

No interior das cidades, os homens se cruzam e, na maior parte dos casos, ignoram-se. A massa dos homens que circulam nas estradas de nossas grandes cidades representa uma sociedade desintegrada e um pouco ‘mecanizada’. As imagens das estradas passam sobre nós sem deixar traços duradouros, e assim sucede também à maior parte das impressões e das lembranças que não se vinculam com a parte mais importante da nossa vida social. [...]. A nossa vida social pressupõe a existência de grupos contínuos, com os quais fizemos ou fazemos sempre presença.336

333 HALBWACHS, M. Les cadres. p. 165-166.334 THOMPSON, P. A transmissão cultural entre gerações dentro das famílias:

uma abordagem centrada em histórias de vida. Ciências Sociais Hoje, Anpo-cs/Hucitec, 1993. p. 9-19; ver, também, do mesmo autor, A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

335 LINS DE BARROS, M. M. Densidade de memória, trajetória e projeto de vida. Estudos Feministas, n. 1, 1997. p. 140-147.

336 LINS DE BARROS, op. cit., p. 139.

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Os ditos “quadros de referência”, em Halbwachs, forne-cem comunicabilidade às recordações, são expressão da so-brevivência de grupos sociais que constituem na vida cotidia-na os pontos de referência familiares para o sujeito. “Todavia, possam tornar objeto de reflexão consciente, na medida em que o indivíduo se encontra de frente a situações que colocam em discussão o seu pertencimento ao grupo ou a sobrevivên-cia do grupo mesmo.”337

Os quadros sociais da memória agem no indivíduo por meio de uma estrutura de plausibilidade, a qual permite defi-nir a veracidade do que se retém, do que pode e deve perma-necer na memória; atuam ao nível da estrutura cognitiva que o indivíduo intercambia com os grupos nos quais vive. É desse modo que a identidade do indivíduo é produzida junto com a sua memória com aquela dos outros.

Os quadros da memória, em Halbwachs, são dotados de uma forte normatividade, são modelares, exemplares, encora-jamentos e advertência, são uma cadeia de ideais e de juízos que fornecem indicações acerca do presente e do futuro.

Mas os quadros da memória coletiva possuem uma outra importante característica: não são nunca, por definição, anônimos, vivificam nomes, vultos, histórias, aos quais estamos intimamente ligados, que suscitam em nós sentimentos e emoções inconfundíveis, trans-mitem vividos e testemunhos de experiência.338

Os quadros coletivos da memória funcionam como filtros que selecionam os aspectos do passado que o grupo deve recor-dar para poder manter viva no presente a própria identidade.

A memória coletiva é importante para manter a inte-gridade e a sobrevivência do grupo no tempo. Desse modo, a memória coletiva é caracterizada por um intenso componente

337 RAMPAZI, M. Memória e biografia. In:_______, op. cit., p. 140.338 LECCARDI, C. Memoria collettiva e gratitudine. In: JEDLOWSKI, P.; RAM-

PAZI, M., op. cit., p. 73.

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afetivo, que nasce da estreita interação e do seu consequen-te intercâmbio de experiências entre os membros do grupo. Desse modo, fortalece-se o caráter normativo da memória339 e reduz-se a potencialidade do indivíduo na determinação da lembrança. Diz Halbwachs que, “de resto, ainda que eu não caminhasse ao lado, bastaria que eu tivesse lido as descri-ções da cidade, ou, ainda mais simplesmente, que estudasse o mapa da cidade”.340

o encontro/desencontro entre memória social e coletiva341

Criticando a visão de Halbwachs no sentido da dependên-cia do indivíduo ao seu habitus social, Fentres e Wickham342 dizem que o autor concedeu um destaque talvez excessivo à natureza coletiva da consciência social e um relativo desprezo à questão do relacionamento entre a consciência individual e as coletividades que esses indivíduos efetivamente constituí-ram. Muitas críticas ao autor brotam nesse sentido.

Na visão desses autores, Halbwachs teria feito do indi-víduo uma espécie de autômato condicionado e obediente à vontade coletiva interiorizada. Nesse sentido, os autores re-ferem que recordar não é apenas recordar conhecimento, mas também sensações. A memória, com efeito, penetra em todos os aspectos da nossa vida mental, dos mais abstratos e cogni-tivos aos mais físicos e inconscientes. A memória está sempre operante em nosso espírito, o que significa que devemos situ-ar os grupos em relação às suas próprias tradições, descobrir

339 LECCARDI, op. cit., p. 74.340 HALBWACHS, M. La memoria collettiva. Milano: Unicopoli, 1987. p. 3.341 Aprofundamos melhor esse item em nosso livro Memória e cultura.342 FENTRES, J.; WICKHAM, C. Memória social: novas perspectivas sobre o

passado. Lisboa: Teorema, 1994.

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como interpretam os seus próprios “fantasmas” e como os uti-lizam no sentido de servir de fonte para o conhecimento.343

Para Halbwachs, em Les cadres..., a origem social da me-mória deve-se ao esforço de compreender a forma atual das circunstâncias das lembranças (um presente impessoal e em exterioridade) em direção a um passado pessoal que é recons-tituído antes de se deixar reviver. “Quando nós nos lembra-mos, nós partimos do presente, de um sistema de ideias ge-rais que está sempre à nossa disposição.”344 A nossa memória tem também origem social pelo fato de que todas as recor-dações, mesmo aqueles sentimentos não expressos, estão em relação com todo um conjunto de noções que nos precedem. Desse modo, é pertinente dizer que nossa memória individual é social porque utiliza noções que estão presentes nos gru-pos atuais e nos passados de nossa existência. Daí que toda a lembrança está em relação “com a vida material e moral das sociedades, as quais nós fazemos ou fizemos parte”.345 Para o autor, nossa memória possui também uma origem social de-vido ao fato de nos recolocar numa totalização de um grande número de memórias coletivas, sem ter capacidade de refle-xão, de compreensão, como é o caso dos sonhos, da lingua-gem, da noção de espaço e tempo sem definição, porém com sentimento de pertencimento e como manifestação de que a sociedade se faz sentir também de outras formas.346

Nessa interpretação, é possível dizer que a nossa memó-ria social é uma virtualidade de memória coletiva devida ain-da ao fato de que é o que resta de uma ou muitas memórias coletivas passadas quando a coesão e a pressão do grupo de-sapareceram, pois entendemos que a experiência se perde na

343 Id. ibid., p. 42.344 HALBWACHS, M. Les cadres... p. 25.345 Idem, p. 38.346 NAMER, G. Mémoire et société. p. 23.

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falta de contato, pela impossibilidade de nossa capacidade de compreender o ponto de vista do outro e da sociedade (como memória e inteligência impessoal, simbolismo convencional, de refêrencia local da recordação), de refletir, de usar a inte-ligência e os sistemas de ideias que nos rodeiam, das signifi-cações sociais. A noção de diálogo é fundamental na ideia de memória em Halbwachs, para quem são os outros que, fre-quentemente, nos incitam a relembrar. O entorno, o meio, o engajamento, as condições objetivas são fundamentais e dia-lógicos na construção e reconstrução da memória individual.

É desse diálogo que se produzem/reproduzem costumes, tradições, representações, símbolos coletivos, mentalidades, o popular, a identificação entre pensamento coletivo e memória coletiva (grupo). São esses elementos os mecanismos mentais e materiais dos quais se servem os indivíduos e grupos para se recordar. “Os quadros coletivos da memória [...] são [...] os instrumentos de que a memória coletiva se serve para recom-por uma imagem do passado que se correlaciona a cada época com os pensamentos dominantes da sociedade.”347

Conceptualizar e recontextualizar tornam-se uma necessi-dade para a memória social. Mitos, genealogias, contos populares, tradição oral são manifestações de criações de contextualizações. Há necessidade histórica de recontextualizações como processo geral da memória social para ganhar significados mais amplos. A própria tradição é articulada e necessita de um significado apro-priado ao contexto. Autores mencionam que essa necessidade de reinterpretação está no seio da própria tradição.348 Fazer histó-ria da memória social é também construir uma história de sua transmissão, dos processos que conduzem, no tempo, o relembrar. É possível, então, perceber o pragmatismo de cer-tas tradições e/ou traduções (pensar em Hobsbawm no seu A

347 HALBWACHS, M. Les cadres... p. XVIII.348 HALBWACHS, op. cit., p. 109.

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invenção das tradições) e sua utilização presente para certos grupos.

Há autores que defendem as práticas interativas dos in-divíduos, que, ao mesmo tempo em que modificam, fazem uso das estruturas sociais. Daí a noção de dualidade de estrutura de Giddens, da circularidade dialética em Ginzburg, da inte-ração dialógica de Habermas, do habitus em Bourdieu e da consciência em Thompson. Para alguns autores,349 a criativi-dade social é exercida por meio de interações variavelmente descentradas, incluindo redes de amizade, famílias, organi-zações, movimentos sociais, nações e civilizações. A relação entre indivíduo e memória é algo polêmico.

A memória social, como vimos, é responsável pela estru-turação dos sistemas sociais, ou seja, pelo estabelecimento e manutenção de padrões interativos (tradição) e institucio-nais, subjazendo também a operações técnicas e científicas; inclui reminiscências, atitudes e sentimentos, regras sociais e normas, padrões cognitivos, assumindo formas ideais e ma-teriais que se encontram concretamente imbricadas e que po-dem ser separadas apenas analiticamente. A memória social provê os padrões para a estruturação do “imaginário”, isto é, para a dimensão expressiva, cognitiva e normativa da vida social, para o desenvolvimento das relações sociais e para o intercâmbio material dos sistemas sociais com a natureza. Fornece também os padrões para a estruturação de sua di-mensão espaciotemporal, sua configuração (coesão mais de-marcação) e ritmos (de reprodução e mudança).350 Com isso, não significa dizer que a memória social seja homogênea em sua construção, distribuição e demanda.

349 DOMINGUES, J. M. Sociologia da cultura, memória e criatividade social. Dados, Rio de Janeiro, n. 2, 1999. p. 303-339.

350 Idem, p. 308.

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Nossos “estoques de conhecimento” são diferenciados; cada indi-víduo tem graus variados de claridade, distinção e precisão que surgem dos sistemas de relevância determinados por sua biografia. Por isso a importância em levar em conta os atores individuais e subjetividades coletivas variavelmente descentradas, ou melhor, levar em conta criatividades sociais.351

O grupo social reconstrói as lembranças, tornando-as fe-nômenos sociais. Daí a importância de o pesquisador conhecer os símbolos e suas significações no tempo, seu intercâmbio e a forma como é construída a dimensão social das memórias in-dividuais. A relatividade da memória será condizente com os quadros sociais e temporais que o indivíduo viverá em socie-dade, os quais, segundo ele, não são poucos; estão presentes em todas as fases da vida, algumas mais intensas (família, religião, para muitos, as classes), outras menos marcantes.

Halbwachs diz que, no desenvolvimento contínuo da me-mória coletiva, não há linhas de separação nitidamente tra-çadas, como na história, mas somente limites irregulares e incertos. A memória de uma sociedade estende-se até onde pode, quer dizer, até onde atinge a memória dos grupos dos quais ela é composta. Para o autor, há muitas memórias co-letivas, porém não pode haver muitas histórias. No fundo, é a ideia de que a memória coletiva é o grupo visto de dentro. A história examina os grupos de fora e abrange uma duração bastante longa. A memória coletiva apresenta ao grupo um quadro de si mesmo que, sem dúvida, se desenrola no tempo, já que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele se reconhece sempre dentro dessas imagens sucessivas.57 Na concepção de Halbwachs é possível ligar modernidade e tradi-ção na esfera do cotidiano, do horizonte do vivido.

351 DOMINGUES, op. cit., p. 329.

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O passado deixou muitos traços [...], se percebe também na expressão dos rostos, no aspecto dos lugares e mesmo nos modos de pensar e de sentir inconscientemente conservados e reproduzidos por tais pessoas e dentro de tais ambientes, nem nos apercebemos disto, geralmente. Mas basta que a atenção se volte para esse lado para que nos apercebamos que os costumes modernos repousam sobre antigas camadas que afloram em mais de um lugar. Algumas vezes, é preciso ir muito longe para descobrir ilhas de passado conservadas, parece, tais e quais, de tal modo que nos sentíssemos subitamente transportados a cinquenta ou sessenta anos atrás.352

Nesse sentido, Halbwachs é claro ao analisar o fato de que quem faz o tempo da memória coletiva é o grupo. Tal questão acaba relativizando o tempo e o limite de vida à me-mória, pois, se o grupo acabar, acaba a memória. Por isso, a importância da formação e do desenvolvimento da identida-de do grupo, de sua memória comum e de seus traços fun-damentais, bem como de seus vínculos e ritos tradicionais. Isso leva a que mudanças sociais não sejam sinônimas pura e simplesmente de causa de desintegração. Os mediadores são fundamentais; são elos vivos entre gerações – são mensagei-ros da historicização (família, festas de família, escola, Igreja, grupos culturais, retratos, figuras antigas, patriarcas, genea-logia, compadrio, sobrenome, consanguinidade etc.).

Os mediadores atuam como bens simbólicos, assim como os objetos que representam status elevado na hierarquia social são objetos transferíveis de uma geração para outra. O traba-lho da memória é, então, ao mesmo tempo, de reconstrução e de esquecimento; tudo vai depender da temporalidade de me-mória (do grupo particular). Nesse horizonte do esquecimento e da reconstrução grupal da memória, apresentam-se conflitos de memória e conflitos no trabalho da hierarquização e legiti-mação das memórias. Aí entra a importância do simbólico (re-ligioso, histórico, social...) na determinação de memória domi-

352 DOMINGUES, op. cit., p. 68.

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nantes/dominadas, de memórias (re)inseridas e expulsas, da valorização e desvalorização de memória (seu conteúdo moral, temporal, de sua aptidão...). O autor deixa clara a necessidade social e psíquica de uma comunidade afetiva.

Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja muitos pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum. Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade.353

A memória do grupo evolui também sob influência do am-biente. As memórias coletivas metamorfoseiam-se ao adotar novas ideias e ao habilitá-las de novas representações. Não significa dizer que as memórias coletivas rejeitam totalmente seu passado; elas o reinterpretam e o reordenam nos quadros de suas novas noções, enfim, os novos quadros coletivos de-vem se adaptar às novas condições de existência.354

A memória é um fenômeno social, possui um caráter social, uma linguagem coletiva e uma comunhão de noções que com-partilhamos com os participantes do grupo social.355 Existem quadros sociais que servem de ponto de referência, os quais possuem uma localização espacial e temporal, o que propicia a localização da memória num espaço social. A família é a grande expressão desses quadros sociais, como veremos me-lhor a seguir.

353 HALBWACHS, M. A memória coletiva. p. 34.354 COENEN-HUTHER, J. La mémoire familiale: un travail de reconstruction

du passé. Paris: L´Harmattan, 1994. p. 16.355 LINS DE BARROS, M. M. Memória e família. Estudos Avançados, Rio de

Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. p. 29-42.

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Memória e o quadro familiar

Às preocupações familiares se mescla a maior parte das nossas preocupações.

Halbwachs

Na base do grupo familiar existe um fondo comune de memória, por meio do qual se manifesta a “atitude geral do grupo e da qual derivam os seus tratos distintos”.356 É por isso que a memória familiar expressa regramento, exemplo e modelação, assim como debilidade grupal. Não obstante, é o espaço por excelência da tradição. Em virtude da forte di-mensão afetiva, de gratidão e da fidelidade que a alimenta, a memória familiar garante integração, continuidade e so-brevivência do grupo no tempo. A memória familiar garante aos membros mais jovens um importante recurso para a sua definição.

Guia para o futuro bem como lição sobre o passado, a história de vida que a memória familiar transmite, torna-se um escudo prote-tivo para os jovens, obrigados a confrontar-se com um futuro vago, seja contra o desconhecimento, seja contra os eventuais acidentes de percurso na luta pelo identificação.357

O passado, os fatos singulares, o pensamento comum for-talecem e ritualizam a esfera social e particular da família. No dizer de Halbwachs, a memória da família, ainda que se transforme, retém, em grande parte, algo que é comum, algo do grupo.

O que se transforma na memória da família? [...]. Do momento em que ela encara do ponto de vista dos outros, assim como do seu, os acontecimentos bastante notáveis para que ela os retenha e os reproduza frequentemente, ela os traduz em termos gerais [...]. Mas nós o temos dito, o quadro da memória familiar é feito de noções,

356 HALBWACHS, M. La memoria collettiva, p. 151.357 LECCARDI, C., op. cit., p. 86.

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noções de pessoas e noções singulares e históricas [...], mas que têm, além, disso, todos os caracteres de pensamento comum a todo um grupo, e mesmo a vários.358

A passagem da memória individual para a coletiva se dá nesse horizonte da experiência do vivido de exterioridade, de anterioridade e de superioridade. A memória coletiva familiar é um exemplo disso.

De qualquer maneira, quando a gente entra em uma família [...]. fazemos parte de um grupo onde não são nossos sentimentos pes-soais, mas as regras e costumes que não dependem de nós, que existiam antes de nós, que fixam nosso lugar.359

A memória coletiva possui mecanismos mediadores. No caso específico da memória coletiva da família do colono, tão evidenciada por idosos, a função do sobrenome e da parentela promove a ação mediadora. A reiteração comemorativa, os rit-mos cíclicos das histórias sagradas dão a noção mediadora da eternidade da memória religiosa. Ambas as tipologias de me-mória coletiva apresentam seus mediadores, seus notáveis, seus guardiães, seus interlocutores, quem melhor propiciam seus contatos.

Halbwachs analisa de modo especial o papel dos velhos. Diz ele que o velho não

[...] se contenta em esperar passivamente que as lembranças se despertem: ele busca precisá-las [...]. As sociedades, ao atribuir aos velhos a função de conservar os traços de seu passado, os encoraja, estimula a empregar tudo o que lhe resta de energia espiritual a lembrar-se.360

O fato de existirem notáveis e/ou mediadores é porque existe a possibilidade da mudança, do esquecimento, da transgressão, do multifacelamento dos quadros de memória.

358 HALBWACHS, M. La memoria collettiva... p. 177.359 HALBWACHS, op. cit., p. 147.360 Id. ibid., p. 107.

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A memória precisa ser trabalhada. A construção da recons-trução é parte inerente na memória coletiva. O autor utiliza com propriedade o exemplo da releitura de um antigo livro de infância para mostrar a esfera da mudança dos quadros de memória e suas noções coletivas de referências das experiên-cias vividas.

Segundo Halbwachs, é no seio do grupo familiar que po-derá preponderar certa complementaridade entre lembrança coletiva e individual. “É graças a esta memória que o grupo familiar pode sobreviver coeso no curso do tempo e não obs-tante as mudanças que o cercam, não acabar o sentimento da própria unidade.”361 Habitam na família o caráter afetivo, a capacidade de coesão, o senso de cumplicidade, o comum pa-trimônio dos segredos, a normatividade da memória, o com-promisso, a continuidade entre gerações.362 Isso tudo ficou bem visível para nós nas entrevistas que fizemos com idosos. Pareceu-nos que, para eles, as famílias perdem o sentido eco-nômico e ganham um sentido de núcleo afetivo, de parentesco, de aproximação, de consanguinidade, de valorização dos qua-dros de compadrio. Talvez esse processo todo se dê em razão das grandes perdas desses referenciais vividos no tempo e da necessidade dos idosos de se afirmar pública e grupalmente retomando e reconstituindo esses horizontes.

É por isso que a memória familiar, enquanto quadro, dá garantia de uma memória de identidade, de valor grupal, de uma lógica genealógica, de um tempo vivido em grupo, de imagem de uma afetividade particular e normativa, de uma propriedade psíquica, simbólica e moral inerente ao grupo.

A memória familiar compõe um quadro que ela tende a conservar intacto, a qual constitui a armadura tradicional da família e a natureza das noções coletivas que a procuram dominar o curso do

361 LECCARDI, op. cit., p. 75.362 Id. ibid., p. 78.

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tempo. [...]. É, ao mesmo tempo, imagem e noção, capacidade de reconstruir a imagem das pessoas e dos fatos.363

A família, como expressão máxima dos quadros de me-mória, possibilita assegurar lembranças, ordens do tempo pelas imagens e ordem dos sentidos pelas ideias; propicia a mediação de imagens vividas em uma sucessão temporal em relação à significação, aos símbolos, às lógicas de sentido. A família possui um poder unificador tanto do quadro quanto da memória; enfrenta com maior força o problema da anomia, da tendência individualizante, de pluralidade de memórias, da decomposição e reconstrução social, pelo fato de ser o gru-po familiar um vivido histórico, hierárquico, afetivo, simbó-lico, ético, religioso, moral, sexual e de poder diferenciado.364

Espaços e tempos do quadro coletivo

Não cansamos de dizer que a memória coletiva está in-serida num espaço e num tempo. “O espaço é uma realidade que dura [...].; não há, com efeito, grupo, nem gênero de ativi-dade coletiva, que não tenha relação com um lugar, isto é, com uma parte do espaço”. Porém, o espaço de que Halbwachs fala não é só físico, mas também as imagens, as cores, os símbo-los, as formas mentais coletivas e sensíveis desse espaço. “Há tantas maneiras de representar o espaço quantos sejam os grupos.”365 A seiva da memória é retirada de lugares. A comu-nidade é um lugar privilegiado na produção desse alimento, é uma totalidade estruturada que ganha sentido de uma iden-tidade, mesmo em meio a conflitos e tensões.

363 HALBWACHS, M. Les cadres... p. 152-153.364 Ver NAMER, G., op. cit., 1986; ver, também, FARRUGIA, F. La crise du lien

social. Essai de sociologie critique. Paris: L’Harmattan, 1993.365 Id. ibid., p. 136 e 159.

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É comum, junto aos idosos, a referência ao passado como recurso linguístico argumentativo e legitimador de algum tipo de ação, de luta e de confronto. A memória é vida, sem-pre carregada de grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução. Para idosos entrevistados, lembrança, esquecimento, usos e manipulações, latências e revitalizações fazem parte da dialética da memória. Pierre Nora nos diz que a memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, co-letiva, plural e individualizada.366

Não podemos esquecer que a vida cotidiana está na his-tória e produz história. Espaços comunitários, a família, as ruas, as praças, os viadutos, os monumentos por onde passa-mos, o lembrar e o esquecer, o mostrar e o esconder, o deixar vestígios e o jogar fora etc. fazem parte da dialética do coti-diano. Lembrar, recordar, memorizar nem sempre são possí-veis, nem sempre são fáceis e nem sempre são apreciados; há momentos que podem causar constrangimentos. Em alguns momentos, banalizam-se e pragmatizam-se os símbolos, os objetos materiais, para que não caiam no esquecimento. Pro-duzir imagem de um objeto e historiá-lo, dar-lhe significados coletivizadores não é nada fácil, especialmente nos tempos atuais, quando parece que a pós-modernidade ganha contor-nos de legitimidade acadêmica!

Os lugares e os grupos são objetos de lembrança que ori-ginam fluxos de memória e que denotam expressões de iden-tidades sociais do informante. Através da memória, tempo e espaço permanecem, são colocados à disposição. A mudança do tempo, do espaço e do lugar/local (vivido) carrega e tam-

366 Id. ibid., p. 9.

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bém perde lembranças. “A população pobre também não se deixa deslocar sem resistência, sem ressentimentos, e mesmo quando cede, deixa para trás muitos traços de si mesma.”367

Os quadros intelectuais, por exemplo, fornecem as infor-mações históricas e a reconstrução de categorias de inteligên-cia (o lugar, o nome, a reflexão) para a rememoração. O qua-dro transforma as lembranças, as quais mudam concomitan-temente à alteração dos nossos quadros sociais de memória. A noção de proximidade do tempo, de familiaridade, de vivido, de impressão, de sucessão do mesmo fato (recorrência), de es-tabilidade relativa, de utilidade grupal e efeito social é que vai determinar o nível e a continuidade da memória social no horizonte coletivo.

367 HALBWACHS, M. La memoria... p. 138

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CAPÍtULO 11

Memória e velhice (fragmentos de empiria)

É comum, nas análises da dimensão biológica, psíquica e social da memória, a afirmação de que os idosos relembram mais, têm mais presente em sua lembrança “coisas do passa-do” e menos “coisas do presente”.

As pessoas idosas, se sabe, passam quantidade sempre maior de tempo falando e pensando no passado. Parece natural que sendo e/ou sentindo-se excluídos do andar das coisas, sua vida se torna mais gratificante e prazerosa, nos quais os eventos possuíam um impacto mais profundo. Quando o futuro parece pouco promissor, e o pensar é, inevitavelmente, acompanhado da ideia de morte, os interesses regridem em direção aos anos passados. A pessoa torna-se incapaz de lembrar eventos recentes e vive sempre mais em um remoto passado como se uma sombra fosse colada sobre os eventos recentes.368

Já falamos bastante sobre a correlação existente entre re-cordação e esquecimento. Porém, é bom termos presente que esse processo não é meramente biológico. A dificuldade de situ-ar a recordação de maneira precisa no tempo, de localizar um ponto de referência das coisas, o sentir-se distante no tempo (cronologia extensiva) passado e também no do presente con-duz a que o esquecimento se intensifique. Contudo, não pode-mos esquecer a correlação entre memória e esquecimento de-liberado (consciente e intencional, externa ou internamente).

368 LIDZ, 1986, apud COLEMAN, P. L’invecchiamento e i processi della memoria. Roma: Armando, 2000. p. 22.

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Para muitas pessoas, ou fatos históricos, fugir do passado em termos espaciais e de memória ajuda a viver e progredir; assim como há um desejo de memória, há também um ódio pela memória. O esquecimento permite a criação; é indispen-sável ao presente como o é a recordação. Sem esquecimento não haverá futuro. “Na ausência de memória, o esquecimento define o homem da mesma forma que define a lembrança.”369 Diz Valery que a mente só existe graças à desordem da memó-ria: “Graças a essa desordem, da ruptura da ligação cronológi-ca, para o homem, são possíveis novas disposições.”

No campo político e no existencial (individual, grupal, étnico e religioso), assim como a recordação pode ter uma par-te de liberdade, o esquecimento também. Autores dizem que é muito dificil esquecer aquilo que se desejaria não lembrar mais. Dizer que não se deseja esquecer algo ou alguém signi-fica, na realidade, estar recordando, imprimindo na memória a imagem do que se pretende esquecer.

Não há nada mais que se imprime em nossa memória do que algo que se queira esquecer. Valery, P. Quaderni. Milano: Adelphi, 1988. p. 497. Algumas lembranças se tornam ideias fixas e possuem uma tenacidade corrosiva das doenças incuráveis. Uma vez entradas na alma, a devoram, não a deixam mais livre de pensar em nada, de tomar gosto por qualquer outra coisa.370

É evidente que o recordar não é algo automático e me-cânico para ninguém, independentemente da idade; requer capacidade de percepção, de atenção, repetição, associação, emoção, personalidade, sentimentos, utilidade, capacidade dos órgãos sensitivos, dentre outros aspectos.371 Não obstante a sua temporalidade, temos a convicção de que a lembrança,

369 TADIE, J, I.; TADIE, M. Il senso della memoria. Bari: Dedalo, 2000. p. 213.370 MONTPASSANT, G. apud TADIE; TADIE, op. cit., p. 215.371 Uma excelente análise fenomenológica sobre a correlação entre tempo e me-

mória está em PROUST, M. Alla ricerca del tempo perduto. Torino: Einaudi, 1981.

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ao atualizar a memória, faz dessa a representação da vida dos sujeitos.372

A memória está relacionada aos aspectos que dão dina-micidade à vida social e pessoal. Lins de Barros373 diz que se deve falar em reconstrução do passado, não em resgate. A complexidade da vida urbana, a inserção social múltipla do indivíduo em várias subculturas, as situações e condições de classe e gênero apresentam-se nas reconstruções do trajeto de vida de cada indivíduo, que, dependendo de onde fala, define um código de linguagem da narrativa da memória, determina o seu lugar social e suas relações com o grupo doméstico.

Nas histórias de vida que tentamos fazer, percebemos que os relatos se adensam nos momentos em que as pessoas se recordam das mudanças na trajetória de suas vidas (casa-mentos, mortes, nascimentos, memória de valores familiares e de trabalho, seus papéis e lugares). Desse modo, não temos dúvida de que são as histórias de vida em geral carregadas de emoção que melhor ressaltam os conteúdos sociais da me-mória familiar, permitindo descobrir as normas e os valores transmitidos, os lugares de vida e as relações familiares.

Pela pesquisa de campo, percebemos que as funções pa-ternas/maternas dos idosos, acrescidas da financeira,374 de-marcam novas fronteiras funcionais dos idosos na família.375 Talvez até justifique a alteração de trajetória: ao invés de sair, ficar. É nessa cumplicidade entre gerações que se estabe-

372 LUCENA, op. cit.373 LINS DE BARROS, M. M. Densidade de memória, trajetória e projeto de

vida. Estudos Feministas, n. 1, 1997. p. 140-147.374 Não é exagero afirmar que, em muitas famílias de colonos por nós visitadas,

a aposentadoria dos idosos é a maior receita da unidade, mesmo que gire em torno de um salário mínimo. A aposentadoria e/ou pensão pela morte de um dos cônjuges redefiniu relações de co-presença e obrigações entre pais, filhos e netos no agrupamento familiar do colono. O pragmatismo de sua presença reveste-se também para os “nonos” na perspectiva da autoridade, do poder, de adotar estratégias para se fazer sentir e valer.

375 Ver nosso livro Memória e cultura...

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lecem utilidades, poderes, autoridades, afeições, invasões, in-tervenções, assumindo papéis de socialização. No fundo, o que está em jogo é o lugar da família nos novos papéis familiares no meio rural. Lins de Barros diz que são muitos anos de vida que representam vida vivida, pensada, mudada, projetada durante anos. Daí a ideia mesmo de vivência no sentido de conhecer o viver.

A afetividade na memória

Se pode sorrir, se pode sofrer, se pode morrer de uma recordação.

Moustaki

A vida dos indivíduos está em relação contínua com os objetos; há sempre uma ligação afetiva com esses, a qual pode ser de atração, de indiferença ou de repulsão. Um fato, um ser, um objeto que induza uma reação afetiva terá maior pro-babilidade de memorização. Os bens simbólicos lembrados, guardados, eternizados e narrados possuem uma dimensão afetiva muito mais do que seu caráter objetal, a qual se ma-nifesta em alegria, ou sofrimento, em felicidade ou tristeza, muitas vezes, numa dimensão dialética.

Alguns idosos recordam mais facilmente as situações de dor em correspondência/correlação aos momentos de alegria. Diz Ribot que uma recordação “me torna triste num momento de felicidade; uma lembrança alegre não me torna, de fato, feliz em um momento de sofrimento”.376

Os sentimentos afetivos de memória expressam-se em associação dialética. Tornou-se comum quando comentáva-mos com os idosos sobre suas boas condições econômicas, suas facilidades no espaço do trabalho na lavoura, o fato de

376 RIBOT, Th. apud TADIE, J. I.; TADIE, M. Il senso della memoria. Bari: Dedalo, 2000. p. 161.

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estarem, para os migrados, “descansando” na cidade, estar sempre presente a expressão da negatividade: “é, mas se tu soubesse o que trabalhei eu”; “o quanto sofri!”; “isso eu guardo (enxada, arado, serrote etc.) pra mostrar pra eles (netos) o quanto as coisas hoje são fáceis e que, non se tribula mai, no!”

A memória afetiva é um sentimento, uma impressão e uma sensação manifesta quando se reinvoca uma recordação. Intensidade, autenticidade, circunstâncias, distinções, imagi-nações, sentimentos e sensações expressam as características e formas da memória afetiva se recordar.

Em geral, os idosos entrevistados expressam afetividade romântica em termos de memória de objetos; fazem correla-ções temporais com ambientes, tempos e vividos alterados de bom para pior e vice-versa. Pensamos que a negação do sen-timento expresso de memória legítima e justifica o sentido da recordação (o bem-estar faz referência à ausência de dinheiro. Os objetos técnicos – trator, uso de veneno – relembram e con-trapõem o sacrifício das ações manuais no trabalho).

Essa negação carrega consigo também ambiguidades, ambivalências e contraditoriedades. A passagem do imaginá-rio negativo para o positivo (em termos de registro de vividos e ações na natureza pelo trabalho, pela vida familiar e social) não significa uma etapa de mera comparação na ótica da ex-clusão, da dicotomia, da história cumulativa. Ao dizer que se está “descansando” na cidade, faz-se referência à imagem do trabalho pesado e contumaz no meio rural, mas, ao mesmo tempo, reconstituem-se aspectos que esse descansar não pre-enche, as negatividades que provoca no vivido de idoso. Quan-do falavam que “agora estavam descansando”, as formas mais em evidência de racionalização, para muitos idosos, eram: “tu non sabe o quanto trabalhei na vida”, “quanto ó tribulato io”. Pareceu-nos que a forma de legitimar o descanso se dá pela sua negação e/ou contraposição. A correlação com tempos e

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ações diversos ganha repercussão, na consciência no idoso, na perspectiva do sacrifício redentor de sua situação atual.

A recordação pode carregar consigo a sensação de passa-do, mas também produzir uma lembrança do passado emoti-vo novo no presente. Entendemos que a rememoração pode produzir uma emoção presente. O desejo de querer esquecer, a emoção provada no presente de fatos passados (melancolia, romantismos, ufanismos, expressões laudatárias, ressenti-das, etc., expressam isso!), não é mais uma recordação imagi-nada da sensação que se provou no passado.377

Poderíamos fazer agrupamentos de lembranças expres-sas por idosos na ótica de um passado de autodeterminação, de enfrentamento de circunstância, não só do trabalho, mas, também, aquelas que limitaram a identidade pessoal e so-cial. Sobretudo as idosas, quando indagadas sobre algumas estratégias utilizadas para se contrapor, para fazer valer pú-blica e domesticamente sua importância, diziam que os espa-ços eram muito restritos e limitados; ainda que existissem, segundo elas, não rompiam com o essencial, que é a esfera cultural. Tinham claro que isso tudo é fruto de elementos socializadores a partir da forma patriarcal de organização da família, da necessidade da maternidade (que, ao mesmo tempo, libertava e oprimia), expressas também nos espaços previamente definidos do trabalho, o qual contribuía para ali-mentar a trajetória histórica de subserviência. Pareceu-nos clara a existência de um discurso de submissão acompanhada de princípios de estratégias e racionalidades internas, porém com pouco resultado objetivo, pois, como dizem algumas ido-sas, pouca importância elas tinham nos recursos (econômicos) da família.

377 Apud TADIE; TADIE, op. cit., p. 174.

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CAPÍtULO 12

Ambiguidade de memória: o laudatário, o ufanismo e os ressentimentos

Identidade e memória coletiva são representações de uma origem e pertencimento grupal, espacial e, em parte, sanguíneo (dimensão cultural e, muito pouco, biológica!), linguístico e cul-turalmente diferente. A dimensão reificada desse processo pode se dar tanto interna quanto externamente. Esse externo pode ser manifesto pela exacerbação da diferença, como própria de um certo grupo que viveu em determinado tempo e lugar. O pro-cesso interno representa a absorção de uma série de práticas, de crenças, significados compartilhados e creditados ao grupo, os quais transcendem o fluxo da história e da mudança.

Para poder subsistir no tempo, a identidade deve ser transpassada com os anos e com as gerações. Por quanto possa parecer paradoxal, as identidades mudam. A identidade muda porque se transformam as representações de seu conteúdo, porém permanece idêntico o sentido de pertencimento, ainda se, num certo momento em diante, se pode começar a conceber a própria identidade como diferente daquela dos outros com os quais se pensava de ter uma identidade comum. Isso é, não muda o sentido ou a necessidade de reconhecer-se como parte de uma comunidade.378

Nesse processo de naturalização da identidade étnica, a memória exerce um papel importante por meio da manifesta-ção de símbolos evocativos de pertencimento (lembrar a sim-bologia do germanismo na construção da ideologia nazista), de seleção, de esquecimento, ou melhor, de uma construção de memória em questão, de representações que são ativadas

378 MATERA, V.; FABIETTI, U., op. cit., p. 154.

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e provocadas num cenário em que existem simbologias de et-nicidade e vontades manifestas de estabelecer diferenças.379 A dimensão épica e ufanista da memória étnica colabora para fortalecer essas representações de suporte interno.380

As lembranças culturais servem a um grupo ou a uma comunidade para radicar a sua própria existência no passado e fortalecer, desse modo, a identidade presente. Nesse senti-do, a construção que o presente faz do passado passa a ser im-portante. Há, sem dúvida, retrospectiva e prospectivamente, um uso e um abuso cultural da memória, os quais podem jus-tificar ações agressivas ou de aceitação de grupos e indivíduos (lembrar as guerras, os massacres étnicos, o anti-semitismo, o conflito entre árabes e judeus, católicos e protestantes na Irlanda, sulistas e nortistas na Itália). “É possível, porém, re-cordando, afrontar as raízes.”381

Nos relatos de memória biográfica e/ou genealógica, bem como de depoimentos orais, é comum, na literatura sobre imi-gração italiana, a visão um tanto laudatária da vida da colô-nia e do empreendimento colonial como um todo.

379 MATERA, V.; FABIETTI, U., op. cit., p. 155. Os autores definiram alguns elementos que contribuem para a compreensão do complexo simbólico que age sobre a imaginação de um grupo e que o faz se autoperceber-se como étnico. São eles: a transfiguração da memória histórica como celebração do passado comum, a sacralização do complexo institucional e normativo (religioso e ético), que é a base de uma solidariedade comum e social, a língua; as relações de descendência comuns, o território mitologizado da origem e da identificação do mesmo com o grupo.

380 Lembrar a representação literária e narrativa que grande parte dos italianos imigrantes no Brasil construiu em relação ao negro, ao caboclo e ao índio. Esse processo nos faz lembrar, nesse momento, que estamos escrevendo isso na Itália, da italianização da antinegatividade social, ou seja, grande parte dos fatos negativos “que envergonham os italianos e a Itália”, como alguns italianos mais idosos dizem, são atribuídos aos estrangeiros (geralmente afri-canos e do Leste europeu) como é o caso de roubos, sequestros, assassinatos, prostituição, pobreza, sujeira nas ruas e mendicância. Esse processo tende a reforçar a ritualização da etnicidade, criando diferenças, discriminações, ódios, indiferenças, repressão, temor de perda da identidade. Esse processo não representa uma ação gratuita e meramente simbólica, pois essa provoca e induz a ações políticas concretas e diferenciadas, etnicamente, em termos de consequência e de aplicabilidade.

381 JEDLOWSKI. In:_______; RAMPAZI, M., op. cit., 1990. p. 27.

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O tempo da família e sua dimensão cíclica renovam-se pelos nomes. Na análise de Eckcert,382 a disposição em trans-mitir aos filhos e netos o prenome e o nome de família não satisfaz, apenas, a um culto de uma tradição familiar, mas está também diretamente referida à inserção da família em sociedade. É através do sobrenome que se estabelece a rela-ção da família com o domínio público da vida social. Porém, o trabalho coliga-se com a dimensão histórica do nome. A es-fera do trabalho (sacrifício, o ganho econômico e a redenção social como decorrentes deste), da mobilidade espacial, da vida familiar, do progressismo e dos vínculos comunitários, envolvendo neste âmbito a dimensão religiosa, solidária e pa-rental, criou uma espécie de pré-destinação étnica para a mo-dernidade produtiva e econômica que se implantava no país.

Em nosso material empírico, armazenamos inúmeras pas-sagens reveladoras dessa dimensão progressista, desse enqua-dramento étnico pelo viés do pioneirismo, do desbravador, do vazio para o preenchimento econômico e social, da vida ordena-da, do trabalho contumaz, da racionalização e maximização de fatores e de saberes ligados à terra, aos investimentos, às ino-vações técnicas, ao domínio da natureza e à sobreposição étnica.

Sem dúvida, as falas dimensionadas por esses vieses pre-cisam ser localizadas numa compreensão mais ampla, as quais constituem, estruturam e dinamizam a vida camponesa, seu ethos, sua busca de equilíbrio em meio a uma natureza de pouca sobredeterminação humana, suas relações e seus desa-fios perante o novo, as novas exigências espaciais, econômicas e de convívio, a passagem do tempo e suas relações sociais constituintes.

A compreensão dos discursos precisa estar em correlação com universos próprios do contexto e dos elementos que iden-

382 ECKERT, C. Saudade em festa e a ética da lembrança. Estudos Feministas, n. 1, 1997. p. 182-192.

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tificam uma cultura em mudança e interconexão e entrecru-zamentos espaciais e temporais, ou seja, a especificidade de relações de um grupo social que se diferencia pelo seu contato (con)sequente com a terra, com o tempo cíclico, com o grupo familiar, e uma estrutura moral que luta por se preservar se-cularmente, com valores de reciprocidade, hierarquia, o uso como um valor, etc. O discurso precisa ser visto num conjunto de relações que prima pela complementaridade entre cultura/sociedade, natureza física (terra)/trabalho, num horizonte de relações induzidas e produzidas localmente.

Com isso, não estamos dizendo que a análise da orali-dade deve ser meramente acoplada e justificada pelos seus referenciais culturais; precisa, sem dúvida, ser problematiza-da na medida em que dimensiona excludência, discriminação, centralização, enquadramentos, vanguarda e projeção pessoal e/ou étnica, as quais fazem perder de vista processos sociais, atores e situações, contradições e conflitos que se constituem a partir da cultura de contato. Essa tendência ufanista, se-gundo o viés do progressismo e do sacrifício, alerta-nos para a necessidade de problematizar essa representação contida no relato de memória. Sabemos que, no relato oral, o significado não se autocontém, ou melhor, a realidade não se apresenta a si própria; ela possui um conteúdo de narrativa que preexiste, que é contextualizado, complementado, problematizado. As lembranças e os esquecimentos poderão, assim, atribuir sig-nificados à memória na medida em que possamos fazer asso-ciações temporais e espaciais, envolvendo formas de condução da vida, de estilos pessoais, de estratégias e conflitos.

Na visão de Maestri,383 utilizar a memória como dado histórico, nesse sentido, significa ir além desse enquadra-

383 MAESTRI, M. A travessia e a mata: memória, mito e história na imigração italiana para o Rio Grande do Sul. In: SULIANI, A. (Org.). Etnias & carisma. Porto Alegre: Edipucrs, 2001. p. 761-781.

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mento ufanista e parcial da consciência de alguns indivíduos (depoentes) e de alguns analistas. É importante localizar a memória num contexto histórico mais complexo e relacional de ações e de significados. No fundo, há o desejo de uma ma-nifestação de um aprendizado de vida, anos de vida vivida, de desejo de conhecer o viver e o vivido vivenciado, de não se dei-xar levar pela dimensão atual do movimento rápido das coi-sas e de sua superação, alteração, fragmentação e descarte.

A corrente de memória, seja na ótica da nostalgia, do ufa-nismo, seja da dimensão religiosa, do sacrifício etc., contribui para engajar um ethos no agir social e cotidiano presente, as-sim como para redefinir e cristalizar laços sociais internos e externos, juntando-se ao surgimento de injunções sociais re-constituídas pelas novas dinâmicas. Porém, trabalho e vida familiar são centralidades que, mesmo redefinidas, permane-cem como símbolo social e como racionalizações de estratégias ético-morais e econômicas.

O sentimento do vivido em temporalidades entrecruzadas

Acreditamos que existam tempos em que a cultura, atra-vés da mediação do trabalho, incorpora na natureza e apre-senta-se social e grupalmente. Os dias santos – hoje reduzi-dos –, o tempo de colheita, de caça, o período certo de matar porco para que o salame não estrague, de podar as parreiras, as roseiras, o desvio ou a adaptação de tempos de plantas e de colheitas em relação aos períodos de maior chuva ou de sol, dentre outros, demonstram que o mundo natural, para idosos colonos, possui variações de tempo. Não podemos nos esque-cer de que a vida do colono é guiada essencialmente pela sua relação com a natureza, com as estações, com a mutação dos

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tempos e seu sentido cíclico, com as horas dos dias e parte da noite. A criação de animais e a produção agrícola exigem uma visão cíclica do tempo. Esse processo auxilia na constituição de um imaginário de reprodução em seu vivido: reprodução de culturas produtivas e de cultura étnica, de reprodução de saberes e da propriedade da terra, da família e das gerações sucessivas, de patrimônios e de linhagens. O seu ethos consti-tui-se nessa dimensão de tempo natural e cultura social.

É desse modo que os idosos reconstroem suas vidas, re-lembrando a trajetória familiar e estabelecendo na lembran-ça o espaço, a representação e as relações internas da família. Ambos sofrem a marca do tempo. Reconstroem a história do modelo familiar por meio de caminhos já marcados por lem-branças suas e de seu grupo familiar.384

É nesse sentido que a memória de tempos vividos, a tra-dição, os costumes antigos, a sua preservação e origem pas-sam a ser elementos antropológicos presentes no universo de relações e de imaginário dos colonos. Essas dimensões podem organizar a reprodução do patrimônio, a transmissão da pro-priedade, a maneira de pensar a família, a casa, a roça, o tempo e o espaço. Muitas vezes, esses processos apresentam, como diz Bourdieu, uma estratégia ou uma transgressão de princípios ordenadores da modernidade presente, ou, então, apresentam-se como uma recriação normativa e atualizada da tradição para fazer frente às condições sociais de produção e reprodução.385

O passado cultural é importante, além de outros aspectos, para definir espaços, autoestima, reafirmação social tanto no espaço regional quanto no local, não com a intencionalidade

384 LINS DE BARROS, M, M. Memória e família. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. p. 35.

385 CARNEIRO, M. Memória, esquecimento e etnicidade na transmissão do pa-trimônio familiar. In:_______ et al. Campo aberto. O rural no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998. p. 273-293.

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de restauração sociocultural, o que seria cair numa alteridade unidimensional ou numa homogeneidade sem conceber a di-versidade e a multiplicidade de elementos intervenientes, mas de reencontrar valores que promoveram atitudes, projetos de vida, integrações, configurando padrões de vida, traumatismos culturais frutos de mudanças significativas no grupo, alteran-do o mundo da vida e a ordem dos valores existentes.

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CAPÍtULO 13

A objetualidade de memória grupal

Muitos objetos estão unidos inseparavelmente à memó-ria, cuja duração é, em geral, o tempo de uma vida. Não re-passados a outras gerações, tais objetos perdem sua razão se desvinculados de seus possuidores. Valores sentimentais es-tão unidos à memória, ligados a uma figura familiar a quem originalmente pertenceu o objeto; ambos se mesclam com va-lores sociais que os classificam como indicadores de distinção e refinamento. Atravessando gerações e cruzando temporali-dades, os objetos de memória vão adquirindo outros sentidos na sucessão temporal, mantendo, no entanto, a referência constante à sua origem.386

Os objetos evocam um passado e promovem uma corres-pondência desse passado com um espaço. O espaço de casa, das atividades agrícolas e seus instrumentos, considerados no tempo ultrapassados – mas que ainda são guardados –, e utensílios de uso comum nas atividades cotidianas formam uma espécie de museu de família; são “guardados”, geralmen-te, no porão da casa, no galpão e/ou no quarto do idoso. Em geral, são objetos ricos de significados, pois expressam noções de sacrifício, propriedade, bonança, modernização..., sempre em correlação temporal entre o período de existência/utilida-de com o tempo presente de inexistência e, portanto, de subs-tituição. Da realidade material, esses objetos deixam lugar à realidade imaterial, imaginária; transportam, com o tempo e com as correlações do presente, novos valores e significados,

386 MAZUCCHI FERREIRA, op. cit.; ver, também, LUCENA, op. cit.

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dependendo das formas, das possibilidades e das funções sig-nificativas que lhes possam ser impressas.

Não há dúvida de que, ao lembrar, o sujeito refaz o pas-sado no presente, dá novas moldurações às memórias e as faz interagir espaciotemporalmente. Na visão de Mazzuchi Ferrei-ra, é justamente essa moldura social que é trazida à cena na rememoração, seja nas casas de outrora, seja em imagens foto-gráficas ou em artefatos rememoráveis. Esses elementos circu-lam em ritmos que cadenciam a vida humana e não podem ser vistos como um corpo em si, mas sempre situacionalmente. Es-ses vestígios passam a ser importantes porque revelam vividos práticos, nexos e significados, funcionando como armas contra a desfiguração social dos velhos, contra as fortes alterações do novo, do presente sobre o passado e do futuro sobre o presente.

As imagens espaciais desempenham um papel na memória coletiva. O lugar ocupado por um grupo não é como um quadro negro sobre o qual escrevemos, depois apagamos os números e figuras. Cada aspecto, cada detalhe desse lugar em si mesmo tem um sentido que é inteligível apenas para os membros do grupo. Seguindo com as ideias de Halbwachs, ele nos diz que imóveis apenas o são aparentemente, já que as preferências e os hábitos sociais se transformam e, se nos cansamos de um móvel ou de um quarto, é como se os próprios objetos envelhecessem. É verdade que, durante períodos muito longos, é a impressão de imobilidade que predomina e que se explica, ao mesmo tempo, pela natureza inerte das coisas físicas, pela estabilidade relati-va dos deslocamentos ou das mudanças de lugar, e as modifi-cações importantes introduzidas em certas datas na instala-ção e na mobília de um apartamento assinalam tantas épocas na história da família.387

387 MAZUCCHI FERREIRA, op. cit., p. 132.

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Memórias de quadros simbólicos

Os objetos de memória são os produtos materiais da ati-vidade humana que adquirem um alto valor simbólico pelo fato de condensarem algumas representações importantes para o passado individual, grupal, comunitário, étnico…

A noção de pertencer está presente no significado do ob-jeto de memória; concreta a identidade coletiva com as di-mensões espacial e temporal, testemunho de uma história pessoal ou coletiva de significação intensa.

Já falamos que muitos dos nossos entrevistados revelam um passado de profundos vínculos materiais e simbólicos com o religioso. O padre, sua presença presente ou sua pouca pre-sente presença, fez surgir formas de manifestação do credo religioso, muitas delas próprias do ambiente vivido de ser co-lono, dos limites físicos e da não completa ingerência sobre os processos naturais que envolvem os produtos produzidos, sobre a vida e sobre a morte de homens, bichos e animais.388

É muito comum encontrar na literatura sobre imigração, principalmente na que enfoca memórias biográficas, frag-mentos de lembranças de um tempo e um espaço no além-mar, como se, nesse espaço, o misterioso e outros imaginários e simbologias normalmente negativas se fizessem presentes. O mar, a floresta – mata virgem –, os bichos, os humanos (ín-dios e negros), a mistura entre regiões da própria pátria-mãe e de outras etnias já vindas, a propriedade da terra etc., tudo produzia imaginários, que hoje são reproduzidos pela esfera da epopeia, do enfrentamento, de uma marca histórica e ge-nealógica.

388 RASIA, J. M. et al. Representação da morte entre agricultores da Colônia Santo Antônio de Ijuí (RS). Humanas, Curitiba: UFPR, n. 4, 1995. p. 73-118.

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A genealogia de um passado coletivo

A memória social do grupo constitui-se num potencial que, à medida que é acionada, substancializa-se em matéria-pri-ma com que são constituídas e atualizadas as práticas do parentesco, as quais, por sua vez, são as responsáveis pela seletividade da memória, bem como pelas suas diferenças de gênero na lembrança.

A genealogia é uma árvore plantada em determinado tempo, lembrada segundo uma referência temporal em que é possível uma lógica na qual tal referência seja não só contada, mas provada pelos vínculos temporais e pelos marcos signifi-cativos.389

Segundo alguns analistas, as mulheres “humanizam” a memória genealógica, por meio da necessidade emocional, sentimentos e ligações entre as pessoas (compadrio, paren-tesco), affaire familiales, relações interpessoais, preferências para o vivido e a atemporalidade (reflete certa ausência de noção de tempo); oscilam entre esposas/mães e seus papéis profissionais; manifestam conflitos entre o que elas interio-rizam em seu quadro de atividade fora do lar e o que lhes foi inculcado no curso de sua socialização primária.390

No ethos de colono da região, a diferenciação prática e simbólica entre gêneros não pode ser entendida meramente em termos dicotômicos; dá-se na esfera da complementarida-de. Aquilo que parece ser dicotômico, no fundo, numa análise mais apurada, poderia ser percebido pelo viés da integração. Lembrar fatos e situações específicas de seu espaço de gêne-ro não significa que as relações entre si, na família, estejam desintegradas. O que há é uma unidade na diferenciação que

389 WOORTMANN, E. Árvore da memória. Anuário Antropológico, n. 92, 1994. p. 113-131.

390 GIRON, L. S. Da memória nasce a história. In: A memória e o ensino de história – Anpuh, Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2000. p. 23-38.

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promove uma complementaridade hierárquica. Fragmentar para unir é próprio da vida camponesa; alguns precisam sair para permitir o fortalecimento da unidade e de sua caracte-rística básica: ser colono.

A casa é o elo integrador. Ela e os seus objetos internos e externos ligam-se à noção de enraizamento, de pertencimen-to, de rede de reciprocidade e sociabilidade, num mundo de vida cotidiana, de convivência, de cenário dos ritmos onde a lógica e a simbólica da terra, no caso para os camponeses, interligam-se formando uma totalidade identitária de vida rural. As casas são testemunhos edificados do grupo familiar de sua dimensão mais íntima, dos ritmos diários e dos rituais, das rupturas e descontinuidades e da sucessão de gerações. Entendida como espaço simbólico, a casa passa a ser integra-da ao indivíduo através de suas vivências, sendo elemento importante na manutenção da identidade social do idoso.

Halbwachs já dizia que a memória tem a característi-ca de operar quando ligada e referida a aspectos concretos, como, por exemplo, objetos, lugares, pessoas, aspectos esses passíveis de transfiguração significativa e simbólica, ou seja, ser ou servir de testemunho, de figuras-chave do processo de reconstrução do passado. Os eventos de memória, apesar de suas implicações temporais significativas no horizonte dos ri-tuais e das narrativas (como já visto na relação entre memó-ria e narração), são ou podem tornar-se figuras de lembrança, pontos de referência nos quais o presente se legitima, reinvo-cam sua existência e temporalidade passada.

Os eventos de memória são figuras, símbolos, represen-tações culturais da lembrança que possuem eficácia, capaci-dade de evocação e de coesão. As festas de família, ainda que fragmentadas temporalmente, as festas de cunho religioso, os rituais culturais (alimentação, vestimenta, vida familiar, de expressão dialetal – lembro aqui a Semana Italiana de

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Serafina Corrêa, na qual todos devem, cotidianamente, falar o talian), dentre inúmeras outras, são expressões disso. O poder evocativo e simbólico do evento de memória não se dá no sentido da representação do passado, mas do/no que pode produzir temporal, cotidiana, cultural e significativamente no presente.

Assumir sentido no presente, exprimir a dimensão tem-poral passada e (re)significar o presente individual e coletivo é o papel dos eventos de memória; sua transtemporalidade e multitemporalidade justificam-se enquanto for capaz de pro-duzir pertencimento social e cultural aos seus membros. Hal-bwachs já dizia que a permanência da memória, de grupos só se efetiva quando for capaz de transmitir/produzir signi-ficado(s) ao coletivo. Os eventos necessitam de história e de simbologia para alimentar e se fazer significativos.

As festas de famílias (de “sobrenomes”) necessitam mos-trar uma genealogia comum, ainda que fragmentada e rom-pida temporalmente (o limite do “para trás” e uma história espaciotemporal também comum, no caso da Itália para o Brasil para descendentes de italianos). Os eventos necessi-tam de narração, do recontar. A presença das pessoas nas festas de famílias, as gerações diferentes, os vínculos sociais, econômicos e políticos diferenciados narram processos sociais e temporalidades que, ainda que dispersas, possuem signi-ficados aproximativos; dimensões temporais, ainda que não explícitas, transformam-se em eventos de memória coletiva.

A homenagem costura simbolicamente discursos, objetos, tempos e espaços que simbolizam uma trajetória e sintonizam um mito fundador que reafirma os valores do grupo. Agregar, unir, religar, reestruturar a lembrança, descontinuar, relem-brar trajetórias, dramatizar as transformações e mudanças, tudo isso é forma de atualizar a memória do tempo do grupo.

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Eckert391 diz que a emoção em torno da saudade, construí-da como um símbolo, manifesta a coexistência alhures de um grupo com valores comuns, reordenados como ideais num de-sejo de continuidade. A festa nasce motivada pelo desejo da sociabilidade, realimentando o trabalho de memória coletiva, num jogo de reciprocidade pertencente a um tempo cíclico.

Não temos dúvida em afirmar que, para os idosos en-trevistados, a família é vista como um monumento simbólico e, ao mesmo tempo, possui seus micromonumentos na esfera do lugar/local, do vivido, dos sentimentos e das pertenças. O sobrenome, a terra para o imigrante, a reprodução domésti-ca, a casa, os objetos “sagrados”, ou seja, aquilo que marcou presença contínua no tempo vivido e que pressiona para a conservação em meio à grande tendência de esquecimento e de alteração.392

Exteriorização pública e local de memórias coletivas e individuais

A fotografia não pode suscitar outra coisa que não uma devoção alimentada da sua função social.

Bourdieu

Halbwachs estudou a relação espaciotemporal que faz aparecer a memória e, especialmente, a memória coletiva. Afirma que, do ponto de vista temporal, a memória reinvoca um fato que coloca em algum ponto do espaço. Os lugares de memória são espaços que, como diz Nora, se condensam às imagens de um passado carregado de significados.

391 ECKERT, C. Saudade em festa... p. 182-192.392 Numa perspectiva mais ampla, tanto Le Goff quanto Nora afirmam que a

história se vê pressionada em preservar a memória coletiva, havendo como que uma histeria social que apela pela sua preservação.

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Os lugares de memória podem ser tanto reais quanto imaginários. No caso do primeiro, quando há uma identifica-ção espacial, necessita de algo que ocorreu; o segundo é fruto de uma invenção, de uma atividade imaginária do pensamen-to coletivo.393 Os lugares de memória são pontos, espaços físi-cos de significados “totais”, evocativos de sentido de perten-cimento dos indivíduos a um determinado grupo, sobretudo espaços de memória representativos da autoridade e do poder de alguém ou de grupos sociais.

A “aceleração da história”, como diz Nora, ainda mais na contemporaneidade, com as tendências homogeneizadoras e massificantes da globalização, obriga a registrar, a guardar, a refugiar a memória. Para o autor, a intelectualização da me-mória pela história precisa resgatar o vivido em sua dimensão material, funcional e simbólica. Entrelaçadas, essas dimen-sões instituídas pela história buscam resgatar as origens, os sentidos e intenções que moveram determinados atores, as estratégias, as condições de vida, os resíduos, as trajetórias de agrupamentos familiares, os sentimentos íntimos rituali-zados em comum.394

A história local, resgatada pela memória, pode se servir da “evidência local” viva, manifesta oralmente, para possibili-tar a compreensão de normas sociais, de costumes e tradições; permite contrapor referenciais já existentes, unir informações dispersas, valorizar o vivido, conservar, criticar e socializar formas do pensado passado.

Os idosos entrevistados recordam algo de seu espaço ori-ginal na colônia-velha, espaço-mãe de sua fonte migratória;

393 Halbwachs estudou os lugares santos na Palestina e, por correspondência, a sua gênese no imaginário cristão e medieval. O autor relata que muitos lugares foram “adaptados” depois das Cruzadas para responder às expectativas que se haviam criado em séculos anteriores. Ver HALBWACHS, M. Memoria di Terrasanta. Venezia: Arsenale, 1988.

394 Ver DE DECCA, E. Memória e cidadania. In: O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: SMC, 1992.

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não dizem quase nada do que ouviam falar de seus pais e/ou avós sobre a Itália. A fonte de sua memória é o espaço onde viveram. Aspectos desse vivido manifestam-se como produto desse espaço e como manipulação e presença de objetos, fatos e representações desses no vivido em família, no trabalho e nas atividades de visualização e de contato público, proces-sos esses reconstrutores do passado e capazes de justificar, na história, sua presença e seu vivido extemporâneo ao presente.

A rememoração de alguns fatos, relegando outros ao in-significante e/ou esquecimento, cria imagens e produz senti-dos que podem ser ideologizados, particularizados, manipula-dos pelas circunstâncias, enquadrados pelo material fornecido e, geralmente, legitimados no vivido, por meio da experiência.

temporalidades contínuas

A memória é a continuidade do passado num presente que dura.

Ferrarotti

O tempo histórico e o contexto social encontram-se, ree-laboram e resgatam significados de identidade cultural a par-tir das exigências e necessidades do presente. A não imutabi-lidade da tradição no passado e no presente, sua transmissão ou seu esquecimento inter ou intragerações podem ser relati-vizadas em termos de significados por diferentes ou por idên-ticos grupos sociais. O caso, por exemplo, do dialeto vêneto ou de outro qualquer, dos nomes que balizavam as diferenças regionais entre italianos e entre esses e os brasiliani, elemen-tos que sempre foram “marcas de etnicidade”, são acionados por alguns e, por outros, completamente esquecidos. É assim que Halbwachs fala de lembrança como reconstrução do pas-sado, realizada com a ajuda de dados tomados do presente e

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elaborados em outros lugares, em outras circunstâncias, por outras reconstruções feitas em épocas anteriores, nas quais a imagem do tempo antigo já é algo bem alterado.

Em correspondência a isso é que idosos entrevistados fragmentam a memória relembrando o feixe de trajetória familiar e estabelecendo, na lembrança, o espaço familiar, a representação da família e suas relações internas marcadas pelo tempo. Há uma escolha e uma percepção de relações que integram e de outras que desintegram, incluindo nesse hori-zonte netos ou, até mesmo, algum filho.395 Estar no centro ou na periferia do grupo doméstico depende da trajetória pessoal no seio familiar. Esses processos todos estão presentes nos relatos, definindo a centralidade ou a periferia dos idosos no grupo doméstico, bem como sendo referenciados, em muito, na orientação interna dos fatores de herança material de um passado não muito longínquo e do mais recente.

Ferrarotti, falando sobre temporalidades, insiste na ques-tão da ligação entre cotidiano, experiência e memória. Diz o au-tor que palavras, narrações, autobiografias, comportamentos cotidianos não possuem só valores práticos e instrumentais, e, sim, um grande valor afetivo. O abandono da importância das práticas cotidianas, o fato de deixar cair à insignificância, poderá ocasionar no indivíduo a perda da capacidade de reco-nhecimento no tempo e também de sua identidade e de sua tradição.396

Para Ferrarotti, a função social da memória, atualmen-te, está seriamente comprometida. As transformações sociais parecem querer cortar as raízes dos indivíduos e dos grupos para poderem se firmar. A racionalização da vida parece re-clamar, como condição essencial, a liquidação dos valores co-munitários da tradição, considerados como meros resíduos

395 LINS DE BARROS, M. M., op. cit., 1989.396 FERRAROTTI, F. L´Italia tra storia e memoria. Roma: Donzelli, 1997. p. 25.

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do “idiotismo rural”.397 Na análise crítica do autor, a memória está em perigo; o fio da tradição está se rompendo; a situação do cotidiano do mundo contemporâneo está imersa numa con-dição de estranheza com o próprio passado, uma situação em que, no presente, não é valorizada nenhuma correspondência com formas de vida anteriores. A memória está em perigo por-que não consegue dar continuidade às duas dimensões tem-porais passado e presente, porque o passado foi racionalizado pela história, foi alojado nos textos de história e nos museus; porque perdeu a ligação vital com a prática da vida cotidiana e está sendo transformada em conhecimento científico do pas-sado, como realidade externa.

A cultura de pertencimento quer fazer frente à tendência da memória de ser sempre menos ligada ao passado e sem-pre mais distorcida e insignificada no presente. As dimen-sões planetárias das imagens, o instantâneo na informação, a maior “individualização do destino” (como fala Canclini), a necessidade constante de se inventar outras relações com a realidade reduzem o potencial de pertencimento que a me-mória poderia apresentar e ser recurso e critério para pen-sar o presente e colocam em conflito os elementos básicos que articulam as relações entre memória e identidade: o espaço e o tempo. “Pois que as condições contemporâneas parecem romper com os liames entre memória e identidade, nos coloca defronte ao espectro de uma humanidade sem memória e sem identidade.”398

Na vida cotidiana de idosos no meio rural, os espaços da natureza revelam polaridades e sociabilidades convencio-nadas por tradição/modernidade, num jogo de opostos entre saberes, valores, significados, sensibilidades. Percebemos que bens simbólicos se transmitem, acima de tudo, pela co

397 FERRAROTTI, op. cit., p. 33.398 MATERA, V.; FABIETTI, U., op. cit., p. 31-32.

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-presença. Os idosos querem ser e estar no vivido de gerações posteriores. A ida para a cidade dificulta os vínculos da pos-sível transmissão; é uma história que fica reduzida apenas à dimensão da consanguinidade.

Desejo de transmissão, de experiência e de visibilidade

Reemergir de um passado que foi apagado é muito mais difícil que lembrar coisas esquecidas.

Le Goff

Marc Augé nos diz que o espaço coletivo é também tem-poralizado, pois é carregado de valores simbólicos; é portador de identidade, pela qual os indivíduos se reconhecem e se de-finem (ideia de Halbwachs); de relações que vinculam indiví-duos e história, pois seus membros se encontram ou expres-sam traços do passado. Desse modo, o espaço coletivo é três vezes simbólico: o das relações de cada um consigo mesmo, com os outros e com um passado comum.399

Malgrado a possibilidade de memória comunicativa, sin-gular e cotidiana informal do indivíduo, é uma exigência da sociedade institucionalizar normas, valores e recordações que tenham como base a narração sacra, mitológica e a fonte do-cumental (histórica). Simbologia e racionalidade, nesse hori-zonte, unem-se e fornecem as bases para a memória histórica, cultural e societal.

Já falamos que há uma estreita correlação entre memó-ria e experiência. Esta última, ou daria para dizer ambas, na concepção de Benjamin, faz parte de sociedades com maior

399 Ver AUGÉ, M. Storie del presente. Per una antropologia dei modi contempo-ranei. Milano: Il Saggiatore, 1994.

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consciência coletiva e pertencimento, típicas da pré-moderni-dade (como bem analisou também Dürkheim). Benjamin uti-liza o termo “vivência” para substituir a noção de experiência e sua desterritorialização na sociedade capitalista. Como já vimos, segundo Benjamin, as vivências são frágeis, cristali-zam uma reprodução do tempo e das ações sobre/no mesmo veio do automatismo e da ausência de temporalidade (por-tanto, aistórica) e de evocação. As ciências sociais e humanas são instigadas a compreender esses processos, a produzir co-nhecimento histórico-social de uma memória/vivência (e cau-sadora dessa), de uma memória-desesperança, uma fruição intensa em termos narrativos e de reprodução histórica.400

Diz Mazzucchi Ferreira401 que é na vida cotidiana, no vi-vido, que as identidades se constroem e se afirmam, e é das coisas e das relações do passado que os velhos se nutrem. É nesse vivido, nessa trajetória social vivida com os “próximos” que se constitui o “eu” individualizado, fruto dos papéis so-ciais assumidos. A identidade social da família fundamen-ta-se nas ideias de desempenho e de esforço pessoal para o estabelecimento de sua história. Em ambas as situações, o importante é a ideia de transmissão de bens simbólicos às gerações seguintes, procurando-se, em ambos os casos, situar na família o lugar dessa passagem, fazendo de cada descen-dente o alvo e, ao mesmo tempo, o veículo da preservação dos valores familiares.402

400 As narrativas de memória poderiam ser incorporadas ao discurso das ciên-cias sociais e humanas no sentido da análise discursiva (hermenêutica), da substituição do conteúdo, da localização temporal (contexto) da(s) visão(es) de mundo e da comunicação, das ordens dos tempos (mudança e duração das formas de existência social).

401 MAZZUCCHI FERREIRA, M. L. Memória e velhice: do lugar da lembrança. In: LINS DE BARROS, M. M. (Org.). Velhice ou terceira idade? Estudos an-tropológicos sobre identidade, memória e política. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 209-221.

402 Idem.

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Ligar os tempos, as gerações e chamar para o presente mundos congregados e personificados alimenta a importância de que um pouco dos idosos esteja presente e sobreviva no mundo dos netos; manifesta o tempo cíclico (próprio do mun-do do colono), uma referência temporal que, mesmo alterada, circula sobre si mesmo, completa-se e continua. A imagem fornece o caminho da memória, a “imagem de como era uma vez”, as vestes, os penteados, o lugar e a posição social de cada um, da paisagem, “do que ainda tinha”.403

As fotos dizem o que é de verdade, afirmam a realidade do passado e documentam a maneira de olhar o mundo. Os ne-tos solicitam a presença dos “nonos” para serem fotografados; querem mostrar aos seus no futuro que fizeram parte de um tempo, de uma história comum, de uma lembrança familiar.

A criança, mais que qualquer outro personagem, sintetiza na sua imagem a imagem da família. Das poses demoradas das fotos antigas, às tentativas modernas de captura do instantâneo das emoções, a criança aparece sempre como um marco de referência familiar. É ela o centro e a razão de ser da família. Através dela, fala-se de tradição e de renovação, de laços de sangue e de afeto.404

Temos a convicção, pelas informações obtidas nos conta-tos com idosos, de que a foto, em seu cotidiano, passa a ser um agente sociocultural de transformação que ocorre no espaço familiar, expressão da constituição de ambientes, espaços e funções novas. Não há dúvidas de que há sempre um forte

403 Não nos interessamos aqui pela questão da veracidade, objetividade/subjetivi-dade das fotos, mas, sim, tentamos refletir sobre sua comunicação simbólica, os sentimentos no vivido dos nonos; manifestações essas, em geral, direcionadas à vida camponesa, que se articula com a terra, com a sociabilidade dos “seus” (os camponeses) na comunidade (nos momentos de festas e de rituais religiosos públicos) na família (sentido de agrupamento dos membros reunidos e seus rituais alimentares). Trabalho, família e sociabilidade, fragmentados e unidos, em várias dimensões e ações, constituem o tripé expressivo, comunicativo da ilustração fotográfica. Atualmente, encontram-se fotos de nonos com netos/bisnetos pequenos. Esse processo é revelador de co-presença, coabitação e de redefinições de funções dos primeiros nos agrupamentos familiares.

404 LINS DE BARROS, 1989, op. cit., p. 40.

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envolvimento subjetivo do sujeito fotografado, do fotógrafo e dos observadores. É desse modo que tanto Le Goff quan-to Bourdieu405 e Barthes, que analisaram as dimensões so-cioculturais e seu uso socio-histórico, seja como documento/monumento, seja como bem simbólico e seu uso como valor de classe, colocam a ineliminável ambiguidade, indecifrabili-dade e impossibilidade da onipresença e da significação única da imagem, do conteúdo e da intencionalidade fotográfica e fotografada.

Alguns autores vinculam a foto a um rito social, a um instrumento de poder, uma relação simbólica funcional, nos-tálgica, comovente, romântica com o passado, uma espécie de analgésico moral, de extemporâneas emoções, algo que permite a canalização e a democratização da imagem à lógi-ca do consumo, à dialética satisfação/necessidades de novas imagens (simulacros e substituições da realidade). “A capaci-dade da máquina fotográfica de transformar a realidade em alguma coisa de belo provém da sua relativa fragilidade como meio para transmitir a verdade.”406

Já falamos que, nas nossas entrevistas, era muito fre-quente a necessidade dos idosos de recorrer ao auxílio externo para melhor dimensionar a recordação, para dar-lhe localiza-ção espaciotemporal e ressignificá-la. As fotos são expressão

405 Bourdieu, analisando esse processo nos anos 1960, fala no uso e na reprodução de massa da fotografia, vinculando-a a um sistema de disposição inconsciente, histórico e significativo (habitus) de classe. O autor aprofunda e identifica possíveis motivações psicológicas da fotografia: proteção contra a angústia da passagem do tempo e de suas consequências corporais; possibilitar relações afetivas e comunicativas com os outros; transferir prestígio pessoal (registro de viagens, rituais de passagem sociais, culturais matrimoniais, vitórias…) e distração. Para além das motivações psicológicas, os âmbitos econômico/sociais e culturais estão presentes no uso instrumental da fotografia. Bourdieu desenvolve essa questão junto a operários, camponeses, profissões médias variadas e conclui que a fotografia é expressão de um ethos de classe, é um símbolo e objeto material representante da pequena e média burguesia.

406 SONTAG, Sulla apud D’AUTILIA, G. L’indizio e la prova: la storia nella fotografia. Milano: La Nuova Italia, 2001. p. 145.

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desse auxílio; as biografias também estão sempre correlacio-nadas a objetos, a fatos e a circunstâncias temporais e mate-riais. Diz Bergson que “é necessário que o passado seja colo-cado em movimento pela matéria e imaginado pela mente”.407

A reconstrução do passado necessita de suportes, de tes-temunhos e de associações externas para recordar momen-tos e reviver fragmentos do passado. Por isso, a necessidade manifesta dos idosos que residem no meio rural de quererem mostrar coisas antigas que fizeram (casa, moinhos, arados, comércio...), as quais são expressões de sua presença na his-tória.

Alguns idosos que habitam a cidade manifestam desejo (e o praticam) de retornar ao meio rural, à sua antiga pro-priedade, espaço esse que foi desenhado também pela sua presença. Algumas das desilusões culturais e econômicas dos idosos devem-se justamente aos contratempos e às ações que se desenvolvem no cotidiano. O desejo dos idosos é de refazer o passado e de revivê-lo do mesmo modo como já se desenvol-veu, pois assim podem narrar sua expe riência e fazê-la signi-ficativa aos ouvintes pela expressão de sua consciência signi-ficativa. Os instrumentos significativos tendem a cristalizar, objetal e simbolicamente, a significação vivida/experienciada.

É desse modo que a fotografia possui sempre um indício verbal. Sua ligação com a fonte oral manifesta-se no horizon-te da subjetividade. Os argumentos, os cenários, os fatos, a personificação, a objetividade/subjetividade, a ativação da memória, as correspondências temporais, as descrições, a au-to-representação (principalmente quando de fotos de família) etc. intensificavam-se e a relação entre entrevistador e en-trevistado manifesta-se de forma mais dinamica se auxiliada pelas fotos.

407 BERGSON, H. Matière et... p. 187.

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Entendemos ser a foto, para os idosos entrevistados, um instrumento de conhecimento e de conservação da memória (seja ela individual ou coletiva), de registro, o qual permi-te esquecer, representar e auto-representar, auto-significar (permitir individualizações) e extra-significar, redimensionar significações, servir de uso público e de uso privado e permitir sua fruição ativa ou passiva (hoje mais ativa do que passiva), o que é possibilitado pelo domínio comum desse processo. 408

A foto de família ganha uma temporalidade presente, de longa duração, por conservar e transmitir memória, dialogar intergeracionalmente, conviver e dimensionar significados no tempo. Nesse cenário, o papel feminino e de gênero é funda-mental. São, geralmente, as idosas que guardam as fotos. Al-gumas criticam seus companheiros por não terem permitido “tirar mais” e registrar momentos significativos, pois “quanto não seria bom ter para ver agora”!

Os homens relembram, materialmente, os momentos de trabalho, de pesca e caça, da carreta carregada puxada por mulas, do caminhão que conseguiram comprar, de rituais pú-blicos e religiosos (casamento, batizado, crisma, ao lado de alguém, na época, famoso). É comum os homens permitirem fotografar-se tendo objetos inovadores externos ou algo que expressa bem-estar e/ou riqueza circunscritos no cenário ru-ral e um pouco também urbano, manifestações de valorização individual (sentados ao redor de uma mesa farta, apresenta-rem-se bem vestidos, ao redor ou dentro do carro ou montado num trator, num cavalo bem encilhado etc.). O fazer-se notar,

408 Sua fruição (mais ativa ou não) depende, além dos significados, de sua capa-cidade de inovação e de reprodutibilidade. As fotos de casamento são aquelas que não se olha sempre; os quadros de santos nas paredes (tão comuns nas casas e especialmente nos quartos onde residem pessoas idosas no meio rural) não possuem tanta fruição; os membros falecidos da família não possuem substituição, são imagens e representações de uma ausência (exorcizam o sentimento de perda e de uma realidade de co-presença, ao mesmo tempo configura uma luta contra o tempo, contra a morte).

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o orgulho, a valorização individual (beleza, riqueza etc.), a unidade familiar, o poder masculino, a sociabilidade e a in-teração cultural, a superação dos limites econômicos para o viver, dentre outras expressões, demonstram o caráter evoca-tivo das imagens.

As fotos de família e os álbuns que as contêm represen-tam uma seleção de objetos significativos consentidos aos tempos presentes e futuros; representam também significa-dos e seleções externas de que, como, onde e por que estavam presentes e foram registrados.409 Lanzardo analisa o fato de que a foto não se reduz ao dado ilustrativo e imagético em si, mas carrega sempre dados, indícios, indicações, mensagens declaradas ou não. O autor sustenta que o sentido da imagem se obtém unificando texto e contexto, rompendo a ideia de autonomia do documento visivo. Na visão do autor, na foto-grafia, unem-se o fotógrafo, o fotografado e os recursos téc-nicos; essa união pode não se dar em termos de significados conscientes.410

Todos os idosos entrevistados manifestavam interesse em preservar as raras fotos que possuem, em guardá-las mui-to bem em gavetas e em espaços de suas determinações. Em inúmeras situações, não tivemos necessidade de solicitá-las, pois eles as ofereciam espontaneamente, porém tínhamos di-ficuldades na sua liberação para serem reproduzidas. Parecia que elas significavam para aos idosos uma relíquia que deve-

409 Bourdieu e Ariès já analisaram a ausência de crianças nas fotos de tempos passados, os rituais sazonais que as legitimavam e demandavam, a relutância camponesa de seu uso e o significado burguês a elas atribuídas, os momentos de unidade e de reforço de consciência de grupo, o prestígio social muito mais do que a individualidade que deve servir de memória, a comunicação simbólica da família nuclear... Enfim, um instrumento para contar história. Ver BOUR-DIEU, P. (a cura di). La fotografia. Uso e funzioni sociali di un’arte media. Rimini: Guaraldi, 1972; ver, também, ARIÈS, Ph. Padri e figli nell’Europa medievale e moderna. Roma-Bari: Laterza, 1991.

410 LANZARO, L. Note sull’uso delle fotografie nella ricerca storica. Italia Con-temporanea, n. 228, set. 2002. p. 523-532.

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ria ficar em seu patrimônio, como marca de um vivido, com significados subjetivos e pouco intercambiáveis. O medo de que fossem “extraviadas”, o desejo de sua eternidade, mesmo na sua ausência – pós-morte –, a marca de um passado e sua presença nesse tempo representam desejo de fixação, bem como revelam a esperança de que um dia sejam de importân-cia para “os de hoje”. Os terços antigos, os livros de histórias de santos, algumas vestes íntimas de antigamente, o dialeto vêneto, instrumentos antigos de trabalho, as técnicas de criar porcos, de plantar e colher milho, o fato de muitos não sabe-rem ler nem escrever etc. manifestam esse desejo.

O álbum de família e os ritos de integração que a famí-lia produz representam/exprimem a verdade da lembrança social, da memória social; expressam, evocam e transmitem a lembrança dos eventos merecedores de serem conservados. A família vê, nesses momentos, a personificação temporal do passado e a confirmação da integração e da unidade no pre-sente. Segundo Le Goff, é a mãe que, frequentemente, solicita e viabiliza a recordação/registro via fotografia. Para o autor, essa realidade expressa um vestígio da função de conservação da lembrança atribuída a ela, ou, então, pode ser expressão de uma conquista da memória do grupo por parte do gênero feminino.411

Entendemos que objetos simbólicos, no caso, por exce-lência, as fotos, respondem a uma necessidade social de iden-tidade, de autocelebração e de conservação de uma imagem de si; servem para tornar perene a recordação de algo ou de uma pessoa significativa e a exaltação do indivíduo; símbolo por meio do qual os membros de uma classe social se tornam visíveis e tomam consciência de si e de seu vínculo cultural (habitus de classe, diria Bourdieu), afirmação e legitimação

411 LE GOFF, J. Memoria, Enciclopedia Einaudi. p. 1097.

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social, registro de conquistas, valorização da existência, colo-cando em desafio o futuro e a sobrevivência do passado numa imagem.412

Além da questão da identidade, da subjetividade da his-tória, segundo Bourdieu, o desenvolvimento e a necessidade da fotografia advêm da emergência da democratização da me-mória, do controle do poder, de instrumento de integração e controle da memória coletiva; significa apoderar-se da memó-ria e do esquecimento, das representações e autorepresenta-ções, seja da informação, seja do ocultamento. Diz Le Goff que

aquilo que a fotografia oculta é mais do que o que ela diz e aquilo que ela conserva é uma mensagem carregada de implicações sociais que frequentemente tendemos a esquecer. [...]. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva.413

Segundo Sega, a fotografia, sendo uma imagem, não possui uma ordem racional (lógico-narrativo), nem pode ser totalmente decodificada. Ela deixa espaço a interpretações subjetivas e a uma fruição emotiva que não implica o intervento da razão.

A fotografia funciona, na nossa época, como arte de memória (me-mória de lugares, memória de fatos e memória de pessoas), não, todavia, como instrumento externo No geral, funciona como me-mória intencional e ativa: vontade de deixar vestígios e de existir na recordação [...]. A fotografia nos dá mais do que uma simples documentação visiva, nos dá o modo no qual uma dada realidade vem interpretada no momento mesmo em que ocorre e organizada pelo seu conhecimento futuro. Em alguns casos, a fotografia é mais interessante para a modalidade de representação que pelo conteúdo documentado.414

412 Antigamente, a memória histórica era privilégio só dos poderosos, expressa em memória escrita, arquivos, bibliotecas, monumentos, genealogias, na forma de retratos, esculturas, pinturas, etc. Com o avanço da burguesia, ampliou-se a possibilidade de memória e a sua necessidade como expressão da afirmação de identidade. Ver sobre isso, LE GOFF, J. Memoria. In: Enciclopedia Einaudi... Ver BOURDIEU, P. La fotografia...

413 LE GOFF, J. Memoria. Op. cit., p. 1070.414 SEGA, M. T. Lo specchio dotato di memoria: la fotografia. In: LAZZARIN,

G. (a cura di), op. cit., p. 187-189. Encontramos em DE LUNA, G. et al. (a

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É nesse sentido que, nas lembranças orais e objetais de idosas entrevistadas, a ambivalência parece ser a tônica: elas presentificam a crítica de muitas relações passadas e, ao mes-mo tempo, relembram-nas e manifestam-nas como forma de mostrar sua obediência, as suas estratégias limitadas e seu vínculo pragmático na família e no meio comunitário. As re-cordações mais ambivalentes aparecem na relação entre de-sejo e pecado, entre rir e mostrar-se séria, entre idealizações e práticas de opressão, entre a liberalização e a rigidez das normas acrescidas ao sentimento de culpa, entre fantasia e realismo com base no vazio, entre liberdade pessoal e vigilân-cia paterna e comunitária, entre separação com necessidade de suportar o casamento em nome da construção de uma boa família (a base religiosa disso tudo), entre esclarecer-se (estu-dar, trabalhar com referenciais técnico-mecânicos...) e ter de deixar o homem decidir (“tasi ti, non sai niente”).

Voltamos a dizer que, para idosos, a lembrança da famí-lia apresenta-se como um complexo de referências simbóli-cas, imaginadas e representadas na esfera da integração, da ameaça de desintegração, de recordação, de espaços de feli-cidade, de horizonte de profundos desgostos, de desempenho moral e de honra (honrar o nome da família), de pertença e de identidade com possíveis descontinuidades. Observamos e escutamos por intermédio de relatos, e isso tudo se mani-festa em rituais práticos (nascimentos, casamentos, mortes, hierarquias no vivido familiar e social, incorporação do nome/

cura di). Introduzione alla storia contemporânea. Firenze: La Nuova Italia, 1984, excelente discussão sobre a fotografia como documento histórico e suas várias questões, dentre elas a da duração (sequência temporal), da linguagem fotográfica, do seu uso social e suas ambiguidades, a fotografia como sistema de sinais, a historicização da imagem, a história da cultura fotográfica, a fotografia e o ritual, o uso político da mesma. A análise faz um apanhado histórico da historiografia sobre a fotografia e seu uso nesse campo, refletindo principalmente sobre a abordagem do tema em Benjamin, Barthes, McLuhan, Sontag e outros.

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sobrenome...), em espaços materiais (casa, roça, porão...), na propriedade (da terra, dos frutos da terra, dos frutos do traba-lho na terra, dos meios de trabalho...) e na esfera simbólico-re-ligiosa (orações em família, batizados, matrimônio religioso, o sentido teológico da família, da geração da vida, da morte...).

A casa é o ponto de referência, é a casa da família tal, ter-ritório de redes, da vida cotidiana por excelência, de um tem-po de (con)vivências; indica nuclearização, estendida, geral-mente, a vizinhança, o parentesco e o compadrio. Como espa-ço de memória, a casa imprime os ritos de passagem (entrada, saída, retorno, permanência, desvínculo e deslocamento).415

Atravessando gerações e cruzando temporalidades, os objetos da memória vão adquirindo outros sentidos na suces-são temporal, mantendo, no entanto, a referência constante à sua origem. Nessa perspectiva, o tradicional não apenas sobrevive; não é o resíduo, o que resta, e, sim, o que luta e de-safia o moderno; busca encontrar espaços de significância no presente, não meramente como tradição, mas como presenti-ficação, como pertencimento, em outras palavras, como útil ao que o moderno apresenta como importante hoje. Porém, a leitura do passado e de suas ações não é feita com os pres-supostos do moderno e do presente, ou seja, como decorrente; são racionalidades internas, resgatadas no tempo para preen-cher vazios do tempo atual.416

Fidelidade, experiência e filiação de memória

Diz Halbwachs que a experiência da memória coletiva é uma experiência concreta de ligação com a sociedade, com a memória dos outros, com a fidelidade de memória, com a

415 LUCENA, op. cit.416 Ibidem.

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dimensão afetiva, significativa, coesa, de interioridade e ex-terioridade, de sentimentos pessoais, regras e costumes vi-vidos por eles e por outros que ajudam a fixar nosso lugar, nossa forma de pensar. Na análise do autor, a experiência é expressão individual de uma memória de totalidade que se completa em nossa lembrança individual. A experiência da memória familiar, por exemplo, não é só a memória de um grupo particular, mas de regras incorporadas de formas de vida, de parentesco, de princípios organizadores, de hábitos em concretude.

A experiência de uma memória coletiva é organizada por um vivido em correspondência com lógicas sociais de signifi-cação que ligam as recordações. A experiência de uma memó-ria coletiva possui atributos normativos, símbolos de exterio-ridade temporal, de diferenciações de noções sociais que pos-sibilitam a passagem da imagem ao conceito, de tipologias de diacronia, de tradição e costumes em referência a experiên-cias vividas de grupos, da história oral, dos mecanismos de memória (reiteração de símbolos, comemoração, dos ritmos cíclicos naturais, das histórias sagradas – fundadores de ilu-são de eternidade), dos mediadores e notáveis417 de memória, internos e externos aos grupos, de sua função nostálgica e de sentimentos desejados em relação ao presente, da valorização e da legitimação da memória dos grupos particulares.

A mudança e a conservação, a recordação e o esqueci-mento, como dinâmicas que se excluem, se complementam, se retroalimentam e se conflituam, são fundamentais para a conservação, a ruptura e a redefinição da experiência de memória e da memória como experiência. O progresso, a am-bivalência de significados de fatos temporais na história, os

417 Diz Halbwachs que “as sociedades, ao atribuir aos velhos a função de conservar os traços de seu passado, os encoraja a consagrar tudo o que a eles pertence como energia espiritual a recordar (Les cadres... p. 107).

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mitos e símbolos de agregação/ruptura e a continuidade so-cial, as novas formas de interação (experiência individual e espontânea, automática e livre de referenciais coercitivos e de integração), de novos saberes e domínios científicos e projeti-vos (futuro e virtual) da realidade social são, também, legiti-madores da dinâmica, algumas vezes dialética, entre experi-ência recordada e esquecimento.

Segundo Halbwachs, o trabalho de construção do es-quecimento pelos grupos é fundamental porque se trata da eliminação de lembranças individuais que aos grupos não interessam mais. Segundo o autor, existe, naturalmente, nos quadros, uma estrutura do esquecimento, meio-espontânea e meio-voluntária. O esquecimento apresenta-se, desse modo, como manifestação de uma experiência coletiva da morfologia grupal (interesse, afetividade, estabilidade, reações internas e externas, mudanças individuais...), de finalidade e poder do grupo, de temporalidades, etc.

O autor deixa claro que o trabalho de memória pode ser, ao mesmo tempo, de esquecimento e de reconstrução, de hie-rarquização temporal de memória (trabalho simbólico para integrar os grupos, exemplo disso é a memória de classe, a re-ligiosa e a familiar), das memórias que se tornam dominantes e das dominadas, dos rituais e dos níveis de legitimação, bem como das antigas crenças e da qualidade moral dos grupos e suas temporalidades em redefinição. Por isso, a experiência de memória possui uma dimensão estratégica de racionalida-de adaptativa e, muitas vezes, instrumental.

O passado, o presente e o virtual exprimem linguagens e sensibilidades sociais, bem como correntes de pensamentos e ritmos de vida social, que dão dinamismo à hierarquia, inten-

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sidade e presença da experiência na memória cotidiana dos indivíduos.418

A memória coletiva, para Halbwachs, é, ao menos, a me-mória de um grupo que conserva sua unidade porque repre-senta um tempo que passa como um presente que dura; o gru-po reconstrói a diversidade de suas experiências em uma uni-dade de si, uma sedimentação de lembranças de um sujeito coletivo – “a sociedade que nós formamos com nós-mesmos”, “ o ponto de vista do grupo”, “uma afetividade, uma visão e uma psicologia de interesse de grupo”, “princípio de reciproci-dade” – diz Halbwachs.

O festejar, o comemorar, o reencontrar memórias vividas exemplificam experiências temporais em interação, identida-des valorizadas. Segundo Namer, é a partir da necessidades de ritos, de símbolos e de vivências de memórias coletivas que é possível imaginar uma ética e uma política de memória co-letiva que tem na experiência sua mediação.419

Simmel420 diz que a experiência é a conjunção no indi-vidual de dados ambientais com uma certa “sensibilidade”, ou um certo modo de se referenciar ao mundo. Para o autor, os indivíduos não fazem experiências somente num sentido passivo (em adequação com as condições atuais da vida co-tidiana), e, sim, estabelecem com as coisas, uma certa rea-propriação consciente e de sua finalidade, ou seja, quem tem

418 Sobre a noção de corrente de pensamento (como história escrita e vivida) e sua lógica de lembrança e de reprodução pelos grupos, ver o texto de Halbwa-chs “La mémoire collective chez les musiciens”, em La mémoire collective. Nesse texto, a noção de “traços do passado” é de fundamental importância para história oral, da conservação e exteriorização das correntes de memória dominantes, de como determinados quadros sociais lançam mão de formas que permitem a reconstrução do passado e fortalecimento da tradição e da vontade de hegemonia de determinados grupos e dos conflitos entre grupos e suas memórias.

419 NAMER, G. Mémoire et... p. 239.420 SIMMEL, op. cit.

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experiência tem expectativas e competência para enfrentar os desafios, as exigências e obrigações.

Para Gadamer,421 a experiência possui sempre uma cer-ta duplicidade, ou seja, de um lado ter adquirido disposição em relação às experiências em virtude da funcionalidade e do exercício; de outro, “fazer experiência” é aceitar colocar em xe-que a própria disposição adquirida. Autenticidade e momen-tos de negatividade fazem parte da dialética da experiência. A experiência é, portanto, processo, mudança (assim como o são os significados e as culturas), criação, construção, exercício, seleção, disposição limitada de um campo de possíveis, incor-poração, memória, percepção e um reexaminamento de um mundo que, aparentemente, é dado por conhecido e adequado.

Halbwachs conferiu à memória um estatuto social; atri-buiu ao tempo uma dimensão sociológica especificada em complexas e múltiplas operações de rememoração constitu-tivas de identidade ao mesmo tempo individual e coletiva. O tempo permite (re)construir o real porque já é um constructo social, uma herança e uma tradição. O autor conectou memó-ria e sociedade, posicionou a memória no centro do processo social; conferiu uma definição de tempos múltiplos em contra-posição a uma visão única, homogênea e estática do tempo, pensado como uma estrutura fixa, como um determinante a priori das representações e da vida social.422

421 GADAMER, op. cit., HUSSERL, op. cit., ao falar de experiência desenvolve a noção de epochè e de mundo da vida. A primeira significa suspender os juízos, colocar entre parênteses os significados e as categorias com os quais cotidianamente se compreende o mundo; colocar em suspenso aquilo que me parece saber já. O mundo da vida dá ideia de uma esfera vital na qual o sujeito está inserido irrefletidamente, porém sensível e praticamente, pois envolve o vivido, a experiência, a subjetividade; é a esfera que precede as categorizações da realidade, do pensamento reflexivo, da ciência..., porém que não pode ser descrito exaustivamente, pois envolve também sentidos. Ver HUSSERL, La crisi delle scienze europee. In: JEDLOWSKI, P. Il sapere dell’esperienza. Milano: Il Saggiatore, 1994.

422 FARRUGIA, F. Une brève histoire des temps sociaux: Durkheim, Halbwachs, Gurvitch. Cahiers Internationaux de Sociologie, v. CVI, 1999. p. 101.

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Nessa concepção, a memória possui uma dimensão cria-dora e recriadora de suscitar e ressuscitar imagens, palavras (vozes), situações, pessoas e nós-mesmos. Nesse sentido, o tempo presente é importante e indispensável, pois permite oferecer uma perspectiva sobre o passado e confere-lhe senti-do, intencionalidade, incertezas quanto ao seu valor objetivo em razão das múltiplas reconstruções subjetivas.423

Na análise de Halbwachs, como já vimos, a sociedade presente só retém do passado aquilo que corresponde a suas dinâmicas atuais e que pode se enquadrar nas múltiplas in-tencionalidades do atual.

423 Ibidem.

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CAPÍtULO 14

Filtragem de memória

Já desenvolvemos bastante a ideia de que a memória não é um dado natural, mas uma construção socio-histórica e cultural. Nesse sentido, a intercorrelação entre lembrança e esquecimento é o que marca a presença nessa construção. Para tanto, os méto-dos de registro ou de conservação são importantes. A narração, o texto escrito, outros tipos antigos em madeira, pedras, tecidos, papel, barro, folhas, chips de computador, gravador, filmadora, fotografia, pintura, escultura etc. são suportes de que neces-sita a memória para poder se presentificar e se futuricizar. Autores afirmam que a possibilidade de seleção e de filtragem da memória se fez mais intensa justamente pela ligação entre memória e poder, memória e comunidade, memória e grandes e pequenas tradições.424

Não podemos esquecer que a lembrança e o esquecimen-to estão na base de cada forma de memória. Memória oral e memória escrita não se excluem, podem andar separadas, mas, ao mesmo tempo, podem se fusionar, se alterar. Mitos populares, identidades “fabricadas”, genealogias, constitui-ção de grupos identitários, dentre outros, são ou poderão ter sido expressões dessa conexão de símbolos gráficos e de lin-guagem oral, os quais contribuíram para estabelecer cone-xões simbólicas e identitárias entre passado e presente, entre sociedade e indivíduo, o que, em última instância, é a função da memória.

424 MATERA, V.; FABIETTI, U. op. cit., p. 15.

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A identidade, por exemplo, como dizem Matera e Fabiet-ti, tem origem nos processos seletivos e de remoções da histó-ria; desse modo, pode se perpetuar reproduzindo ou reformu-lando-se pela via dos mecanismos de representação cultural (memória coletiva para Halbwachs), os quais entram em re-lação dialética com a realidade.

A memória pode ser definida, então, como a sede dos processos de seleção, remoção, interpretação, elaboração de situações passadas. Nesse cenário, entram o indivíduo, o co-letivo, o recurso à linguagem, aos ritos, às visões de mundo presentificadas e contemporaneizadas, os modos concretos nos quais se realizam a memória, poder e valores dominantes e/ou socioculturais.

Dialética entre memória, esquecimento e silêncioSobre a mesa branca e redonda, o silêncio reves-tia o seu real valor, que é o de acumular potência.

Campo (Sotto falso nome)

Para Passerini, o silêncio imposto à memória pode se dar na dimensão burocrática, pública, oficial e coletiva; no entan-to, na esfera do cotidiano, do indivíduo, do informal, esse pro-cesso não é tão eficaz. O papel do indivíduo é fundamental no restabelecimento de um sentido coletivo ao passado e im-portante, também, para as complexas relações entre silêncio, memória e esquecimento. Ele reconstitui uma memória sub-terrânea, ou um silêncio relativo, não absoluto; rompe pactos de amnésia coletiva em nome de reconstituições sociais, polí-ticas, democráticas, econômicas etc., de memórias traumáti-cas e de ressentimentos coletivos.425

425 PASSERINI, L., op. cit., 2003.

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Segundo Ferretti,426 no campo político, prevalece o uso do silêncio, ligado muitas vezes ao temor quase supersticioso de repetir os mesmos erros. Nesse sentido, ainda que implicas-se uma série de frustrações, o silêncio contribui para fundar uma dialética democrática sobretudo no sentido de evitar o uso do passado como arma de batalha política. O dito “tempo do silêncio” permite e tem a função pública de tomar uma certa distância do passado, mas não para esquecê-lo no todo. Voltamos a dizer, no horizonte do vivido, dos ressentimentos ou sentimentos privados, pessoais e cotidianos, os processos de memória continuam. Não há um terreno plano e, sim, aci-dentado entre memória, indivíduo e recordações coletivas. Segundo Passerini, às vezes, “é necessário força para manter um silêncio que permite meditar e refletir, absorver o signifi-cado do ambiente e do projetar-se no futuro”.427

É possível ver a memória sem a expressão oral. Essa é mais difícil de “fazer esquecer”, como é o caso da culinária, do corpo (seus traumas e prazeres), dos nomes aos neonatos, das fotografias, das cartas etc. São “memórias encarnadas” que ganham visibilidade, lembrança e forma nas relações in-tersubjetivas. Isso tudo, não temos a menor dúvida, os idosos entrevistados apresentaram através de suas experiências em diversos tempos e lugares. É difícil perceber, mas a memória, para idosos, é, talvez, mais do que a palavra. O silêncio du-rante as entrevistas pode conter apelos, exaltações de ações em positivo ou negativo, ressentimentos, dentre outros aspec-tos, um desejo de uma nova maneira de escutar, ou melhor, de se fazer escutar. O silêncio revela a forma fragmentada e esfacelada da memória, seus traços e destroços, “os limi-tes do dizível”, tanto no horizonte do vivido quanto no cam-

426 FERRETTI, M. La memoria mutilata. La Russia ricorda. Milano: Corbaccio, 1993.

427 PASSERINI, L., op. cit., 2003. p. 39.

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po analítico, no caso da historiografia, da memória política e “contornada” pela esfera pública, sobretudo quando envolve sentimento de culpa.

Consideramos significativa a afirmação de Passerini quando diz que os silêncios, os esquecimentos e as memórias são aspectos do mesmo processo e que a arte da memória não pode não ser, também, a arte do esquecimento por meio da mediação do silêncio.428 Não obstante, a filtragem de memó-ria, os silêncios e os enquadramentos também podem funcio-nar como estratégias e racionalidades adaptativas dos que lembram, ocorrendo, muitas vezes, até mesmo complôs no in-terior do grupo. Na análise de Giron, a memória revelada ou coletiva guarda com detalhes os êxitos e as vitórias pessoais, o trabalho e os velhos costumes trazidos de longe. A memória oculta esconde o fracasso, os vícios, os defeitos e o luto. Os imigrantes, que haviam sofrido com a perda de sua pátria, na nova terra rejeitam o seu passado pobre. A miséria e o luto pela perda da terra natal, dos pais e da própria identidade são sentimentos recalcados.429

Ricouer analisa o fato de que é comum, na sociedade, a manipulação da memória e do esquecimento pelos detentores do poder. Tanto a memória quanto o esquecimento podem ser instrumentalizados, tornar-se “razão estratégica” (Habermas) em oposição à “razão comunicacional”. Nesse sentido, abusos de memória são, também, abusos do esquecimento. Geral-mente, a memória é mobilizada para legitimar identidades; logo, a fragilidade dessas expressa a fragilidade da memó-ria. Legitimidade, carisma, ideologia, manipulação, mediação simbólica, disseminação, credibilidade... são elementos de in-

428 PASSERINI, L. Soggettività e intersoggettività in sperimentazioni universi-tarie di didattica e formazione. In: CIRIO, P. (a cura di). Individui, soggetti e storia. Milano: Mondadori, 1991.

429 GIRON, L. S. Da memória nasce a história. In: A memória e o ensino da história. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2000. p. 23-38.

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tegração identitária que, constantemente, demandam auxílio à memória.430

Muitas memorizações forjadas se ajustam a comemora-ções convenientes, processo que produz aquilo que Todorov chama de “frenesi contemporâneo de comemorações”, com seus cortejos de ritos e de mitos, cotidianamente ligados aos acontecimentos fundadores evocados ao instante.431 Segundo Todorov, há um “dever de memória” que envolve também o trabalho do historiador, o qual se utiliza de referenciais do passado para não somente estabelecer fatos, mas escolher al-guns dentre eles como sendo mais importantes e significati-vos. Esse trabalho de seleção e de combinação expressa, tam-bém, o abuso de memória e a sua pertinência.

Para Ricouer, essa é a hermenêutica da condição históri-ca da memória, de seu corpo político, de sua dimensão confli-tual, de seu engajamento histórico, como matriz histórica (a memória reduzida a um simples objeto da história) e de sua manipulação.432

Nora, em seu texto que fecha o terceiro volume da série Les lieux de mémoire – Les France – sob o título de “L’ère des commémorations”, fala de uma obsessão, de uma bulimia co-memorativa, de uma “tirania de memória” na formação de um Estado-nação soberano francês. Para isso acontecer, segundo o autor, tornou-se necessário recuperar tradições, memorizar, comemorar, pertencer a certas épocas, de um dever de memó-

430 RICOEUR, P. La mémoire...431 TODOROV, T. Les abus de la mémoire. Paris: Arléa, 1995. p. 13 e 150.432 Ver RICOEUR, P. La mémoire, l’histoire, l’oubli (p. 108). Para uma análise

interessante sobre o uso ideológico do discurso como forma de manipulação do poder, do “dever de memória”, em nome da justiça das vítimas de abusos de ideologias repressivas, ver RICOUER, P. op., cit., na discussão que o autor faz do livro de ROUSSO, H. Le syndrome de Vichy, de 1944 à nos jours. Paris: Seuil, 1987.

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ria como base moral, como evocação identitária, como cruza-da contra o esquecimento.433

Já vimos que o esquecimento impede a tomada de cons-ciência de um acontecimento traumático, porém a psicanálise explica que o trauma permanece mesmo quando é inacessível e indisponível.434 O esquecimento, segundo Ricoeur, interpre-tando Freud, necessita de fenômenos de substituição, sinto-mas que mascaram traumas. Nesse ponto, tanto Freud quan-to Bergson são defensores do inesquecível, ainda que cada um interprete o inconsciente a seu modo.

Para Ricoeur, o esquecimento pode ser uma estratégia de fuga, possui uma dimensão ambígua (ativa e passiva, na ótica da negligência, da omissão, da imprudência). A própria memória pode se revelar como uma organização e exaltação do esquecimento. “Narrar um drama pode significar esquecer outro”, diz Ricoeur.435

Memória como valor de uso e o uso como valor simbólico

Sabemos que a identidade é construída simbolicamen-te e que, para sobreviver, reproduzir-se e redefinir-se, assim como se perder, deve ter, entre outros fundamentos, a memó-

433 NORA, P. (Dir.). Les lieux de mémoire (III – Les France). Paris: Gallimard, 1986.

434 Ver, nesse sentido, ROSSI-DORIA, A. Memoria e storia: il caso della depor-tazione. Soveria: Rubbettino, 1998.

435 RICOEUR, P. La mémoire, l’histoire, l’oubli, p. 584. Nessa obra (p. 536-589), o autor faz uma excelente análise sobre a manipulação da memória, sobre o esquecimento comandado principalmente durante a ocupação alemã na França, sobre os movimentos de liberação, o anti-semitismo, a estrutura política do país no período, a desmistificação do resistencialismo posterior, a exortação ao esquecimento, à omissão, à cegueira, ao perdão, à anistia (essa como esquecimento institucional e disseminado), à política de tolerância em nome da unidade nacional e a uma “amnesia comandada” e privada da carga traumática, um quadro de terapia social guiado pelo espírito do perdão.

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ria. Tanto a identidade individual quanto a coletiva neces-sitam disso. É desse modo que não cansamos de dizer que a memória não é um dado natural, é um pensamento social (ou uma forma de seleção social da matéria cultural e histórica).

Halbwachs foi um dos primeiros autores, pós-década de 20 do século XX, a relacionar memória, identidade e cultura. O autor afirma que a memória coletiva, ou o passado partilha-do, só pode existir em presença de três fatores que lhe são ine-rentes: o referimento às coordenadas espaciais e temporais, a uma correlação simbólica do/no grupo e a uma reconstrução contínua da memória mesma. A correlação espaciotemporal é fundamental para a lembrança, aliás, esta é sempre situada nessas duas esferas; quando se fala em traços de memória, são os sinais/significados que eventos deixaram no espaço e no tempo. Segundo Halbwachs, os traços de memória pro-duzem, não obstante o fato de serem representação, ritos ou simples “objeto”, uma imagem de permanência e estabilidade.

Já falamos que entendemos a noção de memória em Hal-bwachs como uma forma de seleção social da recordação, de construção social dos eventos, de produção de representações que são construídas a partir de um trabalho de seleção, o qual engloba ou exclui outras representações. Por isso, entende-mos memória como possibilidade de se ter uma visão sobre o passado. Nesse sentido, a memória apresenta uma dimensão “política”, a qual pode exercer influência histórica, pedagógi-ca, cidadã; pode construir, conscientemente ou não, objetivos determinados; pode fornecer representações de significados e/ou para nos dizer por que uma sociedade, uma cultura, uma identidade é o que é no presente.

A correlação entre memória, antropologia e historiogra-fia pode se tornar importante não só para dizer por que uma cultura, uma sociedade e uma identidade são o que são no presente, mas para dizer o que não são, o que poderiam ter

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sido, o que são outras sociedades, outras culturas.436 A seleti-vidade da lembrança está em correspondência com a possibi-lidade de constituir múltiplas formas de identidade coletiva. É desse modo que a memória não é um simples e fiel “re-gistro” do passado – como queria Bergson e que tanto Marx, Freud e Halbwachs, se esforçaram para negar – mas uma re-presentação do passado movida e dialetizada na correlação entre lembranças e esquecimento.

A filtragem de memória e os esquecimentos podem tam-bém ser manifestação de uma racionalidade interna que quer fazer-se ouvir pelo caminho do ethos. Geralmente, as tradi-ções só se mantêm onde são possíveis justificações discursi-vas e diálogo aberto com tradições outras, mas, também, com modos alternativos de fazer as coisas. E é esse alternativo e essa outra possibilidade que confronta mundos, discrimina, em parte, o passado e torna pretéritas determinadas relações, funções, ações e sujeitos. Quando se tem a sociedade local e algum momento de sua história como foco de análise, é neces-sário considerar sua estrutura social e as relações sociais daí decorrentes. É com esse pensamento que estamos tentando refletir sobre a mudança social, que não é meramente sinôni-mo de inovação, ainda que se saiba que toda a mudança im-plica graus de inovação. O importante é perceber as múltiplas operações de tradução que se efetuam entre as pluralidades de espaços particulares de formulação e de tratamento dos problemas pertinentes, especialmente entre gerações.

Há a necessidade de perceber a relação entre as poten-cialidades técnico-científicas e as lógicas práticas (Habermas fala muito sobre isso). Essa articulação vai no sentido de uma normatização de atividades de produção ou, então, no sentido de uma complexidade recíproca de práticas dos sujeitos envol-

436 MATERA, V.; FABIETTI, U. Memoria e identità. Simboli e strategie del ricordo. Roma: Meltemi Editore, 1999.

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vidos. As técnicas mais cotidianas possíveis, aquelas do lar e da cozinha, bem como a distinção, os gostos, o habitus de clas-se, de estilo de família, da (dis)posição culinária das idosas, dos saberes alimentares, da interiorização das gerações sub-sequentes (socialização e aquisição de habitus) etc., passam através das gerações, independentemente da funcionalidade do sistema de objetos técnicos do lar em termos de redução de tempo, de economia de mão de obra e de busca de tempo livre e de ocupações internamente desejáveis.

As sociedades modernas são paradoxais: atribuem uma autonomia em relação à técnica e, na superfície, enchem a vida cotidiana de técnicas. O que podemos dizer é que existe, na sociedade, em profundidade, uma vida que se vive no dia a dia, fundada sobre a emoção, a inteligência imediata e sobre o sentimento de presença imediata do mundo e, em aparência, à nossa frente, uma história e instituições que se fundam so-bre a base de uma racionalização do mundo e de um domínio técnico da natureza.

Nessa visão, não podemos esquecer que os sistemas simbólicos normatizam formas de agir; formam uma unida-de heterogênea constitutiva de um modo de vida particular, que estabelece, simultaneamente, relações de exteriorização/objetivação com processos que traduzem padrões de compor-tamento e controle da sociedade em geral, bem como repre-sentações em transição, o que faz com que surjam inúmeras estratégias adaptativas. É nesse sentido que as condições so-ciais e as estratégias adaptativas no contexto da produção, do trabalho e da família dos idosos devem ser entendidas e inseridas no processo de elaboração e de materialização das representações sociais no espaço da interação de tempos no mesmo espaço (e com ampliação de seus vínculos externos), como imagens construídas sobre o real.

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Partimos do pressuposto de que o cotidiano é o espaço onde o econômico, a técnica e a cultura se relacionam. Essa cultura técnica do colono, em plena modernidade, torna-se um elemento de singularidade que imprime sua marca no mundo rural. As novas tecnologias perpassam o cotidiano, en-contrando nesse um diálogo de materialização e objetividade. A experiência global da modernidade, do “novo”, vincula-se à presença das instituições modernas nos atos cotidianos.

As experiências do vivido cotidiano refletem o papel da tradição em constante mutação. Giddens437 entende tradição como uma orientação para o passado, de tal forma que o pas-sado tem uma pesada influência, ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência sobre o presente. Nesse processo, o futuro não está ausente, pois as práticas estabelecidas são utilizadas como uma maneira de organizar o tempo do amanhã. Em outras palavras, a tradição é enten-dida como integridade e continuidade que resiste ao contra-tempo da mudança; está ligada à memória, ao passado re-construído, tendo o presente como base e como reelaboração referencial. A tradição é um processo ativo não só individual, mas, fundamentalmente, social e coletivo, não simplesmente identificado com lembrança.438

Velocidade, redução do tempo, papéis femininos, princi-palmente no espaço doméstico, estão envolvidos num espíri-to do ser moderno, porém se personificam nas tecnologias do cotidiano (refrigerador, congelador, aspirador, máquinas de

437 GIDDENS, A. A vida em uma sociedade pós-industrial. In: BECK, U. (Org.). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. p.73-113.

438 GIDDENS (p. 112) tematiza o papel do ritual na preservação, garantia e prática da tradição, no seu caráter moral, como medida de segurança. “O ritualismo existe onde as atividades rituais estão ligadas a noções místicas. A ritualização das relações sociais existe onde a interação social tem uma forma padronizada adotada como modo de definição dos papéis que as pessoas representam em ocasiões cerimoniais.”

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lavar, microondas, lavadora de louças etc.), em processos téc-nicos envolvidos em torno de identidades de gêneros no traba-lho, os quais implicam cada vez mais o saber-fazer.

A adoção de um aparato técnico no universo familiar de trabalho vem ao encontro de práticas e cotidianos no vi-vido, construtores de um habitus comum. Padrões culturais perduram quando há uma conservação de elementos que lhe manifestam origem, ou quando mudam as significações para resolver os desafios cotidianos. A tradição é aqui entendida como orientação valorativa de significados passados, mas que se manifestam comumente em momentos e em situações de rupturas e/ou redefinições de processos sociais locais.

Uma outra questão importante que precisa ser entendi-da é que a manifestação oral da memória da luta e das estra-tégias de idosos, independentemente de sexo, para encontrar espaços internos de significação e de preservação do e no gru-po familiar, revela o desejo de jogar para longe a dependência e o peso da velhice para si e para os do grupo. Possibilitar uma face externa diferenciada de seu papel é uma forma de “não deixar cair tudo”, como uma idosa comentou. A noção de queda na velhice é algo de significado e sensibilidade profun-da, porém não deixar cair significados de co-presença, o que é fundamental para os idosos.

Agregar trabalho como valor de uso (insistimos na ideia do uso como valor), bem como propiciar uma receita finan-ceira para o grupo familiar, via aposentadoria, permitir uma maior liberação da mulher das atividades educativas, morais e de vigilância externa, bem como aproveitar esses momen-tos e relações para o resgate do passado e desejar cristalizar relações futuras (mesmo que não possam mais vê-las ama-nhã!), contribuem, segundo os entrevistados, para legitimar sua presença no núcleo familiar. A mobilidade de grupo, as mudanças pessoais e coletivas, as rupturas são importantes

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referenciais nas representações sobre os espaços e tempos vi-vidos.439

Enfim, não podemos fechar o capítulo sem dizer que en-tendemos ser importante partir da memória para estruturar a identidade (enquanto processo/projeto), porque a trajetória da história pessoal à história coletiva é o momento da lem-brança entre a percepção subjetiva do espaço e do tempo e dos instrumentos para o seu conhecimento.

439 ECKERT, C., op. cit., p. 182.

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tErCEirA PArtE

Ressignificação de memórias

O relembrar é uma atividade mental que não exercitamos com frequência porque é desgastan-te ou embaraçosa.

N. Bobbio

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CAPÍtULO 15

Memória, cultura e identidade étnica

Não sabemos o que seria de uma cultura na qual não se saiba mais o que significa narrar.

P. Ricouer

Nesta parte, como já mencionamos, e também esporadi-camente já fizemos referência no decorrer de todo o texto, re-constituiremos e analisaremos alguns fragmentos de memória de um grupo de idosos que convivem com parte de suas famí-lias no meio rural e urbano da região colonial do Rio Grande do Sul, mais especificamente nos municípios de Veranópolis, Nova Prata e Guaporé, procurando dar ênfase aos elementos socio-históricos e culturais que compõem o tempo do espaço original e o tempo do espaço do início do “novo”, ou seja, o iní-cio da nova colônia através do processo migratório interno e das trajetórias migratórias para as cidades da região.

Intentamos analisar e perceber a ressignificação de universos culturais, econômicos e sociais em conflito/tensão, ambiguidades e ambivalências expressas no horizonte da fa-mília, no trabalho, no religioso, na convivência comunitária, dentre outros aspectos.440 Teremos presente, no decorrer da análise, algo da produção socioantropológica do campesina-

440 Como já mencionamos, muito desse material empírico e muitas descrições de falas estão nos estudos que antecederam o presente, tais como Terra, trabalho e família; Memória e cultura e Um pequeno grande mundo: a família italia-na no meio rural (ver referência mais completa na bibliografia). Aqui, parte desse material será analisada com o objetivo de aprofundar os significados de memórias, as reconstruções das formas de pensar e de viver, seja no horizonte da fala, seja no âmbito do cotidiano vivido e no significado cultural para os grupos de pertencimento étnico.

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to na região colonial com o objetivo de perceber e confrontar oralidades com análises já constituídas no campo da memória sobre esse.

Organizamos nossas indagações e conversas informais com idosos em torno de variáveis como enquadramento social, religioso e familiar, patrimônio cultural e histórico, o horizon-te da narração, locais, objetos e fatos de memória, experiên-cias e mudanças sociais e físicas.

Buscamos ter sempre presente um cenário em que o tem-po, as coisas no tempo, o sentido da narração, a flexibilidade cultural e social, a informação voltada para o prognóstico, para o futuro, para a previsão, e não para o passado, em que locais de memória, de certa forma, fetichizam o passado e se transformam em espaços de circulação mercantil do tempo e dos objetos; em que os idosos não são mais tanto os guardiões de memória (como diz Halbwachs), mas indivíduos de pouca significação étnica, social e econômica; em que o vivido está fortemente ganhando espaços de liberdade dos elementos normativos da família e da comunidade, porém é intensamen-te influenciado em outros horizontes pela mass media, dentre outras questões. Tendo isso presente, buscamos expressar al-gumas angústias e tensões vividas pelos idosos como expres-sivas de uma trajetória de adaptação íntima entre o homem e o seu meio, mediada pela terra, pela família, pelo trabalho e pelo saber-fazer, ou seja, elementos camponeses constituintes da cultura de grande parte dos idosos entrevistados.

Orientamos nossa análise através de algumas variáveis e de alguns temas que foram expressivos durante as entre-vistas e os contatos informais. Não deixamos de lado a tenta-tiva de idosos de tentar reconstituir, ainda que fragmentada e localizada em pontos de referência considerados por eles de maior importância, a história pessoal – uma incipiente histó-ria de vida –, buscando perceber as memórias pessoais, que

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“mais livremente” os idosos tinham vontade de expressar. Tentamos nunca esquecer a memória que idosos possuíam do ser migrante, em grande parte, descendentes diretos de imigrantes italianos e que viveram ou vivem ainda na e com a colônia, da vida no meio rural e, nesse tema, a centralida-de do trabalho, da família e da terra. No cenário do espaço urbano, centramos a análise em torno de temas da vida no meio urbano, como família, novas sociabilidades e trabalho. A intenção era sempre ter presente a forma como os idosos reinterpretam, narram e inventam as experiências vividas em correlação a tempos e espaços diferentes, os liames entre origem, trajetórias e situação atual.

Sabemos que a recordação acontece, em grande parte, por associação (importância dos símbolos, fotos, objetos...). Ao longo da vida, vamos organizando ideias e experiências, das quais as que envolvem mais paixão são as mais fortes, enfáticas e fre-quentes. O recordar/revisar implica muitas vezes a ampliação, a interpretação a partir de referenciais subsequentes, de âmbitos instrumentais e presentistas. É nesse sentido que percebemos que os idosos revisam suas lembranças, tornam-nas amadure-cidas como sua vida, sua experiência e seus contatos reduzidos. Conforme as gerações se distanciam, repositórios de lembranças se associam aos seus sucessores, segmentos de tempos vão se conectando com lembranças mais antigas, “os mortos anexam os vivos, que se tornam suas réplicas e sucessores”.441 Por isso, é interessante compreender a memória como função não de preservação, mas de adaptação, reconstrução, seleção, altera-ção de códigos e percepções etc., os quais classificam o mundo e imprimem significados à existência passada e presente.

Diz Lucena que é interessante indagar sobre os significa-dos simbólicos que permeiam os universos culturais e refletir

441 HALBWACHS, M. A memória coletiva, p. 68.

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sobre a mobilidade social, levando em consideração as repre-sentações442 do rural e do urbano.

Como vimos, o cotidiano é o espaço por excelência de per-cepção das formas, do significado e das redefinições da his-toricidade e da dinâmica das representações sociais que nor-teiam a vida de idosos. As tarefas cotidianas são ritualísticas, seu grau de repetição é correspondente ao estágio de conheci-mento, aceitação e repercussão ou influência das representa-ções sociais do objeto ou da ação.443 Os valores da cultura só podem ser analisados nos signos (sinais) que manifestam es-ses valores, os quais, normalmente, são refeitos e reinterpre-tados constantemente. Os valores éticos, estéticos, práticos (do fazer) e técnicos podem estar presentes e agrupados num conjunto de representações que, no caso dos idosos, são viven-ciadas, cotidianamente, em seu plano de exteriorização e/ou narração das experiências, na releitura narrativa de aspectos das representações mais universalizantes. No conjunto das representações sociais, há um processo de filtragem na ordem do vivido do idoso, ou seja, filtra-se o percebido que não afeta (rompe) a ordem cultural do vivido, que ocorre na ótica do procedimento.

No universo epistemológico da representação social, as experiências humanas afetivas, morais e culturais estão presentes; o processo social como um todo não se fundamen-ta unicamente em causas econômicas. Há experiências di-ferenciadas nas quais a representação social constitui uma experiên cia social fundada nos costumes, nos processos e nas instituições. Thompson nos auxilia na medida em que aglu-

442 As representações simbolizam traços de memória, reconstrução coletiva ou individual, substituição e identificação objetal e simbólica de uma presença ausente produzida na memória e passível de se fazer identificar. Nesse sentido, ver CHARTIER, R. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990.

443 RASIA, op. cit.

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tina a vida material e sua estruturação classista com experi-ências do vivido na constituição do pensamento e dos proce-dimentos dos atores sociais. Isso não significa dar autonomia e determinação aos processos histórico-estruturais nem aos indivíduos.444 Há um horizonte de experiências e sentimen-tos “coordenadas de sua cultura, como normas, obrigações e reciprocidades familiares e de parentesco ou – mediante formas mais elaboradas – como experiências artísticas e re-ligiosas”.445 Valores e razão estão imbricados num campo de lutas,446 de escolhas, de situações e adesões em confronto e/ou conformidade com o patrimônio cultural (habitus)447 e a cons-ciência afetiva e moral dos atores em questão.

Por mais que as representações da sociedade moderna tendam a focalizar as práticas sociais derivadas da existên-cia primeira dos indivíduos ou do somatório desses, resíduos e imaginações irredutíveis brotam das próprias relações de poder, as quais, porém, escapam do poder. A noção de habi-tus familiar de colono, ligada à noção de experiência, resgata ações do sujeito como determinado/determinante, não restrito ao universo da classe, mas à esfera da cultura, à consciência social do agente, incluindo aí suas representações, experiên-

444 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

445 Idem., 1981. p. 263.446 A noção de campo perpassa inúmeros trabalhos de Bourdieu, referindo-se,

sinteticamente, ao espaço de disposições dos agentes em lutas e conflitos por posições, recursos, legitimidades, status, delimitados por esferas possíveis de ação, nas quais atuam de acordo com os interesses em jogo. Portanto, é um espaço de disputas de interesses de posições e correlações de classes, reforçador de legitimidade da estrutura social.

447 O habitus é o “sistema de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, enquanto princípios geradores e organizadores de práticas e representações [...]; ele assegura a presença ativa das experiências passadas que, depositadas em cada organismo, sob a forma de esquemas de percepção, de pensamento e de ação tendem, mais seguramente que as regras formais [...] a garantir a conformidade das práticas e sua constância no tempo”. Ver BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel, 1989. p. 91.

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cias socialmente demarcadas, passadas e presentes, confron-tadas, em conflito e tensão com seus limites.448

Thompson enfatiza os elementos culturais sobre os de natureza socioeconômica, salientando a importância de se de-codificar o comportamento e de se desvendar normas invisí-veis de ação, sem esquecer a estrutura das relações de classe. O interesse de Thompson é pelas formas de existência e pelas atitudes, não tanto pela transformação e pela causalidade, postulando a interação dialética entre experiência e consci-ência social. Demonstrar a motivação racional, autônoma e coerente dos ativistas populares equivale a mostrar, em outra esfera determinante, que os “inferiores” representaram um importante papel na configuração de sua própria história,449 o que, para o nosso caso, significa resgatar os resíduos histó-ricos constitutivos de relações em torno da família, configura-dores do ethos de colono.

Como já vimos, a experiência aciona e influencia a cultura e os valores, articula ações sobre outras atividades. A experi-ência, para Thompson, é gerada na vida material, localizando o ser no social e formando também sua consciência social, porém a previsibilidade das ações não é totalmente determinada.

É por isso que reconstituir espaços, símbolos e permitir ressignificações orais e objetais de uma cultura que possui horizontes populares, que, mesmo não sendo conscientemen-te trabalhada, reflete processos históricos e culturais de lon-ga data, como é o caso da camponesa, é, no mínimo, reverter

448 Ver RASIA, op. cit.449 As descrições e análises de Thompson sobre as rebeliões pela falta de alimen-

tos na Inglaterra do Século XVIII mostram-nos como os aldeões, movidos por uma economia moral, impunham a coleta e a venda de grãos conforme a tradicional economia moral, o que fez a pequena nobreza rever seus concei-tos sobre o papel do ativismo coletivo, bem como manter alguns aspectos do modelo paternalista. O papel de uma economia moral compartilhada torna-se associado a questões de poder, identidade e imbricação aos horizontes da estrutura social, demonstrando, assim, a importância dos fatores culturais e comunitários na motivação dos sujeitos para construir sua própria história.

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um pouco o vetor da memória patrimonial tradicional, ainda mais quando se fala de sujeitos que, estruturalmente, estão em processo de esquecimento e de desvalorização, como é o caso dos idosos na contemporaneidade.

Pensamos que é possível perceber temporalidades de conceitos, possibilidades de apreensão de experiências vivi-das, de uma hermenêutica do cotidiano do passado vivido e significado, que tanto a temporalidade quanto a linguagem que a fundamenta são possibilidade de acesso à informação, que é possível interpretar vestígios, o aparentemente imper-ceptível, as adaptações e os impulsos de denúncia. Significa permitir vozes da dignidade, até porque se sabe que muitas lembranças são guardadas na perspectiva de membros de grupos (família, etnia, colonos, sobrenomes etc.).

Os idosos, sem haver deliberação, são encarregados de guardar as lembranças do passado dos grupos; devem tam-bém trabalhar, no presente, a transmissão de geração a gera-ção, conservar objetos materiais importantes, promover ceri-mônias que representem os percursos vividos por eles e que sejam transmitidos aos “de hoje”.

Rituais religiosos na comunidade e na família (reza do terço, “ascoltar la messa”, receber a santinha e convidar a vizinhança), acervos de culinária, utilização de objetos e ferramentas de trabalho, saberes cristalizados e considera-dos eficazes, regramentos morais e éticos são estratégias e tentativas de materialização de reatualização de ações e de horizontes memorizáveis que idosos imprimem. O fato de muitos idosos permanecerem por mais tempo e adquirirem maiores responsabilidade educativas informais com os netos talvez auxilie no processo de transmissão da memória. Pala-vras, gestos, rituais de iniciação, apropriação dialetal, usos de objetos, etc. poderão, nesse processo de contato, demarcar fronteiras entre o visível e o invisível, de um passado visível num presente invisível, fora do tempo, como se fizesse parte

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de um domínio substrato em relação às mudanças considera-das irreversíveis. Desse modo, imagens e visões de mundo, duram mais e podem passar de geração a geração; tornam possível a operacionalidade de sinais de memória coletiva, de reencarnação de personagens e formas de vida passada: ou seja, poderá acontecer, na prática, uma tendência de os idosos transmitirem aos mais jovens conteúdos mais importantes da experiência vital das gerações precedentes.450

Poderíamos dizer que esse é um trabalho submerso, mas real, de idosos nas famílias e no seu estreito mundo social existente; é uma tentativa de reconstrução incessante do fio incerto da tradição familiar, é a trama invisível que sustenta o ciclo da continuidade com as mudanças culturais. Temos a convicção de que as narrações intergeracionais, principal-mente em família de mais co-presença e pertencimento como aquelas do meio rural da região de pesquisa, fazem-se sempre intermitentes através do “peso” da experiência e do acervo linguístico. Diz Paoli que é importante recriar a memória dos que perderam não só o poder,

[...] mas também a visibilidade de suas ações, resistências e projetos. Ela pressupõe que a tarefa principal a ser contemplada em uma polí-tica de preservação e produção do patrimônio coletivo que repouse no reconhecimento do direito ao passado enquanto dimensão básica da cidadania, é resgatar estas ações e mesmo suas utopias não realizadas, fazendo-as emergir ao lado da memória do poder e em contestação ao seu triunfalismo. Aposta, portanto, na existência de memórias coletivas que, mesmo heterogêneas, são fortes referenciais do grupo mesmo quando tenham um fraco nexo com a história instituída. É exatamente aí que se encontra um dos maiores desafios: fazer com que experiências silenciadas, suprimidas ou privatizadas da população se reencontrem com a dimensão histórica.451

450 Ver algo nesse sentido em KRZYSZTOF, P. De l´histoire à la mémoire. Revue de Métaphysique et de Morale, Paris: CNRS, n. 1, jan./mar. 1998. p. 63-110.

451 PAOLI, M. C. História e cidadania: o direito ao passado. In: Secretaria Muni-cipal da Cultura/PMSP. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. DPH, São Paulo, 1991. p. 27.

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Os valores culturais superpostos e as histórias conta-das pelos migrantes aparecem carregados de subjetividade; não são exatamente as representações do passado porque são adaptadas às situações atuais, ou seja, ajustadas às identi-dades no presente. Nas narrativas históricas misturam-se sonhos, imaginação e realidade; imaginações compartilhadas entre os habitantes dos espaços em múltiplas camadas de tempo e de espaço, representações dinâmicas pelas quais os migrantes percebem e confrontam mudanças nas suas condi-ções de existência na intersecção de culturas.452

O cenário empírico: fonte e base de memória de idosos

Relembrar é mais do que se deslocar para o passado e deslocar para o presente fatos vividos.

Lucena

A agricultura foi o elemento aglutinador e formador do espaço de vida e de sociabilidade do imigrante que chegou à região colonial no final do Século XIX e início do Século XX e do que migrou para as Colônias Novas nas primeiras décadas do século XX. Viver da terra, com a terra e para a terra, no ho-rizonte do trabalho e da interação entre dominação/explora-ção e resultados produtivos, foi sempre a marca da identidade camponesa de colonos da referida região.

Os idosos entrevistados e que migraram para os espaços urbanos indicados também carregam as marcas no corpo, na experiência de vida, em grande parte das relações cotidianas na família e no meio social, de um tempo de vida vivido na relação com a terra. A cultura urbana, nas cidades indicadas,

452 LUCENA, C. T. Artes de lembrar...

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constituiu-se em uma mescla de valores e tradições culturais do colono com as novas dinâmicas de vida urbana da moder-nidade social e instrumental do cotidiano. Por isso, a noção de reconstituição cultural de sujeitos em espaços diferenciados e que se produz na e com a produção do espaço é fundamental.

A ideia de reconstituição, ou de reinvenção, em meio a perdas e ganhos, é um fator de análise importante para en-tender estratégias, preocupações, lembranças de espaços e de fatos vividos pelos idosos.

Anderson fala de uma “comunidade imaginária”,453 ou seja, sentidos que o presente dá, imagens coletivas que a con-temporaneidade produz em relação ao passado e que esse não possuía quando determinadas situações ocorriam. É desse modo que a história pode ser fértil na determinação de senti-dos de temporalidades, fundindo referências e textualidades, refazendo itinerários de significados, conectando episódios que, em termos de memória, estavam fragmentados e soltos. Porém, não se pode esquecer que a dita “comunidade imagi-nária”, em geral, é uma produção da história, uma constru-ção de memória e não da memória; compreende, no presente, uma imagem mental do passado.

Pinto afirma que a memória é mais do que uma pura re-presentação; ela “assegura permanências, manifestações so-breviventes de um passado muitas vezes sepultado, sempre isolado do presente pelas muitas transformações, pelos cortes que fragmentam o tempo. Memória como lugar de persistência, de continuidade, de capacidade de viver o hoje inexistente”.454

Em termos empíricos, a derrubada da mata, a rotação de culturas – tanto de subsistência quanto de caráter comercial –, a reconstituição da fertilidade do solo, a depredação para cons-

453 Ver ANDERSON, B. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1982.454 PINTO, J. P. Os muitos tempos da memória. Projeto História, São Paulo, n.

17, 1998. p. 207.

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tituir a roça, o plantio de culturas nativas (mandioca, milho, feijão) associadas às europeias (trigo, batata, cevada) etc., pro-duziram, reproduziram e esgotaram o espaço previamente de-limitado, porém solidificaram, reproduziram e redefiniram um modo de vida e uma estrutura familiar que se redefinem com a contemporaneidade, independentes, porém influenciados, con-tituidos por espaços de co-presença de idosos e que guardam marcas em espaços e tempos variados e de longa data na região, provocando deslocamentos e reorganização da vida no espaço.

A organização do sistema de economia agrícola na colô-nia, com o passar das décadas, passou a sofrer e explicitar pontos de estrangulamentos que giravam em torno da in-fra-estrutura de comércio e de transporte, da depreciação e baixíssimo valor dos produtos, do esgotamento do solo e da impossibilidade de aquisição de novas áreas próximas. A poli-cultura comercial começou a ceder parte de seu espaço para a produção de suínos e seus derivados, especialmente a banha. O solo fértil e a alta produtividade do milho daí decorrente fizeram da produção de suínos o elemento de convergência de relações de produção e de comercialização embasadas na agricultura familiar do colono.

Idosos lembram, com nostalgia e um certo ufanismo, a “chiqueirada de porco que se vendia [...], as roças de milho que no inverno se dobrava pra depois, com o tempo e confor-me ia tendo lugar no paiol, quebrar e guardar. Se consumia paiol e paiol de milho, tudo se transformava em carne naque-la época, viu. Se tribulava que guai, ma se descansava mais do que agora”.

Os integrantes da unidade doméstica e de convivência no meio rural (re)definem uma determinada organização de seus processos de trabalho e de relações, estabelecendo acordos básicos relacionados com a composição da família, com ne-cessidades econômicas, distribuição da força de trabalho, das

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variáveis demográfica e etária e do seu grau de dependência com os circuitos comerciais e (agro)industriais. Isso implica esquemas de percepção, de pensamento, de organização de ta-refas, de uso do tempo e de recursos referidos à continuidade e à reprodução do grupo familiar.

O forte vínculo que existia entre produção, consumo, co-mercialização, trabalho e família, renda e número de filhos reorienta-se com as transformações na vida doméstica, com o crescente envolvimento da mulher na força de trabalho não especificamente agrícola.

As relações sociais de gênero, a organização patriarcal, a hierarquia em termos de idade, os espaços de trabalho, do público, do lar etc. sempre marcaram e definiram a conduta e o contato do agir cotidiano dos indivíduos na família e nas ações sociais como um todo, por mais que suas intensidades e repercussões tenham sido variadas. A profunda interação entre família, terra e trabalho sempre definiu, e define ainda hoje, as obrigações, os espaços, o poder, a submissão, os inves-timentos, a prole, a saída e a permanência de elementos no núcleo familiar.

A reprodução, a fragmentação e ampliação do patrimô-nio, das responsabilidades etc. constroem o imaginário das representações sociais definidoras dos papéis, sejam esses de submissão, sejam complementaridade hierarquizada entre seus membros, o que não quer dizer que não haja tensões, conflitos, aceitações, normatividades, visibilidades e invisibi-lidades de importância, incorporadas ou ideologicamente ex-pressas em convivências de afirmação de autoridade e de po-der. Enquanto representação social de gênero, não há dúvida de que, até bem pouco tempo, talvez até com mais atraso no meio rural (pelas especificidades políticas, culturais, econô-micas...), as tarefas femininas situavam-se na ótica do secun-dário, da incapacidade, sendo responsabilizadas mais por fra-

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cassos do que pelo sucesso tanto do marido quanto da família. A ideia de que a agricultura é uma atividade da família, não uma atividade individual, está bem presente na memória de idosos, tanto dos que migraram para a cidade quanto dos que permanecem no núcleo familiar rural

A memória da terra, correlacionada sempre com a pro-dução e com o trabalho na ótica do sacrifício, não descuida da presença e da centralidade da família. Nessa, como já vimos, a casa é ponto focal, porém casa sem comida é como se o elemen-to que a justifica não se fizesse presente. Comida abundante como fruto da natureza e do trabalho das pessoas – “podia não ter outra coisa, dinheiro, luxo, mas comida era a primeira pre-ocupação, se fazia de tudo pela comida. As plantações davam a comida, né, carne se tinha em abundância [...]”.

A expansão da ocupação do território, definido por várias formas de colonização, deu-se muito rapidamente, começan-do pela periferia das antigas colônias, seguindo por toda a margem meridional do Planalto, alcançando os Aparados da Serra, o vale do rio Uruguai, estendendo-se pelo Oeste cata-rinense e paranaense. A região que realmente delimitou as trajetórias de migrações internas foi a direção noroeste.

Vários fatores contribuíram para que houvesse o deslo-camento de colonos de um espaço previamente definido para outro. Fatores de ordem estrutural e conjuntural, ligados à família, à terra, à demografia, à herança/matrimônio, ao nú-mero elevado de filhos na família original, às promessas não cumpridas dos agentes de imigração/colonização (pública e/ou particular), aos conflitos com os nativos e os de sua nacionali-dade, à diferença em termos regionais e dialetais, à heteroge-neidade cultural, a sentimentos nacionais (principalmente do país de origem), foram também determinantes, pelo menos, foram também elementos assim referidos pelos nossos infor-mantes que “ainda se lembram”. Disse-nos um “nono” migra-

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do para uma nova colônia e, na década de 70, para a cidade de Nova Prata: “Meu pai disse:

Olha não dá mais pra ficar todos aqui, eu, o Pedro e as moças vamos mais pra frente, pra Serafina (hoje Serafina Corrêa), o Toni fica, se casa e se vira sozinho aqui agora. E foi o que fizemos. Vuto quê? A terra era poca, tinha de tentá onde ainda era possível fazer futuro. Me lembro bem que não levamos muita coisa porque deixamos quase tudo pro meu irmão. [...]. Começamos tudo de novo. [...]. Depois, quando tava colocado, nóis (cônjuges) é que fomos para a cidade e os filhos ficaram em Serafina e um depois foi pra Casca e se fizeram. Mas sei que não foi fácil pro meu pai, não, eu ainda, graças a Deus, casei bem, a mulher era filha única e pegou um bom pedaço de terra, foi isso que me deixou bem. [...]. Vontade de trabalhar sempre tive. O exemplo do pai ficou bem firme em toda a família. Mas não foram todos assim não, muitos que tinham pouca vontade de trabalhar venderam fora tudo, italiano também, sim.

Os imigrantes e seus descendentes viam com certa hostili-dade e desprezo o modo de vida principalmente dos negros e ca-boclos que habitavam a região. A produção agrícola dos caboclos, prioritariamente voltada para o autoconsumo, seu isolamento e não-fixação por muito tempo num local, a forma como produ-ziam, a pouca importância dada à apropriação da propriedade privada, dentre outras, como características da sua organiza-ção e do desenvolvimento socioeconômico, promoveu diferen-ciações entre os estratos socioculturais no espaço agrícola.

A estruturação da propriedade pela determinação da legislação, pelas condições econômicas dos colonos-migran-tes, pelo seu caráter tradicional de relação com a terra e com determinados tipos de produtos, pela topografia, em grande parte muito montanhosa, pela expansão e facilidades natu-rais e infraestruturais (rios, estradas) etc., sem dicotomizar e/ou reificar a chamada “vocação empresarial”, fez da região colonial um espaço de economia dinâmica.455

455 Ver ROCHE, J. A imigração alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969. v. I.

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O trabalho artesanal na confecção de tecidos, na produ-ção de inúmeros produtos coloniais, os moinhos, as atividades artesanais profissionais,456 mesmo sendo de âmbito local, ser-viam como complemento de renda para o colono, como recur-so de subsistência, como fonte alimentar e como suprimento de instrumentos domésticos e/ou domiciliares.457 Essas ativi-dades e esses domínios técnicos emigraram com os colonos até as Colônias Velhas e, dessas, para os novos espaços de deslocamento; apenas se adaptaram às condições espaciais e objetivas das colônias. Esse processo aglutinava as forças plenas da família, bem como as marginais (no caso, crianças e idosos).

A dimensão da racionalidade e da ética do trabalho que a alimenta e, ao mesmo tempo, promove o acúmulo de capital fez-nos entender também que, na concepção dos sujeitos da pesquisa, progresso não se fazia sem sacrifício, aliás, sacri-fício e progresso, para a ética do colono, são dimensões com-plementares: o sacrifício era e continua sendo promotor do progresso; com esse, o progresso vinha naturalmente.

As práticas de herança eram pensadas com o sentido de evitar a fragmentação das unidades de produção. O direito costumeiro e as várias formas do sistema de partilha, quando havia, eram acionadas para determinar as regras de herança. O problema da escassez de terra e da pouca perspectiva de ter na terra possibilidade de reprodução econômica, a existên-cia hoje de um mercado de trabalho fora da agricultura, em atividades que não requerem tanta qualificação profissional, facilitaram os arranjos e estão tornando menos problemática

456 Ibidem.457 SCHNEIDER, S. Os colonos da indústria calçadista: expansão industrial e

as transformações da agricultura familiar no Rio Grande do Sul. Disserta-ção (Mestrado) - Unicamp, Campinas, 1994; ver, também, do mesmo autor Agricultura familiar e pluriatividade. Tese (doutorado) - Ufrgs, Porto Alegre, 1999.

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a concorrência interna pelas fatias de terra no âmbito das famílias.

As condições de produção, a variável demográfica e de gênero, o nível de influência do direito formal, em contraposi-ção aos arranjos internos, entre outros, foram definindo mo-mentos, decisões e lógicas internas do processo de transmis-são do patrimônio. A preocupação dos filhos e/ou do possível herdeiro com o retardamento, o desejo dos pais em preservar a autoridade (na posição de proprietário), a falta de diálogo interno sobre isso, a impensada e indesejada (interna e comu-nitariamente) apelação para o direito formal ou a contrapo-sição aberta à desigualdade etc. são conflitos e preocupações (re)veladas. Percebemos que as soluções encontradas eram várias e variáveis, contingenciais e pouco normativas; de-pendiam de inúmeros fatores, inclusive da conjuntura socio-econômica, das condições objetivas (econômicas) e simbólicas possíveis e disponíveis nas unidades familiares; é possível di-zer, com toda a firmeza, que faziam parte das racionalidades adaptativas em razão das condições objetivas existentes.

A reprodução social do agricultor familiar estava intima-mente relacionada à produção e à reprodução das unidades domésticas e dos indivíduos nelas, mediante estratificações individuais e cooperativas, o que implicava certa tensão in-terna. Assim como as estratégias matrimoniais, os processos de herança eram flexíveis, o que não necessariamente quer dizer que não podiam seguir normas costumeiras e, muito menos, do sistema jurídico. Os vários tipos, modelos e des-vios de herança (indivisa, igualitária, divisível, diversidade de bens etc.) não seguiam normas claras; enfim, eram adap-tações de estratégias familiares num jogo em que se combi-navam elementos internos e externos. Essa era a riqueza e a diversidade de ações que envolviam o agricultor familiar.

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A infraestrutura para o escoamento e a comercialização, o ritmo dos nichos de mercado, a disponibilidade monetária do colono, o papel do Estado em termos de garantia do mínimo de sobrevivência fizeram com que o espaço regional também apresentasse dinâmicas econômicas heterogêneas em termos de atividades e temporalidades.

Trabalhamos muito nas estradas, era a forma mais segura de fazer dinheiro. Lembro que meu pai ficava até semanas fora, ou trabalhando em construção, né, ou em estradas e abrindo picada. Naquele tempo, era as carroças que passavam, mas logo, logo, chegou o caminhão também aqui, viu e essas estradas tinham de ser alargadas e melhoradas. Asfalto aqui veio só, acho, lá pelos anos 70, final de 70. Tinha comércio aqui que só pra ver, iam pra Muçum, atravessavam as Anta (Rio) e iam pra Caxias, pra São Sebastião do Caí, até Porto Alegre muitos iam de carroça levá produto. Meu pai fez muito isso. Quando viemos para Nova Prata, começamos também com um pequeno comércio. [...]. Foi lá por 76. [...]. Conservamos a tradição de comerciante.

O crescimento urbano e a formação de uma rede urbana influenciaram, sobremaneira, a determinação do comércio na região de colonização. Esse processo, em alguns momentos, provocou a pulverização de recursos entre colonos; em outros, foi indutor de pequenas indústrias subsidiárias, desenvolvi-das a partir de atividades artesanais. De outro modo, a meca-nização, os insumos, a tecnologia, a topografia montanhosa, a redução da força de trabalho da unidade familiar, a mani-pulação genética, os herbicidas, o baixo preço dos produtos, a falta de tradição em relação a determinadas culturas, entre outras questões, fizeram com que as trajetórias migratórias, o espaço urbano, novas estratégias de sobrevivência se fizes-sem presentes.458

As várias formas de variação da produção dos colonos da região eram expressões também das condições econômicas

458 SCHNEIDER, op. cit.

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diferenciadas entre ambos, dos tipos de solos, da disponibili-dade de mão de obra e do acervo técnico disponível, da própria dinâmica e interação entre as unidades familiares, do merca-do de insumo e de subsídios técnicos para a agricultura, do conhecimento de técnicas e recursos internos, etc.459

Os vínculos de vizinhança, honestidade e reciprocidade, bem como uma contabilidade do tempo não muito racional e formal, eram alguns dos requisitos que materializavam essa prática histórica em meio aos colonos. A entreajuda situava-se numa dimensão bilateralmente acordada em função de vá-rias questões. A proximidade familiar e física, a precisão e a solidariedade tradicional, como elementos constituintes do ethos de colono, criaram formas de decisão.

Havia um saber incorporado e historicizado em função das adaptabilidades temporais e econômicas, sobretudo mais recentemente, quando essa atividade passou a ser uma va-riação bem mais econômica do que agrícola. As estratégias defensivas para dominar, prática e simbolicamente, o risco e as perdas estão no âmbito do conhecimento, porém os idosos não cansam de dizer que, quanto mais melhoram tecnicamen-te na produção, mais sutilezas, mais debilidades e cuidados aparecem; a vigilância e o saber empírico-técnico precisam ser mais intensos e rapidamente acionados.

A forma integrada de produtos, processos, tempos, sabe-res e força de trabalho agrega valores de uma atividade e de um produto a outro, o que faz o resultado global – “a corrente” – ser, em alguns momentos, positivo; são articulações agrega-das, integradas, subordinadas ou não ao conjunto de fatores e estratégias adaptativas de que os colonos dispunham e com os quais se aventuraram em razão de necessidades, de carên-cias, de processos globais, acumulações, presentes e ausentes,

459 Idem.

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formadoras e reprodutoras do ethos de colono e da sua “orga-nização da vida” econômica e familiar.

A saída de pessoas (filhos) e ou de núcleos de famílias re-cém formados para os novos espaços viabilizava a não divisão do patrimônio da casa no espaço-mãe. O matrimônio, a mi-gração e a propriedade eram partes de um mesmo modelo de organização interna. Alguns tomaram “outros rumos” para que o “rumo de até então” se reproduzisse e se solidificasse. Os projetos de reprodução social e de patrimônio passam por vieses não mais aglutinadores da colônia-mãe; os grupos vão formando identidades redefinidas e os graus de parentesco vão se tornando mais tênues.460

Por mais que a estratégia dos que migraram tenha sido de estruturar-se em grupos, mesmo com diferenças étnicas e regionais, os limites objetivos e estruturais, bem como afeti-vos, obrigaram-nos a dimensionar certa solidariedade e vín-culo vicinal.461 A busca de formação de grupos permitiu que, mesmo traumatizada pela imigração/migração, certa homo-geneidade cultural no interior das colônias se consolidasse, preservando, assim, certo patrimônio cultural e social.

As condições materiais de produção, associadas ao meio e às relações sociais que se constroem a partir disso, asse-guravam processos sociais nucleados em torno da família, da organização do trabalho, da comunidade, da vizinhança e do parentesco, do mundo exterior, da sua organização social para a sobrevivência, para a sociabilidade, para o domínio da natureza e para a construção da individualidade.

A ordem social do colono fundava-se na ligação entre pro-priedade, família e trabalho, este com sentido além do econô-

460 SCHNEIDER, op. cit.461 SEYFERTH, G. Camponeses ou operários? O significado da categoria colono

numa situação de mudança. Revista do Museu Paulista, São Paulo, v. XXIX, 1984. p. 72-96.

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mico. O trabalho como obrigação, dedicação, dever moral, su-peração, virtude, acesso à riqueza e à promoção da exaltação do homem etc., ligado à propriedade, formaria o espaço social e a trajetória sequencial das estratégias de reprodução fami-liar e organização da individualidade do colono.

Compreender o feixe de relações que se aglutinam e se anulam num processo de migração e localização num deter-minado lugar não é tarefa fácil. A relação homem/natureza foi resolvida pelo domínio daquele sobre esta (a ideia de des-bravar, de pioneiro, de derrubar, de mexer com a terra, de construir, perpassa muitos desses textos). As relações sociais na produção são pouco ou nada inseridas ou até desconsidera-das, ou, então, vistas só do prisma da produção, do econômico e/ou do cultural. O social apresenta-se segundo o olhar dos grupos que se sobressaíram, que cresceram, que assumiram o poder político; ao mesmo tempo, são exemplos de moralidade e de vida em família. Não são poucos os que misturam essas questões com a dimensão da poupança, do trabalho penoso, do desejo de fazer capital ou futuro, como dimensões gerado-ras da riqueza para alguns.

É muito comum nos depoimentos de idosos aparecer a di-mensão do tempo histórico como mitificado e mistificado pela presença, em determinadas regiões, de uma cultura imbuída de espírito empreendedor – “recém que chegamos... era puro mato. [...]. Naqueles perau só trabalha quem tem coragem e disposição mesmo”.

A construção de um espaço de colônia deu-se sob o sig-no da propriedade da terra, localizando, desde o início, nes-se espaço, o imigrante vinculado ao mundo da mercadoria. A grandiosidade de ser o pioneiro, o sentido simbólico disso, a transcrição oral da natureza rude e íngreme transferem para o homem uma realização do rudimentar ao domínio do natu-ral pelo trabalho; a dimensão do nada cede lugar à forma, ao

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formato, à adaptação. O ideário de pioneiro ignora a tempo-ralidade anterior ou minimiza o papel e a importância, pelo menos econômica, dos instalados anteriormente a sua chega-da. A memória das picadas e dos travessões memoriza a es-pacialidade e define os limites do espaço vazio e do ocupado. A forma de pensar o tempo está baseada na agricultura, no progresso, na sua participação no espaço.

Nesse horizonte da preservação da história e da memória da família, é importante que se diga que, no relato de grande parte dos idosos, o que é reflexo e expresso como constitutivo da conservação da árvore é o lado masculino do parentesco.

A recriação de representações simbólicas e de práticas sociais de um passado de trabalho penoso proporciona sig-nificados e valorizações às suas vidas. Ao resgatarem e rein-ventarem seu passado imediato no presente, ao conceberem duplicidades entre ambos em seu cotidiano e na comunidade, entre idosos e jovens, esses idosos (homens e mulheres) adap-tam-se, resistem à imersão em universos da modernização e da racionalidade individual no seio familiar.462

É visível a correlação entre o ethos do imigrante com a terra e com os animais. Esse processo se alimenta e se ritu-aliza, em parte, ainda hoje, pelas falas dialetais, na econo-mia familiar, no trabalho como riqueza e na unidade moral da família traduzida em força de trabalho, na dialética da vida cotidiana baseada na esperança e no medo (esperança de saúde, colheita, trabalho, medo de desgraças físicas, morais e produtivas), na preocupação em comprar terra para os filhos em fazer capital para melhor “colocá-los”, na produção de ce-reais e na criação de animais, na intercomunicabilidade vici-nal e comunitária através de festas, filós, visitas, mutirões, solidariedades aleatórias etc.

462 SEYFERTH, op. cit.

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As representações que a sociabilidade moderna produz e reproduz no social, dando destaque à divisão, aos ritmos e às garantias da quantidade do tempo empregado, acabam por redefinir o aproveitamento do que deu certo da experiência passada. A absolutização do agora, do ganhar tempo, da ade-quação individual ao tempo como imperativo social penetra no cotidiano da vida social dos idosos. O acento utilitarista, linear e quantitativo do tempo centrado na eficiência dicoto-miza passado e presente, relegando àquele certo estigma de extemporâneo e atrasado. O papel dos idosos e a (re)constru-ção do ethos de colono vivenciam e integram esse processo, o que não significa que tudo morreu e/ou se transformou.

Os processos em redefinição que aconteceram pós-déca-das 50/60 são expressivos de trajetórias temporais (localiza-das e contextualizadas), mas que não omitem o resgate. O cotidiano do colono é um complexo inter-relacional de tempo-ralidades e de significados em conflito. A memória caminha junto com esses tempos que se redefinem.

Os significados das épocas passadas e as formas pelas quais as experiências são vividas, lembradas e contadas também se alteram no decorrer do tempo. Coisas que não se falavam antigamente, pode-se falar agora e vice-versa. Era comum ouvirmos depoimentos de idosas falando sobre a vida sexual dos jovens, as formas de matrimônio alteradas, sobre os negros sem o peso explícito do racismo, dentre outras.

Até bem pouco tempo, as famílias eram numerosas por necessidade de mão de obra; hoje, com a mudança da base técnica e mecânica da produção agrícola, com o controle da natalidade e com a redefinição do papel da mulher, esse pro-cesso ganha novos contornos. Mas essas não são as causas primeiras da redução de filhos, e, sim, o problema da proprie-dade e de sua real fragmentação.

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As próprias histórias representam a constante evolução dos modos pelos quais os migrantes constroem suas vidas através de suas histórias. As histórias orais dos migrantes proporcionam evidências tanto sobre a experiência passada quanto sobre as histórias de vida que são uma parte impor-tante e material da sua experiência.463

Se tomarmos, por exemplo, o discurso e as práticas re-ligiosas, sobretudo da Igreja Católica, sabemos que tiveram grande repercussão na forma de aceitação, contraposição, de racionalidades internas, de estratégias racionalizadas em ra-zão dos limites, da ignorância e do saber camponês. Nem tudo foi absorvido pacientemente e sem conflitos. Sabemos que as sociedades camponesas relativizam, em muito, pregações de regramento moral. Muitas práticas de cunho sexual são, no seio camponês, norteadas por fatores de ordem cultural liga-dos à família, à terra, racionalizadas a partir de estratégias e adaptações internas. Todos sabemos das razões econômicas, simbólicas e sociais do discurso pró-natalista instituído pela Igreja e amparado pelo Estado, da demonização do desejo se-xual, associado unicamente ao matrimônio com procriação. Esse contexto desenvolveu a representação social, tornou-se parte constituinte da cultura camponesa, o orgulho para a mulher em ter muitos filhos como forma de produzir mão de obra, de ter garantia de amparo na velhice (agora com os netos), destacando os fatores de herança, a ligação entre a casa, e a prática de ter filhos – ai de quem, principalmente a mulher, não os tivesse –, tudo vinculado ao trabalho e à cons-trução de capital – “para deixar mais para os outros do que se recebeu”.

Ter e cuidar de filhos sempre foi uma orientação ética básica da cultura camponesa da região colonial. Só o casa-

463 THOMSON, Alistair. Histórias (co)movedoras: história oral e estudos de mi-gração. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, 2002. p. 359.

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mento daria essas condições e, ao mesmo tempo, contradito-riamente, promoveria certa autonomia dos filhos em relação aos pais. A migração para novas colônias, a urbanização do rural e a migração e/ou contato com o urbano também liber-taram e abriram os “olhos da gente” em relação à autoridade patriarcal e “mesmo dos padres. [...]. A televisão depois aju-dou também e as escolas, as novelas...”.

Segundo Costa e também Vannini, afetividade, sensuali-dade, sexo, desvios de conduta nesse campo não eram objeto de muito diálogo e abertura no seio familiar. Algumas ido-sas, principalmente, ainda hoje comentam isso.464 Quando se entra nesse campo, as narrativas são carregadas de contra-posição; ao mesmo tempo, ainda produzem desgostos, tabus, ignorância, vergonha, subterfúgios, desconhecimento, mitos, medo, conservadorismo; e revelam a existência de ações além ou aquém do instituído e “orientado”. A cultura camponesa, com seus valores, representações, suas relações sociais, pro-duziu racionalidades e racionalizações “internas” adaptati-vas, hierarquizadas e complementares ao seu mundo, ainda que isso tudo seja produzido no encanto individual, escondi-do, alternativo, resignado e, talvez, submisso publicamente a uma proteção moral.

O olhar vigilante da Igreja, personificado na figura e presença-ausência do padre, por meio de linguagens e signifi-cados de repressão, normatizações e transgressões, produziu uma ética sexual sentida, vivida, observada (levada em con-ta), transgredida, sublimada, racionalizada a partir dos hori-zontes (em geral, limitantes) da cultura camponesa, a qual se reproduz e se redefine com os contextos, historiciza-se com as dinâmicas e exigências sociais e culturais do grupo de perten-

464 Sobre esse tema, ver VANNINI, I. A. O sexo, o vinho e o diabo: demografia e sexualidade na colonização italiana no RS (1906-1970). Passo Fundo: UPF Editora, 2003; ver, também, COSTA, R.; BATTISTEL, A. Assim vivem os italianos. Caxias do Sul: Ediucs, 1982.

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cimento. Estratégias internas, ainda que pouco visíveis pu-blicamente, recriminadas e estigmatizadas (principalmente quando tinham como foco negativo a mulher), apareciam, de-senvolviam-se. Nas falas, principalmente de idosas que estão no meio urbano, produzem-se representações de desejo e pra-zer em contraposição às moralidades representadas e imagi-nadas, seletivamente, por influências externas, demonizadas por uma ideologia sexofóbica, pela cultura do silêncio e pelas linguagens orais repressivas.

Na cultura camponesa, ainda hoje, incorporação e trans-missão de saberes e de ideais levam muito em conta univer-sos de seu conjunto cultural, os limites e possibilidades da unidade familiar. A transmissão de saberes para o trabalho, malgrado as interferências técnicas, acontece no próprio tra-balho; é um saber-fazer que é transmitido pela família, como temporalidades que se cruzam (via de regra o pai, que é o representante do fazer-aprender-saber-transmitir).

A transmissão e incorporação de saberes sempre foram mais do que uma transmissão de técnicas; eram expressão de valores, construção de papéis, estrutura social, reprodução do grupo etc. A produção e a reprodução dos bens simbólicos ca-minhavam juntas, ou, então, antecediam a produção de mer-cadorias. Havia uma produção de bens que era socializada antes de socializar mercantilmente alguma coisa, dimensão essa revestida de valores de uso e do uso como valor. Antes de produzir cultivos, o trabalho produzia cultura; havia encade-amentos de ações técnicas e de ações simbólicas, tornando um processo ritual e cotidiano que era o trabalho.465

O trabalho continua sendo hoje uma categoria cultural ou ideológica e tem múltiplos significados; expressa, acima de tudo, uma ética (essa ligada à terra, à família e ao gênero).

465 Ver WOORTMANN, E. Herdeiros, parentes e compadres. São Paulo: Hucitec, 1995; ver, também, WOORTMANN, E.; WOORTMANN, K. O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: UnB, 1997.

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Aprender a lidar com a terra e as plantas é aprender a lidar com o ordenamento do mundo/natureza.466 Portanto, romper com a prática da agricultura significa romper com toda uma visão de mundo, pois o camponês não aprende só a prática agrícola, mas, sim, todo um ordenamento de mundo mais complexo. Por mais que os processos materiais e racionais mo-dernos tendam a alterar essa lógica interna; por mais que os valores não sejam imutáveis, o camponês reserva para si um horizonte que resiste em se romper. O desafio está em perce-ber dialeticamente as mudanças, seus conflitos/tensões e suas reações, quem são seus promotores, aonde se quer chegar.

A dinamicidade da cultura (difusão, contato, mudança) é correspondente à dinâmica dos processos sociais, temporais, técnicos, simbólicos e significativos que dão unidade às rela-ções e aos modos de comportamentos sociais.467 As condições de existência do camponês, pelo seu trabalho, pelas práticas sociais etc. vão criando um saber social cotidiano que é coleti-vo, hierarquizado, lógico, e que objetiva dar conta das ações e processos relacionais, necessários (pragmáticos) ao seu mun-do vivido. Esse saber social coloca questões nas várias dimen-sões simbólicas e materiais, como instrumento do agir social. A sua lógica funda-se na ordenação, nas previsões, na difusão, na regularidade, na classificação das ações cotidianas. É im-portante que se articulem os saberes, que sejam priorizados e valorizados, como ponto de partida, os conhecimentos e práti-cas de quem verdadeiramente é o sujeito da ação educativa.468

O que nos parece é que, com a modernização da base téc-nica da produção, cidade e campo tornam-se espaços que se complementam, conservando-se especificidades ecológicas,

466 Ver WOORTMANN, E.; WOORTMANN, K., op. cit.467 DAMASCENO, M. N. A construção do saber social pelo camponês na sua

prática produtiva e política. In:_______ (Org.). Educação e escola no campo. Campinas: Papirus, 1993.

468 Idem.

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sociais e culturais. No entanto, existe uma espacialidade so-cioeconômica e cultural que se articula em razão de necessi-dades essenciais de um processo mais amplo, o qual não se funda totalmente nas decisões racionais e/ou científicas.

As famílias buscam utilizar mecanismos, até com res-quícios de tradição, para melhor adaptar seus interesses aos projetos individuais. A ida da nora para a casa do sogro ou do marido e seu dote, estipulado num pedaço de terra ou no seu valor monetário (o que vai ser apropriado pelo marido); a tentativa de fazer permanecer um único filho nas terras da família, levando a que as dos outros sejam adquiridas pelo herdeiro, inclusive com a ajuda dos pais; a liberação de mem-bros para outras atividades e para o estudo; as dribladas nas partilhas em relação às mulheres (lote na cidade, estudo de 2º grau, parte em dinheiro...), dentre outros, são princípios de manutenção da unidade da terra cultivável e da perpetuação do patrimônio, os quais definem estratégias de partilha.

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CAPÍtULO 16

ritualização verbal e não verbal da cultura na memória

As formas das histórias de vida são tão importantes quanto os fatos que elas contêm.

Bertaux-Wiame

Já vimos que o testemunho oral é fundamental para per-ceber aspectos do interior dos processos de migração, de resis-tência cotidiana dos que ficam e dos que saem, das posições diferenciadas entre gênero e entre membros familiares sobre esses mesmos processos. O depoimento oral geralmente pro-picia a exteriorização de consciência vivida e significativa do momento de sua materialização e da capacidade e importân-cia dos atos de lembrança do tempo vivido “de antigamente”.

O depoimento oral pode ser útil na percepção de uma alteração espacial que não signifique meramente um desen-raizamento, mas um transplante cultural e espacial, cujas es-tratégias de sobrevivência se baseiam nos mesmos processos que qualificam e identificam o ethos camponês, tais como a fa-mília, o parentesco, a vida comunitária e o trabalho centrado na dimensão do núcleo coletivo como forma de enfrentamento das novas demandas e das novas ordens de sociabilidade.469

Sabemos que em todas as culturas e etnias existem sem-pre práticas mais ou menos ritualizadas com as quais cada

469 THOMSON, op. cit.

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grupo social ensina aos seus membros a arte da exterioriza-ção da memória.470

Costuma-se dizer que as narrações imitam a vida, mas, no fundo, é a vida que imita as narrações. As narrações for-mam esquemas que permitem entender a realidade e que au-xiliam na produção da percepção do mundo.

Narrar a viva voz alguma coisa a qualquer um significa instaurar uma relação e produzir efeitos reais, e, ao mesmo tempo, real é ouvir alguém. Possamos fazê-lo ou não, se o fizermos, alguma coi-sa sucede. [...]. (O narrador) quando conta uma história, cria um mundo cuja imaginação se desprende [...], se situa no mundo das ações e das relações.471

Veremos nesse item alguns elementos que identificam uma memória de uma cultura étnica, independentemente de sua ligação com o meio urbano e/ou rural.472

Memória e etnia

A memória dos lugares pode ser diferente dos lugares de memória.

Lucena

A memória e a cultura étnica localizam-se num cenário presente de grande dinamismo presentista, porém de cunho nostálgico, ufanista e de revalorização de práticas, ações, di-

470 YEATS, F. L’arte della memoria. Torino: Einaudi, 1972.471 JEDLOWSKI, P. Storie comuni. La narrazione nella vita quotidiana. Milano:

Mondadori, 2000. p. 60.472 A análise contida nesse item baseia-se em estudos anteriores, já informados,

bem como na literatura sobre imigração que aborda fatores de ordem simbó-lica, de formas de organização da vida do grupo étnico em questão, bem como de projeções midiáticas recentes sobre determinados aspectos da cultura e etnia italiana. A bibliografia aqui é muito vasta. Independentemente de suas formas de abordagem, há aqui uma produção, acadêmica ou não, de grande envergadura.

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mensões e simbologias da tradição; podem servir de tradição, tradução, acomodação, crítica e redefinição.

No específico relacionado à cultura étnica, percebemos que há muito pouco conteúdo expresso oralmente pelos ido-sos referentes à colônia-mãe, escassa identificação da comu-nidade com a pátria-mãe, porém há um certo pertencimento vêneto que se embasa na presença do componente familiar, do parentesco e da importância do fenômeno religioso, de sua ideologização em torno do regramento da vida, porém com sentimento de culpa pelo desregramento efetivo existente nesse aspecto no seio familiar, individual e comunitário.

Grande parte desses processos, ainda que em redefini-ção, mantém-se. Como já falamos, recordam-se muito a capa-cidade de resistência em relação ao trabalho duro, as dificul-dades do ambiente e da natureza, a presença e necessidade de muitos filhos, o fato de se casarem cedo e, por isso, terem mais tempo de fecundidade, os conflitos com caboclos, a centrali-dade do fenômeno religioso e da Igreja, o ufanismo da noção do desbravador, o “primeiro que chegou aqui”, o progressismo sem a percepção de processos macro no campo político, social e econômico.

Acreditamos que a memória e a cultura étnica devam ser entendidas, acima de tudo, como prática e fenômeno so-cioeconômico, que possuem ligação com a indústria cultural, com instituições sociais, no caso específico, especialmente a família, a religião e a comunidade, com os discursos e narra-ções socio-históricas produzidas por instituições e conserva-das ainda hoje, as quais produziram representações sociais sólidas e que permitem a manutenção, ainda que redefinida, de um horizonte de pertencimento.

Pensar a questão da memória, da família e da etnia cul-tural é muito mais do que buscar cruzar temporalidades; é ser testemunho da história; é localizar no tempo e no espaço

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raízes e ações que o presente e o passado remoto desvalori-zaram, como é o caso do parentesco, da consanguinidade, de compadrios, de famílias extensivas, de ressentimentos, de ações significativas no tempo. É nesse sentido que a memó-ria faz referência a uma ideia de persistência ou reinvocação de uma realidade de uma maneira intacta e contínua.473 A lembrança recoloca a esperança na capacidade de recuperar alguma coisa que se possuía, um tempo que se esqueceu.

Segundo Guimarães, por sua própria natureza, à memó-ria caberia a tarefa de realizar um retorno àquilo que a cada vez se distancia mais e mais. Porém, exausta de repetir a re-petição, sem forças para suportar o que lhe é destinado, inca-paz de suportar o fracasso fundador de sua busca, a memória procura fixar-se em alguma cicatriz, corte, descontinuidade ilusória, capaz de demarcar, ainda que fugazmente, o recuo incessante da origem.474 É nesse sentido que há rememora-ções e vazios.

A memória cultural e étnica é marcada pela descontinui-dade dos registros de tempo e pela heterogeneidade dos níveis que a compõem. É nessa dimensão do tempo no espaço e do espaço cultural no tempo da memória que muitas tradições são ou podem ser inventadas e/ou redefinidas. Aliás, sempre que possível, é comum, na sociedade atual, tentar estabele-cer continuidade com um passado histórico apropriado, rede-finido, transtemporalizado. Contudo, na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições “inventadas” caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Isso porque toda a tradição inventada, na

473 JEDLOWSKI, P. Memoria. Rassegna Italiana di Sociologia, v. XXXVIII, n. 1, gen./marz. 1997. p. 135-146.

474 GUIMARÃES, C. Imagens de memória: entre o legível e o invisível. Belo Horizonte: UFMG, 1997. p. 21 e 37.

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medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal.475

Fala-se muito que o tempo anda mais depressa e que as pessoas vão junto com esse tempo. Vivemos apressados, que-rendo fazer tudo logo porque amanhã há outras coisas para fazer, e assim sucessivamente. Benjamin já analisou o fato de que recebemos muitas informações a todo o momento, não nos fixando em nada, pois o conjunto de informações recebidas será logo substituído. É a chamada “dimensão presentista” do tempo fugidio, do obsoleto, do escopo, da ética dos instantes, do tempo real etc.

Paradoxalmente, como forma de compensação e/ou satis-fação também momentânea ou atestado de não aceitação da dimensão presentista, desenvolvem-se saudosismos, nostalgias, ufanismos; desvelam-se ressentimentos, estratégias, racio-nalidades internas e adpatativas; rompem-se silêncios, não ditos, etc. Muito do que se produziu sobre memória da etnia italiana está repleto dessa ambiguidade.

Biografias (principalmente de pessoas famosas na esfera política, empresarial e midiática), genealogias, festas de famí-lias, espaços do patrimônio público (ruas, praças, arquitetu-ra...), cenários turísticos etc. são acionados para materializar (situ)ações e fatos de memória cultural e étnica. Há uma pro-funda relação entre memória e cotidiano, que desafia as des-continuidades do tempo pela manifestação de rituais práticos, de vividos no tempo e que são traduzidos no presente.

Já vimos na segunda parte de nosso trabalho que na me-mória étnica geralmente se apresentam dimensões idealizan-tes em torno de várias esferas do cotidiano vivido presente. Vejamos algumas delas que se apresentam em nossa pesquisa de campo e que serão discutidas melhor posteriormente.

475 LUCENA, C. T. Artes de lembrar e de inventar: (re)lembranças de migrantes. Belo Horizonte: Arte e Ciência, 1999. p. 9, 10 e 21.

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A centralidade da família

O saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos.

Benjamin

A família é dimensionada por uma composição formada pelo parentesco próximo, o compadrio, o sobrenome, a árvo-re genealógica etc.; representa o dimensionamento de uma memória coletiva, grupal. A família e sua dimensão cíclica renovam-se pelos nomes, pois está presente aí a noção de transmissão, de culto a uma tradição temporal e familiar, o domínio público da vida social e, em geral, econômica. Não há dúvida de que o nome/sobrenome possui uma valorização simbólica na dimensão étnica da cultura. É por isso que a me-mória da família se apresenta como um complexo de referên-cias simbólicas imaginadas na esfera da integração/desinte-gração, felicidade/desgosto, continuidade/descontinuidades.

Através de contatos informais com idosos, percebemos a dimensão ambígua da ideia do alerta (da pedagogia do alerta) no sentido da necessidade de reprodução do passado e das transformações do presente; do espelho do passado e da ideo-logização de um devir coletivo que deve se manter, porém re-produzindo formas de vida e valores societais do passado no presente.

Percebemos que existe uma certa congruência entre as maneiras pelas quais os nossos informantes conceituam o passado e como, na época, experimentaram o passado e re-agiram ao ambiente social. A família aparece sempre sob o veio da centralidade paterna, sendo comum essa dimensão expressa por ambos os sexos; há um reconhecimento da mora-lidade severa, da obediência e submissão feminina ao homem,

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do domínio físico e econômico da natureza física e produtiva (terra e matas) pelo homem, do trabalho rude reservado ao homem, bem como sua visibilidade e importância pública, própria dos mecanismos de repressão de uma organização fa-miliar patriarcal, patrifocal e patrilinear.

As noções de forte e fraco, leve e pesado, para dentro e para fora ganham conotações expressivas de normalidade e funcionalidade nas diferenciações, pois foram vividas assim, foram sedimentadas no cotidiano através de rituais tempo-rais e culturais e na ótica da permanência e/ou com pouca redefinição.476

Família e afetividade, para o ethos do colono, possuíam vínculos de dimensões coletivas; pensava-se a família primei-ro, por ser o centro nevrálgico que orienta ações individuais. Por isso, quando falávamos sobre afetividade com idosas, a tônica que se fazia presente era a correlação negativa, o con-traponto de tempos e as implicações disso para o horizonte da família. A afetividade aparece sempre relacionada com as mu-danças atuais, com a falta de vigilância, de controle e respon-sabilidade dos pais e com o exagero de autonomia dos filhos, das filhas principalmente. As lembranças do campo afetivo vêm carregadas e manifestas em ações de repressão externa e de algumas poucas situações estratégicas, porém sempre de respeito à autoridade paterna. No entanto, idosas do meio urbano revelam que, se estivessem na cidade na época, tal rigidez teria sido afrouxada, assim como é hoje. No campo das idealizações aparece o estudo como quase completa ausência, o fato de ser um elemento mediador para o trabalho fora da agricultura, esse está em profunda contraposição, se compa-rado à atualidade.

476 Ver WOORTMANN, E., op. cit., 1995.

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A subjetividade é um elemento forte na determinação da elaboração da representação dos lugares, das coisas do espaço que possui sua marca, do movimento das memórias/lembran-ças, do “testemunho privado”,477 das imagens, do personifi-cado “antigamente, eu...”, dos tempos e dos espaços que, no presente, se entrecruzam e se reencontram.

Como diz Lucena, na consciência dos migrantes, os luga-res e os tempos vão e vêm, a lembrança oscila entre o passado e o presente em múltiplas camadas vividas e intercambiadas no decorrer da existência.478

O mundo do trabalho

Já se foi o tempo em que o tempo não contava.

P. Valéry

A esfera do trabalho, em geral, é representada na forma de memórias de ofícios, de sacrifícios, de despojamento e ru-deza da vida. Nesse horizonte, há uma produção discursiva muito extensa que busca valorizar o imigrante como branco, civilizado e trabalhador, discurso esse produzido e incorpora-do pela memória étnica e que não recebeu ainda total atenção no campo analítico, no sentido de fazer aflorar contradições nesse processo todo.

A memória do trabalho de idosos entrevistados organi-za-se em torno da terra da família; articula-se com herança, com peso, esforço, luta, o corpo como objeto e instrumento de trabalho, o reforço da vizinhança e de compadres, a diferença

477 MALUF, M. Ruídos de memória. São Paulo: Siciliano, 1995.478 LUCENA, C. T. Memórias de famílias migrantes: imagens do lugar de origem.

Projeto História, São Paulo, n. 17, 1998. p. 397-413.

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de trabalhos na ótica do gênero e da importância relativa aos horizontes temporais e espaciais.

As idosas, especialmente, e com mais veemência as do meio urbano, moviam-se através da rede familiar para encon-trar trabalho, ou, então, muitas vezes, utilizavam-se da capa-cidade de trabalho (lavar, passar, “fazer limpeza” etc.) para encontrar famílias.479 Família e trabalho mesclam-se em ho-rizontes espaciais variados e são manifestos constantemente nos relatos de memória. Foi comum ouvir depoimentos infor-mais de que o horizonte cultural do trabalho no espaço ur-bano foi mais disseminado pelo homem, porém esferas que articulam valores culturais e simbólicos foram conservadas e reproduzidas pelas mulheres, como é o caso da culinária, da língua dialetal, das vestimentas, das formas de organização dos objetos e dos ornamentos dentro de casa, do espírito reli-gioso e do convívio vicinal.

Os idosos reconhecem certo “descuido” com essas ques-tões, porém identificam o maior envolvimento externo, seu pragmatismo econômico e a busca de trabalhos externos e, muitas vezes, desvinculados de seu horizonte de saber e de cultura, como fatores que provocaram rompimentos com pro-cessos históricos de vida e de sociabilidade familiar e comu-nitária. O dialeto é um deles, pois não podia ser desenvolvido em espaços de trabalho alheios ao seu horizonte próprio, que era o meio rural.

Nas entrevistas, era lugar-comum a utilização, pelos idosos, de formas e/ou palavras dialetais para tentar expli-car ou comentar algo, principalmente quando se referiam a alguma dimensão muito significativa vivida em tempos mais distantes, em geral no horizonte do sacrifício no trabalho e nas dificuldades econômicas. O referencial dialetal buscava

479 LUCENA, op. cit.

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preservar significados de conteúdo linguístico passível de ser expresso com o fundo identitário, porém também manifestava a marginalidade atual de sua importância, de seu desloca-mento temporal e social.

Entendemos que as formas linguísticas, seja pelo silên-cio, seja pelos seus padrões e suas metáforas, são importantes na definição significativa das coisas a lembrar; revelam hori-zontes de possibilidades que, sem o desejo de generalização, enfocam significados e implicações do movimento temporal dos conteúdos de memória e do alimento de muitas formas de narração sem que, necessariamente, necessitem ser de passa-dos longínquos.480

O ambiente de vida social e o espaço construído

O passado é o que você lembra, imagina que lembra, convence a si mesmo que lembra, ou finge lembrar.

H. Pinter

O cenário da vida social representa a memória do espaço, da mobilidade física e econômica, presentificada por trajetó-rias em cenários variados, sob o manto do pioneirismo e do evolucionismo econômico (progressismo), mesclada ao hori-zonte de memória da sociabilidade, da solidariedade, dos con-flitos étnicos e intraétnicos.

Os lugares e os espaços marcam e recebem as marcas dos que chegam e dos que saem. Essas marcas podem ser físicas, na paisagem, no ambiente construído, no adornamento dos ambientes, porém podem se constituir e se fixar nas imagens,

480 LUCENA, C. T., op. cit., 1999.

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na rememoração, nos laços afetivos, na ligação com o mesmo ambiente, nos contatos familiares.481

A lembrança, por exemplo, pode fazer desencadear espa-ços, reencontrar tempos e ligá-los aos ambientes físicos, simbó-licos e mentais. É na memória que os instantes do tempo e as especificidades do espaço encontram-se; é ela que faz viajar pe-los tempos e pelos espaços significativos. Os relatos de coisas simples, comumente de algo construído pela mão dos idosos em “tempos atrás”, transformam-se em imagens significati-vas de um tempo sobreposto, de uma capacidade temporal perdida e não mais reconhecida cotidianamente, ou seja, que se transformou em relíquia para quem a significou. Perce-be-se que os idosos têm necessidade de transferir temporal-mente símbolos e de lhes dar significados num tempo perdido como se fossem indicadores de sua passagem pelo espaço e pelo tempo passado.482

A memória dos lugares fixa-se em um lugar preciso do qual não se pode separar; os lugares da memória caracteri-zam-se pela sua capacidade de transmissão.483 Ao ter presen-te, por exemplo, os lugares comemorativos, veremos que, em geral, expressam sofrimento exemplar (perseguição, morte, humilhação, derrotas...); passam a ser fundamentais para os valores de memória histórica e nacional. Existem lugares que manifestam traumas, “traços de sangue das vítimas do passado”, diz Benjamin. Por isso, produzir lugares de memó-ria é também produzir a possibilidade do protesto contra o sofrimento e as injustiças da história (lembrar os campos de concentração).

Os lugares não possuem uma memória imanente, porém são muito importantes para a construção do espaço cultural

481 LUCENA, op. cit.482 Id. ibid.483 ASSMANN, op. cit.

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da lembrança.484 Os lugares encarnam e expressam uma me-mória vivida e co-participada dos indivíduos (a casa, o porão, a praça, a roça, a terra, a comunidade etc.), mas também sím-bolos que os transcendem. Há, sem dúvida, uma profunda li-gação entre os lugares de memória e a história familiar dos indivíduos. Por isso, podemos dizer que os lugares não se li-mitam a fixar as lembranças e a certificá-las dando-lhes uma localização territorial, mas encarnam uma continuidade de tempo que vai além da dos indivíduos, das épocas etc.

Os tempos e os espaços confundem-se na lembrança dos que migram. Contexto e temporalidade situam o migrante, representam memórias, momentos, (situ)ações, deslocamen-tos etc.485 A memória desloca-se do tempo para o espaço, do espaço para o espaço, ao mesmo tempo que os unifica. O ru-ral e o urbano não podem ser vistos separadamente, pois as representações se entrelaçam nos espaços. Os idosos entre-vistados manifestam fatos e circunstâncias da vida na cida-de, no bairro e nos vários espaços significativos de trabalho. Percebemos que diferentes espaços constituem seu cotidiano, sejam públicos, sejam individualizados, coletivos e privados (as festas comunitárias, a culinária, o trabalho variado e di-ferente daquele do meio rural, a participação na Igreja etc.).

Ficamos com a certeza de que os espaços são narrados mais pelo âmbito da fronteira, da separação sociocultural e também simbólica. Rural e urbano, periferia e centro, casa e trabalho, aparecem bastante polarizados em alguns momen-tos; em outros, complementam-se e/ou cruzam-se.

Os tempos e os espaços diversos não são percebidos pelos idosos totalmente na perspectiva do diverso, pois ambos se confundem e se mesclam nas imagens lembradas. Diz Lucena que o tempo é memória, é diferencial, é o situar-se no passa-

484 LUCENA, 1999, op. cit.485 LUCENA, op. cit.

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do: “O espaço, por sua vez, é o situar-se no contexto. Os dois contextos (cidade/periferia e roça) não podem ser entendidos separadamente, pois os migrantes possuem representações de seus respectivos espaços, que se entrelaçam.”486 E para Certeau, a “memória produz um lugar que não lhe é próprio. [...]. A memória se desloca de um espaço a outro, e é no espaço que se encontram os testemunhos de uma duração”.487

A força do simbólico

Nossos braços e pernas estão cheios de lembran-ças entorpecidas.

Proust

Esse âmbito representa, no limite maior, o horizonte do religioso, a memória do regramento, da honra, da moral da vida, do transcendente, dos limites da vida humana e da ne-cessidade da presença divina no cotidiano, a importância das rezas, do padre, das estratégias de desregramento do conteúdo significativo e ideologizado dos discursos institucionalizados e pouco eficientes à eficácia da vida cotidiana do camponês.

O espaço da religiosidade, nos primeiros anos de migra-ção, concentrava-se no capitel, nos espaços de maior perten-cimento e identificação ritualística. O espaço simples e pouco institucionalizado do capitel manifestava o “modo” camponês de hospitalidade física ao sagrado e de prática de sua religião. A presença mais intensa do padre, as condições econômicas dos colonos um pouco melhores e o aumento do número de habitantes no vilarejo levaram a que as igrejas fossem cons-truídas. No entanto, os capitéis, ainda que reduzida sua im-

486 Id. ibid, p. 80.487 CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano, p. 163.

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portância e participação de fiéis, continuaram, inclusive hos-pedando santos e representando formas populares e simples de materializar o sagrado na vida cotidiana.

A religião era, e continua sendo, importante para o ho-mem que vivia, e vive, do cultivo da terra e faz do seu uso um espaço vital. O sacro torna-se um elemento dinâmico da cultura, seja como imaginário (mito), seja como organização comportamental da vida, dos valores morais e dos rituais co-tidianos. O espaço do sagrado é lembrado como uma unida-de que liga vida e morte, como constitutivos de um conjunto único. A religião busca ensinar a viver para melhor morrer.488 Vida e morte interligam-se no cotidiano dos colonos como pos-sibilidades e ausências, imaginários e conhecimentos no ho-rizonte do vivido. Os símbolos e as suas significações, para os idosos, podem ser reconhecidos nos ritos, nas manifestações, nos valores, nos costumes e na religiosidade. Esse processo simbólico é fundamental para a luta pela definição e/ou rede-finição da identidade social e cultural desses.

Os objetos que, ritualizados, tornam-se relíquias, podem revelar comportamentos e convicções, motivos do passado, pensamentos, ações, momentos suspensos no tempo, vitali-dade histórica, vestígios palpáveis. Os objetos significativos revelam a vida comum dos idosos, significados objetais e ex-pressões da vida cotidiana; são fragmentos físicos, concretude existencial: “passei por uma porta pela qual Shakespeare ha-via passado, e entrei num bar que ele conhecera. Sentamos à mesa [...] e encostei minha cabeça contra a mesma parede que a cabeça de Shakespeare havia tocado, e foi uma sensação indescritível”.489 Os lugares, os objetos e as imagens ajudam a

488 ZONABEND, F. La memoria lunga. I giorni della storia. Milano: Armando, 2000.

489 HANFF apud LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Projeto História, São Paulo, n. 17, 1998. p. 161.

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transportar pessoas, sensações, lugares dos tempos atuais de volta no tempo. Trajes, ruínas, escritas estão em fluxo, enve-lhecendo e correlacionando-se com situações, com interesses do presente e desenvolvendo consciência do passado, estímu-los à memória, recordações, ajustamentos às nossas necessi-dades. “Como o passado parece afastar-se de nós, procuramos evocá-lo novamente multiplicando a parafernália que o cerca – lembranças, mementos, romances históricos, velhas fotos – e também preservando e reabilitando suas relíquias”.490

Na análise de Vygotski, para aprender e apreender a me-mória, são fundamentais as mediações, a ajuda de sinais; por isso, constroem-se deliberadamente monumentos para não esquecer. O autor refere que nós podemos controlar a memo-rização produzindo autonomamente estímulos que se ajun-tam àqueles produzidos pelo ambiente e que são capazes de guiar nossas lembranças. Nesse sentido, são fundamentais os estímulos mentais, formando cadeias de significados, ima-gens, linguagens (associações de palavras). Vygotski insiste no uso do objeto externo (símbolo construído) produzido para expressar bagagens culturais, políticas, exemplos de vida etc. Desse modo, a memória potencializa o pensamento social, a consciência coletiva como uma corrente (unindo tempos). Os museus, os lugares de comemoração, as cerimônias, os símbo-los objetais, de uma forma ou de outra, são potencializadores de memória.491

Pierre Nora no verbete “mémoire collective”, contido no livro La nouvelle histoire, registra que há uma proliferação de memórias coletivas, a qual se funda num cenário de trans-formações e rupturas que os meios midiáticos ocasionam nas

490 LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Projeto História, São Paulo, n. 17, 1998. p. 180.

491 VYGOTSKI, L. apud LEONE, G. I confini della memoria. I ricordi como risorse sociali nascoste. Catanzaro: Rubbetino, 1998. p. 48-55.

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memórias coletivas, sobretudo naquelas que enraízam cultu-ras, que produzem tradições, desenvolvem consciência nacio-nal e étnica. Essa proliferação é produzida por uma memória social e histórica, que intenciona reproduzir, analítica e obje-tualmente, formas de organização de vida coletiva ajustadas aos novos formatos de vida social, sentimentos do passado e possibilidades de inventariar lugares para a percepção visual e histórica de memórias.

Sobre isso, Nora diz que é possível, pela institucionaliza-ção de lugares, indivíduos, famílias, nações e etnias encontrar suas lembranças e reconstituir sua personalidade.

Lugares topográficos como arquivos, as bibliotecas e os museus; lugares monumentais como os cemitérios e as arquiteturas; lugares simbólicos, como as comemorações, as peregrinações [...].; lugares funcionais, como os manuais, as autobiografias ou as associações: esses memoriais têm sua história. [...]. A análise das memórias coletivas deve e pode tornar-se a ponta de lança de uma história que se vê contemporânea.492

Esse processo auxilia na (re)constituição da identida-de. A lembrança do passado auxilia-nos na autoidentificação identitária: “Saber o que fomos confirma o que somos”, diz Lowenthal. A ausência de memória faz perder sentimentos, destrói a personalidade e deixa a vida vazia de significados. A identidade assegura e amarra a realidade do passado, con-firma-a, inspira confiança pela possibilidade de testemunho, ainda que se façam presentes o campo do provável, o caráter pessoal e a mutabilidade.

“Toda a memória transmuta experiências, destila o passado em vez de simplesmente refleti-lo. Assim a memória filtra novamente o que a percepção já havia filtrado, deixando-nos somente frag-mentos do que inicialmente estava exposto”.493

492 NORA, P. Mémoire collective. In: LE GOFF, P.; CHARTIER, R.; LADURIE, Le Roy. La nouvelle histoire. Paris: CEPL, 1978. p. 401.

493 LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. p. 94.

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É por isso que os lugares de memória ganham concretude pela sua simbologia, que lhes dá materialidade e permanên-cia, porém esse processo depende muito da construção teóri-co-explicativa, dos significados e rituais impressos e expres-sos no conjunto das estratégias de lembrança/esquecimento, eficácia e instrumentalidade da memória.

É nesse sentido que é possível interligar o uso da histó-ria com a memória e vice-versa, como forma de visualização, acessibilidade, alargamento e formalização das possibilida-des de compreender e ritualizar a memória e o passado. Diz Nora que “o sentimento de desvanecimento rápido e definiti-vo combina-se com a inquietude do presente e a incerteza do futuro, dando ao mais simples dos testemunhos a dignidade virtual do memorável”.494 Daí advém a importância da me-mória patrimonial, monumental, arquivística, espacial, en-fim, de lugares e objetos passíveis de registro e identificação memorial. Os lugares estão no entrecruzamento da história com a memória, servindo de visualização, vestígio, resíduos, que possibilitam constituir memórias, fragmentos do passado passíveis de análise, de ressignificação e reconstituição.

Os tempos, sua fragmentação, heterogeneidade e hierarquia

Os tempos manifestam as rupturas e as redefinições, bem como as continuidades, memória dos contrastes, do “meu tem-po” e do tempo “dos de hoje”, das mudanças no cotidiano fami-liar, social, cultural e no trabalho. Os tempos rompem-se por-que “as coisas do tempo” se alteram, sofrem modificações e/ou

494 NORA, P. apud BREFE, A. C. F.; NORA, Pierre. Da história do presente aos lugares de memória – uma trajetória intelectual. História. Questões & Debates, Curitiba, v. 13, n. 24, jan./dez. 1996. p. 119.

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redefinições; reordenando as coisas, reordena-se a concepção do tempo: ou fica para trás, ou anda depressa demais, ou é jo-gado para frente negativa ou positivamente – “vais ver daqui a uns tempos!”, “hoje se tem muito mais facilidade pra tudo”.

Os idosos reconstituem tempos em razão “do que dá pra lembrar”, das concepções de mundo existentes no passado e no presente e das presentificadas do passado. Porém, perce-bemos que o tempo, para os idosos, não possui tanto a di-mensão da ruptura. Vimos que eles se queixam das mudanças sociais, das inovações, de seu espaço social restrito, de sua aposentadoria “minguada”, de sua parca utilização social e de valorização de sua experiência, porém não concebem as alte-rações do tempo em termos de positividade nem de substan-cialidade, ou seja, acreditam no retorno de muitos aspectos da vida cotidiana do passado. No fundo, não seria bem um retor-no, mas uma maior valorização de formas de convivência, de contato com a terra, da alimentação sadia, de vínculos fami-liares etc., pois, para muitos deles, os males da sociedade atu-al são provenientes do rompimento das formas tradicionais de convivência e, no caso da colônia, das formas modernas de produzir, malgrado tenham tornado o trabalho “mais leve”.

Os tempos exigem movimentos, dinamismos de adapta-ção e de percepção do futuro, porém sem se desvincular com-pletamente do passado. Os tempos exigem estratégias tanto no enfrentamento biológico do indivíduo quanto nos processos de adaptação às mudanças sociais. Percebemos que os idosos entrevistados não pararam no tempo. Malgrado a tendência histórica de marginalidade social e cultural, além da econô-mica, as racionalidades adaptativas, sejam no campo das ati-vidades “que der pra fazer”, sejam no inferior da unidade fa-miliar nas tomadas de decisão ou de expressão de formas de poder interno (mais bem legitimadas pela utilidade material da aposentadoria, da possibilidade de cuidar de netos/bisne-

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tos e da necessária e funcional coabitação) e de processos de adequação de formas modernas de pensar e de trabalhar, tais como, no caso do meio rural, cobrar arrendamento pelo uso da terra por algum filho utilizar sementes transgênicas para evitar a capina e, com isso, deixar sua terra sem ervas dani-nhas, etc.

No caso de idosas que cuidam de netos, é comum a pos-sibilidade de opinião, de definição de ações no cotidiano da casa e das formas de interação social de seus dependentes. A recriação de formas de poder e de utilidade familiar e so-cial de idosos revela processos de alteração social, estratégias reconstrutivas, hierárquicas e complementares em relação a novas formas que espaços e tempos sociais imprimem na vida contemporânea.

O espaço e o momento do lúdico

Espaço e momento do lúdico são elementos que expres-sam a memória da emoção em torno da saudade, dos símbolos que manifestam a coexistência temporal e espacial de tem-pos passados, de valores, ideais, desejos de continuidade.495 As festas de família, as homenagens presentes em situações de recordação costuram, simbolicamente, objetos, discursos, tempos, espaços, fatos etc., que manifestam trajetórias, mitos fundadores, valorizações de grupos, sobrenomes etc.

Podemos afirmar, com toda a certeza, que o cenário da festa é muito resgatado e/ou reconstituído na memória étni-ca. Refaz-se, com isso, a eficácia da simbologia do vivido, da saudade, do tempo e do espaço do trabalho e do não trabalho, porém como fruto e culminância de uma reatualização da so-

495 LUCENA, op. cit.

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ciabilidade comunitária, da consciência de que algo se esvaiu no e com o tempo.

As festas e os encontros comunitários, de famílias, de jovens, de terceira idade, os festejos paroquiais, a festa do padroeiro etc. são fatos que se desenvolvem em horizontes públicos, de sociabilidade, de engajamento, de compadrio, de responsabilidades e de hierarquias complementares (direto-ria da capela e/ou do bairro ou da paróquia e paroquianos em geral). São espaço/tempo de manifestação externa local das diferenciações públicas de atividades e funções de gêne-ro, agregação e congregação inter e intracomunitária, ponto de referência do intercâmbio de falas, de existência social, da obrigação de “gastar um pouco e se divertir mais, não é? Quando é a festa do padroeiro, questa non perco mai”.

A festa permitia, e permite ainda, a visualização local de algo novo adquirido pelos participantes: um caminhão, um trator, um carro, uma roupa, enfim, algo que manifeste progresso e evolução social, momento também para “negociar e, para alguns, de acertar contas”. Nos primeiros tempos da colônia, a festa religiosa reconciliava as relações dos homens, seu trabalho, sua vida pessoal, as colheitas, os problemas co-tidianos etc. com o sobrenatural, o sagrado, com a tradição comunitária, mas, acima de tudo, religiosa.

[...] festa sem o religioso, sem uma boa missa, não era e não é festa. Por isso, a missa vem ainda hoje sempre antes da carne: primeiro o lado espiritual, né, depois, daí sim, o lado material. Hoje, nas promoções dos jovens, nem mais missa tem!

A festa fazia parte do horizonte da cultura local, da cul-tura de origem popular, a qual permite inovar ritos, porém sem perverter por completo a dimensão da repetição/tradição, do “sempre foi assim”. No meio urbano, a festa “não tem o mesmo sentido e gosto do meio rural, não há aquela vivência. Nós mesmos cansamos de ir pra fora nas festas”. As lembran-

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ças de idosos revelam os festejos comunitários como pontos de referência pública, como espaço e momento/ocasião do lú-dico, do religioso, do social, do fortalecimento do interconheci-mento, da afetividade e amizade – “momentos de alegria, mas também de envolvimento de todo mundo”.

O papel da narração na vida cotidiana

Para tornar-se narrador é preciso aprender a ler a marcha do tempo e interpretar os vestígios que este deixa na natureza e no mundo histórico.

M. Augé

O processo de relatar representa a continuidade e trans-missão, manifesta o fato de os idosos quererem ser os guardi-ões da memória, os mediadores da tradição. Nessa dimensão, está muito presente o saudosismo, o altruísmo, a personifi-cação e a presentificação. Os idosos sentem a obrigação de lembrar, querem permitir vestígios pelos lugares de memória e pela memória viva; eles têm consciência da perda da nar-ração, de espaço da fala na família e nos convívios sociais. É nesse sentido que se tornam importantes vozes, momentos e símbolos ilustrativos de memória, sejam eles as fotos, os am-bientes construídos, as mobilidades espaciais e o conjunto da família (presença nas gerações).

Sabemos que o motor da narração é o desejo de habitar no mundo que a narração abriu e sua imaginação de que al-guma coisa fique para a experiência dos outros; de se fazer sentir; de ser entendido e aceito; de dar significado à vida; de, através da narração, produzir uma relação social, pois quem escuta é convidado também a participar do diálogo: “Uma narração é um discurso a propósito de certos fatos, mas, na

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medida em que se manifesta numa narração, transita entre um sujeito e um outro, se revela no interior de uma relação e contribui a criá-la.”496

Narrar, contar histórias, já dizia Bérgson, manifesta uma reação contra a finitude, uma compensação com respeito à depressão que provoca em nós a consciência da caduquice, dos limites da realidade, uma saída à racionalidade dos dis-cursos, pois mescla realidade com fantasia, uma abertura de mundos possíveis, uma expressão de “coisas vividas” ou “coi-sas escutadas”, pode ser expressão de um mundo em tensão.

Percebemos que idosos por nós entrevistados repetem muito as mesmas histórias, porém suas narrações não são es-sencialmente orais, contam sobre a própria memória; em al-guns momentos, utilizam a mediação dos referenciais objetais, principalmente os que expressam suas marcas e presenças. Pareceu-nos claro que, como diz Jedlowski, “a sua narração se coloca entre fluxos de conversação nos quais do início ao fim de cada história são colocadas menos exigências da história em si mesma que aquela da própria situação”.497 Os idosos falam com o corpo, com o silêncio, com o tempo, com a voz. Por isso, a narração, como já vimos, é uma mediação simbólica, um incessante trabalho de transformar algo natural (ou sobre-natural) num universo de sentido (ligação entre fenômenos naturais, chuva com formas de viver em sociedade, seus re-gramentos, sua ética social etc.), de sentido de integração, de emoção que se abre à imaginação. Acreditamos que, no míni-mo, essa realidade expressa que a vida é mais perfeita, mais satisfatória e mais inteligente daquela como conduzimos nos-sa existência.498

496 JEDLOWSKI, P. Storie comuni. La narrazione nella vita quotidiana. Milano: Mondadori, 2000. p. 25.

497 JEDLOWSKI, P. Storie comuni... p. 44.498 Ibidem.

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Os idosos sentem curiosidade pela vida, lêem histórias de vida de santos centenas de vezes e não gostariam que fos-se uma experiência solitária (eles levavam para roça, para o parreiral, contam como derrubaram o mato, dentre outras coisas que manifestam dificuldade, sofrimento e rompimento com o presente. Os urbanos caminham pelo bairro e mostram como era antigamente, o que mudou, como está hoje, como gostariam que fosse; a vida urbana disciplinada e, ao mes-mo tempo, sem controle, caótica e sem valores tradicionais no âmbito familiar, comunitário, afetivo e de vizinhança.

No querer narrar alguma coisa, ainda que seja a forma como foi feito determinado objeto de uso pessoal, que já foi substituído e agora apenas materializa o saber “de uma épo-ca”, demonstra que há uma vida escondida, uma vida cotidia-na, uma opacidade, algo não vivido expressamente.499

Contar aos outros as nossas lembranças é uma escolha importante porque é um modo de oferecer o conhecimento de uma parte precisa de nós, um prolongamento de nós mesmos, do que fomos, somos e pensamos, enfim, de nossas verdades e fantasias.500

Ficamos com a consciência de que há muitas contradi-ções, conflitos e centralidades nas manifestações de memória, principalmente por idosos. Suas lembranças orais e objetais são, em grande parte, manifestação de ambivalências, pois personificam a crítica de muitas relações no passado, ao mes-mo tempo em que demonstram sua obediência e submissão, suas estratégias limitadas e problemáticas, ainda que se te-nham constituído (em torno do casamento, do que se consi-derava pecado, da liberdade, da diferenciação de papéis de gênero etc.). Nesse horizonte, a dita “memória de gênero” é

499 ECO, U. Sei passeggiate nei boschi narrativi. Milano: Bompiani, 1994. p. 111.500 LEONE, G. I confini della memória. Catanzaro: Rubbetino, 1998. p. 11. Ver

algo nesse sentido em BOBBIO, N. O tempo da memória. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

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muito forte, revela processos diferenciadores, tempos e espa-ços de excludência, principalmente no horizonte da cultura, do vivido familiar, da ordem econômica e da sexualidade pú-blica. As contradições apresentam-se, também, na dimensão laudatária e ufanista, nos ressentimentos e enquadramentos, na ideia de sacrifício com crescimento econômico.

O último aspecto, o econômico/progressista, como já vimos, a esfera midiática utiliza muito, ou seja, dimensiona a simbologia evolutiva que une sacrifício com mesa farta, do mato à lavoura, da ruralização à urbanização, da tradição à modernidade, do regra-mento e vigilância ao pluralismo, da flexibilidade e da liberdade.

Enfim, a memória étnica possui valores que se reprodu-zem e são traduzidos, trazidos e tradicionalizados no tempo presente como significativos e fornecedores de sentidos e re-presentações histórico-culturais. Porém, utilizam-se a memó-ria e a cultura étnica para mostrar contrapontos, permitir fa-zer aflorar resíduos e vozes de vividos e de ações que contra-puseram formas institucionalizadas de regramento da vida. Não obstante, formas hegemônicas, alimentadas por certas abordagens teóricas, ideológicas e midiáticas, são fortalecidas e buscam imprimir o passado no presente, perdendo de vista a historicidade dos tempos, dos lugares e dos valores sociais em movimento na contemporaneidade.501

501 Ver BOBBIO, N. O tempo da...

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CApítUlo 17

Estragos e reconstruções do tempo na memória

A importância e a necessidade de transmitir

O tempo nunca esconde seus estragos.

Guimarães

Ao fazer “escavações” (como diz Benjamin), a memória remove um terreno com solo fértil de possíveis achados, sen-sações, emoções, objetos e cheiros. A memória é um meio, um meio “onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava”.502

Com o desejo de preservação da história local e da me-mória, é importante que se diga que o relato de grande parte dos idosos é reflexo e expressivo de uma totalidade que se manifesta no contexto étnico ligado ao modo do ser colono, de uma forma coletiva, na qual dimensões sociais econômicas e psicológicas acham-se interligadas, bem como em correlação com processos produzidos espacialmente, seja na relação com o urbano, seja com o rural. A ideia de transmissão perpassa os relatos de memória. Para transmitir a propriedade, “passar adiante”, o conhecimento entre gerações, deveria, segundo alguns idosos entrevistados, haver regras, ordens definidas,

502 BENJAMIN, W. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 239.

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uma família sólida que estruturasse relações interpessoais, mantendo pressupostos do passado (fidelidade com a família, com a tradição, “saber que o que é bom pra família é bom pra todos”, o grupo).

Como vimos, Halbwachs enfatiza que, na ideia de trans-missão, fazem-se necessários pontos de referência, os quais estruturam nossa memória e formam uma memória coleti-va, o sentimento de pertencimento, delimitando as fronteiras socioculturais. As referências, sejam objetais ou simbólicas, são sempre significativas, positiva ou negativamente, quando relatadas na lembrança e referidas ao tempo e aos fatos. Se-gundo Lucena,

[...] a rememoração do passado e o trabalho com as imagens do lugar de origem são um ato estritamente vivo, pois o grupo possui laços afetivos, laços familiares e ligações com o mesmo ambiente material, não só devido às lembranças, mas também pelos contatos com familiares que ainda vivem lá. [...]. E é na memória que se encontra a relação tempo e espaço. O mundo da memória intervém no momento oportuno e produz modificações no espaço. A sequência da composição de lugar inicial, mundo da memória e modificações no espaço, produz uma sequência que tem por começo e fim uma organização espacial. O tempo fica como espaço organizado espa-cial. O tempo fica como espaço intermediário. [...]. A memória se estabelece em forma de viagem por espaços vividos pelo grupo e as imagens das lembranças são construídas pelo material que os depoentes têm à disposição. [...]. A transferência de símbolos e a invenção de ritos passam a ser indicadores da memória do grupo.503

No desejo de transmitir, a concepção de tempo, na memó-ria dos idosos, aparece carregada de uma dimensão ambígua e contraditória, “dos de ontem e dos de agora”. A simbologia do pioneirismo imprimiu progresso na região e, atualmente, o lugar “é diferente”, pois

503 LUCENA, C. T., 1999. p. 83-85.

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[...] naquele tempo se fazia dinheiro, hoje se faz é dívida, se traba-lhava e se sofria, os de hoje não querem mais trabalhar e as coisas são tudo bem mais fácil. Falar de sacrifício hoje não é que nem an-tigamente. Se eu disser pros meus netos o que passei aqui quando era puro mato, o que comia, o sacrifício pra ter água, o tempo que se levava pra ir comprar alguma coisa, querosene – que luz não tinha, né –, fósforo, sal e os mantimentos, né, nem presta, não acreditam, além do mais nem dão bola.

Um idoso entrevistado diz que, “quando falava que era a família mais importante no lugar, era só falar dos Palma que não tinha um na redondeza que não conhecia. Agora, coitado, mora sozinho, anda de cadeira de rodas e é lá, vécio e sensa pol moverse”.

Na memória de colonos idosos, o tempo e o espaço, suas relações locais, alteraram-se muito; as temporalidades cru-zam-se, contrariando-se, ou, então, com pouca concordância. O presente permite vestígios, a velocidade do tempo impressa nas relações globais e locais e a consequente perda de referên-cias espaciotemporais e afetivas.504 É desse modo que a forma de pensar o tempo e o espaço que alguns idosos exteriorizam pelo veio da memória presentifica, ideologicamente, uma di-mensão da tradição que os legitima como sofredores, por isso heróis, exemplares, constituidores de família e de boa família, esta que está no centro dos referenciais de transmissão.

Os idosos, ainda que sejam pouco reconhecidos, são a lembrança e a trajetória dessa referência institucional, ma-terial, cultural, econômica e simbólica que é a família na reconstrução do passado. As reminiscências, os desejos de reconstruir os modelos (de família, de trabalho, de gerador/geradora de filhos, presença e futuro/continuidade), os bens simbólicos (poder patriarcal, a força moral, as hierarquias so-ciais), os sofrimentos e as transformações são cristalizações

504 LUCENA, op. cit.

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de memória muito presentes na vida, nos espaços e nos rela-tos ouvidos e presenciados.

A família constitui e dá continuidade à dimensão da pa-rentela, da genealogia, da terminologia dos nomes, de uma coletividade e de uma rede genealógica organizada numa di-mensão espaciotemporal na qual se correlacionam passado e presente (gerações).

A conservação da terra da família (patrimônio econômico, histórico e cultural), a importância de ter filhos, o papel dos parentes na cuidado dos filhos em situações de infortúnio dos pais, a vida comunitária com sua discrição e vigilância interna, os comportamentos sociais, os objetos de censura do grupo, o controle da qualidade e da quantidade das aquisições etc. são formas de ligar lembranças da família com a memória e com as estrutura do próprio passado, com eventos que assinalam o tempo vivido na própria unidade cultural, econômica e parental.

Os fatos históricos vêm filtrados através da família, em relação aos tempos da família. Cada família elabora em seu calendário particular, no restrito universo da comunidade, onde cada um se conhece. Esse processo correlaciona aspec-tos concretos do âmbito familiar para indicar o tempo, o ciclo dos trabalhos e da produção agrícola, os quais dão ritmo ao calendário anual. Inverno, verão, festas santos etc. estabele-cem correlação no vivido com a terra, com o trabalho, os quais não precisam ser relacionados na esfera da linearidade e da continuidade; são tempos que, em sua cíclica repetição, vêm transmitidos e vividos em sua base quase imutável dos retor-nos das estações e das séries de gerações, e se harmonizam com as exigências da natureza e da existência, confiados à memória, à reatualização, à consanguinidade e à consciência de afinidades.505

505 ZONABEND, F. La memoria lunga...

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A vida rural é expressa por idosos como sendo uma dinâ-mica que segue o curso linear entre vida e morte, mediada por rituais sociais, étnicos, identitários, religiosos e de trabalho. Es-ses rituais agregavam pessoas; produziam relações de compa-drio, aproximavam parentes, uns mais, outros menos; dividiam, uniam, retiravam e agregavam propriedades, patrimônios, espaços, pessoas e cenários específicos. As identidades e coi-sas ameaçadas possuem referências a espaços, como que or-ganizando referenciais que permitem se agarrar a tempos e lugares móveis, à existência de um vivido anterior e interior. “O ser privado de lugar encontra-se num universo, sem lar, sem eira nem beira. Não está, por assim dizer, em parte algu-ma ou, antes, está em qualquer lugar, como destroços, flutu-ando no vazio do espaço.”506

Para os idosos, a casa é esse horizonte de referência pro-funda, que não os deixa flutuar “no vazio do espaço”, ou serem seres dispersos, como diz Bachelard. O autor diz que

[...] é graças a casa que um número de nossas lembranças estão guardadas: quando a casa se complica um pouco, quando tem um porão e um sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados. A eles regressamos durante toda a vida em nossos devaneios.507

A casa representa o núcleo da lembrança cotidiana, da re-presentação do espaço, do sentido e da forma de família; nela se mesclam passado e presente, referência à família, à vizi-nhança, ao parentesco, ao convívio interno. Casa e família re-presentam o centro da vida do grupo que migra; ambas mani-festam com mais intensidade o velho e o novo no horizonte dos papéis, no jeito de ser família, tanto no urbano quanto no rural.

506 POULET, G. O espaço proustiano. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 18.507 BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

p. 27-28.

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Família, no ethos de colono, vai além da consanguinida-de; reflete segurança, proteção econômica, garantia e obriga-ção de alimentação, transmissão de habilidades, moralidade, conhecimentos, cultura, relações sociais, controles afetivos, contratos matrimoniais, centralidade de poderes, hierarquias, papéis internos e externos, vizinhança, compadrios funcio-nais e simbólicos, vínculos e identidades comunitárias.508

Algumas idosas se lembram de sua vida na infância fa-zendo comparações com a de suas netas e/ou bisnetas; lem-bram-se de quando crianças, dos rituais religiosos (Primeira Eucaristia, Crisma...), dos poucos e marcantes passeios que faziam com seus pais ou avós, da língua dialetal, do cuidado com seus irmãos, da narração de histórias, dos componentes culturais e étnicos dessas, da participação e da divisão dos trabalhos, do corpo e do fator de obediência com o passar dos anos, das aprendizagens, com seus pais e/ou nonos, da socia-lização, da pedagogia do olhar, da severidade dos pais, do con-trole das crianças, do desejo de estudar e da escola que não existia, da vigilância social e familiar, do trabalho pesado em substituição aos brinquedos e às atividades lúdicas, etc.509

As idosas não se cansam de fazer comparações entre a sua infância e juventude com as de atualmente; cruzam tem-poralidades, ou as excluem; falam das novas técnicas, dos no-vos espaços para mulher, do cuidado dos netos, do estudo e suas mudanças internas, do pouco diálogo entre gerações, da escola, agora como promoção social, do urbano, da ausência de severidade com as crianças, da ausência da disciplina co-ercitiva “de uma vez”.

508 Ver LUCENA, 1999, op. cit.509 Uma brilhante análise da relação entre crianças e idosos no mundo rural,

ver em MOSCOVICI, M. La personalité de l´enfant em milieu rural. Études Rurales, I, 1961.

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Nona Justina (“nona Tina”, como é conhecida) relembra dos seus 13 ou 14 anos (não lembra bem), quando saiu de casa para estudar em colégio de freira; retornou depois de dois anos, sob protesto dos pais e, como castigo, ficou em casa, sem estudar. Narra as dificuldades que teve para enfrentar os serviços domésticos, a readaptação na vida familiar, a aprendizagem dos mistérios do próprio corpo, sua adolescên-cia conturbada por uma paixão escondida, o aprendizado do artesanato que sua mãe – que viera da Itália –, desenvolvia, sua constante dependência econômica e moral em relação aos pais, principalmente do pai. Lembra os bailes vigiados, o na-moro mantido em segredo, o dia em que começou a frequentar a casa do outro namorado e a aceitação dos pais sem maiores objeções; conta causos de desvios de conduta sexual de ho-mens e raramente de mulheres – “mas existiam também, oh se existiam, é porque se contava menos do que os homens, mas se sabia, e quanti, guai”! Lembra que ela mesma foi ár-bitro no jogo matrimonial de suas filhas e de um filho; faz questão de dar ênfase ao fato de que “hoje isso ainda bem que se perdeu, porque quem sai perdendo é sempre a mulher”.

Honra e prestígio sempre fizeram parte da família de dona Tina; por isso, não podia exigir tanta flexibilidade dos pais:

[...] eu ainda era a mais reclamona, pois tinha estudado fora. Mi-nhas irmãs aguentavam caladas, minha mãe ficou sempre do nosso lado, mas na hora de as coisas serem decididas, ficava ao lado do pai. [...]. Muitos pensavam que eu, por ter estudado em colégio de freira, deveria dar exemplo moral e de obediência, e não inculcar ideias contrárias.

Capital simbólico e capital econômico, segundo Bour-dieu,510 em geral se equivaliam na relação cultural entre fa-

510 Ver sobre essa análise do capital simbólico que envolve reputação, respeitabi-lidade, papel familiar, dentre outras, em BOURDIEU, P. Esquise d´une théorie

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mílias, sobretudo no meio rural. Por isso, eram importantes a visibilidade e a fidelidade pública na troca dos de bens simbó-licos e materiais, dos vínculos entre famílias, dos laços de so-lidariedade e entreajuda (era comum o rapaz ir ajudar o sogro nos trabalhos da lavoura e a moça auxiliar a futura sogra em períodos de necessidade).511

Nesse horizonte, havia a preocupação em torno do en-xoval, da casa, dos móveis, do quarto, da festa, do cerimonial religioso, comunitário e familiar, dos rituais antigos da so-ciedade rural, principalmente em torno da retribuição a con-vites, dos vínculos e envolvimentos comunitários, rituais de recordação (fotos, por exemplo), de compromisso público (no caso, poderíamos identificar os padrinhos e os compadres).

Nona Tina lembra com um pouco de ressentimento, a vida que teve como recém casada, em virtude do contato, da transferência e convivência com os sogros; o problema enfren-tado logo no início do casamento em torno da questão da he-rança entre os cunhados, os conflitos aí gerados, as divisões, responsabilidade, poderes, espaços domésticos, de poder e de trabalho, vigilância, utilidades, intrusão, auxílios, segurança, companhia, responsabilidade econômica, transferência de au-toridade sobre todos os membros da família, divisão de sexo no trabalho (oposições, complementaridades hierárquicas en-tre o dentro e o fora), domínio, subalternidade, possessões, prestígio, responsabilidades variadas e também hierárquicas, controle econômico, financeiro e contábil, dentre outros.

Esses processos todos remarcam vividos anteriormente nas famílias-mães, atualizadas, alteradas e/ou redefinidas em razão das condições objetivas, subjetivas (projetos de vida) e

de la pratique. Genebra: Droz, 1972.511 Vários autores enfatizam o fato de o casamento ser o cumprimento do destino

feminino. Ser casada, tornar-se mãe é expressão de um desejo de socialização sentida pela mulher no meio rural. Por isso, o casamento se realizava, em sua maioria, com idade entre 16 e 21 anos para as mulheres.

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afetivas da nova situação. Na narração da informante, são to-dos processos vividos, harmonizados, acomodados, em laten-tes conflitos e constantes atritos no espaço de coabitação;512 enfrentamentos recíprocos entre sogra/nora, sogro/genro, en-tre cunhados, entre desejos contidos e expressos no campo da afetividade, da sensualidade, da sexualidade, dos desvios de conduta, da incorporação dos conhecimentos normatizadores da vida camponesa, social, familiar e individual, bem como do peso histórico dos costumes e das tradições étnicas.

A recriação de representações simbólicas e práticas so-ciais de um passado de trabalho penoso proporciona signifi-cados e valorizações às suas vidas. Ao resgatarem, reconsti-tuírem e reinventarem seu passado imediato no presente; ao conceberem duplicidades entre ambos em seu cotidiano e na comunidade, entre idosos e jovens, os primeiros adaptam-se, resistem à imersão em universos da modernização e da racio-nalidade individual no seio familiar.513

A absolutização dos “de agora” em relação ao tempo “de agora”, do ganhar tempo, da adequação individual ao tem-po como imperativo social penetra no cotidiano da vida social onde estão imersos os idosos. O acento utilitarista, linear e quantitativo do tempo centrado na eficiência dicotomiza pas-sado e presente, constituindo diferenças e redefinições. Desse modo, na transmissão, a referência ao “tempo de antes” e ao “tempo de agora” é importante para a percepção da negati-vidade e da positividade das mudanças das coisas no tem-po. Daí a necessidade da integração dos idosos no tempo pela narração e pela possibilidade de lembrança.

Os idosos estiveram e estão integrados nesse todo e vi-venciam-no, ainda que, em boa parte, crítica e negativamen-

512 LÉVI-STRAUSS, C. já dizia que “cada matrimônio compromete o equilíbrio do grupo social”. Ver Le cru et le cuit. Paris: Plon, 1976. p. 334.

513 Ver LUCENA, C. T. Artes de lembrar...

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te; lutam, ainda que de uma forma incipiente (com as parcas armas que possuem, uma delas é a memória), para preservar, em meio às alterações, formatos de vida vivida e que, segundo eles, faz sentido reviver no presente.

Atualmente, os processos em redefinição são expressi-vos de trajetórias temporais (localizadas e contextualizadas), mas que não omitem a reconstituição. O cotidiano do idoso continua sendo um complexo inter-relacional de temporali-dades e de significados em conflito. E a memória é expressão localizada temporalmente disso tudo.

Marcos de referência de mudança

Quanto mais se acelera a velocidade na captação das imagens, mais o olhar se paralisa.

Benjamin

A sociedade brasileira em geral e o meio rural em parti-cular passaram, entre a década de 1950 e o final da década de 1960, por profundas transformações sociais. Foi um período por excelência em que a sociedade foi induzida a se moder-nizar em vários âmbitos produtivos, de convivência social e familiar, de concepções de vida e de sociedade. Nesse período, o meio rural foi induzido a se modernizar técnica e socialmen-te, a racionalidade e a ingerência do dinheiro nas relações sociais se fizeram sentir com mais intensidade, justificando processos de migração interna para espaços novos tanto no meio rural quanto no urbano.

O universo da cidade ganhou ares de liberdade; o trator e o carro foram os grandes instrumentos técnicos que viabilizaram alterações e concepções variadas de tempos, espaços, distâncias, contatos com pessoas, com a terra, com a economia e com a iden-tidade pessoal dos que os possuíam e dos que não os possuíam.

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A partir desse período, a ideia de um Brasil, de um povo, de um urbano e de uma agricultura moderna se desenvolveu com mais intensidade, passando a servir de marco de referên-cia nesse período. No caso específico em questão, esse perío-do é o marco de referência de grande parte das migrações das Colônias Velhas para as novas e, para muitos, dessas para a cidade.

O veio da temporalidade alterada, das invenções, da sub-jetividade faz-se sentir com maior força narrativa nos relatos de memória dos idosos tendo como referência marcante esse período. Expectativas, entusiasmos, enfrentamentos, mudan-ças e adaptações são expressões que se misturam nos relatos em razão do que se esperava, do que aconteceu, do que “se tem condições de dizer agora”, da intensidade do sofrimento, das angústias, encantos e positividades.

As imagens do tempo e das coisas do tempo alimentam as narrativas dos idosos, carregadas de imagens e de expe-riências, comumente de situações de dificuldades (atrasado, difícil, pobre e pesado, tendo a cidade como contrário de muito disso), produtos da memória, de uma linguagem expressa no cenário da tradição familiar, étnica, cultural e de gênero, as quais ancoram, produzem e diferenciam significações.

O gênero está envolvido nesse processo de diferenciação de lembrança. Percebemos que as idosas manifestam com mais veemência as repercussões de um cenário de mudança e o desejo de adaptação, têm entusiasmo no enfrentamento e mais desejo de permanecer – “pra mim ficaria sempre onde sempre estive; ele era o que sempre queria sair.” Os homens, ao que nos pareceu, misturam mais ressentimentos e senti-mentos de perda com o ufanismo da conquista e da supera-ção, com o fato de ter se dado bem ainda que com muito mais sacrifício; manifestam com força a negatividade das altera-ções que a vida no espaço urbano e as novas “modernidades”

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no meio rural produziram nas relações de poder dentro da família, pelo enfraquecimento da autoridade masculina, não obstante permaneça ainda a centralidade, talvez um pouco flexibilizada, da autoridade patriarcal.

Como nos diz Lucena, os homens e as mulheres que mi-graram adultos são responsáveis pela recriação de práticas sociais do passado rural na colônia-mãe e também, na cidade, pela recriação de práticas rurais.514

A migração do rural para a cidade, ou, mesmo, do rural para outro rural, aparece ambiguamente nos relatos como so-lução e recriação de tensões econômicas, culturais, étnicas, de expectativas novas, como qualificação, educação, saúde, promoção e progresso pessoal; processos que são resultado de uma apropriação simbólica do real adaptada às atuais e às passadas identidades e expectativas.

A família está no centro da ideia e da prática migratória. Trabalho mais leve ou mais pesado (assalariado, ou “come-çar tudo de novo num lugar que nem gente tinha ainda”), a questão da saúde, da educação e da profissão, “no espaço que agora é da gente”, de menos sofrimento e desgaste do corpo, mais conforto e facilidade, melhor adaptação, status, maiores intervalos entre tempos de trabalho e de descanso, como é o caso do meio rural e do uso das técnicas modernas nesse es-paço, etc., produzem diferenciações, múltiplas interpretações e representações; reformulam experiências e concepções so-bre a realidade vivida e imaginada e estão muito interligadas com a esfera familiar.

Alguns idosos demonstram claramente que eram vocacio-nados para trabalhar na terra. “Gosto de ver o milho assim, dessa altura, verde como está”, declarou um idoso que nos le-vou a uma roça de milho de meio ciclo em solo adubado por

514 LUCENA, C. T. Artes de inventar...

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cama de aviário – “esse adubo é que dá a diferença, faz vingar, tem uma força a mais do que o outro. Antigamente, o milho vinha sem adubo, agora o esterco de galinha é muito bom”.

O colono sentia-se potencializador da força da natureza, dava-lhe maior poder de fertilidade; era um trabalho sobre e com um ser vivo que cresce com e como natureza, transferin-do-se para a identidade de colono. O colono sabe que sua ação se dá com as forças vivas, algumas vivificadas pela mão (por meio do trabalho). Nesse sentido, há uma apropriação/obje-tivação, uma interação movida por saberes, sensibilidades, mãos, animais e bichos, acrescidos de um artífice divino (ex-tremamente valorizado), pelo menos para “os mais velhos”, não tanto para “os de hoje”.

É por isso que a concepção de natureza, no cotidiano dos idosos entrevistados, ganha contornos diferenciados daqueles “dos de hoje”. A natureza apropriável (roça, mata, rio, água, chuva, sol, morro...) é vista por alguns idosos na ótica de es-paços contextualizados de significados positivos e negativos (chuva, seca, períodos de pesca, caça...). “Os de hoje” aden-tram para uma exuberante tecnologia, que controla o mundo cotidiano natural, funcionando como códigos externos que, para os idosos, invade e interdita a vida rural; são novas re-gras de controle e domínio humano sobre o espaço de vida e de trabalho, bem como do ambiente natural.

Os idosos querem que seus rastros não se apaguem, prin-cipalmente os que produziram frutos. O rastro, como identifi-cação com a memória, carrega consigo a ideia do esquecimen-to e da tendência a se apagar.

A ideia de rastro é significativa no campo da memória e nos remete a uma passagem marcante pelo tempo e pelo espaço passível de se apagar, expressiva de sua fragilidade interna, de sua ausência e desejo de plenitude num cenário de poucas possibilidades de volta. Os idosos, quando nos levam

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para mostrar algo que possui sua marca, sua presença e sua importância, dinamizam essa dialética da presença-ausência que reflete a ideia de rastro.

O rastro é um signo inscrito (significado) e escrito (marca material e visível), narrável ainda porque, para os idosos, tem visibilidade e existência. Os idosos querem lhe dar um lugar; querem, conscientemente, lhe propiciar uma digna sepultura diante da ameaça do esquecimento e, consequentemente, de sua insignificância. Uma idosa nos disse que chorou “dias e dias” quando viu um vizinho que comprou uma chácara demolir o moinho que seu “finado esposo levou mais de dois anos para fazer” há cinquenta anos, pois, além de não funcionar mais, a construção era feita de madeiras nobres, comercializáveis.

O rastro é consciente e intencionalmente passível de es-quecimento, anulando sua existência, ou, é desejoso de sub-sistir. Nessas duas dimensões entram critérios de verificação e falsificação de experiências, enraizamento e esquecimento de referências, sujeitos, fatos e objetos. No fundo, o que sem-pre se reivindica é a presença da ausência ausente ou da au-sência da presença; o que está em jogo é sempre a consciência do poder da morte, ou para não ser mais lembrado, ou para reconhecer sua vida e lhe permitir rastros de existência.

A apropriação humana da natureza pela mediação técni-ca, e não pelas forças tradicionais e formas artesanais dos ido-sos, deixa-os receosos, amedrontados, proféticos, apocalípticos e um pouco negativistas. Com a mecanização da agricultura, nem os homens, nem os animais tinham mais necessidade de suar como antes; os cavalos e mulas foram eliminados da agricultura e menos homens agora trabalham. “A técnica só quer tirar e, qualquer dia, esgota”, em nome da racionalidade do lucro, da redução do ciclo produtivo e de engorda, do au-mento da produtividade e da diminuição do trabalho manual e rústico.

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Alguns idosos não têm dúvida de que o uso exacerbado de referenciais técnicos humaniza muito pouco o mundo natu-ral que interage com o colono e com as formas de organização social urbana, essa em razão da poluição, do perigo de andar na rua, da valorização do objeto técnico mais do que devia, dos altos custos para suas aquisições e manutenções, o que demanda mais e mais trabalho e menos convivência social, vicinal e comunitária.

No interior, nas comunidades pra fora, tu não encontra mais nin-guém nos domingos, não porque não tem gente, tem gente, sim. Todos vão trabalhar. Um período é porque tem de colher, outro porque tem de plantar, outro porque querem fazer uma coisa e outra. Um pensa assim e o outro também, no fim, ninguém mais vai na comunidade. Tu não acha quatro pra jogar um quatrilho, bocha então nem se fala. Mas, olha, me acredite, tu não arruma um vivente.

Como já vimos, nas trajetórias migratórias dos idosos, que para a grande maioria se deu entre espaços rurais, ima-gens do passado permanecem vivas, geralmente na ótica do sacrifício e do novo que tiveram de enfrentar. As noções de enfrentamento do desconhecido, do diferente, dos confrontos, das novas necessidades, dos novos signos e novas imagens, da aventura, do medo, das rupturas no grupo familiar estão pre-sentes nos relatos. Os tempos cotidianos e os instrumentais ganham novas roupagens e novos significados.

O tempo regido pela natureza (seus ciclos) no meio rural rompe-se quando da migração para o urbano. Nesse espaço o tempo é outro: é o do trabalho, da fábrica, do relógio, do dia e da noite, tempo do compromisso definido pelos outros,515 por-tanto, um tempo que depende muito pouco da determinação do indivíduo. “Se chegava alguma visita, se dava pra atender, tudo bem, senão ia embora, porque o horário de trabalho era aquele e deu.”

515 LUCENA, C. T., op. cit.

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O espaço urbano aparece nos relatos como envolto na re-definição, quando não na ruptura, pois a habitação, a convi-vência, os encontros, a solidariedade, a proximidade, o paren-tesco, o trabalho... desespacializam-se. A migração de mais famílias conhecidas, a oportunidade de retornar ao meio ru-ral para rever seu antigo espaço, para “fazer alguma coisa”, para visitar filhos e netos, recompõem, em parte, aspectos do lugar de origem, bem como reinventam novas ações, com no-vos suportes afetivos e de interconhecimento.

Lembrança de afazeres, fazeres e saberes

Sem as minúcias das lembranças dos pais e avós, teríamos que inventar a maior parte de nós mesmos.

J. Anderson

Os idosos deixam claro que as lembranças estão em fluxo contínuo, algumas são acrescidas, outras esquecidas, umas emergindo, outras submergindo, etc., porém tendem a se am-pliar com o avanço dos anos, com o transcorrer das experi-ências. Incluem sentimentos, singularidades, detalhes, inti-midades; publicizam acontecimentos e experiências pessoais, modos de ser.

“Na verdade, precisamos das lembranças de outras pessoas tanto para confirmar as nossas próprias, quanto para lhes dar continuida-de. Ao contrário dos sonhos, que são absolutamente particulares, as lembranças são continuamente complementadas pelas dos outros. Partilhar e validar lembranças [...] estimulam sua emergência. Acontecimentos que somente nós conhecemos são evocados com menos segurança e mais dificuldade.”516

516 LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Projeto História, São Paulo, n. 17, 1998. p. 81.

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Os idosos gostam de se lembrar de suas ações cotidianas, buscam no cotidiano algo que lhes foi extraordinário; seus re-ferenciais não vão muito além do que a rotina do dia a dia e seus desafios lhes impunham. Por isso, os pontos de conver-gência das lembranças eram a casa, a roça, a família, o traba-lho, a comunidade, ou seja, cenários impressos com conotação coletiva. Partilhar esses referenciais de tempo e de ações im-pressas pelos mesmos pareceu-nos ser quase que uma exigên-cia dos novos tempos, como uma cidadania do vivido.

A casa e a roça tem linguagens múltiplas na vida do co-lono; ambas obedecem aos ritmos que o tempo marca e soli-difica, bem como aquele das alterações promovidas por fato-res externos e as grandes situações marcantes do cotidiano (mortes, nascimentos, colheita farta, casamentos, conflitos, temores etc.); dimensionam a visualização do que é público e do que é privado; são espaços que se interpenetram através de trocas que vão se intercambiando, trocas essas materiais, simbólicas, mais e menos significativas em termos financei-ros, contábeis e de reconhecimento.

A linguagem doméstica obedece ao ritmo. Contam-se as gerações, as estações, o juízo e a loucura. A narração faz rimar o início e o fim, cicatrizar as interrupções. Cada um na casa encontra o seu lugar e o seu nome, e os episódios anexos. O seu nascimento e morte também se inscrevem, irão inscrever-se no círculo das coisas e das almas consigo próprias.517

Já vimos que a casa é lembrada como o espaço que cor-respondia ao abrigo e ao aconchego doméstico, mas também correlacionado e diviso com as necessidades da roça. Desse modo, poderia servir para guardar comida, cereais; no porão, ou embaixo da casa, quando possível, guardavam-se a carro-ça, as pipas de vinho, a graspa, o salame, o cesto com o pão,

517 LYOTARD, F. O inumano; considerações sobre o tempo. Lisboa: Estampa, 1989. Ver, também, sobre isso AUGÉ, M. Le forme dell’oblio. Dimenticare per vivere. Milano: Il Saggiatore, 2000.

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as ferramentas – as “coisas que não se usa mais se enfiava tudo no porão”. O que necessitava de um olhar mais próximo e vigilante era (res)guardado nos domínios da casa. No en-tanto, pelo que pudemos entender, a casa possui um sentido subalterno em relação à terra e aos trabalhos agrícolas. Diz um ditado contado por um idoso que uma casa de “quatro tole bastava”, mas de “tera prendere quanti ti può di piu aver”.

Malgrado sua concepção importante, mas secundada em correlação à terra, a casa possuía uma função instrumental com o seu entorno: a estrebaria, o galpão, o chiqueiro, a horta, o pomar, o galinheiro etc., tudo deveria estar em correspon-dência com a casa. Em geral, as casas eram simples, rústicas e pobres. O espaço mais importante era a cozinha, em sua funcionalidade com o fogão, com a comida, com o aquecimen-to, com o contato coletivo etc.; em continuidade de importân-cia estavam os quartos – espaço de domínio mais individua-lizado, ainda que em muitas circunstâncias fosse coletivo. A sala, quando havia, era secundada pela cozinha, espaço de visitas não tão íntimas (pois essas poderiam ser realizadas na cozinha) e/ou comumente masculinas.

Pudemos perceber pelas entrevistas que, não obstan-te ter havido melhores condições em relação aos primeiros tempos da colônia-mãe, pouco se alterou nos tempos da colô-nia-migrada; a casa continuou a representar a continuidade da família no tempo; sua historicidade cultural sedimentada com o sentido e a representação de um espaço funcional à vida camponesa e às condições econômicas obtidas na roça.

Diz uma idosa que “casa bonita e pouca terra não eram um bom sinal”, pois isso não fazia parte da racionalidade eco-nômica camponesa nem de seu ethos cultural. A alteração da casa, quando ocorria, deveria de ser realmente uma manifes-tação da evolução econômica, que demandava melhores con-dições de aparência e de bem-estar.

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Na cultura camponesa do imigrante italiano de segun-da e terceira gerações, o conceito de trabalho acompanhou as exigências da vida, era condição para viver: “Se te vol cagar, bisogna laorar, no le mia?” Esse processo era socializado em família, e desde cedo.518

A casa era o espaço de um trabalho de não trabalho. Tra-balho é o que transcende o espaço da casa. Desse horizonte, reproduzem-se e derivam regras de comportamento, de edu-cação e de trabalho comumente aprendidas dos pais. Divi-sões, diferenciações, espacializações, especializações, gostos, obrigações e interesses nascem e se desenvolvem no conjun-to interligado entre casa e roça, mediado por outros espaços/atividades funcionais, culturais e de gênero de menor impor-tância. “Cuidar da casa e da roça era um dever de todos, mas mais dos pais, né. Cada um tinha clara essa responsabilidade e sabia o que devia fazer, apesar de que na roça a gente aju-dava também e eles (marido e filhos homens) em casa muito pouco, para não dizer nada”, declara uma idosa migrada para o espaço urbano de Nova Prata.

O tempo da casa e o da roça dependem dos ciclos de vida e de cultura dos produtos, e esses, de sua natureza biológi-ca e climática. No entanto, como nos disseram alguns idosos, sempre havia o que fazer; sabiam fazer combinações e con-sorciamentos hierárquicos e complementares entre traba-lho, produtos e clima, o que lhes permitia controlar, ocupar e correlacionar tempos, espaços e atividades. Alguns produtos sempre manifestaram o ethos de colono italiano: milho, trigo, uva foram os mais citados – “con pan e vin vive el contadin” – e são expressões de agregação cultural.

Comidas tradicionais da vida camponesa ganham tem-poralidades longas (pão, queijo, polenta, salame, carne de

518 ZONABEND, F. La memoria lunga...

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porco, acrescidos de feijão à brasileira). A ideia é de que comer era um valor social, uma expressão e justificação da laboriosi-dade – “povere, ma la tola piena”. A polenta não podia faltar, como está presente ainda nas famílias do colono, inclusive nos mais abonados. Sua combinação com o queijo e o salame evidenciava-se no café e na janta como condição sine qua non, aleatoriamente no almoço (presente, mas como combinação secundária).519 “Pode engordar um pouco, todos podiam”, dis-se uma idosa. Então, a garantia de combinação estava dada – “qui non pò copar un porco vive tuto l’ano con el mus storto”.

A casa sem a horta seria como um corpo debilitado pela ausência de algum órgão que comprometia o seu funciona-mento. A horta subsidiava a casa com verduras, temperos, alimentos ocasionais (batatinha, amendoim, pipoca...), que não podiam “tomar o lugar da roça”. Nos comentários de ido-sas, havia pouca inovação no cardápio diário. A comida cam-ponesa “sempre foi pesada, forte e repetida, sem muitas in-venções, nem se tinha tempo para isso”.

O ciclo agrícola aparece como organização, como estrutu-ra e sucessão ininterrupta de tempos, de trabalhos a fazer em função das estações, do desenvolvimento dos produtos e da ecologia da unidade familiar. Era comum ouvirmos de infor-mantes idosos e de meia-idade que, no verão, iriam fazer tal coisa; no inverno, outra; depois da safra, aquilo; quando cho-vesse, em tal lugar, etc. Inovação, conhecimento acumulado por gerações precedentes, membros familiares e de vizinhan-ça, introdução de variedades, dentre outras, (re)estruturam ações (não só naturais/biológicas) cotidianamente associadas a uma ciência prática.

Parece-nos que havia uma convivência carregada de significações e símbolos, os quais, por si só, obedecem a uma

519 ZONABEND, op. cit.

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racionalidade espontânea, interessada na experiência do tra-balho produtivo e na convivência. O espaço é construído pelo esforço, pelo sacrifício e não sem conflitos, formando uma to-talidade social que norteia as relações sociais e de produção. A ideologia da família ou do vínculo do parentesco legitima a configuração do próprio trabalho familiar enquanto relação de família. Nem todas as famílias conseguem se reproduzir enquanto tal; alguns filhos, ao se casarem, buscam outras al-ternativas, deixando grande parte dos frutos de seu trabalho para os outros membros da família.

Saber organizar o processo de trabalho, seus instru-mentos, seu saber empírico e técnico, saber compreender o dinamismo da natureza na ótica do equilíbrio etc. são com-binações a priori construídas no ethos de colono, porém que se atualizam, se renovam e se governam no próprio fazer. O saber/fazer, enquanto dinâmica construtiva, material e sim-bólica, atualiza-se e transmite-se envolvendo valores e dife-renciações de papéis e de hierarquias

O controle técnico dos meios de produção, do processo de trabalho e da natureza faz parte de um saber, de uma tec-nologia do colono (que preferimos chamar de racionalidades adaptativas) que norteiam ações, funções e estratégias. O prazer, a alegria do lazer e do trabalho, da sociabilidade co-munitária e católica, jogos diversos e o contato cotidiano com a bodega, todos são dinamizados nas narrativas pelos idosos, o que expressa que havia um conjunto de fatores que propi-ciam a integração intensa de momentos de prazer corporal.

A constante orientação aos filhos sobre o estudo e as opções de trabalho diferentes, a dificuldade que os pais têm de motivar todos os filhos para o trabalho pesado na roça, a busca de trabalhos “pra fora” por parte de algumas mulheres e, esporadicamente, por alguns homens, dentre outros, redu-zem “os braços em casa”, fazendo aumentar a intensidade do

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envolvimento com atividades que reduzem o tempo de lazer, principalmente dos cônjuges.

As marcas e os sinais da natureza, do estilo de trabalho e da cultura identificam o corpo, o qual, ainda que seja o espelho e a manifestação da individualidade, constrói-se no que faz, no trabalho. Os colonos julgam-se os que mais se “judiam” e mais “gastam” precocemente o corpo; a intensidade desse “gasto” se dá pela dinâmica e pelo impulso no trabalho e em suas variações. A busca de trabalho leve se dá em razão também do “gasto” do corpo, nem sempre unicamente pela variável remuneração. A ação do tempo nesse “gasto”, tende a ser in-tensificada pela ação do trabalho, e do trabalho rude. Cuida-do, trato, gasto, marcas, vestimentas, o andar, o movimentar e descansar, o se expor, as manifestações externas do corpo etc, expressam também tensões e vínculos, intensos ou não, com o trabalho da roça; porém, orientam-se nos horizontes da gestualidade, de intenções, decências, exibições, rudeza (ma-chismo), desejos e razões, recatos, posturas, invejas, tramas, desejo narcísico, demonstrações (“aparecer”), espacialização de gênero, modernização/tradição, o que vem do coração, do erotismo, o que é de (e da) família etc.520 São todos processos de significados múltiplos e complexos que interagem no cam-po da identidade espacial e cultural do colono e que se imbri-cam com a família, com a terra e com o trabalho na intensa vinculação às dinâmicas da sociedade envolvente.

Na memória de idosos do meio rural, a questão da su-cessão é fundamental; a transmissão do patrimônio, para eles, tematiza uma vinculação com a consanguinidade, com a proximidade física, parentesco, pertencimento, como resposta e materialização a um processo de adaptação de interesses econômicos (integridade do patrimônio familiar) e de geren-

520 WOORTMANN, E. Herdeiros, parentes e compadres. São Paulo: Hucitec, 1995; ver, também, WOORTMANN, E.; WOORTMANN, K. O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: UnB, 1997.

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ciamento da tradição e da família. Nas primeiras décadas do Século XX, as Colônias Novas exerciam a descarga de tensões no seio da família quando essa questão vinha à tona. Inú-meros espaços de fronteira agrícola pós-década de 1950 tam-bém foram determinantes para definir trajetórias individuais aglutinadas em interesses coletivos.

As representações simbólicas e as práticas associadas ao passado não podem ser interpretadas como mera nostalgia – não é por nada que a maioria dos idosos que permanece na colônia prefere se “envolver com as parreiras”. São cama-das múltiplas de tempo e espaço que supõem significados e valores culturais em conflito, representações dinâmicas per-cebidas e confrontadas com as formas do vivido e concebido, expressas nas condições de existência atuais.

Memória da migração para o urbano

Os lugares vão e vêm, podem nos abandonar, mas também retornar e tomar seu lugar primitivo.

Proust

Lucena diz que a memória familiar não é homogênea, mas é resultado de circunstâncias, de reavaliações e momen-tos do grupo e/ou de indivíduos isolados.

“Do ponto de vista da mobilidade social, as histórias de família fornecem meios para analisar as influências intergeracionais entre homens e mulheres e um cruzamento de significados e valores cul-turais dos diferentes espaços vividos pelos migrantes. As práticas culturais dos migrantes estão sempre vinculadas aos princípios familiares. As experiências de vida nos lugares de origem são vinculadas à terra e à família.”521

521 LUCENA, op. cit., 1999. p. 54.

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Nas imagens de memória, as representações sobre o lu-gar de origem e o de destino não são unívocas para os mi-grantes: “O espaço social pode estar carregado de múltiplas interpretações contraditórias [...] O que parece comum é que a cidade é o espaço onde se encontra a solução para os proble-mas da roça.”522

Para alguns idosos, a imagem da cidade vem carrega-da da significação de violência, de movimento contínuo e que “não pára”, dos gastos elevados para viver, de lugar do desco-nhecido, de ressocialização no trabalho e na vida familiar e social, nos hábitos (comida, higiene, fala etc.) e na aprendiza-gem, de ausência e de novas dificuldades da vida em relação ao espaço da roça.

Malgrado isso, a cidade ofereceu, também, para as idosas maior possibilidade de descanso. O trabalho, ainda que tenha continuado na ótica dos gêneros, ficou mais leve para elas, possibilitando-lhes incorporar valores de classe média, espe-cialmente quanto à arrumação da casa, a utensílios utiliza-dos, à vestimenta etc.:

Possibilitou que a gente pudesse se realizar melhor. [...]. Outros vieram também, vizinhos, gente da roça que nem nós, e daí a gente se ajudou bastante e foi criando aqui quando a vila começou, quase que uma comunidade rural.

Nas imagens da memória dos primeiros tempos de cida-de, manifestam-se representações construídas no meio rural, ou seja, a ideia de fazer capital, o sacrifício, a doença (a neces-sidade de estarem próximos dos médicos e das condições de saúde, realidade essa que o rural não oferecia), as facilidades, os sonhos e os desejos de novos códigos de vida, a adaptação às novas mensagens sociais e culturais, muito presentes nas décadas de 1950 e 1960, de modernização social e pessoal.

522 Idem, p. 55.

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323Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração

A migração para a cidade de famílias que entrevistamos necessitou do auxílio de novos migrantes e também favore-ceu os posteriores, principalmente no campo do trabalho, na continuidade da identificação da vida rural, na fortificação da identidade do antes no momento da alteração do momento.523 Durhan diz que a migração sucessiva de membros de famí-lias do mesmo local de origem possui a vantagem de favorecer a posição anterior enquanto se tenta estabelecer uma nova identidade, uma nova posição no contexto novo.524

Alguns idosos nos disseram que, nos primeiros tempos, a cidade não se apresentou “tão distante assim”; ficou mais difícil, sim, com o passar dos anos, pelas suas alterações nos estilos e formas de vida.

Se conhecia pouco a cidade naquela época, eu mesma nunca tinha ido porque, tu sabe, era só o pai que ia quando precisasse. Ou, então, se tivesse que i no médico, mas só nessas horas, né. Mas hoje eu lembro que estranhei, oh se estranhei [...]. Se tu vai ver, no fundo, aqui nessa vila era quase todo mundo vindo da roça [...], ficou muito do que se fazia lá.

Nos primeiros tempos, permaneciam coesos o ambiente familiar, a hospitalidade, o sentimento de proximidade, o so-taque dialetal do vêneto, um certo sentimento de localidade; com o tempo, alguns desses elementos foram sendo alterados em razão das mudanças, de ambições, individualismos, frag-mentações familiares e de maior socialização no universo da cidade e seus valores.

Segundo Lucena, é possível que o migrado do rural para o urbano recrie a imagem da cidade em correspondência ou apoiado na experiência e na memória.525 As idosas que migra-ram para a cidade manifestam sua preocupação inicial com

523 LUCENA, op. cit.524 DURHAN E. R. A caminho da cidade: vida rural e migração para São Paulo.

São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 130.525 LUCENA, op. cit., 1999.

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o aspecto econômico, com o conforto da casa, com a possibi-lidade de educação dos filhos. A cidade representou, e ainda representa, desejos, medos, traição das pessoas, conforto, re-gras impessoais, lugar desconhecido e do desconhecido, an-gústia das mudanças profundas que ocorrem no âmbito fami-liar, social e cultural.

A cidade representa o horizonte espacial dos ganhos e das perdas: ganhos de novas aprendizagens, de novas relações não de total dependência patriarcal, de novas sociabilidades, confortos e adaptações sociais; perdas referentes ao tempo e ao espaço tradicionais vividos nos tempos da roça regidos pela natureza; pela desespacialização social,526 dos vínculos comu-nitários, do suporte afetivo da família que transcende para o horizonte do compadrio, do parentesco e da vizinhança.

Nas informações de idosas migradas para o urbano, sem-pre houve dificuldade em constituir uma vida comunitária na cidade. Na cidade vive-se mais agitado, com medo,

[...] eu mesma quando fiquei sozinha, que morreu meu marido, nunca conseguia mais dormir sozinha, não tive mais coragem de ficar uma noite sem ninguém, era sempre aquela folia e ficava sempre nervosa. Agora me toca dormir sozinha porque é sempre aquela incomadação senão, né, um dia vem um, outro dia tem de vir outro. Tenho vontade de voltar pra fora e morar perto, não junto, com minha filha casada, só que acho que não vou mais me acostumar lá, pelo menos teria alguém conhecido e que fique mais responsável por perto”.

Algumas idosas que migraram para a cidade com a fa-mília expressam que a mobilidade não foi, no início, desejada por elas em razão do desconhecido, da dificuldade de entrar no ritmo da cidade, de suas novas exigências, dos seus temo-res, ainda que “Nova Prata não era bem uma cidade daria pra dizer”. No entanto, “Nova Prata, ainda que pequena, era

526 LUCENA, op. cit., 1999.

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difícil pra gente se acostumar, porque a cidade é outra coisa. [...]. Não se tava acostumado. [...]. Tudo ficou diferente”. Uma entrevistada nos disse que, depois de migrada para Veranó-polis, deu-se conta do quanto a cidade alterara a vida, o ritmo anterior de organização do cotidiano, trazendo o conflito ex-plícito de gerações, a necessidade de reinventar novas formas e experiências, de adaptá-las ao ritmo da cidade e não mais da colônia.

Percebemos, pela narração de algumas idosas, que as expe-riências reinventadas se dão na esfera do cotidiano da casa, da participação e organização comunitária, da vida religiosa, dos contatos com a vizinhança, ou seja, nos espaços que ainda con-servam relações de pertencimento e identificação étnico-cultu-ral. Não exteriorizam tanto a dimensão econômica, o fato de sua família ter acumulado capital ou não. O horizonte da lembran-ça e dos referenciais cotidianos caminha mais pelas dimensões simbólicas, afetivas, vicinais, da casa, das perdas de significados considerados importantes para o passado e úteis para o presen-te. A vida comunitária, ainda que bastante redefinida, guarda, conserva e é dinamizada pela presença de idosos e idosas.

No fundo, segundo a opinião de várias idosas indagadas sobre isso, elas mudaram de espaço, porém não se “desfize-ram” totalmente de suas formas de organização do espaço, principalmente o do cotidiano vivido na família e na comuni-dade; já o do trabalho sofreu profundas alterações em razão das atividades e dos espaços variados. Pelo que percebemos nos relatos, o novo e o velho, em determinadas circunstân-cias, mesclam-se, redefinem-se, excluem-se e readaptam-se. Observamos é que, em espaços urbanos onde as formas de sociabilidade assumem caráter étnico, como é o caso de Nova Prata e Veranópolis, determinadas relações transcendem es-pacialidades principalmente no campo de maior identificação cultural, como é o caso da família e da vida comunitária e

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social. Desse modo, foi possível para muitos migrantes rurais das décadas de 1950 e 1960 mesclarem práticas transferidas desse espaço e adaptá-las ou reinventá-las no urbano. A mu-dança de espaço não significa, na totalidade, alteração cultu-ral, completa ressocialização; costumes, tradições, visões de mundo, sociabilidades, coisas simples do cotidiano resistem em se alterar e se cristalizaram no vivido caminham juntas.527

O passado, para idosos entrevistados que migraram para a cidade, transfere-se no horizonte da coesão, do fortalecimen-to dos laços sociais e familiares de espaços não do presente. Isso é percebido quando, no urbano, limitam-se as fronteiras desse processo e a forma de vida anterior à migração é acio-nada para facilitar a vida no novo lugar. Daí a importância da memória, da experiência na construção do novo. Diz Halbwa-chs que, ainda que nem tudo fique para trás, muita coisa se perde: “A população pobre também não se deixa deslocar sem resistência, sem ressentimentos, e mesmo quando cede, deixa para trás muitos traços de si mesma.”528

A comunidade representava uma integração fundamen-tal para a estrutura do conjunto social e para o desenvolvi-mento do homem no meio rural; ela tendia a promover a cons-ciência em relação aos outros, desenvolvendo-se e operando em concomitância com a consciência individualista. Era na comunidade que a lógica das ligações sociais se processava, que a compreensão e a difusão da também lógica do espaço re-lacional e suas significações se viabilizavam. As vestimentas, as festas, os causos, os de dentro, os de fora, os de mais fora, os da cidade, a consciência de localidade, de estar e ser de um lugar, da convivência, da ajuda mútua, da participação, da religiosidade, da individualidade e dos individualismos deli-neavam a configuração dos lugares mais acessíveis, menos

527 LUCENA, 1999.528 HALBWACHS, M. A memoria... p. 138.

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confortantes e de obrigatoriedades. A sede da comunidade sempre serviu como espaço de convergência, de manifestação do sagrado, do lúdico, de fuga da solidão, da transmissão e intercâmbio da saudade, das notícias, da vida social etc.

Duas idosas nos disseram que, pelo menos, a vida comuni-tária na cidade tem muito a ver com a do meio rural. A festa co-munitária é um exemplo disso, por envolver obrigações comuns entre famílias, costumes e memórias locais. Diz Lucena que,

[...] na cidade, a identidade do migrante é reinventada e reinter-pretada em cada geração. Seus valores antigos não são abandona-dos, nem os novos simplesmente sobrepostos, mas reconstruídos e reinventados a partir de representações simbólicas e práticas combinatórias indissociáveis do patrimônio cultural adquirido. [...]. Embora o migrante passe pelo processo de ruptura com a infra-estrutura material de sua terra, possui em seu imaginário lembranças, imagens, códigos de um repertório cultural dotado de força que lhe permitem recriar “artes de inventar” necessárias para sua inserção na cidade desconhecida. Os migrantes se re-conhecem, percebem as mudanças, os novos valores adquiridos, contêm elementos de explicação da mudança e dos conflitos e não apenas elementos de justificação do passado. O conhecimento que o migrante tem da aventura de sua mudança está associado aos momentos de outrora, aos contratempos da chegada, à vida no cotidiano do bairro periférico e à luta pela sobrevivência. [...]. No seu cotidiano, em sua trajetória, o migrante se defronta com uma pluralidade cultural, com oportunidades de mesclar as fronteiras culturais e simbólicas, de fazer interagir as características rurais e urbanas e criar condições de vida, dentro de uma perspectiva de “interseção de culturas.529

Na memória de colonos idosos, o local da capela, sua es-colha, era sinal de prestígio, pois em torno dela se formava um pequeno conglomerado de casas, a escola, o cemitério, a bodega, a casa de comércio, a igreja etc. Na cidade, muito disso se alterou, porém idosos fazem questão de dizer e de mostrar algo que, nesses horizontes, seja expresso com os re-ferenciais que o próprio urbano apresenta e que foi fruto da

529 HALBWACHS, p. 168 e 170.

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sua ação em correspondência com o que existia “lá fora” e que manifesta deslocação de formas de vida pretéritas e presentes em redefinição.

Algumas ações, mesmo que reguladas por um certo habitus religioso definidor de dogmas, da doutrina e das for-mas litúrgicas e culturais, podem, em certo sentido, revestir-se de distintos significados nas suas modulações locais. São os antigos ritos de expressão comunitária ou individual, de certa forma, com a cumplicidade de párocos de origens camponesas e/ou de prolongado convívio e inserção no meio.

O ritualismo, os sacramentos (como únicos mediadores da salvação), o pecado, os santos, a conversão, o movimento no es-paço e no tempo – as peregrinações, romarias, procissões, as pa-lavras sagradas em latim, os componentes mímicos e ges tuais, o contato com os mortos etc. – são todas expressões e identifica-ções em grande parte ainda presentes, como valores religiosos e a sua normatividade no local/lugar do vivido do espaço rural, principalmente dos mais tradicionais de regiões onde a dimen-são do pertencimento, do campesinato e da família como unida-de agregadora da vida e da casa do colono perdura.

Segundo Lucena, na memória mesclam-se resíduos de diferentes espaços e diferentes tempos; misturam-se práti-cas culturais e transferidas do rural com as novas práticas aprendidas no urbano. O migrante muda de espaço, porém seus costumes acompanham-no por toda a vida, assim como a lembrança das paisagens, as datas, as tradições, a música e a culinária. Se a passagem à vida urbana é um processo lento, o migrante introduz no novo espaço os conhecimentos adqui-ridos, o habitus,530 ou seja, os conhecimentos incorporados da família, do grupo social ou de sociedade. “São experiências, modos de vida que passam de uma geração a outra, e o deslo-

530 BOURDIEU, P. O poder simbólico...

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camento de um grupo de uma região a outra não representa a perda desse conhecimento adquirido.”531

Na visão da autora, na cidade, os idosos reinventavam tradições e práticas cotidianas. Os mundos rural e urbano viviam numa dialética de inclusão e exclusão, de inserção e reincorporação de códigos diversos, de representações varia-das e dinâmicas, de invenção de tradições e de processos que produzem ancoragem social. Nesse sentido, há a possibili-dade de o migrante reinventar na cidade processos vividos e cristalizados no espaço de origem; há, na cidade, também no-vos tempos, novas experiências de trabalho, aprendizagens, esquecimentos de outros, principalmente em razão de que o trabalho, nas situações atuais, reduz, consideravelmente, os momentos da família. O indivíduo da cidade obtém um emar-ranhado de signos que são elementos de referência do espa-ço urbano em nível individual. A ideia de que a mulher não trabalha vai sumindo na cidade. Para as mulheres, mais do que para os homens, coexistem aprendizados do passado e do presente, porém, é evidente, necessitam de novas ressociali-zações, de hábitos, postura do corpo, vestimentas. Os homens também têm a necessidade de se urbanizar, de entender no-vos conceitos, novas condutas, novas regras etc. Esses pro-cessos todos, para os idosos que viveram “outra época”, ex-pressam conflitos, confrontos, novos valores culturais, como resultado da multiplicidade de tempo e de espaço vivenciados em sua história de vida.532

Não obstante, não cansamos de dizer que aspectos do novo se juntam com o velho e vice-versa; ambos reordenam novos símbolos, imagens e adaptações; refazem identidades e espaços, bem como temporalidades entrecruzadas e exclu-dentes.

531 LUCENA, op. cit., p. 78.532 LUCENA, p. 139-140.

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Novas experiências, novos ritmos, novos trabalhos, no-vos valores, novas imagens e imaginários, novas representa-ções. Esse todo novo se mescla e se referencia com o velho deixado, trazido, incorporado, resistente, alterado dos lugares e da cultura. Imagens do passado presentificam-se pela resis-tência individual do idoso, pela recordação, pelo sentimento e pela percepção da convivência cotidiana com a mudança. Nesse conflito aberto e velado, algumas coisas são revigora-das, outras são dispersas e outras se perdem; seleciona-se o que pode ficar e o que, ainda contra a vontade, deve morrer.533 Magnani diz que a “cultura, mais que uma soma de produtos, é um processo de sua constante recriação, num espaço social-mente determinado”.534

Memória de gêneroA memória reescreve a realidade vivida.

Lucena

A realidade vivida no âmbito do gênero representa a sub-jetividade e a construção de representações sociais, fases da vida social, individual e familiar, classificações econômicas (de trabalho), religiosas, sociais. Alguns autores dizem que são as mulheres que humanizam a memória genealógica, pois lhe dão função expressiva, de necessidade emocional, senti-mentos e ligações entre pessoas; refletem certa ausência da noção de tempo. Nos homens, as lembranças são mais arti-culadas em torno do trabalho e dos símbolos materiais (casa, empresa, ofícios...).535

533 Ibidem.534 MAGNANI, J. G. C. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São

Paulo: Brasiliense, 1984. p. 18-19.535 LUCENA, C. T., op. cit.

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Idosas lembram de que muito cedo as crianças eram in-troduzidas, socializadas e ritualizadas cronológica e cultural-mente na idade adulta, através do trabalho doméstico, cozi-nhando, lavando, passando e cuidando dos irmãos menores. A ritualização dos trabalhos e sua constituída naturalização manifestam a consciência de sua pouca importância, de sua possibilidade de ser feito por qualquer um desde que fosse mulher.

Matos diz que as funções reconhecidamente femininas ou em que as mulheres penetraram eram progressivamente deserdadas pelos homens, desvalorizadas monetária e social-mente desprestigiadas.536 Esse processo, segundo algumas idosas, não se alterou muito no meio rural. No urbano, alte-rou-se em parte nas famílias em que, logo ou depois a migra-ção, a mulher e filhas optaram pelo trabalho fora, remunera-do e com horários estabelecidos. Porém, sempre houve uma dinâmica entre conflito/acomodação e naturalização histórica das ações.

No meio rural, esse processo de gênero do trabalho e seu significado não foram alterados significativamente. Altera-ram-se mais profundamente, a partir da década de 1990, com a presença maior de idosos nas famílias, em coabitação, com a possibilidade de mulheres atuarem em espaços de pluria-tividade no ramo de confecção têxtil no meio rural na forma de ateliês ou de atividades a domicílio. No entanto, as idosas são unânimes em dizer e reafirmar a experiência histórica da continuidade da diferença de gênero nesse processo como algo normal, comum, eficaz e eficiente em termos de diferenciação.

As fronteiras materiais e simbólicas entre o mundo do trabalho e o da vida privada não eram muito nítidas, pois entre esses dois mundos havia uma relação de complementa-

536 PINTO, M. I. M. B. Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo (1890-1914). São Paulo: Edusp, 1995.

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ridade ainda que hierárquica. Casa e roça, casa e rua fazem parte no horizonte familiar do colono e do migrado, respecti-vamente. Ainda que seus personagens principais sejam vistos e concebidos diferencialmente, constituem espaços que se in-terpenetram numa totalidade em ato, em constante recons-trução/manutenção.

É comum, por exemplo, na literatura sobre a história de mulheres camponesas descendentes de imigrantes italianos, migradas para várias regiões do sul do Brasil, a dimensão do incessante trabalho e sua mistura simbólica e material com sofrimento, silêncio, capacidade de sobrevivência e de contri-buir para a naturalização de sua situação histórico-cultural e étnica. O casamento, por exemplo, ao invés de alterar, ressig-nificava e fortalecia a situação; materializava o desejo contido e a reprodução histórica da reconstituição, do novo, que nada mais era do que uma atualização do velho processo cotidiano de vida.

Segundo algumas idosas, a migração para a cidade era idealizada pelas jovens (filhas) e por esposas como possibilida-de de alteração do processo desde que houvesse oportunidade de trabalho. O problema é, como nos diz uma delas: “Quem é que lavaria a roupa, quem é que ia fazer a comida e arru-mar a casa, lavar os lençóis? Pagar alguém não tinha sentido. Esperar por eles (os homens), podia esperar sentada!” Sua utilidade era acrescida não unicamente pela possibilidade e efetivação do trabalho externo e sua consequente remunera-ção, mas por poder conciliar ambos, e “sem reclamar”. O que acontecia, segundo depoimentos, é que os homens,

[...] te valorizavam mais, gabavam as mulheres que faziam tudo, diziam que não tinham mais os bichos pra tratar. [...], te tratavam com um pouco mais de ternura e sem muita brutalidade como o era na roça. Talvez com isso a gente também reclamava menos.

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Como nos diz Lucena, paternalismo e exploração são am-bivalentes; podem se dar ao mesmo tempo, um alimentando o outro, não se excluindo, pois podem implicar concessões que caracterizavam as relações desses protagonistas históricos no cotidiano dos domicílios; as práticas paternalistas mescla-vam-se com medidas repressivas, constituindo estratégias de um processo de enfrentamento e dominação, relações essas negadoras de conflito, alimentando-se em imagens de coope-ração. No espaço externo de trabalhos “nas casas” e, mesmo, em espaços variados do meio urbano, as idosas entrevistadas foram unânimes em dizer que a imagem de patrão se subs-tanciava e alimentava por linguagens e imagens já conheci-das na sua identificação de poder e do trabalho como extensão da casa, de um horizonte que se externaliza e se complementa reproduzindo-se quase que unilinearmente.537

Relatando sobre os momentos da migração para o atual local, uma idosa nos disse que o trabalho era o alívio do sofri-mento, da insegurança: “Trabalhando se esquecia tudo, porque esse era o desejo de se estar aqui.” O trabalho era visto como o elemento por excelência da redenção da vida e, para muitas mulheres, também como resignação frente a sua situação, assim como, pela dependência dos homens em relação às atividades femininas, poderia tornar-se um horizonte de poder e de con-traposição estratégica em relação à organização patriarcal e aos processos de repressão afetiva, sensual e sexual.

A entrega ao trabalho dava-se com extremo despojamen-to e tenacidade. Os imigrantes construíram laços de solidarie-dade étnica, através de rica rede de parentela e amizade, algo que é muito valorizado nas lembranças e, ao mesmo tempo, extremamente sentido e criticado pela sua negligência e alte-rações atuais.538

537 LUCENA, op. cit.538 MATOS, op. cit., p. 47.

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A simbologia do trabalho na estrutura familiar está na base da lembrança do trabalho. Com ela, seus limites, neces-sidades, carências e projetos agregam noções de adversidade, superação, enfrentamento (luta), coragem, divisões e especia-lizações. Espaços e atribuições respectivas faziam parte do elenco simbólico/prático do cotidiano do trabalho.

As mulheres eram (deveriam ser) boas donas de casa, econômicas, trabalhadeiras, educadoras (socializadoras) dos filhos, mantenedoras da tradição, da honra, dos conhecimen-tos e das adaptações aos/dos novos conhecimentos e habili-dades.539

Cabia a elas definir, destacar, singularizar, tipificar e recriar, num novo espaço, tradições e a partir de uma nova experiência cotidiana de convivência e trabalho. O trabalho perpassava essencialmente a vida de homens e mulheres imi-grantes; junto com a família e a religião, criava identifica-ção étnica e se tornava fator de socialização e solidariedade dentro do grupo. Através do trabalho e de suas relações, ma-nifestavam-se claramente não só amizade, apoio, lealdade e afabilidade entre os recém-chegados, mas também exploração e abusos.540

O envolvimento com o comércio de vendas de miudezas e de excedentes, com características totalmente mercantis, re-gistra a memória da diferenciação de gênero no trabalho, res-significando relações agrupadas na renda familiar, na obriga-ção feminina, além dos encargos familiares. Esse processo de diferenciação de trabalhos e de gênero nos produtos do traba-lho e suas finalidades passava por uma racionalidade interna e por um balanço entre oferta e consumo, entre necessidade e oferta (do produto e dos recursos financeiros), entre carência

539 Ver MATOS, op. cit; também LUCENA, op. cit.540 MATOS, op. cit., p. 49.

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e projetos familiares, entre o preço de venda no momento e a possibilidade do preço de compra num futuro próximo.541

Encontrar trabalhos alternativos sempre foi o desejo de algumas idosas. “Se pudesse desviar da roça, mesmo sa-bendo da precisão, né, era melhor.” Costurar era o desejo e a alternativa de muitas delas, pois poderiam receber recursos financeiros, reduzir o tempo de obrigação na roça, além de terem uma profissão – “ser colona, nunca foi uma profissão para mim”, declarou uma entrevistada. Atualmente, o traba-lho nos ateliês de costura industrial localizados no meio rural, sob o manto da racionalidade mercantil, favorece e, ao mesmo tempo, precariza a vida e o trabalho de muitas mulheres que se vinculam a essa atividade.542

O trabalho, a domicílio, de costura também, ainda que desejado por várias mulheres, estava condicionado pela dis-ponibilidade de mão de obra e por fatores de ordem institu-cional e sociocultural, porém apresentava-se como uma das as possíveis estratégias de sobrevivência criadas e recriadas no cotidiano feminino; delineava, ainda, uma interconexão e interpenetração entre o público e o privado, vinculado ao ciclo sociocultural dos tempos e dos espaços das atividades femininas, já desenvolvidas nos horizontes domésticos (lavar, cozinhar, costurar, bordar).543

Esse saber cristalizado e que definia a identidade de es-posa e mãe era identificado durante um período da vida das mulheres, comumente pós-casamento, pois era aí que havia a possibilidade de concatenar o ritmo, o espaço e o tempo do trabalho doméstico com uma atividade remunerada e com ho-rários flexíveis. O trabalho domiciliar, em contraposição ao

541 THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

542 TEDESCO, J. C. Ateliês industriais no meio rural: racionalidades empresariais e dinâmicas familiares. Passo Fundo: Clio Livros e Méritos Editora, 2003.

543 VERDIER, I. apud LUCENA, op. cit.

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trabalho externo, possibilitava flexibilidade de horário, ideia de autonomia, fuga dos domínios totais do poder hierárquico e patriarcal; contudo, não as desobrigava de outras atividades do lar e no trato com os animais. Exigências, obrigações, formas de controle do tempo e das atividades faziam-se presentes.

Envolvidas também na obrigação de “levar dinheiro para casa”, as mulheres aumentavam seu tempo de trabalho e aden-travam em atividades estratégicas propiciadoras de certa remuneração, comumente atividades extensivas em relação às já desenvolvidas e conhecidas no âmbito doméstico e so-cialmente pouco reconhecidas e valorizadas. Desse modo, o espaço domiciliar não produzia tantas fronteiras na relação com os espaços externos, pois interpenetravam-se e comple-mentavam-se, hierarquicamente, no horizonte dinâmico en-tre produção e reprodução.

As idosas migradas falam, com veemência, das altera-ções no cotidiano da vida familiar e social produzidas pelas novas gerações, provocadas pelo estudo, pelo trabalho, pelas facilidades que os jovens têm de viver na cidade; da alimenta-ção (seu tempo, condições, qualidade e presença familiar); da presença da mulher no espaço de trabalho; das relações de po-der entre sexo, da continuidade da responsabilidade da mu-lher por quase tudo o que lhe correspondia na divisão interna de gênero antes da inserção no mercado de trabalho; do fato de o trabalho e o estudo facilitarem a redução da autoridade paterna das escolhas afetiva, matrimonial; das amizades, do lazer das etc. Muito disso não foi possível para as idosas.

As narrativas de idosas, ao que nos parece, fortalecem a ideia de pertencimento a um núcleo familiar, e isso é dito com grande ênfase; seus vínculos comunitários (nas festas e nos espaços e rituais religiosos e de caridade pública) represen-tam um poder identificador com valores de solidariedade e em

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torno de formas possíveis de convivência comunitária e pelas trocas de experiência que isso possibilita.

As histórias narradas servem também para contar a história do espaço de vida comunitário e a dimensão local da existência e da sociabilidade. Os homens contam explicitan-do alguns tipos de valores; as mulheres o fazem relativizando aspectos narrados pelos homens; ambos explicitam projetos, efetivação ou não de valores, julgamentos e comportamentos. Desse modo, produzem-se representações e auto-identificação, personalização e participação no espaço e na história local.

As lembranças vividas e narradas são expressas quase sempre como comprometimento, como referenciais éticos em torno de objetivos comuns, desejáveis e que podem ser reali-záveis e mediados pela memória através de relações de gera-ções. Nesse âmbito e, em muitos outros, o papel da memória, da experiência e da narração do e para o idoso é fundamental.

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Considerações finaisNo decorrer deste trabalho trouxemos um conjunto de

obras que versam sobre o tema memória, dando uma maior centralidade à análise social e histórico-cultural. Nosso inte-resse maior foi tentar interpretar a noção de memória coleti-va em Halbwachs. Buscamos analisar a memória e os atos de lembrar como algo em construção, em dinamismo e que pos-sui esferas em vários horizontes do real, o qual ganha maio-res contornos no campo cultural e político, âmbitos esses de maior uso e intenção dessa.

Diz Lowenthal que nenhum relato histórico consegue recuperar a totalidade de qualquer acontecimento passado; em razão de seu conteúdo ser virtualmente infinito, assimila apenas uma fração mínima até mesmo do que foi considera-do mais relevante do passado. Diz o autor que nem tudo o que passou foi registrado e pouco do passado foi relatado.544 O historiador não possui a totalidade do que aconteceu, mas re-latos dos fatos. Levi-Strauss diz que o fato histórico não tem realidade objetiva, existe apenas como reconstrução retros-pectiva.545

A passagem do tempo tende a desgastar o passado, a fil-trá-lo com o olhar do presente, reduzindo a capacidade com-preensiva da comunicação.

Explicar o passado no presente significa lidar não apenas com percepções, valores e linguagens que mudam, mas também com acontecimentos ocorridos após a época examinada. [...]. Conhecer o futuro do passado força o historiador a moldar a sua narrativa de modo a fazê-la entrar em acordo com o ocorrido. [...]. Assim como a memória, a história combina, comprime e exagera; momentos raros do passado sobressaem, uniformidades e detalhes desaparecem.546

544 LOWENTHAL, D., op. cit.545 LÉVI-STRAUSS, C. apud LOWENTHAL, D., op. cit., p. 112.546 LOWENTHAL, D., op. cit., p. 116-117.

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É por isso que, no campo material, simbólico, compor-tamental, fenomenológico, social e epistemológico, o tema memória vem recebendo atenção. Estudar modernidade, tradição, patrimônio, imaginários e representações sociais, velhice, simbologia, narração, comemoração, esquecimento, dentre outros determina que o tema memória esteja no foco da análise. A questão da memória está no eixo central de uma nova percepção do mundo e de cotidianidade que se constitui em razão da busca de significados perdidos, reconstituídos, do real que muda numa velocidade intensa, de comportamentos que se alteram e, consequentemente, de visões de mundo, o que aponta para novas atribuições ao social.

As referências em torno da cidadania social, a maior cre-dibilidade do papel das vozes e das narrações como base de compreensão e análise socio-histórica, os impasses do conhe-cimento histórico e os valores da modernidade (ou da pós-mo-dernidade para alguns), as fragmentações utópicas, as des-construções do conhecimento e das formas de controle e de vida social, o avanço da técnica aplicada e da midiologia, a capacidade de armazenar e de guardar memórias que esta última nos oferece, as reconstituições históricas e sociais de fatos e situações políticas, biográficas e genealógicas esqueci-das, ou, então, administradas em termos de visualização co-letiva, dentre uma série de outros elementos, permitem-nos dizer que o campo de análise da memória é uma grande arma que possuímos, que está sempre atual, ainda que, aparente-mente, pareça ser o contrário.

Repensar a memória, na contemporaneidade, implica ter um olhar mais sensível, perceber outros espaços, outras vozes e outros caminhos (talvez, em meio aos oficiais e consolidados), como possibilidade de construir história e de legitimar ou não referenciais culturais – muitos desses não tão lineares como aparentam ser – pouco evocativos e que se constroem como

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possibilidades e estratégias de sobrevivência pessoal, social e política.

Perceber os processos que fazem com que determinadas memórias sejam expressas, desenvolvidas, e outras não é também possibilitar a percepção de sujeitos da história, de identidades firmadas e construídas em razão de imaginários sociais, de vínculos de poder, de sentimentos sociais, individu-ais e biográficos. A memória ajuda-nos a identificar sujeitos históricos e a entender esquecimentos, a revigorar símbolos e a reconstruir histórias de vida.

É nesse sentido que buscamos, ainda que de uma for-ma pouco ou nada organizada e muitíssimo fragmentada, re-constituir processos, vozes, intenções, símbolos, utopias, en-cantos, desejos, ressentimentos, idealizações, negatividades, em torno de memórias e lembranças de vidas familiares e de histórias de vida de idosos, com caminhos e trajetórias tempo-rais e espaciais marcadas por lembranças suas e de seu grupo familiar.

Valores sentimentais estão unidos à memória, ligados a uma figura familiar a quem originalmente pertenceu o obje-to; ambos se mesclam com valores sociais que os classificam como indicadores de importância e de identificação. Atraves-sando gerações e cruzando temporalidades, os objetos de me-mória vão adquirindo outros sentidos na sucessão temporal, mantendo, em alguns casos, a referência original.

Buscamos analisar aspectos que cadenciam a vida de ido-sos e que, vistos contextualmente, inseridos no horizonte da cultura camponesa, revelam vividos práticos, nexos e significa-dos, funcionando como armas contra a desfiguração e a pouca importância social, contra as fortes alterações do presente e do considerado novo, do presente sobre o passado e do futuro sobre o presente, ou da falta ou garantia do futuro do passado no presente.

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Partimos do pressuposto de que são as histórias de vida, em geral carregadas de emoção, as que melhor ressaltam os conteúdos sociais da memória e que nos dão uma melhor cla-reza das normas e dos valores narrados, expressos e transmi-tidos como lugares de vida e de relações institucionalizadas, como as familiares, as comunitárias e as de pertencimento étnico. Nesse sentido, os idosos são os atores por excelência desses conteúdos sociais de pertencimento e de normas e va-lores enquadrados em seu cotidiano. A partir disso, a memó-ria permite dar garantia de continuidade ao tempo bem como sua alteridade, ao “tempo que muda”, às rupturas que são o destino de toda vida humana; em suma, constitui um elemen-to essencial da identidade, da percepção de si e dos outros.

O tempo histórico e o contexto social encontram-se, reela-boram e resgatam significados de identidade cultural a partir das exigências e das necessidades do presente. A não imutabi-lidade da tradição no passado e no presente, sua transmissão ou esquecimento inter ou intragerações podem ser relativiza-dos em termos de significados por diferentes ou por idênticos grupos sociais. Ligar os tempos e as gerações, chamar para o presente vividos personificados e experienciados no tempo e em determinados espaços alimenta a importância de que um pouco dos idosos esteja presente e sobreviva no mundo dos ne-tos e no espaço que permite suas marcas; manifesta o tempo cíclico, uma referência temporal que, mesmo alterada, circula sobre si mesma, completa-se e é sequencial.

É nesse sentido que lembranças orais e objetais dos ido-sos trazem ao presente a crítica de muitas relações passadas ao mesmo tempo em que relembram e as manifestam como forma de mostrar sua obediência, suas estratégias limitadas e seu vínculo pragmático na família e no meio comunitário. A lembrança da família apresenta-se como um complexo de referências simbólicas, imaginadas e representadas na esfera

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da integração, da ameaça de desintegração, de recordação, de espaços de felicidade, de horizontes de profundos desgostos, de desempenho moral e de honra, de pertença e identidade com possíveis descontinuidades.

Existem objetos que nos identificam, que representam a personificação de experiências vividas; que possuem cara, nomes, costumes, afeições, continuidades, individualidades, segredos, faces, olhos...; são seres, pois falam, simbolizam, unificam e permitem a criticidade. Nessa perspectiva, o tra-dicional não apenas sobrevive; não é um resíduo, ou, então, o que resta, mas o que luta e desafia o moderno, que busca encontrar espaços referenciais no presente, não meramente como tradição, mas como presentificação, como pertencimen-to, em outras palavras, como útil ao que o moderno apresenta como importante.

Percebemos que existem racionalidades internas que são resgatadas e reconstituídas no tempo para preencher vazios da contemporaneidade, contrapor ressentimentos, desenvol-ver encantos e utopias, dinamizar, em espaços variados, for-mas de vida e de sociabilidades reconstruídas coletivamente no seio familiar e/ou comunitário. Ao fazermos um esforço para perceber práticas socioculturais de idosos, vimos que há um processo endógeno de formação por meio da imitação e da experiência do trabalho e do vivido familiar e social. É desse modo que os idosos, pelo viés da memória oral e dos/nos ob-jetos elaborados por eles, sentem sua participação, ainda que reduzida, como de fundamental importância.

Entendemos que a narração de memória dos idosos con-tribui grandemente para o enriquecimento da percepção e dos caminhos do destino da sociedade. O sofrimento – tão em evidência nos relatos em relação ao passado e ao presente –, as regras de ordenamento da vida, os vícios, a consciência da experiência, todos aparecem nos relatos orais e nos significa-

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dos objetais como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa; carregam consigo elementos de base para a construção da própria personalidade e da consciência.

Os idosos, pela lembrança narrada, evocam uma expe-riência sensível, muitas vezes carregada de resignação, de revolta, de nostalgia e de esperança. Por meio desse ato, con-seguem dar temporalidade e espacialidade ao fenômeno da existência; produzir intersubjetividades temporais e cons-ciências de mundo, verdades locais ancoradas no curso da história e das culturas; emancipar o social, emancipando-se como sujeitos mais do que conscientes de seus pertencimentos e de sua utilidade social. A memória, nesse sentido, fornece o instrumental necessário.

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idosos entrevistadosAntônio Girardi (82 anos), residente no espaço urbano do Município de Marau.Raimundo Damo (70 anos), residente no meio rural do município de Marau.Ernesto Castelani (91 anos), residente no meio urbano do município de Nova Prata.Germina Fochesato (78 anos), residente no meio rural do município de Veranópolis.Luíza Tebaldi (86 anos), residente no meio rural do município de Serrafina Corrêa.Ernestina Confortim, (89 anos), residente no meio rural do município de Guaporé.José Borsa (86 anos), residia na meio rural do município de Casca.Ademir Casagrande (87 anos), reside no meio urbano do município de Guaporé.José Palma (96 anos), residia no meio urbano do município de Santo Antônio Palma.Jacob Bassani (91 anos), residente no meio urbano do município de Muçum.Artério Perin (86 anos), residente no meio urbano de São Domingos do Sul.Otávio Busato (86 anos), residente no meio urbano do município de Casca.Juvite Dalla´Mea (93 anos), residente no meio urbano de Nova Prata.Santina Coldebella (79 anos), residente no meio urbano de Nova Bassano.Olívio Ciodelli (80 anos), residente no meio urbano de Santo Antônio Palma.GiustinaTomasi (84 anos), residente no meio urbano de Veranópolis.Rovílio Três (91 anos), residente no meio urbano de Nova Prata.Luiza Di Domenico (89 anos), residente no meio urbano de Nova Bassano.Valdenir Deon (78 anos), residente no meio rural do município de Antônio Prado.