10

Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão

  • Upload
    doque

  • View
    223

  • Download
    4

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão

15

Revista Científica da FMC. Vol. 5, nº 1, 2010 [Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão dos Critérios Diagnósticos]Neri V.C et al.

Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso eRevisão dos Critérios Diagnósticos

Vanderson Carvalho Neri, MD1; Tatiane Vieira Dias Mendonça, MD2;Regina Maria Papais Alvarenga, MD, MSc, PhD3

Estudo realizado pelo Serviço de Neurologia/Centro de Doenças Desmielinizantes do Hospital da Lagoa e peloServiço de Neurologia do Hospital Universitário Gaffrée-Guinle/Universidade Federal do Estado do Rio deJaneiro-Rio de Janeiro/RJ.1 Médico do Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Gaffrée-Guinle/Universidade Federal do Estado doRio de Janeiro e do Hospital da Lagoa/Ambulatório de Doenças Desmielinizantes, Rio de Janeiro/RJ.2 Médica do Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Gaffrée-Guinle/Universidade Federal do estado doRio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ.3 Professora Coordenadora do Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Gaffrée-Guinle/UniversidadeFederal do Estado do Rio de Janeiro e do Serviço de Neurologia do Hospital da Lagoa, Rio de Janeiro/RJ.

Correspondência: Vanderson Carvalho Neri. Serviço de Neurologia, Hospital Universitário Gaffrée-Guinle/Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rua Mariz e Barros, 775 Tijuca, Rio de Janeiro, RJ.CEP:20270-004 Tel: +55 21 81018965 email:[email protected]

RESUMOIntrodução: Neuromielite Óptica (NMO) é uma doençainflamatória, desmielinizante, imunomediada enecrotizante do Sistema Nervoso Central (SNC)clinicamente caracterizada pelo envolvimento donervo óptico e da medula espinhal.Objetivo: Relatar um caso de NMO e discutir oscritérios diagnósticos para essa enfermidade.Método: Revisão de prontuário médico e revisão daliteratura.Relato do Caso: Paciente diabética, Afro-brasileira,em 1996, aos 10 anos, apresentou queda da própriaaltura, evoluindo com paraplegia e arreflexia,apresentando-se 24 horas após com tetraplegia flácidae insuficiência respiratória, necessitando deassistência ventilatória.Em 1998 apresentou perdavisual bilateral, com remissão espontânea. No mêsseguinte apresentou episódio semelhante, e realizouRessonância Magnética (RM) de crânio, que foi normal

ABSTRACTIntroduction: Neuromyelitis Optica (NMO) is aninflammatory, demyelinating autoimmune andnecrot iz ing disorder of Central Nervous System(CNS) clinically characterized by the involvement ofthe optic nerve and spinal cord.Objective: To report a case of NMO and discuss thediagnostic criteria for this disorder.Methods: Review of medical record and literaturereview.Case Report: An diabetic patient, Afro-Brazilian, in1996, at age 10, fell from height, progressing toparaplegia and areflexia, presenting after 24 hours withflaccid quadriplegia and respiratory failure requiringventilator assistance. In 1998 showed bilateral visualloss, with spontaneous remission. The following monthshowed a similar episode, and performed MagneticResonance Imaging (MRI) of brain, which was normalexcept for optic nerve injury. In 1999, new episode of

Page 2: Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão

16

Revista Científica da FMC. Vol. 5, nº 1, 2010 [Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão dos Critérios Diagnósticos]Neri V.C et al.

exceto por lesão em nervo óptico. Em 1999,apresentou novo episódio de paraplegia súbita.Novos surtos de neurite óptica bilateral se sucederamnos meses seguintes. Recebeu após os surtos,pulsoterapia com metilprednisolona (EV), obtendomelhora parcial. Exames de imagem demonstraramlesões inflamadas em nervo óptico bilateralmente ena medula cervical. A paciente recuperou os déficitsmotores, mas permaneceu com comprometimento daacuidade visual.Conclusão: Os novos critérios de NMO segundoWingerchuk 2006, apóiam-se em dados de RMindicando normalidade do crânio e extensas lesõesna medula espinhal. A evolução desse casoassemelha-se aos descritos na literatura pela gravedisfunção visual bilateral e múltiplos eventos restritosa medula espinhal e nervo óptico.Palavras-chave: Neuromielite óptica, diagnóstico,diagnóstico diferencial.

sudden paraplegia. New outbreaks of bilateral opticneuritis occurred in subsequent months. Received afterthe outbreaks pulse therapy with methylprednisolone(EV), achieving partial improvement. Imaging exami-nations showed inflammatory lesions in bilateral opticnerve and cervical spinal cord. The patient recoveredmotor deficits, but remained with impairment of visualacuity.Conclusion: The new criteria of NMO accordingWingerchuk 2006 are based on MRI data indicate nor-mal skull and extensive spinal cord injuries. The evo-lution of this case resembles those described in theliterature of severe bilateral visual dysfunction andmultiple events restricted to the spinal cord and opticnerve.Keywords: Neuromyelitis óptica, diagnosis, diferentialdiagnosis.

INTRODUÇÃOA NMO é uma enfermidade do SNC que

acomete preferencialmente mulheres asiáticas,tornando-as temporária ou definitivamente amauróticase paralíticas; é uma doença inflamatória, desmieli-nizante, imunomediada e necrotizante do SNCclinicamente caracterizada pelo envolvimento do nervoóptico e da medula espinhal. Recebeu o epônimo deDoença de Devic, em homenagem ao médico francêsque, em 1894, publicou o primeiro relato de caso demielite subaguda associada à amaurose bilateral deevolução grave, monofásica e curso fatal1,2.

A NMO consiste em uma síndrome do grupodas Doenças Desmielinizantes InflamatóriasIdiopáticas (DDII) do SNC, que reúne condiçõesclínicas de etiologia desconhecida, agudas oucrônicas, que são definidas pelo tipo de manifestaçãoneurológica, distribuição espacial das alteraçõesinflamatórias (sítio único, distribuição restrita oudisseminada), tipo de evolução clínica (monofásico,

progressivo, recorrente) e gravidade. A idade médiade acometimento é ao redor da quarta década devida (mais tardia do que o acometimento na EscleroseMúltipla, mais freqüente em torno da terceira década),porém a NMO também pode acometer crianças eidosos1,3. (Figura 1)

A forma recorrente da NMO somente foireconhecida ao final da década de 90 sendo, aindahoje, alvo de controvérsia, devido à dificuldade dediagnóstico diferencial com a Esclerose Múltipla (EM)a mais freqüente DDII que caracteristicamente evoluicom surtos e remissões 2,3,4.

O diagnóstico destas síndromes é clínico,apóia-se no estudo do Líquido Cefalorraquidiano(LCR), RM e Potenciais Evocados Visuais, só sendofeito após a exclusão de doenças que afetamsecundariamente a mielina 2,3. Na classificação dessegrupo de doenças a NMO recorrente passou a serincluída entre as formas recorrentes, segundoWingerchuk e Weinshenker, 2008.

Page 3: Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão

17

Revista Científica da FMC. Vol. 5, nº 1, 2010 [Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão dos Critérios Diagnósticos]Neri V.C et al.

A classificação mais atualizada indica commais precisão a distribuição espacial das lesões(nervo óptico, medula espinhal, cérebro) e utiliza aterminologia focal, multifocal e difusa, além de citaros diferentes cursos clínicos monofásico, recorrentee progressivo. É incluída a pesquisa do anticorpoIgG NMO para o apoio laboratorial ao diagnóstico daNMO e síndromes associadas (Neurite Ópticarecorrente e Mielite Transversa recorrente)2,3,4.

A NMO está incluída entre as síndromesdesmielinizantes de distribuição restrita. Caracteriza-se pela associação temporal de dois episódios,agudos ou subagudos, de Neurite Óptica (NO) uni oubilateral e Mielite Transversa (MT) completa ou parcial,

Fonte: Adaptado de KANTARCI e WEINSHENKER.Legenda: ADEM - acute disseminated encephalomyelitis; NMO - neuromielite óptica; NO - neurite óptica; MTA -mielite transvera; STC – síndrome do tronco cerebral; EDSS – Escala Expandida de Incapacidade .

evoluindo sem surtos subseqüentes (NOMmonofáscia) ou evoluindo com novos episódios,restritos ao nervo óptico e à medula espinhal -NMOrecorrente5,6,7.(Tabela 1)

A NMO consiste em um processo inflamatóriodesmielinizante cujos mecanismos resultam daseletividade dos ataques aos nervos ópticos e amedula espinhal e que só agora começam a sercompreendidos de forma mais elucidativa, emboraos mecanismos imunológicos ainda não sejaminteiramente conhecidos8. Evidências clínicas esorológicas da auto-imunidade associadas às célulasB têm sido observadas em pacientes com NMO, ondelesões desmielinizantes apresentam depósito

Figura 1. Espectro das Doenças Desmielinizantes Inflamatórias Idiopáticas, segundo Weinshenker, 2005.

Page 4: Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão

18

Revista Científica da FMC. Vol. 5, nº 1, 2010 [Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão dos Critérios Diagnósticos]Neri V.C et al.

perivascular de imunoglobulina,ativação local dacascata do complemento e infiltração eosinofílica,sugerindo a participação da imunidade humoral nasua patogenia 1,4,6,7.

Por ser a NMO uma entidade nosológicaconsiderada distinta da EM, com grande prevalênciaem nosso país, objetivamos esse estudo de caso comTabela 1- Classificação das Doenças Desmielinizantes Inflamatórias Idiopáticas do SNC segundo WINGERCHUKe WEINSHENKER, 2008 (Clínica Mayo).

revisão dos critérios diagnósticos atualizados, sendorealizado no Hospital da Lagoa/RJ, centro de referêncianacional no estudo das enfermidades desmielinizantese que possui atualmente uma das maiores coortes9 domundo referente a esse grupo de doenças.

Doenças

LesõesPseudotumorais

Marburg

Balo

NMO

NO recorrente

MT recorrente

EM RR

EMPP

Diagnóstico

Clínico, RM

Clínico, RM

Clínico, RM

Clínico, RM

Clínico, RM,IgG-NMO

Clínico, RMIgG-NMO

Clínico, RMIgG-NMO

Clínico, RM, LCR

Clínico, RM, LCR

ADEM

Distribuiçãoespacial

Focal,Cerebral

Multifocal,Cerebral

FocalMultifocalCerebralMultifocalDifuso,

Cerebral,ME, N. Óptico

N.Óptico, ME

N. Óptico

ME

CerebralN. Óptico, ME

ME, C

Gravidade

+ a +++

++++

++++

++ a +++

+++

++ a +++

+++

+ a +++

++

CursoClínico

M

M

M ou R

M ou O

80% R20% M

R

R

R,>60% PS

Progressiva doinício

Duração

Dias a semanas

Dias a semanas

Dias a semanas

Dias a semanas

Geralmente crônico

Crônico

Crônico

Crônico

Crônico

Seqüelas surto-relacionadas

Nenhuma a grave

Grave a morte

Moderada a morte

Leve a grave

Moderada a grave

Moderada

Moderada a grave

Nenhuma amoderada

N/A

Legenda: ADEM - acute disseminated encephalomyelitis; NMO - neuromielite óptica; NO - neurite óptica; MT -mielite transvera; EMRR - esclerose múltipla remitente recorrente; EMPP - esclerose múltipla progressiva primária;PS - progressiva secundária; RM - ressonância magnética; IgG-NMO - anticorpo; LCR - líquido cefalorraqueano;C - cerebral; ME - medula espinhal; N. Óptico - nervo óptico; M - monofásico; O - oligofásico; R - recorrente; N/A - não aplicável

Page 5: Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão

19

Revista Científica da FMC. Vol. 5, nº 1, 2010 [Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão dos Critérios Diagnósticos]Neri V.C et al.

RELATO DO CASOPaciente diabética, em uso de insulina regular,

afro-brasileira, apresentou em outubro de 1996, aos10 anos, queda da própria altura, não conseguindose levantar sem auxílio. À admissão, encontrava-separaplégica com reflexos ausentes, evoluindo 24horas após com tetraplegia flácida e insuficiênciarespiratória, necessitando de assistência ventilatóriaem unidade de terapia intensiva.

Após três meses obteve alta hospitalar; emoutubro de 1997, deambulava sem auxílio e nãoapresentava déficits motores. Em novembro de 1998apresentou perda visual bilateral, com remissãoespontânea em curto período de tempo. Em

dezembro de 1998 apresentou episódio semelhante,e realizou RM de crânio, que foi normal exceto porlesão em nervo óptico.

Em fevereiro de 1999, apresentou novoepisódio de paraplegia súbita. Novos surtos de neuriteóptica bilateral ocorreram em agosto e dezembro de1999, janeiro e fevereiro de 2000. Recebeu após ossurtos, tratamento com metilprednisolona (EV),obtendo melhora parcial.

Em nova avaliação, em 2005, aos 19 anos,apresentava marcha normal, alteração sensitivaimportante com nível medular em T9 e grave disfunçãovisual bilateral. Iniciou Acetato de Glatiramer, comotentativa de reduzir a incidência das crises e somente

Figura 2. Imagem 1 - RM de crânio (corte sagital) sem alterações, em 1996, no primeiro surto. Imagem 2 - Sinalhiperintenso em T2, não captantes de contraste da medula cervical a torácica (T10), em 1998. Imagem 3 –Estreitamento medular na região cervical. Imagem 4 - Sequência STIR (plano coronal) demonstrando lesão denervo óptico. Imagem 5 - Lesão desmielinizante subcortical na região frontal, após 10 anos de evolução dadoença.

Page 6: Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão

Revista Científica da FMC. Vol. 5, nº 1, 2010 [Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão dos Critérios Diagnósticos]Neri V.C et al.

20

em 2008 apresentou nova neurite óptica bilateral. Osexames indicaram LCR normal, RM de crânio commínimos focos em T2, não captantes, localizados nobulbo, e na substância branca subcortical de aspectoinespecífico; sinal hipertenso na seqüência STIR nonervo óptico bilateralmente; RM de coluna extensalesão em T2, não captante de contraste, da junçãobulbo-cervical até medula dorsal com afilamento.(Figura 2) Atualmente a paciente permanece comimportante déficit visual bilateral, mantendo nívelsensitivo, com mínima disfunção motora.

DISCUSSÃOEmbora a associação entre Neurite Óptica e

Mielite Aguda tenha sido referida em 1870 por CliffordAlbult no artigo “Sur les signes ophtalmoscopiques desmaladies de la moelle”, o marco da descrição de umanova síndrome grave e de evolução fatal afetando amedula espinhal e o nervo óptico ocorreu com apublicação de Eugene Devic durante o Congressode Medicina Interna de Lyon, em 189410.

“... a paciente havia sido internada no Hospital Hotel Dieu de Lyon, em 21 de dezembrode 1892. Tratava-se de uma mulher francesa de 45 anos de idade, queixando-se decefaléia e depressão, associada à fraqueza generalizada. Em 30 de janeiro do anoseguinte instalou-se retenção urinária associada à monoparesia crural, à direita,com conservação do reflexo tendinoso. Não existia alteração pupilar, porém afundoscopia demonstrava edema papilar bilateral pronunciado. O membro inferioresquerdo foi afetado quatro dias após, quando os reflexos tendinosos desapareceramao mesmo tempo em que todas as modalidades de sensibilidade se mostraramprofundamente alteradas. A progressão das manifestações sensitivas e motoras foirápida e em 6 de fevereiro foi constatada paralisia total dos membros inferiores. Em8 de fevereiro foram observadas hemorragias retinianas e o desaparecimento quasetotal do reflexo fotomotor. Em 16 fevereiro a visão consideravelmente diminuiu, aspupilas permaneciam dilatadas e no exame fundoscópico mantinha-se o edemapapilar com hemorragias retinianas. Em 27 fevereiro a paciente ficou completamentecega. Desenvolveu uma extensa escara sacra, febre alta, indo a óbito em 4 demarço. O resultado da autópsia não revelou nenhuma particularidade fora do sistemanervoso. Na cavidade craniana o córtex estava intacto e os nervos ópticos maisvolumosos que o normal. A medula e meninges mostravam certo grau de hiperemia.Ao nível dorso lombar havia uma ligeira diminuição da consistência da substânciamedular e ao corte desta região notava-se uma coloração cinza que não eraencontrada em nenhuma outra região. O exame do material fresco deste segmentopermitia encontrar corpos granulosos, glóbulos vermelhos e granulações gordurosaslivres. Após coloração com carmim e hematoxilina foram constatadas lesõesinflamatórias e destrutivas. O estudo dos nervos ópticos mostrou o desaparecimentoquase completo da bainha de mielina que se apresentava fragmentada. Uma biopsiado nervo ciático foi normal... ”

Descrição original feita por Eugene Devic do primeiro caso relatado de Neuromielite Óptica (Myelite subaiguecompliquée de nevrite optique; Lyon, 1894)10

Page 7: Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão

Revista Científica da FMC. Vol. 5, nº 1, 2010 [Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão dos Critérios Diagnósticos]Neri V.C et al.

21

Eugene Devic e Fernand Gault foram osprimeiros neurologistas a sugerirem critérios dediagnóstico para a nova síndrome por eles descrita,em 1894, que denominaram de “neuromyélite opticaaigue”, onde incluíam a identificação de neuriteretrobulbar ou papilite acompanhada de mielite aguda,associadas, ocasionalmente, a outros sintomasneurológicos não restritos à medula espinhal e aosnervos ópticos10.

Na segunda metade do século XX, diferentesdefinições de NMO, utilizadas na prática neurológicae na seleção de pacientes para estudos clínicos,referiam-se a uma condição aguda12 ou subaguda1

associando, simultaneamente ou sucessivamente, osdois eventos: NO e MT, de curso monofásico, emcontraposição à EM, enfermidade caracterizada porcurso recorrente13. Somente a partir de 1996 foi aceitaa NMO de evolução recorrente como uma novacondição inflamatória desmielinizante, idiopática, dedistribuição restrita ao nervo óptico e medula espinhal,

porém evoluindo com curso recorrente, passando aser descrita em estudos de séries 2,4,6,7.

Wingerchunk et al, em 1999, apresentaramuma proposta de critérios de diagnóstico para NMO,pela primeira vez utilizando dados clínicos e deexames complementares para diferenciar estasíndrome da EM (Tabela 2). Os três critérios clínicosabsolutos incluíam neurite óptica, mielite transversae ausência de evidência clínica de lesão situada forado nervo óptico ou medula espinhal. Os critérios desuporte maior referiam-se aos achados deneuroimagem (RM de crânio normal no inicio dadoença e RM de medula espinhal indicando grandeslesões, maiores do que três segmentos vertebrais)e LCR 8,11 (realizado na fase aguda do surto, compleocitose maior do que 50 células/mm3). Os critériosde suporte menor valorizavam aspectos clínicosreferentes à morbidade da doença (seqüela motora,seqüela visual pelo menos em um dos olhos, eneurite óptica bilateral) 2,6.

Tabela 2. Critérios Diagnósticos de NMO – Clínica Mayo (Wingerchuk et al., 1999)

Critérios Absolutos1. Neurite óptica2. Mielite aguda3. Nenhuma evidência clínica de doença fora do nervo óptico e da medula espinhal

Critérios de Suporte

Maiores1.RM cerebral negativa no início (que não preencham os critérios I / 11 de Patyet al.)2.RM da medula espinhal com anormalidades de sinais estendendo-se a mais do que 3segmentos vertebrais3.Pleocitose no LCR maior que 50 cels/mm³ ou mais que 5 neutrófilos/mm³

Menores1.Neurite óptica bilateral2.Grave neurite óptica com perda fixa de acuidade visual maior do que 20/200 pelo menos em1 olho.3.Grave, mantido, déficit motor relacionado ao surto (MRC grau; 2) em 1 ou mais membros.

Page 8: Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão

Revista Científica da FMC. Vol. 5, nº 1, 2010 [Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão dos Critérios Diagnósticos]Neri V.C et al.

22

Em estudo recente, Wingerchuk et al, 2006,propuseram uma revisão dos critérios de NMOpropostos em 1999, no qual incluíram pela primeiravez para as doenças desmielinizantes inflamatórias,como um dos critérios de suporte, o marcadorbiológico denominado IgG-NMO2,7. Nessaproposta, o diagnóstico de NMO é definido pordois critérios absolutos e dois entre três critériosde suporte (Tabela 3). Foi retirada aobrigatoriedade de ausência de lesão fora donervo óptico e da medula espinhal, porque estudos

Tabela 3. Critérios Definidos de NMO – Clínica Mayo (Wingerchuk et al., 2006)

de RM de crânio realizados em uma série de casosconfirmados para NMO, soropositivos para IgG-NMO,demonstraram em um pequeno número aocorrência de lesões inflamatórias no cérebro6,7.Portanto, no conceito mais recente, NMO definidaseria clinicamente diagnosticada em pacientes compelo menos dois eventos agudos, neurite agudae mielite, e o apoio laboratorial seria dado pelaidentificação de dois dos três critérios: RM decrânio normal, RM de coluna vertebral com lesãoextensa e positividade do IgG-NMO 2,6,7.

Critérios Absolutos1. Neurite óptica2. Mielite aguda

Critérios de Suporte1.RM cerebral não sugestiva de EM2.RM da medula espinhal com anormalidades de sinais estendendo-se a mais doque 3 segmentos vertebrais3.Positividade para o anticorpo IgG NMO

Recentes estudos demonstraram apresença de um auto-anticorpo (IgG1) que se ligaà aquaporina-4 (AQP4) e que tem sido encontradoem alta freqüência no soro de pacientes com NMO(75% dos casos)7. AQP4 é uma importante proteínatransmembrana para a função do SNC, que regulao fluxo de água em células específicas do cérebroe interfaces com vasos sanguíneos dentro dapiamater e ao redor dos ventrículos; AQP4 é o canalde água predominante no cérebro de humanos eroedores 14,15. Esta proteína é expressa emastrócitos do neocórtex, hipocampo, cerebelo evárias estruturas em torno dos ventrículosencefálicos, assim como em subpopulação decélulas ependimárias associadas com a pia-mátere órgão subfornical, mas não no plexo coróide. Adistribuição da AQP4 é compartimentalizada, com

alta expressão nas membranas dos pés terminaisdos astrócitos e baixa expressão nas membranasem contato com seu corpo. AQP4 também éexpressa na papila do nervo óptico, que não émielinizada 15,17. Em humanos, a expressão dessaproteína no cérebro, medula espinhal e nervoóptico está associada com a membrana dosastrócitos que intimamente se justapõe à membranabasal da célula endotel ial. É notório que osastrócitos interagem extensivamente com ascélulas endoteliais para manter a integridade dabarreira hematoencefálica, que normalmente limitao acesso de efetores do sistema imune ao SNC.Depósitos de complemento, IgM e IgG sãoencontrados em padrão vasculocêntrico queespelha o padrão de expressão da AQP4 emsubstância branca aparentemente normal16,18,19.

Page 9: Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão

Revista Científica da FMC. Vol. 5, nº 1, 2010 [Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão dos Critérios Diagnósticos]Neri V.C et al.

23

CONCLUSÃOO caso relatado, além do início precoce, na

infância, e dos múltiplos surtos (caracterizando oaspecto recorrente da doença), mesmo com o usode metilprednisolona, mostra além do cursoprogressivo, um pior prognóstico, sobretudo emrelação à EM, outra doença desmielinizante idiopática,muitas vezes confundida com a NMO. Como naprimeira descrição feita por Devic este caso tambémse apresenta por surtos recorrentes de neurite,intercalados por mielites recorrentes, que resultaramem seqüela visual permanente.

Outra particularidade é a presença de umapatologia auto-imune prévia, o diabetes insulino-dependente, associação já descrita por outros autores,

que ressaltam a prevalência de endocrinopatias edoenças auto-imunes como lúpus eritematososistêmico e síndrome de Sjögren sobretudo emAfrocaribeus, diferentemente do caso relatado, que serefere a uma paciente brasileira e Afro-descendente20,21. Esse caso também se torna particular por teracometido uma criança de 10 anos, fato pouco comumpara esse grupo de doenças, em vista de ser maisprevalente em mulheres, na quarta década, geralmenteafro-descendentes. E o diagnóstico correto, baseadonos critérios de Wingerchuk 199922, permitiu a instituiçãoprecoce da terapêutica 23,24,25 e o acompanhamento porcentro de referência no tratamento de doençasdesmielinizantes, fato essencial para o controle clínicodessa enfermidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASAdams RD, Victor M. Adams and Victor‘sPrinciples of Neurology. 9a ed, 2009.Wingerchuk DM, Lennon VA, Pittock SJ,Lucchinetti CF, Weinshenker BG. Reviseddiagnostic criteria for neuromyelitis optica.Neurology 2006; 66(10):1485-9.Wingerchuk DM, Weinshenker BG. Unusualpresentations and variants of central nervoussystem idiopathic demyelinating diseases. In:RAINE, C.S.; MCFARLAND H.F.; HOHLFELD R.Multiple Sclerosis. A comprehensive text.Saunders: Elsevier; 2008. p. 24-42.O’Riordan JI, Gallagher HL, Thompson AJ,Howard RS, Kingsley DPE, Thompson EJ,McDonald WI, Miller DH. Clinical,CSF, and MRIfindings in Devic’s neuromyelitis optica. J NeurolNeurossurg Psychiatry 1996; 60: 382-387.Wingerchuk DM, Hogancamp WF, O’Brien PC,Peter C. Weinshenker, BG. The clinical courseof neuromyelitis optica (Devic’ssyndrome).Neurology1999; 53:1107-1114.Wingerchuk DM, Lennon VA, Lucchinette CF,Pittock SJ, Weinshenker BG. The spectrum ofneuromyelitis optica.The Lancet Neurol 2007; 6(9):805-15.Lennon VA, Wingerchuk DWM, Kryzer TJ, PittockSJ, Luchinnette C, Fujihara K, Nakashima I,Weinshenker BG. A serum autoantibody marker

of neuromyelitis optica: distinction from multiplesclerosis. Lancet 2004; 364: 2106-12.Zaffaroni M. Cerebrospinal fluid findings inDevic’s neuromyelitis optica. Italian Devic’sStudy Group Neurol Sci 2004; 25 (S4): S380-2.Papais-Alvarenga RM, Miranda-Santos CM,Puccioni-Sohler M, de Almeida AMV, OliveiraS, Oliveira CAB, et al. Optic neuromyelitis inbrazilian patients. J Neurol Neurosurg Psychiatry2002; 73:429-435.Devic E. Myelite subaigue compliquee de nevriteoptique. Bull Med 1894; 8: 1033-4.Uzawa A, Mori M, Ito M, Uchida T, Hayakawa S,Masuda S, Kuwabara S. Markedly increased CSFinterleukin-6 levels in neuromyelitis óptica, but notin multiple sclerosis. J Neurol 2009, 8(5): 2082-2084.Cloys DE, Netsky MG. Neuromyelitis optica. In:Handbook of Neurology. Eds. Vinken PJ, BruynGW. Amsterdam: North Holland; 1970.Shibasaki H, Mcdonald WI, Kuroiwa Y. Racialmodification of clinical picture of Multiple Sclerosis:comparison between british and japanese patients.J Neurol Sci 1981; 49:253-271.Agre P, King LS, Yasui M, Guggino WB; Ottersen,OP; Fujioshi, Y; Eengel, A.; Nielsen, S. Aquaporinwater channels - from anatomic structure to clinicalmedicine. J Psysiol 2002; 542:3-16.Nielsen S, King LS, Christensen BM, Agre P.Aquaporins in complex tissues. Subcellular

1.2.

3.

4.

5.

6.

7.

8.

9.

10.11.

12.

13.

14.

15.

Page 10: Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão

Lucchinett CF. Pattern-specific loss of aquaporin-4immunoreactivity distinguishes neuromyelitisoptica from multiple sclerosis. Brain2007;130:1194-205.Sinclair C, Kirk J, Herron B, Fitzgerald U, McquaidS. Absence of aquaporin-4 expression in lesionsof neuromyelitis optica but increased expressionin multiple sclerosis lesions and normal-appearingwhite matter. Acta Neuropathol 2007; 113:187-194.Pittock Sean J, et al Neuromyelitis Optica andNon Organ-Specific Autoimmunity Arch Neurol2008; 65 (1):78-83.De Seze J. Neuromyelitis optica. Arch Neurol2003; 60: 1336–8.Mandler RN. Neuromyelitis optica devic’ssyndrome, update. Autoimmunity Rev. 2006;5(8):537-43. Epub 2006 Mar 21.Michael V. Johnston Robert A. Gross. Principlesof Drug Therapy in Neurology. Second edition.Pp 265-268. 2008.Wingerchuk D M. Devic’s Disease (NeuromyelitisOptica), Department of Neurology. Mayo Clinic,Scottsdale, AZ, 2001.

Revista Científica da FMC. Vol. 5, nº 1, 2010 [Neuromielite Óptica (Doença de Devic): Relato de Caso e Revisão dos Critérios Diagnósticos]Neri V.C et al.

16.

17.

18.

19.

20.

21.

22.23.

24.

25.

distribution in respiratory and glandular tissuesof rat. Am J Physiol 1997; 273:1549-1561.Miranda de Sousa A, Puccioni-Sohler M, DiasBorges A, Fernandes Adorno L, PapaisA l va renga M , Papa i s -A l va renga RM.P o s t - d e n g u e neuromyelitis optica: casereport of a Japanese-descendent Brazilian child.J Infect Chemother 2006; 12:396-398.Nagelhus EA, Veruki ML, Torp R, Haug FM,Laake JH, Nielsen S, Agre P, Ottersen OP.Aquaporin-4 water channel protein in the rat retinaand optic nerve: polarized expression in Müllercells and fibrous astrocytes. J Neurosci 1998;18:2506-2519.Lucchinett CF, Mandler RN, Mcgavern D, BruckW, Gleich G, Ransohoff RM, Trebst C,Weinshenker B, Wingerchuk D, Parisi JE,Lassmann H. A role for humoral mechanisms inthe pathogenesis of Devic’s neuromyelitisoptica. Brain 2002; 125:1450-1461.Roemer SF, Parisi JE, Lennon VA, BenarrochEE, Lassmann H, Bruck W, Mandler RN,Weinshenker BG, Pittock SJ, Wingerchuk DM,