273

Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian

Nietzsche

Clademir Luis AraldiJorge L Viesenteiner

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia(Orgs)

ANPOF - Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

Diretoria 2019-2020Adriano Correia Silva (UFG)Antocircnio Edmilson Paschoal (UFPR) Suzana de Castro (UFRJ) Franciele Bete Petry (UFSC)Patriacutecia Del Nero Velasco (UFABC)Agnaldo Portugal (UNB)Luiz Felipe Sahd (UFC) Vilmar Debona (UFSM) Jorge Viesenteiner (UFES) Eder Soares Santos (UEL)

Diretoria 2017-2018 Adriano Correia Silva (UFG)Antocircnio Edmilson Paschoal (UFPR) Suzana de Castro (UFRJ) Agnaldo Portugal (UNB)Noeacuteli Ramme (UERJ) Luiz Felipe Sahd (UFC) Cintia Vieira da Silva (UFOP) Monica Layola Stival (UFSCAR)Jorge Viesenteiner (UFES) Eder Soares Santos (UEL)

Diretoria 2015-2016 Marcelo Carvalho (UNIFESP) Adriano N Brito (UNISINOS) Alberto Ribeiro Gonccedilalves de Barros (USP) Antocircnio Carlos dos Santos (UFS) Andreacute da Silva Porto (UFG) Ernani Pinheiro Chaves (UFPA) Maria Isabel de Magalhatildees Papaterra Limongi (UPFR) Marcelo Pimenta Marques (UFMG) Edgar da Rocha Marques (UERJ)Lia Levy (UFRGS)

Diretoria 2013-2014Marcelo Carvalho (UNIFESP)Adriano N Brito (UNISINOS)Ethel Rocha (UFRJ)Gabriel Pancera (UFMG)Heacutelder Carvalho (UFPI)Lia Levy (UFRGS)Eacuterico Andrade (UFPE)Delamar V Dutra (UFSC)

Diretoria 2011-2012Vinicius de Figueiredo (UFPR)Edgar da Rocha Marques (UFRJ)Telma de Souza Birchal (UFMG)Bento Prado de Almeida Neto (UFSCAR)Maria Aparecida de Paiva Montenegro (UFC)Darlei DallrsquoAgnol (UFSC)Daniel Omar Perez (PUCPR)Marcelo de Carvalho (UNIFESP)

Produccedilatildeo Antonio Florentino Neto

Editor da coleccedilatildeo ANPOF XVIII EncontroJorge Luiz Viesenteiner

Diagramaccedilatildeo e produccedilatildeo graacuteficaEditora Phi

Capa Adriano de Andrade

Comitecirc Cientiacutefico Coordenadoras e Coordenadores de GTs e de Programas de Poacutes-graduaccedilatildeo

Admar Almeida da Costa (UFRRJ)Adriano Correia Silva (UFG)Affonso Henrique V da Costa (UFRRJ)Agemir Bavaresco (PUCRS)Aldo Dinucci (UFS)Alessandro B Duarte (UFRRJ)Alessandro Rodrigues Pimenta (UFT)Alfredo Storck (UFRGS)Amaro de Oliveira Fleck (UFMG)Ana Rieger Schmidt (UFRGS)Andreacute Cressoni (UFG)Andreacute Leclerc (UnB)Antonio Carlos dos Santos (UFS)Antonio Edmilson Paschoal (UFPR)Antonio Glaudenir Brasil Maia (UVA)Araceli Rosich Soares Velloso (UFG)Arthur Arauacutejo (UFES)Bartolomeu Leite da Silva (UFPB)Bento Prado Neto (UFSCAR)Breno Ricardo (UFMT)Cecilia Cintra C de Macedo (UNIFESP)Celso Braida (UFSC)Cesar Augusto Battisti (UNIOESE)Christian Hamm (UFSM)Christian Lindberg (UFS)Cicero Cunha Bezerra (UFS)Clademir Luis Araldi (UFPEL)Claudemir Roque Tossato (UNIFESP)Claudinei Freitas da Silva (UNIOESTE)Claacuteudio R C Leivas (UFPEL)Cloacutevis Brondani (UFFS)Cristiane N Abbud Ayoub (UFABC)Cristiano Perius (UEM)Cristina Foroni (UFPR)Cristina Viana Meireles (UFAL)Daniel Omar Perez (UNICAMP)Daniel Pansarelli (UFABC)Daniel Peres Coutinho (UFBA)

Dirce Eleonora Nigro Solis (UERJ)Eder Soares Santos (UEL)Eduardo Aniacutebal Pellejero (UFRN)Emanuel Acirc da Rocha Fragoso (UECE)Enoque Feitosa Sobreira Filho (UFPB)Ester M Dreher Heuser (UNIOESTE)Evaldo Becker (UFS)Evaldo Sampaio (UnBMetafiacutesica)Faacutetima Eacutevora (UNICAMP)Fernando Meireles M Henriques (UFAL)Filipe Campello (UFPE)Flamarion Caldeira Ramos (UFABC)Floriano Jonas Cesar (USJT)Franciele Bete Petry (UFSC)Francisco Valdeacuterio (UEMA)Georgia Amitrano (UFU)Gisele Amaral (UFRN)Guido Imaguire (UFRJ)Gustavo Silvano Batista (UFPI)Helder Buenos A de Carvalho (UFPI)Henrique Cairus (UFRJ)Hugo F de Arauacutejo (UFC)Jacira de Freitas (UNIFESP)Jadir Antunes (UNIOESTE)Jelson Oliveira (PUCPR)Joatildeo Carlos Salles (UFBA)Jorge Alberto Molina (UERGS)Joseacute Lourenccedilo (UFSM)Juacutelia Sichieri Moura (UFSC)Juvenal Savian Filho (UNIFESP)Leonardo Alves Vieira (UFMG)Liacutevia Guimaratildees (UFMG)Luciano Carlos Utteiche (UNIOESTE)Luciano Donizetti (UFJF)Ludovic Soutif (PUCRJ)Luiacutes Ceacutesar G Oliva (USP)Luiz Carlos Bombassaro (UFRGS)Luiz Rohden (UNISINOS)Manoel Vasconcellos (UFPEL)Marcela F de Oliveira (PUCRJ)Marcelo Esteban Coniglio (UNICAMP)

Maacutercia Zebina Arauacutejo da Silva (UFG)Maacutercio Custoacutedio (UNICAMP)Marco Antonio Azevedo (UNISINOS)Marcos H da Silva Rosa (UERJ)Maria Ceciacutelia Pedreira de Almeida (UnB)Maria Cristina de Taacutevora Sparano (UFPI)Maria Cristina Muumlller (UEL)Marina Velasco (UFRJPPGLM)Mariana Claacuteudia Broens (UNESP)Mariana de Toledo Barbosa (UFF)Maacuterio Nogueira de Oliveira (UFOP)Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA)Max R Vicentini (UEM)Michela Bordignon (UFABC)Milton Meira do Nascimento (USP)Nathalie Bressiani (UFABC)Nilo Ceacutesar B Silva (UFCA)Nilo Ribeiro (FAJE)Patriacutecia Coradim Sita (UEM)Patriacutecia Kauark (UFMG)Patrick Pessoa (UFF)Paulo Afonso de Arauacutejo (UFJF)Pedro Duarte de Andrade (PUCRJ)Pedro Leatildeo da Costa Neto (UTP)Pedro Paulo da Costa Corocirca (UFPA)Peter Paacutel Peacutelbart (PUCSP)Rafael de Almeida Padial (UNICAMP)Renato Moscateli (UFG)Ricardo Bazilio Dalla Vecchia (UFG)Ricardo Pereira de Melo (UFMS)Roberto Horaacutecio de Saacute Pereira (UFRJ)Roberto Wu (UFSC)Rodrigo Guimaratildees Nunes (PUCRJ)Rodrigo Ribeiro Alves Neto (UNIRIO)Samir Haddad (UNIRIO)Sandro M Moura de Sena (UFPE)Sertoacuterio de A Silva Neto (UFU)Silvana de Souza Ramos (USP)Sofia Inecircs A Stein (UNISINOS)Socircnia Campaner (PUCSP)Tadeu Verza (UFMG)

Tiegue Vieira Rodrigues (UFSM)Viviane M Pereira (UECE)Vivianne de Castilho Moreira (UFPR)Waldomiro Joseacute da Silva Filho (UFBA)

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)Bibliotecaacuteria Juliana Farias Motta CRB75880

N677 Nietzsche Organizaccedilatildeo Clademir Luis Araldi Jorge L Viesenteiner

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia -- Satildeo Paulo ANPOF 2019

273 p ISBN 978-85-88072-87-9 Nietzsche Friedrich Wilhelm 1844-19002Filosofia alematildeI

Viesenteriner JLIIII Vecchia RDIII Tiacutetulo

CDD 193 Iacutendice para cataacutelogo sistemaacutetico

1 Nietzsche Friedrich Wilhelm 1844-19002 Filosofia alematilde

Apresentaccedilatildeo da Coleccedilatildeo do XVIII Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF

O XVIII Encontro Nacional da ANPOF foi realizado em outubro de 2018 na Universidade Federal do Espiacuterito Santo (UFES) em VitoacuteriaES e contou com mais de 2 mil participantes com suas respectivas apresentaccedilotildees de pesquisa tanto nos Grupos de Trabalho da ANPOF quanto em Sessotildees Temaacuteticas Em acreacutescimo o evento tambeacutem incluiu conjuntamente o IV Encontro Nacional ANPOF Ensino Meacutedio sob coordenaccedilatildeo do Prof Dr Christian Lindberg (UFS) cujos esforccedilos natildeo apenas amplia mas tambeacutem inclui os debates e pesquisas vinculados agrave aacuterea do Ensino de Filosofia tanto de professores vinculados ao Ensino de Filosofia quanto tambeacutem de professores e estudantes do Mestrado Profissional em Filosofia o PROF-FILO

A ANPOF publica desde 2013 os trabalhos apresentados sob a forma de livro com o intuito natildeo apenas de tornar puacuteblicas as pesquisas de estudantes e professores mas tambeacutem de fomentar o debate filosoacutefico da aacuterea especialmente por ser uma ocasiatildeo de congregar uma significativa presenccedila de colegas do Brasil inteiro interconectando pesquisas e regiotildees que nem sempre estatildeo em contato Assim a Coleccedilatildeo ANPOF sintetiza o estado da pesquisa filosoacutefica naquele determinado momento reunindo pesquisas apresentadas em Grupos de Trabalho e Sessotildees Temaacuteticas O total de textos submetidos avaliados e aprovados agrave publicaccedilatildeo na atual Coleccedilatildeo ANPOF do XVIII Encontro conta com mais de 650 artigos da comunidade em geral

Eacute importante registrar nesta ldquoApresentaccedilatildeordquo a dinacircmica utilizada no processo de organizaccedilatildeo dos 22 volumes que satildeo agora publicados cuja concepccedilatildeo geral consistiu em estruturar o processo da maneira mais amplamente colegiada possiacutevel envolvendo no processo de avaliaccedilatildeo dos textos submetidos todas as coordenaccedilotildees dos Grupos de Trabalho e dos Programas de Poacutes-graduaccedilatildeo (PPGs) em Filosofia bem como uma comissatildeo de avaliaccedilatildeo especiacutefica para os trabalhos que natildeo foram avaliados por algumas coordenaccedilotildees de PPGs Em termos praacuteticos o processo seguiu trecircs etapas 1 cada pesquisador(a) teve um periacuteodo para submissatildeo dos seus trabalhos 2 Periacuteodo de avaliaccedilatildeo adequaccedilatildeo e reavaliaccedilatildeo dos textos por parte das coordenaccedilotildees de GTs e PPGs 3 Editoraccedilatildeo dos textos aprovados pelas coordenaccedilotildees de GT e PPGs

Nessa atual ediccedilatildeo da Coleccedilatildeo ANPOF figuraram na co-organizaccedilatildeo dos volumes natildeo apenas as coordenaccedilotildees de GTs mas tambeacutem de PPGs que estiveram diretamente envolvidos no processo na medida em que ambas as coordenaccedilotildees realizaram as atividades de avaliaccedilatildeo e seleccedilatildeo dos textos desde as inscriccedilotildees ao evento ateacute avaliaccedilatildeo final dos textos submetidos agrave publicaccedilatildeo exercendo os mesmos papeacuteis na estruturaccedilatildeo da atividades Nessa medida a Coleccedilatildeo ANPOF conta com o envolvimento quase integral das coordenaccedilotildees exprimindo justamente a concepccedilatildeo colegiada na organizaccedilatildeo ndash seja diretamente na organizaccedilatildeo dos volumes seja sob a forma de comitecirc cientiacutefico ndash de modo que os envolvidos figuram igualmente como co-organizadores(as) da Coleccedilatildeo cujo ganho eacute sem duacutevida em transparecircncia e em engajamento com as atividades O trabalho de organizaccedilatildeo da Coleccedilatildeo portanto seria impossiacutevel sem o envolvimento das coordenaccedilotildees

Reiteramos nossos os agradecimentos pelos esforccedilos da comunidade acadecircmica tanto no sentido da publicaccedilatildeo das pesquisas em filosofia que satildeo realizadas atualmente no Brasil quanto pela conjugaccedilatildeo de esforccedilos para que apesar do gigantesco trabalho realizarmos da maneira mais colegiada possiacutevel nossas atividades

Boa leituraDiretoria ANPOF

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo do GT Nietzsche 14

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como efeito da depauperaccedilatildeo da cultura moderna 15

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave accedilatildeo mediante a consciecircncia Bewusstsein e a consciecircncia moral Gewissen 21

Adilson Felicio Feiler

O cristianismo face agrave criacutetica nietzschiana Pressupostos para um diaacutelogo filosoacutefico 31Adriano Geraldo da Silva

Da genealogia da teoria do crime no direito penal brasileiro Uma criacutetica ao livre - arbiacutetrio a partir de Nietzsche e a neurociecircncia 37

Alianna Caroline Sousa Cardoso

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem a partir do paradigma imunitaacuterio 57

Angela Couto Machado FonsecaDhyego Cacircmara Arauacutejo

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche 67Caius Brandatildeo

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche 75Ceacutelia Machado Benvenho

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3 83Eder David de Freitas Melo

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent 89Estevatildeo Bocalon

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise sobre a criacutetica de Nietzsche em humano demasiado humano 96

Gracy Kelly Bourscheid

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch ndash Arte Filosofia e Ciecircncia na obra nietzschiana 105

Guilherme Freire da Costa

Para que sofrer Acerca do problema do sentido do sofrimento 115Hailton Felipe Guiomarino

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche O uacuteltimo homem e o aleacutem-do-homem 123

Isabella Vivianny Santana Heinen

O Poder do Riso em Nietzsche 132Ivan Risafi de Pontes

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo Uma reflexatildeo sobre a intoleracircncia religiosa radical a partir da Genealogia da Moral 142

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche 151Joseacute Nicolao Juliatildeo

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre a consciecircncia [Bewuszligtsein] 159Laura Elizia Haubert

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida em Nietzsche e Rosset 167Leonardo Arauacutejo Oliveira

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche e seus desdobramentos eacutetico-esteacuteticos 173

Luiza Fonseca Regattieri

A danccedila aleacutem do bem e do mal 179Maria Helena Lisboa da Cunha

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees de sujeito transcendental e de coisa em si no primeiro capiacutetulo de Humano demasiado humano I 186

Marina Gomes de Oliveira

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface entre Nietzsche e Freud 196

Michaella Carla Laurindo

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as influecircncias de Paul Reacutee 205

Neomar Sandro Mignoni

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος) 214Newton Pereira Amusquivar Junior

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees desinteressadas em Nietzsche 222Rafael dos Santos Ramos

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica de Nietzsche ao cristianismo 230Rafael Gonccedilalves da Silveira

Genealogia O chatildeo proacuteprio de Nietzsche 241Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias no projeto cultural de Nietzsche durante a deacutecada de 1870 251

Ricardo de Oliveira Toledo

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno retorno O resgate da inocecircncia do vir-a-ser 260

Roberta Franco Saavedra

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista de Nietzsche a partir do conceito de autossupressatildeo 267

Wilson Luciano Onofri

14

Apresentaccedilatildeo do GT Nietzsche

Fundado em 1998 o GT Nietzsche tem como objetivo geral reunir pesquisadores de diversos estados e diferentes instituiccedilotildees para promover um maior intercacircmbio filosoacutefico e discussotildees contiacutenuas e sistemaacuteticas acerca das pesquisas de seus membros Assim o GT Nietzsche cria um espaccedilo para que os pesquisadores de Nietzsche possam discutir suas linhas de pesquisa da criacutetica corrosiva dos valores agrave filosofia positiva da trama conceitual agrave inserccedilatildeo na histoacuteria da filosofia da pesquisa de suas fontes e influecircncias agrave investigaccedilatildeo de sua contribuiccedilatildeo e articulaccedilatildeo com questotildees da atualidade os membros do GT Nietzsche a partir de diversas perspectivas tecircm a oportunidade de por agrave prova suas hipoacuteteses de trabalho

O GT Nietzsche edita semestralmente desde 2010 a revista Estudos Nietzsche (ISSN 2179-3441) Qualis B1 Estudos Nietzsche eacute uma publicaccedilatildeo semestral do GT Nietzsche da ANPOF em parceria com a Universidade Federal do Espiacuterito Santo (UFES) Os editores satildeo Prof Dr Ernani Chaves e Antocircnio Edmilson Paschoal membros do GT Nietzsche A proposta da revista estaacute articulada agraves metas que levaram a criaccedilatildeo do GT Nietzsche a saber incentivar a investigaccedilatildeo e o debate sobre os temas relevantes do pensamento de Nietzsche em ligaccedilatildeo com questotildees da atualidade

Desde 2007 o GT Nietzsche realiza reuniotildees regulares nos anos de interluacutedio dos Encontros da ANPOF Foram organizadas ediccedilotildees dos Encontros do GT Nietzsche nos anos iacutempares na UNIOESTE (ToledoPR) na PUCPR (CuritibaPR) na PUCCamp (CampinasSP) na UFOP (Ouro PretoMG) na UNIFESP (GuarulhosSP) e na UFPel (PelotasRS)

As principais atividades do GT Nietzsche ocorrem nas Reuniotildees Cientiacuteficas dos Encontros Nacionais da ANPOF nos anos pares A uacuteltima Reuniatildeo ocorreu em 2018 no XVIII Encontro Nacional da ANPOF em VitoacuteriaES Nos dias 23 24 e 25 de outubro de 2018 ocorreram apresentaccedilotildees de membros do GT Nietzsche e de doutorandos e doutores brasileiros com pesquisas atuais sobre o pensamento de Nietzsche

O GT Nietzsche eacute constituiacutedo por dois nuacutecleos i) Nuacutecleo de Sustentaccedilatildeo (atualmente com 21 membros) e ii) Nuacutecleo de Apoio (atualmente com 7 membros) agregando participantes dos Programas de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia das cinco regiotildees brasileiras As informaccedilotildees sobre a estrutura e atividades do GT podem ser encontradas no site da ANPOF no link httpanpoforgportalindexphppt-BRgt-nietzsche

Clademir L Araldi (UFPel)

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa

15

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como efeito da depauperaccedilatildeo da cultura moderna

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa1

As conferecircncias de Nietzsche realizadas entre janeiro e marccedilo de 1872 no ldquoAkademisches Kunstmuseumrdquo da Basileacuteia demonstraram a conciliaccedilatildeo pelo filoacutesofo da beleza esteacutetica do seu pensamento com a sua habilidade pedagoacutegica o que tambeacutem lhe rendera admiradores durante o tempo em que ali lecionara Desta feita o presente trabalho pretende analisar as conferecircncias nietzschianas Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino a fim de constatar as principais consideraccedilotildees no tocante ao desenvolvimento do pensamento e da cultura Nietzsche no decorrer das cinco partes na qual se encontra dividida a obra ocupa-se da investigaccedilatildeo aos estabelecimentos de ensino o primaacuterio as escolas teacutecnicas o ginaacutesio e o ensino superior Sua tese parte do entendimento de que a cultura eacute uma determinaccedilatildeo da natureza e sendo assim jamais poderaacute ser compreendida como estando fora dela Eacute dentro dessa perspectiva que exporemos suas principais criacuteticas concernentes aos meacutetodos de ensino alematildees evidenciando no surgimento da vida moderna a condenaccedilatildeo dos princiacutepios dos mecanismos e dos resultados criados pelo processo de modernizaccedilatildeo pedagoacutegica realizado nas escolas alematildes do seacuteculo XIX Veremos ainda que de acordo com Nietzsche a decadecircncia da cultura e da educaccedilatildeo estaria justificada com base no aparecimento de duas correntes segundo ele (EE 2003 p 53) de graves consequecircncias pedagoacutegicas uma que defendia o alargamento da cultura e a outra que a reduziria a uma mera funccedilatildeo a serviccedilo do Estado

De iniacutecio vemos que a base das criacuteticas feitas pelo filoacutesofo alematildeo direcionadas agrave educaccedilatildeo e agrave cultura do seu tempo se devem agraves consideraccedilotildees sobre o mundo moderno Houve da parte dele fortes interpelos a um periacuteodo em que segundo ele estava tomado pelo otimismo vulgar gerado pela modernidade que levava a cultura e seus estabelecimentos de ensino ao empobrecimento e agrave depauperaccedilatildeo Como modo de cotejar o estilo de vida moderno Nietzsche chamou atenccedilatildeo para o sentido traacutegico da cultura grega enquanto modelo de vida capaz de reavivar a cultura alematilde uma vez que os antigos gregos possuiacuteam a forccedila [Kraft] suficiente para desempenhar uma necessaacuteria revitalizaccedilatildeo Aleacutem disso vale ressaltar a mediocridade e a barbaacuterie tiacutepicas dos valores modernos causando seacuterios efeitos na educaccedilatildeo pois tendia a manter nos estudantes a ignoracircncia dos temas filosoacuteficos relacionados ao sentido da existecircncia por nutrir somente valores da integraccedilatildeo e da conformidade Afinal o que mais se podia esperar da figura de eruditos ou seja de especialistas presos a um padratildeo de ensino voltado agrave submissatildeo O que esperar de homens adestrados a pensarem de acordo com as formas acadecircmicas que estimulavam apenas o oportunismo profissional

1 UNIOESTE

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como

16

A cultura moderna estava agrave mercecirc dos interesses da produccedilatildeo industrial logo tambeacutem se via presa a criteacuterios determinados pela economia e pelo Estado A divisatildeo do trabalho vista nas empresas tambeacutem refletia na divisatildeo do trabalho das ciecircncias (EE 2003 p 76) e por efeito na distribuiccedilatildeo das disciplinas acadecircmicas nos estabelecimentos de ensino da eacutepoca

Hoje em dia vemos a compartimentaccedilatildeo do saber as ciecircncias divididas em diferentes disciplinas ministradas com abordagens especiacuteficas Desta maneira a estreiteza vista na erudiccedilatildeo dos acadecircmicos inviabilizando uma compreensatildeo filosoacutefica capaz de analisar os diferentes acircngulos de um problema simplesmente reproduz um processo pedagoacutegico viacutetima da degradaccedilatildeo e da mediocrizaccedilatildeo do pensamento causada pela disseminaccedilatildeo da cultura jornaliacutestica nas instituiccedilotildees acadecircmicas quer dizer uma cultura que despreza a reflexatildeo filosoacutefica em favorecimento dos interesses do Estado e da economia

Sobre a cultura jornaliacutestica eacute importante destacar que aleacutem de Nietzsche outros pensadores tambeacutem estiveram empenhados a tecerem duras acusaccedilotildees por conta do seu alastramento Eacute o caso de Johann Wolfgang Von Goethe que em janeiro de 1824 escreveu uma carta ao secretaacuterio JP Eckermann lamentando os recursos da imprensa e como esta costumava disseminar a semicultura entre a massa levando-a ao embrutecimento das palavras e a mais completa ignoracircncia Nietzsche na intenccedilatildeo de combater o crescimento dessa mediocrizaccedilatildeo buscava ensinar a seus alunos a importacircncia da antiguidade claacutessica fazendo-os pensar a respeito dos dilemas da existecircncia humana e dessa forma apresentando a significativa contribuiccedilatildeo do saber filosoacutefico Assim as Conferecircncias sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino nos mostram a valorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo a serviccedilo dos jovens como forma de desenvolvimento e a correlaccedilatildeo entre a educaccedilatildeo [Erziehung] a formaccedilatildeo [Bildung] e a cultura [Kultur]

Nietzsche teve como foco a investigaccedilatildeo dos estabelecimentos de ensino primaacuterio teacutecnico ginasial e universitaacuterio na Alemanha do seacuteculo XIX Vemos que a denuacutencia feita pelo filoacutesofo alematildeo parte das consequecircncias de um amplo processo histoacuterico dentre inuacutemeros fatores destacamos a unificaccedilatildeo das proviacutencias ao Estado prussiano juntamente com a revoluccedilatildeo industrial tardia ocorrida naquele paiacutes Certamente a modernizaccedilatildeo do Estado trazendo expressivas mudanccedilas de cunho poliacutetico e econocircmico implicou por efeito na educaccedilatildeo e na cultura Isso passou a significar a prioridade de um tipo de ensino em que os jovens pudessem obter uma raacutepida formaccedilatildeo e tambeacutem o ganho mais raacutepido de dinheiro Logo concebeu-se uma educaccedilatildeo de interesse utilitaacuterio subserviente aos desiacutegnios do Estado moderno

A exploraccedilatildeo quase sistemaacutetica que o Estado fez destes anos na medida em que quis o mais cedo possiacutevel atrair para si funcionaacuterios utilizaacuteveis e se assegurar atraveacutes de exames excessivamente rigorosos da sua docilidade incondicional tudo isso estava muito distante da nossa formaccedilatildeo natildeo eacuteramos determinados por qualquer espiacuterito utilitaacuterio qualquer desejo de progredir rapidamente e rapidamente fazer uma carreira percebemos todos um fato que agora nos parece consolador naquele momento nenhum de noacutes sabia no que nos tornariacuteamos e inclusive isto natildeo nos preocupava (EE 2003 p 69)

Diferente dessa euforia o filoacutesofo alematildeo partiu da tese de que a cultura [Kultur] tratar-se-ia de uma determinaccedilatildeo da natureza por isso jamais poderia ser entendida como

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa

17

algo que estivesse fora dela Sendo assim as escolas nada mais faziam senatildeo comprometer todos os princiacutepios que deviam aflorar de maneira espontacircnea pois os mecanismos de inibiccedilatildeo criados pela pedagogia moderna em detrimento da potencialidade dos jovens estudantes fatalmente comprometia todo desenvolvimento humano e integral

Conforme dissemos a pedagogia moderna segundo Nietzsche obteve apoio em duas correntes Para ele complementares e ainda antinaturais responsaacuteveis por trazerem efeitos nocivos agrave sua eacutepoca por um lado a defesa da extensatildeo da cultura e por outro a reduccedilatildeo e o enfraquecimento da mesma Opondo-se veementemente a essas correntes o filoacutesofo declara a necessidade da concentraccedilatildeo da cultura e natildeo o seu alargamento e servidatildeo ao Estado Sua defesa tem como justificativa a certeza de que a educaccedilatildeo natildeo seria um assunto burocraacutetico como o mundo moderno levava a acreditar quando incutia a preocupaccedilatildeo com a inserccedilatildeo de regras a exemplo de grades horaacuterias e dos regulamentos institucionais Nietzsche ainda alega que a extensatildeo da cultura eacute resultado da esperanccedila da modernidade numa crenccedila econocircmica e poliacutetica de interesse voltado agrave geraccedilatildeo de homens comuns apenas preocupados com o ganho de dinheiro e felicidade imediata ndash enfim homens voltados para o serviccedilo da propriedade e do lucro Ora diante disso natildeo haveria outro diagnoacutestico senatildeo o de condenar a visatildeo progressista e universalizante da cultura que acompanhada do anseio das massas e do clamor da sociedade permitiu ao Estado intervir ainda mais na educaccedilatildeo - combinaccedilotildees fatais para alcanccedilar aquilo que o pensador denominava como ldquobarbaacuterie cultivadardquo

Duas correntes aparentemente opostas ambas nefastas nos seus efeitos e finalmente unidas nos seus resultados dominam hoje nossos estabelecimentos de ensino originariamente fundados em bases totalmente diferentes por um lado a tendecircncia de estender tanto quanto possiacutevel a cultura por outro lado a tendecircncia reduzi-la e enfraquececirc-la (EE 2003 p 53)

Mas entatildeo como definirmos uma cultura superior [Kultur] Sabemos que a cultura elevada eacute atribuiccedilatildeo restrita de um pequeno e seleto nuacutemero de pessoas tornando-se portanto incompatiacutevel com o imenso aparelho pedagoacutegico defendido pelo Estado Logo em linhas gerais a cultura jamais conseguiraacute aumentar a sua forccedila enquanto a educaccedilatildeo estiver voltada para formar homens e mulheres somente para o mercado de trabalho Portanto eacute necessaacuteria uma educaccedilatildeo que seja capaz de atrair as forccedilas naturais para que o jovem entatildeo possa captaacute-las a fim de atender os desiacutegnios do vir a ser ou seja de cumprir os interesses que estejam em consonacircncia com a vida

De acordo com o diagnoacutestico nietzschiano os estabelecimentos de ensino davam provas da pobreza espiritual vistas em seus planos pedagoacutegicos por meio das teacutecnicas de formaccedilatildeo e da forma como encaminhavam os jovens para vida Tais instituiccedilotildees continham no bojo de suas transmissotildees o apreccedilo agrave uniformizaccedilatildeo agrave mediocridade e agrave utilidade sempre pautados numa livre personalidade na intenccedilatildeo de preservar os estudantes numa postura de indiferenccedila e de ignoracircncia O bom exemplo desta pobreza espiritual estaria no ginaacutesio uma vez que se tratando de uma modalidade de ensino estrateacutegica que em verdade deveria funcionar como iniacutecio da formaccedilatildeo dos jovens natildeo mostrava entretanto suficiecircncia para realizar esta tarefa e tampouco sedimentar as bases para construccedilatildeo de uma cultura superior [Kultur] O incentivo a autonomia desses estudantes anunciava a grave consequecircncia dessa maturaccedilatildeo precoce por serem obrigados a tomar decisotildees para as

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como

18

quais ainda natildeo estavam preparados Como o proacuteprio pensador afirma ldquobasta apenas entrar em contato com a literatura pedagoacutegica desta eacutepoca eacute preciso estar muito corrompido para natildeo ficar assustado quando se estuda este tema com a suprema pobreza do espiacuterito e com esta verdadeira brincadeira de roda infantilrdquo (EE 2003 p 79)

A alternativa para dar fim a esta situaccedilatildeo desoladora da educaccedilatildeo alematilde no seacuteculo XIX pareceu estar na criaccedilatildeo de outra concepccedilatildeo de educaccedilatildeo e uma nova orientaccedilatildeo pedagoacutegica em condiccedilotildees de oferecer objetivos e meacutetodos inovadores do ensino Para Nietzsche os paracircmetros curriculares e as diretrizes educacionais que deveriam predominar nas instituiccedilotildees de ensino jamais deveriam estar sob a orientaccedilatildeo de estruturas burocraacuteticas ou de interesses poliacuteticos mas sim comandadas por homens superiores dotados de profunda maturidade experiecircncia e riqueza cultural Dessa maneira a primeira accedilatildeo desses verdadeiros homens da cultura seria oporem-se agrave poliacutetica dos filisteus da cultura isto eacute a servidores puacuteblicos sem nenhuma preparaccedilatildeo responsaacuteveis pela depauperaccedilatildeo da cultura e da educaccedilatildeo das instituiccedilotildees de ensino alematildes

Nietzsche (EE 2003 p 87) entende que os curriacuteculos escolares devem ser elaborados tomando por modelo a cultura claacutessica jaacute que se propotildee a corroborar a importacircncia da filosofia e da arte Para tanto haacute a necessidade de articular experiecircncia e cultura embora se reconheccedila o quanto esta tarefa se mostra difiacutecil requerendo grande disposiccedilatildeo de tempo e de acircnimo ao longo de todo processo pedagoacutegico A tarefa da educaccedilatildeo eacute entatildeo fazer entender por meio da experiecircncia pessoal dos alunos e dos estiacutemulos recebidos dos mestres os grandes pensadores do passado uma vez que neles encontra-se o conhecimento e a maturidade que puderam elevar a cultura Dessa forma a cultura superior jamais deveraacute ser confundida com a cultura jornaliacutestica tiacutepica do estilo de vida moderna jaacute que a mesma enquanto disciplina especializada tende agrave pequenez de uma linguagem baacuterbara

Consequentemente caso a cultura natildeo venha corresponder agraves exigecircncias superiores que a enaltecem e lhe atribuem agrave honrosa heranccedila histoacuterica caso ela tenha apenas uma funcionalidade uacutetil e rentaacutevel por conta de sua servidatildeo aos assuntos de interesse do Estado e da economia caso esta cultura esteja conformada com a realidade poliacutetica da sua eacutepoca sem apresentar nenhuma oposiccedilatildeo frente agrave sua realidade caso enfim esteja absorvida e ludibriada pelo excesso de sentido histoacuterico diante disso sob tais situaccedilotildees qualquer fortalecimento da cultura pela via das instituiccedilotildees de ensino segundo a filosofia do jovem Nietzsche torna-se algo demasiadamente improvaacutevel jaacute que para ele

Eacute somente sobre o fundo de uma aprendizagem de um bom uso da liacutengua estrito artiacutestico cuidadoso que se afirma o verdadeiro sentimento da grandeza dos nossos claacutessicos que ateacute agora natildeo se aprendeu a estimar no ginaacutesio senatildeo graccedilas ao amadorismo estetizante e suspeito de alguns mestres isolados ou pelo efeito de um uacutenico conteuacutedo de algumas trageacutedias e de alguns romances mas eacute preciso saber por experiecircncia proacutepria como a liacutengua eacute difiacutecil eacute preciso ao preccedilo de longas pesquisas e de longas lutas alcanccedilar a via por onde marcharam os nossos grandes poetas para perceber com que leveza e beleza eles marcharam e com que inaptidatildeo e grandiloquecircncia os outros os seguiram (EE 2003 p 89)

A educaccedilatildeo aprendida nas escolas e nas universidades deveria se tornar um poderoso arsenal em combate agrave barbaacuterie moderna Nietzsche (EE p 103) declara que a cultura de tipo superior [Kultur] eacute um privileacutegio reservado apenas para um seleto nuacutemero de indiviacuteduos talentosos Assim sendo natildeo se pode pretender que a massa seja capaz de adquiri-la pois

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa

19

o espiacuterito da cultura autecircntica possui uma natureza aristocraacutetica O desejo muitas vezes de estender a cultura a niacuteveis cada vez mais amplos peca pela ingenuidade de ignorar a hierarquia natural existente no intelecto Cabe agrave natureza e somente a ela determinar os dons e as aptidotildees e a quem possa ser distribuiacutedo Assim a aristocracia de tipo espiritual defendida por Nietzsche se enseja por aqueles em condiccedilotildees de seguir os feitos dos grandes homens do passado e ao mesmo tempo ter a capacidade de realizar as grandes obras que ficaratildeo marcadas no selo da eternidade Essa eacute a razatildeo pela qual uma aristocracia do espiacuterito jamais poderaacute limitar-se agrave mera funccedilatildeo poliacutetica de interesse mercantil mas sim preservar a total independecircncia da sua posiccedilatildeo de formador de novas ideias

Concluiacutemos que a cultura autecircntica seraacute sempre inalcanccedilaacutevel caso se mantenha presa agrave formaccedilatildeo de profissionais que concorrem a vagas no mercado de trabalho Vemos dessa maneira que surge na proposta de Nietzsche o implemento de uma cultura aristocraacutetica para aleacutem dos interesses estadistas da poliacutetica e do dinheiro e por conseguinte uma cultura que pretende fazer o homem libertar-se da ldquomaldiccedilatildeo da modernidaderdquo Uma cultura capaz de aproximar os jovens estudantes dos homens raros do passado exibindo seus grandes feitos e o quanto servem de inspiraccedilatildeo para as accedilotildees do presente Mas para chegar-se agrave concretizaccedilatildeo deste projeto de elevaccedilatildeo da cultura seraacute necessaacuterio urgentemente os estudantes se transformarem em verdadeiros combatentes de um mundo inoacutespito que parece natildeo medir esforccedilos em tentar a todo custo esmorececirc-los

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como

20

Referecircncias bibliograacuteficasDROZ Jacques Histoire de l rsquoAllemagne Paris Ed PUF 2003FREZZATTI JR Wilson Antonio Educaccedilatildeo e cultura em Nietzsche o duro caminho para ldquotornar-se o que se eacuterdquo In Nietzsche Filosofia e Educaccedilatildeo AZEREDO Vacircnia Dutra de (Org) Ijuiacute ndash RSUnijuiacute 2008 p 39-65GOETHE Johan Wolfgan Von Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister Trad Nicolino Simone Neto Satildeo Paulo Editora 34 2009MARTON Scarlet Claustros vatildeo se fazer outra vez necessaacuterios In Nietzsche Filosofia e Educaccedilatildeo AZEREDO Vacircnia Dutra de (Org) Ijuiacute ndash RSUnijuiacute 2008 p 17-38NIETZSCHE F W A Filosofia na eacutepoca traacutegica dos gregos Trad Rubens Rodrigues Torres Filho Os preacute-socraacuteticos fragmentos doxografia e comentaacuterios Satildeo Paulo Nova Cultural 2005 _____ Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino NIETZSCHE F W Escritos sobre educaccedilatildeo Trad Noeacuteli C M Sobrinho Rio de JaneiroSatildeo Paulo PUC-Rio Loyola 2003c p 41-137_____ Schopenhauer como Educador In Nietzsche FW Escritos sobre educaccedilatildeo Trad Noeacuteli C M Sobrinho Rio de JaneiroSatildeo Paulo PUC-Rio Loyola 2003b p138-222

Adilson Felicio Feiler

21

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave accedilatildeo mediante a consciecircncia Bewusstsein e a consciecircncia moral Gewissen

Adilson Felicio Feiler1

1 IntroduccedilatildeoA consciecircncia considerada como baluarte do reconhecimento mais pleno da

dimensatildeo humana tem sido uma das dimensotildees humanas colocadas sob suspeita por Nietzsche Toda estabilidade generalizaacutevel que inspira o estado de consciecircncia eacute irredutiacutevel aos fenocircmenos internos responsaacuteveis pela manutenccedilatildeo e pelo crescimento da vida humana Neste sentido se a consciecircncia natildeo acompanha a dimensatildeo orgacircnica proacutepria da vida entatildeo representa rebaixamento e apequenamento

Por um lado a consciecircncia Bewusstsein eacute o estado de consciecircncia o ser consciente de algo na concepccedilatildeo de Nietzsche corresponde ao desenvolvimento mais inacabado da fisiologia humana pela necessidade de se comunicar estados interiores Ao traduzir tais estados na consciecircncia estes perdem a sua originalidade revelando por isso accedilotildees que natildeo correspondem agrave singularidade humana As accedilotildees humanas expressas na consciecircncia revelam nada senatildeo a superfiacutecie rasa e temeraacuteria daquilo que corresponde ao mundo e agrave riqueza humana Por outro lado o movimento de interiorizaccedilatildeo proacuteprio da consciecircncia Gewissen pela sua carateriacutestica conciliadora e apaziguadora conduz ao interdito da descarga instintual Ao inveacutes de agir reage pelo recolhimento para dentro natildeo sente mas ressente Dada esta dimensatildeo internalizadora passiva a consciecircncia Bewusstsein se aproxima de acepccedilatildeo moral da consciecircncia compreendida como maacute consciecircncia schlechte Gewissen Pois somente enquanto movimento em direccedilatildeo ao externo se torna a accedilatildeo produtiva criativa O movimento do criar eacute eminentemente um movimento para fora quando os instintos tornam-se potencializadores da criaccedilatildeo e natildeo recolhimento dos instintos para dentro repercutindo em inaniccedilatildeo Seja a consciecircncia Bewusstsein como desencadeadora de accedilotildees que falseiam os estados interiores seja a consciecircncia Gewissen como accedilotildees colocadas para dentro contra si mesmo em ambos casos estamos diante de ameaccedilas agrave accedilatildeo enquanto expressatildeo de estados interiores do mundo e do ser humano

Na Gaia Ciecircncia a consciecircncia Bewusstsein estaacute intimamente associada agrave pressatildeo da necessidade de se comunicar externar aquilo que passa por dentro ou seja tornar inteligiacutevel o que se sente e se pensa Para fazecirc-lo utiliza-se de expedientes que ao se padronizarem perdem a sua riqueza singular conformando-se ao rebanho

Na Segunda Dissertaccedilatildeo de Para a genealogia da moral Nietzsche desenvolve uma psicologia da consciecircncia Gewissen Este desenho psicoloacutegico natildeo consiste numa explicaccedilatildeo

1 Professor no PPG em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

22

metoacutedica da consciecircncia mas um caraacuteter de apelo a ela de busca da mesma Com isso torna-se patente a perversatildeo dos instintos como interioridade em que os instintos reduzidos agrave inibiccedilatildeo constituem em um campo de accedilatildeo A consciecircncia eacute o instinto de crueldade interiorizada e impedimento de se exteriorizar o que repercute em uma consciecircncia bestial que se aflige a si proacutepria Por essa razatildeo eacute uma consciecircncia maacute que torna a forccedila a disposiccedilatildeo a liberdade e a accedilatildeo latentes reprimidos recuados e mesmo afogados em si mesmos

Nossa proposta eacute a de mostrar como esse mecanismo perverso da maacute consciecircncia eacute capaz de reduzir o ser humano agrave condiccedilatildeo de inoperatividade de natildeo accedilatildeo portanto despida daquilo que o caracteriza como humano sem eacutetica Resta portanto apenas o peso de um fator poderoso externo a moral a esmagar toda a disposiccedilatildeo e propensatildeo para agir Assim como na consciecircncia moral tambeacutem a consciecircncia judicativa compromete a accedilatildeo pela necessidade de comunicaccedilatildeo em seu afatilde de tornar inteligiacutevel o interior e singular

Principiamos em estabelecer pelo meacutetodo genealoacutegico as origens da consciecircncia tanto como consciecircncia em sentido bioloacutegico Bewusstsein como consciecircncia moral Gewissen atraveacutes do processo de exteriorizaccedilatildeo comunicativa e interiorizaccedilatildeo instintual Da exteriorizaccedilatildeo da consciecircncia Bewusstsein e da interiorizaccedilatildeo da consciecircncia Gewissen quando os instintos estatildeo falsificados e encarcerados passamos a refletir sobre os fatores externos que promovem sua manutenccedilatildeo o rebanho e a moral Para enfim apontarmos a disposiccedilatildeo para a accedilatildeo a forccedila plena como remeacutedio agrave falsificaccedilatildeo dos estados interiores e agrave doenccedila conhecida como maacute consciecircncia

2 A gecircnese da consciecircncia como exteriorizaccedilatildeo comunicativa e como interiorizaccedilatildeo instintual

No aforismo 11 da Gaia Ciecircncia encontra-se a primeira reflexatildeo de Nietzsche sobre a consciecircncia Bewusstsein Ela eacute considerada pelo filoacutesofo como o desenvolvimento uacuteltimo e mais inacabado do corpo orgacircnico Pois ao inveacutes da consciecircncia servir-se dos instintos ela serve-se de juiacutezos na maioria apressados e temeraacuterios pois pretendem-se eternos e duradouros ldquoEssa ridiacutecula superestimaccedilatildeo e maacute-compreensatildeo da consciecircncia [] que ateacute hoje foram incorporados somente os nossos erros e que toda a nossa consciecircncia diz respeito a errosrdquo (NIETZSCHE 1999 p 383) A consciecircncia para Nietzsche natildeo pode constituir o ser humano eacute apenas um dos oacutergatildeos que facilitam a sua sobrevivecircncia o oacutergatildeo mais inacabado e por isso inadequado para direcionar-se ao mundo exterior A consciecircncia eacute um movimento imortalizador do nada como acompanhamos numa carta de Nietzsche a Franz Overbeck ldquoEsta humilhaccedilatildeo por trecircs anos este golpe na face este natildeo inexoraacutevel complica com a obrigaccedilatildeo para ganhar a vida [] por outro lado a consciecircncia disso um trabalho imortal que apresenta-se ao lado do nada atualrdquo (NIETZSCHE 1982 p 295) A consciecircncia tende a aguccedilar a forccedila do natildeo e por isso agravando o niilismo Logo tudo o que passa pela consciecircncia acaba falsificado como recorda Scarlett Marton ldquoSe aponta seu caraacuteter falsificador eacute para advertir que aquilo que passa por ela acaba falsificadordquo (MARTON 2016 p 155) Tal falsificaccedilatildeo impregna o proacuteprio corpo que no dizer de Werner Stegmaier ldquo[] carrega a consciecircncia e daacute a ela o que pensar estaacute por sua vez bem distante de ser um fundamento originaacuterio e incondicionadordquo (STEGMAIER 2013 p 43)

A consciecircncia nasce no mesmo solo da linguagem portanto ambos consciecircncia e linguagem estatildeo contaminados pela gregariedade ldquoPara o nascimento da consciecircncia humana poderia se utilizar a consciecircncia do rebanhordquo (NIETZSCHE 1999 p 190)

Adilson Felicio Feiler

23

Tudo o que o homem pensa jaacute estaacute impregnado pela linguagem pelas palavras se toma consciecircncia do pensamento Vacircnia Dutra de Azeredo ao comentar o fenocircmeno da consciecircncia em Nietzsche acentua que para que o homem possa fazer parte da sociedade necessita cultivar a capacidade de se comunicar e a consciecircncia ldquo[] a sua inserccedilatildeo na sociedade requer a comunicaccedilatildeo e portanto a consciecircnciardquo (AZEREDO 2003 p 155) O homem eacute pressionado a manifestar seu pensamento em palavras e quando isso acontece o pensamento torna-se descaracterizado daquilo que lhe eacute mais iacutentimo pessoal e singular Em outras palavras o pensamento pelo filtro da consciecircncia e da linguagem torna-se presa de falsificaccedilotildees A falsificaccedilatildeo promovida pela consciecircncia opera divisotildees e oposiccedilotildees entre o homem e o animal o que de per si natildeo haveria segundo Nietzsche diferenccedila alguma A dimensatildeo gregaacuteria da qual faz nascer a consciecircncia em sentido bioloacutegico ou judicativo2 temeraacuterio nivelador embora guarde suas particularidades natildeo estaacute desligada da acepccedilatildeo de consciecircncia Gewissen no sentido moral

A gecircnese fundamental do fenocircmeno da maacute consciecircncia situa-se na acepccedilatildeo da consciecircncia Gewissen moral para aleacutem da segunda dissertaccedilatildeo de Para a Genealogia da moral Nietzsche antecipa este tema em seu escrito Aleacutem do bem e do mal Preluacutedio a uma filosofia do futuro no aforismo 12 quando mostra como foi estabelecida a psique humana envolta no conceito de alma mediante a sua compreensatildeo atomiacutestica A esse respeito Nietzsche se expressa ldquo[] o atomismo da alma Permita-se designar com esse termo a crenccedila que vecirc a alma como algo indestrutiacutevel eterno indestrutiacutevel como uma mocircnada um aacutetomo essa crenccedila deve ser eliminada da ciecircnciardquo (NIETZSCHE 1999 p 27)

Ora se o corpo eacute compreendido como um campo de forccedilas entatildeo soacute haacute espaccedilo tanto para a dissoluccedilatildeo do princiacutepio claacutessico de individuaccedilatildeo como para a desintegraccedilatildeo do ldquoeurdquo Remeacutedios Aacutevila ao referir-se sobre o ldquoeurdquo desintegrado em Nietzsche recorda que este reflete a pluralidade do corpo composta por tensotildees que compotildeem um campo de batalha (AacuteVILA 1999 p 195) Neste sentido aquela estrutura social dos impulsos e afetos eacute encerrado para dentro de si mesmo Alberto Carlos Onate sobre este processo de interiorizaccedilatildeo da consciecircncia alega ldquoA lsquointeriorizaccedilatildeorsquo eacute fruto de um imenso esforccedilo conciliador apaziguador que arrefece e acaba por interditar a descarga dos instintos favoraacuteveis agrave violecircnciardquo (ONATE 2000 p 35) Este fenocircmeno de interiorizaccedilatildeo equivale a um vulcatildeo que ao inveacutes de expelir cinzas lava e fogo desde o topo de sua cratera os engole para dentro de si mesmo

A consciecircncia moral consiste como recorda Andreacute Luiz Mota Itaparica na ldquo[] introjeccedilatildeo de impulsos agressivosrdquo (ITAPARICA 2016 p 156) Este impulsos internalizados opressivamente como puniccedilatildeo aos que resistem agraves regras do rebanho convertem-se em consciecircncia moral Embora este tema seja abertamente desenvolvido na segunda dissertaccedilatildeo da Genealogia da Moral o tema da consciecircncia remonta agrave obediecircncia aos costumes morais que se depreende de Aurora como segue ldquo[] tambeacutem nossos juiacutezos e valores morais satildeo apenas imagens e fantasias sobre um processo fisioloacutegico de noacutes conhecido [] para designar certos estiacutemulos nervosos Que tudo isso que chamamos de consciecircncia eacute um comentaacuterio mais ou menos fantaacutesticordquo (NIETZSCHE 1999 p 113) Pela imposiccedilatildeo de juiacutezos e valores morais e o consequente castigo agravequeles que natildeo o cumprem tem origem a consciecircncia moral Do campo da consciecircncia permeado pelo natural e o normativo

2 Convencionamos denominar a Consciecircncia Bewusstsein aleacutem de bioloacutegica por ser um produto mais inacabado da fisiologia tambeacutem com uma acepccedilatildeo judicativa Por esta acepccedilatildeo o ser humano pela pressatildeo da necessidade de co-municar estados interiores o faz em forma de juiacutezos apressados que natildeo correspondem a sua legitimidade singular

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

24

se depreende como recorda Christopher Janawy ( JANAWAY 2012 p 04) ldquo() espaccedilo suficiente para a concepccedilatildeo de valorrdquo No campo proacuteprio do valorar que se foi moldando a consciecircncia moral desde um tempo longiacutenquo pela modalidade mais rudimentar entre credor e devedor

Este mesmo sentimento de estar nas matildeos daquele a quem natildeo se eacute capaz de saldar a diacutevida atua como doenccedila que infecta e envenena Marcelo Giglio Barbosa recorda que a ldquo[] consciecircncia aparece nesse contexto como fator de adoecimento de degenerescecircnciardquo (BARBOSA 2000 p 35) Este sintoma que permeia as mentes daqueles aacutevidos por a todo o momento trazerem agrave memoacuteria situaccedilotildees como a escravidatildeo como uma diacutevida impagaacutevel estariam trazendo agrave memoacuteria a necessidade de fazer justiccedila como movimento salutar para a exteriorizaccedilatildeo daquela carga instintual reprimida ou pelo contraacuterio estariam movidos por uma maacute consciecircncia Portanto satildeo incapazes de externar aquela carga instintual singular genuiacutena que se volta contra si mesmo Procuramos responder agrave esta questatildeo ou pelo menos problematiza-la mediante as consideraccedilotildees decorrentes sobre o rebanho e a moral no segundo capiacutetulo

3 O rebanho e a moral como obstaacuteculos agrave accedilatildeo singular e exteriorizadaA consciecircncia Bewsstsein eacute algo do qual se pode prescindir Nas palavras de Oswaldo

Giacoacuteia Juacutenior ldquo[] natildeo existe melhor forma de se inteirar dessa prescindibilidade da consciecircncia do que atraveacutes da fisiologia e da zoologiardquo (GIACOacuteIA 2002 p 31) Pois de todos estes processos fundamentais da vida humana como pensar querer sentir a consciecircncia estaacute ausente De onde vem portanto esta necessidade do refinamento da consciecircncia Natildeo eacute outro senatildeo ldquo[] aquela que inscreve a consciecircncia como funccedilatildeo da capacidade de comunicaccedilatildeordquo (GIACOacuteIA 2002 p 33)

Esta necessidade de comunicaccedilatildeo eacute avaliada em termos natildeo apenas individuais mas em termos de uma raccedila eou naccedilatildeo Por isso ldquo[] a consciecircncia em geral soacute se desenvolveu sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 1999 p 591) Eacute justamente em nome da sobrevivecircncia de grupos sociedades espeacutecies que a comunicaccedilatildeo foi sendo desenvolvida Mais uma vez a marca do rebanho acompanha o DNA da consciecircncia atraveacutes da necessidade de comunicaccedilatildeo Pois antes de se comunicar se sente a necessidade de se refletir o conteuacutedo daquilo que vai ser expressado

Eacute em funccedilatildeo daquilo que eacute comum igualitaacuterio uniformizador que a consciecircncia via linguagem elimina aquilo que eacute diferente e singular Pela eliminaccedilatildeo daqueles caracteres pessoais individuais que delineiam o ser humano se abdica daquilo que o constitui a sua capacidade de agir E justamente sobre este aspecto da accedilatildeo Nietzsche eacute enfaacutetico ldquoNossas accedilotildees satildeo no fundo todas elas pessoais de uma maneira incomparaacutevel uacutenicas ilimitadamente individuais sem duacutevida nenhuma mas tatildeo logo noacutes as traduzimos na consciecircncia elas natildeo parecem mais secirc-lordquo (NIETZSCHE 1999 p592-3) A consciecircncia atua como um filtro uniformizador sobre os caracteres pessoais eliminando as suas diferenccedilas e precisamente aquelas diferenccedilas que satildeo fundamentais para a constituiccedilatildeo da accedilatildeo Mediante o que eacute uacutenico e individual o homem em sua docilidade ao mundo permite que este em seu vir a ser constante como vontade de potecircncia perpasse os seus poros ldquoA vontade de potecircncia exerce-se nos numerosos seres vivos microscoacutepicos que formam o organismo em que cada um quer prevalecer na relaccedilatildeo com os demaisrdquo (MARTON 2000 p 140) O produto deste incessante perpassar da potecircncia nos seres eacute a criaccedilatildeo de sempre novas formas e perspectivas

Adilson Felicio Feiler

25

Ora pela consciecircncia a docilidade agrave terra que eacute abertura ao criar portanto ao agir eacute bloqueada pela imposiccedilatildeo de modelos igualitaacuterios e padronizadores ditados por aquela necessidade de reflexatildeo dos conteuacutedos a serem expressos linguisticamente para ldquo[] tornar inteligiacuteveis suas necessidades (NIETZSCHE 1999 p593) Ao inveacutes do homem ser uma expressatildeo singular e criativa da riqueza do vir a ser do mundo pelo filtro da consciecircncia passa a ser nada senatildeo um receptaacuteculo daquilo que no mundo eacute mais superficial ldquo[] o mundo de que podemos tomar consciecircncia eacute apenas um mundo de superfiacutecies e de signosrdquo (NIETZSCHE 1999 p 593) Anna Hartmann Cavalcanti em seu estudo sobre a gecircnese da concepccedilatildeo da linguagem em Nietzsche se expressa ldquo[] que o instinto assim compreendido natildeo eacute o resultado de uma determinada organizaccedilatildeo corporal ou de um mecanismo espiritual previamente disposto pela natureza mas uma atividade inconsciente do espiacuteritordquo (CAVALCANTI 2005 p 43)

A linguagem consiste num processo de trazer agrave consciecircncia toda aquela estrutura aniacutemica inconsciente que subjaz ao pensamento A abstraccedilatildeo da linguagem contribui para o desenvolvimento intensificaccedilatildeo e manutenccedilatildeo do pensamento consciente O que representa um abalo frontal a carga aniacutemica inconsciente resultando em cristalizaccedilatildeo da accedilatildeo enquanto forccedilas criativas Forccedilas estas que segundo Nietzsche desfazem a ilusatildeo dos conceitos ilusoacuterios como o de alma unidade e sujeito cognoscente De acordo com Marco Parmeggiani ldquo[] Nietzsche submete a criacutetica dos pressupostos gerais do coacutegito o eu-autoconsciente como causa do pensar e a imagem do pensamentordquo (PARMEGGIANI 2002 p 125) A simplificaccedilatildeo pela qual eacute reduzida a consciecircncia Bewusstsein em sua acepccedilatildeo bioloacutegica eacute abdicaccedilatildeo da accedilatildeo pois aqueles modelos padronizadores e igualitaacuterios impedem as relaccedilotildees de forccedila a pluralidade e originalidade da riqueza das diferenccedilas interiores responsaacuteveis pelo movimento do criar Esta caracteriacutestica eacute tambeacutem partilhada pela consciecircncia Gewissen em sua acepccedilatildeo moral Natildeo por impedir a accedilatildeo pelo nivelamento do desigual mas por impedir a externaccedilatildeo da accedilatildeo Logo em ambas acepccedilotildees da consciecircncia a accedilatildeo eacute bloqueada

Dado que os mecanismos e dispositivos da moral tendem a enfraquecer e debilitar pela cristalizaccedilatildeo e engessamentos a padrotildees preacute-determinados o antiacutedoto para tal situaccedilatildeo seria o de desobstruir tais padronizaccedilotildees que permitem realizar o movimento para fora Ora se a maacute consciecircncia eacute uma consideraccedilatildeo das suas propensotildees naturais com um olhar ruim hostil agrave vida e difamador do mundo entatildeo a saiacuteda para reverter esta situaccedilatildeo estaacute na conversatildeo do olhar um olhar bom e afeito agrave vida e que acolha o mundo A moral inibe impede agrave accedilatildeo e tolhe o comportamento desencadeando a maacute consciecircncia Por essa razatildeo o antiacutedoto contra a doenccedila da maacute consciecircncia estaacute na disposiccedilatildeo para a accedilatildeo Como a accedilatildeo repercute internamente enquanto dispositivo para refrear os efeitos maleacuteficos da falsificaccedilatildeo instintual e da maacute consciecircncia

4 A accedilatildeo como dispositivo para a superaccedilatildeo da falsificaccedilatildeo instintual e da maacute consciecircnciaAo falsificar os instintos singulares interiores a consciecircncia Bewusstsein impede

a accedilatildeo no sentido de por ela traduzir estados interiores genuiacutenos senatildeo produtos convencionados pelo rebanho Um traccedilo caracteriacutestico da consciecircncia e o seu caraacuteter falsificador ldquo[] aquilo que por ela passa acaba falsificadordquo (MARTON 2000 p 142) Este nivelamento falsificador promovido pela consciecircncia em forma de linguagem tem na accedilatildeo uma quebra desta generalizaccedilatildeo apressada As accedilotildees humanas por serem uacutenicas individuais e singulares natildeo se rendem ao padratildeo ao comum generalizado e ao vulgarizado

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

26

Elas em sua dinamicidade renovam constantemente tudo aquilo que se pretende fixo e redutiacutevel para tornar fluido Esta necessidade de fluidez esbarra na dimensatildeo do fundamento responsaacutevel por inverter a relaccedilatildeo causa efeito ldquo[] a causa ganha a consciecircncia mais tarde do que o efeito [] a causa eacute imaginada depois que o efeito aconteceurdquo (NIETZSCHE 1999 p 458-9) A centralidade da causa como fundamento de todas as accedilotildees liga-se agrave memoacuteria com base nas experiecircncias passadas e agraves ficccedilotildees com base em falsificaccedilotildees Pela interposiccedilatildeo de um fundamento anterior agrave accedilatildeo a consciecircncia mediante a linguagem pressupotildee juiacutezos destroccediladores da fluidez da experiecircncia interna Assim como a fluidez promovida pela accedilatildeo na consciecircncia Bewusstsein torna os estados interiores expressos em sua singularidade a fluidez promovida pela accedilatildeo na consciecircncia Gewissen promove a sua exteriorizaccedilatildeo

A accedilatildeo eacute um todo instintual que eacute a vida marcada pela luta entre as manifestaccedilotildees pulsionais apoliacutenea e dionisiacuteaca as quais permeiam todo o filosofar nietzschiano Na esteira dessa visatildeo traacutegica da vida Nietzsche de acordo com a leitura de David Hoy procura ldquo[] um caminho estabelecido de vida ndash que foi jaacute colapsadordquo (HOY 1986 p 74) Ora se o traacutegico marca todo o filosofar de Nietzsche entatildeo a criacutetica agrave proacutepria concepccedilatildeo de consciecircncia revela-se como um verdadeiro empreendimento desconstrutivo frente agrave metafiacutesica dogmaacutetica e agrave moral judaico-cristatilde Com isso a proacutepria noccedilatildeo de sujeito passa a perder todo o sentido de que ateacute entatildeo era provida Dada toda a natureza desconstrutiva deste pensamento o mesmo soacute se justifica mediante a afirmaccedilatildeo criadora razatildeo pela qual as teorias das forccedilas e da vontade de potecircncia satildeo de capital importacircncia

Nietzsche apresenta a essecircncia da forccedila natildeo pela fiacutesica que a explica pelos seus efeitos portanto pela crenccedila de que existem coisas Mas caracteriza a forccedila como ldquo[] quanta dinacircmicos em uma relaccedilatildeo de tensatildeo com todos os outros quanta dinacircmicosrdquo (NIETZSCHE 1999 p 373) A forccedila eacute um quanta dinacircmico em que a relaccedilatildeo causal eacute extrapolada pois se caracteriza como simples atuar em direccedilatildeo agrave uma unidade provisional Cada uma destas unidades surge mediante a luta com outros corpos que ao adquirir uma certa firmeza se ajusta com o intuito de ldquo[] expandir a sua forccedila ( - a sua vontade de potecircncia) e a repelir tudo aquilo que resiste agrave sua expansatildeordquo (NIETZSCHE 1999 p 373) Logo todo ser vivo possui uma inclinaccedilatildeo natural natildeo de auto conservaccedilatildeo mas de acreacutescimo de forccedilas3 O viver nesta dinacircmica da vontade de potecircncia natildeo eacute uma tendecircncia para a conservaccedilatildeo nem a duraccedilatildeo mas sim a superaccedilatildeo E como enfatiza Robert Pippin eacute proacuteprio do viver o enfrentamento de todo tipo de forccedilas e resistecircncias por isso a necessidade ldquo[] de reconhecimento e resistecircncia que Nietzsche elogia quando ele discute a auto-superaccedilatildeordquo (PIPPIN 2006 p 114) Diante da realidade das forccedilas a vida eacute accedilatildeo da qual demanda a verdade que eacute interpretar a avaliar E a cada interpretaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo novas e muacuteltiplas interpretaccedilotildees e avaliaccedilotildees se depreendem num movimento que se renova a cada instante que se plenifica

A instauraccedilatildeo de um instante de plenitude conduz a um fazer memoacuteria que natildeo bloqueie a accedilatildeo mas pelo contraacuterio que a potencialize para gerar ainda mais accedilatildeo A terapia que o psicoacutelogo Nietzsche oferece segundo Oswaldo Giacoacuteia eacute a de narcotizar a consciecircncia sofredora pela auto superaccedilatildeo que ldquo[] se faz pela vivecircncia do ressentimento sob o acircngulo da potecircnciardquo (GIACOacuteIA 2013 p 191)

3 ldquoOs fisioacutelogos deveriam refletir antes de estabelecer o impulso de auto conservaccedilatildeo como impulso cardinal de um ser orgacircnico Uma criatura viva quer antes de tudo dar vasatildeo a sua forccedila ndash a proacutepria vida eacute vontade de poderrdquo (NIET-ZSCHE 1999 p 27)

Adilson Felicio Feiler

27

Pelo excedente de forccedila se promove a sauacutede para aleacutem de uma prostraccedilatildeo inerte e incuraacutevel Este acuacutemulo de forccedilas natildeo admite estagnaccedilatildeo ou metas a alcanccedilar compreendidas como estaacutegio final mas como recorda Walter Kaufmann ldquo[] a meta da humanidade natildeo pode situar-se no fim mas apenas nos mais altos espeacutecimesrdquo (KAUFMANN 1968 p 319) Por isso esquecer natildeo eacute o mesmo que natildeo fazer memoacuteria mas impedir com que as marcas desta interfira na capacidade de agir e por essa razatildeo de criar pois caso contraacuterio a vida estaria seriamente comprometida Por essa razatildeo eacute preciso superar ldquo[] estados gerais de prazer e desprazer interpretados segundo a loacutegica da causalidade num processo comandado pela imaginaccedilatildeo que atribui ao mesmo tempo eficaacutecia causal e significaccedilatildeo moral a entidades ou seres fictiacutecios espiacuteritos deuses vontades substanciais consciecircncia sobretudo a consciecircncia moral (Gewissen)rdquo (GIACOacuteIA 2014 p 289)

Pois eacute no jogo instintual e aniacutemico de forccedilas que os limites causais se desconstroem e a vida vai atingindo a sua plenitude em instantes transvalorados E nestes cuja a accedilatildeo eacute tudo o que existe o sujeito natildeo passa de ficccedilatildeo gregaacuteria ditada pela consciecircncia Bewusstsein superfiacutecie signo preconceito moral e maacute consciecircncia Gewissen

5 Consideraccedilotildees finaisAs consideraccedilotildees acima nas ajudaram a perceber como a consciecircncia Bewusstsein e

a consciecircncia Gewissen constituem obstaacuteculos para a manifestaccedilatildeo da accedilatildeo Embora cada acepccedilatildeo de consciecircncia tenha a sua especificidade seja pelo acircmbito judicativo linguiacutestico da consciecircncia que perde toda a singularidade interna seja pelo acircmbito moral que impotildee obstaacuteculos aacute exteriorizaccedilatildeo da accedilatildeo ambas se encontram num ponto comum o do comprometimento da accedilatildeo Pela consciecircncia em ambas acepccedilotildees a accedilatildeo sofre obstaacuteculos agrave sua manifestaccedilatildeo

A consciecircncia Bewusstsein se manifesta pela necessidade de comunicaccedilatildeo e com isso seu conteuacutedo se externa como nivelamento aos padrotildees estabelecidos pelo rebanho A accedilatildeo que daiacute resulta natildeo corresponde aos instintos singulares interiores portanto eacute nada senatildeo juiacutezos falsificados A consciecircncia Gewissen reduz tudo ao acircmbito da desestiacutemulo do desacircnimo e de paz Desse modo ao inveacutes da carga intelectual se projetar para fora se recolhe para dentro interiorizando-se num ataque frontal contra si mesmo uma auto-conspiraccedilatildeo

A satisfaccedilatildeo das necessidades do rebanho atua no sentido de fazer da accedilatildeo massa de manobra o que implica em perda do que caracteriza fundamentalmente a accedilatildeo sua carga plural singular e instintiva A accedilatildeo que deriva deste fenocircmeno da consciecircncia eacute ficccedilatildeo o que natildeo reflete o mundo e o ser humano em sua singularidade A consciecircncia moral tem seu comprometimento da accedilatildeo no recolhimento das forccedilas instintivas ao acircmbito do interno apaacutetico e passivo A moral representa o peso da culpa que retorna a remorder a todo instante impedindo-se com que as forccedilas instintuais se exteriorizem

Logo eacute somente pela potencializaccedilatildeo da accedilatildeo que se poderaacute realizar o movimento inverso o de fazer com que toda aquela carga instintual se mostre em sua originalidade singular e se direcione para fora num processo caracterizado pelo criar No entanto faz-se necessaacuterio para que o dispositivo da accedilatildeo se expresse a ativaccedilatildeo da faculdade do esquecimento Esta longe de ser a anulaccedilatildeo da memoacuteria eacute caracterizada como o natildeo deixar-se determinar pelas feridas contagiantes do passado Eacute nesse niacutevel que o esquecimento poderaacute facilitar o desencadeamento da accedilatildeo que ao criar plenifica cada instante da vida

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

28

Este instante eacute composto por uma multiplicidade de forccedilas em combate cuja accedilatildeo e reaccedilatildeo vatildeo estabelecendo hierarquias como modos de atuaccedilatildeo das forccedilas Dessa pluralidade de forccedilas em tensatildeo origina-se o corpo vital No entanto para que o processo expansionista da criaccedilatildeo se mantenha faz-se necessaacuterio que as forccedilas ativas dominem sobre as forccedilas reativas Ao atuarem fortuitivamente tais forccedilas dissolvem aquelas unidades conceituais ldquoeurdquo ldquosujeitordquo jaacute que a accedilatildeo ocorre destituiacuteda de intencionalidade simplesmente age atua no sentido de lutar impor transvalorar O campo instintual que caracteriza a filosofia de Nietzsche cujas forccedilas manteacutem e promovem a vida necessariamente estaacute orientado para a accedilatildeo

Adilson Felicio Feiler

29

Referecircncias bibliograacuteficasAacuteVILA Remeacutedios Identidad y trageacutedia Nietzsche y la fragmentacioacuten del sujeto Barcelona Editorial Criacutetica 1999AZEREDO Vacircnia Dutra de Nietzsche e a dissoluccedilatildeo da moral Ijuiacute Editora Unijuiacute 2003BARBOSA Marcelo Giglio Criacutetica ao conceito de consciecircncia no pensamento de Nietzsche Satildeo Paulo Editora Beca Produccedilotildees Culturais 2000CAVALCANTI Anna Hartmann Siacutembolo e alegoria A gecircnese da concepccedilatildeo de linguagem em Nietzsche Satildeo Paulo Editora Annablume 2005GIACOacuteIA Oswaldo Jr Nietzsche como psicoacutelogo Satildeo Leopoldo Editora Unisinos 2002_____ Nietzsche O humano como memoacuteria e como promessa 2a ed Petroacutepolis Editoras Vozes 2014HOY David Couzens Nietzsche Hume and the genealogical method In YOVEL Y Nietzsche as affirmative thinker Dordrecht Martinus Nijhoff Publischers 1986 p 69-89ITAPARICA Andreacute Luiacutes Mota Consciecircncia Moral (Gewissen) In Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 p 156-8JANAWAY Chistopher SIMON Robertson (Ed) Introduction In Nietzsche naturalism and normativity Oxford Oxford University Press 2012 p 01-19 KAUFMANN Walter Nietzsche philosopher psychologist antichrist Princeton Princeton University Press 1968 NIETZSCHE F W Die froumlliche Wissenschaft In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Herausgegeben) Kritische Studienausgabe Berlin Verlag de Gruyter 1999 Bd 3 _____ Genealogie zur Moral In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Herausgegeben) Kritische Studienausgabe Berlin Verlag de Gruyter 1999 Bd 5 _____ Nachgelassene fragmente Herbst 1880 bis Maumlrz 1882 In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Herausgegeben) Achte Abteilung Berlin Walter de Gruyter 1999 Bd 9 _____ Nachgelassene fragmente Herbst 1887 bis Maumlrz 1888 In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Herausgegeben) Achte Abteilung Berlin Walter de Gruyter 1999 Bd 13 _____ Nietzsche Briefwechsel Januar 1885 ndash Dezenber 1886 In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Harausgegeben) Dritte Abteilung Berlin Walter de Gruyter 1981 Bd 3_____ A gaia ciecircncia Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Genealogia da Moral Uma polecircmica Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001MARTON Scarlett Extravagacircncias Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche Satildeo Paulo Discurso Editorial 2000_____ Consciecircncia (Bewusstsein) In Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 p 154-6ONATE Alberto Marcos O crepuacutesculo do sujeito em Nietzsche ou como abrir-se ao filosofar sem metafiacutesica Ijuiacute Editora Unijuiacute 2003PARMEGGIANI Marco Perspectivismo y subjetividade em Nietzsche Maacutelaga Universidad de Maacutelaga 2002PIPPIN Robert B Nietzsche psychology and first philosophy Chicago The University of

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

30

Chicago Press 2006 STEGMAIER Werner As linhas fundamentais do pensamento de Nietzsche Petroacutepolis Editora Vozes 2013

Adriano Geraldo da Silva

31

O cristianismo face agrave criacutetica nietzschiana Pressupostos para um diaacutelogo filosoacutefico

Adriano Geraldo da Silva1

A filosofia nietzschiana eacute marcada natildeo raramente pelo tom riacutespido contra algumas instituiccedilotildees que compotildeem a cena do seacuteculo XIX destacando-se sobretudo sua criacutetica ao Cristianismo cujas caracteriacutesticas satildeo amplamente expostas em diversas de suas obras e de modo mais contundente em O Anticristo As reaccedilotildees por parte dos intelectuais cristatildeos por sua vez foram as mais diversas possiacuteveis desde uma recusa categoacuterica a qualquer tipo de diaacutelogo ateacute aqueles que se abriram para tal possibilidade No presente trabalho apresentam-se alguns pressupostos considerados necessaacuterios para o estabelecimento de um possiacutevel diaacutelogo em chave filosoacutefica entre a filosofia cristatilde e Nietzsche Sabe-se contudo que este diaacutelogo tem seus limites Por um lado temos a criacutetica contundente nietzschiana a qual natildeo permite qualquer forma de ldquocristianizaccedilatildeordquo o que seria trair a originalidade de suas intenccedilotildees Por outro lado natildeo seria possiacutevel aqui definir uma ldquoessecircncia cristatilderdquo uma vez que o fenocircmeno cristianismo possui uma seacuterie de vertentes cujas facetas se modificaram ao longo dos seacuteculos que compotildee a sua histoacuteria Ainda observando o cristianismo natildeo se trata tambeacutem de repensaacute-lo ao modo nietzschiano mas de lhe propor sem nenhuma pretensatildeo um exame de consciecircncia sobre a autenticidade de seu discurso

O diaacutelogo que aqui se pretende fundamenta-se em dois eixos distintos primeiramente eacute preciso considerar o modo pelo qual o cristianismo foi interpelado pelos textos de Nietzsche bem como o teor de suas criacuteticas e sobretudo qual cristianismo foi alvo de sua censura Em segundo lugar eacute preciso considerar o que eacute especiacutefico do cristianismo ndash sem a pretensatildeo de apresentar aqui uma ldquoessecircncia do cristianismordquo ndash bem como as formas diversas que o cristianismo tomou ao longo de sua histoacuteria apesar de sua especificidade o que permite observar de modo preciso em quais dessas formas predominam as caracteriacutesticas denunciadas por Nietzsche A partir destes eixos apresentados desenvolve-se o presente trabalho

Em primeiro lugar cabe uma anaacutelise do texto nietzschiano o que torna perceptiacutevel ao leitor que o cristianismo eacute tomado primeiramente como uma forma moral na qual se cria um mundo ilusoacuterio distante da realidade

Nem a moral e nem a religiatildeo tem no cristianismo contato com algum ponto da realidade Causas puramente imaginaacuterias (lsquoDeusrsquo lsquoalmarsquo lsquoeursquo lsquoespiacuteritorsquo lsquoa vontade livrersquo e tambeacutem a natildeo livre) efeitos puramente imaginaacuterios (lsquopecadorsquo lsquoredenccedilatildeorsquo lsquograccedilarsquo lsquocastigorsquo lsquoremissatildeo dos pecadosrsquo)

1 Faculdade Catoacutelica de Pouso Alegre

O cristianismo face agrave criacutetica

32

[] Este puro mundo de ficccedilotildees se distingue muito a seu desfavor do mundo dos sonhos pelo fato de que este reflete a realidade enquanto aquele a falsifica desvaloriza em suma nega a realidaderdquo (AC 15)

Natildeo obstante aleacutem de cindir a realidade em dois mundos2 o cristianismo cria uma oposiccedilatildeo de valor entre ambos Diraacute Nietzsche

Uma vez inventado o conceito de lsquonaturezarsquo como antiacutetese ao conceito rsquoDeusrsquo a palavra para expressar lsquoreprovaacutevelrsquo teve que ser lsquonaturalrsquo ndash todo aquele mundo de ficccedilotildees tem sua raiz no oacutedio ao natural (a realidade) eacute expressatildeo de um profundo descontentamento com o real poreacutem com esta afirmaccedilatildeo tudo se aclara (AC 15)

Neste sentido a experiecircncia cristatilde seria restrita agrave negaccedilatildeo da natureza humana baseada numa forma de ascese como modo de aproximaccedilatildeo do niacutevel espiritual Desta constataccedilatildeo Nietzsche tira quatro conclusotildees as quais traccedilam um fio condutor desde o sentimento de sofrimento com a efetividade da vida ateacute o infortuacutenio da deacutecadence a) quem nega a efetividade eacute justamente quem sofre com ela [ldquoQuem eacute o uacutenico a possuir razotildees para esquivar-se atraveacutes de uma mentira da realidade Aquele que sofre com elardquo (AC15)] b) quem sofre com a efetividade eacute na verdade uma efetividade malograda fracassada c) esta efetividade malograda cria por sua vez a moral e a religiatildeo cuja causa eacute a preponderacircncia dos sentidos de desprazer sobre os sentidos de prazer d) esta eacute a foacutermula para a decadecircncia ldquoEm Deus [tido sobretudo como fundamento da realidade natildeo efetiva ou ilusoacuteria] declarada a hostilidade agrave vida agrave natureza agrave vontade de vida [] Em Deus divinizado o nada santificada a vontade de nadardquo (AC 18) Do que fora exposto pode-se estabelecer a seguinte equaccedilatildeo Fraqueza ndash Antinatureza ndash Ficccedilatildeo religiosa (estabelecimento de noccedilotildees como pecado e vida eterna) ndash Moral (que tem por causa e finalidade as ficccedilotildees religiosas) ndash Decadecircncia

Este primeiro eixo sintetiza enfim o que seriam as caracteriacutesticas na anaacutelise de Nietzsche sustentadoras da moral cristatilde a noccedilatildeo de pecado e de consciecircncia (como possibilidade de avaliar moralmente os proacuteprios atos autoconsciecircncia maacute consciecircncia ou sentido de culpa) Natildeo se trata aqui de fazer uma longa e aprofundada explanaccedilatildeo das ideias de pecado e consciecircncia mas apenas de indicar seu lugar dentro da criacutetica nietzschiana ao cristianismo Sobretudo eacute preciso dizer que ambas as noccedilotildees estatildeo intrinsecamente ligadas de tal modo que em Genealogia da moral Nietsche associa no acircmbito preacute-histoacuterico quando da formaccedilatildeo da memoacuteria no animal homem a ideia de culpa e maacute consciecircncia como fundamentais para o desenvolvimento da religiatildeo a partir da ideia de sacrifiacutecio e ascese Ou seja da inibiccedilatildeo de sua descarga de vontade o homem interioriza-se encontra-se como um animal consciente de si e de sua culpa (da culpa natural das pulsotildees volitivas)

[] Os velhos instintos natildeo cessaram repentinamente de fazer suas exigecircncias Mas era difiacutecil raramente possiacutevel lhes dar satisfaccedilatildeo [] Todos os instintos que natildeo se descarregam para fora voltam-se para dentro ndash isto eacute o que chamo de interiorizaccedilatildeo do homem eacute assim que no homem cresce o que depois se denomina sua lsquoalmarsquo (GM II 16)

2 Eacute preciso ressaltar que o cristianismo natildeo cria especificamente esta cisatildeo entre dois mundos Aqui Nietzsche tem em mente a filosofia socraacutetico-platocircnica e a distinccedilatildeo entre real e ideal Todavia esta distinccedilatildeo eacute assimilada pela teologia cristatilde e legitimada pela filosofia moderna

Adriano Geraldo da Silva

33

Na consciecircncia moral reside o que haacute de mais elaborado pelo cristianismo segundo Nietzsche Justamente nesta consciecircncia moral se defenestram os instintos e a vontade de vida agrave medida em que o homem se torna doente a partir de sua fraqueza Natildeo lhes resta outra saiacuteda a natildeo ser formular dispositivos que lhe permitam ainda que ilusoriamente superar seu estado de fraqueza e doenccedila Em outras palavras esta construccedilatildeo teoacuterica se configura como verdadeiro ato de rebeliatildeo e de vinganccedila A moral cristatilde em suma nasce da fraqueza e do oacutedio oriundo desta fraqueza impossibilitado de realizar qualquer tipo de vinganccedila senatildeo ilusoacuteria Portanto o que move o cristianismo como instituiccedilatildeo racional e moral seria a sede de vinganccedila do tipo psicoloacutegico fraco e doente em vista de sua dominaccedilatildeo sobre aqueles que verdadeiramente satildeo nobres As doutrinas cristatildes se convertem em verdadeiro narcoacutetico para a cultura dos miseraacuteveis Reduzido agrave moral o cristianismo teria como motivaccedilatildeo a vinganccedila e o oacutedio

A partir deste primeiro eixo e sem pretender nenhum tipo de sistematizaccedilatildeo artificial nem nenhum achatamento das variaccedilotildees lexicais e conceituais presentes na obra nietzschiana propotildee-se aqui a identificaccedilatildeo das teses mais recorrentes de Nietzsche em sua anaacutelise do cristianismo Mais do que um retrato exaustivo elas pretendem apenas facilitar uma visatildeo de conjunto que seraacute uacutetil para a continuaccedilatildeo da reflexatildeo

1- O cristianismo eacute uma religiatildeo que perdeu sua essecircncia religiosa (perdeu o sentimento dos mitos) pondo no lugar dela a pretensatildeo de historicidade e racionalidade no que se distancia da Antiguidade grega

2- O cristianismo opotildee-se agrave postura esteacutetica diante do mundo3- O cristianismo eacute oposiccedilatildeo agrave vida efetiva4- O cristianismo eacute sinocircnimo de fraqueza5- As proacuteprias formulaccedilotildees cristatildes satildeo incoerentes agrave medida em que se desvirtua ateacute

mesmo a Sagrada escritura com o intuito de fundamentar suas tesesSe a interpretaccedilatildeo nietzschiana vecirc no cristianismo a consequecircncia da rebeliatildeo

fraca na moral (de tal modo que os fracos sedentos de vinganccedila mas impotentes para realizaacute-la elaboram a moral como forma de imposiccedilatildeo sobre o modo de valorar nobre) parece legiacutetimo perguntar para aleacutem do trabalho teoacuterico de interpretaccedilatildeo do cristianismo feito por Nietzsche pelas formas cristatildes histoacutericas com as quais ele teve contato e que o levaram a tal trabalho teoacuterico Natildeo se trata de buscar algo como ldquocausas histoacutericasrdquo de seu pensamento mas as vivecircncias efetivas e de caraacuteter cristatildeo que representavam para Nietzsche a manifestaccedilatildeo do que ele denominava a ldquoessecircnciardquo do cristianismo Em outras palavras trata-se de procurar identificar nos textos do proacuteprio Nietzsche referecircncias a vivecircncias cristatildes histoacutericas do ressentimento

Ao proceder a esse tipo de leitura nota-se que as referecircncias fundamentais de Nietzsche podem ser associadas ao cristianismo tal como concebido em continuidade com a Reforma Protestante iniciada por Lutero especialmente na forma do pietismo Certamente a ldquovivecircncia protestante e pietistardquo podia ser encontrada tambeacutem em formas histoacutericas do catolicismo mas isso natildeo vem ao caso aqui porque o que interessa eacute destacar vivecircncias cristatildes modeladas pelo ressentimento (independentemente de serem de matriz protestante ou catoacutelica) Historicamente o cristianismo reformado e pietista seriam as duas formas fundamentais com as quais Nietzsche deparou na Alemanha do seacuteculo XIX A caracteriacutestica central dessas formas estaria sem duacutevida na identificaccedilatildeo exacerbada da

O cristianismo face agrave criacutetica

34

experiecircncia cristatilde com uma moralidade a ponto de oferecer a Nietzsche a possibilidade de distinguir entre o cristianismo de Paulo (moralista e inautecircntico) e o cristianismo de Jesus (autecircntico mas terminado na cruz)

A contraposiccedilatildeo com o Renascimento permite entender o sentido identificado por Nietzsche na Reforma Protestante Com efeito Renascimento e Reforma constituem o conjunto de eventos que marcaram profundamente a eacutepoca moderna na medida em que estabeleceram uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre si (cf Valadier 1982 p 107)

Ateacute agora houve apenas esta grande guerra e nada mais decisivo que o questionamento da Renascenccedila [] Tambeacutem nunca houve uma forma de ataque mais radical mais direta mais severa em todo o fronte contra o centro Atacar no lugar decisivo na proacutepria sede do cristianismo colocar aiacute no trono os valores nobres quer dizer introduzi-los nos instintos necessidades apetites mais baacutesicos [] O que ocorreu Um monge alematildeo Lutero esteve em Roma Esse monge que levava em seu corpo todos os instintos vingativos de um sacerdote fracassado se indignou em Roma contra o Renascimento (AC 61)

Quanto ao segundo eixo eacute preciso definir o que seria o especiacutefico cristatildeo bem como suas formas histoacutericas e qual a predominacircncia em sentido de ideologia persiste na denominaccedilatildeo cristatilde Neste momento do trabalho satildeo articulados alguns textos de Max Scheller e Joseph Ratzinger no que diz respeito agrave especificidade do cristianismo e uma posiccedilatildeo com relaccedilatildeo agraves criacuteticas nietzschianas O cristianismo eacute tomado por estes autores natildeo a partir do estabelecimento de uma doutrina moral mas sobretudo a partir de um caraacuteter precisamente existencial o que por sua vez mostra como vaacutelidas as criacuteticas de Nietzsche como fora dito anteriormente que faz ao cristianismo realizar um verdadeiro exame de consciecircncia sobre suas escolhas teoacutericas e praacuteticas desde que se considere algumas formas histoacutericas especiacuteficas e natildeo o cristianismo como um todo Em linhas gerais tal diaacutelogo o qual eacute almejado requer como dado inegociaacutevel a clara consciecircncia de que o cristianismo natildeo eacute em primeiro lugar uma moral assim como a feacute cristatilde natildeo nasce de uma decisatildeo moral

Max Scheler por exemplo se encarregaraacute de mostrar que a criacutetica nietzschiana do cristianismo natildeo pressupotildee o cristianismo em sua ldquopureza essencialrdquo3 livre das mutaccedilotildees ocorridas ao longo da Histoacuteria Assim a distinccedilatildeo entre um cristianismo essencial e autecircntico de um lado e um cristianismo histoacuterico e eventualmente inautecircntico de outro permite entrever que a posiccedilatildeo de Nietzsche eacute correta ao apontar para riscos efetivos no seio do cristianismo como o ressentimento o excessivo espiritualismo como fuga do mundo etc Dessa perspectiva uma consideraccedilatildeo da criacutetica nietzschiana pode ser de grande importacircncia para a autoanaacutelise cristatilde ldquoO que Nietzsche nos ensina mediante essa criacutetica a lsquomarteladasrsquo eacute a necessidade de submeter a uma criacutetica vigorosa o desejo que lhe confere seu valor aos olhos do proacuteprio crente antes de aderir a uma convicccedilatildeordquo (cf Granier 1981 p 128)

Parece-nos vaacutelido entatildeo fazer uma distinccedilatildeo natildeo apenas na interpretaccedilatildeo nietzschiana do cristianismo mas dentro do proacuteprio desenvolvimento histoacuterico do mesmo entre formas autecircnticas cujo frescor resguarda os lampejos da experiecircncia original e formas inautecircnticas sobretudo corrompidas de acordo com interesses nascidos no desenrolar histoacuterico Eacute justamente nesta distinccedilatildeo que encontra-se guardadas as devidas proporccedilotildees a chave para um diaacutelogo a niacutevel filosoacutefico entre o cristianismo e Nietzsche

3 O vocabulaacuterio da ldquopurezardquo deve ser entendido aqui em continuidade com o vocabulaacuterio fenomenoloacutegico (proacuteximo agrave forma vazia por exemplo) e natildeo com um vocabulaacuterio eacutetico

Adriano Geraldo da Silva

35

Como se percebe em seus escritos especialmente em O Anticristo Nietzsche distingue entre a figura de Jesus e o movimento cristatildeo posterior de tal modo que o cristianismo jaacute natildeo possuiria nada da existecircncia de seu pretenso fundador que aliaacutes teria sido o uacutenico cristatildeo que existiu de fato (cf Nietzsche 2007 p 77) mas que tambeacutem teria sido desfigurado em sua imagem quando da introduccedilatildeo do fanaacutetico em seu tipo psicoloacutegico (cf Nietzsche 2007 p 68) Entre Jesus e o cristianismo haveria um ato da mais pura sede de vinganccedila (cf Nietzsche 2007 p 80) realizado por Paulo na sistematizaccedilatildeo doutrinaacuteria e moral do cristianismo que seriam a seu ver produtos mais imediatos do ressentimento (cf Nietzsche 2007 p 80)

Natildeo deixa de ser curioso notar certa admiraccedilatildeo nutrida por Nietzsche para com a figura de Jesus No paraacutegrafo 36 de O Anticristo esta admiraccedilatildeo eacute expressa a modo de comparaccedilatildeo quando Nietzsche se diz tambeacutem um espiacuterito que chegou agrave liberdade assim como Jesus eacute dito um espiacuterito livre4 e somente por esta caracteriacutestica eacute que se poderia realizar entatildeo uma verdadeira compreensatildeo daquele evento distante quase vinte seacuteculos de si (cf Nietzsche 2008 p 73) O fato de Nietzsche comparar-se a Jesus indica para aleacutem da admiraccedilatildeo natildeo apenas o desejo de igualaacute-lo mas principalmente de superaacute-lo (cf Biser 1981 p 75) na medida em que propotildee um novo modo de conceber a vida e o mundo

As principais caracteriacutesticas pertencentes agrave figura de Jesus e elencadas por Nietzsche traccedilam um tipo completamente oposto a qualquer fixidez moral ou doutrinal que possa ser encontrada na tradiccedilatildeo eclesiaacutestica ou nos proacuteprios evangelhos Trata-se no dizer de Nietzsche de recompor a figura de Jesus contida nos evangelhos apesar de os evangelhos conterem todas as possiacuteveis desfiguraccedilotildees feitas pelas primeiras comunidades cristatildes que os transformaram em um modo de promover a autoafirmaccedilatildeo de sua doutrina e moral (cf Nietzsche 2007 p 64) Para Nietzsche Jesus eacute este espiacuterito livre (cf Nietzsche 2007 p 69) cujo discurso natildeo possui nenhuma foacutermula tampouco condiccedilotildees rituais para se comunicar com Deus (cf Nietzsche 2007 p 71) A praacutetica de Jesus para Nietzsche jaacute natildeo se situa em um aleacutem-vida e aleacutem-homem trata-se ao contraacuterio de uma praacutetica que assume a condiccedilatildeo humana sem rechaccedilaacute-la ( Jaspers 1978 p 30)

O proacuteprio reino anunciado por Jesus natildeo se confunde com qualquer estrutura poliacutetica mas trata-se de um estado do coraccedilatildeo que aliaacutes natildeo eacute reservado para uma vida aleacutem mas acontece agora (cf Nietzsche 2007 p 72) Nietzsche viu no reino anunciado por Jesus o oposto do que se via no cristianismo principalmente em formulaccedilotildees nas quais prevalecia o aspecto excessivamente moral

No entanto eacute tambeacutem verdade que em suas formas histoacutericas o cristianismo e as praacuteticas cristatildes individuais tornaram e ainda tornam opaca a autenticidade da experiecircncia cristatilde Vista sob esse aspecto a criacutetica nietzschiana parece acertada e vaacutelida

4 Eugen Biser alude a esta admiraccedilatildeo de Nietzsche para com a figura de Jesus de modo que o proacuteprio modo como Nietzsche realiza sua leitura do evento cristatildeo e ateacute mesmo da filosofia demonstra por sua vez certa semelhanccedila com o nazareno ldquoComo Jesus se considerava a luz que brilha nas trevas tambeacutem Nietzsche se sentiu como uma superabundacircncia de luz Como se narra que Jesus falava com plena autoridade tambeacutem Nietzsche tendia a mandar em vez de argumentar como Jesus chamava agrave conversatildeo tambeacutem Nietzsche exige a revalorizaccedilatildeo de todos os valores Como Jesus viveu na consciecircncia de que com ele chegara a plenitude dos tempos tambeacutem Nietzsche se sentiu como o acontecimento importante que faz eacutepoca que redetermina a histoacuteria da humanidaderdquo (Biser 1981 p 75)

O cristianismo face agrave criacutetica

36

Referecircncias bibliograacuteficas

Obras de NietzscheNIETZSCHE Friedrich El Anticristo Trad Andreacutes Sancheacutes Pascual Madrid Alianza Editorial 2007_____ Genealogia da Moral Uma polecircmica Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ La genealogia de la moral Trad Andreacutes Sancheacutes Pascual Madrid Alianza Editorial 2005_____ Obras Incompletas Trad Rubens Rodrigues Torres Filho Satildeo Paulo Abril Cultural 1999

Obras sobre Nietzsche e o cristianismoBENTO XVI A ldquoconversatildeordquo de Satildeo Paulo Audiecircncia Geral Disponiacutevel em httpsw2vaticanvacontentbenedictxviptaudiences2008documentshf_ben-xvi_aud_20080903html 3 de setembro de 2008BISER Eugen Relaccedilatildeo de Nietzsche com Jesus um confronto psico-literaacuterio Concilium Nietzsche e o Cristianismo Petroacutepolis Editora Vozes vol 165 n 5 paacuteg 74 ndash 82 1981CONCILIUM Nietzsche e o Cristianismo (Revista) Petroacutepolis Editora Vozes vol 165 n 5 1981FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Trad Joaquim Lourenccedilo Duarte Peixoto Lisboa Editorial Presenccedila 1988GRANIER Jean Pensar com e contra Nietzsche Concilium Nietzsche e o Cristianismo Petroacutepolis Editora Vozes vol 165 n 5 paacuteg 124 ndash 130 1981JASPERS Karl Nietzsche ndash Introduction agrave sa philosophie Trad Henri Niel Paris Gallimard 1950 _____ Nietzsche e il cristianesimo Trad Maria Dello Preite Bari Ecumenica Editrice 1978MUumlLLER-LAUTER Wolfgang A doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche Trad Oswaldo Giacoia Juacutenior Satildeo Paulo ANNABLUME 1997 _____ Nietzsche sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia Trad Claudemir Araudi Satildeo Paulo Editora Unifesp 2009SCHELER Max Da reviravolta dos valores Trad Marco Antocircnio dos Santos Casanova Petroacutepolis Editora Vozes Braganccedila Paulista Editora Universitaacuteria 2012SLOTERDJIK Peter Il quinto ldquoVangelordquo di Nietzsche Sulla correzione delle buone noticie Trad Eleonora Florio Milano Mimesis Edizioni 2015VALADIER Paul A condiccedilatildeo cristatilde Estar no mundo sem ser do mundo Trad Benocircni Lemos Aparecida Editora Santuaacuterio 2006 _____ Nietzsche y la critica del Cristianismo Trad Eloy Rodriguez Navarro Madrid Ediciones Cristandad 1982WOTLING Patrick Nietzsche e o problema da civilizaccedilatildeo Trad Vinicius de Andrade Satildeo Paulo Editora Barcarolla 2013

Alianna Caroline Sousa Cardoso

37

Da genealogia da teoria do crime no direito penal brasileiro Uma criacutetica ao livre - arbiacutetrio a partir de Nietzsche e a neurociecircncia

Alianna Caroline Sousa Cardoso1

IntroduccedilatildeoO direito penal brasileiro atua em consonacircncia com a perspectiva da imputabilidade

enquanto a possibilidade de se atribuir a autoria ou responsabilidade por fato criminoso a algueacutem Diante dessa oacutetica parte-se do pressuposto de que o indiviacuteduo criminoso eacute responsaacutevel pela conduta a ele atribuiacuteda e por ela deve ser punido Toda a teoria do crime encontra-se pois vinculada a uma ideia de que mencionado indiviacuteduo seria livre para a execuccedilatildeo da accedilatildeo criminosa e por ela teria optado por isto por ela deve ser responsabilizado A hipoacutetese sustentada nesse trabalho2 pressupotildee por outro lado ser possiacutevel conceber em Nietzsche que o problema da liberdade que se apresenta dentro do direito penal brasileiro como mecanismo de estrutura do segmento da punibilidade encontra-se vinculado agrave bases fundacionais de uma moralidade cristatilde arraigada numa perspectiva contratual utilitaacuteria cuja concepccedilatildeo tem eacutegide no modo como concebemos a ideia de livre-arbiacutetrio desde Santo Agostinho Mencionado livre-arbiacutetrio eacute levado a cabo na construccedilatildeo da ideia de escolha consciente

O problema da consciecircncia eacute abordado pela filosofia desde muito A partir de Descartes o que se tem eacute a separaccedilatildeo mente-corpo e toda a filosofia se desmembra a partir desta classificaccedilatildeo Em que pese possa-se afirmar que amplos debates ainda se mostram possiacuteveis natildeo houve ainda nenhum consenso acerca do papel da consciecircncia e de qual seria sua importacircncia na constituiccedilatildeo das accedilotildees humanas Sabe-se no entanto que existe uma ideia formada e que eacute pano de fundo para afirmaccedilotildees do senso comum de que a consciecircncia eacute palco da razatildeo e esta atua de modo moral a partir de uma ideia de vontade ou seja atua conscientemente aquele que afirma eu quero

Destarte Nietzsche noutro norte propotildee numa oacutetica perspectivista outro vieacutes a partir da concepccedilatildeo de uma fisiologia bioloacutegica sustentada por ele ainda no Seacuteculo XIX e que segue

1 Universidade Federal de Pelotas ndash UFPel2 O presente artigo eacute um recorte da Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Banca Examinadora do Programa de PoacutesGraduaccedilatildeo

strictu sensu em filosofia pela Universidade Federal de Mato Grosso como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre sob a orientaccedilatildeo do Professor Doutor Tiegue Vieira Rodrigues intitulada ldquoUma anaacutelise Genealoacutegica do Direito e da Pena de Prisatildeo a partir da filosofia de Friedrich Nietzscherdquo defendida em 09 de Novembro de 2016 podendo ser encontrada em httpwwwufmtbrufmtunidadeuserfilespublicacoesc7bc6613a109d9dc7084da-d742c66246pdf tambeacutem faz parte dos estudos desenvolvidos em sede de doutoramento para a construccedilatildeo da tese denominada ldquoO PROBLEMA DA LIBERDADE EM NIETZSCHE E NA NEUROCIEcircNCIA Contribuiccedilotildees para a Criacutetica ao Livre-Arbiacutetrio no Direito Penal Brasileirordquo sob a orientaccedilatildeo do Professor Dr Clademir Araldi na Universidade Federal de Pelotas- UFPel

Da genealogia da teoria do crime no direito

38

sendo alvo de debates tambeacutem dentro de outras ciecircncias como a psicologia a neurociecircncia bem como outros eixos da filosofia como a epistemologia moral a filosofia analiacutetica e a filosofia da mente O principal foco de discussatildeo eacute a influecircncia ou natildeo de circunstacircncias bioloacutegicas que possam condicionar o comportamento humano enquanto necessaacuterio e de que modo eacute possiacutevel pensar o indiviacuteduo e o problema da consciecircncia a partir de perspectivas fisio(psico)loacutegicas Sustentamos pois que a par da moralidade insculpida no comportamento humano a partir de traccedilos de uma tradiccedilatildeo cultural subsiste no homem uma moralidade compartilhada biologicamente por meio de processos inconscientes que podem contribuir para pensarmos numa tradiccedilatildeo geneacutetica donde a moralidade perpassa o caraacuteter bioloacutegico

Atraveacutes do perspectivismo Nietzschiano sustentamos ser possiacutevel analisar algumas ideias desenvolvidas pelas ciecircncias naturais para a determinaccedilatildeo da personalidade e os problemas disso resultantes sob uma anaacutelise dos estudos de Nietzsche acerca da junccedilatildeo que faz de conceitos cientiacuteficos e filosoacuteficos para a construccedilatildeo de sua ideia de liberdade a partir de sua ldquoteoria das forccedilasrdquo e a consequente tomada de sua filosofia a partir da ideia de inconsciente e sua correlaccedilatildeo com as funccedilotildees fisioloacutegicas do corpo

O principal foco de discussatildeo eacute a noccedilatildeo de consciente sob a oacutetica da fisiologia do corpo orgacircnico como guia para verificar a origem dos sentimentos e valores morais bem como como fio condutor da teoria nietzschiana da interpretaccedilatildeo sobretudo de sua psicologia da cultura moderna Retratamos pois o acircmbito ldquopsicoloacutegicordquo da existecircncia humana assimilado pela compreensatildeo do valor da vida pelo vieacutes fisioloacutegico tornando-se possiacutevel falarmos de uma ldquopsicofisiologiardquo ou de uma ldquofisiopsicologiardquo em Nietzsche (FREZZATTI 2006)

Objetivamos pois avaliar a reflexatildeo de Nietzsche acerca da suposta projeccedilatildeo de causas das impressotildees sensiacuteveis no mundo externo ou seja a ideia do filoacutesofo acerca da causa interna de uma accedilatildeo correlacionando a criacutetica Nietzschiana agrave ideia de liberdade da vontade e as accedilotildees (in)conscientes a partir de sua fisiologia e recentes estudos da neurociecircncia Para analisar se eacute possiacutevel afirmar a existecircncia de uma liberdade da vontade nas accedilotildees humanas ou se esta estaacute inserida no campo do inconsciente

A filosofia contemporacircnea ainda se debruccedila no tema da consciecircncia sem de fato chegar a uma conclusatildeo especiacutefica acerca da subjetividade existente nas experiecircncias Por natildeo haver um entendimento paciacutefico algumas subdivisotildees terminaram por emergir Citemos por exemplo os eliminativistas que eliminam qualquer caraacuteter qualitativo da experiecircncia Aleacutem destes tambeacutem precisamos considerar aqueles que negam a ideia da manifestaccedilatildeo da consciecircncia unicamente sob a oacutetica neurofisioloacutegica e ainda os que a consideram sob uma oacutetica naturalista

Acerca da divisatildeo corpo-mente GUIMARAtildeES (2010 p 215-216) nos apresenta um apanhado dos debates existentes

David Chalmers em ldquoFacing Up to The Problem of Consciousnessrdquo (1995) coloca que o problema filosoacutefico ldquodurordquo acerca da consciecircncia (the hard philosophical problem) eacute abordaacute-la a partir do problema da identidade entre o fiacutesico e o mental Para Thomas Nagel (1992) por exemplo haveria uma espeacutecie de lacuna (gap) entre a consciecircncia fenomenal e as explicaccedilotildees fisicalistas de descriccedilotildees da experiecircncia fenomenoloacutegica Segundo Nagel identificar o fenocircmeno mental com o fiacutesico reduziria a consciecircncia a meros processos neuroquiacutemicos e com isso natildeo haveria a necessidade

Alianna Caroline Sousa Cardoso

39

da qualidade da experiecircncia subjetiva os qualia fazendo com que sua concepccedilatildeo juntamente com a de Chalmers encaixe-se no segundo grupo referido anteriormente Apesar de natildeo defender a existecircncia dos fenocircmenos da consciecircncia sem o suporte fiacutesico do ceacuterebro e de suas funccedilotildees neuroquiacutemicas e fisioloacutegicas os proponentes desta concepccedilatildeo crecircem que a consciecircncia e os qualia possuam um domiacutenio privado da perspectiva do sujeito na primeira pessoa que natildeo pode ser inteiramente naturalizado nem compreendido O fisicalismo poderia predizer da perspectiva da terceira pessoa as correlaccedilotildees entre os qualia e as condiccedilotildees objetivas do ceacuterebro mas natildeo pode explicaacute-las satisfatoriamente Daniel Dennett (2003) e Fred Dretske (1997) defendem a tese de que nenhum fato consciente pode ser acessiacutevel apenas a um sujeito sob um uacutenico ponto de vista Dennett tem a sua teoria da heterofenomenologia em que a consciecircncia eacute descrita da perspectiva da terceira pessoa em uma abordagem que permite uma espeacutecie de organizaccedilatildeo e catalogaccedilatildeo dos dados primaacuterios que esta recebe Jaacute os naturalistas da mente procuram oferecer uma explicaccedilatildeo dos fatos mentais a partir de uma descriccedilatildeo dos estados e processos mentais como aspectos relativos ao ceacuterebro e ao sistema nervoso central Dentre estes estaacute Dretske que propotildee uma naturalizaccedilatildeo da consciecircncia segundo uma abordagem representacionalista () O que Dretske procura fazer grosso modo eacute a preservaccedilatildeo do caraacuteter subjetivo e privado dos qualia compatibilizando isto com a ideacuteia dos mesmos poderem ser determinados objetivamente atraveacutes de uma relaccedilatildeo representacional

De fato o debate no entorno da epistemologia moral estaacute intimamente ligado agrave ideia de como se daacute a relaccedilatildeo entre a mente (ou psique) e o corpo a partir dos escritos de Descartes No entanto independentemente de qual posiccedilatildeo adotarmos perante a ideia que se coloca frente ao dilema da existecircncia ou natildeo de uma separaccedilatildeo eacute impossiacutevel ignorarmos que dentro da proacutepria histoacuteria da filosofia alguns nomes como Hipoacutecrates com sua teoria dos humores e Galeno que a ela aperfeiccediloou estabeleciam relaccedilotildees no miacutenimo coerentes entre um elemento e outro3

Tambeacutem natildeo se pode ignorar a presenccedila dos questionamentos acerca de tais elementos e suas configuraccedilotildees jaacute em Aristoacuteteles por exemplo que indagou sobre como e porquecirc a mente capaz de sentir ldquobem como perceber ou captar impressotildees interage com objetos que aparentemente natildeo apresentam tais propriedades ou seja que ldquopresumivelmenterdquo natildeo satildeo sensitivos ou capazes de apreender impressotildeesrdquo (FARIA 2006 p10)

Desde entatildeo inuacutemeras satildeo as teorias que se desenharam no entorno desse incompreensiacutevel campo e mesmo as ciecircncias que utilizam como objeto de estudo especiacutefico o campo do inconsciente como a psicologia a psicanaacutelise (derivada de Freud e suas incursotildees) ateacute a proacutepria neurociecircncia ainda natildeo foram capazes de chegar a um consenso sobre o assunto

Contemporaneamente ao se arquitetar a ideia de consciecircncia atraveacutes da relaccedilatildeo mente-corpo e a consequente interligaccedilatildeo com processos qualitativos da experiecircncia problemas de ordem ontoloacutegicos e epistemoloacutegicos surgem e a complexidade em superaacute-los fica ainda mais evidente Certo ainda eacute que ao se mencionar a ideia de consciente trecircs outros elementos se insurgem como pontos de reflexatildeo necessaacuterios quais sejam a razatildeo (em especial com a absorccedilatildeo pela filosofia da ideia de racionalidade a partir de Descartes) o livre-arbiacutetrio e sua relaccedilatildeo com a perspectiva da ideia de liberdade da vontade consciente

3 Cf FARIA 2006 p 9

Da genealogia da teoria do crime no direito

40

e a moralidade que se insurge como ponto fulcral na forma como os aspectos qualitativos das experiecircncias se correlacionam com a percepccedilatildeo da consciecircncia

Note-se no entanto que a neurociecircncia segue comprovando-nos experimentalmente que uma ligaccedilatildeo ainda natildeo decifrada cria uma ponte entre o que se conhece da mente e o modo como o ceacuterebro atua diante das experiecircncias ajudando-nos a corroborar o entendimento de Nietzsche acerca dos processos bioloacutegicos inerentes ao corpo fiacutesico e que se relacionam com a ideia de consciente

Nietzsche concebe o homem a partir de uma teoria das forccedilas e confere ao homem o que ele viraacute chamar de vontade de potecircncia natildeo admitindo que sua identidade ou subjetividade possa ser compreendida a partir de uma ideia de consciecircncia Para ele inexiste uma identidade fixa hermeacutetica mas sim mutaacutevel a partir de forccedilas e interpretaccedilotildees Nesse sentido ideias como responsabilidade foram articuladas como atributos para respostas morais e a consciecircncia ganhou uma compreensatildeo delimitada a partir da culpa como meacutetodo de orientaccedilatildeo moral para o funcionamento de uma sociedade propositadamente condicionada

Para Nietzsche a linguagem tem grande potencial no condicionamento das respostas morais que segundo o filoacutesofo satildeo desenvolvidas no inconsciente MATTIOLI (2017) indica que Nietzsche pretende demonstrar uma cadeia condicional de pensamento a partir de funccedilotildees gramaticais inconscientes A reflexatildeo do autor diz respeito ao aforismo 20 de Aleacutem do bem e do mal onde segundo Nietzsche os filoacutesofos descrevem ldquoagrave mercecirc de um encanto invisiacutevelrdquo e ldquograccedilas ao domiacutenio e direccedilatildeo inconsciente das mesmas funccedilotildees gramaticaisrdquo sempre a mesma oacuterbita ldquoDessa forma eles preenchem sempre um certo esquema baacutesico de filosofias possiacuteveis o que significa que seu pensamento apesar do seu sentimento de independecircncia e de sua vontade criacutetica ou sistemaacutetica eacute sempre condicionado inconscientemente pelas estruturas da linguagemrdquo4

Deste modo todas as lsquoverdadesrsquo para o filoacutesofo satildeo apenas interpretaccedilotildees feitas pelo homem acerca dos fenocircmenos do mundo para a elaboraccedilatildeo de um sentido para as coisas Sua oacutetica nos revela ainda que a par das interpretaccedilotildees metafiacutesicas a proacutepria ciecircncia eacute por ela mesma uma abertura perspectivista

Matemaacutetica ndash Vamos introduzir o refinamento e o rigor da matemaacutetica em todas as ciecircncias ateacute onde seja possiacutevel natildeo na crenccedila de que por essa via conheceremos as coisas mas para assim constatar nossa relaccedilatildeo humana com as coisas A matemaacutetica eacute apenas o meio para o conhecimento geral e derradeiro do homem5

O que temos entatildeo eacute um filoacutesofo comprometido com os questionamentos que produzem uma filosofia moral proacutepria caracterizada por uma ideia de um perspectivismo que consiste em nada mais que uma foacutermula diversa de se pensar a teoria do conhecimento que vinha sendo enraizada na tradiccedilatildeo filosoacutefica Com a afirmaccedilatildeo ldquonatildeo existem fatos mas somente interpretaccedilotildeesrdquo Nietzsche coloca em cheque a possibilidade de conhecimento e de verdade no mundo e tambeacutem promove uma reflexatildeo para aleacutem do que eacute conhecimento e verdade Como consequecircncia temos uma criacutetica agrave epistemologia e sua busca por respostas Para Nietzsche inexiste uma verdade propriamente dita mas tatildeo somente interpretaccedilotildees desta

4 MATTIOLI William Cadernos de Filosofia Alematilde | jan-jun 2017 p 775 Gaia Ciecircncia 246

Alianna Caroline Sousa Cardoso

41

Ateacute que a palavra ldquoconhecimentordquo tenha sentido o mundo eacute cognosciacutevel mas este eacute interpretaacutevel de modos diversos e natildeo existe nele um sentido mas inumeraacuteveis sentidos ldquoPerspectivismordquo Satildeo os nossos desejos que interpretam o mundo os nossos instintos com seus pros e contras Cada instinto eacute uma espeacutecie de sede de domiacutenio cada um deles possui a sua perspectiva que sempre deseja impor como norma a todos os outros instintos (NachlassFP 1886-1887 7[60] KSA 12315)

Aqui natildeo equivocamos em afirmar que a filosofia da mente tambeacutem defende esse pressuposto a partir de Searle (1997) sob a ideia de que a proacutepria filosofia da linguagem atribui uma intencionalidade intriacutenseca numa correlaccedilatildeo menteceacuterebro em termos bioloacutegicos6 O que corrobora nossa assertiva de que a ideia de responsabilidade como modo de interpretaccedilatildeo natildeo estaria na certificaccedilatildeo verdadeira das condutas que implicam uma liberdade Ou ainda que a proacutepria ideia de liberdade da vontade perpassa pela invocaccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo e nesse sentido a ideia de um consciente separado do corpo estaria tambeacutem sob a oacutetica de uma representaccedilatildeo interpretativa

Nietzsche enquanto criacutetico da moral recusou a ideia de uma moralidade cujas bases sob sua oacutetica encontravam-se vinculadas agrave obediecircncia agrave autoridade de um legislador divino Diante dessa perspectiva refletiu acerca da influecircncia de tais pressupostos para o indiviacuteduo e para a cultura partindo da ideia de que as morais baacutesicas do cristianismo levariam o homem agrave debilidade uma vez que impediria-o de reconhecer as proacuteprias habilidades em nome de uma regra de convivecircncia inibidora de seus instintos e impulsos ignorando suas competecircncias e capacidades de criaccedilatildeo Para Lopes7

Isso o levou a propor experimentos de pensamento e a esboccedilar formas de vida no interior das quais natildeo apenas crenccedilas mas sentimentos morais deixam de comparecer como componentes essenciais Nietzsche foi um dos poucos filoacutesofos a insistir na tese de que a perspectiva do imoralismo deve ser levada a seacuterio ressaltando que haacute bons argumentos a favor de uma reforma de nossas praacuteticas de atribuiccedilatildeo de responsabilidade moral

De fato do que se viu depreende-se que o perspectivismo de Nietzsche estaacute diretamente ligado ao seu ldquofalsificacionismordquo que relaciona organismo e razatildeo na compreensatildeo de mundo nos remetendo ao debate jaacute abordado no presente ensaio em que mente e corpo satildeo colocados como separados e que coloca toda a ideia do consciente como problema supostamente epistemoloacutegico a partir de um vieacutes separatista

Segundo Pietro Gori e Paolo Stellino8

O perspectivismo estaacute particularmente ligado ao chamado ldquofalsificacionismordquo de Nietzsche isto eacute agrave tese de que a relaccedilatildeo do homem com o mundo seja mediada tanto pelo organismo quanto pela razatildeo por meio de um processo de elaboraccedilatildeo do dado sensiacutevel que simplifica a sua complexidade e o reduz a um esquema gerenciaacutevel De tal posiccedilatildeo decorre a ideia de que o conteuacutedo cognoscitivo que o nosso intelecto nos oferece natildeo possui os traccedilos de uma perfeita correspondecircncia com o estado de coisas mas apenas os traccedilos de uma ldquoverdaderdquo pragmaacutetica A posiccedilatildeo pela qual se pode falar de verdade apenas em termos de funcionalidade

6 SEARLE John R A redescoberta da mente Traduccedilatildeo de Eduardo Pereira e Ferreira Martins Fonted 2006 p 2 7 LOPES Cad Nietzsche Satildeo Paulo n 33 p 89-134 2013 P 938 GORI Pietro STELLINO Paolo Cad Nietzsche Satildeo Paulo n 34 - vol I p 101-129 2014 O perspectivismo

moral nietzschianoP 104

Da genealogia da teoria do crime no direito

42

de comunicaccedilatildeo e de accedilatildeo obriga Nietzsche a reconsiderar a proacutepria dicotomia verdade- -erro que ele redefine justamente em termos de utilidade praacutetica (cf FWGC 121) A determinaccedilatildeo do caraacuteter ldquoerrocircneordquo do conhecimento como traccedilo distintivo da nossa espeacutecie eacute um dos aspectos que satildeo abordados nos cadernos preparatoacuterios de FWGC em conexatildeo com o qual Nietzsche introduz pela primeira vez de maneira expliacutecita o tema do perspectivismo

Essa entrada em muito nos interessa uma vez que sua relaccedilatildeo com os elementos fisioloacutegicos eacute o que nos demonstra a inserccedilatildeo de Nietzsche numa interpretaccedilatildeo bioloacutegica que daacute a noacutes a margem para a realizaccedilatildeo de uma ponte dentre o filoacutesofo e os atuais estudos da neurociecircncia Onde pretendemos chegar

Nos parece pois que Nietzsche no percurso de sua obra agrave medida que fundamenta uma oposiccedilatildeo entre a representaccedilatildeo de mundo e a ideia de verdade configura seu pensamento acreditando haver uma distinccedilatildeo entre o que seria discursivamente imposto e a resposta do corpo presente em sua percepccedilatildeo acerca das leis da natureza

O contraste entre essa autecircntica verdade da natureza e a mentira da civilizaccedilatildeo a portar-se como a uacutenica realidade eacute parecido ao que existe entre o eterno cerne das coisas a coisa em si e o conjunto do mundo fenomenal (GT 8 KSA1 p58-9)

Se Nietzsche argumenta sua criacutetica agrave moral com ideias constituiacutedas a partir da oacutetica do corpo natildeo nos equivocariacuteamos em alargar seu perspectivismo e pensar na ideia de que ele mesmo trouxe agrave baila alguns dos resultados mais significativos da pesquisa neurocientiacutefica das uacuteltimas deacutecadas Aqui apresentamos algumas descobertas empiristas a par de recaiacuterem na contradiccedilatildeo existente diante da criacutetica do filoacutesofo agrave ideia de causalidade que podem nos mostrar que atualmente alguns resultados da neurociecircncia podem nos ajudar a pensar a relaccedilatildeo entre crenccedilas morais e fisiologia

Pretendemos apresentar a concepccedilatildeo de que o consciente a razatildeo a liberdade da vontade e a moralidade podem ter fundamentos fisioloacutegicos ignorados pela dicotomia mente-corpo e que embora tratado como um problema epistemoloacutegico a consciecircncia pode de fato ser um problema que mereccedila atenccedilatildeo pelas ideias de uma biologia do corpo e suas accedilotildees inconscientes

Apresentamos pois um exemplo dado pelo fisioacutelogo americano Bejamin Libet de que nossas accedilotildees satildeo iniciadas de modo inconsciente ou seja aquilo que efetivamente daacute origem agrave nossos atos voluntaacuterios natildeo satildeo elementos que podem ser explicados atraveacutes de nossa consciecircncia mas sim processos inconscientes do ceacuterebro ou seja do corpo

A partir desta ideia o fisioacutelogo aduz que o ldquolivre-arbiacutetriordquo natildeo estaacute diretamente ou ainda causalmente relacionado a accedilatildeo propriamente dita Essa conclusatildeo eacute extraiacuteda de uma seacuterie de experimentos relativos ao tempo necessaacuterio para que um determinado conteuacutedo seja representado na consciecircncia

O que encontramos em suma foi que o ceacuterebro exibiu um processo de iniciaccedilatildeo comeccedilando 550 msec antes do ato livremente voluntaacuterio mas a consciecircncia da vontade consciente de executar o ato apareceu apenas de 150 a 200 ms antes do ato O processo voluntaacuterio eacute portanto iniciado inconscientemente cerca de 400 ms antes que o sujeito tome consciecircncia de sua vontade ou intenccedilatildeo de realizar o ato (Libet 2004 p 123s)

Alianna Caroline Sousa Cardoso

43

Dentro de uma oacutetica fisioloacutegica a ideia de que os atos antecedem a uma interpretaccedilatildeo dos acontecimentos encontra-se vinculada a ideia de representaccedilatildeo que em muito condiz com a perspectiva Nietzschiana de processos fisioloacutegicos que manifestam-se para aleacutem de uma moralidade latente constituiacuteda culturalmente

Conforme MATIOLLI (2014)9 Segundo Nietzsche

este atraso se deve ao fato de que o mecanismo interpretativo que estaacute na base da consciecircncia precisa encontrar uma causa determinada para um certo estado fisioloacutegico antes que este estado seja de alguma forma representado na consciecircncia Nietzsche denomina esse mecanismo ldquoimpulso causalrdquo Um exemplo deste processo nos eacute dado pela experiecircncia do sonho

ldquoPartindo do sonho a uma determinada sensaccedilatildeo devida a um longiacutenquo tiro de canhatildeo por exemplo eacute atribuiacuteda posteriormente uma causa [hellip] A sensaccedilatildeo perdura enquanto isso numa espeacutecie de ressonacircncia ela como que aguarda ateacute que o impulso causal lhe permita passar a primeiro plano ndash natildeo mais como acaso mas como ldquosentidordquo O tiro de canhatildeo aparece de modo causal numa aparente inversatildeo do tempo O ulterior a motivaccedilatildeo eacute vivenciado primeiramente [hellip] e o tiro vem depois Que aconteceu As representaccedilotildees produzidas por uma certa condiccedilatildeo foram mal-entendidas como causas delardquo (CI Os quatro 4)

Eacute como dizer em outras palavras que a partir de uma oacutetica fisioloacutegica o organismo se apodera de determinados pressupostos e atua a partir destes de modo inconsciente o que significaria dizer que tais elementos natildeo poderiam constituir senatildeo uma crenccedila moral arraigada que exerce papel de conhecimento de base e atua de maneira que o sujeito natildeo tenha liberdade da vontade para a determinaccedilatildeo de suas accedilotildees

Um fragmento poacutestumo de 1888

toda verdadeira accedilatildeo do mundo externo sucede de modo inconsciente A parcela de mundo externo da qual nos tornamos conscientes surge ulteriormente apoacutes o efeito que eacute exercido sobre noacutes a partir do exterior eacute posteriormente projetada como sua lsquocausarsquo (FP 1888 15[90])

Outro experimento pode contribuir para a concepccedilatildeo da ideia de uma formaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo geneacutetica ou seja uma oacutetica fisioloacutegica para a constituiccedilatildeo de crenccedilas morais para aleacutem de uma tradiccedilatildeo cultural

Uma publicaccedilatildeo meacutedica da Revista US National Library of MedicineNational Institutes of Health da Publimedgov da NCBI10 traz artigo publicado acerca da conexatildeo entre stress poacutes-traumaacutetico e a relaccedilatildeo com DNA Segundo o artigo em questatildeo de autoria de Yehuda R Bierer LM o transtorno de estresse poacutes-traumaacutetico parental (PTSD) tem uma relaccedilatildeo intriacutenseca com os recentes estudos neuroendoacutecrinos na prole de pais com o transtorno

De acordo com o estudo os descendentes de sobreviventes de trauma com PTSD mostram niacuteveis excessivos de excreccedilatildeo urinaacuteria de cortisol de 24 h e niacuteveis de cortisol salivares bem como supressatildeo plasmaacutetica de cortisol aumentada em resposta agrave baixa dose de administraccedilatildeo de dexametasona do que descendentes de sobreviventes sem PTSD Em 9 Estudos Nietzsche Curitiba v 5 n 2 p 305-344 juldez 201410 Disponiacutevel em httpswwwncbinlmnihgovpubmed18037011 Acessado em 04112017

Da genealogia da teoria do crime no direito

44

todos os casos as medidas neuroendoacutecrinas foram correlacionadas negativamente com a gravidade dos sintomas de PTSD parental mesmo apoacutes o controle de PTSD e ateacute mesmo outros sintomas na prole Embora a maioria do trabalho tenha se concentrado em descendentes adultos de sobreviventes do Holocausto observaccedilotildees recentes em bebecircs nascidos de matildees graacutevidas no 11 de setembro demonstram que o baixo cortisol em relaccedilatildeo ao PTSD parental parece estar presente no iniacutecio do desenvolvimento e pode ser influenciado por fatores in utero como a programaccedilatildeo de glicocorticoacuteides Uma vez que os baixos niacuteveis de cortisol estatildeo particularmente associados agrave presenccedila de PTSD materno os achados sugerem o envolvimento de mecanismos epigeneacuteticos

O que a linguagem meacutedica nos traz eacute basicamente que apoacutes analisar dados geneacuteticos colhidos de homens e mulheres que haviam sido prisioneiros nos campos de concentraccedilatildeo nazistas que testemunharam e sofreram torturas ou permaneceram escondidos durante a Segunda Guerra Mundial concluiu que ldquoMudanccedilas geneacuteticas derivadas de traumas sofridos por sobreviventes do Holocausto podem ser transmitidas aos filhos destes no mais claro sinal ateacute o momento de que as experiecircncias de vida de uma pessoa podem afetar as geraccedilotildees subsequentesrdquo

Os pesquisadores tambeacutem analisaram os genes dos filhos dos participantes e encontraram as mesmas mutaccedilotildees que foram constatadas no DNA dos pais O trabalho da equipe de Yehuda vem demonstrar que os traumas satildeo passados dos pais para os filhos atraveacutes da ldquoheranccedila epigeneacuteticardquo que considera mutaccedilotildees geneacuteticas adquiridas por meio de haacutebitos alimentares fumo estresse e agora inclui tambeacutem os traumas emocionais que passando de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo poderatildeo afetar os netos e ainda outras geraccedilotildees 11

Significa dizer em outras palavras que os efeitos intergeracionais natildeo satildeo transmitidos apenas pelas influecircncias sociais dos pais ou pela heranccedila geneacutetica regular mas tambeacutem pelos traumas emocionais Nesse artigo tambeacutem foi citado o estudo sobre a transmissatildeo do medo que nos animais jaacute foi constatado A estas heranccedilas descritas pelo artigo podemos ainda acrescentar a memoacuteria cultural como observada por Menezes (2007 p 28)12 ldquoQuando observamos o corpo como miacutedia primaacuteria natildeo estamos apenas nos referindo agraves suas funccedilotildees bioloacutegicas Percebemos que o corpo aleacutem de ser um organismo vivo uma expressatildeo da natureza tambeacutem tem sua memoacuteria culturalrdquo

Da reflexatildeo apresentada depreende-se ser possiacutevel pensar em Nietzsche como um precursor da ideia de uma criacutetica agrave moral a partir de uma oacuterbita fisioloacutegica De fato os recortes de sua obra apresentados datildeo uma introduccedilatildeo a uma possiacutevel exegese que nos levariam a afirmaccedilatildeo de Nietzsche como um filoacutesofo da moral Nietzsche valoriza a projeccedilatildeo de causas das impressotildees sensiacuteveis no mundo externo atraveacutes de um tipo de etiologia do erro deduzida de nossa vivecircncia do tempo13

Conforme MATTIOLLI

Luca Lupo (2006 p 42) se refere nesse contexto a uma fenomenologia do erro uma vez que a investigaccedilatildeo da origem desse erro cognitivo se daacute no acircmbito da anaacutelise acerca da consciecircncia e de seus processos

11 Reportagem divulgada na Revista GGN na coluna Cidadania em 26082015 por Joatildeo Paulo Caldeira Dispo-niacutevel Em httpsdirectjornalggncombrnoticiatraumas-podem-afetar-genes-de-filhos-de-vitimas Acessado em 10112017

12 MENEZES Joseacute Eugecircnio de Radio e cidade viacutenculos sonoros Satildeo Paulo Annablume 200713 Cf MATTIOLLI William A Temporalidade da consciecircncia e o problema da eficaacutecia causal da vontade em Niet-

zsche Estudos Nietzsche Curitiba v 5 n 2 p 305-344 juldez 2014

Alianna Caroline Sousa Cardoso

45

Nietzsche daacute a esse erro o nome de ldquoerro das causas imaginaacuteriasrdquo Mas a tese que eacute derivada dessa fenomenologia serve ainda como suporte para uma perspicaz criacutetica agrave assim chamada ldquomoral das intenccedilotildeesrdquo Assim como a representaccedilatildeo consciente de uma causa a agir sobre noacutes a partir do exterior a representaccedilatildeo consciente da causa interna de uma accedilatildeo isto eacute a representaccedilatildeo do motivo deve ser vista como um construto a posteriori que eacute imaginado apoacutes a iniciaccedilatildeo do ato No aforismo anterior de Crepuacutesculo dos iacutedolos que trata do erro da falsa causalidade Nietzsche considera o motivo como um mero ldquofenocircmeno superficial da consciecircncia um acessoacuterio do atordquo (CI Os quatro 3) Aqui ocorre igualmente uma inversatildeo do tempo Analisemos o problema mais de perto Num outro fragmento poacutestumo de 1885 intitulado ldquoa ordem temporal invertidardquo Nietzsche esclarece o modus operandi deste mecanismo na constituiccedilatildeo do mundo externo da seguinte forma ldquoO lsquomundo externorsquo age sobre noacutes o efeito eacute telegrafado no ceacuterebro eacute ali ajustado modelado e reconduzido agrave sua causa apoacutes isso a causa eacute projetada e somente entatildeo o fato vecircm agrave consciecircncia Isto eacute o lsquomundo fenomecircnicorsquo aparece a noacutes enquanto causa somente depois que lsquoelersquo agiu e o efeito foi elaborado Isto eacute noacutes invertemos constantemente a ordem daquilo que ocorre ndash Enquanto lsquoeursquo vejo isto jaacute vecirc outra coisa (waumlhrend lsquoichrsquo sehe sieht es bereits etwas Anderes) Ocorre aqui o mesmo que ocorre no caso da dorrdquo (FP 1885 34[54])

O aforismo 354 de ldquoA Gaia Ciecircnciardquo demonstra dois elementos de fundamental importacircncia para compreendermos como funciona o consciente dentro da filosifia de Nietzsche primeiro ele se insurge como aquele que valoriza os processos vitais e segundo assimila os processos do corpo atribuindo-lhes as mesmas configuraccedilotildees psicofisioloacutegicas Vejamos

ldquoDo ldquogecircnio da espeacutecierdquo mdash O problema da consciecircncia (ou mais precisamente do tornar-se consciente) soacute nos aparece quando comeccedilamos a entender em que medida poderiacuteamos passar sem ela e agora a fisiologia e o estudo dos animais nos colocam neste comeccedilo de entendimento (necessitaram de dois seacuteculos portanto para alcanccedilar a premonitoacuteria suspeita de Leibniz) Pois noacutes poderiacuteamos pensar sentir querer recordar poderiacuteamos igualmente ldquoagirrdquo em todo sentido da palavra e natildeo obstante nada disso precisaria nos ldquoentrar na consciecircnciardquo (como se diz figuradamente) A vida inteira seria possiacutevel sem que por assim dizer ela se olhasse no espelho tal como de fato ainda hoje a parte preponderante da vida nos ocorrem sem esse espelhamento (GC 354)

Significa dizer em suma que Nietzsche acredita que a maioria dos processos vitais ocorre sem a necessidade de uma consciecircncia Ou seja tanto processos vegetativos e fisioloacutegicos como comer e digerir para o filoacutesofo funcionam no ser humano como o querer e o pensar sem a necessidade de uma referecircncia de uma consciecircncia para realizar-se No mesmo aforismo Nietzsche prossegue

Para que entatildeo consciecircncia quando no essencial eacute supeacuterflua Bem se querem dar ouvidos agrave minha resposta a essa pergunta e agrave sua conjectura talvez extravagante parece-me que a sutileza e a forccedila da consciecircncia estatildeo sempre relacionadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por sua vez agrave necessidade de comunicaccedilatildeo mas natildeo entenda-se que precisamente o indiviacuteduo mesmo que eacute mestre

Da genealogia da teoria do crime no direito

46

justamente em comunicar e tornar compreensiacuteveis suas necessidades tambeacutem seja aquele que em suas necessidades mais tivesse de recorrer aos outros Parece-me que eacute assim no tocante a raccedilas e correntes de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem a compreenderem uns aos outros de forma raacutepida e sutil () Supondo que esta observaccedilatildeo seja correta posso apresentar a conjectura de que a consciecircncia desenvolveu-se apenas sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeomdash de que desde o iniacutecio foi necessaacuteria e uacutetil apenas entre uma pessoa e outra (entre a que comanda e a que obedece em especial) e tambeacutem se desenvolveu apenas em proporccedilatildeo ao grau dessa utilidade Consciecircncia eacute na realidade apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre as pessoas mdash apenas como tal ela teve que se desenvolver um ser solitaacuterio e predatoacuterio natildeo necessitaria dela O fato de nossas accedilotildees pensamentos sentimentos mesmo movimentos nos chegarem agrave consciecircncia mdash ao menos parte deles mdash eacute consequumlecircncia de uma terriacutevel obrigaccedilatildeo que por longuiacutessimo tempo governou o ser humano ele precisava sendo o animal mais ameaccedilado de ajuda proteccedilatildeo precisava de seus iguais tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensiacutevel mdash e para isso tudo ele necessitava antes de ldquoconsciecircnciardquo isto eacute ldquosaberrdquo o que lhe faltava ldquosaberrdquo como se sentia ldquosaberrdquo o que pensava Pois dizendo-o mais uma vez o ser humano como toda criatura viva pensa continuamente mas natildeo o sabe o pensar que se torna consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos mdash pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia Em suma o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciecircncia (natildeo da razatildeo mas apenas do tomar-consciecircncia-de-si da razatildeo) andam lado a lado

Nesse sentido fico claro que para Nietzsche a consciecircncia tambeacutem eacute fruto de uma invenccedilatildeo catalogada a partir da necessidade de comunicaccedilatildeo Destarte no Proacutelogo da mesma obra Nietzsche menciona sua imensa frustraccedilatildeo com o modo com que a filosofia ateacute entatildeo ignorava as necessidades do corpo e suas manifestaccedilotildees priorizando numa oacutetica cartesiana a ideia de uma racionalidade apoliacutenea tanto refutada por Nietzsche

() frequumlentemente me perguntei se ateacute hoje a filosofia de modo geral natildeo teria sido apenas uma interpretaccedilatildeo do corpo e uma maacute-compreensatildeo do corpo Por traacutes dos supremos juiacutezos de valor que ateacute hoje guiaram a histoacuteria do pensamento se escondem maacutes-compreensotildees da constituiccedilatildeo fiacutesica seja de indiviacuteduos seja de classes ou raccedilas inteiras Podemos ver todas as ousadas insacircnias da metafiacutesica em particular suas respostas agrave questatildeo do valoraacuteagrave existecircncia antes de tudo como sintomas de determinados corpos e se tais afirmaccedilotildees ou negaccedilotildees do mundo em peso tomadas cientificamente natildeo tecircm o menor gratildeo de importacircncia fornecem indicaccedilotildees tanto mais preciosas para o historiador e psicoacutelogo enquanto sintomas do corpo como afirmei do seu ecircxito ou fracasso de sua plenitude potecircncia soberania na histoacuteria ou entatildeo de suas inibiccedilotildees fadigas pobrezas de seu pressentimento do fim sua vontade de fim Eu espero ainda que um meacutedico filosoacutefico no sentido excepcional do termo mdash algueacutem que persiga o problema da sauacutede geral de um povo uma eacutepoca de uma raccedila da humanidade mdash tenha futuramente a coragem de levar ao cuacutemulo a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmaccedilatildeo em todo o filosofar ateacute o momento a questatildeo natildeo foi absolutamente a ldquoverdaderdquo mas algo diferente como sauacutede futuro poder crescimento vida

Alianna Caroline Sousa Cardoso

47

Disto podemos afirmar que o debate mente-corpo configurado sob uma orientaccedilatildeo cartesiana e ainda hoje pano de fundo de diversas consideraccedilotildees acerca da existecircncia dos processos conscientes e o modo como a epistemologia moral agrega a ideia do inconsciente a par das correntes que subsistem e degladiam entre si defendemos a possibilidade do uso da transdisciplinaridade para a tentativa de uma compreensatildeo dos estados imanentes a partir de uma oacutetica fisioloacutegica considerando a consciecircncia tambeacutem como modo de apreensatildeo do conhecimento sem ignorar outrossim tratar-se ambos conceitos de interpretaccedilotildees

Isto quer dizer em suma que acreditamos que o problema filosoacutefico da liberdade da vontade tem relaccedilatildeo intriacutenseca com a ideia de consciente e que pode ser questionado a partir da transdisciplinaridade vinculando-se agraves contribuiccedilotildees da psicologia e da neurociecircncia para se conceber um novo modo de pensar se as accedilotildees humanas satildeo conscientes ou se antes disto encontra razotildees no emaranhado das cadeias neuropsicoloacutegicas a partir de uma fisiologia do corpo

Acreditamos pois que atraveacutes de uma anaacutelise historiograacutefica e a desconstruccedilatildeo de alguns dogmas a filosofia de Nietzsche poderia auxiliar para reatualizar o Direito Penal jaacute que por tratar-se de normatividades juriacutedicas estas denotam-se unilaterais e consequentemente especiacuteficas Sendo assim a memoacuteria da construccedilatildeo do Direito Penal brasileiro seria ferramenta a ser observada atraveacutes de Friedrich Nietzsche nos possibilitando a compreensatildeo dos mecanismos de puniccedilatildeo ampliando as perspectivas para uma nova constituiccedilatildeo do direito penaliacutestico e da proacutepria pena de prisatildeo

Da genealogia da teoria do crime no direito

48

Referecircncias bibliograacuteficas

Referecircncias Primaacuterias

Obras de NietzscheNIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 _____ Aleacutem do bem e do mal Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2007 _____ Aurora reflexotildees sobre os preconceitos morais Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2004 _____ Cinco prefaacutecios para cinco livros natildeo escritos Trad de Pedro Suumlssekind Rio de janeiro 7 Letras 2000 _____ Crepuacutesculo dos iacutedolos ou como se filosofa com o martelo Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2010 _____ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2008 _____ Fragmentos poacutestumos (1875-1882) (Vol II) Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego Saacutenches Meca Madrid Editorial Tecnos (Grupo Anaya S A) 2008 _____ Fragmentos poacutestumos (1882-1885) (Vol III) Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego Saacutenches Meca Madrid Editorial Tecnos (Grupo Anaya S A) 2010 _____ Fragmentos poacutestumos (1885-1888) (Vol IV) Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego Saacutenches Meca Madrid Editorial Tecnos (Grupo Anaya S A) 2008 _____ Genealogia da moral uma polecircmica Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2009 _____ Humano Demasiado Humano Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2008 _____ O Anticristo Maldiccedilatildeo ao cristianismo Ditirambos de Dioniso Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2007

Obras sobre Nietzsche ALMEIDA Rogeacuterio Miranda de Nietzsche e os impasses do princiacutepio de prazer uma leitura a partir do primeiro periacuteodo Estudos Nietzsche Curitiba v 2 n 2 p 163-184 juldez 2011 ALMEIDA Viniacutecius Andrade de A QUESTAtildeO DA MORAL A PARTIR DE HUMANO DEMASIADO HUMANO UM LIVRO PARA ESPIacuteRITOS LIVRES p88 ARALDI Clademir Luiacutes A vontade de potecircncia e a naturalizaccedilatildeo da moral Cadernos Nietzsche V 30 2012 p 101-120 _____ Niilismo Criaccedilatildeo e Aniquilamento Nietzsche a e filosofia dos extremos Satildeo Paulo Editora Unijuiacute 2004 _____ A espiritualizaccedilatildeo da paixatildeo Sobre a moralizaccedilatildeo dos impulsos em Nietzsche Nat hum Satildeo Paulo v 12 n 2 p 1-17 2010 Disponiacutevel em lthttppepsicbvsaludorgscielophpscript=sci_arttextamppid=S1517-24302010000200005amplng=ptampnrm=isogt acessos em 13 nov 2016_____ Nietzsche e Paul Reacutee Acerca da existecircncia de impulsos altruiacutestas Dossiecirc ldquoNietzsche e as Tradiccedilotildees moraisrdquo Cad Nietzsche vol37 no1 Satildeo Paulo JanJune 2016

Alianna Caroline Sousa Cardoso

49

_____ Para uma caracterizaccedilatildeo do niilismo na obra tardia de Nietzsche Cadernos Nietzsche Satildeo Paulo v5 1998 p76AZEREDO Vacircnia Dutra de Nietzsche e a Interpretaccedilatildeo do mundo ao texto In AZEREDO Vacircnia Dutra de SILVA JUacuteNIOR Ivo (Org) Nietzsche e a Interpretaccedilatildeo Curitiba Editora CRV 2012 p 143-155 _____ Nietzsche e a autora de uma nova eacutetica Satildeo Paulo Editora Unijuiacute 2008 _____ CASTRO Fabio Guimaratildees de A RELACcedilAtildeO CREDOR-DEVEDOR Como passagem da noccedilatildeo de responsabilidade-diacutevida agrave noccedilatildeo de justiccedila e ao sentido do direito no pensamento de Nietzsche REVISTA LAMPEJO Nordm 3- 062013 _____ OS JUIacuteZOS DE VALOR EM NIETZSCHE E SEUS REFLEXOS SOBRE A EDUCACcedilAtildeO II SEMANA NACIONAL DE FILOSOFIA Universidade Federal de Santa Maria ndash UFSM Cultura e Alteridade Amarildo Luiz Trevisan e Elizette M Tomazetti (orgs) Confluecircncias Ed Uniajaiacute 2006 p 01-10_____ Nietzsche e a dissoluccedilatildeo da moral Satildeo Paulo Discurso Editorial 2000_____ Nietzsche e a modernidade ponto de virada Cadernos Nietzsche n 27 2010BALKE From a Biopolitical Point of View Nietzschersquos Philosophy of Crime MAY Simon Nietzsche on Freedom and Autonomy Edited by Ken Gemes and Simon May Oxford University Press 2009 New York United StatesBAPTISTA Marlon Tomazella O que significa ser livre e responsaacutevel O indiviacuteduo soberano como ideal moral de Nietzsche Estudos Nietzsche Espiacuterito Santo v 6 n 1 p 42-65 JanJun 2015BENOIT Blaise NIETZSCHE DA CRIacuteTICA DA LOacuteGICA DO DIREITO PENAL AO PROBLEMA DA CONCEPCcedilAtildeO DE UM NOVO DIREITO PENAL Revista de Filosofia Dissertatio Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Instituto de Filosofia Sociologia e Poliacutetica Universidade Federal de Pelotas Traduccedilatildeo Bruna de Oliveira Revisatildeo Teacutecnica Luiacutes Rubira Dissertatio 36 Veratildeo de 2013 p 11-36_____ O problema da Justiccedila Cadernos Nietzsche n 26 2010BITTAR Eduardo Carlos Bianca NIETZSCHE NIILISMO E GENEALOGIA MORAL Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 98 (2003) p 477 ndash 501_____ Direito e Justiccedila em Revista da Faculdade de Direito Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo v 93 p 339-359 jan 1998 ISSN 2318-8235BORNEDAL Peter ON THE INSTITUTION OF THE MORAL SUBJECT ON THE COMMANDER AND THE COMMANDED IN NIETZSCHErsquoS DISCUSSION OF LAW kriterion Belo Horizonte nordm 128 Dez2013 p 439-457CAMPIONI Giuliano Friedrich Nietzsche Histoacuteria da Filosofia Organizador Jean-Franccedilois Pradeau Texto Original francecircs Histoire de la Philosophie Petroacutepolis Vozes Rio de Janeiro PUC-Rio 2011 p 387 CARNIO Henrique Garbellini A Gecircnese Do Direito Entre Kelsen E Nietzsche Repositoacuterio NOMOS Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC 2009 Volume 292 Fortaleza p- 39-57CARVALHO Amilton Bueno de Direito Penal a Marteladas (Algo sobre Nietzsche e o Direito) Ed LumenJuris Direito Rio de Janeiro2013CARVALHO Salo de AntiManual de Criminologia 6ordf Ediccedilatildeo Revista e Ampliada 2ordf tiragem 2015 - Satildeo Paulo Saraiva 2015DrsquoAMBROS Bruno Da possibilidade de uma criacutetica nietzscheana agrave democracia moderna

Da genealogia da teoria do crime no direito

50

Anais do Seminaacuterio Direito e Ditadura Eixo 2 Democracia e Cultura Universidade Federal de Santa Catarina ndash UFSC Direito e Democracia p 78 DELBOacute Adriana Nietzsche sobre alguns problemas morais da democracia moderna Cadernos Nietzsche Disponiacutevel em httpwwwcadernosnietzscheunifespbrhomeitem233-nietzsche-sobre-alguns-problemas-morais-da-democracia-moderna Acessado em 08062016FERNANDES Rodrigo Rosas Nietzsche e o Direito Tese de Doutorado apresentado para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia na Pontiacuteficia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo ndash PUC 2005FREZZATTI JR Wilson Antonio Haeckel e Nietzsche aspectos da criacutetica ao mecanicismo no seacuteculo XIX scientiaeligzudia Vol 1 No 4 2003 p 435-61 p 437_____ ldquoTraduccedilatildeo dos poacutestumos de Nietzsche sobre Darwinrdquo In Estudos Nietzsche v1 n2 juldez 2010 Curitiba p 403-419 BROBJER Thomas Nietzschersquos philosophical context an intellectual biography Illinois University of Illinois Press 2008 p 170 16 ldquoOs sinais lt gt indicam que a palavra foi escrita abreviada ou foi suprimida por Nietzsche As letras entre os sinais foram acrescentadas pelos editores da KSArdquo (FREZZATTI JUacuteNIOR Wilson Antocircnio ldquoTraduccedilatildeo dos poacutestumos de Nietzsche sobre Darwinrdquo In Estudos Nietzsche v1 n2 juldez 2010 Curitiba p 403-419) GEMES Ken JANAWAY Christopher Nietzsche on free will autonomy and the Sovereign Individual Proceedings of the Aristotelian Society V 80 2006 p 321-357 GIACOIA JUNIOR Oswaldo Nietzsche x Kant uma disputa permanente a respeito da liberdade autonomia e dever Satildeo Paulo Editora Casa do Saber 2012 _____ Nietzsche o humano como memoacuteria e como promessa Petroacutepolis Editora Vozes 2013 _____O GRANDE EXPERIMENTO SOBRE A OPOSICcedilAtildeO ENTRE ETICIDADE (SITTLlCHKEIT) E AUTONOMIA EM NIETZSCHE TransFormlAccedilatildeo Satildeo Paulo 12 97- 132 1989 Departamento de Filosofia - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias - UNESP - 17S00 - Man1ia-SP p 101 _____ ldquoTeses Sobre a Gecircnese do Direito em Nietzscherdquo In Pommer A Fraga P (Org) Filosofia e Criacutetica Lijui-RS Unijuiacute 2007 2007 p 399 _____ Livre-arbiacutetrio e Responsabilidade Filosofia Unisinos 8(1)22-32 janabr 2007GONCcedilALVES Ricardo Juozepavicius JUSTICcedilA DIREITO E VINGANCcedilA NA FILOSOFIA MORAL DE FRIEDRICH NIETZSCHE Rev Fac Direito Satildeo Bernardo do Campo n20 | 2014 p 1-18HIGGINS Kethleen M MAGNUS Bernd The Cambridge Companion to Nietzsche The Cambridge Companion to Nietzsche (Cambridge Companions to Philosophy) Paperback ndash March 7 1996 ISHIKAWA Iacutetalo Kiyomi A METAacuteFORA DO MEIO-DIA EM NIETZSCHE Dissertaccedilatildeo apresentada ao Curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal do Paranaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Filosofia Universidade Federal do Paranaacute ndash UFPR 2015 156 pJANAWAY Christopher Naturalism and Genealogy A companion to Nietzsche Edited by Keith Ansell Pearson Blackwell Companions to Philosophy First published 2006 by Blackwell Publishing Ltd Australia P 337-352LEITER Brian Nietzschersquos Moral and Political Philosophy First published Thu Aug 26 2004 substantive revision Wed Oct 7 2015 Stanford Encyclopedia of Philosophy

Alianna Caroline Sousa Cardoso

51

Disponiacutevel em httpplatostanfordeduentriesnietzsche-moral-political Acessado em 02102016_____Christopher Janaway Beyond Selflessness Reading Nietzschersquos Genealogy Christopher Janaway Beyond Selflessness Reading Nietzschersquos Genealogy Oxford University Press 2007 284pp $4900 (hbk) ISBN 9780199279692 Reviewed by Brian Leiter University of Texas Austin Notre Dame Philosophycal Reviews na eletronical Jornal 20080603 Disponiacutevel em httpndprndedunews23543-beyond-selflessness-reading-nietzsche-s-genealogy Acesso em 14112016LOBOSQUE Ana Marta A vontade livre em Nietzsche Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade de Minas Gerais como parte dos requisitos para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia Belo Horizonte - FAFICHUFMG 2010 Orientador Oswaldo Giacoia Jr Tese (doutorado) ndash Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas 306 fMARTON Scarlett Nietzsche Das forccedilas coacutesmicas aos valores humanos Editora Brasiliense 1ordf Ediccedilatildeo Preparaccedilatildeo de originais Luacutecia Jahn Revisatildeo Ana Maria Mendes Barbosa e Rosemary C Machado Satildeo Paulo 1990 MATA-MACHADO Edgar de Godoi Elementos de teoria geral do direito Belo Horizonte Editora Liacuteder 2005 p 137MELO SOBRINHO Noeacuteli Correia de Escritos sobre Direito Friedrich Nietzsche Rio de Janeiro PUC ndash Rio Satildeo Paulo Ed Loyola 2009MELO NETO Joatildeo Evangelista Tude de NIETZSCHE O ETERNO RETORNO DO MESMO A TRANSVALORACcedilAtildeO DOS VALORES E A NOCcedilAtildeO DE TRAacuteGICO Tese Apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo - USP - 2013 OLIVEIRA Eacuterico Andrade M de A criacutetica de Nietzsche agrave Moral Kantiana por uma moral miacutenima Cadernos Nietzsche 27 2010 p 169-189OLIVEIRA Leonardo Camacho de Uma genealogia do direito penal contribuiccedilotildees nietzschianas para se pensar uma justiccedila punitiva para aleacutem da moral do ressentimento A Genealogy of Criminal Law Nietzschersquos contributions to think a Punitive Justice beyond resentment morality Estudos Nietzsche Espiacuterito Santo v 6 n 2 p 281-298 jul dez 2015_____ O suposto antagonismo entre liberdade e determinismo em Nietzsche o traccedilo estoico do compatibilismo nietzschiano Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em filosofia da Universidade Federal de Pelotas como requisito agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em Filosofia Orientador professor Dr Clademir Araldi Pelotas 2014 131fPASCHOAL Antonio Edmilson Nossas Virtudes Indicaccedilotildees para uma Moral do Futuro Cadernos Nietzsche 12 2002 p 53-69_____AS FORMAS DO RESSENTIMENTO NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE PHILOacuteSOPHOS 13 (1) 11 -33 janjun 2008 p 13PAULA Wander Andrade de GIACOIA JUacuteNIOR O Nietzsche o humano como memoacuteria e como promessa Petroacutepolis Vozes 2013 Estudos Nietzsche Curitiba v 5 n 2 p 349-363 juldez 2014p 354PRINZ Jesse J The Emotional Construction of Morals Oxford University Press Published in the United States by Oxford University Press Inc New York 2007 REacuteE P Basic writings Translated and edited by Robin Small Urbana Chicago University

Da genealogia da teoria do crime no direito

52

of Illinois Press 2003SAMPAIO Wilson Maranhatildeo SANTOS Leandro Carvalho Considerations on western civilization Freud and Nietzsche as a benchmark Fractal Revista de Psicologia v 24 ndash n 1 p 59-80 JanAbr 2012SANTOS Vani Letiacutecia Fonseca dos A criacutetica da moral e a transvaloraccedilatildeo dos valores em Nietzsche Uma possibilidade para a formaccedilatildeo de um indiviacuteduo aleacutem-da-moral Dissertaccedilatildeo apresentada ao programa de poacutes-graduaccedilatildeo em filosofia da Universidade Federal de Pelotas 2010 SILVA Alexandre Antocircnio Bruno da Nietzsche Justiccedila e Direito Lumen Juris Rio de Janeiro 2015TEIXEIRA Joaquim de Souza A filosofia Moral de Satildeo Tomaacutes de Aquino Faculdade de Ciecircncias Humanas (UPC) didaskalia xxxvii (2007)1 345-361 LisboaTELLES Leonardo Dias da Silva A metodologia da Pesquisa em Direito e o Pensamento de Nietzsche Metodologia de Pesquisa em Direito e a Filosofia Coordenadores Rodolfo Pamplona Filho e Nelson Cerqueira Editora Saraiva Satildeo Paulo 2011 p 201-215WARREN Mark Nietzsche and political thought Massachusetts The MIT Press 1988 [trad Noeacuteli Correia de Melo Sobrinho] WOODWARD Ashley Nietzscheanismo Traduccedilatildeo de Diego Kosbiau Trevisan ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2016 ndash (seacuterie Pensamento Moderno) tiacutetulo original Understanding NietzscheanismWOTLING Patrick When power gives proof of spirit origins and logic of justice according to Nietzsche Quando a potecircncia daacute prova de espiacuterito origem e loacutegica da justiccedila segundo Nietzsche Quand la puissance fait preuve drsquoesprit Origine et logique de la justice selon Nietzscherdquo In WOTLING P (org) Paris Vrin 2007 p 113-140 copyLibrairie Philosophique J Vrin Traduccedilatildeo de Ivo da Silva Juacutenior1 Trad de Karina Jannini Cad Nietzsche no32 Satildeo Paulo 2013

Bibliografia PrincipalACAMPORA Christa Davis ACAMPORA Ralph r A Nietzschean Bestiary Becoming Animal Beyond Docile and Brutal ROWMAN amp LITILEFIELD PUBLISHERS INC Lanhambull Boulderbull New Yorkbull Torontobull Oxford 2004 1019 fGOODRICH Peter VALVERDE Mariana Nietzsche and Legal Theory Half-Written Laws Routledge Taylor and Francis Group Nietzsche and legal theory half-written laws edited by Peter Goodrich and Mariana Valverde New York 2005 219 fJANAWAY Christopher Beyond Selflessness Reading Nietzschersquos Genealogy Oxford University Press 2007 284ppMAY Simon Nietzsche on Freedom and Autonomy Edited by Ken Gemes and Simon May Oxford University Press 2009 New York United States 293 p

Referecircncias SecundaacuteriasAGUIAR Roberto A R de Direito poder e opressatildeo Editora Alfa-Omega 3ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo 1990BARATTA Alessandro Criminologia Criacutetica e Criacutetica do Direito Penal Introduccedilatildeo agrave Sociologia do Direito Penal Editora Revan Coleccedilatildeo Pensamento Criminoloacutegico Instituto Carioca de Criminologia 6ordf Ediccedilatildeo outubro de 2011 2ordf reimpressatildeo Agosto de 2014BRAGA Ana Gabriela Mendes Criminologia e prisatildeo caminhos e desafios da pesquisa empiacuterica no acircmbito prisional Revista de Estudos Empiacutericos em Direito Brazilian Journal

Alianna Caroline Sousa Cardoso

53

of Empirical Legal Studies vol 1 n1 Jan 2014 p 46-62BITENCOURT Caroline Muller SILVA Carla Luana da POSITIVISMO JURIacuteDICO E SUAS CLASSIFICACcedilOtildeES COMPREENDENDO SUA IMPORTAcircNCIA PARA A TEORIA DO DIREITO XXI SEMINAacuteRIO INTERNACIONAL DE DEMANDAS SOCIAIS E POLIacuteTICAS PUacuteBLICAS NA SOCIEDADE CONTEMPORAcircNEA VIII MOSTRA DE TRABALHOS JURIacuteDICOS CIENTIacuteFICOS 2015 Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito Departamento de Ciecircncias Juriacutedicas ndash CEPEJUR Universidade de Santa Cruz do Sul ndash UNISC anais p 1-22 Disponiacutevel em httpsonlineuniscbracadnetanaisindexphpsidspparticleviewFile130782219 Acessado em 08102016BITTENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal 17ordf Ediccedilatildeo Editora Saraiva Satildeo Paulo 2012 838pBOBBIO Norberto O positivismo juriacutedico liccedilotildees de filosofia do direito Satildeo Paulo Iacutecone 1999 _____ Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant Brasiacutelia UnB 1997BONAVIDES Paulo Ciecircncia Poliacutetica 22ordf Ediccedilatildeo Malheiros Editores Satildeo Paul 2015BOZZA Faacutebio da Silva FINALIDADES E FUNDAMENTOS DO DIREITO DE PUNIR DO DISCURSO JURIacuteDICO Agrave CRIacuteTICA CRIMINOLOacuteGICA Dissertaccedilatildeo (mestrado) - Universidade Federal do Paranaacute Setor de Ciecircncias Juriacutedicas Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito Defesa Curitiba 2005BRANDAtildeO Claacuteudio Curso de Direito Penal Parte geral Rio de Janeiro Forense 2008_____ Introduccedilatildeo ao Direito Penal Rio de Janeiro Forense 2005_____ Teoria Juriacutedica do Crime 2ordf ed Rio de Janeiro Forense 2007BRUNO Aniacutebal Direito Penal Parte geral Rio de Janeiro Forense 1967CARNELUTTI Francesco Teoria Geral do Direito Satildeo PauloLejus 1999CERQUEIRA Nelson PAMPLONA FILHO Rodolfo - Coordenadores Metodologia da Pesquisa em Direito e a Filosofia Satildeo Paulo Saraiva 2011CHIAVERINI Tatiane Origem da Pena de Prisatildeo Dissertaccedilatildeo de Mestrado Mestrado em Filosofia do Direito PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DE SAtildeO PAULO - PUCSP 2009 132 p p 09 CUNHA Paulo Ferreira da Universidade do Porto Other universities From the SelectedWorks of Paulo Ferreira da Cunha November 16 2011 Available at httpworksbepresscompfc124DARMON Pierre Meacutedicos e assassinos na ldquoBelle Eacutepoquerdquo a medicalizaccedilatildeo do crime Rio de Janeiro Paz e Terra 1991DIAS Camila Caldeira Nunes PCC ndash Hegemonia nas Prisotildees e Monopoacutelio da Violecircncia Coleccedilatildeo Saberes Monograacuteficos Editora Saraiva 2013DIAS Jorge de Figueiredo Direito penal parte geral t I Questotildees Fundamentais ndash A doutrina geral do crime Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2007FAUSTINO Eliana Ribeiro PIRES Sandra Regina Abreu A ressocializaccedilatildeo como finalidade da prisatildeo algumas consideraccedilotildees sobre seu significado Sociedade em Debate Universidade Catoacutelica de Pelotas v 15 n 2 (2009)FELDENS Luciano APROXIMACcedilOtildeES TEOacuteRICOS SOBRE O GARANTISMO JURIacuteDICO Criminologia e sistemas juriacutedico-penais contemporacircneos II [recurso eletrocircnico] Ruth Maria Chittoacute Gauer (Org) Aury Lopes Jr [et al] ndash Dados eletrocircnicos ndash Porto Alegre EDIPUCRS 2010351P P 258-272

Da genealogia da teoria do crime no direito

54

FEUERBACH Anselm V Tratado de derecho penal Buenos Aires Eitorial Hammurabi SRL 1989FOUCAULT Michel A verdade e as formas juriacutedicas Editora NAU PUC Rio Departamento de Letras 3ordf Ediccedilatildeo 1ordf Reimpressatildeo Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro_____ Vigiar e Punir Histoacuteria da Violecircncia nas Prisotildees Nascimento da prisatildeo 3ordf Ediccedilatildeo Traduccedilatildeo de Liacutegia M Pondeacute Vassallo Petroacutepolis 1984Freud S(1913) Totem e Tabu In Obras psicoloacutegicas completas Ediccedilatildeo Standard Brasileira Rio de Janeiro Imago 1996GORDON Richard A Assustadora Histoacuteria da Medicina Traduccedilatildeo Aulyde Soares Rodrigues 9ordf Ediccedilatildeo Rio de Janeiro Ediouro 1997GRECO Luiacutes Introduccedilatildeo agrave dogmaacutetica funcionalista do delito Em comemoraccedilatildeo aos trinta anos de ldquoPoliacutetica criminal e sistema juriacutedico-penalrdquo de Roxin Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo v 8 n 32 p 120-163 outdez 2000_____ Tem futuro o conceito de accedilatildeo Em GRECO Luis e LOBATO Danilo Temas de Direito penal ndash Parte geral Rio de Janeiro Renovar 2008JAKOBS Guumlnther Derecho Penal parte general Fundamentos y teoria de la imputacioacuten Madrid Marcial Pons Ediciones juridicas 1997_____ A imputaccedilatildeo objetiva no Direito Penal Traduccedilatildeo de Andreacute Luiacutez Callegari Editora Revista dos Tibunais Satildeo Paulo 2000_____ A imputaccedilatildeo penal da accedilatildeo e da omissatildeo Estudos de Direito Penal v7 Satildeo Paulo Manole 2003_____ Accedilatildeo e omissatildeo no Direito Penal Estudos de Direito Penal v 2 Satildeo Paulo Manole 2003_____Tratado de Direito Penal Teoria do Injusto Penal e Culpabilidade Belo Horizonte Del Rey 2008KANT Emmanuel Introduccioacuten a la teoriacutea del derecho MadridInstituto de Estudios Poliacuteticos 1954 LIMA Joatildeo Francisco Lopes de A CRIacuteTICA AO HUMANISMO EM EDUCACcedilAtildeO E AS REPERCUSSOtildeES SOBRE O DISCURSO PEDAGOacuteGICO NO CENAacuteRIO CONTEMPORAcircNEO IX CONGRESSO NACIONAL DE EDUCACcedilAtildeO ndash EDUCERE 26 a 29 de outubro de 2009 PUC-PR Aacuterea Temaacutetica Cultura Curriacuteculo e SaberesLISZT Franz von Tratado de Direito Penal allematildeo v I Trad Joseacute Hygino Duarte Pereira Brasiacutelia Senado Federal 2006_____ Capiacutetulos de Direito Penal Parte geral Satildeo Paulo Saraiva 1985LUMIA Giuseppe Elementos de Teoria e Ideologia do Direito Traduccedilatildeo Denise Agostinetti Editora Martins Fontes Satildeo Paulo 2003MACHADO NETO A L Introduccedilatildeo agrave Ciecircncia do Direito (Sociologia Juriacutedica) Satildeo Paulo Saraiva 1963 v2 p204-5MACHADO Marta Rodriguez de Assis Socioedade do Risco e Direito Penal Uma avaliaccedilatildeo de novas tendecircncias poliacutetico-criminais Instituto Brasileiro de Ciecircncias Criminais ndash IBCCRIM Satildeo Paulo 2005MANTOVANI Ferrando Diritto penale Parte generale 6ordf ed Itaacutelia Cedam 2009MATOS Andityas Soares De Moura Costa A CONCEPCcedilAtildeO DE JUSTICcedilA DE HANS

Alianna Caroline Sousa Cardoso

55

KELSEN EM FACE DO POSITIVISMO RELATIVISTA E DO JUSNATURALISMO ABSOLUTISTA Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade Federal de Minas Gerais ndash UFMG 2004 Disponiacutevel em httpwwwbibliotecadigitalufmgbrdspacebitstreamhandle1843BUOS-967PD6direito_andityassoaresmouracostamatos_disserta__opdfsequence=1 P 13 MONTEIRO Washington de Barros Curso de Direito Civil ndash Parte Geral 37 Ed Satildeo Paulo Saraiva 2000 v1MORAES Pedro Rodolfo Bodecirc de Puniccedilatildeo Encarceramento e Construccedilatildeo de identidade profissional entre agentes penitenciaacuterios IBBCRIM Satildeo Paulo 2005NUCCI Guilherme de Souza Manual de Direito Penal 10ordf Ediccedilatildeo Grupo Editorial Nacional Editora Forense Rio de Janeiro 2014RIBEIRO Renato Janine Democracia e Direitos Humanos Universidade de Satildeo Paulo Faculdade de Educaccedilatildeo Curso de Difusatildeo Cultural ldquoEducaccedilatildeo Democracia e Direitos Humanosrdquo Direitos Humanos nas Escolas Programa de Formaccedilatildeo Docente 2008ROXIN Claus Cuestiones sobre la moderna teoriacutea de la imputacioacuten penal Lima ARA 2009RUDAacute Antoacutenio Soloacuten Breve histoacuteria do direito penal e da criminologia do primitivismo criminal agrave era das escolas penais Jus Navigandi Disponiacutevel em httpsjuscombrartigos25959brevehistoriadodireitopenaledacriminologia Acessado em 11052016SANTOS Juarez Cirino Direito Penal Parte Geral 3ordf ed rev e atual Curitiba ICPC LumenJuris 2008SANTOS Robinson dos A CONCEPCcedilAtildeO DE JUSTICcedilA PENAL NA DOUTRINA DO DIREITO DE KANT ethic-Florianoacutepolis v 10 n 3 p 103 - 114 Dez 2011 SCHMIDT Andrei Zenkner O meacutetodo do direito penal sob uma perspectiva interdisciplinar Rio de Janeiro Lumen Juris 2007SILVA Pablo Rodrigo Alflen Culpabilidade e livre-arbiacutetrio novamente em questatildeo Os influxos da neurociecircncia sobre o Direito Penal (httpsjuscombrartigos13089culpabilidade-e-livre-arbitrio-novamente-em-questao) Revista Jus Navigandi ISSN 1518-4862 Teresina ano 14SILVA Andreacute Adriano do Nascimento BREVES LINHAS SOBRE OS AVANCcedilOS DAS NEUROCIEcircNCIAS E O DIREITO PENAL Interfaces Cientiacuteficas - Direito bull Aracaju bull V2 bull N3 bull p 45 - 52 bull Jun 2014SILVA SANCHEacuteZ Jesuacutes Maria La expansioacuten del derecho penal Aspectos de la poliacutetica criminal em las sociedades postindustriales 2ordf ed Madrid Civitas 2001_____ Aproximacioacuten al Derecho penal contemporaacuteneo 2 ed Buenos Aires Montevideo B de F 2010TORRES Ana Paula Repolecircs UMA ANAacuteLISE EPISTEMOLOacuteGICA DA TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN Revista CEJ Brasiacutelia n 33 p 72-77 abrjun 2006 P 74VALLS Alvaro L M O que eacute eacutetica Editora Brasiliense Coleccedilatildeo Primeiros Passos - Nordm 177 ISBN 85-11-01177-3 -Ano 1994 p 20 WARAT Luis Alberto Introduccedilatildeo geral ao direito II a epistemologia juriacutedica da modernidade Traduccedilatildeo de Joseacute Luiz Bolzan de Morais Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1995WEBER Thadeu Direito e justiccedila em Kant Revista de Estudos Constitucionais Hermenecircutica e Teoria do Direito (RECHTD) 5(1) 38-47 janeiro-junho 2013 p 39

Da genealogia da teoria do crime no direito

56

WELZEL Hans Derecho Penal Alemaacuten 2ordf ed Castellana Santiago Editorial Juridica de Chile 1976_____ Derecho Penal Alemaacuten 11ordf Ed Editorial juriacutedica de Chile Chile 1997_____ O novo Sistema Juriacutedico-Penal Uma Introduccedilatildeo agrave doutrina da accedilatildeo finalista 2ordf ed traduzida Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2009ZAFFARONI Eugenio Rauacutel Tratado de Derecho Penal Parte general III Buenos Aires EDIAR 1981_____ Poliacutetica y dogmaacutetica juriacutedico-penal In En torno de la cuestioacuten penal Buenos Aires B de F 2005_____ Direito Penal brasileiro t II Teoria do delito ndash introduccedilatildeo histoacuterica e metodoloacutegica accedilatildeo e tipicidade Rio de Janeiro Revan 2010_____ PIERANGELI Joseacute Henrique Manual de Direito Penal Brasileiro Parte geral Volume I 6ordf ed rev e atual Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2006

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

57

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem a partir do paradigma imunitaacuterio

Angela Couto Machado Fonseca1

Dhyego Cacircmara Arauacutejo2

IntroduccedilatildeoEm que pese a pertinecircncia dos debates especiacuteficos sobre o valor da vida e da pessoa

humana que alimentam a anaacutelise juriacutedica de natildeo legitimaccedilatildeo do poder soberano para matar por meio de uma sentenccedila penal condenatoacuteria entendemos que existem outras perspectivas de anaacutelise sobre as condiccedilotildees da morte para aleacutem da sua (i)legitimidade na figura pontual da pena de morte

A proposta de pensar a ocorrecircncia da morte fora do plano restrito de sua legitimidade soberana - registro que trata da possibilidade ou natildeo da condenaccedilatildeo e o cometimento de assassinatos - se justifica pela percepccedilatildeo de que na realidade social ocorrem continuados eventos nos quais a vida eacute exterminada ou exposta agrave morte sem que tais eventos possam na sua totalidade ou de modo faacutecil encaixar-se naqueles paracircmetros da legitimidade

Se por um lado eacute viaacutevel balizar a produccedilatildeo da morte questionando se ela cabe ou natildeo ao Estado e diante dos casos concretos de sua ocorrecircncia fazer pesar sua condiccedilatildeo de ilicitude por outro lado escapa a esse modelo interpretativo o alcance compreensivo de que certos modos de existecircncia satildeo mais vulneraacuteveis agrave morte Mais que isso tal vulnerabilidade ligada ao risco e agrave concretizaccedilatildeo da morte natildeo se explica pelos paracircmetros de morte pensados no ordenamento juriacutedico Para enunciar tais vidas expostas agrave morte basta aqui de modo breve atentarmos para a condiccedilatildeo de maior precariedade (BUTLER 2015) da populaccedilatildeo negra LGBTI de mulheres das pessoas em situaccedilatildeo de rua das prostitutas daqueles que vivem em favelas e etc Sugerimos assim que o evento da morte para ser devidamente pensado requer a agregaccedilatildeo de outros referenciais analiacuteticos

O terreno teoacuterico-filosoacutefico que nas uacuteltimas deacutecadas mais precisamente desde meados da deacutecada de 1970 tecircm se ocupado de pensar as relaccedilotildees entre vidamorte e poder eacute aquele que Michel Foucault veio a denominar por biopoliacutetica Trata-se de explicitar as teacutecnicas e as praacuteticas que fizeram da vida bioloacutegica o alvo privilegiado do poder na poliacutetica ocidental bem como seus inuacutemeros desdobramentos no campo social

1 UFPR2 UEPG

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

58

Essa tomada da vida pelo poder como pensada pela biopoliacutetica problematiza que o objeto das relaccedilotildees de poder natildeo eacute o sujeito de direitos mas sim a populaccedilatildeo como coleccedilatildeo de processos bioloacutegicos O horizonte biopoliacutetico trata da gestatildeo da vida o que admite pensar que essa administraccedilatildeo organize em diferentes niacuteveis as vidas e possa privilegiar ou barrar caracteriacutesticas bioloacutegicas elaboradas como beneacuteficas ou prejudiciais

Por tal vieacutes de anaacutelise permite-se vislumbrar a construccedilatildeo em torno do que se entende por vida de uma teia capaz de capturaacute-la naquilo que se considera como da ordem do orgacircnico e natural possibilitando o surgimento de saberes estatiacutesticos a respeito de taxas de natalidade mortalidade e morbidade a implementaccedilatildeo de programas de previdecircncia e poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede a organizaccedilatildeo do espaccedilo urbano para melhor circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e doenccedilas etc

Com a identificaccedilatildeo do surgimento da biopoliacutetica no seacuteculo XVIII feita por Michel Foucault as relaccedilotildees entre poder e vida bem como entre poder e morte ganharam novos matizes Natildeo mais um poder soberano de ldquofazer morrer e deixar viverrdquo mas a partir de entatildeo um poder que se manifesta de modo diverso e sob uma nova alcunha denominado biopoder caracteriza-se pelo ldquofazer viver e deixar morrerrdquo (FOUCAULT 2011) Ora se de acordo com o diagnoacutestico foucaultiano haacute a partir do seacuteculo XVIII um predomiacutenio de um tipo de poder que se dirige agrave promoccedilatildeo da vida como explicar as diversas situaccedilotildees em que natildeo se verifica o seu estiacutemulo e proliferaccedilatildeo mas exatamente o contraacuterio a sua exposiccedilatildeo agrave morte ou mesmo o seu extermiacutenio Algumas vidas tornam-se nessa complexa relaccedilatildeo entre poder e biacuteos passiacuteveis de morte

O ponto que tanto Foucault quanto Esposito perceberam mesmo que tenham desenvolvimentos diversos e por vezes Esposito conteste e critique Foucault eacute o de que a biopoliacutetica revela um circuito de proteccedilatildeo e risco no que se refere agrave vida Para proceder uma real e seacuteria discussatildeo dos processos de incitaccedilatildeo e proteccedilatildeo da vida eacute preciso colher o caraacuteter biopoliacutetico dos mecanismos que realizam tais processos assim como perceber que pertence aos seus proacuteprios movimentos na defesa da vida tambeacutem a produccedilatildeo da morte Para produzir e gerir vidas defensaacuteveis tambeacutem satildeo produzidas vidas descartaacuteveis Esse eacute um reverso circular do funcionamento das poliacuteticas sobre a vida

Se eacute assim no particular e no cenaacuterio brasileiro podemos pensar num primeiro momento a partir do recorte de gecircnero a situaccedilatildeo vivida pela comunidade LGBTI Tais vidas posicionadas como menos vaacutelidas pelo padratildeo heternormativo vigente satildeo cotidianamente abaladas por violecircncias continuadas e produccedilatildeo de mortes Ainda que se possa argumentar que tais mortes satildeo efeitos indesejados de uma sociedade injusta eacute preciso tambeacutem lembrar do cenaacuterio aqui delineado onde praacuteticas de poder voltadas para a vida desenham os corpos e os desenham tambeacutem em seu valor e utilidade Resulta de uma hieraacuterquica disposiccedilatildeo das vidas e suas condiccedilotildees de validade no cenaacuterio poliacutetico a vizibilizaccedilatildeo ldquodesviadardquo e ldquoanormalrdquo dos corpos LGBT A vida dos LGBT construiacuteda como ldquoabjetardquo eacute permissatildeo para investidas negativas sobre tais vidas ndash eacute permissatildeo para exposiccedilatildeo agrave morte

Levando em consideraccedilatildeo a hierarquizaccedilatildeo social promovida pelo biopoder Foucault vislumbra a existecircncia de um paradoxo no quadro desenhado pela tecnologia biopoliacutetica ou seja a contradiccedilatildeo levada a cabo por um tipo de poder cuja promoccedilatildeo da vida eacute o seu objetivo mas que resulta na produccedilatildeo da morte Tal situaccedilatildeo apresenta a transmutaccedilatildeo da biopoliacutetica em tanatopoliacutetica quer dizer remete a essa conversatildeo do fazer viver no fazer morrer

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

59

Se na deacutecada de 70 foi possiacutevel a Foucault identificar o formato paradoxal dessa relaccedilatildeo entre poder e vidamorte os seus trabalhos posteriores natildeo enfrentaram exaustivamente a problemaacutetica levantada pela dicotomia biopoliacuteticatanatopoliacutetica Para o filoacutesofo a emergecircncia do biopoder trouxe consigo para o interior do Estado a figura do racismo3 a qual permite nesse domiacutenio da vida instaurar um corte capaz de determinar quem deve viver e quem deve morrer (FOUCAULT 2010 p 214)

No arcabouccedilo filosoacutefico foucaultiano o desdobramento da biopoliacutetica em tanatopoliacutetica4 foi pensado em termos de um paradoxo Sua reflexatildeo nos eacute necessaacuteria para localizar a biopoliacutetica e com ela as relaccedilotildees de pertinecircncia de um poder que ao ter como objeto o fazer viver tambeacutem exercita o fazer morrer Continua-se o debate com Roberto Esposito precisamente porque seu pensamento quer apontar para uma possiacutevel resposta ao paradoxo concedendo lugar privilegiado para os desdobramentos tanatopoliacuteticos nos exerciacutecios de poder contemporacircneos Esposito provoca seu leitor a considerar que os eventos poliacuteticos atuais somente podem ser devidamente compreendidos quando usamos o quadro categorial da biopoliacutetica e com ele as condiccedilotildees de vida e morte

A esse respeito podemos retornar agraves paacuteginas que abrem a introduccedilatildeo do livro Biacuteos Biopoliacutetica e Filosofia do filoacutesofo italiano onde satildeo mencionadas vaacuterias situaccedilotildees ocorridas em diferentes lugares do mundo ndash como por exemplo a Guerra lsquohumanitaacuteriarsquo no Afeganistatildeo em 2001 o resgate de refeacutens presos pelo comando checheno em Moscou em 2002 que matou tanto civis quanto terroristas e o relatoacuterio da ONU em 2004 informando que em Ruanda cerca de 10000 crianccedilas resultam de violaccedilotildees eacutetnicas ocorridas mediante um estupro coletivo no confronto dos Hutus com os Tutsis ndash para expor que o fio invisiacutevel que amarra e permite ler eventos tatildeo distintos e distantes eacute o fio da biopoliacutetica Em suas palavras ldquoNo seu centro estaacute a noccedilatildeo de biopoliacutetica Soacute a partir dela eacute que acontecimentos que escapam de uma interpretaccedilatildeo mais tradicional como aqueles que acabamos de evocar encontram um sentido de conjunto que vaacute aleacutem da sua simples manifestaccedilatildeordquo (ESPOSITO 2010 p 22)

A identificaccedilatildeo de um tipo de poder que muito embora natildeo parta do Estado em direccedilatildeo agrave vidamorte dos sujeitos mas que o atravessa lhe reconfigurando dentro de um quadro distinto da anaacutelise restrita da (i)legalidade sobre a produccedilatildeo da morte revela a pertinecircncia da anaacutelise que ora se propotildee

3 Natildeo se trata o racismo como uma figura nova ou inventada nas tramas da biopoliacutetica Em sua genealogia do racis-

mo Foucault demonstra o seu surgimento como um discurso histoacuterico-poliacutetico de enfrentamento em relaccedilatildeo a um discurso juriacutedico-filosoacutefico ndash proeminente desde a Idade Meacutedia ndash que buscava deslegitimaacute-lo reivindicando a luta das raccedilas como seu mote de embate Raccedilas vistas como dois grupos distintos marcados pela origem local liacutengua ou religiatildeo Posteriormente a histoacuteria da luta das raccedilas tornou-se de um lado a luta de classes e de outro o racismo nesse momento lido a partir de uma matriz bioloacutegica e que seraacute tomado pelo biopoder para servir de justificativa e operacionalizaccedilatildeo do seu exerciacutecio de morte Para uma anaacutelise detalhada sobre esse movimento genealoacutegico da figura do racismo bioloacutegico de Estado consultar a Aula de 28 de janeiro de 1976 do curso Em defesa da Sociedade (FOUCAULT 2010)

4 Ao falarmos de tanatopoliacutetica o que aparece eacute a conversatildeo da biopoliacutetica ndash do fazer viver ndash no seu contrario fazer morrer Tanto Michel Foucault quanto Roberto Esposito (autores aqui trabalhados) perceberam que a proacutepria biopoliacutetica opera como tanatopoliacutetica ela mesma se converte no seu contraacuterio em suas praacuteticas de regulaccedilatildeo da vida Embora esses autores tenham pensado essa conversatildeo em diferentes bases ndash Foucault como um paradoxo e Esposito pelo paradigma imunitaacuterio ndash ambos a diagnosticam e a percebem como um problema inescapaacutevel Assim vida e morte no cenaacuterio politico contemporacircneo satildeo pensados por esses dois autores a partir do vieacutes da biopoliacutetica Eacute a biopoliacutetica que permite compreender as praacuteticas de poder que atuam sobre a vida seja no seu incremento ou na sua invalidaccedilatildeo e morte

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

60

2 Esposito e o paradigma imunitaacuterio a proteccedilatildeo negativa da vidaSobre a fenda aberta por Michel Foucault outras satildeo as reflexotildees apresentadas

por Roberto Esposito a respeito do ldquoenigma da biopoliacuteticardquo Em sua obra eacute elaborado um verdadeiro percurso de desconstruccedilatildeo acerca da capacidade analiacutetica das categorias poliacuteticas moderna5 em seu alcance compreensivo dos eventos poliacuteticos contemporacircneos Sua obra fornece um quadro criacutetico que acusa a permanecircncia de uma semacircntica poliacutetica ndash dos direitos do contrato da liberdade e da democracia ndash incapaz de responder agrave realidade mais presente

Mas esse movimento desconstrutivo de desmontagem conceitual que procura visibilizar a inefetividade do leacutexico poliacutetico moderno estaacute associado a um movimento de redirecionamento O sentido interno da denuacutencia estaacute associado agrave intenccedilatildeo de propor novos conceitos que emergem de sua leitura da biopoliacutetica Eacute na direccedilatildeo ou melhor na nova direccedilatildeo assumidamente biopoliacutetica que seus dispositivos conceituais como comunidade imunidade e impessoal se localizam e pretendem contribuir no alcance dos acontecimentos poliacuteticos

Suas anaacutelises partem de Foucault e polemizam com Foucault uma vez que o italiano ao pretender elaborar as condiccedilotildees de uma biopoliacutetica afirmativa enfrenta o circuito proteccedilatildeo da vida e risco de vida inerente agrave biopoliacutetica Esposito pretende superar essa relaccedilatildeo em sua face de paradoxo elaborando o paradgima imunitaacuterio elemento que em sua leitura foi a ldquochave interpretativardquo (ESPOSITO 2010 p 73) que faltou a Foucault

O enigma segundo o qual a biopoliacutetica esse conjunto consistente de accedilotildees e praacuteticas voltadas para a produccedilatildeo e proteccedilatildeo da vida se reverte ou decai numa tanatopoliacutetica se resolve para este autor pela foacutermula da imunizaccedilatildeo O acesso agrave biopoliacutetica pela noccedilatildeo de imunizaccedilatildeo eacute fundamental pois pensa a proacutepria poliacutetica moderna como imunitaacuteria e a biopoliacutetica como sua expressatildeo

A proposiccedilatildeo conceitual precisa da imunidade eacute apresentada como ldquoproteccedilatildeo negativa da vidardquo (ESPOSITO 2010 p 21) mas natildeo haacute como alcanccedilar o significado dessa proteccedilatildeo negativa sem relacionar imunidade e comunidade Numa retomada etimoloacutegica natildeo usual Esposito expotildee que comunidade (communitas) deriva de cum e munus O primeiro termo remete a uma relaccedilatildeo - a um lsquocomrsquo- que eacute a um soacute tempo irresistiacutevel e impossiacutevel ao passo que o munus - que recebe maior atenccedilatildeo e importacircncia ndash indica por um lado tarefa obrigaccedilatildeo ofiacutecio e por outro dom Trata-se de um dom que exige ldquoo dom que se daacute natildeo o que receberdquo (CAMPBELL 2010 p 18)

A partir dessa localizaccedilatildeo etimoloacutegica a comunidade eacute dissociada da noccedilatildeo de propriedade6 A comunidade natildeo eacute o que integra os sujeitos a partir da apropriaccedilatildeo de um proacuteprio que lhes seja dado por natureza Nem mesmo seria possiacutevel pensar em sujeitos jaacute que natildeo haacute sequer contrato inaugurado na base da apropriaccedilatildeo de elementos inerentes do homem e que os redefina como sujeitos O desenho do homem da comunitas que aparece eacute de um homem improacuteprio e ligado pela pura exterioridade do munus ndash do dever e do dom de dar (ESPOSITO 2006)

A comunidade baseada no munus se configura como exposiccedilatildeo e abertura apresenta nesse fazer e natildeo receber a contiacutenua situaccedilatildeo de risco e de perigo extremo de morte ao homem Eacute dentro desse quadro que a imunidade se coloca Ela aparece como forma de 5 Categorias poliacuteticas como liberdade democracia direitos individuais e direitos coletivos por exemplo 6 A esse respeito ldquoil munus che la communitas condivide non egrave una proprietagrave o unrsquoappartenenza Non egrave un avere ma

al contrario un debito un pegno un dono-da-dare (hellip) il commune non egrave caraterizzato dal proprio ma dallrsquoimpro-priordquo(ESPOSITO 2006 p XIII-XIV)

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

61

remediar os excessos de exposiccedilao do dom e se desenha como emblema da filosofia poliacutetica moderna

Em Termos da Poliacutetica Esposito diz que a ldquosalvaguarda da vida humana diante dos perigos da extinccedilatildeo violenta que a ameaccedilamrdquo (ESPOSITO 2017 p 154) explicita a condiccedilatildeo biopoliacutetica da modernidade de modo que ldquopoderia chegar-se a dizer que natildeo foi a modernidade a colocar o problema da autoconservaccedilatildeo da vida mas esta uacuteltima a pocircr em existecircncia por assim dizer a lsquoinventarrsquo a modernidade como um complexo de categorias em condiccedilotildees de resolver tal problemardquo (ESPOSITO 2017 p 154) Essas passagens satildeo profundamente eloquentes para relacionar a comunidade como a exposiccedilatildeo que pode chegar a ser letal (problema biopoliacutetico) e a imunidade como o desdobramento imanente da comunidade para barrar esse seu efeito danoso Nesse ponto ignorando todos os importantes desdobramentos da poliacutetica moderna como imunitaacuteria a definiccedilatildeo do paradigma imunitaacuterio como proteccedilatildeo negativa encontra a possibilidade de sua compreensatildeo

Tal como na fisiologia7 do corpo humano o funcionamento da imunizaccedilatildeo se caracteriza pela proteccedilatildeo da comunidade a partir de sua articulaccedilatildeo com elementos negativos mas que a partir de tal operaccedilatildeo acarretam a criaccedilatildeo de uma rede de proteccedilatildeo Protege na medida em que evita os excessos do dom comunitaacuterio mas eacute negativa porque nega a comunidade ndash revela a passagem do comum ao individual Diante da possibilidade iminente de intensificaccedilatildeo daqueles elementos danosos tal rede protetiva eacute ativada evitando assim fatores de riscos produzidos pela proacutepria comunidade Esses fatores de risco seriam sua desagregaccedilatildeo generalizada a dessubjetivaccedilatildeo de seus membros e no limite sua morte (ESPOSITO 2002 2010 NALI 2012 2013) ldquoo sistema imunitaacuterio eacute assim um complexo estrateacutegico de proteccedilatildeo da vida de seu equiliacutebrio a partir do desequiliacutebrio incitado extremamente dinacircmico e homeostaacuteticordquo (NALI 2013 p 92)

Conforme exposto por Nali (NALI 2013 p 86) com a demonstraccedilatildeo e descriccedilatildeo pela ciecircncia do funcionamento do sistema imunoloacutegico dos organismos implantou-se no acircmbito da accedilatildeo poliacutetica tais ideias com vistas a produzir mecanismos imunitaacuterios e de proteccedilatildeo agrave comunidade Junto agrave descoberta e isolamento dos agentes etioloacutegicos e em especial de como se valer de culturas enfraquecidas de tais agentes para induzir um processo de imunizaccedilatildeo do corpo transplantou-se tais saberes para a comunidade Pressupotildee-se que haacute um mal a afligiacute-la requisitando portanto meios de reproduzir ldquode forma controlada o mal do qual deve protegerrdquo (ESPOSITO 2009 p 17)

O paradigma imunitaacuterio segundo Esposito seria representante do uacutenico modo interpretativo capaz de restaurar o elo existente entre a biopoliacutetica e a modernidade uma vez que entende que ldquosoacute a modernidade faz da autopreservaccedilatildeo individual o pressuposto de todas as outras categorias poliacuteticas da soberania agrave liberdaderdquo (ESPOSITO 2010 p 21)

Nesse cenaacuterio a leitura que ora se propotildee a partir da imunizaccedilatildeo aponta que se encare o paradoxal sentido da sedimentaccedilatildeo de uma comunidade ligado aos processos de imunizaccedilatildeo efetivados enquanto resultado da perigosa exposiccedilatildeo da vida dessa mesma

7 Interessante notar que Esposito ao identificar essa interaccedilatildeo discursiva entre os saberes poliacuteticos e biomeacutedicos e em-preendendo numa anaacutelise etimoloacutegica dos termos communitas e immunitas prontamente identifica que natildeo se trata de um discurso bioloacutegico que afeta o campo da poliacutetica e da defesa da comunidade mas antes de uma construccedilatildeo discursiva no campo da biologia que procura explicar o funcionamento de um organismo a partir de metaacuteforas beacutelicas e de defesa O que se consolida em uma leitura analiacutetica corrente na biologia a imunologia para em seguida retornar ao campo das defesas poliacuteticas de uma comunidade de um territoacuterio de uma sociedade de um Estado Tal retorno entretanto marcado neste momento natildeo apenas por constituir-se como um discurso de guerra e de defesa beacutelica mas com ares cientiacuteficos e epistemoloacutegicos

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

62

comunidade Isto eacute o paradigma imunitaacuterio como ldquoproteccedilatildeo negativa da vidardquo (ESPOSITO 2010 p 21) A immunitas natildeo se refere a uma leitura de poder que o considere como uma forccedila externa atuando sobre a vida a partir do fora (ESPOSITO 2002) mas que propotildee por outro lado que ldquoo proacuteprio modo de atuaccedilatildeo da vida eacute conflitual e portanto natildeo pode ocorrer agrave revelia das relaccedilotildees de poder A imunidade eacute inteiramente colocada como as formas de proteccedilatildeo da vida em sua inerente relaccedilatildeo com o poderrdquo (FONSECA 2016 p 70)

Desse modo vida e morte passam natildeo mais a integrar aquela aparente relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo muacutetua Dissolvem-se as fronteiras estanques entre tais termos bem como entre subjetivaccedilatildeo e dessubjetivaccedilatildeo substituindo-se a oposiccedilatildeo anterior por uma relaccedilatildeo de imanecircncia e inclusatildeo em que a morte natildeo eacute mais pensada como o limite externo situado no polo contraacuterio agrave vida mas como fenocircmeno vital (NALI 2013 p 90)

A compreensatildeo da biopoliacutetica a partir do paradigma imunitaacuterio nos leva a consideraacute-la como uma exposiccedilatildeo controlada da comunidade aos riscos e fatores que a negam e a ameaccedilam Nesse sentido tanto a vida como a subjetividade devem sofrer os infortuacutenios e vicissitudes de sua proacutepria negaccedilatildeo ainda que de maneira calculadamente controlada de modo que resulte num fortalecimento da comunidade contra futuras ameaccedilas antagocircnicas mais fortes provenientes contudo de seu proacuteprio seio O sistema imunitaacuterio destarte eacute tomado pelo filoacutesofo em estreita correlaccedilatildeo com a comunidade vez que a compreende como o proacuteprio motor da imunizaccedilatildeo (ESPOSITO 2010)

Essa traduccedilatildeo imediata da vida em poliacutetica tal qual sugerida pelo filoacutesofo ou ainda essa formulaccedilatildeo da poliacutetica caracterizada como intrinsecamente bioloacutegica (ESPOSITO 2010 p 21) faz com que natildeo mais se perceba tais relaccedilotildees como uma biopoliacutetica sobre a vida mas como uma poliacutetica da vida A imunizaccedilatildeo portanto sugere uma concepccedilatildeo de imanecircncia entre poliacutetica e vida poreacutem no limite a imunizaccedilatildeo necessaacuteria agrave conservaccedilatildeo da comunidade pode vir a superar os limites de sua proteccedilatildeo e sobrevivecircncia e se perverter em uma espeacutecie de doenccedila autoimune como o que se pocircde verificar nas atrocidades cometidas pelo nazismo (ESPOSITO 2010 p 26)

Segundo Esposito na experiecircncia nazista a instrumentalizaccedilatildeo da morte natildeo vinha apenas como efeito de uma proteccedilatildeo negativa da vida mas o proacuteprio condicionamento e potenciamento da vida se dava sob uma crescente dialeacutetica destinada a produccedilatildeo estendida de morte (ESPOSITO 2010 p 24)

Em sua leitura o regime nazista levou agraves uacuteltimas consequecircncias a biologizaccedilatildeo da poliacutetica ponto que outrora jamais fora alcanccedilado vez que considerou o povo alematildeo como uma totalidade orgacircnica um corpo doente necessitado de uma cura radical e cuja recomendaccedilatildeo era a extraccedilatildeo e expurgaccedilatildeo de seus agentes etioloacutegicos que consistia ao fim e ao cabo ldquona ablaccedilatildeo violenta da parte espiritualmente jaacute mortardquo (ESPOSITO 2010 p 25) bastando lembrar como prova disso das ordens finais de autodestruiccedilatildeo proferidas por Hitler contra todo o povo alematildeo

No capiacutetulo dedicado agrave tanatopoliacutetica (o ciclo do ghenos) em Biacuteos biopoliacutetica e filosofia assim como no capiacutetulo O Nazismo e Noacutes do Termos da Poliacutetica comunidade imunidade biopoliacutetica Esposito verticaliza a leitura das ligaccedilotildees proacuteprias e natildeo improacuteprias ou paradoxais da poliacutetica da vida como igualmente poliacutetica da morte Deixa clara outra distinccedilatildeo sua em relaccedilatildeo a Foucault Se para Foucault eacute somente com o nazismo e o racismo de Estado que aparece a circularidade entre fazer viver e fazer morrer entre soberania e biopoliacutetica

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

63

para o filosofo italiano o paradigma imunitaacuterio como emblema da modernidade opera tanto no regime da soberania com a presenccedila dos direitos quanto na loacutegica biopoliacutetca No limiar extremo do nazismo aparece de modo mais claro a pertinecircncia entre os pontos que pareciam antinocircmicos revelando ldquouma singular forma de indistinccedilatildeo que faz de um ao mesmo tempo o reverso e o complemento do outrordquo (ESPOSITO 2010 p 159)

Nessa percepccedilatildeo tornada possiacutevel pelo extremo do nazismo acerca da lsquosobreposiccedilatildeorsquo da loacutegica soberana e biopoliacutetica da vida e da morte costuradas pela praacutetica imunitaacuteria percebe-se uma separaccedilatildeo bioloacutegica entre os que devem viver e aqueles que devem morrer A terapecircutica meacutedica presente no nazismo eacute a indicaccedilatildeo de um cuidado da vida de alguns que exige a morte de outros ndash exige a imunizaccedilatildeo de alguns a respeito de outros E tal elaboraccedilatildeo revela que ldquoo genociacutedio foi o resultado natildeo da ausecircncia mas sim da presenccedila de um eacutetica meacutedica pervertida no seu contrariordquo (ESPOSITO 2010 p 166) A sauacutede do povo alematildeo ou seja a sua imunizaccedilatildeo em face ao risco da doenccedila judaica precisou requerer o extermiacutenio do inimigo Somente a catgoria imunitaacuteria ldquopotildee claramente a nu o noacute mortiacutefero que junta a proteccedilatildeo da vida agrave sua potencial negaccedilatildeordquo (ESPOSITO 2010 p 159)

Ainda que se desvie dos movimentos hiperboacutelicos do nazismo esse noacute mortiacutefero natildeo desaparece ndash foi ali apenas elevado ao seu aacutepice e evidecircncia plena ndash uma vez que tal noacute alimenta o proacuteprio paradigma imunitaacuterio da modernidade Sobre isso Esposito diz que

Da guerra do e contra o terrorismo agraves migraccedilotildees em massa das poliacuteticas de sauacutede agraves demograacuteficas das medidas de seguranccedila preventiva agrave extensatildeo ilimitada das legislaccedilotildees de emergecircncia natildeo haacute fenocircmeno de relevo internacional que seja estranho agrave dupla tendecircncia que situa as histoacuterias a que se faz referecircncia numa uacutenica linha de significado por um lado uma crescente sobreposiccedilatildeo entre o acircmbito da poliacutetica ou do direito e o da vida por outro uma implicaccedilatildeo igualmente estreita que parece derivar daquela em relaccedilatildeo agrave morte (ESPOSITO 2010 p 22)

O problema da degeneraccedilatildeo por exemplo questatildeo iacutentima agrave biopoliacutetica tambeacutem evidencia o incocircmodo e o perigo que representam certas formas de vida ou certas condiccedilotildees bioloacutegicas perante as formas de vida consideradas saudaacuteveis Toda uma gama de diferentes discursos desde os mais claros e assumidos a outros suavizados pronunciam e fabricam o medo do contaacutegio da degenerescecircncia que certos comportamentos ou modos de vida parecem carregar Drogados viciados vadios imorais e desviados constituem perigos que justificam a defesa da sociedade em face de sua presenccedila Torna-se preciso delimitar comportamentos ou traccedilos degenerados dar-lhes uma causa bioloacutegica eacutetnica ou socialcultural inquebrantaacutevel para poder segregar e higienizar Eacute preciso imunizar a sociedade da presenccedila problemaacutetica desses grupos e nesse movimento excluiacute-los da imunizaccedilatildeo Fazer dessas formas de vida vidas precaacuterias que natildeo satildeo originariamente precaacuterias mas que satildeo assim posicionadas nas relaccedilotildees ndash na exposiccedilatildeo do munus alguns precisam ser protegidos e isso leva a fragilizaccedilatildeo de outros Na imunizaccedilatildeo que eacute salvaguarda da vida lhe eacute inerente e tambeacutem sua contrapartida o enviar para a morte Imunizar alguns em face dos outros eacute sempre imunizar alguns e natildeo outros - esse eacute o proacuteprio movimento imunitaacuterio em seu ciclo de defesa e ataque da vida

Assim pensar a exposiccedilatildeo para a morte exige nesse quadro de referecircncias expor os movimentos que ordenam em diferentes posiccedilotildees as vidas Pensar a produccedilatildeo da morte nesse

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

64

contexto retira o olhar do agente ou do ato isolados que pensam em termos de (i)legitimidade para requerer a anaacutelise das distribuiccedilotildees hieraacuterquicas das vidas e os mecanismos de poder que se articulam e contribuem nas suas disposiccedilotildees Discursos meacutedicos poliacutetico-partidaacuterios de movimentos sociais poliacuteticas puacuteblicas produccedilatildeo de pacircnicos morais todos esses diferentes lugares passam a contar para uma efetiva compreensatildeo dos processos imunitaacuterios

Eacute nesse sentido que Esposito afirma de maneira categoacuterica o fato de que nunca como atualmente ldquoos conflitos as feridas os medos que o dilaceram [o mundo] parecem pocircr em causa nada menos do que a sua proacutepria vidardquo movimento que opera uma inversatildeo no claacutessico motivo filosoacutefico sobre o ldquomundo da vidardquo para considerar a partir de entatildeo a ldquovida do mundordquo (ESPOSITO 2010 p 26) Essa modificaccedilatildeo da bios levada a cabo por uma poliacutetica tomada enquanto teacutecnica e a sua leitura imunitaacuteria requer seu entendimento natildeo por uma perspectiva de mera reaccedilatildeo uma forccedila reativa aos processos desagregadores proacuteprios da comunidade mas como accedilatildeo calculada da geraccedilatildeo e controle do conflito poreacutem cujo caacutelculo pode lhe exacerbar e se reverter em autoimunizaccedilatildeo

Tal qual o corpo atua junto ao antiacutegeno o sistema imunitaacuterio de uma comunidade parece operar de maneira similar (ESPOSITO 2002 p 59) Em um primeiro momento assimila aqueles que natildeo se encaixam aos padrotildees de equiliacutebrio estabelecidos ao bom funcionamento do organismo social forccedilando-os a se adequar aos seus modos de operaccedilatildeo regular e saudaacutevel mas para isso obriga a se revelarem constantemente a fim de que sejam reconhecidos Essa revelaccedilatildeo permanente da subjetividade para posterior assimilaccedilatildeo e constrangimento agrave regra eacute uma das teacutecnicas dos procedimentos imunitaacuterios (NALI 2013 p 98-99)

A gestaccedilatildeo e a proteccedilatildeo poliacutetica da vida pelos seus proacuteprios meios requer e aciona procedimentos de imunizaccedilatildeo consistentes na promoccedilatildeo de um equiliacutebrio vital da comunidade mas que apenas se realiza na medida em que equaciona em seus caacutelculos a eliminaccedilatildeo via ataques imunitaacuterios de elementos e fatores ndash indiviacuteduos ndash compreendidos como risco de desagregaccedilatildeo da proacutepria comunidade8

Nesses jogos procedimentais de demarcaccedilatildeo de alvos de imunizaccedilatildeo o caacutelculo operado no modelo de proteccedilatildeo negativa da vida leva em consideraccedilatildeo um agregado de vidas a ser salvo em razatildeo de suas qualidades verificadas in locu e em virtude de sua proacutepria ldquohumanidaderdquo criteacuterio este utilizado tambeacutem para se determinar aqueles que seratildeo expostos agrave morte vez que representam um perigo agrave proacutepria comunidade tomada enquanto corpo bioloacutegico A ideia de humanidade subjacente a todos esses processos de imunizaccedilatildeo e compreendida como fator de diferenciaccedilatildeo dos humanos dispostos numa hierarquia superior em relaccedilatildeo a todas as outras espeacutecies viventes paradoxalmente aderiu agrave proacutepria mateacuteria bioloacutegica agora carregada de valores poliacuteticos Nesse contexto afirma Esposito ldquoconfundida com a sua pura substacircncia vital e assim subtraiacuteda a qualquer forma juriacutedico-poliacutetica a humanidade do homem fica necessariamente exposta agravequilo que pode simultaneamente salvaacute-la e aniquilaacute-lardquo (ESPOSITO 2010 p 19)

A leitura pelo vieacutes da imunizaccedilatildeo nos coloca diante das produccedilotildees de morte que ocorrem agrave revelia da permissatildeo juriacutedica na medida em que representam a proteccedilatildeo do proacuteprio organismo social Essa proteccedilatildeo do social depende da expulsatildeo da igualdade generalizada Eacute soacute imunizando e portanto diferenciando e acobertando uns em detrimento

8 De acordo com Esposito ldquoCiograve che ne risulta egrave un movimento bilanciato di neutralizzazione ndash chiaramente ricon-ducibile alla logica immunitariardquo(ESPOSITO 2002 p 69)

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

65

de outros que a vida cabe na poliacutetica moderna A moderna poliacutetica da vida assim se movimenta aplicando e desaplicando proteccedilotildees imunitaacuterias Eacute deste modo num contexto mais abrangente que a produccedilatildeo da morte deve ser pensada Natildeo se trata de balizar sua permissatildeo ou negaccedilatildeo legal mas de analisar como a proacutepria tessitura poliacutetica moderna opera de modo antinocircmico abrindo fendas na suposta igualdade e valor da vida em abstrato

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

66

Referecircncias bibliograacuteficasBUTLER Judiht Quadros de guerra quando a vida eacute passiacutevel de luto Traduccedilatildeo de Seacutergio Tadeu de Niemeyer Lamaratildeo Arnaldo Marques da Cunha Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2015CAMPBELL Timothy Poliacutetica Imunidade Vida O pensamento de Roberto Esposito no debate contemporacircneo In ESPOSITO Roberto Termos da Poliacutetica comunidade imunidade biopoliacutetica Traduccedilatildeo de Angela C Machado Fonseca Joatildeo Paulo Arrosi Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca Curitiba Ed UFPR 2017 CORTE IDH Caso Favela Nova Brasiacutelia Vs Brasil Sentenccedila de 16 de fevereiro de 2017 Seacuterie C Nordm 333 Disponiacutevel em httpwwwcorteidhorcrdocscasosarticulosseriec_333_porpdf Acesso em 16 de setembro de 2017DIOacuteGENES Francisco Bruno Pereira Racismo de Estado e Tanatopoliacutetica sobre o paradoxo do Nazismo em Michel Foucault e Giorgio Agamben Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea Brasiacutelia n 2 ano 1 p 156-193 2013DUARTE Andreacute Macedo De Michel Foucault a Giorgio Agamben a trajetoacuteria do conceito de biopoliacutetica In Fenomenologia Hoje III ndash Bioeacutetica biotecnologia biopoliacutetica Editora Edipucrs 2008 Texto em versatildeo digital p 1-22 Disponiacutevel em httpsworksbepresscomandre_duarte17 Acesso em 06 de ago de 2016ESPOSITO Roberto Bios biopoliacutetica e filosofia Traduccedilatildeo de M Freitas da Costa Lisboa Ediccedilotildees 70 2010_____ Termos da Poliacutetica comunidade imunidade biopoliacutetica Traduccedilatildeo de Angela C Machado Fonseca Joatildeo Paulo Arrosi Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca Curitiba Ed UFPR 2017 _____ Communitas Origine e destino della comunitagrave Torino Einaudi 2006 _____ Immunitas Protezione e negazione della vita Torino Einaudi 2002 FONSECA Angela Couto Machado Biopoliacutetica e Direito fabricaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo do corpo moderno Belo Horizonte Arraes Editores 2016FONSECA Ricardo Marcelo O poder entre o direito e a lsquonormarsquo Foucault e Deleuze na Teoria do Estado In FONSECA Ricardo Marcelo (org) Repensando a teoria do Estado Belo Horizonte 2004 p 259-281_____ Modernidade e contrato de trabalho do sujeito de direito agrave sujeiccedilatildeo juriacutedica Satildeo Paulo LTr 2002FOUCAULT Michel Histoacuteria da sexualidade 1 A vontade de saber (Traduccedilatildeo de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque) Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 2011_____ Em defesa da sociedade Curso no Collegravege de France (1975-1976) (Traduccedilatildeo de Maria Emantina Galvatildeo) ndash 2ordf ed ndash Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2010_____ Vigiar e Punir nascimento da prisatildeo (Traduccedilatildeo de Raquel Ramalhete) 39 ed Petroacutepolis Rio de Janeiro Vozes 2011NALI Marcos CommunitasImmunitas a releitura de Roberto Esposito da biopoliacutetica Revista Filosofia Aurora Curitiba v 25 n 37 p 79-105 2013_____ A abordagem imunitaacuteria de Roberto Esposito biopoliacutetica e medicalizaccedilatildeo Revista INTERthesis Florianoacutepolis v 9 n 2 p 39-50 2012

Caius Brandatildeo

67

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

Caius Brandatildeo1

As posiccedilotildees paradoxais assumidas por Nietzsche acerca do livre-arbiacutetrio eacute uma questatildeo bastante espinhosa provocando ainda hoje tensotildees entre os seus estudiosos que manteacutem candente o debate afinal em relaccedilatildeo ao problema da liberdade da vontade Nietzsche deve ser considerado um compatibilista ou um fatalista Na Genealogia da moral o filoacutesofo argumenta que a doutrina do livre-arbiacutetrio nada mais eacute do que uma invenccedilatildeo da moralidade escrava para atender agrave sua necessidade de crenccedila no ldquolsquosujeitorsquo indiferente e livre para escolherrdquo (GM I sect13) Com essa crenccedila na liberdade da vontade surge a ideia de responsabilidade e portanto de imputaccedilatildeo moral Assim as noccedilotildees de culpa e merecimento seriam um desenvolvimento tardio da moralidade humana quando a doutrina do livre-arbiacutetrio foi finamente criada pela revolta escrava da moral Em suas palavras ldquodurante o mais largo periacuteodo da histoacuteria humana natildeo se castigou porque se responsabilizava o delinquente por seu ato ou seja natildeo pelo pressuposto de que apenas o culpado devia ser castigadordquo (GM II sect4) Ainda de acordo com Nietzsche

natildeo eacute de espantar que os afetos entranhados que ardem ocultos oacutedio e vinganccedila tirem proveito dessa crenccedila e no fundo natildeo sustentem com fervor maior outra crenccedila senatildeo a de que o forte eacute livre para ser fraco e a ave de rapina livre para ser ovelha ndash assim adquirem o direito de imputar agrave ave de rapina o fato de ser o que eacute (GM I sect13)

Com base nessas passagens da Genealogia da moral jaacute eacute possiacutevel observar pelo menos duas categorias de livre-arbiacutetrio postas em questatildeo pelo filoacutesofo a liberdade de escolha para agir moralmente e a liberdade para ser o que se eacute Natildeo obstante em seguida na mesma obra Nietzsche apresenta a figura enigmaacutetica do indiviacuteduo soberano ldquosenhor do livre-arbiacutetriordquo que deteacutem o ldquoprivileacutegio extraordinaacuterio da responsabilidaderdquo (GM II sect2) O problema contudo toma proporccedilotildees ainda mais amplas e complexas quando se coteja passagens de diferentes obras do filoacutesofo onde por vezes ele parece afirmar uma noccedilatildeo positiva da liberdade da vontade enquanto que em outros trechos rejeita categoricamente o livre-arbiacutetrio e consequentemente a responsabilidade do agente moral da mesma forma como a responsabilidade da pessoa por ser o que eacute

Neste texto propomos apresentar as interpretaccedilotildees parcialmente conflitantes sobre este tema de dois importantes representantes da recepccedilatildeo anglo-saxocircnica contemporacircnea da filosofia de Nietzsche Ken Gemes professor do Instituto Berkbeck da Universidade

1 Doutorando Mestre e Bacharel em Filosofia Universidade Federal de Goiaacutes (UFG)

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

68

de Londres e Brian Leiter diretor e professor do Centro de Direito Filosofia e Valores Humanos da Universidade de Chicago

Ken GemesNo capiacutetulo intitulado ldquoNietzsche on Free Will Autonomy and the Sovereign

Individualrdquo de sua obra Nietzsche on Freedom and Autonomy publicada em 2009 pela Oxford University Press Ken Gemes propotildee tratar o problema da liberdade a partir de duas categorias A primeira delas faz referecircncia ao livre-arbiacutetrio de meacuterito (deserts free will) o qual autoriza a noccedilatildeo de quem eacute merecedor de puniccedilatildeo ou recompensa A segunda categoria proposta por Gemes se refere ao livre-arbiacutetrio de agecircncia (agency free will) o qual autoriza as noccedilotildees de autonomia e de agecircncia genuiacutena e que estaria relacionado agrave ideia de accedilatildeo ao inveacutes de um mero fazer (GEMES 2009 p 322) De antematildeo o professor da Universidade de Londres deixa claro que o objetivo do seu texto eacute defender a sua compreensatildeo de que Nietzsche rejeita o livre-arbiacutetrio de meacuterito e afirma o livre-arbiacutetrio de agecircncia a despeito de que somente pessoas muito raras seriam capazes de alcanccedilar real autonomia e responsabilidade a exemplo do indiviacuteduo soberano da Genealogia da moral

Gemes observa que jaacute haacute muito tempo as noccedilotildees de livre-arbiacutetrio e responsabilidade caminham juntas e que a tradiccedilatildeo filosoacutefica reconhece a liberdade da vontade como condiccedilatildeo para a responsabilidade moral Para o professor de Birkbeck uma ambiguidade existente no termo ldquoresponsabilidaderdquo faz com que as pessoas cometam o erro de natildeo separar o livre-arbiacutetrio de meacuterito do livre-arbiacutetrio de agecircncia Quando afirmamos que algueacutem eacute responsaacutevel por algo pode ser que o que queremos dizer eacute que esta pessoa merece uma puniccedilatildeo ou uma recompensa por ter feito o que fez Por outro lado pode ser tambeacutem que queremos dizer simplesmente que foi esta pessoa quem fez o que fez Em suma o primeiro significado de responsabilidade estaacute associado agrave noccedilatildeo de merecimento enquanto o segundo agrave noccedilatildeo de agecircncia Gemes entatildeo passa a separar categoricamente esses dois tipos de significado para o termo ldquoresponsabilidaderdquo para concluir que Nietzsche rejeita a responsabilidade de meacuterito mas deixa algum espaccedilo para se afirmar a responsabilidade de agecircncia Vejamos em suas proacuteprias palavras como o professor de Birkbeck chega a essa conclusatildeo

Ora algueacutem pode levantar uma objeccedilatildeo e dizer que Nietzsche estaacute constantemente culpando as pessoas (Soacutecrates Jesus Satildeo Paulo Wagner) e muitas vezes louvando os outros (Napoleatildeo Beethoven Goethe Wagner Nietzsche) portanto isto significa que seria difiacutecil aceitar que ele natildeo estaria interessado em questotildees de meacuteritos Eacute importante aqui separar os conceitos de puniccedilatildeo e recompensa dos conceitos de culpa e elogio [] A fim de separar esses pares conceituais seria uacutetil trazer o foco para a nossa atitude em relaccedilatildeo a figuras que haacute muito desapareceram Por exemplo aqueles de noacutes que admiram Soacutecrates podem elogiaacute-lo mas esse elogio dificilmente constitui uma recompensa ndash em certo sentido os mortos estatildeo fora do alcance das recompensas embora naturalmente possam ser honrados Aqueles que assim como Nietzsche consideram que Soacutecrates eacute uma influecircncia em grande parte maleacutefica podem ateacute culpaacute-lo mas natildeo devemos entender essa culpa como sendo qualquer tipo de puniccedilatildeo Ordinariamente punir e recompensar eacute algo que fazemos com os seres vivos natildeo agravequeles que jaacute morreram Nietzsche de fato fez vaacuterios elogios e atribuiu culpa a

Caius Brandatildeo

69

figuras que eram seus contemporacircneos e figuras que haviam morrido antes dele A minha opiniatildeo eacute que para Nietzsche tais elogios e culpas significam que ele os considera responsaacuteveis por vaacuterios efeitos mas apenas no que se refere agrave agecircncia e natildeo aos meacuteritos Que Nietzsche culpe e louve natildeo demonstra que ele esteja comprometido com uma explicaccedilatildeo positiva da responsabilidade ou do livre-arbiacutetrio de meacuterito Nietzsche rejeita as noccedilotildees de puniccedilatildeo e recompensa em parte porque elas satildeo em certo sentido dirigidas ao passado uma questatildeo de dar o que foi merecido ao passo que para Nietzsche as atitudes de elogiar e culpar satildeo fundamentalmente direcionadas ao futuro [] Ele culpa figuras tais como Soacutecrates Jesus Paulo e agraves vezes Wagner natildeo porque ele queira meramente atribuir a eles seus meacuteritos mas antes porque ele quer diminuir suas influecircncias atuais e futuras Da mesma forma ele elogia Beethoven Goethe Nietzsche e agraves vezes Wagner porque ele deseja aumentar suas influecircncias sobre noacutes e sobre o futuro mesmo que agraves vezes eles sejam apresentados somente como exemplares (GEMES 2009 pp 323 e 324)

Temos entatildeo que em sua cadeia argumentativa Ken Gemes contrapotildee dois grupos de pares conceituais de um lado o livre-arbiacutetrio e a responsabilidade de meacuterito e do outro lado o livre-arbiacutetrio e a responsabilidade de agecircncia Para sustentar a sua interpretaccedilatildeo de que Nietzsche rejeita o livre-arbiacutetrio e a responsabilidade de meacuterito Gemes cita a seguinte passagem do aforismo 39 de Humano demasiado humano

E afinal descobrimos que tampouco este ser pode ser responsaacutevel na medida em que eacute inteiramente uma consequecircncia necessaacuteria e se forma a partir dos elementos e influxos de coisas passadas e presentes portanto que natildeo se pode tornar o homem responsaacutevel por nada seja por seu ser por seus motivos por suas accedilotildees ou por seus efeitos Com isso chegamos ao conhecimento de que a histoacuteria dos sentimentos morais eacute a histoacuteria de um erro o erro da responsabilidade que se baseia no erro do livre-arbiacutetrio (HH I sect39)

Ao nos reportarmos ao trecho final desse mesmo aforismo encontramos uma reiteraccedilatildeo da mesma afirmaccedilatildeo

mdash Ningueacutem eacute responsaacutevel por suas accedilotildees ningueacutem responde por seu ser julgar significa ser injusto Isso tambeacutem vale para quando o indiviacuteduo julga a si mesmo Essa tese eacute clara como a luz do sol no entanto todos preferem retornar agrave sombra e agrave inverdade por medo das consequecircncias (HH I sect 39)

De fato aqui Nietzsche rejeita a responsabilidade do homem ldquopor suas accedilotildees ou por seus efeitosrdquo Todavia Gemes parece natildeo perceber que esse mesmo aforismo compromete a sua interpretaccedilatildeo de que o filoacutesofo teria deixado espaccedilo para se afirmar a responsabilidade de agecircncia afinal ele diz categoricamente que natildeo se pode tornar o homem responsaacutevel por nada inclusive pelo seu proacuteprio ser Parece-nos razoaacutevel afirmar que somente podem assumir responsabilidade por sua proacutepria agecircncia aqueles que agem livre e autonomamente Gemes tambeacutem reconhece essa relaccedilatildeo de necessidade entre livre-arbiacutetrio de agecircncia e autonomia Conforme ele expotildee

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

70

Algueacutem pode por exemplo negar que haacute livre-arbiacutetrio no sentido tradicionalmente visto como necessaacuterio para fundamentar questotildees de meacuterito e ao mesmo tempo afirmar que haacute livre-arbiacutetrio no sentido tradicionalmente visto como necessaacuterio para fundamentar a noccedilatildeo de agecircncia e de autonomia (GEMES 2009 p 322)

Ora se Gemes reconhece que a autonomia eacute tributaacuteria do livre-arbiacutetrio de agecircncia entatildeo seria razoaacutevel esperar que um indiviacuteduo autocircnomo fosse livre e capaz de responder por seu proacuteprio ser Mas convenhamos esta natildeo parece ser a conclusatildeo que podemos defender pelo menos com base nesse aforismo de Humano demasiado humano onde Nietzsche eacute categoacuterico ao dizer que ldquoningueacutem responde por seu serrdquo

Para Gemes uma das evidecircncias de que Nietzsche seja um compatibilista pode ser encontrada na passagem da Segunda Dissertaccedilatildeo da Genealogia da moral onde o filoacutesofo introduz a figura do indiviacuteduo soberano o senhor do livre-arbiacutetrio Para Gemes o tipo de liberdade que Nietzsche estaria invocando aiacute natildeo envolve a liberdade da ordem causal nem se liga a questotildees de meacuterito Para o professor da Universidade de Londres a noccedilatildeo de liberdade atribuiacuteda ao indiviacuteduo soberano estaria claramente ligada agrave questatildeo da autonomia e do que ele chama de ldquoagecircncia genuiacutenardquo Mas a bem da verdade e como veremos a seguir essa passagem sobre o indiviacuteduo soberano ainda suscita diferentes interpretaccedilotildees

Brian Leiter Passemos agora agrave apresentaccedilatildeo do texto Who is the lsquosovereign individualrsquo Nietzsche

on freedom de Brian Leiter que foi originalmente publicado em 2011 pela Cambridge University Press como um capiacutetulo do livro Nietzschersquos On the Genealogy of Morality A Critical Guide organizado por Simon May

Primeiramente Leiter critica o consenso entre os inteacuterpretes contemporacircneos de Nietzsche de acordo com o qual o trecho sobre o indiviacuteduo soberano serviria para confirmar uma suposta teoria positiva da liberdade na filosofia do pensador alematildeo Leiter cita nominalmente alguns desses inteacuterpretes entre eles Keith Ansell-Pearson John Richardson Peter Poellner e Ken Gemes Em nota de rodapeacute Leiter faz a seguinte anaacutelise do texto ldquoNietzsche on Free Will Autonomy and the Sovereign Individualrdquo de Ken Gemes

A terminologia e a discussatildeo de Gemes nos parecem um tanto confusas Ele faz a comparaccedilatildeo entre o que chama de ldquolivre-arbiacutetrio de meacuteritordquo [deserts free will] e ldquolivre-arbiacutetrio de agecircnciardquo [agency free will] De acordo com este uacuteltimo ldquoo debate sobre livre-arbiacutetrio estaacute intrinsecamente ligado agrave questatildeo da agecircncia o que constitui a accedilatildeo ao contraacuterio do mero fazerrdquo (2009 33) Na verdade ningueacutem pensa que possa existir livre-arbiacutetrio ou livre-agecircncia se natildeo haacute diferenccedila entre accedilotildees e ldquomeros fazeresrdquo por exemplo meros movimentos corporais Mas existem vaacuterias formas de salientar a distinccedilatildeo que natildeo guarde relaccedilatildeo com qualquer questatildeo que algueacutem na filosofia agora ou no passado identifique com a questatildeo do ldquolivre-arbiacutetriordquo Talvez as accedilotildees exijam intenccedilotildees para agir enquanto que ldquomeros fazeresrdquo ndash tais como os movimentos reflexivos do corpo ndash carecem delas Isto ainda deixaria totalmente em aberto o conhecido problema acerca da liberdade da vontade Gemes emprega outras formulaccedilotildees para a sua idiossincraacutetica categoria de ldquolivre-arbiacutetrio de agecircnciardquo Ele diz estar preocupado com a questatildeo sobre ldquoo que permite a autonomiardquo (33) e depois afirma que o ldquolivre-arbiacutetrio de agecircnciardquo estaacute ligado ldquoagrave questatildeo

Caius Brandatildeo

71

ainda mais profunda de lsquoo que significa agir em primeiro lugar o que eacute ser um eu capaz de agirrdquo (39) Infelizmente natildeo haacute evidecircncia textual de que estas sejam preocupaccedilotildees de Nietzsche Gemes tambeacutem afirma mais uma vez sem apresentar evidecircncias ou citaccedilatildeo que aqueles interessados no ldquolivre-arbiacutetrio de meacuteritordquo ldquotendem a escrever como se noacutes jaacute tiveacutessemos uma noccedilatildeo sobre o eu e sobre a accedilatildeo mais ou menos estabelecida e que estariacuteamos somente levantando a questatildeo de se tais lsquoeusrsquo deveriam ser considerados moralmente responsaacuteveis por suas accedilotildeesrdquo (LEITER 2011 p 111)

Para contrapor o que parece ser consensual entre seus colegas da recepccedilatildeo anglo-saxocircnica ou seja que Nietzsche teria criado o indiviacuteduo soberano para afirmar um tipo de liberdade o professor da Universidade de Chicago se propotildee a analisar duas alternativas que ajudam a deflacionar as interprestaccedilotildees correntes desta figura controversa a qual aparece somente uma vez na Genealogia da moral A primeira leitura possiacutevel seria a de compreender este trecho da obra sob a chave da ironia ndash neste caso

a figura do ldquoindiviacuteduo soberanordquo seria completamente irocircnica ndash uma zombaria sobre o pequeno burguecircs preocupado com seu insignificante empreendimento comercial ndash suas habilidades de fazer promessas e de se lembrar de suas diacutevidas seriam o fruto mais elevado da criaccedilatildeo (LEITER 2011 p 103)

Apesar de Leiter propor enxergar o indiviacuteduo soberano como um pequeno burguecircs preocupado com suas diacutevidas talvez seja verdade que Nietzsche natildeo estaria interessado em classes sociais na sua Genealogia da moral Quiccedilaacute a zombaria sob a provaacutevel oacutetica irocircnica de Nietzsche tenha como alvo o ideal kantiano de homem autocircnomo e supramoral No sect2 da Segunda Dissertaccedilatildeo Nietzsche apresenta a consciecircncia moral do indiviacuteduo soberano e no paraacutegrafo seguinte o genealogista indaga o que haacute por traacutes desse conceito de consciecircncia ldquoJaacute se percebe que o conceito de ldquoconsciecircnciardquo com que deparamos aqui em sua manifestaccedilatildeo mais alta quase desconcertante tem uma longa histoacuteria e variedade de formas atraacutes de sirdquo (GM II sect3) A histoacuteria e variedade de formas da consciecircncia moral do indiviacuteduo soberano satildeo marcadas pelo ldquosangue martiacuterio e sacrifiacuteciordquo (GM II sect3) impostos pela mnemoteacutecnica da moralidade dos costumes Eacute por pavor ao castigo que o homem inaugura em si a capacidade da memoacuteria e com ela de acordo com Nietzsche finalmente a razatildeo

ndash Ah a razatildeo a seriedade o domiacutenio sobre os afetos toda essa coisa sombria que se chama reflexatildeo todos esses privileacutegios e adereccedilos do homem como foi alto o seu preccedilo Quanto sangue e quanto horror haacute no fundo de todas as ldquocoisas boasrdquo (GM II sect 3)

Temos portanto que a consciecircncia moral do indiviacuteduo soberano compreende essa razatildeo que exerce domiacutenio sobre os afetos Isso nos leva a crer que aqui na verdade Nietzsche tem em mente a sua criacutetica a uma tradiccedilatildeo de pensamento particularmente agrave filosofia moral de Kant

A segunda leitura deflacionaacuteria proposta por Leiter considera que o indiviacuteduo soberano representa o ideal do self moderno capaz de ldquoautodomiacuteniordquo o qual

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

72

seria estranho aos ldquoeusrdquo menos coerentes (cujos impulsos momentacircneos os puxam de um lado ou de outro) Mas este eu e o seu autodomiacutenio satildeo em termos nietzschianos um artefato natural fortuito (um pouco de ldquodestinordquo) natildeo uma conquista autocircnoma pela qual ningueacutem poderia ser responsaacutevel Associar esse ideal do eu com a linguagem de ldquoliberdaderdquo e ldquolivre-arbiacutetriordquo significa um exerciacutecio de ldquodefiniccedilatildeo persuasivardquo de Nietzsche uma habilidade retoacuterica na qual ele amiuacutede era o mestre (LEITER 2011 p 103)

Leiter sugere que a segunda leitura eacute provavelmente a mais correta embora a apresentaccedilatildeo ridiacutecula e hiperboacutelica que Nietzsche faz do indiviacuteduo soberano faccedila com que a primeira leitura nos pareccedila mais atraente Mas conforme Leiter ambas as leituras ldquonos permitiriam compreender como e porque Nietzsche o fatalista e superceacutetico acerca do livre-arbiacutetrio teria criado a figura do indiviacuteduo soberanordquo (LEITER 2011 p 103) De acordo com Leiter a capacidade de autodomiacutenio natildeo eacute uma escolha autocircnoma da pessoa Natildeo haacute em seu entendimento nenhum ldquoeurdquo no autodomiacutenio em suas proacuteprias palavras natildeo existe

nenhum ldquoeurdquo consciente ou livre que contribua com algo ao processo O ldquoautodomiacuteniordquo natildeo passa de um efeito da interaccedilatildeo de certos impulsos sobre os quais o eu consciente natildeo exerce nenhum controle (apesar de poder por assim dizer torcer por um lado ou por outro) O ldquoeu conscienterdquo e seu corpo eacute tatildeo somente uma arena onde a luta dos impulsos se desenrola como eles terminam determina o que o eu acredita valoriza e se torna Mas enquanto eu consciente ou ldquoagenterdquo a pessoa natildeo tem parte ativa no processo De fato alguns ldquotipos mais elevadosrdquo ndash Goethes e Nietzsches por exemplo ndash seriam exemplares de uma hierarquia unificada de impulsos o que Nietzsche ocasionalmente chama de exemplares da ldquoliberdaderdquo (LEITER 2011 p 110)

Eacute com base nessa concepccedilatildeo de autodomiacutenio que Leiter propotildee compatibilizar a passagem sobre o indiviacuteduo soberano na Genealogia da moral com a negaccedilatildeo do livre-arbiacutetrio e da responsabilidade moral nesta e em tantas outras obras de Nietzsche

Em seguida Leiter coteja a sua explicaccedilatildeo fatalista do indiviacuteduo soberano com as noccedilotildees de liberdade e de livre-arbiacutetrio identificadas em diversos escritos do filoacutesofo Inicialmente contudo ele expotildee a posiccedilatildeo de Peter Poellner para quem a visatildeo positiva da liberdade em Nietzsche representa uma espeacutecie de ldquoideal substantivordquo Leiter associa esta interpretaccedilatildeo de Poellner com a posiccedilatildeo de Ken Gemes para quem Nietzsche estaria propondo um ldquoideal de agecircncia que exigiria uma espeacutecie de unidade de impulsosrdquo (LEITER 2011 p 111) Leiter entatildeo pondera que talvez o polecircmico indiviacuteduo soberano represente tal ideal mas natildeo concorda que ele esteja ligado agraves noccedilotildees de liberdade e livre-arbiacutetrio ou mesmo de autonomia Aqui o argumento central do professor da Universidade de Chicago eacute que Nietzsche utiliza os conceitos de liberdade e de livre-arbiacutetrio em sentido revisionista promovendo o que Charles Stevenson chama de ldquodefiniccedilatildeo persuasiva da liberdaderdquo Para Leiter Nietzsche

deseja revisar radicalmente o conteuacutedo da palavra ldquoliberdaderdquo enquanto explora a valecircncia positiva que o termo possui para seus leitores A razatildeo disto eacute que Nietzsche reconhece que para transformar realmente a consciecircncia de seus leitores preferidos ele deve tocaacute-los no niacutevel

Caius Brandatildeo

73

emocional ateacute mesmo subconsciente e uma forma de fazecirc-lo eacute associar os seus ideais aos valores cujos seus leitores jaacute se encontram emocionalmente investidos (LEITER 2011 p 112)

Leiter propotildee que para Nietzsche liberdade significa a atitude fatalista diante da realidade conhecida como amor fati ou seja a afirmaccedilatildeo intransigente da maneira como as coisas realmente satildeo ao inveacutes de se render agraves fantasias dos idealistas Nas palavras de Leiter ldquoser livre neste sentido significa entatildeo ser livre do desejo de que a realidade seja diferente daquilo que ela eacute ndash isto eacute desigual terriacutevel e cruelrdquo (LEITER 2011 p 118)

Em suas consideraccedilotildees finais Leiter afirma que o desejo de tornar o filoacutesofo ldquomenos temiacutevelrdquo aos delicados leitores modernos explica o ldquoconsensordquo em torno da leitura de um Nietzsche que acredite na liberdade e no livre-arbiacutetrio Enfim para natildeo deixar duacutevida sobre a sua interpretaccedilatildeo fatalista o professor da Universidade de Chicago afirma na conclusatildeo de seu texto

Nietzsche natildeo crecirc na liberdade ou na responsabilidade ele natildeo acredita que noacutes exercitamos qualquer controle significativo sobre nossas vidas ele natildeo crecirc que o seu sentido revisionista de ldquoliberdaderdquo ndash a ldquovontade longa e duradourardquo como ele coloca na passagem da GM II sect2 [] ndash esteja ao alcance de qualquer um de noacutes ou que qualquer um poderia simplesmente ldquoescolherrdquo possuiacute-la (LEITER 2011 p 119)

Por essa razatildeo Leiter rejeita categoricamente a persistente influecircncia maligna das leituras moralizantes das obras do filoacutesofo alematildeo

Em suma enquanto Leiter e Gemes concordam que Nietzsche rechaccedila o livre-arbiacutetrio e a responsabilidade moral eles divergem sobre a liberdade enquanto autonomia Na visatildeo compatibilista de Gemes Nietzsche afirma a liberdade da vontade e a responsabilidade quando associadas agrave agecircncia genuiacutena e autocircnoma Leiter por sua vez defende uma leitura fatalista do filoacutesofo argumentando que mesmo homens raros como Goethe seriam frutos da fortuna

Quais satildeo as consequecircncias de acordo com Nietzsche em HH I sect 39 que nos obrigariam a retornar agrave sombra e agrave inverdade Se natildeo temos o direito de imputar agrave ave de rapina o fato de ela ser o que eacute como podemos nos dar o direito de castigaacute-la por isso Como podemos julgar algueacutem e ateacute a noacutes mesmos por ter agido de determinada forma se for verdade que a vontade racional natildeo eacute a causa de nossas accedilotildees Uma vez confirmada essa teoria de Nietzsche estariacuteamos irremediavelmente diante da imensa tarefa de transvaloraccedilatildeo dos valores morais e de autossupresatildeo da justiccedila

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

74

Referecircncias bibliograacuteficasGEMES Ken Nietzsche on Free Will Autonomy and the Sovereign Individual In GEMES Ken (org) Nietzsche on Freedom and Autonomy Oxford Oxford University Press 2009LEITER Brian Who is the ldquoSovereign Individualrdquo Nietzsche on Freedom In MAY Simon (org) Nietzschersquos On the Genealogy of Morality A Critical Guide Cambridge Cambridge University Press 2011NIETZSCHE Friedrich Genealogia da moral ndash uma polecircmica Trad de Paulo Ceacutesar Lima de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Humano demasiado humano Trad de Paulo Ceacutesar Lima de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Ceacutelia Machado Benvenho

75

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche1

Ceacutelia Machado Benvenho2

Embora natildeo forme um corpus unificado nem mesmo se concentre em textos especiacuteficos Nietzsche faz uma reflexatildeo radical da linguagem desde seus primeiros escritos (1869 a 1871) quando ainda filoacutelogo e a ela dedicaraacute uma especial atenccedilatildeo a ponto de condicionar a tarefa de compreender as transformaccedilotildees que a linguagem havia sofrido desde suas possibilidades originais como uma condiccedilatildeo para a compreensatildeo do desenvolvimento da proacutepria filosofia Nesse sentido embora habitualmente a obra de Nietzsche seja dividida em trecircs periacuteodos distintos com algumas variaccedilotildees de pontos de vistas a linguagem serve como um fio condutor um dos elementos fundamentais para compreensatildeo da sua criacutetica aos problemas tradicionais da metafiacutesica e epistemologia Sua principal criacutetica seraacute aos poderes representativos da linguagem ou seja agrave crenccedila no poder da linguagem de nos fornecer um conhecimento adequado da realidade

No periacuteodo de 1869-70 quando receacutem-nomeado professor na Universidade da Basileacuteia o filoacutesofo prepara um de seus primeiros cursos Liccedilotildees sobre gramaacutetica latina em que num capiacutetulo introdutoacuterio cujo tiacutetulo eacute Sobre a origem da linguagem faz um estudo da gecircnese da linguagem e desenvolve a sua primeira concepccedilatildeo de linguagem e manifesta interesse por diferentes teorias da linguagem da eacutepoca3 Entre os anos de 1872 e 1874 Nietzsche tambeacutem daraacute aulas sobre Retoacuterica antiga4 e Histoacuteria da eloquecircncia grega

Dentre as reflexotildees de Nietzsche sobre a linguagem nos interessa aqui tratar da concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem que aparece nas anotaccedilotildees para o Curso de retoacuterica realizado entre os anos de 1872 e 1874 e no escrito inacabado Sobre verdade e mentira no sentido extramoral de 1873 em que Nietzsche defende a tese de que a linguagem eacute essencialmente e por sua proacutepria natureza uma arte Pretendemos investigar no acircmbito da filosofia do jovem Nietzsche como a concepccedilatildeo retoacuterica da linguagem se mostra relevante e quais as influecircncias dessa abordagem no seu estilo de filosofar posterior A questatildeo que se coloca eacute se esta concepccedilatildeo retoacuterica da linguagem jaacute natildeo anuncia uma objeccedilatildeo do filoacutesofo agrave pretensatildeo metafiacutesica de um discurso que expresse a verdade objeccedilatildeo tiacutepica da criacutetica genealoacutegica que ele iraacute empreender

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001

2 Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute3 Tais como Filosofia do Inconsciente de E Von Hartmann Histoacuteria da Ciecircncia da Linguagem de Th Benfey e Criacutetica

da Faculdade do Juiacutezo de E Kant (Cf CAVALCANTI Anna Hartmann 2005 p 29-39)4 Texto agrupado em seu Curso de Retoacuterica cujo tiacutetulo original eacute Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga anunciado pela Univer-

sidade da Basileacuteia para acontecer no semestre de 1874 Guervoacutes (2000 p 13-16) ressalta que nesse Curso Nietzsche trata sistematicamente e historicamente da retoacuterica e pressupotildee a leitura da obra de Gustav Gerber Die Sprache als Kunst pertencente a uma tradiccedilatildeo filosoacutefica-linguiacutestica e agrave filosofia da linguagem do seacuteculo XIX e de outro grupo que corresponderia agrave tradiccedilatildeo da filologia claacutessica (A Westermann L Spengel R Volkmann e F Blass)

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche

76

Concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem Em notas para o seu Curso de retoacuterica realizado entre os anos de 1872 e 1874

Nietzsche defende a tese de que a linguagem eacute essencialmente e por sua proacutepria natureza uma arte Faz isso sob a influecircncia da obra de Gustav Gerber A linguagem como arte retomando o caraacuteter original da linguagem como uma obra de arte a linguagem se origina de um procedimento esteacutetico originaacuterio inconsciente intuitivo um processo de criaccedilatildeo simboacutelica que tem iniacutecio na percepccedilatildeo humana do mundo A partir desse contexto assim como em outros textos da juventude a relaccedilatildeo do homem com o mundo caracteriza-se como uma relaccedilatildeo esteacutetica Enquanto arte a linguagem expressa somente nossa relaccedilatildeo com as coisas com o mundo ou seja sua origem natildeo eacute intelectual mas intuitiva Tudo se inicia com um estiacutemulo nervoso uma excitaccedilatildeo que suscita uma sensaccedilatildeo que por sua vez eacute representada em uma imagem e depois modelada em um som

O homem que forma a linguagem natildeo percebe coisas ou processos mas excitaccedilotildees [Reize] natildeo transmite sensaccedilotildees mas somente coacutepias de sensaccedilotildees A sensaccedilatildeo suscitada atraveacutes de uma excitaccedilatildeo nervosa natildeo apreende a proacutepria coisa essa sensaccedilatildeo eacute representada externamente atraveacutes de uma imagem (Curso de retoacuterica sect 3)

Em seu ensaio poacutestumo Sobre verdade e mentira em sentido extra-moral5 (1873) simplificando o esquema de Gustav Geber6 Nietzsche diz ldquoUm estiacutemulo nervoso (Nervenreiz) primeiramente transposto (uumlbertragen) em uma imagem (Bild) Primeira metaacutefora A imagem por sua vez modelada em um som Segunda metaacuteforardquo (WLVM sect1) Aqui estaacute uma das chaves para entendermos a defesa de Nietzsche de uma estrutura tropoloacutegica da linguagem que trataremos com mais detalhes a seguir O que ocorre eacute um procedimento de criaccedilatildeo simboacutelica em que se produz uma imagem a partir de outra imagem por um processo de transposiccedilatildeo Estamos sempre operando num processo de transposiccedilatildeo de imagem a imagem No entanto pergunta Nietzsche ldquoComo um ato da alma pode ser representado atraveacutes de uma imagem sonora (Curso de Retoacuterica sect 3) Podemos acrescentar outras questotildees o que temos acesso da coisa percebida pela nossa percepccedilatildeo O que captamos dela O que podemos representar dela por meio das palavras O proacuteprio Nietzsche nos ajuda com as respostas ldquoNatildeo satildeo as coisas que penetram na consciecircncia senatildeo a maneira que noacutes nos colocamos ante elas o pithanoacuten (poder de persuasatildeo) Nunca se capta a essecircncia plena das coisas () Em vez da coisa a sensaccedilatildeo soacute capta um sinal (Merkmal) () um sinal que lhe parece predominanterdquo (Curso de Retoacuterica sect 3) Essa relaccedilatildeo que o homem estabelece com as coisas eacute a base do modelo retoacuterico de linguagem para Nietzsche ldquoAs propriedades contecircm apenas relaccedilotildeesrdquo (NachlassFP KSA 7 9[242] Veratildeo 1872-1874) e mais especificamente relaccedilotildees humanas

A tese de Nietzsche eacute que a linguagem eacute em sua essecircncia retoacuterica ou seja a linguagem antes de ser referecircncia das coisas eacute uma transposiccedilatildeo linguiacutestica pois o homem utiliza a palavra como um siacutembolo uma imagem para representar o que experimentou ldquoNossos sentidos imitam a natureza na medida em que a retratam constantemente A imitaccedilatildeo pressupotildee uma recepccedilatildeo e logo uma transposiccedilatildeo continuada da imagem recebida em mil

5 Doravante WLVM6 Simplificaccedilatildeo feita por Nietzsche do esquema de Gerber em sua obra A linguagem como arte ldquoPartindo da coisa em

si se produz um impulso nervoso que provoca uma sensaccedilatildeo que por sua vez se transforma em som que eacute a imagem externa da de uma sensaccedilatildeo Ao agrupar as distintas observaccedilotildees particulares sobre a coisa se forma a representaccedilatildeo que eacute uma imagem interna da sensaccedilatildeordquo (Cf GUERVOacuteS 2000 p43)

Ceacutelia Machado Benvenho

77

metaacuteforas todas atuandordquo (NachlassFP KSA 7 19[226] Veratildeo 1872-1874) Sendo assim as palavras natildeo satildeo mais que o resultado dessa relaccedilatildeo mimeacutetica com as representaccedilotildees intuitivas o que se tem na origem da linguagem natildeo eacute um procedimento de transmissatildeo de informaccedilatildeo ou comunicaccedilatildeo mas uma transposiccedilatildeo sensorial algo que afeta e que produz efeito

Ora se natildeo haacute uma conexatildeo loacutegica entre as palavras e as coisas se os enunciados linguiacutesticos natildeo estatildeo relacionados a um significado ideal ou com a essecircncia das coisas buscar um criteacuterio de correspondecircncia entre as palavras e o mundo exterior natildeo eacute mais que um mero artifiacutecio ilusoacuterio Por isso natildeo eacute estranho pensar que as questotildees epistemoloacutegicas se coloquem de forma mais apropriada como questotildees retoacutericas para Nietzsche Para ele o mundo pode ser descrito de um modo adequado com categorias retoacutericas porque ele mesmo estaacute constituiacutedo completamente de um modo retoacuterico na medida em que se mostra acessiacutevel aos homens somente como uma imagem o reflexo da opiniatildeo do homem sobre si mesmo ldquoO homem conhece o mundo na medida em que ele se conhece quer dizer a profundidade do mundo se desvela ao homem na medida em que ele se maravilha de si mesmo e de sua complexidaderdquo (NachlassFP 19[118] Veratildeo de 1872 comeccedilo de 1873)

Desse modo a base da linguagem eacute retoacuterica que por sua vez eacute soacute um aperfeiccediloamento dos recursos artifiacutecios jaacute presentes na linguagem os tropos utilizado por Nietzsche no sentido de transportar saltar de um lugar para o outro um recurso expressivo em que se associa o sentido de uma palavra a outra lhe dado um sentido diferente do literal atraveacutes de um processo de semelhanccedila como no caso que acontece com a metaacutefora e metoniacutemia exemplos de tropos tratados pelo filoacutesofo ldquoA ideia de troacutepoitropos - lsquodesignaccedilotildees improacutepriasrsquo- indica artifiacutecios importantes da retoacuterica datildeo agraves palavras significados que inicialmente elas natildeo tecircm mudando substituindo acentuando certas caracteriacutesticas e fazendo uso de engenhosos recursos sempre por meio da transposiccedilatildeordquo (Curso de retoacuterica sect 8) De modo similar aparece num fragmento do veratildeo de 1872 ldquoNossas percepccedilotildees sensoriais natildeo se baseiam em raciociacutenios inconscientes senatildeo em tropos O processo original consiste em identificar o semelhante com o semelhante ndash em descobrir uma certa semelhanccedila entre uma coisa e outrardquo (NachlassFP KSA 7 19[217] Veratildeo 1872-1874)

Sendo assim o uso de artifiacutecios no discurso de tropos natildeo eacute um fator estranho na linguagem e por isso natildeo podemos caracterizaacute-lo como uma linguagem artificial improacutepria ou retoacuterica no sentido pejorativo do termo Ao contraacuterio a artificialidade compotildee a proacutepria essecircncia da linguagem em todas as ocasiotildees uma vez que a proacutepria linguagem eacute retoacuterica ou seja composta de artifiacutecios natildeo haacute nada dentro da estrutura da liacutengua ou de conhecimentos derivados da linguagem que natildeo tenham presente em seu acircmago a retoacuterica ldquoNatildeo existe de maneira alguma a lsquonaturalidadersquo natildeo retoacuterica da linguagem a qual se pudesse apelar a linguagem mesmo eacute resultado de artes puramente retoacutericasrdquo (Curso de retoacuterica sect 3) Ou seja aquilo que foi chamado de retoacuterico no discurso antigo a capacidade de desentranhar e extrair o que em cada coisa eacute ativo e produz impressatildeo eacute a essecircncia da linguagem e natildeo podemos classificar isso como artificial ou improacuteprio em oposiccedilatildeo a algo natural e proacuteprio

Ora se todas as questotildees que se referem agrave linguagem satildeo questotildees retoacutericas ou seja toda expressatildeo linguiacutestica pode ser reduzida em seus elementos essenciais agrave sua estrutura retoacuterica inerente todo resultado do uso linguiacutestico natildeo pode ser uma episteme um conhecimento jaacute que natildeo nos diz como as coisas satildeo em sua essecircncia e verdade mas meras opiniotildees ldquoEste eacute o primeiro ponto de vista a linguagem eacute retoacuterica porque apenas

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche

78

quer transmitir (uumlbertagen) uma doxa e natildeo uma epistemerdquo (Curso de retoacuterica sect 3) Essa aparente limitaccedilatildeo significa que o mais importante no discurso eacute a persuasatildeo a forccedila do convencimento que eacute o que na realidade exerce um papel essencial em nossa percepccedilatildeo do mundo e em nossa comunicaccedilatildeo com os demais O discurso natildeo tem como objetivo transmitir um conhecimento verdadeiro mas comunicar uma opiniatildeo a partir de um efeito esteacutetico

Como diz Guervoacutes (2000 p23) Nietzsche desprezando o modelo representacional da linguagem em favor do modelo retoacuterico da mesma ldquonatildeo soacute afirma a identidade estrutural entre linguagem e retoacutericardquo jaacute que a linguagem utiliza os mesmos mecanismos que a retoacuterica para fazer-se uma imagem do mundo como tambeacutem ldquoassinala uma identidade de funccedilotildees entre linguagem e retoacutericardquo na medida em que uma linguagem obedece ao mesmo imperativo que a retoacuterica Por isso a afirmaccedilatildeo de Nietzsche no Curso de retoacuterica

Natildeo eacute difiacutecil provar agrave luz clara do entendimento que o que se chama lsquoretoacutericorsquo como meio de uma arte consciente jaacute agia como um meio de uma arte inconsciente na linguagem e no seu desenvolvimento e inclusive que a retoacuterica eacute um aperfeiccediloamento dos artifiacutecios jaacute presentes na linguagem (Curso de retoacuterica sect 3)

Guervoacutes (2000 p32) ainda ressalta que se observarmos o proceder do pensamento loacutegico assim como dos processos abstratos cujo resultado eacute o que chamamos de conhecimento veremos que operam a partir do mesmo modelo retoacuterico com figuras Tudo que se denomina eloquecircncia eacute linguagem figurada

O pensamento loacutegico categoriza objetiva e generaliza porque deduz de uma observaccedilatildeo a essecircncia completa das coisas E isso natildeo eacute mais que um processo de simplificaccedilatildeo que totaliza uma parte em um todo e opera por isso como uma sineacutedoque O mesmo poderia se dizer dos processos abstrativos que propotildee a loacutegica na mudanccedila do individual ao general pois tambeacutem as abstraccedilotildees satildeo metoniacutemias Desta maneira Nietzsche pode argumentar que tanto a linguagem conceitual como o conhecimento se fundamentam em inversotildees substitutivas

Metaacutefora como tropos por excelecircnciaTanto no Curso de retoacuterica como no texto Sobre verdade e mentira no sentido extra-

moral Nietzsche toma a metaacutefora como um tropo7 por excelecircncia na medida em que eacute um importante instrumento de exemplificaccedilatildeo do processo artiacutestico que ocorre na relaccedilatildeo do homem com o mundo ldquotransporte ou deslocamento de sentidordquo que ocorre no ldquoato de traduccedilatildeo de uma esferardquo perceptiva agrave ldquooutrardquo

Nietzsche se apropria da ideia aristoteacutelica de metaacutefora como ldquotransposiccedilatildeordquo (epiphora) embora utilize o vernaacuteculo Uumlbertragung como correspondente para o termo grego e junto dela a ideia impliacutecita de dynamis que o filoacutesofo alematildeo interpretaraacute como forccedila (Kraft) Aristoacuteteles caracteriza a metaacutefora como a transposiccedilatildeo de uma palavra cujo significado habitual eacute outro Essa transposiccedilatildeo se daria de quatro tipos 1) Transferecircncia de uma expressatildeo proacutepria de um gecircnero para uma espeacutecie Ex lsquoo barco descansarsquo em vez de lsquoo barco estaacute ancoradorsquo 2) Transferecircncia de um termo proacuteprio de uma espeacutecie a um gecircnero Ex lsquoUlisses empreendeu 7 Segundo Nietzsche chegou a ser estabelecido 38 tipos de tropos quanto ao nuacutemero e divisatildeo apesar das divergecircn-

cias dos quais ele trata somente de 15 tipos em seu Curso de retoacuterica Trabalharemos aqui com a metaacutefora por ser considerada o tropo por excelecircncia

Ceacutelia Machado Benvenho

79

ldquomilhotildeesrdquo de accedilotildees famosasrsquo 3) Transferecircncia de um termo especiacutefico a outro termo especiacutefico Ex lsquosuprimindo a vida com o bronzersquo e lsquocortando com o bronze invenciacutevelrsquo suprimir e cortar pertencem agrave ideia de separar 4) Quando a metaacutefora nasce daquilo que parece comum a uma proporccedilatildeo quando os dois termos comungam um mesmo traccedilo semacircntico Ex lsquoa velhice estaacute para a vida como o entardecer para o diarsquo (Cf Curso de retoacuterica sect 7)

No entanto Nietzsche natildeo acompanha8 Aristoacuteteles quando esse afirma que a metaacutefora se constitui como imagem primeira do mundo dos objetos transportada e figurativa e por isso uma imagem improacutepria desprovida de caraacuteter filosoacutefico e sem valor cognoscitivo A metaacutefora nesse sentido se apresenta como oposiccedilatildeo agraves palavras usuais comuns proacuteprias ou seja eacute um efeito da linguagem preacute-constituiacuteda Para Nietzsche os termos ldquotransposiccedilatildeordquo e por conseguinte ldquometaacuteforardquo natildeo se refere ao processo de constituiccedilatildeo de palavras e conceitos mas a um procedimento originaacuterio inconsciente preacute-linguiacutesitico em que se postula a existecircncia de algo que nada mais eacute em uacuteltima instacircncia uma concepccedilatildeo subjetiva O que constitui a linguagem eacute a forccedila que se radica na transposiccedilatildeo porque a linguagem fundamentalmente eacute transposiccedilatildeo linguiacutestica antes de ser referecircncias das coisas algo que eacute puramente secundaacuterio e derivado

A forccedila (Kraft) que Aristoacuteteles chama retoacuterica que eacute a forccedila de deslindar e de fazer valer para cada coisa o que eacute eficaz e impressiona essa forccedila eacute ao mesmo tempo a essecircncia da linguagem esta se reporta tatildeo pouco como a retoacuterica ao verdadeiro agrave essecircncia das coisas natildeo quer instruir mas transmitir a outrem uma emoccedilatildeo e uma apreensatildeo subjetivas (Curso de retoacuterica sect 3)

Assim a metaacutefora se caracteriza mais do que um simples tropo retoacuterico (um mero recurso estiliacutestico ou um simples ornato) na medida em que pertence a um acircmbito originaacuterio proacuteprio da atividade humana do qual se originaria a linguagem e natildeo o contraacuterio Esse procedimento originaacuterio eacute definido por Nietzsche em suas notas de 1872 como um processo perceptivo analoacutegico que por meio da comparaccedilatildeo busca relacionar coisas diferentes a partir da identificaccedilatildeo de uma semelhanccedila ldquoMetaacutefora significa tratar como idecircntico algo que se reconheceu em um ponto como semelhanterdquo (NachlassFP KSA 7 19[249] Veratildeo 1872-1874) Nietzsche complementa num fragmento do mesmo periacuteodo (19[227]) a metaacutefora eacute ldquoum raciociacutenio analoacutegicordquo cujo resultado permite que ldquose descubram e se reavivam de novo as semelhanccedilasrdquo Ainda em notas do mesmo periacuteodo o filoacutesofo ressalta que toda ldquocomparaccedilatildeo (pensamento original) eacute uma imitaccedilatildeo [] Nossos sentidos imitam a natureza na medida em que a retratam constantementerdquo (19 [226]) A metaacutefora eacute esse jogo vital que nos obriga agrave imitaccedilatildeo ldquoA imitaccedilatildeo pressupotildee uma recepccedilatildeo e logo uma transposiccedilatildeo continuada da imagem recebida em mil metaacuteforas todas atuandordquo (NachlassFP KSA 7 19[226] Veratildeo 1872-1874)

Para Nietzsche a linguagem se origina desse processo artiacutestico inconsciente em que estaacute em accedilatildeo um impulso criativo fundamental a formaccedilatildeo de imagens um processo de transposiccedilatildeo que consiste em engendrar uma imagem no lugar de uma coisa o metaforizar A linguagem eacute fundamentalmente transposiccedilatildeo linguiacutestica antes de ser referecircncias das coisas algo que eacute puramente secundaacuterio e derivado 8 Na Introduccedilatildeo a retoacuterica de Aristoacuteteles redigida no inverno de 1874-1875 Nietzsche elogia Aristoacuteteles na Retoacuterica

dizendo que ningueacutem teve um talento retoacuterico como ele no entanto natildeo faz o mesmo elogio em relaccedilatildeo agrave Poeacuteti-caldquoCom frequecircncia descubro na Poeacutetica algo em que digo para mim aqui estaacute Aristoacuteteles completamente como um estranho e fora do lugar ele natildeo pode ensinar nada aqui porque carece de capacidade naturalrdquo (NIETZSCHE Introduccedilatildeo a retoacuterica de Aristoacuteteles)

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche

80

A base de todas as construccedilotildees da linguagem do edifiacutecio dos conceitos eacute um impulso fundamental o metaforizar ou seja a fantasia a imaginaccedilatildeo criadora a forccedila-formadora-de-imagens Esse impulso segue fluindo como fonte inesgotaacutevel e busca para sua atividade um campo novo e uma via distinta e os encontra no mito e de modo geral na arte (WLVM sect 2)

Depois de investigar o processo de formaccedilatildeo de palavras e conceitos Nietzsche descarta a possibilidade de uma ldquoexpressatildeo adequada de um objeto no sujeitordquo e afirma que entre esferas tatildeo distintas natildeo existe mais do que uma relaccedilatildeo esteacutetica na qual sempre ocorre uma traduccedilatildeo para uma linguagem completamente heterogecircnea Entre a sensaccedilatildeo experimentada pelo indiviacuteduo e o balbuciar por ele emitido haacute um abismo profundo O conteuacutedo representado pela palavra natildeo eacute expressatildeo das proacuteprias coisas mas de um acircmbito puramente fenomecircnico o de nossas representaccedilotildees O processo de traduccedilatildeo do sentimento indica a dimensatildeo simboacutelica e figurativa da linguagem jamais expressa direta ou indiretamente o sentimento mas o traduz em signos simboliza-o Ora se a palavra natildeo passa de um siacutembolo natildeo pode haver uma relaccedilatildeo de correspondecircncia imediata entre a palavra e as coisas pois as palavras natildeo expressam as intuiccedilotildees originaacuterias mas as representaccedilotildees imagem que temos das mesmas Por isso a insistecircncia de Nietzsche que as palavras e conceitos natildeo expressam adequadamente a realidade nem verdades absolutas mas designam relaccedilotildees humanas

Na multiplicidade das liacutenguas se revela imediatamente o fato de que palavra e coisa natildeo coincidem e nem se completam necessariamente Poreacutem o que simboliza a palavra Sem duacutevida nada mais que representaccedilotildees sejam conscientes ou como sucede na maioria das vezes inconscientes pois como uma palavra-siacutembolo poderia corresponder agravequela essecircncia intimiacutessima da qual noacutes mesmos e o mundo somos imagens Esse nuacutecleo noacutes soacute o conhecemos em forma de representaccedilotildees e unicamente nos eacute familiar em suas expressotildees simboacutelicas fora disso natildeo haacute nenhuma ponte direta que nos conduza ateacute o mesmo (NachlassFP KSA 12 [1])

Haacute uma impossibilidade linguiacutestica ou conceitual de expressar a natureza do real porque a linguagem soacute tem valor em seus aspectos simboacutelicos e figurativos ldquoNatildeo haacute expressotildees proacuteprias nem conhecimento proacuteprio senatildeo metaacuteforas [] Conhecer natildeo eacute mais que trabalhar com as metaacuteforas preferidas [] uma imitaccedilatildeo jaacute natildeo percebida como imitaccedilatildeordquo (NachlassFP 19[228] - 1872-1874) A radicalizaccedilatildeo se daacute quando pelo uso constante e habitual das designaccedilotildees se esquece da origem metafoacuterica das palavras e cria-se a ilusatildeo de que entre elas e as coisas existe uma conexatildeo mais iacutentima de caraacuteter eminentemente metafiacutesico a crenccedila de que a verdade se apresenta na linguagem Conforme o filoacutesofo descreve em um poacutestumo do veratildeo de 1872 ndash comeccedilo de 1873 ldquoPor lsquoverdadeirorsquo haacute de se entender somente aquilo que usualmente eacute metaacutefora habitual ndash por conseguinte soacute uma ilusatildeo que se fez familiar por um uso frequente e que natildeo eacute percebida como ilusatildeo metaacutefora esquecida quer dizer uma verdade que se esqueceu de que eacute uma metaacuteforardquo (NachlassFP 19 [229] 1872 ndash 1874) Antes aquilo que se denominara verdade se revela afinal ldquoum batalhatildeo moacutevel de metaacuteforas metoniacutemias antropomorfismos enfim uma soma de relaccedilotildees humanas que foram enfatizadas poeacutetica e retoricamente transpostas enfeitadasrdquo (WLVM sect 1)

Ceacutelia Machado Benvenho

81

Como a atividade originaacuteria do homem eacute metafoacuterica o conceito seria somente um produto resultante deste processo pois assim como a metaacutefora o conceito constroacutei similaridades entre duas coisas que natildeo satildeo similares Quando se desconsidera os traccedilos individuais e passa a igualar o desigual por meio de uma ilusatildeo de identidade temos o conceito e assim comeccedila-se o conhecimento Eacute da ldquoigualaccedilatildeo do natildeo-igualrdquo e da ldquodesconsideraccedilatildeo do individual e efetivordquo que nasce o conceito (WLVM sect 1) Razatildeo e conhecimento portanto satildeo ilusotildees criadas a partir do pressuposto da identidade e da estabilidade dos conceitos ldquoNo entanto natildeo haacute uma correspondecircncia com a essecircncia das coisas trata-se de um processo cognitivo que natildeo afeta a essecircncia das coisasrdquo (NachlassFP 1872 ndash 1874 19[236] KSA 7493) ldquoCremos saber algo das coisas mesmas quando falamos de aacutervores cores neve e flores e natildeo possuiacutemos no entanto mais do que metaacuteforas das coisas que natildeo correspondem em absoluto agraves essecircncias primeirasrdquo (WLVM sect 1)

Ao identificar a doxa como base da retoacuterica tornando-a uma caracteriacutestica da proacutepria linguagem Nietzsche quebra com a ilusatildeo de uma linguagem verdadeira e reabilita a linguagem da persuasatildeo enquanto doxa O que de fato eacute importante eacute a persuasatildeo a forccedila originaacuteria que tem um papel essencial em nossa relaccedilatildeo com o mundo e em nossa comunicaccedilatildeo com os demais A linguagem eacute um meio por meio do qual todas as expressotildees satildeo transpostas do individual ao coletivo apesar de toda a subjetividade pressuposta a linguagem atinge um niacutevel de exteriorizaccedilatildeo comum O viacutenculo indissociaacutevel entre pensamento e linguagem permitiu aproximar a retoacuterica da filosofia e evidencia a emergecircncia do pensamento metafoacuterico como forma originaacuteria do conhecimento humano Como diz Guervoacutes (2000 p 54) ldquoSe a metaacutefora estaacute na origem do conceito Nietzsche despreza a relaccedilatildeo metafiacutesica entre linguagem e realidade destronando a soberania conceitual e revelando o caraacuteter metafoacuterico dos conceitosrdquo ou caraacuteter ficcional da linguagem

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche

82

Referecircncias bibliograacuteficasCAVALCANTI Anna Hartmann Siacutembolo e alegoria a gecircnese da concepccedilatildeo de linguagem em Nietzsche Satildeo Paulo Annablume Fapesp Rio de Janeiro DAAD 2005CRAWFORD C The beginnings of Nietzschersquos theory of language New York de Gruyter 1998 NIETZSCHE Friedrich Wilhelm Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe (KSA) G Colli e M Montinari (Hg) Berlin Walter de Gruyter 1999 15 Bn _____ Curso de Retoacuterica Traduccedilatildeo Thelma L da Fonseca In Cadernos de Traduccedilatildeo Satildeo Paulo 1999_____ Da retoacuterica Trad Tito Cardoso e Cunha Lisboa Passagens 2002 _____ Escritos sobre retoacuterica Ediccedilatildeo traduccedilatildeo e introduccedilatildeo de Luis Enrique de Santiago Guervoacutes Madrid Editorial Trotta 2000_____ Fragmentos poacutestumos (1869-1874) Trad Luis E de Santiago Guervoacutesv I 2 ed Madrid Tecnos 2010 _____ Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral (Org e Trad Fernando de Moraes Barros) Satildeo Paulo Hedra 2007

Eder David de Freitas Melo

83

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3

Eder David de Freitas Melo1

A tese central do aforismo 3 de ABM eacute a tese da contiguidade entre atividades instintivas e pensamentos conscientes ou seja a tese de que os pensamentos conscientes (ou ao menos a maior parte desse tipo de pensamento) e as atividades instintivas satildeo atividades que operam no mesmo registro ndash corporal ndash e atendem a necessidades de mesma origem quais sejam necessidades de regulaccedilatildeo fisioloacutegica e sobrevivecircncia2

Nesta comunicaccedilatildeo tentaremos mostrar que subjaz de forma velada a essa tese uma perspectiva genealoacutegica de anaacutelise daquele tipo de pensamento Nietzsche explica a relaccedilatildeo entre pensamento consciente e instintos como veremos natildeo pelas suas estruturas e conteuacutedos internos uma certa loacutegica racional daqueles em seus motivos e ldquopor quecircsrdquo ou a falta de razatildeo dos instintos com sua impetuosidade aparentemente cega Antes essa relaccedilatildeo eacute explicada segundo uma certa noccedilatildeo naturalista de praacutexis vital na qual as condiccedilotildees de surgimento e atuaccedilatildeo dos pensamentos conscientes dizem respeito concomitantemente a demandas fisioloacutegicas caracteriacutesticas do humano e necessidades de sobrevivecircncia da espeacutecie Assim Nietzsche contextualizaria histoacuterica e biologicamente as atividades instintivas bem como as atividades de pensamento segundo a pergunta genealoacutegica pela origem e pelas condiccedilotildees de desenvolvimento de algo

Pois bem o primeiro questionamento que colocamos diz respeito agrave possibilidade de se falar de um meacutetodo genealoacutegico em Nietzsche anterior agrave Genealogia da Moral Ora no aforismo 32 de Aleacutem do bem e do mal a criacutetica da moral e sua possibilidade de superaccedilatildeo se configuram a partir de uma genealogia do valor da accedilatildeo e dos modelos de agecircncia Assim ele divide como a accedilatildeo foi inicialmente em um periacuteodo preacute-histoacuterico e preacute-moral entendida e avaliada a partir de suas consequecircncias depois em um periacuteodo moral a partir de sua origemintenccedilatildeo para enfim sugerir que em um periacuteodo extra-moral a accedilatildeo seria valorada diversamente de como se deu anteriormente ou seja a partir daquilo que nela eacute natildeo-intencional isto como decorrecircncia de ldquoum novo auto-escrutiacutenio e aprofundamento do homemrdquo

Concordamos com Paolo Stellino (2015 p 562-565) em seu artigo Self-Knowledge Genealogy Evolution o qual afirma que tambeacutem no aforismo 335 de A Gaia Ciecircncia Nietzsche se serve do meacutetodo genealoacutegico para analisar como nossos juiacutezos morais vem agrave

1 Doutorando em Filosofia Universidade Federal de Goiaacutes2 A bem ver em Nietzsche a regulaccedilatildeo fisioloacutegica natildeo objetiva apenas sobrevivecircncia ou um estado de equiliacutebrio de

bem estar por assim dizer ou saudaacutevel Agraves vezes mesmo o oposto eacute o caso ldquotambeacutem a inutilizaccedilatildeo parcial a atrofia e degeneraccedilatildeo a perda de sentido e propoacutesitordquo e ateacute mesmo a morte estaacute ldquoentre as condiccedilotildees para o verdadeiro progres-sus o qual sempre aparece em forma de vontade e via de maior poderrdquo (NIETZSCHE 2009 p 62) (grifos do autor)

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3

84

existecircncia com sua preacute-histoacuteria em nossos instintos e impulsos em nossas experiecircncias e inexperiecircncias Ademais no proacuteprio prefaacutecio da Genealogia da Moral paraacutegrafo segundo Nietzsche sinaliza que mesmo antes de Humano demasiado humano ele jaacute refletia sobre a moralidade em uma perspectiva sobre a origem desses preconceitos morais ou ainda como coloca no aforismo 2 de Autora que a origem dos valores morais eacute para ele uma questatildeo de primeira ordem a qual direciona para o futuro da humanidade semelhantemente agrave anaacutelise de Aleacutem do bem e do mal 32 onde de um olhar para a origem de algo aventa-se algo para o futuro ou seja a anaacutelise genealoacutegica do valor da accedilatildeo nos periacuteodos preacute-moral e moral desemboca em uma possiacutevel ou talvez desejaacutevel era extra-moral

Pois bem dito isso sobre uma posiccedilatildeo mais abrangente em torno do meacutetodo genealoacutegico vejamos agora o que eacute aventado no aforismo objeto desta comunicaccedilatildeo Seguindo a ordem do texto as principais afirmaccedilotildees que Nietzsche faz resumidamente satildeo

(i) A maior parte do pensamento consciente deve ser contado entre as atividades instintivas

(ii) Inclusive a atividade filosoacutefica deve ser aiacute considerada (iii) Os juiacutezos nos seus variados tipos tem seu valor na medida da importacircncia

reguladora para a fisiologia corporal e natildeo por seu valor de verdade (falsidade ou verdade)(iv) O ser humano natildeo eacute sujeito de determinaccedilatildeo ou indeterminaccedilatildeo da verdadeSegundo interpretamos essas afirmaccedilotildees se organizam em torno da seguinte questatildeo

assumindo que o ser humano natildeo eacute polo de determinaccedilatildeo essencial ou indeterminaccedilatildeo da verdade qual a relaccedilatildeo entre nossos procedimentos mentais conscientes e nossa fisiologia de modo que juiacutezos de valor possam indicar atividades fisioloacutegicas caracteriacutesticas Ou colocando de forma mais breve qual eacute a relaccedilatildeo entre pensamentos conscientes e atividades instintivas em um contexto de indeterminaccedilatildeo do conhecimento da verdade

Comeccedilando a leitura pelo final do aforismo lemos o seguinte

Por exemplo que o determinado tenha mais valor que o indeterminado a aparecircncia menos valor que a ldquoverdaderdquo tais avaliaccedilotildees [Schaumltzungen] poderiam [koumlnnten] natildeo obstante a sua importacircncia reguladora para noacutes ser apenas avaliaccedilotildees-de-fachada [Vordergrunds-Schaumltzungen] um determinado tipo de niaiserie [tolice] tal como pode ser necessaacuterio justamente para a preservaccedilatildeo de seres como noacutes Supondo [Gesetzt] claro que natildeo seja precisamente o homem a ldquomedida de todas as coisasrdquo (NIETZSCHE 2005 p 11) (grifos do autor)

Postular que o homem natildeo eacute a ldquomedida de todas as coisasrdquo negando assim a famosa sentenccedila de Protaacutegoras natildeo coloca a princiacutepio nada de novo na histoacuteria da filosofia Tanto Platatildeo quanto Aristoacuteteles escreveram refutando Protaacutegoras esse conhecido sofista Mas isso claro se deu no acircmbito da epistemologia O debate era entre o relativismo de Protaacutegoras e a defesa filosoacutefica de Platatildeo e Aristoacuteteles em torno do conhecimento verdadeiro

Jaacute Nietzsche desloca a questatildeo da validade do valor de verdade dos juiacutezos sobre a realidade para o ambiente das valoraccedilotildees do grau de importacircncia (ou capacidade reguladora) que algo possui em relaccedilatildeo a noacutes3 ao assumir que o ser humano natildeo possui 3 Como ele escreve no aforismo seguinte ldquoA falsidade de um juiacutezo natildeo chega a constituir para noacutes uma objeccedilatildeo

contra ele [] A questatildeo eacute em que medida ele promove ou conserva a vida conserva ou ateacute mesmo cultiva a espeacutecierdquo (NIETZSCHE 2005 p 11)

Eder David de Freitas Melo

85

nem um criteacuterio objetivo de avaliaccedilatildeo da realidade nem um puramente subjetivo para isso pois ele natildeo eacute a medida do real Assim Nietzsche vai por uma terceira via ele se orienta no registro da questatildeo do valor do quanto algo contribui ou natildeo para preservaccedilatildeo da nossa fisiologia e cultivo do nosso tipo ou seja em torno das estimativas de valor que noacutes seres humanos consciente ou inconscientemente construiacutemos para tornar nossa vida possiacutevel e desejaacutevel

Que a histoacuteria da filosofia seja preenchida pela busca da ldquoverdaderdquo pela possibilidade de estabelecimento da exatidatildeo em suas vaacuterias aacutereas de investigaccedilatildeo isso diz algo da nossa fisiologia dos estados caracteriacutesticos de nossos impulsos Nesse iacutenterim Nietzsche escreve no iniacutecio do aforismo

Depois de por muito tempo ler nos gestos e nas entrelinhas [zwischen die Zeilen und auf die Finger] dos filoacutesofos disse a mim mesmo a maior parte do pensamento consciente [bewussten Denkens] deve [muss] ser incluiacuteda [rechnen] entre [unter] as atividades instintivas ateacute mesmo o pensamento filosoacutefico (NIETZSCHE 2005 p 10)

A primeira sentenccedila dessa citaccedilatildeo enfatiza o cuidado a atenccedilatildeo prolongada na arte de interpretar por nuances Olhar sobre [auf] os dedos de algueacutem eacute prestar atenccedilatildeo nas minuacutecias nos sinais que uma pessoa vela mas que os dedos desvelam mostrando as reais intencionalidades do natildeo dito4 Por intencionalidade buscamos indicar o movimento dos impulsos e afetos constitutivos do humano como um direcionamento de si mesmo em direccedilatildeo e em relaccedilatildeo a algo que lhe seja outro como forccedila configuradora de sentido de perspectiva e natildeo no sentido mais usual de intenccedilatildeo da vontade de um eu de um eu como sujeito autocircnomo5

Nesse sentido Nietzsche chama a atenccedilatildeo nesse trecho para as dinacircmicas sutis da individualidade que levam a determinados valores e conceitos Em A Gaia Ciecircncia aforismo 370 Nietzsche chama esse tipo de movimento interpretativo de ldquoinferecircncia regressivardquo ou seja a inferecircncia ldquoque vai da obra ao autor do ato ao agente do ideal agravequele que dele necessita de todo modo de pensar e valorar agrave necessidade que por traacutes dele comandardquo (2001 p 273) (grifos do autor) Assim tem-se um sinal do princiacutepio genealoacutegico de anaacutelise com respeito agraves condiccedilotildees de surgimento e desenvolvimento ldquode todo modo de pensar e valorarrdquo ao afirmar que haacute necessidades anteriores agraves formas de pensamento e de valoraccedilatildeo necessidades que comandam a emergecircncia deles segundo demandas fisioloacutegicas e histoacutericas como se percebe no todo do aforismo Isso eacute semelhante ao que Nietzsche pontua na Genealogia da moral onde se lecirc ldquocom a necessidade com que uma aacutervore tem seus frutos nascem em noacutes nossas ideias nossos valores nossos sins e natildeos ses e quecircs ndash todos relacionados e relativos uns aos outrosrdquo (2009 p 8) (grifo nosso)

Outra questatildeo que emerge da citaccedilatildeo acima relaciona-se agraves condiccedilotildees de sentido da conclusatildeo nietzscheana qual seja que ldquoa maior parte do pensamento consciente deve ser incluiacuteda entre as atividades instintivasrdquo Para ela ser realmente uma conclusatildeo e natildeo apenas uma convicccedilatildeo disfarccedilada de conclusatildeo haacute de existir algum nexo semacircntico-formal-fisioloacutegico no conjunto de ldquosistemasrdquo que integra a vida humana Ou seja as possibilidades

4 Sobre essa arte da leitura um aprendizado do espiacuterito para a qual necessita-se ser educado Nietzsche escreve no Crepuacutesculo dos Iacutedolos capiacutetulo O que falta aos alematildees sect6 ldquoAprender a ver acostumar os olhos ao repouso agrave paciecircncia habituaacute-los a deixar ver as coisas a localizar o juiacutezo aprender a cercar e envolver o caso concreto Esta eacute a primeira preparaccedilatildeo para educar o espiacuteritordquo (2006 p 60)

5 Encontra-se esse mesmo uso por exemplo em Constacircncio 2015 p 304

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3

86

de configuraccedilatildeo de sentido (semacircntica) as estruturas gramaticais que permitem essa construccedilatildeo (forma) e os estados caracteriacutesticos do conjunto de impulsos que formam o ser humano (fisiologia) em relaccedilatildeo com as caracteriacutesticas do meio em que esse habita (um conjunto de forccedilas em constante relaccedilatildeo agoniacutestica) devem possuir algum tipo de nexo6 A necessidade desse nexo se coloca no mesmo sentido que no aforismo 20 de ABM Nietzsche escreve sobre um certo esquema baacutesico de filosofias possiacuteveis no qual acaba-se por percorrer sempre a mesma oacuterbita servindo-se novamente dos mesmos trilhos ou caminhos [Pfaden] Ou seja haacute que ter certos trilhos que permitem o movimento a ligaccedilatildeo entre as constelaccedilotildees de impulsos e as configuraccedilotildees de sentido Caso contraacuterio natildeo haveria como fazer inferecircncia regressiva aos moldes acima nem ter alguma determinaccedilatildeo de sentido Natildeo seria possiacutevel ir das entrelinhas e dos gestos para as demandas fisioloacutegicas e instintivas de algueacutem nem dispor das condiccedilotildees contextuais e estruturais necessaacuterias para se orientar na interpretaccedilatildeo genealoacutegica e nas configuraccedilotildees de sentido

O conhecido capiacutetulo do Zaratustra intitulado Dos desprezadores do corpo eacute particularmente significativo e provocante no que diz respeito agrave origem ou origens de algumas das demandas que se constituem na emergecircncia daquele nexo semacircntico-formal-fisioloacutegico da praacutexis vital do ser humano Nesse texto Nietzsche delineia importantes distinccedilotildees sobre o corpo como a existecircncia de uma grande e uma pequena razatildeo de um Eu (ou espiacuterito) e um Si-mesmo O Si-mesmo enquanto expressatildeo da totalidade e unidade do corpo identifica-se agrave grande razatildeo O Eu enquanto atividade consciente de um logos ou um espiacuterito identifica-se agrave pequena razatildeo A relaccedilatildeo entre essas duas razotildees se daacute segundo o poder de comando da maior delas comando esse que mostra-se enquanto instacircncia capaz de determinar quais satildeo as necessidades do indiviacuteduo em torno de sua regulaccedilatildeo fisioloacutegica e condiccedilotildees de existecircncia

Os termos ldquopequenardquo e ldquogranderdquo na expressatildeo pequena e grande razatildeo natildeo denotam apenas uma distinccedilatildeo meramente morfoloacutegica entre elas ou seja de que uma seja estruturalmente maior que a outra na qual a menor integra a estrutura da maior A diferenccedila entre a pequena e a grande razatildeo natildeo eacute apenas de ldquotamanhordquo ou em outras palavras de abrangecircncia e estrutura Nos dois termos grande razatildeo e pequena razatildeo o substantivo ldquorazatildeordquo natildeo possui o mesmo significado natildeo denota o mesmo conteuacutedo Se assim o fosse a uacutenica diferenccedila entre a pequena e a grande razatildeo seria que uma eacute grande abrangendo todo o corpo outra pequena abrangendo apenas o que identificamos estritamente como atividade mental

Natildeo obstante isso eacute possiacutevel identificar uma distinccedilatildeo fisioloacutegica entre elas a pequena razatildeo se identifica ao exerciacutecio de um Eu ou seja de uma subjetividade consciente de si contudo consciente tatildeo somente enquanto produto de um agente o Eu o qual natildeo passa de uma ficccedilatildeo e um instrumento da grande razatildeo Esta esse Si-mesmo identifica-se a uma potecircncia plasmadora artiacutestica que se encerra em uma unidade o corpo atraveacutes de uma multiplicidade de impulsos Ela forja o Eu esse simulacro de uma paz enquanto racionalidade e unidade de consciecircncia para ser um instrumento de suas proacuteprias 6 Eacute sugestivo que no conhecido aforismo 23 de ABM o qual encerra o primeiro capiacutetulo desse livro caracterizando a

psicologia como a rainha das ciecircncias e caminho para os problemas fundamentais Nietzsche tambeacutem caracteriza a singularidade da sua psicologia com uma ecircnfase em dois aspectos peculiares a ela quais sejam estudo da estrutura e da atividade dos impulsos Enquanto morfologia Nietzsche sublinha a importacircncia de se investigar uma certa conformaccedilatildeo estrutural dos impulsos e suas expressotildees e enquanto fisiologia (teoria da evoluccedilatildeo da vontade de poder e fisiopsicologia no texto) ele procura colocar em vista o modo de atividade e funcionamento dos impulsos ou seja a importacircncia e as decorrecircncias de se interpretar o humano como uma relaccedilatildeo agoniacutestica e perene entre impulsos como um movimento constante por mais poder

Eder David de Freitas Melo

87

demandas Por isso enquanto os pensamentos conscientes do Eu se datildeo segundo as regras da racionalidade da pequena razatildeo o jogo agoniacutestico de impulsos instintos e afetos do corpo no registro da grande razatildeo possuem seu rigor proacuteprio que ao mesmo tempo cria as exigecircncias de um cogito o Eu sem identificarem ou restringirem suas possibilidades a ele

Nesse sentido aleacutem de uma diferenccedila morfoloacutegica (uma pequena outra grande sendo a pequena um ldquooacutergatildeordquo da grande) haacute tambeacutem uma diferenccedila fisioloacutegica entre essas razotildees Ambas satildeo expressotildees dos impulsos corporais da hierarquia do corpo mas a pequena razatildeo eacute limitada ao exerciacutecio consciente e racional do pensamento o que nem por isso deixa de ser uma das formas de atividade do corpo em seus impulsos instintos e afetos permanecendo assim como atividades contiacuteguas

Como essa relaccedilatildeo se daacute sob as demandas fisioloacutegicas do corpo haacute uma dinacircmica instrumental na qual a grande razatildeo ldquoconhecerdquo melhor as necessidades do indiviacuteduo e transmite essas necessidades ou ao menos parte delas agrave pequena razatildeo Esta com sua melhor sabedoria tem de pensar para prover uma soluccedilatildeo agravequelas demandas Por isso natildeo nos tornamos conscientes por meio de nossos pensamentos e sensaccedilotildees de tudo o que ocorre conosco e ao nosso redor mas apenas daquilo que emerge na superfiacutecie do Eu atraveacutes grande razatildeo segundo uma ldquoheuriacutestica da necessidaderdquo na qual os anseios e necessidades dos nossos impulsos da economia fisioloacutegica de nosso corpo forccedilam o pensamento consciente (pequena razatildeo) em determinada direccedilatildeo forjando e reproduzindo conceitos imprimindo sentido criando e aprendendo valores tornando a vida possiacutevel de determinado modo7 Assim atividades e necessidades fisioloacutegicas em boa medida inconscientes instintivas mas nem por isso desprovidas da unidade e individualidade do corpo levam a juiacutezos de valor conscientes expressos em pensamentos e linguagem mais ou menos determinados

Por isso Nietzsche escreve que

Assim como o ato de nascer natildeo conta [so wenig] no processo e progresso geral da hereditariedade tambeacutem ldquoestar conscienterdquo natildeo [wenig] se opotildee de algum modo decisivo ao que eacute instintivo mdash em sua maior parte o pensamento consciente de um filoacutesofo eacute secretamente guiado e colocado em certas trilhas pelos seus instintos (NIETZSCHE 2005 p 10)

Ora se o ato de pensar eacute direcionado pelos instintos segundo uma hierarquia do corpo enquanto instrumento da grande razatildeo uma anaacutelise do pensamento consciente como ferramenta do processo de sobrevivecircncia e incremento de poder acaba por levar obrigatoriamente em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees fisioloacutegicas e histoacutericas de emergecircncia e direcionamento pelos instintos do ldquotornar-se consciente de sirdquo sem o qual perde-se o sentido da atribuiccedilatildeo de valor como processo de regulaccedilatildeo fisioloacutegica sobrevivecircncia e expansatildeo de vida ou seja perde-se o sentido da praacutexis vital Portanto concluiacutemos que na tese da contiguidade entre atividades instintivas e pensamentos conscientes subjaz a pergunta genealoacutegica pelas condiccedilotildees de emergecircncia dos pensamentos conscientes o que exige pensar em qualquer circunstacircncia sobre as condiccedilotildees bioloacutegicas e histoacutericas de surgimento e ocorrecircncia desse tipo de pensamento o que foi empreendido em sua forma mais completa no corpus nietzscheano no conhecido aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia

7 Sobre a noccedilatildeo de heuriacutestica da necessidade Cf Stegmaier 2010

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3

88

Referecircncias bibliograacuteficasBORNEDAL Peter A Silent World Nietzschersquos Radical Realism World Sensation Language Nietzsche-Studien Walter de Gruyter-Berlin-New York v 34 2005 p 1-47CLARK Maudemarie DUDRICK David The soul of Nietzschersquos Beyond good and evil Cambridge Cambridge University Press 2012 CLARK Maudemarie Nietzsche on truth and philosophy Cambridge Cambridge University Press 2002 CONSTAcircNCIO Joatildeo Nietzsche on Decentered Subjectivity or the Existential Crisis of the Modern Subject In CONSTAcircNCIO Joatildeo Branco MARIA J M RYAN Bartholomew (Eds) Nietzsche and the Problem of Subjectivity BerlinBoston de Gruyter 2015 p 279-316 HEIT Helmut Nietzsches Zukunft als Kritiker (Vortragsmanuskript) In Stegmaier W Giacoia O (Orgs) Tagung ldquoNiezsches Zukunftrdquo an der Unicamp Campinas Unicamp 2016 MUumlLLER-LAUTER Wolfgang A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche Trad Oswaldo Giacoia Juacutenior Satildeo Paulo Anna Blumme 1997NIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Aleacutem do bem e do mal Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras [bolso] 2005_____ Crepuacutesculo dos Iacutedolos Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006_____ Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB) BerlinNew York Walter de Gruyter 1967- Disponiacutevel em lthttpwwwnietzschesourceorgeKGWBgt Acesso em 20 out 2017 _____ Genealogia da moral Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras (bolso) 2010 _____ Kritische Studienausgabe [KSA] 15 vol Editado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari Muumlnchen DTV De Gruyter 1988_____ Assim falou Zaratustra Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1983PIPPIN Robert The Expressivist Nietzsche In CONSTAcircNCIO Joatildeo Branco MARIA J M RYAN Bartholomew (Eds) Nietzsche and the Problem of Subjectivity BerlinBoston de Gruyter 2015 p 654-667RICHARDSON John Nietzschersquos Psychology In Abel G Brusotti M Heit H (Eds) Nietzsches Wissenschaftsphilosophie Berlin de Gruyter ndashVerlag 2012 STELLINO Paolo Self-Knowledge Genealogy Evolution In CONSTAcircNCIO Joatildeo Branco MARIA J M RYAN Bartholomew (Eds) Nietzsche and the Problem of Subjectivity BerlinBoston de Gruyter 2015 p 550-573 STEGMAIER Werner O pessimismo dionisiacuteaco de Nietzsche interpretaccedilatildeo contextual do aforismo 370 drsquoA Gaia Ciecircncia Trad Jorge L Viesenteiner Revista Estudos Nietzsche v 1 n 1 p 35-60 2010

Estevatildeo Bocalon

89

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent1

Estevatildeo Bocalon2

O presente trabalho versa sobre a noccedilatildeo de fisiopsicologia elaborada pelo filoacutesofo alematildeo Friedrich Nietzsche (1844-1900) e demonstrada a partir das criacuteticas desferidas contra o compositor conterracircneo Richard Wagner (1813-1883) A fisiopsicologia seraacute entendida aqui segundo o sentido desenvolvido por Nietzsche em Aleacutem do Bem e do Mal sect23 ldquomorfologia e doutrina do desenvolvimento [Entwicklungslehre] da vontade de potecircnciardquo Eacute com esse sentido de fisiopsicologia em mente que se realizaraacute a constituiccedilatildeo de um tipo que opera como expressatildeo maacutexima da deacutecadence na cultura alematilde moderna o tipo Wagner enquanto artista da deacutecadence Dito isso o foco principal dessa investigaccedilatildeo seraacute nas obras da maturidade filosoacutefica de Nietzsche principalmente O Caso Wagner (1888) e Ecce Homo (1888) embora em virtude do tema proposto seja necessaacuterio recorrer agrave outras obras do mesmo periacuteodo de produccedilatildeo filosoacutefica O problema nisso eacute a ausecircncia desse termo (fisiopsicologia) na obra O Caso Wagner na qual o pensador alematildeo tece os principais elementos da deacutecadence na produccedilatildeo artiacutestica de Wagner Ora eacute justamente pela noccedilatildeo de deacutecadence desenvolvida na obra citada acima que eacute possiacutevel identificar tambeacutem a fisiopsicologia Para aleacutem disso ressalta-se um paralelo entre indiviacuteduo e cultura devidamente apontado por Nietzsche por tomar Wagner como a personificaccedilatildeo da deacutecadence na cultura alematilde moderna O compositor eacute tomado como uma ldquolente de aumentordquo que permite analisar a cultura alematilde em sua eacutepoca

Em primeira instacircncia para compreender como se daacute a construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent como dito anteriormente eacute preciso atentar para o fato de que a anaacutelise fisiopsicoloacutegica resulta em um diagnoacutestico Trata-se de uma investigaccedilatildeo que remete a origem de toda produccedilatildeo intelectual e artiacutestica de um organismo e ateacute mesmo de uma cultura Conforme apontado pelo autor essas produccedilotildees satildeo sintomas de uma dinacircmica impulsional em um dado organismo e de forma semelhante ocorre em uma cultura Eacute importante salientar que uma dinacircmica impulsional natildeo eacute constituida apenas por processos bioloacutegicos visto que natildeo satildeo somente impulsos orgacircnicos pois esta possui resultantes natildeo-orgacircnicas como a arte filosofia ciecircncia etc Portanto essas forccedilas ocorrem tambeacutem nas produccedilotildees culturais

Como alvo da investigaccedilatildeo fisiopsicoloacutegica estaacute propriamente a dinacircmica impulsional engendrada pela vontade de potecircncia Ou seja a primeira eacute expressatildeo da

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001

2 Mestrando em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute ndash UNIOESTE Bolsista CAPES

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo

90

segunda pois a vontade de potecircncia de forma breve constitui-se de uma constante luta entre impulsos por mais potecircncia Para tal investigaccedilatildeo eacute necessaacuterio atentar-se para os sintomas expressos em uma produccedilatildeo artiacutestica ou cultura Acerca da produccedilatildeo artiacutestica eacute somente atraveacutes dela que se realiza um diagnoacutestico do artista e natildeo ao contraacuterio Eacute a obra que possibilita investigar a dinacircmica impulsional do artista natildeo se pode inferir isso a partir do artista mesmo A partir disso Nietzsche em primeiro lugar investiga qual a relaccedilatildeo que essa produccedilatildeo estabelece com a vida e entatildeo caracteriza a dinacircmica impulsional expressa como sadia ou doente

Adiante tambeacutem eacute possiacutevel perceber se haacute potencializaccedilatildeo ou natildeo da vontade em uma determinada dinacircmica De forma mais clara ldquoSe o conjunto de impulsos for bem hierarquizado ou potente ele eacute saudaacutevel se for desorganizado ou anaacuterquico e despotencializado ele eacute moacuterbidordquo (FREZZATTI 2016 p236) Um conjunto de impulsos saudaacutevel caracteriza-se por expressar afirmaccedilatildeo da vida haacute uma confluecircncia com o devir mundano e a finitude inerente a existecircncia Por outro lado negar esse fluxo contiacutenuo negar o proacuteprio estatuto efecircmero da vida fixando e valorando com conceitos eternos e absolutos o mundo na medida que este vem a ser satildeo sintomas de uma configuraccedilatildeo de impulsos despotencializada sem hierarquia Eis o criteacuterio para a realizaccedilatildeo de tal diagnoacutestico a vida Eacute desse modo que Nietzsche analisa a produccedilatildeo artiacutestica de Wagner em sua obra O Caso Wagner como seraacute visto mais adiante

Uma vez que alguns dos pressupostos da fisiopsicologia foram esclarecidos faz-se necessaacuterio explicitar o entendimento nietzschiano sobre a vida o criteacuterio que permite avaliar a configuraccedilatildeo de impulsos em um dado organismo ou em uma cultura tal como o faz com o compositor alematildeo (Wagner) e a cultura alematilde A vida pode ser compreendida no contexto da vontade de potecircncia como um contiacutenuo processo de autossuperaccedilatildeo Acrescenta-se com isso ainda que a vida natildeo possui uma finalidade especiacutefica um objetivo a ser cumprido eacute pura e simplesmente busca por superar a si mesma Posto isso eacute possiacutevel identificar alguns aspectos sobre a relaccedilatildeo que as produccedilotildees intelectuais e artiacutesticas estabelecem com a vida ou ainda sobre a valoraccedilatildeo moral sobre esta realizada pelos homens enquanto sintoma de uma dinacircmica impulsional Isto se deve ao fato de que ldquoAo falar de valores falamos sob a inspiraccedilatildeo sob a oacutetica da vida a vida mesma nos forccedila a estabelecer valores ela mesma valora atraveacutes de noacutes ao estabelecermos valoresrdquo (NIETZSCHE 2006 p 30) Nesta passagem podemos identificar que a valoraccedilatildeo moral da vida eacute manifestaccedilatildeo de um sintoma valoraccedilatildeo esta que eacute resultante de uma dinacircmica impulsional mas que ela mesma a vida natildeo possui valor moral algum Eacute o homem que estabelece valores acerca da vida

A vida sendo o criteacuterio para realizar um diagnoacutestico atraveacutes da fisiopsicologia natildeo pode ser moralmente valorada Desta forma toda valoraccedilatildeo atribuiacuteda agrave vida eacute ilusoacuteria perene ou ainda um sintoma Em outras palavras

[] esses mais saacutebios dos homens em alguma coisa coincidiam fisiologicamente para situar-se ndash ter de situar-se ndash negativamente perante a vida Juiacutezos juiacutezos de valor acerca da vida contra ou a favor nunca podem ser verdadeiros afinal eles tecircm valor apenas como sintomas satildeo considerados apenas como sintomas [] o valor da vida natildeo pode ser estimado Natildeo por um vivente pois ele eacute parte interessada ateacute mesmo objeto da disputa e natildeo juiz e natildeo por um morto por um outro motivo (NIETZSCHE 2006 p 14-15)

Estevatildeo Bocalon

91

Quando o homem exerce qualquer valoraccedilatildeo da vida este manifesta um sintoma de sua configuraccedilatildeo de impulsos mas que natildeo fazem jus a vida mesma mas antes apenas a proacutepria configuraccedilatildeo de impulsos nele presente

Eacute possiacutevel identificar a partir do que foi dito ateacute aqui que a fisiopsicologia (componente da noccedilatildeo de fisiologia propriamente nietzschiana) busca realizar um retorno as origens das produccedilotildees artiacutesticas e culturais tendo como pano de fundo a vontade de potecircncia uma dinacircmica impulsional e por fim a vida mesma Eacute por isso que tanto uma produccedilatildeo artiacutestica quanto uma cultura que simboliza uma reuniatildeo dessas produccedilotildees artiacutesticas e da moralidade desenvolvida por uma tradiccedilatildeo podem ser investigadas a partir da fisiopsicologia

Em seus escritos Nietzsche realiza uma anaacutelise fisiopsicoloacutegica de diversas culturas como a civilizaccedilatildeo grega romana a cultura francesa entre outras Cada uma delas enquanto expressotildees de uma ou mais configuraccedilotildees de impulsos Pode-se perceber ainda que ldquoa concepccedilatildeo de corpo passa a ter um papel fundamental para entendermos a culturardquo (FREZZATTI 2004 p118) ressaltando assim a importacircncia dos estudos fisioloacutegicos realizados pelo autor A cultura eacute entatildeo entendida como expressatildeo da condiccedilatildeo humana Essa expressatildeo se daacute pela produccedilatildeo cultural de um povo caracterizando um grau de complexidade maior de uma dinacircmica impulsional mais complexa do que a que se daacute no homem A cultura eacute desse modo supra-orgacircnica resultante das produccedilotildees culturais realizadas pelo homem que podem tambeacutem ser decadentes ou sadias Elevar a condiccedilatildeo do homem para que possibilite o surgimento de povos com cultura mais elevada configura uma das preocupaccedilotildees axiais no pensamento nietzschiano

O surgimento do grande homem ou gecircnio eacute importante pois este eacute capaz de criar novas culturas e novos valores Mas tambeacutem ocorre de levar a cultura a deacutecadence como seraacute visto a respeito do tipo Wagner deacutecadent que surgiu como resultante da cultura alematilde decadente segundo Nietzsche Diante disso pode-se agora investigar como a deacutecadence manifesta-se atraveacutes do tipo Wagner delineado por Nietzsche

Segundo a concepccedilatildeo de fisiopsicologia de Nietzsche tem-se as produccedilotildees intelectuais e artiacutesticas como capazes de oferecer um vieacutes interpretativo e metafoacuterico acerca do mundo e da vida Como vimos uma produccedilatildeo artiacutestica pode ser um sintoma da disposiccedilatildeo dos impulsos moacuterbida no caso de fomentar em uma visatildeo negativa da vida pessimista ou sadia caso afirme a vida e o constante devir mundano Quando ocorre de uma interpretaccedilatildeo ser moacuterbida quando expressa uma relaccedilatildeo de negaccedilatildeo com a vida isso quer dizer que a dinacircmica impulsional manifesta eacute deacutecadent Pois em uma dinacircmica impulsional assim os impulsos encontram-se com baixo grau de hierarquia provocando uma fragmentaccedilatildeo e enfraquecimento dessa um decliacutenio Isto leva o homem a procurar valores fixos e absolutos como ponto de apoio que nega o constante devir mundano a mutabilidade dos valores e a vida mesma Um exemplo de uma interpretaccedilatildeo de mundo moacuterbida eacute a metafiacutesica tradicional que pensa o mundo pautado em uma dualidade de conceitos transcendentes e absolutos (um mundo ideal e um aparente)

Quarta tese Dividir o mundo em um ldquoverdadeirordquo e um ldquoaparenterdquo seja agrave maneira do cristianismo seja agrave maneira de Kant (um cristatildeo insidioso afinal de contas) eacute apenas uma sugestatildeo da deacutecadence ndash um sintoma da vida que declina O fato de o artista estimar a aparecircncia mais que a realidade natildeo eacute objeccedilatildeo a essa tese Pois ldquoa aparecircnciardquo significa neste

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo

92

caso novamente a realidade mas numa seleccedilatildeo correccedilatildeo reforccedilo (NIETZSCHE 2006 p 24 grifos do autor)

Como visto do mesmo modo eacute possiacutevel proceder a partir da arte para se estabelecer uma compreensatildeo do que eacute o artista tambeacutem de forma orgacircnica psicoloacutegica e bioloacutegica para entatildeo reconhececirc-lo em uma eacutepoca Pois mesmo que um artista tenha preferecircncia para a aparecircncia trata-se de uma adaptaccedilatildeo de realidade sintomas de uma dinacircmica impulsional Assim ocorre com as anaacutelises de Nietzsche sobre o compositor Richard Wagner Em O Caso Wagner lecirc-se ldquo[] a esteacutetica se acha indissoluvelmente ligada a esses pressupostos bioloacutegicosrdquo (NIETZSCHE 1999 p 42) Nietzsche assim leva agrave cabo a ligaccedilatildeo entre a fisiologia e a vontade de potecircncia e eacute desse modo que Wagner seraacute caracterizado nessa obra (O Caso Wagner) Natildeo eacute apenas o compositor Wagner que eacute assim analisado mas tambeacutem o periacuteodo moderno na Alemanha dessa eacutepoca Eis aqui um indiacutecio da fisiopsicologia presente nessa obra

A partir do que foi exposto eacute preciso que se defina o que eacute a Deacutecadence para Nietzsche O conceito de deacutecadence eacute em certa medida utilizado por Nietzsche atraveacutes das leituras do romancista francecircs Paul Bourget3 (1852-1935) Eacute a partir da formulaccedilatildeo desse conceito por Bourget que Nietzsche avalia as mais variadas produccedilotildees artiacutesticas de sua eacutepoca Assim como para Bourget segundo o pensador alematildeo a deacutecadence se manifesta nos escritos literaacuterios mas natildeo somente nisso tambeacutem na muacutesica no teatro nas oacuteperas e ateacute mesmo na moral Ou seja

No momento me deterei apenas na questatildeo do estilo ndash Como se caracteriza toda deacutecadence literaacuteria Pelo fato de a vida natildeo mais habitar o todo A palavra se torna soberana e pula fora da frase a frase transborda e obscurece o sentido da paacutegina a paacutegina ganha vida em detrimento do todo ndash o todo jaacute natildeo eacute um todo Mas isto eacute uma imagem para todo estilo da deacutecadence a cada vez anarquia dos aacutetomos desagregaccedilatildeo da vontade ldquoliberdade individualrdquo em termos morais (NIETZSCHE 1999 p 23 grifos do autor)

Eacute dessa forma segundo a definiccedilatildeo de deacutecadence que ocorre tambeacutem com a dinacircmica impulsional expressada pelo compositor alematildeo diagnosticada como enfraquecida Os impulsos que se encontram de forma desorganizada perdem potecircncia e fragmentam-se e isso acarreta em uma obra que representa essa configuraccedilatildeo doente Em suma a obra eacute expressatildeo de uma ou mais configuraccedilotildees de impulsos presentes no artista Por isso eacute que eacute possiacutevel uma avaliaccedilatildeo fisiopsicoloacutegica atraveacutes da arte da produccedilatildeo artiacutestica A deacutecadence aparece como indissociavelmente ligada agrave fisiopsicologia e tambeacutem agrave vontade de potecircncia Posto isso passa-se a identificar os elementos da fisiopsicologia contidos na obra O Caso Wagner

Na obra em supracitada Richard Wagner eacute tomado como uma ldquolente de aumentordquo que eacute utilizada para avaliar toda a cultura e arte alematilde de sua eacutepoca Nietzsche relaciona o decliacutenio da arte em geral em consonacircncia com o decliacutenio do artista (em consequecircncia a cultura alematilde dessa eacutepoca) Desta forma

Um decliacutenio de caraacuteter poderia talvez ser expresso provisoriamente com esta foacutermula o muacutesico agora se faz ator sua arte se transforma cada

3 A obra de Paul Bourget que influenciou o pensamento nietzschiano acerca da deacutecadence eacute especificamente Essais de Psychologie Contemporaine de 1883

Estevatildeo Bocalon

93

vez mais num talento para mentir [] essa metamorfose geral da arte em histrionismo eacute uma expressatildeo de degenerescecircncia fisioloacutegica (mais precisamente uma forma de histerismo) tanto quanto cada corrupccedilatildeo e fraqueza da arte inaugurada por Wagner por exemplo a instabilidade da sua oacutetica que obriga (a todo instante) a mudar de posiccedilatildeo diante dela Nada se compreende de Wagner ao distinguir nele apenas um arbitraacuterio jogo da natureza um capricho e um acaso Ele natildeo era um gecircnio ldquoincompletordquo ldquodesafortunadordquo ldquocontraditoacuteriordquo como jaacute foi dito Wagner era algo perfeito um tiacutepico deacutecadent no qual natildeo haacute ldquolivre-arbiacutetriordquo cada feiccedilatildeo tem sua necessidade (NIETZSCHE 1999 p 22-23 grifos do autor)

Para melhor entender como a deacutecadence afeta a arte e principalmente a obra de Wagner pode-se observar como que para impelir um sentimento entusiasmado de sua produccedilatildeo artiacutestica no espectador o compositor faz uso das danccedilas teatrais do drama exacerbado (histrionismo) das gesticulaccedilotildees desmedidas das minimidades cotidianas ou seja a trivialidade da vida particular em detrimento do todo Aleacutem disso haacute tambeacutem a presenccedila de ideais aceacuteticos nas suas obras Muacutesicas que provocam histeria para ldquoexcitar nervos cansadosrdquo Fica mais clara assim a relaccedilatildeo entre fisiopsicologia com a noccedilatildeo de decaacutedence pois a mesma eacute constituiacuteda por uma configuraccedilatildeo de forccedilas desorganizada na qual as partes ganham mais importacircncia que o todo

Apesar das criacuteticas nietzschianas serem direcionadas especificamente agraves obras de Wagner os atributos nelas percebidos satildeo sintomas presentes na modernidade Nietzsche evidencia que o compositor em questatildeo eacute a personificaccedilatildeo da doenccedila que aflige a sua eacutepoca e mais ainda foi responsabilidade dele acelerar este adoecimento ao qual a modernidade estaria fadada Aleacutem disso segundo o pensador alematildeo

Wagner eacute uma grande corrupccedilatildeo para a muacutesica Ele percebeu nela um meio para excitar nervos cansados ndash com isso tornou a muacutesica doente Natildeo eacute pouco seu taleno na arte de aguilhoar os totalmente exaustos de chamar agrave vida os semimortos Ele eacute o mestre do passe hipnoacutetico mesmo os mais fortes ele derruba como touros O sucesso de Wagner ndash seu sucesso junto ao nervos e em consequencia junto agraves mulheres ndash transformou o mundo dos muacutesicos ambiciosos em seguidores da sua arte oculta E natildeo soacute os ambiciosos tambem os sagazes Hoje se faz dinheiro apenas com muacutesica doente nossos grandes teatros vivem de Wagner (NIETZSCHE 1999 p 19-20 grifos do autor)

Justifica-se dessa forma as mais variadas produccedilotildees artiacutesticas da eacutepoca todas apresentando caracteriacutesticas em comum a frieza mercantilista com que a arte eacute produzida os ideais asceacuteticos peccedilas demasiadamente dramaacuteticas e de cunho apelativo Satildeo estas caracteriacutesticas todas encontradas na obra de Wagner que Nietzsche considera danoso doente

Minhas objeccedilotildees agrave muacutesica de Wagner satildeo fisioloacutegicas por que disfarccedila-las em foacutermulas esteacuteticas Afinal a esteacutetica natildeo passa de fisiologia aplicada ndash meu ldquofatordquo meu ldquopetit fait vrai [pequeno fato verdadeiro]rdquo eacute que jaacute natildeo consigo respirar direito quando essa muacutesica me atinge logo meu peacute se irrita com ela e se revolta ele necessita de compasso danccedila marcha [] Wagner torna doente (NIETZSCHE 1999 p 50 grifos do autor)

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo

94

Conforme se viu ateacute aqui a deacutecadence assolou a arte moderna na Alemanha Eacute o que se confirma pelo proacuteprio autor em Ecce Homo a respeito de servir-se de Wagner como ldquolente de aumentordquo como dito anteriormente na seguinte passagem ldquoTerceiro nunca ataco pessoas ndash sirvo-me da pessoa como uma forte lente de aumento com que se pode tornar visiacutevel um estado de miseacuteria geral poreacutem dissimulado pouco palpaacutevel [] Assim ataquei Wagnerrdquo (NIETZSCHE 1995 p 30) Com isso pode-se confirmar que a construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent natildeo se trata de um ataque pessoal em primeira instacircncia Eacute antes uma anaacutelise das suas obras com vistas aos valores nelas expressos

Assim se configura um tipo para a filosofia de Nietzsche que serve como exemplo do que ocorre com a cultura em geral um padratildeo Esse modus operandi que aparece nas obras de Wagner configuram a construccedilatildeo de um tipo deacutecadent com todas as caracteriacutesticas apontadas por Nietzsche Seguindo esses pressupostos pode-se notar que a fisiopsicologia leva em consideraccedilatildeo sua correspondecircncia com a vontade de potecircncia As interpretaccedilotildees realizadas por Wagner satildeo resultantes de sua dinacircmica impulsional que como visto nos paraacutegrafos anteriores preconizam e reforccedilam uma vez mais os valores e ideais metafiacutesicos que influenciaram o compositor Trata-se de um reflexo de suas vivecircncias interpretadas a partir de valores metafiacutesicos (como o ideais asceacuteticos de redenccedilatildeo)

Desse modo Wagner eacute um sedutor em grande estilo Nada existe de cansado de caduco de vitalmente perigoso e de caluniador do mundo entre as coisas do espiacuterito que a sua arte natildeo tenha secretamente tomado em proteccedilatildeo [] Ele incensa todo instinto niilista (- budista) e o transveste em muacutesica ele incensa todo o cristianismo toda a forma de expressatildeo religiosa da deacutecadence Abram seus olhos tudo o que jamais cresceu no solo da vida empobrecida toda a falsificaccedilatildeo que eacute a transcendecircncia e o Aleacutem tem na arte de Wagner o seu mais sublime advogado (NIETZSCHE 1999 p 36 grifos do autor)

Uma vez mais identifica-se o processo constitutivo desse tipo a partir de uma configuraccedilatildeo de impulsos moacuterbida onde haacute enfraquecimento de potecircncia as manifestaccedilotildees dessa configuraccedilatildeo nas produccedilotildees artiacutesticas de Wagner resultam em uma interpretaccedilatildeo de mundo empobrecida devido aos ideais metafiacutesicos cristatildeos expressos em sua obra Eacute assim que a construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent desenvolveu-se a partir da investigaccedilatildeo de Nietzsche acerca das obras do compositor alematildeo O que somente foi possiacutevel ao fazer uso da anaacutelise fisiopsicoloacutegica mesmo que esta noccedilatildeo natildeo apareccedila em uma definiccedilatildeo precisa em O Caso Wagner

Estevatildeo Bocalon

95

Referecircncias bibliograacuteficasFREZZATTI Jr W A A fisiologia de Nietzsche a Superaccedilatildeo da Dualidade CulturaBiologia Ijuiacute Unijuiacute 2006_____ Verbete ldquoFisiopsicologiardquo In GEN Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo GEN Loyola 2016 p 236-238MUumlLLER-LAUTER W A doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche Traduccedilatildeo de Oswaldo Giacoia Junior Satildeo Paulo Annablume 1997_____ Deacutecadence artiacutestica enquanto deacutecadence fisioloacutegica A propoacutesito da criacutetica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner Traduccedilatildeo de Scarlett Marton Cadernos Nietzsche Satildeo Paulo n6 p 11-30 1999MARTON S Verbete ldquoVontade de Potecircnciardquo In GEN Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo GEN Loyola 2016 p 423-425NIETZSCHE F W Aleacutem do Bem e do Mal Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005_____ Ecce Homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008_____ Genealogia da Moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Assim falou Zaratustra Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Compainha das Letras 2011_____ A Gaia Ciecircncia Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2012_____ O caso Wagner Nietzsche contra Wagner Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2016_____ Crepuacutesculo dos Iacutedolos Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Compainha das Letras 2017

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

96

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise sobre a criacutetica de Nietzsche em humano demasiado humano

Gracy Kelly Bourscheid1

A histoacuteria dos sentimentos moraisA abordagem criacutetica de Nietzsche acerca da moral em Humano demasiado humano

I (1878) tem seu ponto de partida na ecircnfase sobre o papel da histoacuteria na observaccedilatildeo de que a maioria dos erros cometidos pelos filoacutesofos decorre da falta de anaacutelises sobre os aspectos histoacutericos da moralidade ldquofalta de sentido histoacuterico eacute o defeito hereditaacuterio de todos os filoacutesofosrdquo (MAIHHI sect2) Opondo-se ao modo de investigaccedilatildeo que se baseia em verdades eternas o filoacutesofo indica que as crenccedilas morais devem ser analisadas a partir de seu surgimento histoacuterico

Todos os filoacutesofos tecircm em comum o defeito de partir do homem atual e acreditar que analisando-o alcanccedilam seu objetivo Involuntariamente imaginam ldquoo homemrdquo como uma aeterna veritas [verdade eterna] como uma constante em todo o redemoinho uma medida segura das coisas Mas tudo o que o filoacutesofo declara sobre o homem no fundo natildeo passa de testemunho sobre o homem de um espaccedilo de tempo bem limitado (MAIHHI sect2)

Observando o homem de nosso tempo percebemos as caracteriacutesticas morais culturais religiosas poliacuteticas que se manifestam socialmente Sabemos entretanto que tais particularidades natildeo nos servem como chave de compreensatildeo sobre a humanidade O ponto de divergecircncia de Nietzsche em relaccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo de alguns filoacutesofos decorre do modo como estes cristalizaram caracteriacutesticas morais histoacutericas em fatos eternos A anaacutelise de uma manifestaccedilatildeo social de compaixatildeo para com algueacutem que sofre de dores intensas por exemplo natildeo pode ser determinante na visatildeo do filoacutesofo para que se considere que algueacutem efetivamente sofra diante da dor alheia

Nietzsche observa que as manifestaccedilotildees do homem satildeo histoacutericas dentro de um espaccedilo de tempo bem limitado emanam de interesses especiacuteficos e natildeo podem portanto ser consideradas como medida para a anaacutelise de todos os homens ldquoTudo veio a ser natildeo existem fatos eternos assim como natildeo existem verdades absolutas ndash Portanto o filosofar histoacuterico eacute doravante necessaacuteriordquo (MAIHHI sect2) A histoacuteria eacute vista desse modo como um importante instrumento para tomar a moral como um problema para investigaacute-la a partir de suas manifestaccedilotildees efetivas Para que seja possiacutevel uma anaacutelise sobre o surgimento da

1 Mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Paranaacute turma 2017-2019

Gracy Kelly Bourscheid

97

moralidade Nietzsche recorre aos aspectos histoacutericos que determinam como os sentimentos morais surgiram e de que modo foram transmitidos

Nietzsche considera que atraveacutes da observaccedilatildeo histoacuterica eacute possiacutevel constatar que certos conceitos e virtudes morais natildeo existem efetivamente Isso ocorre quando analisamos cuidadosamente as accedilotildees ditas altruiacutestas e tambeacutem as desinteressadas Para o filoacutesofo a exaltaccedilatildeo de tais accedilotildees vistas como virtudes eacute fruto de um exagero decorrente de crenccedilas populares e concepccedilotildees metafiacutesicas Tambeacutem os conceitos opostos e bem delineados tais como bem e mal altruiacutesmo e egoiacutesmo culpa e inocecircncia salvaccedilatildeo e danaccedilatildeo satildeo considerados como contraposiccedilotildees que para o filoacutesofo soacute fazem sentido para as especulaccedilotildees metafiacutesicas e religiosas A negaccedilatildeo de dualidades fixas e eternas se configura atraveacutes do pensamento de que todas as coisas em efetividade satildeo dinacircmicas estatildeo em constante mudanccedila As coisas humanas natildeo devem portanto ser vistas a partir de crenccedilas em verdades eternas mas sim como configuraccedilotildees que estatildeo num processo contiacutenuo de transformaccedilotildees

A filosofia histoacuterica que natildeo se pode mais conceber como distinta da ciecircncia natural o mais novo dos meacutetodos filosoacuteficos constatou em certos casos (e provavelmente chegaraacute ao mesmo resultado em todos eles) que natildeo haacute opostos salvo no exagero habitual da concepccedilatildeo popular ou metafiacutesica e que na base dessa contraposiccedilatildeo estaacute um erro da razatildeo conforme sua explicaccedilatildeo a rigor natildeo existe accedilatildeo altruiacutesta nem contemplaccedilatildeo totalmente desinteressada ambas satildeo apenas sublimaccedilotildees em que o elemento baacutesico parece ter se volatizado e somente se revela agrave observaccedilatildeo mais aguda (MAIHHI sect1)

Na consideraccedilatildeo de Nietzsche as explicaccedilotildees morais sobre as accedilotildees consideradas altruiacutestas representam um erro comum a muitos filoacutesofos que consideram as manifestaccedilotildees ditas altruiacutestas como se fossem um bem em si Sobre o sentimento altruiacutesta o filoacutesofo se distancia tambeacutem do pensamento de seu amigo e interlocutor Paul Reacutee Em concordacircncia com Nietzsche o pensador Paul Reacutee tambeacutem se opotildee agraves certezas metafiacutesicas e agraves especulaccedilotildees sobre o homem a partir de conceitos absolutos2 ldquoa essecircncia de todo sentimento soacute eacute clara uma vez que a histoacuteria de seu surgimento eacute clarardquo (REacuteE 2018 p50) Nietzsche reconhece a contribuiccedilatildeo das observaccedilotildees psicoloacutegicas de Reacutee em contraposiccedilatildeo agraves especulaccedilotildees metafiacutesicas Mas a sua abordagem acerca do altruiacutesmo natildeo eacute conciliaacutevel agraves perspectivas sobre os sentimentos morais do filoacutesofo alematildeo Analisando as manifestaccedilotildees de sentimentos altruiacutestas e egoiacutestas Reacutee os toma como instintos naturais do homem ldquotodo homem traz em si dois instintos ou seja o egoiacutesta e o altruiacutestardquo (REacuteE 2018 p 45) Essa consideraccedilatildeo se choca com a convicccedilatildeo nietzschiana de que o homem natildeo possui nenhuma caracteriacutestica moral em sua constituiccedilatildeo Enquanto Nietzsche considera todos os aspectos morais incluindo altruiacutesmo e egoiacutesmo como meras manifestaccedilotildees pontuais transformadas

2 Em suas anaacutelises sobre a moralidade nos escritos de A origem dos sentimentos morais Paul Reacutee recusa as convicccedilotildees metafiacutesicas da imortalidade da alma da existecircncia e da bondade de Deus da liberdade da vontade humana e observa que a feacute na imortalidade da alma e numa possiacutevel retaliaccedilatildeo eterna aos autores das maacutes accedilotildees pode explicar algumas accedilotildees morais ldquoos selvagens acreditam que o que eles sonham de fato ocorre na vida por exemplo acreditam realmen-te ter visitado uma pessoa que eles visitaram no sonho Mas tendo em vista que seu corpo natildeo deixou o lugar que ocupava como eles notam no despertar e como eacute confirmado por outras pessoas entatildeo uma coisa separada do corpo deve ter empreendido aquela viagem Na morte a alma se desprende totalmente do corpo assim como no sono ela se separa temporariamente dele Desse modo pocircde surgir a crenccedila numa retaliaccedilatildeo depois da morte Que os teoacutelogos ainda hoje acreditem nela pode ser explicado pelo fato de que eles raramente se preocupam em provar aquilo que foi aceito como vaacutelido em sua igreja Natildeo faz parte da natureza humana como ela habitualmente eacute arriscar a paz de espiacuterito (que deve ser muito grande numa feacute cega) por causa de um conhecimento inexoraacutevel da verdade ou colocar seu emprego e seu salaacuterio em jogo por causa da profissatildeo de feacute na verdaderdquo (REacuteE 2018 p 97-98)

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

98

em virtudes ou viacutecios Reacutee toma o egoiacutesmo e o altruiacutesmo como caracteriacutesticas efetivas da natureza humana ldquoPor causa do instinto altruiacutesta o homem faz do bem-estar dos outros em funccedilatildeo deles mesmos o fim uacuteltimo de sua accedilatildeo seja para auxiliar no bem-estar deles seja para lhes evitar o danordquo (REacuteE 2018 p 46) Considerando o altruiacutesmo como um instinto natural Reacutee buscou nas manifestaccedilotildees afetivas dos reconhecidos altruiacutestas e compassivos uma chave para a explicaccedilatildeo de sua tese As accedilotildees visando o bem do proacuteximo ou a evitar um sofrimento aparente convenceram o pensador de que haacute no homem um instinto altruiacutesta natural

Natildeo sentimos dor apenas quando experimentamos a dor alheia mas eacute o fato do sofrimento alheio que nos doacutei noacutes sentimos de forma altruiacutesta [] Quando o compassivo ajuda o sofredor isso acontece para aliviar o sofrimento alheio ele ajuda o outro em funccedilatildeo do outro natildeo em funccedilatildeo de si mesmo por exemplo a matildee age exclusivamente para livrar o filho da dor em funccedilatildeo do filho portanto e natildeo em funccedilatildeo de si mesma A observaccedilatildeo (sobretudo a auto-observaccedilatildeo) pode ensinar que essas accedilotildees altruiacutestas realmente existem (REacuteE 2018 p 46-47)

Na perspectiva de Reacutee o homem natildeo soacute se compadece diante do sofrimento alheio como tambeacutem age no sentido de livrar o proacuteximo do sentimento danoso Nietzsche discorda completamente desta concepccedilatildeo Para o filoacutesofo alematildeo natildeo existem accedilotildees altruiacutestas e as manifestaccedilotildees de compaixatildeo satildeo meras representaccedilotildees com um interesse especiacutefico de causar uma boa impressatildeo social observa que ldquoa sede de compaixatildeo eacute uma sede de gozo de si mesmordquo (MAIHHI sect50) Nesse caso a avaliaccedilatildeo eacute de que toda accedilatildeo considerada moralmente como desinteressada e altruiacutesta possui alguma caracteriacutestica interesseira seja a sensaccedilatildeo de bem estar ao ser engrandecido socialmente ou de algum outro interesse pessoal Seja como for o filoacutesofo afirma ldquonum exame rigoroso o conceito de lsquoaccedilatildeo altruiacutestarsquo se pulveriza no ar Jamais um homem fez algo apenas para outros e sem qualquer motivo pessoalrdquo (MAIHHI sect133) Haacute para Nietzsche algum interesse especiacutefico em toda accedilatildeo aparentemente altruiacutesta As manifestaccedilotildees morais satildeo portanto evidentes marcas do desejo pessoal de suscitar algum reconhecimento social Nietzsche pontua que as accedilotildees consideradas virtuosas natildeo passam de impressotildees manipuladas por atores com interesses especiacuteficos de comover a sua plateacuteia

Mesmo na dor mais profunda o ator natildeo pode deixar de pensar na impressatildeo produzida por sua pessoa e por todo o efeito cecircnico ateacute no enterro de seu filho por exemplo ele choraraacute por sua proacutepria dor e as manifestaccedilotildees dela como sua proacutepria plateacuteia [] Se algueacutem quer parecer algo por muito tempo e obstinadamente afinal lhe seraacute difiacutecil ser outra coisa A profissatildeo de quase todas as pessoas mesmo a do artista comeccedila com hipocrisia com uma imitaccedilatildeo do exterior com uma coacutepia daquilo que produz efeito Aquele que sempre usa a maacutescara do rosto amaacutevel teraacute enfim poder sobre os acircnimos beneacutevolos sem os quais natildeo pode ser obtida a expressatildeo da amabilidade ndash e estes por fim adquirem poder sobre ele ele eacute beneacutevolo (MAIHHI sect51)

Em oposiccedilatildeo ao instinto altruiacutesta defendido por Reacutee o filoacutesofo alematildeo considera que as manifestaccedilotildees morais refletem o interesse social do homem em suscitar a imagem de uma pessoa boa As accedilotildees consideradas altruiacutestas ou compassivas satildeo para o filoacutesofo meras manifestaccedilotildees do nosso interesse social em causar boa impressatildeo aos espectadores

Gracy Kelly Bourscheid

99

que jaacute envolvidos na teia da crenccedila em caracteriacutesticas morais absolutas costumam nos ver com bons olhos e nos exaltam como seres compassivos e bons

Agrave medida que as especulaccedilotildees sobre o homem estiverem pautadas em seu fazer especiacutefico dentro de um espaccedilo de tempo limitado as certezas absolutas que caracterizam e moldam o homem comeccedilam a ser passiacuteveis de questionamentos Nietzsche considera portanto a filosofia histoacuterica como importante mecanismo da ciecircncia natural um novo meacutetodo cientiacutefico que passa a investigar as especificidades dos sentimentos morais religiosos esteacuteticos e culturais do homem em suas relaccedilotildees sociais histoacutericas

Tudo o que necessitamos e que somente agora nos pode ser dado graccedilas ao niacutevel atual de cada ciecircncia eacute uma quiacutemica das representaccedilotildees e sentimentos morais religiosos e esteacuteticos assim como de todas as emoccedilotildees que experimentamos nas grandes e pequenas relaccedilotildees da cultura e da sociedade (MAIHHI sect1)

Em oposiccedilatildeo agraves especulaccedilotildees metafiacutesicas o filoacutesofo propotildee uma anaacutelise quiacutemica dos sentimentos morais Quiacutemica no sentido de observar cuidadosamente as caracteriacutesticas especiacuteficas dos sentimentos suas propriedades seu aparecimento histoacuterico e sobretudo as suas transformaccedilotildees culturais ao longo do tempo Meacutetodo que tambeacutem deve ser adotado para analisar as transformaccedilotildees gerais da moral da religiatildeo da arte ldquocom a religiatildeo a arte e a moral natildeo tocamos a lsquoessecircncia do mundo em sirsquo estamos no domiacutenio da representaccedilatildeordquo (MAIHHI sect10) Ao observar os fenocircmenos morais como representaccedilotildees e sentimentos o que se manifesta satildeo as superfiacutecies das coisas que nos aparecem em detrimento da crenccedila de que pudeacutessemos tocar a essecircncia das coisas A desmistificaccedilatildeo de sentimentos considerados socialmente como altruiacutestas desinteressados compassivos demanda a percepccedilatildeo de que tais accedilotildees natildeo passam de manifestaccedilotildees humanas demasiado humanas

Certo de que natildeo existem fatos morais e de que a dinacircmica efetiva da histoacuteria permite uma nova disposiccedilatildeo de vida o filoacutesofo recorre agrave investigaccedilatildeo sobre a proveniecircncia dos sentimentos para demonstrar que as nossas convicccedilotildees morais satildeo frutos do costume do haacutebito de admitir como boas as accedilotildees jaacute reconhecidas tradicionalmente como virtudes Ocorre que justamente esse haacutebito carece de questionamentos para que assim possamos pintar a nossa histoacuteria com novas cores ldquoos estudos histoacutericos cultivam a qualificaccedilatildeo para essa pintura pois sempre nos desafiam ante um trecho da histoacuteria a vida de um povo ndash ou de um homemrdquo (MAIHHI sect274) Uma caracteriacutestica importante da filosofia histoacuterica eacute a perspectiva de reformulaccedilatildeo das convicccedilotildees Em Humano demasiado humano I Nietzsche indica que a vida de um povo pode ser vista a partir de ciclos3 de desenvolvimento que se manifestam numa dinacircmica entre a religiatildeo a moral a arte e a ciecircncia O filoacutesofo observa que essas fases satildeo habituais na cultura dos povos e estatildeo num processo dinacircmico contiacutenuo Reconhece que todas as fases da cultura satildeo necessaacuterias Neste sentido a moralidade deve ser vista como uma das fases culturais do homem que poderaacute ser transformada diante do 3 Na observaccedilatildeo de Frezzatti um dos papeacuteis da filosofia histoacuterica em Humano demasiado humano I eacute indicar que a vida

deve ser observada a partir desse processo histoacuterico dinacircmico que nos permite visualizar uma nova fase de cultura humana ldquoEm Humano demasiado humano I esboccedila-se o que temos chamado de ldquociclo vital da culturardquo Ao consi-derar as fases culturais o fisiopsicoacutelogo nietzschiano pode recorrer a uma tipologia das culturas pois o movimento ciacuteclico embora apresente expressotildees diferentes em cada cultura tem como possibilidade a mesma sequecircncia de fases [] Nietzsche entende portanto o processo histoacuterico em Humano demasiado humano I como um movimento ciacuteclico e repartido em fases Seu sentido histoacuterico permite que possamos conhecer experimentando-as fases anteriores do desenvolvimentordquo (FREZZATTI 2018 p 27) O sentido histoacuterico como um movimento ciacuteclico e repartido em fases nos indica que o conhecimento detalhado das manifestaccedilotildees morais religiosas artiacutesticas possibilitaraacute o surgi-mento de uma nova fase histoacuterica da humanidade

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

100

surgimento de novos haacutebitos ldquocompreendemos nossos semelhantes como tais sistemas e representantes bem definidos de culturas diversas isto eacute como necessaacuterios mas alteraacuteveisrdquo (MAIHHI sect274) Diante desta perspectiva o homem moral poderaacute ser transformado poderaacute recriar seus costumes e assim ver surgir uma nova cultura ldquopor algum tempo a metafiacutesica soacute persiste e sobrevive em arte ou como disposiccedilatildeo artisticamente transfiguradora Mas o sentido cientiacutefico torna-se cada vez mais imperioso e leva o homem adulto agrave ciecircncia natural e agrave histoacuteriardquo (MAIHHI sect 272) Esse ciclo dinacircmico da cultura aponta para uma perspectiva de desenvolvimento em que uma fase abre caminho para a sua superaccedilatildeo e o surgimento de uma nova fase da cultura O olhar voltado para o aparecimento das criaccedilotildees morais tem um papel portanto que vai aleacutem da criacutetica agraves convicccedilotildees morais enquanto verdades absolutas Aponta tambeacutem para a possibilidade de elevaccedilatildeo da cultura do homem

Nietzsche considera os sentimentos morais a partir das inclinaccedilotildees e aversotildees do homem isto eacute dos impulsos que nos movem em direccedilatildeo ao que parece ser proveitoso ou nos afastam para longe de algo supostamente nocivo ldquoUm impulso em direccedilatildeo ou para longe de algo sem o sentimento de querer o que eacute proveitoso ou se esquivar do que eacute nocivo [] natildeo existe no homemrdquo (MAIHHI sect32) Nessa dinacircmica as accedilotildees satildeo motivadas por um interesse especiacutefico que nos inclina ou nos afasta de algo O filoacutesofo esclarece que nossas accedilotildees satildeo motivadas pelos impulsos mas natildeo possuem uma caracteriacutestica boa ou maacute em si ldquotodas as lsquomaacutesrsquo accedilotildees satildeo motivadas pelo impulso de conservaccedilatildeo ou mais exatamente pelo propoacutesito individual de buscar o prazer e evitar o desprazer satildeo assim motivadas mas natildeo satildeo maacutesrdquo (MAIHHI sect99) O mesmo tambeacutem ocorre com as accedilotildees consideradas boas satildeo motivadas pela busca do prazer mas natildeo satildeo boas em si Investigando o mecanismo desta cadeia de motivaccedilotildees Nietzsche observa que as accedilotildees humanas satildeo motivadas pela sensaccedilatildeo de prazer ldquosem prazer natildeo haacute vida a luta pelo prazer eacute a luta pela vidardquo (MAIHHI sect104) Na vida comunitaacuteria o homem sente prazer ao fazer aquilo que eacute habitual O filoacutesofo observa que a crenccedila de que os costumes satildeo comprovada sabedoria de vida faz com que o homem se adeque agraves coerccedilotildees morais e limite seus impulsos naturais

A moralidade eacute antecedida pela coerccedilatildeo e ela mesma eacute ainda por algum tempo coerccedilatildeo agrave qual a pessoa se acomoda para evitar o desprazer Depois ela se torna costume mais tarde obediecircncia livre e finalmente quase instinto entatildeo como tudo o que haacute muito tempo eacute habitual e natural acha-se ligada ao prazer ndash e se chama virtude (MAIHHI sect99)

O sentimento de prazer ao realizar alguma accedilatildeo comprovadamente uacutetil agrave comunidade torna o homem domesticado O filoacutesofo observa que esse mecanismo coercitivo estaacute tatildeo fortemente enraizado nas comunidades que a pessoa segue os costumes de modo obediente sem qualquer reflexatildeo Essa dinacircmica de apego agrave tradiccedilatildeo eacute transmitida como heranccedila e a adequaccedilatildeo ao costume eacute vista como uma virtude moral Em Humano demasiado humano I o filoacutesofo pontua o que pode ser considerado como uma virtude boa para a tradiccedilatildeo moral ldquoBomrdquo diz ele ldquoeacute chamado aquele que apoacutes longa hereditariedade e quase por natureza pratica facilmente e de bom grado o que eacute moralrdquo E sobre a concepccedilatildeo habitual do que possa ser um homem moral esclarece ldquoser moral morigerado eacutetico significa prestar obediecircncia a uma lei ou tradiccedilatildeo haacute muito estabelecidardquo (MAIHHI sect96) A obediecircncia aos costumes morais eacute apontada pelo filoacutesofo como central para a compreensatildeo deste sentimento de dever moral herdado4 e perpetuado historicamente 4 No Humano demasiado humano II publicado em 1879-80 o filoacutesofo confirma o caraacuteter hereditaacuterio dos sentimentos

morais afirmando que ldquoa moralidade (o modo de agir herdado transmitido instintivo segundo sentimentos morais)rdquo

Gracy Kelly Bourscheid

101

Destituiacutedo das convicccedilotildees metafiacutesicas mas focado nas manifestaccedilotildees morais Nietzsche considera que o homem natildeo pode ser considerado moral ou imoral por sua obediecircncia ou negligecircncia ao costume moral Isso porque na visatildeo do filoacutesofo natildeo somos responsaacuteveis por nossas accedilotildees Considerando a inocecircncia das nossas accedilotildees indica que ldquoa histoacuteria dos sentimentos morais eacute a histoacuteria de um erro o erro da responsabilidade que se baseia no erro do livre-arbiacutetriordquo (MAIHHI sect39) No pensamento do filoacutesofo nossas accedilotildees natildeo satildeo consequumlecircncias de uma vontade livre que nos permita agir deste ou daquele modo Considera que o homem natildeo eacute dotado de vontade livre e portanto natildeo deveria ser responsabilizado por suas accedilotildees Nietzsche afirma que a histoacuteria dos sentimentos morais eacute a histoacuteria pela qual tornamos o homem responsaacutevel por todas as suas accedilotildees ldquoa histoacuteria dos sentimentos em virtude dos quais tornamos algueacutem responsaacutevel por seus atos ou seja a histoacuteria dos chamados sentimentos moraisrdquo (MAIHHI sect39) Analisando a histoacuteria dos sentimentos morais o filoacutesofo constata que a tradiccedilatildeo moral e religiosa obteve ecircxito em tornar o homem culpado A partir da crenccedila moral e religiosa de que o homem possui liberdade para escolher entre essa ou aquela accedilatildeo surge a sensaccedilatildeo nos espectadores e no proacuteprio agente de que a accedilatildeo considerada imoral poderia ter sido evitada

O sentimento de culpa por desobedecer a uma regra um costume moral eacute um forte repressor social Na concepccedilatildeo de Nietzsche esse sentimento eacute fruto do erro em acreditar na liberdade da vontade ldquoporque o homem se considera livre natildeo porque eacute livre ele sofre arrependimento e remorsordquo (MAIHHI sect39) Esse sentimento poderaacute ser superado segundo o filoacutesofo agrave medida que o homem reconhecer sua inocecircncia ao agir ldquoningueacutem eacute responsaacutevel por suas accedilotildees ningueacutem responde por seu ser julgar significa ser injusto Isso tambeacutem vale para quando o indiviacuteduo julga a si mesmordquo (MAIHHI sect39) Considerando que o homem natildeo dispotildee de vontade livre o filoacutesofo propotildee um novo modo de olhar para as accedilotildees humanas Em sua anaacutelise o homem natildeo pode ser responsabilizado por suas accedilotildees porque age por necessidade

A total irresponsabilidade do homem por seus atos e seu ser eacute a gota mais amarga que o homem do conhecimento tem de engolir se estava habituado a ver na responsabilidade e no dever a carta de nobreza de sua humanidade Todas as suas avaliaccedilotildees distinccedilotildees aversotildees satildeo assim desvalorizadas e se tornam falsas seu sentimento mais profundo que ele dispensava ao sofredor ao heroacutei baseava-se num erro ele jaacute natildeo pode louvar nem censurar pois eacute absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidade (MAIHHI sect107)

Se considerarmos como propotildee o filoacutesofo as accedilotildees como totalmente necessaacuterias o homem natildeo poderaacute ser responsabilizado por elas E isso ocorre tanto para as accedilotildees consideradas tradicionalmente como boas quanto com as consideradas maacutes Assim como ao homem considerado bom natildeo caberaacute honras e meacuteritos agravequele que parecer mau agrave comunidade natildeo poderaacute ser penalizado A concepccedilatildeo nietzschiana sobre a irresponsabilidade das accedilotildees se choca com um importante aparato de repressatildeo moral Um dos pilares da tradiccedilatildeo moral e religiosa eacute a noccedilatildeo de recompensa e castigo vinculada agraves accedilotildees ldquose desaparecessem o castigo e o precircmio acabariam os motivos mais fortes que nos afastam de certas accedilotildees e nos impelem a outrasrdquo (MAIHHI sect105) Segundo o filoacutesofo meacuterito ou castigo natildeo cabem ao homem porque as nossas accedilotildees satildeo tatildeo necessaacuterias quanto agraves accedilotildees da natureza ldquoeacute absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidaderdquo (MAIHHI sect107) Desse modo somos tatildeo

(MAIIHHII sect212)

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

102

responsaacuteveis pelos impulsos que movem nosso corpo quanto agrave natureza eacute responsaacutevel pelos seus movimentos

Natildeo acusamos a natureza de imoral quando ela nos envia uma tempestade e nos molha por que chamamos de imoral o homem nocivo Porque neste caso supomos uma vontade livre operando arbitrariamente e naquele uma necessidade Mas tal diferenciaccedilatildeo eacute um erro (MAIHHI sect102)

Ao abordar a sua concepccedilatildeo acerca da irresponsabilidade do homem sobre as suas accedilotildees o filoacutesofo indica que os atos humanos devem ser considerados do mesmo modo que os movimentos da natureza Homem e natureza agem por necessidade e natildeo por vontade livre Nossas accedilotildees satildeo tatildeo necessaacuterias portanto como uma chuva numa tarde de veratildeo Essa consideraccedilatildeo de Nietzsche coloca sob questionamento a convicccedilatildeo moral e religiosa a respeito da liberdade e responsabilidade individual Habituamo-nos a reconhecer nossas accedilotildees como responsabilidade individual Diante da crenccedila na responsabilidade individual pela qual o homem considerado imoral eacute julgado e punido Nietzsche esclarece ldquoningueacutem eacute responsaacutevel por suas accedilotildees ningueacutem responde por seu ser julgar significa ser injusto Isso tambeacutem vale para quando o indiviacuteduo julga a si mesmordquo (MAIHHI sect39) A partir da compreensatildeo de que o homem eacute totalmente irresponsaacutevel por seus atos o filoacutesofo propotildee um novo modo de sentimento a adoccedilatildeo do sentimento de inocecircncia em detrimento do sentimento de culpa Se o homem incorporar a sua inocecircncia sobre as accedilotildees natildeo aceitaraacute mais ser premiado ou castigado tampouco puniraacute ou aplaudiraacute accedilotildees alheias afinal nenhuma accedilatildeo poderia ter ocorrido de outra maneira

Quem compreendeu plenamente a teoria da completa irresponsabilidade jaacute natildeo pode incluir a chamada justiccedila punitiva e premiadora no conceito de justiccedila se esta consiste em dar a cada um o que eacute seu Pois aquele que eacute punido natildeo merece a puniccedilatildeo eacute apenas usado como meio para desencorajar futuramente certas accedilotildees tambeacutem aquele que eacute premiado natildeo merece o precircmio ele natildeo podia agir de outro modo (MAIHHI sect105)

Esse novo modo de olhar para as accedilotildees humanas abala toda a estrutura da moralidade Todo louvor diante das accedilotildees vistas como virtuosas se tornaria dispensaacutevel Toda nossa reprovaccedilatildeo diante de supostas infraccedilotildees morais se tornaria ridiacutecula Afinal como reprovar ou aplaudir accedilotildees que natildeo poderiam ocorrer de outro modo ldquoseu sentimento mais profundo que ele dispensava ao sofredor ao heroacutei baseava-se num erro ele jaacute natildeo pode louvar nem censurar pois eacute absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidaderdquo (MAIHHI sect107) Nietzsche reconhece que o surgimento do sentimento de inocecircncia em substituiccedilatildeo ao sentimento moral de culpa eacute um processo O homem precisa assimilar a sua inocecircncia e compreender que natildeo eacute responsaacutevel por seus atos Trata-se de um novo conhecimento ldquotudo eacute necessidade ndash assim diz o novo conhecimento e ele proacuteprio eacute necessidade Tudo eacute inocecircncia e o conhecimento eacute a via para compreender essa inocecircnciardquo (MAIHHI sect107) O filoacutesofo pontua que assim como a moralidade gerou sentimentos e mecanismos coercitivos atraveacutes da transmissatildeo dos costumes esse novo conhecimento poderaacute criar um novo homem o homem saacutebio e inocente

Tudo no acircmbito da moral veio a ser eacute mutaacutevel oscilante tudo estaacute em fluxo eacute verdade - mas tudo se acha tambeacutem numa corrente em direccedilatildeo a uma meta Pode continuar a nos reger o haacutebito que herdamos de avaliar amar odiar erradamente mas sob o influxo do conhecimento

Gracy Kelly Bourscheid

103

crescente ele se tornaraacute mais fraco um novo haacutebito o de compreender natildeo amar natildeo odiar abranger com o olhar pouco a pouco se implanta em noacutes no mesmo chatildeo e daqui a milhares de anos talvez seja poderoso o bastante para dar agrave humanidade a forccedila de criar o homem saacutebio e inocente (consciente da inocecircncia) da mesma forma regular como hoje produz o homem tolo injusto consciente da culpa ndash que eacute natildeo o oposto mas o precursor necessaacuterio daquele (MAIHHI sect107)

O filoacutesofo considera o resgate da origem dos sentimentos morais como importante mecanismo para que o homem compreenda que o sentimento de culpa eacute um erro moral histoacuterico que o prejudica Em Humano demasiado humano I Nietzsche ainda natildeo indica objetivamente de que modo considera as accedilotildees humanas como totalmente necessaacuterias Essa noccedilatildeo ficaraacute mais clara a partir da concepccedilatildeo do filoacutesofo sobre a vida humana ou seja da vida enquanto vontade de potecircncia A definiccedilatildeo da vida enquanto vontade de potecircncia permitiraacute a compreensatildeo de que os impulsos responsaacuteveis pelas accedilotildees seguem sua constituiccedilatildeo natural de luta por expansatildeo Nessa dinacircmica portanto natildeo haacute escolha moral as accedilotildees seguem uma luta contiacutenua de busca por expandir-se De qualquer forma o apontamento acerca da irresponsabilidade sobre as accedilotildees em Humano demasiado humano I jaacute demonstra claramente a intenccedilatildeo do filoacutesofo em livrar o homem do sentimento de culpa Nietzsche nos indica que assim como a moralidade fez surgir o homem culpado o conhecimento da irresponsabilidade do homem sobre as suas accedilotildees permitiraacute o surgimento de um novo homem um homem saacutebio e inocente consciente de sua inocecircncia Se considerarmos a cultura como um processo dinacircmico de transformaccedilatildeo o homem moral o homem culpado poderaacute ser visto como precursor do homem inocente O surgimento desse novo homem desponta na perspectiva analisada em Humano demasiado humano I como uma meta

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

104

Referecircncias bibliograacuteficasFREZZATTI W A JR As noccedilotildees de histoacuteria na II Consideraccedilatildeo Extemporacircnea e em Humano demasiado humano In Cadernos Nietzsche vol 39 n 1 Satildeo Paulo janabr 2018NIETZSCHE Friedrich Wilhelm Humano demasiado humano Um livro para espiacuteritos livres Volume 1 12ordf reimp Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2017_____ Humano demasiado humano Um livro para espiacuteritos livres Volume 2 Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008REacuteE Paul A origem dos sentimentos morais Traduccedilatildeo de Andreacute Itaparica e Clademir Araldi Satildeo Paulo Editora UNIFESP 2018

Guilherme Freire da Costa

105

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch ndash Arte Filosofia e Ciecircncia na obra nietzschiana

Guilherme Freire da Costa1

ApresentaccedilatildeoUma vez Nietzsche afirmou que a profundidade de um filoacutesofo poderia ser medida

pelo tempo necessaacuterio para decifraacute-lo E o fato de estar aqui debruccedilado sobre outra possibilidade interpretativa jaacute natildeo seria um sintoma de criaccedilatildeo eternamente em devir Por outro lado existiria uma plenitude compreensiva Um encerramento de possibilidades e perspectivas Ou estamos fadados agraves configuraccedilotildees de nossa espaccedilo-temporalidade Do vir-a-ser em que nos tornarmos quem somos Seria a dinacircmica compreensiva apenas conjuntos de configuraccedilotildees contingentes das capacidades e tensotildees interpretativas Conjuntos derivados de forccedilas que se configuram e se destroem permanentemente nos corpos Enfim muitas questotildees Mas precisamos encaraacute-las vivenciaacute-las e interpretaacute-las se queremos honrar a superaccedilatildeo permanente

A primeira vez que tomei em matildeos seus mais notaacuteveis inteacuterpretes do seacuteculo XX forccedilas me conduziram agrave percepccedilatildeo de que se efetivava uma das previsotildees que Nietzsche havia deixado sobre si mesmo a da quarta parte do Zaratustra quando o filoacutesofo alematildeo se autocelebrou como asno ao se projetar nas expressotildees de homens superiores do porvir ndash Eram incapazes de sua obra presos por grilhotildees da tradiccedilatildeo idealista que tanto combateu E o que natildeo fariam da filosofia do Zaratustra Em sua projeccedilatildeo dos vindouros expressou a criaccedilatildeo de uma festa para celebrar a si mesmo como asno Nietzsche assim se celebrando havia se tornado um burro Sua filosofia ganhava interpretaccedilotildees mais baixas que a dos uacuteltimos homens Perdia-se promessa cultivo e realizaccedilatildeo do Uumlbermensch2

Natildeo vou aqui aprofundar o que compreendo sobre tornar Nietzsche um asno Para cada homem superior que assim o celebra no futuro que jaacute eacute passado seria necessaacuterio um estudo agrave parte e para cada tipo o que eacute impossiacutevel em espaccedilo tatildeo curto Aqui vou expressar um conjunto de forccedilas quantificado Seria possiacutevel expressar uma qualidade E mesmo que provisoriamente a posse de uma vontade de potecircncia Quero algo mais que o comentaacuterio sobre outrem Quero afirmar possibilidades proacuteprias tensotildees resultantes de meus estados fisioloacutegicos pois me sinto liberado em instintos sentimentos e interpretaccedilotildees 1 Programa de poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro2 Gostaria de assinalar que natildeo me agradam as expressotildees super-homem e aleacutem-do-homem A primeira natildeo por si

mesma mas pela degradaccedilatildeo que sofreu com a produccedilatildeo cultural desde princiacutepios do seacuteculo XX A segunda pelos perigos assinalados por Nietzsche diante de esperanccedilas e sentimentos ultraterrenos ou seja diante das promessas religiosas que necessitam negar vida e corpo para se imporem ao contrapocirc-los a uma promessa de aleacutem-mundo E apesar de ser do meu agrado a utilizaccedilatildeo do termo sobrehomem manterei a expressatildeo original cunhada por Ni-etzsche na maior parte do texto

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

106

para esse voo de superaccedilatildeo E o que mira meu arco teso ao atirar a flecha ndash Ferir a tradiccedilatildeo e potencializar condiccedilotildees ao cultivo e devir do Uumlbermensch Pretendo pois transmutar valores e funcionamentos das relaccedilotildees que se configuraram entre arte filosofia e ciecircncia afastando as tradicionais interpretaccedilotildees que sobrevalorizaram as artes subvalorizando as ciecircncias ou vice-versa

Entretanto natildeo tenho como algo fechado o que a seguir expressarei Senatildeo que se trata de um tentame de uma elevaccedilatildeo de suspeitas pessoais a dimensotildees de compartilhamento onde me beneficiarei por novas suspeitas que natildeo as minhas e que seratildeo expressas na linguagem de vocecircs Claro se me julgarem merecedor da potecircncia de suas forccedilas no esforccedilo interpretativo do que escrevo

Finalmente assinalo qual estiacutemulo me direcionou agrave construccedilatildeo textual aqui apresentada Foi a leitura de um artigo que me impulsionou transmutando ato intelectivo autossuficiente em vontade de compartilhar e de ser desafiado ao desafiar Nomeado O Mal do Mar em Nietzsche tem autoria do professor Charles Feitosa e foi publicado em 2003 no livro Assim Falou Nietzsche IV ndash A Fidelidade agrave terra3

Referecircncias para a efetivaccedilatildeo do UumlbermenschApoacutes ter sido tocado pelo artigo do professor Feitosa foi sua uacuteltima frase que

primeiro me tocou Percebi mais uma vez quanto se distanciam meus pensamentos das interpretaccedilotildees de grande parte da atualidade e do passado mas tambeacutem o quanto devo a elas Ao concluir seu texto afirma Feitosa que a Kinderland (terra das crianccedilas) nietzschiana seria ldquoldquouma utopia no sentido mais radical da palavra natildeo um sonho ou ideal impossiacutevel de ser realizado mas um lugar que natildeo existe aindardquordquo FEITOSA O Mal do Mar em Nietzsche in Assim Falou Nietzsche IV pag 332) Muito bem para mim esse lugar jaacute existia antes mesmo da vida ter vindo a ser ele estaacute aiacute desde sempre desde muito antes do aparecimento do homem Esse lugar seria o universo e soacute existe vida porque ele se efetiva em eterno movimento ndash E aqui expresso minha primeira particularidade ao pensar a superaccedilatildeo do homem a necessidade de experimentar vivecircncias no universo de estar vivendo e se movimentando em outras relaccedilotildees com a gravidade pois que efetivando deslocamentos ao voar para dentro do ceacuteu4

Voar para dentro do ceacuteu Sim e muito falta para tal conquista comeccedilando pela criaccedilatildeo de linguagem matemaacutetica que simbolize a capacidade corretiva para movimentos em altas velocidades de trajetoacuterias astronocircmicas Linguagem que necessita para vir a ser de criaccedilatildeo filosoacutefica e intermediaccedilatildeo da arte na geraccedilatildeo de meacutetodos cientiacuteficos O proacuteximo degrau A criaccedilatildeo de tecnologia a dar conta das necessidades nascentes de experimentaccedilatildeo do Uumlbermensch Jaacute iniciamos a conquista do universo por mais tosca que se efetive E jaacute poucos eleitos viveram em seus corpos breves temporalidades sem os efeitos do espiacuterito de gravidade Mas permanecemos muito afastados de deslocamentos velozes em grandes distacircncias de um grau miacutenimo de seguranccedila em dinacircmicas de sobrevivecircncia no cosmos

3 Cito o uacuteltimo paraacutegrafo do artigo de Feitosa ldquoO lsquomal do marrsquo pode agraves vezes ser o sintoma de uma nostalgia im-proacutepria por terra segura pela paacutetria a terra do pai [Vaterland] o lugar das certezas paradigmaacuteticas que nos ajudam a justificar a existecircncia Mas o lsquomal do marrsquo pode ser tambeacutem o elixir que vai nos deixar leves o suficiente para navegar ateacute a Kinderland literalmente a lsquoterra de crianccedilasrsquo terra de homens superiores um lugar onde tudo pode ser inventa-do A Kinderland de Zaratustra eacute uma utopia no sentido mais radical da palavra natildeo um sonho ou ideal impossiacutevel de ser realizado mas apenas um lugar que natildeo existe aindardquo

4 Refiro-me ao paraacutegrafo Antes do Nascer do Sol do Zaratustra onde em minha interpretaccedilatildeo Nietzsche aponta para a experimentaccedilatildeo necessaacuteria da vida leve como efetivaccedilatildeo e inocecircncia do Uumlbermensch Ou seja para que se efetive ele mesmo na realidade espaccedilo-temporal de seu corpo

Guilherme Freire da Costa

107

Pois bem em favor da compreensatildeo que afirma Nietzsche como precursor de tal necessidade para a efetivaccedilatildeo do Uumlbermensch gostaria de primeiro invocar trecircs momentos em sequecircncia de A Gaia Ciecircncia a uacuteltima frase do paraacutegrafo 123 ldquoldquoexiste alguma coisa nova na histoacuteria quando o conhecimento deseja ser mais que um meiordquordquo a primeira frase do paraacutegrafo 124 ldquoldquodeixamos a terra firme e subimos a bordo Destruiacutemos a ponte atraacutes de noacutes e mais destruiacutemos todos os laccedilos com a terra atraacutes de noacutesrdquordquo e todo o paraacutegrafo 125 onde destaco as seguintes passagens apoacutes afirmada a morte de Deus

Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro Que fizemos quando desatamos esta terra do seu Sol Para onde vai ela agora Para onde vamos noacutes mesmos Para longe de todos os soacuteis Natildeo estamos incessantemente a cair Para diante para traacutes para os lados em todas as direccedilotildees Natildeo sentimos na face um sopro frio Natildeo se tornou ele mais frio Natildeo anoitece eternamente Natildeo seraacute necessaacuterio acender os candeeiros logo de manhatilde

E conclui ldquoldquoChego cedo demais disse ele entatildeo o meu tempo ainda natildeo chegou Esse acontecimento enorme ainda estaacute a caminho e ainda natildeo chegou ao ouvido dos homensrdquordquo (NIETZSCHE A Gaia Ciecircncia paraacutegrafo 125)

Agora peccedilo que fechem os olhos e enxerguem nosso planeta como se estivessem leves envolvidos por energia escura e abandonados no cosmos Poderiacuteamos falar de horizonte Dispor das medidas usuais de quantificaccedilatildeo dos dias das estaccedilotildees climaacuteticas etc para mediccedilotildees de tempo Natildeo estariacuteamos em uma noite permanente enquanto em deslocamentos ultra velozes no universo Os candeeiros natildeo estariam acesos mesmo de dia

Avancemos aos discursos do Zaratustra agravequele intitulado Antes do Nascer do Sol Aqui jaacute temos o sentimento que o homem precisa ser superado e a percepccedilatildeo de que eacute agrave moral que se precisa fazer guerra E o que nos diz Nietzsche em sua vontade de superaccedilatildeo ao falar para o ceacuteu ldquoldquoLanccedilar-me agrave tua altura ndash eis a minha profundeza Ocultar-me em tua pureza ndash eis a minha inocecircncia O deus eacute encoberto por sua beleza assim escondes tuas estrelasrdquordquo E continua ldquoldquoE todo o meu caminhar e subir montanhas apenas necessidade recurso de um canhestro - somente voar deseja a minha vontade voar para dentro de tirdquordquo (NIETZSCHE Assim Falou Zaratustra paacutegs 156 e 157) Justamente por lhe faltar a condiccedilatildeo para a experimentaccedilatildeo do Uumlbermensch que depende de invenccedilotildees tecnoloacutegicas Nietzsche mira seu pensamento em outro alvo Natildeo percebendo possiacutevel se efetivar precisa entatildeo criar os valores que possibilitaratildeo seus herdeiros a finalizar as pontes que compreende necessaacuterias agrave superaccedilatildeo do homem O que exige elevar ao maacuteximo o que de melhor e pior deve ser cultivado nos homens de tipos superiores ou natildeo para que viva o Uumlbermensch Afinal toda a vida quer dar vazatildeo agrave sua forccedila seja ela uma promessa de futuro seja ela uma negaccedilatildeo da proacutepria vida ndash Tambeacutem o niilismo precisa encontrar sua expressatildeo mais potente

Compreendo pois que o centro de forccedilas da perspectiva filosoacutefica de Nietzsche venha a se configurar um duro e decisivo ataque agrave moral enquanto conjunto de elementos que interferem no cultivo do homem Valores e juiacutezos organizaccedilatildeo social e estatal instruccedilatildeo tais movimentos satildeo esmiuccedilados e em seus modos cristatildeos e modernos combatidos Mas o centro se configura dinacircmico se deslocando atraveacutes de um fio condutor que nessa perspectiva vem a ser a superaccedilatildeo do homem E superaccedilatildeo que natildeo pode ser reduzida agrave

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

108

produtividade exclusiva do intelecto agrave consciecircncia que temos do mundo e de noacutes mesmos Natildeo Eacute preciso primeiro atacar o cultivo vigente do corpo pois eacute aiacute que Nietzsche reconhece o iniacutecio dos erros de razatildeo que se sucederam ao longo da histoacuteria Eacute quando o corpo se torna desvalorizado pela filosofia platocircnica e depois refutado pelo cristianismo que o homem passa a correr grande risco de extinccedilatildeo

Tambeacutem natildeo podemos esquecer que a ciecircncia de seu tempo estaacute comeccedilando a engatinhar na direccedilatildeo da leveza e de novas tecnologias E Nietzsche reconhece a impossibilidade de abordar diretamente a realidade do Uumlbermensch passando a priorizar seus esforccedilos sobre a realidade corporal humana em suas configuraccedilotildees de forccedilas e combater erros que poderiam vir a efetivar o refreamento da superaccedilatildeo ou sua natildeo realizaccedilatildeo A sobrehumanidade era inalcanccedilaacutevel mas natildeo a moral que a coloca em risco

Uma uacuteltima citaccedilatildeo para mais uma vez iluminar a necessidade de vivecircncias no universo como condiccedilatildeo de devir do Uumlbermensch

Suponha que algueacutem frequentemente sonhe que estaacute voando e assim que comeccedila a sonhar se torna consciente da arte e da habilidade de voar como seu privileacutegio assim como sua felicidade mais particular e invejaacutevel - algueacutem assim que pensa poder negociar todo tipo de curvas e acircngulos com o menor impulso que conhece o sentimento de uma certa facilidade divina um ldquopara cimardquo sem tensatildeo ou forccedila um ldquopara baixordquo sem condescendecircncia ou rebaixamento - sem gravidade5

Nietzsche aponta para uma necessidade que deve se tornar sentida para o homem que nessa vida acorrentada agrave gravidade que experimentamos na Terra jamais conseguiremos vivenciar o Uumlbermensch quanto menos projetar a dimensatildeo das transmutaccedilotildees orgacircnicas fisioloacutegicas e valorativas que se sucederatildeo na leveza do cosmos E o primeiro movimento mesmo que ainda em sonhos eacute de linguagem na matemaacutetica atual superar o determinismo do caacutelculo tensorial e comeccedilar a pensar em um caacutelculo correcional transmutativo para deslocamentos seguros em altas velocidades e pronto para se corrigir diante das modificaccedilotildees de trajetoacuteria em funccedilatildeo de encurvamentos efetivados na proximidade de corpos massivos por menores que sejam Pois uma coisa eacute idealizar a partir de observaccedilotildees experiecircncias na mente ou reproduzi-las em ambientes controlados de laboratoacuterio outra eacute vivenciaacute-las efetivamente sem controle laboratorial6 Afinal tomando o encurvamento do espaccedilo-tempo quando da presenccedila de corpos se deslocando e estabelecendo relaccedilotildees com a energia escura ou outros corpos precisamos para o movimento seguro de um ponto a outro ter agrave disposiccedilatildeo caacutelculos que possibilitem quaisquer correccedilotildees para escapar do fim de toda continuidade de encurvamento espaccedilo-temporal Natildeo podemos para nos deslocarmos no espaccedilo-tempo escolher a trajetoacuteria sem essa consideraccedilatildeo inicial sob o risco de nos 5 Nietzsche F W Beyond Good and Evil Prelude to a Philosophy of the Future paragraph 193 Traduccedilatildeo de Judith

Norman New York Cambridge University Press 2002 ldquoSuppose someone frequently dreams that he is flying and as soon as he starts dreaming he becomes aware of the art and ability of flight as his privilege as well as his most particular most enviable happiness ndash someone like this who thinks he can negotiate every type of curve and corner with the slightest impulse who knows the feeling of an assured divine ease an ldquoupwardsrdquo without tension or force a ldquodownwardsrdquo without condescension or abasement ndash without heavinessrdquo (Posto em negrito e traduzido livremente por mim)

6 Aqui quero chamar a atenccedilatildeo para o caraacuteter observacional das cosmologias mais recentes que se contentam com muito pouco e acreditam encontrar verdades em deduccedilotildees antropomoacuterficas do que conseguem ver atraveacutes de lentes de aumento Para esses fiacutesicos (Hawking por exemplo) muitas vezes incensados e mais que incensados a leitura de Sobre a Verdade e a Mentira em Sentido Extramoral seria uma excelente opccedilatildeo de remeacutedio para a patologia metafiacutesica que expressam

Guilherme Freire da Costa

109

chocarmos com outro corpo ou de provocarmos a criaccedilatildeo de um buraco negro que nos absorveraacute7

Dito isso gostaria de colocar algumas questotildees e derivaccedilotildees se tomarmos como uma das tarefas assumidas por Nietzsche a transvaloraccedilatildeo de todos os valores e aleacutem se colocarmos essa transvaloraccedilatildeo na necessidade de estiacutemulo ao gecircnio da criaccedilatildeo artiacutestica-filosoacutefica-cientiacutefica dos elementos e eventos que levem o homem agrave superaccedilatildeo e ao desbravamento do universo natildeo estaria sua filosofia ainda capengando Jaacute natildeo deveriacuteamos ter alcanccedilado um grau de experimentaccedilatildeo muito superior ao que vivemos Sequer conseguimos estabelecer os primeiros entrepostos de suporte agrave continuidade do desbravamento do cosmos Temos uma estaccedilatildeo orbital que funciona apenas como ponto avanccedilado de pesquisa Natildeo fizemos quase nada E por que Talvez pela falta de combatentes De filoacutesofos que legislem Estariam os uacuteltimos homens pendendo muito para o senso comum ao inveacutes de se almejarem homens superiores Promovemos sentimentos e valoraccedilotildees para a derrocada da arte filosofia e ciecircncia Natildeo parece que faltam uacuteltimos homens superiores Ou Filoacutesofos com vivecircncias nos meios onde se tomam decisotildees e se estabelecem finalidades transitoacuterias das pesquisas de ponta Natildeo estaacute o mais frio de todos os monstros frios abandonado agraves forccedilas dos mais mesquinhos tipos de homem E que tais tipos jamais promoveratildeo a superaccedilatildeo permanente pois sequer enxergam ou desejam o Uumlbermensch

Na presenccedila de tais questotildees natildeo podemos nos eximir noacutes filoacutesofos de nossos atos e escolhas tambeacutem do que vem a se efetivar como nossos pensamentos Nos escondemos nas universidades e falamos para um puacuteblico cada vez mais restrito fugimos do combate franco contra forccedilas promotoras da manutenccedilatildeo dos uacuteltimos homens ndash os que mais duram Natildeo afirmou Nietzsche que o cientista ndash ou homem da ciecircncia ndash natildeo passa de um instrumento a ser utilizado pelas matildeos de outros homens os que possuem e projetam o conhecimento das possibilidades e necessidades de superaccedilatildeo em cada transitoriedade das gradaccedilotildees da vida E tais homens deveriam ser os filoacutesofos natildeo investidores poliacuteticos ou militares esses vivem em perspectivas curtas de visatildeo e em interesses especiacuteficos que longe se encontram do Uumlbermensch em sua significaccedilatildeo mais profunda Que digo Sequer conseguem percebecirc-lo quanto mais pensaacute-lo Precisamos nos colocar na vanguarda de uma reorganizaccedilatildeo sociopoliacutetica que decirc vazatildeo agraves potencialidades da filosofia nietzschiana Soacute assim conseguiremos acelerar as pesquisas para que o Uumlbermensch entre em seus derradeiros niacuteveis de preacute-efetivaccedilatildeo

Ultimas Suspeitas ndash Relaccedilotildees e Hierarquias entre Arte Filosofia e CiecircnciaExpressei algumas primiacutecias do Uumlbermensch Insisto no homem presente e

potencializo as tensotildees entre suas relaccedilotildees afirmaccedilotildees e reaccedilotildees existenciais suas accedilotildees 7 Poreacutem tambeacutem pode haver a possibilidade de um buraco negro nada mais ser que a passagem de um universo a

outro em ampliaccedilatildeo que pode ser pensada e quem sabe um dia testada diante da esteacutetica do multiverso Acredito pessoalmente que existam muacuteltiplos universos e que os buracos negros sejam os canais de transferecircncia de grandes quantidades de forccedilas responsaacuteveis pelos movimentos expansivos e de retraccedilatildeo que ocorrem Ora se o nuacutemero de universos se manteacutem constante pode ser que jamais entremos em um processo de retraccedilatildeo podendo entatildeo trabalhar a superaccedilatildeo permanente com o sentimento tranquilizador de eternidade Se eles por outro lado continuarem a ser criados pode ser que a energia se torne insuficiente e que acabem por iniciarem processos de retraccedilatildeo e colapso de alguns desses universos Da minha parte acredito que colapsos e criaccedilotildees satildeo a regra constante Para que uns se ex-pandam outros tem que se colapsar e pensar em um iniacutecio ou fim dessa dinacircmica eacute perder o foco no que realmente vale a pena em valores vitais de existecircncia e potencializaccedilatildeo do conhecimento Nesse sentido seria muito mais interessante e mesmo frutiacutefero que pesquisaacutessemos modos de adentrarmos e vencermos os buracos negros visando descobrir por experiecircncia inuacutemeras possibilidades de dinacircmicas existenciais tanto em relaccedilatildeo aos movimentos desses muacuteltiplos universos como em relaccedilatildeo a noacutes mesmos interagindo com essas imensuraacuteveis possibilidades de forccedila

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

110

criativas e de cultivo e seus estaacutegios linguiacutesticos Para comeccedilar coloco algumas questotildees 1) se assumimos que estamos no niacutevel de uacuteltimos homens como nos afirmar e agir nessa realidade 2) Como a partir de tentativas permanentes de superaccedilatildeo estimular o outro a tambeacutem se superar permanentemente afastando do Uumlbermensch atavismos notadamente ideoloacutegicos e socioeconocircmicos 3) Tendo conquistado o equiliacutebrio espaccedilo-temporal entre grande e pequena razatildeo como conquistar a posiccedilatildeo8 de comando na tomada de decisotildees que estimulem uacuteltimos homens a se tornarem superiores mesmo em suas limitaccedilotildees E 4) como expandir exponencialmente a quantidade dos construtores de pontes assim como a qualidade dos meacutetodos de construccedilatildeo maximizando a eficiecircncia no uso de riquezas e forccedilas naturais9

Insisto o princiacutepio eacute assumir a impossibilidade experimental do Uumlbermensch nos faltam valores e tecnologia Precisamos nos liberar da interpretaccedilatildeo sobrevalorizada de noacutes mesmos e encontrar no passo atraacutes um degrau firme na escada E tendo apoio tensionar as pernas e preparar o grande salto aquele que vence a gravidade Poreacutem no processo de conquista dos graus de movimento precisaremos contar com certos elementos a serem inventados mesmo que natildeo possamos projetar neles a realidade sobrehumana Eacute pois pela perspectiva do ainda humano que se iniciam os estiacutemulos agrave criatividade e superaccedilatildeo O problema do valor dos valores e da hierarquia de forccedilas Nos colocamos em perigo talvez diante do maior de todos os perigos A metaacutefora nietzschiana de embarcar e abandonar a terra atraacutes de si se transforma em tentativas de abandonar a Terra caindo para noacutes Projetamos movimentos em velocidades jamais realizadas por isso a necessidade de se reescreverem os modos de expressatildeo matemaacutetica (caacutelculos) apoacutes reinventarmos os meios pelos quais criamos o se expressar (filosofia e arte) Abolimos o determinismo pois assumimos a perspectiva Agora jaacute podemos conquistar os caacutelculos para deslocamentos coacutesmicos e os cantos e danccedilas em um viver sem gravidade

Nossas melhores invenccedilotildees ndash arte filosofia e ciecircncia ndash agora transbordam em novas criaccedilotildees atuam para transformar nossa estupidez em riso e transmutar o riso em promessas e possibilidades de futuro Acreditamos por muitos seacuteculos no Ser ao inveacutes de no devir Na pretensatildeo de poder identificar e definir o Ser acabamos por utilizar medidas e materiais falsos impossiacuteveis para uma existecircncia como a nossa As linguagens e as loacutegicas das linguagens natildeo passam de antropomorfismos que se negam Soacute pela arte criaremos o riso que postula um abismo sem fundo soacute a filosofia com sua inventividade expressiva superaraacute a arte e elevaraacute o riso permitindo projetar contingencialmente um tipo de terra na profundeza sem fim soacute a ciecircncia com sua inventividade edificante concretizaraacute riso e terra permitindo que possamos repetir corrigindo movimentos e inventar o apoio que nos permita saltar Beleza conhecimento e praacutexis atuando em sucessotildees combinatoacuterias para transformar o riso que escarniava em riso de promessa e superaccedilatildeo e afastar o medo pelo rugir vitorioso da coragem de quem se abandona a si mesmo diante do desconhecido E mais uma vez no eterno retorno ampliado das condiccedilotildees e possibilidades de vivecircncias manifestarem-se gradaccedilotildees de suspeitas e escaacuternios que iniciam ciclos eternamente seguindo o fluxo do devir em seu superar-se Natildeo superamos de uma soacute vez o Ser e o

8 Posiccedilatildeo aqui significa a combinaccedilatildeo fluida e dinacircmica entre sentimento e consciecircncia9 Entendo aqui forccedilas e riquezas naturais de forma ampla ou seja tanto em referecircncia ao mundo-universo como ao

mundo-homem em processo de superaccedilatildeo

Guilherme Freire da Costa

111

eterno retorno do mesmo e do diferente10 Natildeo podemos superar capacidades de corrigir direccedilotildees e ampliar movimentos a cada ciclo

Mas ouccedilamos Zaratustra ao dormir e acordar ao meio-dia quando tensotildees entre grande e pequena razatildeo entre corpo e consciecircncia encontram um instante de perfeiccedilatildeo

Que aconteceu comigo Escuta O tempo voou embora Natildeo estou caindo Natildeo caiacute ndash escuta ndash no poccedilo da eternidade Que acontece comigo Silecircncio Sinto uma pontada ndash ai ndash no coraccedilatildeo No coraccedilatildeo Oh despedaccedila-te despedaccedila-te coraccedilatildeo apoacutes essa felicidade apoacutes essa pontada ndash Como O mundo natildeo se tornou perfeito nesse instante (NIETZSCHE Assim Falou Zaratustra paacuteg 263)

E Zaratustra volta agrave sua caverna laacute encontrando os homens com quem cruzou durante o dia Seriam homens superiores Sim superiores no desespero no grito de socorro que ecoa entre uacuteltimos homens Esperava por seus filhos mas malogrados e homens pathos-loacutegicos subiram agrave caverna Ainda natildeo se configuravam as forccedilas que fariam Zaratustra descer uma uacuteltima vez para junto dos homens Quis as aacutervores de vida das suas forccedilas e mais altos desejos Encontrou poeira e miseacuteria ndash encontrou desertos e seu mortal inimigo o espiacuterito de gravidade Precisaria criar aquilo que deseja Entatildeo crie Zaratustra e conclame o homem superior a desejar Crie canccedilotildees para seus hoacutespedes durante a ceia que oferece em sua caverna E deixe que o transformem em asno e celebrem uma festa O fazem em sua homenagem

E noacutes o que temos feito para superar o homem O que temos criado acima de noacutes Temos pelo menos as matildeos livres para criar Trancafiados em ilhas empoeiradas nos embrenhamos e nos perdemos em tensotildees inuacuteteis e disputas ideoloacutegicas disputas por um tipo de poder que sequer toca o mais elevado acontecer na dinacircmica global de superaccedilotildees e exerciacutecio de potecircncias Abrimos matildeo de nossas funccedilotildees mais nobres abrimos matildeo de noacutes mesmos Jaacute natildeo nos fazemos ouvir Em nossa esterilidade viramos motivo de piada para especialistas que deveriam estar submetidos agrave nossa vontade mais profunda que eacute vontade de superaccedilatildeo e vir-a-ser do Uumlbermensch ndash Temos ainda sauacutede para realccedilar nossas forccedilas e transbordaacute-las em mensuraccedilotildees de vontades de potecircncia De impocirc-las aos muitos demais e uacuteltimos homens Ou de arriscar a vida e jogar o jogo mesmo que ruim

O cientista segue seu fluxo sem superaccedilatildeo lucro e armas no mais do mesmo Deixamos a ciecircncia dominada por aacutevidos investidores poliacuteticos e militares mercenaacuterios Os piores comandam sociedades e destinos O que nos restou Retribuir desprezo com desprezo Temos deixado asnos interferirem na potecircncia de leotildees Para onde teraacute voado nossa altivez Para onde rastejado nossa prudecircncia Ah caros filoacutesofos de ontem hoje e amanhatilde o homem precisa ser superado e a noacutes cabe tomar as reacutedeas desse destino e impor as dinacircmicas tensionais desse movimento E como iniciar o processo Primeiramente abandonando disputas ideoloacutegicas abandonado a proacutepria ideologia para que poliacuteticos e muitos demais se imiscuam sozinhos na lama ateacute que por fim se afoguem em suas sujeiras O mundo natildeo possui nem precisa de ideologia tambeacutem natildeo existe moral na natureza apenas forccedilas que precisam vir a ser hierarquizadas para que transbordem e se configurem em vontades cada vez mais profundas e potentes E uma expressatildeo se faz necessaacuteria 10 Afinal natildeo foi Zaratustra quem disse o eterno retorno do mesmo mas seus animais em moda de realejo Leia-se

O convalescente em Assim Falou Zaratustra Para Zaratustra o mesmo e o diferente caminham juntos ora um ora outro se efetivando de acordo com as hierarquias de forccedilas configuradas Pois se somente houvesse o eterno retorno do mesmo natildeo haveria superaccedilatildeo ou criaccedilatildeo e se soacute houvesse o diferente natildeo haveria retorno

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

112

que natildeo existe igualdade de forccedilas nem de vontades apenas hierarquias transitoacuterias Eacute pela valorizaccedilatildeo e estiacutemulo das diferenccedilas que poderaacute o homem vir a se superar Ou que pereccedilamos na igualdade de direitos e em disputas ou combates entre convicccedilotildees o estado simiesco nos aguarda se apresenta como nunca em possibilidade

Poreacutem se lutarmos pela superaccedilatildeo permanente poderemos criar expressotildees artiacutesticas a intermediar tensotildees entre filosofia histoacuterica e ciecircncias filosoacuteficas perspectivando interpretaccedilotildees transitoacuterias do conhecimento e suspeitando de qualquer expressatildeo efetivada Arte vivida como promessa do sublime mestra no rir de si e do mundo e intermediadora da cultura E noacutes filoacutesofos entre artistas e cientistas entre filoacutesofos que decidimos nos expressar enquanto preluacutedio e necessidade do Uumlbermensch natildeo apenas queremos mas devemos iluminar as primeiras efetivaccedilotildees dessa arte Precisamos cantar agraves futuras geraccedilotildees o valor da superaccedilatildeo permanente Como transmutados quase a habitar naves espaciais elencar e comandar os esforccedilos que levem agrave conquista do cosmos Basta de convicccedilotildees e ateacute mesmo de verdades Entramos na era da leveza e o corpo se faz imanecircncia tensatildeo e pluralidades transitoacuterias de hierarquizaccedilotildees de forccedilas

Uma uacuteltima afirmaccedilatildeo para decifrar eacute necessaacuterio tambeacutem ultrapassar superar Ou nas palavras do Zaratustra ldquoldquoretribuiacutemos mal a um professor se continuamos sempre alunordquordquo (NIETZSCHE Assim Falou Zaratustra paacuteg 75) Que tal pois comeccedilarmos a olhar para os seacuteculos XX e XXI e buscar nas obras dos grandes fiacutesicos e matemaacuteticos elementos do pensamento nietzschiano Como o tempo proacuteprio einsteiniano ou o princiacutepio da complementaridade de Niels Bohr

Guilherme Freire da Costa

113

Referecircncias bibliograacuteficas

FilosofiaNIETZSCHE F W Sobre a Verdade e a Mentira em Sentido Extramoral Traduccedilatildeo de Fernando de Moraes Barros Satildeo Paulo Editora Hedra 2012_____ Humano Demasiado Humano Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2017_____ Humano Demasiado Humano II Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008_____ Aurora Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2016_____ A Gaia Ciecircncia Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2012_____ A Gaia Ciecircncia Traduccedilatildeo de Jean Melville Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2010_____ Assim Falou Zaratustra Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2017_____ Aleacutem do Bem e do Mal Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003_____ Beyond Good and Evil Traduccedilatildeo de Judith Norman Nova Iorque Cambridge University Press 2002_____ Genealogia da Moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2017_____ Crepuacutesculo dos Iacutedolos Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006_____ Ecce Homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995BARRENECHEA M A Nietzsche e o Corpo Rio de Janeiro Editora 7 Letras 2017BERGMANN Peter Nietzsche The ldquoLast Anti-Political Germanrdquo Bloomington Indiana University Press 1987BLONDEL Eacuteric ldquoIntroductionrdquo IN NIETZSCHE F LrsquoAnteacutechrist Paris GF-Flammarion 1994CONILL Jesuacutes El poder de la mentira Nietzsche y la poliacutetica de la transvaloracioacuten Madrid Tecnos 1997 DELEUZE G Nietzsche and Philosophy Traduccedilatildeo de Hugh Tomlinson Nova Iorque Columbia University Press 2006FOUCAULT M Nietzsche Freud e Marx Traduccedilatildeo de Jorge Lima Barreto Satildeo Paulo Princiacutepio Editora 1997_____ Nietzsche a Genealogia e a Histoacuteria in A Microfiacutesica do Poder Traduccedilatildeo de Roberto Machado Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1999GENTILI Carlo Nietzsche Madri Biblioteca Nueva 2004HEIDEGGER M Nietzsche Vol I e II Traduccedilatildeo de David Farrell Krell San Francisco Harper amp Row 1991MARTON S Das Forccedilas Coacutesmicas aos Valores Humanos Satildeo Paulo Editora Brasiliense 1990

Fiacutesica e Matemaacutetica BORN M Einsteinrsquos Theory of Relativity New York Dover Publications 1965

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

114

EINSTEIN A Relativity The Special and General Theory Toronto Ancient Wisdom Publications 2010GAUSS K F Theory of the Motion of the Heavenly Bodies New York Dover Publications 1973HAWKING S The Theory of Everything The Origin and Fate of the Universe California Phoenix Books 2005HEISENBERG W The Physical Principles of the Quantum Theory Traduccedilatildeo de Carl Eckart e F C Hoyt Nova Iorque Dover Publications 1949KAUFMANN W J III Black Holes and Warped Spacetime Toronto Bantam Books 1980LOBACHEVSKY N Geometrical Researches on the Theory of Parallels New York Cosimo Inc 2007MAXWELL J C A Dynamical Theory of the Electromagnetic Field Oregon Wipf and Stock Publishers 1996RIEMANN B On the Hypotheses Which Lie at the Bases of Geometry Traduccedilatildeo de William Clifford Suiacuteccedila Editora Birkhaumluser 2016SCHROumlDINGER E Space-Time Structure Nova Iorque Cambridge University Press 1985

Hailton Felipe Guiomarino

115

Para que sofrer Acerca do problema do sentido do sofrimento

Hailton Felipe Guiomarino1

Este trabalho eacute uma versatildeo sinteacutetica de anaacutelises realizadas na pesquisa de mestrado a respeito da temaacutetica do sentido do sofrimento em Nietzsche Na tentativa de identificar um horizonte teoacuterico que perpassaria as reflexotildees de Nietzsche sobre sofrimento este trabalho avalia criticamente a posiccedilatildeo de trecircs inteacuterpretes que tentam determinar um conceito de sofrimento em Nietzsche Philip Kain (Nietzsche eternal recurrence and the horror of existence) cuja interpretaccedilatildeo se assenta na noccedilatildeo de ldquoterror e horror da existecircnciardquo retirada de O nascimento da trageacutedia Christopher Janaway (On the very idea of justifying suffering e Attitudes to suffering Parfit and Nietzsche) o qual centra-se no acircmbito das consideraccedilotildees psicoloacutegicas nietzschianas e Bernard Reginster (The Affirmation of Life Nietzsche on overcoming niilism) quem parte do conceito de vontade de poder para abordar o sofrimento Apesar de reconhecer os ganhos teoacutericos que cada inteacuterprete oferece para a compreensatildeo da filosofia de Nietzsche seraacute mostrado os impasses incontornaacuteveis no empreendimento de conceituar o sofrimento O motivo ndash e aqui o trabalho propotildee sua interpretaccedilatildeo alternativa ndash reside justamente no fato de que Nietzsche natildeo esteve preocupado com a conceituaccedilatildeo do sofrimento mas sim em pensar o seu sentido

1 A interpretaccedilatildeo de Philip KainEm seu artigo Nietzsche eternal recurrence and the horror of existence Kain reflete

sobre a noccedilatildeo de ldquoterror e horror da existecircnciardquo apresentada no capiacutetulo 3 de O nascimento da trageacutedia Essa noccedilatildeo se refere agrave sabedoria do Sileno segundo a qual seria melhor aos seres humanos nunca terem nascido ou jaacute o tendo morrerem o mais raacutepido possiacutevel A razatildeo eacute que entre mundo e ser humano natildeo haveria congruecircncia pois um natildeo se conformaria ao outro Tendo uma vez nascido o ser humano estaria fadado ao acaso e ao tormento de uma existecircncia passageira repleta de sofrimento sem sentido Essa seria a visatildeo horrorosa da existecircncia a qual instauraria uma tensatildeo conflituosa entre ser humano e mundo O primeiro eacute impelido sempre novamente pelo segundo a ter que inventar uma razatildeo para suportar a indiferenccedila cruel e riacutespida com que o movimento do vir-a-ser destroacutei tudo aquilo que existe

De acordo com o capiacutetulo 7 drsquoO nascimento da trageacutedia quem contempla a visatildeo terriacutefica de que o curso do vir-a-ser destroacutei tudo sem nenhum sentido redentor eacute levado a um instado de inaniccedilatildeo similar a Hamlet A este algueacutem enojaria a accedilatildeo pois entenderia que o ser humano eacute incapaz de modificar a eterna natureza padecente das coisas Restaria

1 Doutorando Instituiccedilatildeo Universidade federal do Paranaacute (UFPR)

Para que sofrer Acerca do problema do

116

entatildeo apenas mascarar esse conhecimento com alguma ilusatildeo mediante a qual se possa viver num mundo de tormentos irreparaacuteveis Para Kain no entanto Nietzsche estaria preocupado em romper com esse modus operandi ao buscar a possibilidade de afirmar o sofrimento sem sentido Eacute na noccedilatildeo de ldquoterror e horror da existecircnciardquo que estaria o marco fundamental da empreitada filosoacutefica nietzschiana Por isso o inteacuterprete sustenta que aquela noccedilatildeo possui ldquoum profundo efeito no seu [de Nietzsche] pensamento aliaacutes que ele natildeo pode ser adequadamente entendido sem olhar a centralidade desse conceitordquo (KAIN 2007 p50) O autor passa entatildeo a desdobrar suas consequecircncias filosoacuteficas para o pensamento do eterno retorno e do amor fati com foco para suas formulaccedilotildees nrsquoA gaia ciecircncia e em Ecce Homo

O que eacute importante destacar na interpretaccedilatildeo de Philip Kain eacute a presenccedila drsquoO Nascimento da Trageacutedia como referencial teoacuterico basilar da sua argumentaccedilatildeo Nesta obra Nietzsche trabalha de fato com uma noccedilatildeo de sofrimento entendido como ocorrecircncia destituiacuteda de sentido Trata-se de uma noccedilatildeo de sofrimento bastante peculiar que natildeo o define mas ao contraacuterio justamente lhe retira todo conteuacutedo Kain se aproveita dessa vagueza semacircntica para se deslocar indiscriminadamente pelas obras e conceitos de Nietzsche Isso que pareceria uma vantagem eacute na verdade o que prejudica sua interpretaccedilatildeo Os pressupostos teoacutericos da obra de 1872 pelos quais Nietzsche estabelece a ideia de um sofrimento sem sentido inerente ao vir-a-ser estatildeo embebidos de elementos metafiacutesicos que o filoacutesofo rejeitaraacute jaacute a partir de Humano demasiado humano uma noccedilatildeo schopenhauriana de efetividade mesclada a um modelo hegeliano de uma dialeacutetica constitutiva do mundo nos impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco (EH O nascimento da trageacutedia 1) Se Nietzsche ainda fala de sofrimento sem sentido por exemplo na terceira dissertaccedilatildeo da Genealogia da Moral natildeo eacute mais fundamentado num substrato metafiacutesico O filoacutesofo tem em 1887 no seu arcabouccedilo teoacuterico uma conjuntura natildeo metafiacutesica de pensamento a fisio-psicologia de seu tempo a morte de Deus e o meacutetodo genealoacutegico Aqui o sem-sentido natildeo adveacutem mais do fundo metafiacutesico de um suposto Uno-primordial mas do proacuteprio esvaziamento e descreacutedito do pensamento metafiacutesico A insistecircncia de Philip Kain em definir o sofrimento como ocorrecircncia sem sentido a partir irrestritamente dos pressupostos teoacutericos drsquoO nascimento da trageacutedia fica por isso bastante comprometida

2 A interpretaccedilatildeo de Christopher JanawayChristopher Janaway por sua vez se propotildee a discutir se Nietzsche estaacute de algum

modo engajado com um empreendimento teoacuterico de teodiceia que visa justificar a ocorrecircncia do sofrimento no mundo Em seu artigo On the very idea of justifying suffering (2017) o inteacuterprete sustenta que a reflexatildeo nietzschiana sobre o sofrimento se situa fora de uma tradiccedilatildeo que procurou justificar o sofrimento no mundo seja enquanto teodiceia seja como teleologia laica Considerando as consequecircncias da morte de Deus e conduzindo sua filosofia com um declarado pendor anti-moral Nietzsche abandonaria a questatildeo da significaccedilatildeo uacuteltima do sofrimento ndash ainda presente na ideia de uma justificaccedilatildeo esteacutetica da existecircncia ndash em favor da adoccedilatildeo de uma abordagem psicoloacutegica que particulariza a ocorrecircncia do sofrimento Assim Nietzsche passaria a indagar pelo valor do sofrimento relativamente agraves vivecircncias de um indiviacuteduo e natildeo mais por um valor em-si

Apoacutes delinear a reflexatildeo nietzschiana no acircmbito psicoloacutegico Janaway em Attitudes to suffering Parfit and Nietzsche (2016) apresenta um Nietzsche que recusa concepccedilotildees

Hailton Felipe Guiomarino

117

normativas e objetivas destinadas a definir um valor em si para o sofrimento2 Tomando por base o aforismo 338 drsquoA gaia ciecircncia o inteacuterprete entende que isoladamente o sofrimento natildeo eacute objeto das reflexotildees de Nietzsche Natildeo haveria algo que isoladamente fosse intrinsecamente produtor de sofrimento nem que fosse mal Apenas dentro da interconexatildeo orgacircnica das vivecircncias de um indiviacuteduo o sofrimento poderia ser devidamente apreciado Na economia subjetiva das vivecircncias algo pode vir a valer como sofrimento e assumir um valor positivo ou negativo conforme puder ser assimilado pelo indiviacuteduo No interior da narrativa de uma vida pessoal o sofrimento poderia ensejar o a potencializaccedilatildeo das forccedilas de um indiviacuteduo pela superaccedilatildeo de adversidades Janaway (2016 p13-18) cunha a expressatildeo ldquocrescimento atraveacutes do sofrimentordquo (growth throught suffering) para mostrar como o sofrimento pode reconfigurar as atitudes e o entendimento de um indiviacuteduo de um modo que seja significativo para este Janaway tem em vista fenocircmenos como desenvolvimento da autonomia do aprendizado a obtenccedilatildeo de profundidade teoacuterica o aprimoramento de capacidades pessoais aleacutem do desenvolvimento de um senso de autodisciplina para estabelecer metas pessoais de vida (idem p 15)

Natildeo obstante sua criatividade e agudeza conceitual o perigo da argumentaccedilatildeo de Janaway consiste em transparecer a ideia de que ao rejeitar uma normatividade moral ou metafiacutesica Nietzsche se situaria imediatamente e tatildeo somente no restrito acircmbito de consideraccedilotildees psicoloacutegicas sobre o sofrimento Ao entender as muacuteltiplas ocorrecircncias do sofrimento (dor fiacutesica sentimentos de culpa desgosto perda solidatildeo desapontamento doenccedila revezes catastroacuteficos etc) somente na medida em que podem ser traduzidas para uma semacircntica psicoloacutegica Janaway perde de vista que Nietzsche tambeacutem desenvolveu 1) consideraccedilotildees histoacutericas sobre o sofrimento Por exemplo no aforismo 18 de Aurora ao mostrar que na eacutepoca da ldquomoralidade do costumerdquo o sofrimento era indispensaacutevel para agradar aos deuses e com isso conseguir a prosperidade da comunidade Aqui natildeo havia qualquer preocupaccedilatildeo em buscar um sentido para o sofrimento nas vivecircncias de um indiviacuteduo 2) consideraccedilotildees fisioloacutegicas como aquelas encontradas nos prefaacutecios de 1886 no aforismo 370 drsquoA gaia ciecircncia e na anaacutelise do sacerdote asceacutetico 3) por fim tambeacutem consideraccedilotildees esteacuteticas e artiacutesticas como aquelas ligadas ao tema da criaccedilatildeo em Assim falou Zaratustra ou agrave estilizaccedilatildeo da narrativa de si feita em Ecce Homo na qual Nietzsche confere um sentido para o seu sofrimento enquanto destino da humanidade

3 A interpretaccedilatildeo e Bernard ReginsterJaacute Bernard Reginster em seu livro The Affirmation of Life Nietzsche on overcoming

niilismo (2008) nas seccedilotildees dedicadas a expor o que entende por ldquoeacutetica do poderrdquo (p 176-196) elabora uma definiccedilatildeo de sofrimento em Nietzsche com base na noccedilatildeo de vontade de poder e em remissatildeo ao projeto de transvaloraccedilatildeo de todos os valores O inteacuterprete sustenta que identificar o valor positivo do sofrimento constitui o foco do projeto nietzschiano da transvaloraccedilatildeo Pois tomando como base em BM 225 e GC 338 e HH I 235 o caraacuteter distintivo da moral que Nietzsche critica seria a condenaccedilatildeo intransigente do sofrimento ao valoraacute-lo como necessariamente mal como ldquoobjeccedilatildeo agrave existecircnciardquo Desse modo mostrar que Nietzsche ressignifica o sofrimento e o reveste com um valor positivo seria na interpretaccedilatildeo de Reginster o preacute-requisito para realizar a transvaloraccedilatildeo (idem p 229-235)

2 O ponto de vista de Christopher Janaway apresentado neste paraacutegrafo tambeacutem eacute apresentado no seu artigo citado anteriormente Todavia optou-se por considera-lo tal qual aparece no artigo de 2016 haja vista estar mais exten-samente desenvolvido neste uacuteltimo Natildeo obstante o outro artigo tambeacutem foi utilizado para sopesar alteraccedilotildees na argumentaccedilatildeo e efetuar comparaccedilotildees em vista de explicitar melhor a interpretaccedilatildeo de Janaway

Para que sofrer Acerca do problema do

118

A base teoacuterica desta ressignificaccedilatildeo estaria na hipoacutetese da vontade de poder Nesta uma forccedila busca sempre superpotencializar o seu grau de poder Para tal ela requer outra forccedila que lhe oponha resistecircncia O aumento do poder viria da superaccedilatildeo dessa resistecircncia na dominaccedilatildeo da forccedila opositora Reginster define o sofrimento como sendo precisamente esta resistecircncia que uma forccedila encontra na sua busca por ampliaccedilatildeo de poder (idem p 177) Outras variantes dessa definiccedilatildeo trazem as seguintes formulaccedilotildees sofrimento como ldquoa experiecircncia de resistecircncia agrave satisfaccedilatildeo dos desejosrdquo (idem p 233) e sofrimento como se referindo ldquoao desprazer que resulta da resistecircncia agrave satisfaccedilatildeo de nossos desejosrdquo (idem p 234)

A interpretaccedilatildeo do sofrimento como resistecircncia teria implicaccedilotildees eacuteticas que para Reginster estatildeo sinteticamente esboccediladas em AC sect2 ldquoO que eacute bomrdquo pergunta Nietzsche neste paraacutegrafo ldquotudo o que eleva o sentimento de poder a vontade de poder o proacuteprio poder no homemrdquo Em seguida continua ldquoO que eacute mau mdash Tudo o que vem da fraqueza O que eacute felicidade mdash O sentimento de que o poder cresce de que uma resistecircncia eacute superadardquo Para o inteacuterprete Nietzsche apresentaria aqui uma ldquoeacutetica do poderrdquo na qual o valor ldquobomrdquo eacute definido pela superaccedilatildeo da resistecircncia Assim se a elevaccedilatildeo de poder eacute valorada como boa entatildeo a resistecircncia tambeacutem precisa secirc-lo pois esta eacute condiccedilatildeo daquela Disso se segue que se resistecircncia eacute sofrimento entatildeo no registro teoacuterico da vontade de poder o sofrimento eacute valorado como bom Nesse registro teoacuterico jaacute ocorreria uma transvaloraccedilatildeo dos valores no tocante ao sofrimento Agora este natildeo eacute mais um mero complemento acidental ou condiccedilatildeo instrumental para a felicidade mesmo que concebida nos termos de uma eacutetica do poder Nas palavras de Reginster ldquoDo ponto de vista da eacutetica do poder o sofrimento natildeo eacute algo pelo qual sob as circunstacircncias deste mundo os indiviacuteduos tem que passar em vista de serem felizes mas ao contraacuterio eacute parte do que compotildee sua proacutepria felicidaderdquo (idem p 231)

O que eacute criticaacutevel na interpretaccedilatildeo de Reginster eacute o protagonismo teoacuterico que ele confere agrave sua definiccedilatildeo de sofrimento a fim de tornar possiacutevel a transvaloraccedilatildeo de todos os valores Natildeo parece ser assim que o proacuteprio Nietzsche pensou seu projeto No final de BM 225 o filoacutesofo diz que existem problemas mais elevados que prazer sofrimento e compaixatildeo Isso natildeo quer dizer que estes temas natildeo necessitem de consideraccedilotildees filosoacuteficas Quer dizer antes que coloca-los em primeiro plano eacute uma ingenuidade pois eles pressupotildeem questotildees mais substanciais O projeto da transvaloraccedilatildeo se voltaria entatildeo para o desmonte daqueles valores pelos quais foi imposto ao vir-a-ser algum tipo de teleologia a fim de denunciar sua proveniecircncia numa constituiccedilatildeo fisio-psicoloacutegica doentia que culpabiliza a existecircncia pela ocorrecircncia do sofrimento A criacutetica aos valores negadores da vida natildeo parece necessitar de uma re-conceituaccedilatildeo do sofrimento Pois o problema natildeo estaacute no sofrimento inerente ao vir-a-ser mas nos valores que o interpretam Isso mostra que Nietzsche natildeo estaacute preocupado com a conceituaccedilatildeo do sofrimento mas sim com o sentido que ele recebe numa dada interpretaccedilatildeo Eacute mais importante mostrar a falecircncia de um padratildeo interpretativo que necessitava buscar fora do mundo uma razatildeo metafiacutesica para redimir o sofrimento terreno Desfeita essa ilusatildeo soacute resta aprender a afirmar o sofrimento inerente ao mundo Se isto se faz por uma nova conceituaccedilatildeo do sofrimento essa eacute uma questatildeo secundaacuteria e que depende primeiramente do desmonte de antigos e perniciosos sentidos ideais para a existecircncia

No mais ao centrar sua definiccedilatildeo de sofrimento no conceito de vontade de poder a interpretaccedilatildeo de Bernard Reginster seria quando muito uma interpretaccedilatildeo sustentaacutevel

Hailton Felipe Guiomarino

119

apenas para o periacuteodo teoacuterico no qual Nietzsche reconfigura suas teses a partir do seu conceito interpretativo de todo acontecer Ler com essas lentes os pensamentos de Nietzsche sobre sofrimento anteriores ao periacuteodo do surgimento do conceito de vontade de poder e do projeto de transvaloraccedilatildeo se torna portanto insustentaacutevel e ilegiacutetimo

4 Da questatildeo do conceito para a preocupaccedilatildeo com o sentido do sofrimentoDiante das criacuteticas agraves interpretaccedilotildees acima apresentadas propotildee-se a interpretaccedilatildeo

segundo a qual os impasses de uma definiccedilatildeo conceitual de sofrimento em Nietzsche se devem a uma preocupaccedilatildeo filosoacutefica mais fundamental de seu pensamento a questatildeo do sentido do sofrimento a qual dificulta a conceituaccedilatildeo por razotildees de ordem fisio-psicoloacutegica3

Em uma anotaccedilatildeo pessoal o fragmento poacutestumo 14 [89] da primavera de 1888 Nietzsche apresenta aquilo que chamou de problema do sentido do sofrimento O pano de fundo da formulaccedilatildeo do problema eacute a contraposiccedilatildeo entre os simbolismos do deus Dioniso e do Crucificado A cada um satildeo imputadas valoraccedilotildees antagocircnicas da vida na medida em que respondem diferentemente ao sofrimento inerente ao movimento de vir-a-ser da proacutepria vida Nos termos do fragmento

Dioniso contra o ldquoCrucificadordquo aqui vocecircs tecircm a oposiccedilatildeo Natildeo eacute uma diferenccedila em termos de martiacuterio - eacute soacute que o mesmo tem um sentido diferente A vida mesma sua eterna fertilidade e retorno implica o tormento a destruiccedilatildeo a vontade de aniquilaccedilatildeo No outro caso o sofrimento o ldquocrucificado como inocenterdquo vale como uma objeccedilatildeo a essa vida como foacutermula de sua condenaccedilatildeo Decifra-se o problema eacute o do sentido do sofrimento ou um sentido cristatildeo ou um sentido traacutegico No primeiro caso ele deve ser o caminho para uma existecircncia bem-aventurada (selig) no uacuteltimo a existecircncia vale como suficientemente bem-aventurada (selig) para justificar uma imensa quantidade de sofrimentoO ser humano traacutegico afirma inclusive o sofrimento mais aacutespero eacute bastante forte pleno deificante para fazecirc-loO cristatildeo nega inclusive o mais feliz dos destinos sobre a Terra eacute bastante fraco pobre deserdado para sofrer ainda em toda forma de vidaldquoO Deus na cruzrdquo eacute uma maldiccedilatildeo contra a vida uma indicaccedilatildeo para libertar-se delaO Dioniso cortado em pedaccedilos eacute uma promessa de vida esta eternamente renasceraacute e da destruiccedilatildeo retornaraacute (eKGWB FP 1888 14 [89] traduccedilatildeo nossa)

Assim apresentados Dioniso e o Crucificado satildeo duas formas opostas de valoraccedilatildeo da vida a partir da interpretaccedilatildeo do sofrimento O deus grego ao simbolizar o movimento ciacuteclico de destruiccedilatildeo e criaccedilatildeo da vida seria o siacutembolo maior de afirmaccedilatildeo desta porque expressaria em maacuteximo grau o incessante movimento de renovaccedilatildeo da proacutepria vida Para que seja possiacutevel este movimento natildeo soacute eacute necessaacuterio mas desejaacutevel o sofrimento implicado na destruiccedilatildeo de tudo o que eacute O que equivale a dizer para que haja mudanccedila deve haver o 3 A temaacutetica do sentido do sofrimento enquanto horizonte teoacuterico comum das reflexotildees nietzschianas sobre sofrimen-

to foi abordada na dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada ldquoO problema do sentido do sofrimento em Nietzscherdquo Aqui limita-se a explicitar a temaacutetica tal como aparece no periacuteodo de 1886-1888 por julgar-se que aiacute Nietzsche apresenta as razotildees pelas quais natildeo um ou outro sentido do sofrimento eacute problemaacutetico mas o ato mesmo de dar sentido ao so-frimento eacute em si problemaacutetico Com isso o tema do sentido se destacaria como a preocupaccedilatildeo geral de suas reflexotildees sobre o sofrimento

Para que sofrer Acerca do problema do

120

perecimento de um estado estaacutevel sendo o sofrimento o colapso dessa estabilidade Desse modo no siacutembolo do Dioniso o sofrimento jaacute estaria justificado na e pela proacutepria vida

Na contramatildeo o Crucificado simbolizaria a incapacidade de afirmar o sofrimento inerente ao movimento de vir-a-ser acabando por avaliaacute-lo como objeccedilatildeo agrave vida Em decorrecircncia desse movimento interpretativo construir-se-iam ideais que buscariam ocultar ou corrigir o vir-a-ser O ldquoDeus na cruzrdquo seria seu exemplo por excelecircncia na medida em que supotildee a ficccedilatildeo de um aleacutem-mundo considerado perfeito eterno estaacutevel e indolor Medindo a vida a partir desse ideal o sofrimento ganha um sentido Ele deve ser um instrumento para alcanccedilar aquela existecircncia num aleacutem-mundo Isto eacute o sofrimento rdquodeve ser o caminho para uma existecircncia bem-aventurada (selig)rdquo Somente assim ele justifica a existecircncia O sentido do sofrimento apontado pelo ideal torna a vida suportaacutevel porque ela seraacute compensada numa existecircncia no aleacutem Desse modo a vida natildeo eacute afirmada mas meramente aceita

Em ambos os casos o sofrimento eacute colocado como instacircncia decisiva para avaliaccedilatildeo da vida A resposta que se daacute ao sofrimento inerente ao movimento do vir-a-ser seraacute ou um sentido cristatildeo ou um sentido traacutegico No aforismo 370 drsquoA gaia ciecircncia Nietzsche jaacute havia trabalhado com a noccedilatildeo de que toda filosofia e toda arte pressupotildee sofredores e satildeo efetivamente a resposta idiossincraacutetica destes em relaccedilatildeo ao sofrimento inerente agrave vida Esse tipo de consideraccedilatildeo eacute no entanto introduzida fundamentalmente um ano antes nos prefaacutecios de 1886 Neste conjunto de textos em particular nos paraacutegrafos 2 e 3 do prefaacutecio a A gaia ciecircncia Nietzsche trata de filosofias que manifestam em suas proposiccedilotildees ou sauacutede ou doenccedila Ele passa a indagar natildeo mais pela verdade ou falsidade de um pensamento mas pela sua sauacutede ou doenccedila Interessa ao filoacutesofo saber sob que condiccedilotildees vitais uma dada interpretaccedilatildeo foi engendrada e que anseios ela visa responder Em 1887 Nietzsche prossegue esse modo de questionamento Ele o transforma numa ldquoheuriacutestica da necessidaderdquo e esquematiza expressotildees filosoacuteficas e artiacutesticas que nascem da superabundacircncia ou do empobrecimento de vida (GC 370) e o utiliza tambeacutem como parte do meacutetodo genealoacutegico para sondar as condiccedilotildees de emergecircncia da interpretaccedilatildeo asceacutetico-sacerdotal do sofrimento (GM III)

Esses textos de 1886-87 testemunham a preocupaccedilatildeo de Nietzsche em buscar no sofrimento a necessidade que comanda por traacutes de uma resposta saudaacutevel ou doente A terceira dissertaccedilatildeo da Genealogia da moral eacute decisiva a esse respeito Ela explicita a gecircnese de uma interpretaccedilatildeo asceacutetica do sentido De posse dela Nietzsche conhece as condiccedilotildees fisioloacutegicas pelas quais um sentido ideal eacute produzido Ela eacute obrigada a se posicionar ante a incontornaacutevel realidade do sofrimento sem sentido Eacute para domaacute-lo de alguma maneira que o ser humano eacute levado a instaurar um sentido A falta de sentido por sua vez eacute um problema imperioso que surge a partir do marco existencial da morte de Deus Quando as instacircncias suprassensiacuteveis natildeo mais podem ser consideradas paracircmetros de valor para auferir o sentido da existecircncia resta apenas a proacutepria vida terrena Na totalidade desta eacute o sofrimento o ponto crucial que decidiraacute o valor da vida e o sentido da existecircncia pois eacute ele que decidiraacute em uacuteltima instacircncia a continuidade de um indiviacuteduo na vida pela afirmaccedilatildeo dionisiacuteaca desta ou sua fuga dela num ideal

Preocupado com as condiccedilotildees fisio-psicoloacutegicas de surgimento das interpretaccedilotildees natildeo interessa tanto a Nietzsche saber como um pensador conceitua algo nem a verdade do conceito mas porque e para que ele precisa conceituar do modo como o faz Esta

Hailton Felipe Guiomarino

121

preocupaccedilatildeo com o ldquopara querdquo com a meta e a proveniecircncia eacute a preocupaccedilatildeo com o sentido Desse modo o sentido natildeo eacute uma questatildeo secundaacuteria que dependeria da conceituaccedilatildeo mas o contraacuterio O conceito dependeraacute das necessidades oriundas de constituiccedilotildees fisio-psicoloacutegicas especiacuteficas A necessidade (Beduumlrfnis) seraacute decisiva para determinar tanto a forma do sentido do sofrimento ideal ou fluido como para determinar o proacuteprio conteuacutedo desse sentido E isto justamente porque a necessidade seraacute entendida por Nietzsche como sendo ou um sintoma de fraqueza ou de forccedila fisio-psicoloacutegica Isso incide diretamente na questatildeo se o sofrimento eacute por exemplo algo a ser evitado ou apropriado como estimulante se eacute um aspecto horroroso a ser abolido ou obstaacuteculo que a vontade de poder busca para sua auto-superaccedilatildeo se seraacute moralizado como puniccedilatildeo asceacutetica ou se seraacute inocentado e estetizado Com esse olhar Nietzsche eacute mais um diagnosticador que um conceituador Eacute mais fundamental para ele responder a perguntas como que condiccedilotildees vitais impelem que o sofrimento seja interpretado a partir de uma instacircncia suprassensiacutevel E consequentemente que tipo de vida se constitui a partir dessa necessidade

Diante disso sustenta-se que a disparidade interpretativa encontrada nos inteacuterpretes analisados se deve ao fato de que Nietzsche natildeo estaacute preocupado com a conceituaccedilatildeo do sofrimento mas sim com o problema do seu sentido Natildeo se afirma com isso que natildeo haja um conceito de sofrimento em Nietzsche ou que seja impossiacutevel elaborar um Defende-se isto sim que essa empreitada precisa passar pela temaacutetica do sentido do sofrimento pois ela aponta para um perspectivismo interpretativo ligado agraves condiccedilotildees fisiopsicoloacutegicas de resposta ao sofrimento o que impossibilita uma definiccedilatildeo uacuteltima

Para que sofrer Acerca do problema do

122

Referecircncias bibliograacuteficasJANAWAY Christohper Attitudes to suffering Parfit and Nietzsche In Inquiry Na Interdisciplinary Journal of Philosophy v 60 n1-2 p 66-95 2016_____ On the very ideia of ldquojustifying sufferingrdquo In Journal of Nietzsche Studies v 48 n 2 p 152-170 2017KAIN Philip Nietzsche the eternal recurrence and the horror of existence In The Journal of Nietzsche Studies n 33 p49-63 2007NIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2012_____ Aleacutem do bem e do mal Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2005_____ Aurora Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2016_____ Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB) Disponiacutevel em lt httpwwwnietzschesourceorgeKGWB gt_____ Humano demasiado humano Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2006_____ Ecce homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995_____ Fragmentos poacutestumos volumen IV (1885-1889) Traduccedilatildeo de Juan Luis Vermal e Joan B LLinares Madrid Tecnos 2008_____ Genealogia da moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ O anticristo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007_____ O nascimento da trageacutedia Traduccedilatildeo de J Guinsburg Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992REGINSTER Bernard The affirmation of life Nietzsche on overcoming niilism Estados Unidos Harvard University Press 2008

Isabella Vivianny Santana Heinen

123

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche O uacuteltimo homem e o aleacutem-do-homem

Isabella Vivianny Santana Heinen1

Este ensaio pretende desenvolver uma possibilidade de interpretaccedilatildeo do uacuteltimo homem e do aleacutem-do-homem atraveacutes da perspectiva criacutetica das constituiccedilotildees morais estabelecidas por Nietzsche na sua fase madura especificamente na obra Assim Falou Zaratustra Em tal obra Nietzsche faz uso de uma nova forma de escrita Inovadora ateacute mesmo no que se refere ao estilo aforismaacutetico adotado a partir de Humano demasiado humano Todavia eacute importante atentar para o fato de haver certo caacutelculo temaacutetico no que se refere a estes escritos com respeito agrave Assim Falou Zaratustra Eacute no final do quarto livro ndash e inicialmente uacuteltimo ndash de A Gaia Ciecircncia que o filoacutesofo apresenta primeiramente o personagem Zaratustra De acordo com a compreensatildeo da estrutura da obra Assim Falou Zaratustra empreendida por Andreacutes Sanchez Pascual o personagem Zaratustra viveu no seacuteculo VI ac Destaca-se que Nietzsche ao usar essa figura persa procura se afastar tal qual no iniacutecio das raiacutezes da filosofia grega da tradiccedilatildeo racionalista socraacutetico-platocircnica Haacute uma conhecida menccedilatildeo de Nietzsche a esse tema em Ecce homo elucidando que Assim Falou Zaratustra eacute o primeiro a estabelecer a dicotomia entre Bem e Mal e por isso deve ser aquele que pode superar esta separaccedilatildeo Conforme observa-se

Natildeo se indagou de mim como se deveria indagar qual eacute justamente na minha boca na boca do primeiro imoralista o significado do nome Zaratustra de facto o que constitui a unicidade tremenda daquele persa na histoacuteria eacute precisamente o contraacuterio em relaccedilatildeo a mim Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal o mecanismo genuiacuteno na engrenagem das coisas ndash a translaccedilatildeo da moral em metafiacutesica da moral como forccedila causa fim em si eacute a sua obra Mas esta pergunta seria no fundo jaacute a resposta Zaratustra criou este erro pejado de consequecircncias fatais a moral por conseguinte deve tambeacutem ser o primeiro a reconhececirc-lo (NIETZSCHE 2003 p 27)

Com Zaratustra2 o filoacutesofo teria a intenccedilatildeo de explorar uma forma diferenciada de filosofia destacando atraveacutes deste singular personagem uma maneira de transgressatildeo a ideia moral e metafiacutesica de entendimento do mundo pois o proacuteprio arranjo deste livro indica sua construccedilatildeo por imagens narrativas progressotildees histoacutericas e inclusive por um fazer

1 Universidade do Estado do Paraacute2 Segundo Viesenteiner (2013) Nietzsche apresenta seus pensamentos filosoacuteficos sem valer-se de um modo sistemaacuteti-

co e padronizado por isso mesmo natildeo deve-se ler a obra ZaZA como uma doutrina ou ainda um modelo universal de determinaccedilatildeo moral do homem A obra precisa ser interpretada segundo sua proacutepria forma musical em que cada leitor encontra para si um caminho

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche o

124

poeacutetico Mais uma vez evidenciando o distanciamento de uma escrita ou um pensamento dogmaacutetico regados por uma loacutegica obstinada a atingir a verdade

Os argumentos impressos nessa obra refletem uma linguagem que natildeo tem como fundamento dizer a verdade ou revelar uma compreensatildeo conceitual do mundo mas proporcionar uma maneira de expressatildeo diferente do posicionamento do homem ocidental

Roberto Machado (1999) salienta que Nietzsche propunha uma nova forma de filosofar a partir de moldes antagocircnicos ao dos estabelecidos desde o racionalismo socraacutetico ou seja o filoacutesofo em questatildeo tratou de questotildees filosoacuteficas com uma nova forma de seriedade decorrente de sua discordacircncia com referecircncia a expressatildeo de um modo impositivo do racionalismo e da metafiacutesica A concepccedilatildeo da alegre ciecircncia expressa precisamente este aspecto ela se propotildee a associar o rigor cientiacutefico com a possibilidade experimental de formas e interpretaccedilotildees proacuteprias da arte tendo em vista a formulaccedilatildeo de novas possibilidades de interpretaccedilatildeo da efetividade

Em vista disso no Proacutelogo de Assim Falou Zaratustra Nietzsche por intermeacutedio do discurso empreendido pelo profeta assinala

Todos os seres ateacute agora criaram algo acima de si proacuteprios e voacutes quereis ser a vazante dessa grande mareacute e antes retroceder ao animal do que superar o homem Que eacute o macaco para o homem Uma risada ou dolorosa vergonha Exatamente isso deve o homem ser para o super-homem uma risada ou dolorosa vergonha Fizestes o caminho do verme ao homem e muito em voacutes ainda eacute verme Outrora fostes macacos e ainda agora o homem eacute mais macaco do que qualquer macaco (NIETZSCHE 2011 p 12)

O filoacutesofo nessa passagem nos permite fazer uma analogia entre o animal e o uacuteltimo homem no sentido de os entender como uma vazante que se intitula inferior que necessita criar algo sobre-humano por ser incapaz de superar a si mesmo

Deste modo o homem se comporta como um verdadeiro animal pois apesar de sua racionalidade age com toda a animalidade pois usa sua razatildeo como instrumento de destruiccedilatildeo de consumaccedilatildeo de uma mentalidade que visa o desenvolvimento normatizado de suas forccedilas naturais A exemplificaccedilatildeo dessa compreensatildeo de homem eacute explorada por Nietzsche em sua obra posterior Aleacutem do bem e do mal

No homem se encontram reunidos a criatura e o criador no homem estaacute a mateacuteria isto eacute o incompleto o supeacuterfluo isto eacute a argila o lodo o absurdo o caos mas no homem tambeacutem estaacute o sopro que cria que plasma isto eacute a dureza do martelo quer dizer o espectador a divina contemplaccedilatildeo do seacutetimo dia observai o contraste entre vossa compaixatildeo que eacute a revolta da ldquocriatura que haacute no homemrdquo isto eacute aquilo que deve ser plasmado estampado batido como o ferro afinado passado pelo fogo e purificado mdash aquilo que deve e eacute constrangido a sofrer e a nossa compaixatildeo (NIETZSCHE 1992 p 98)

Segundo esse ponto de vista o homem eacute caracterizado por Nietzsche como aquele capaz de criar de reinventar de organizar e tambeacutem provocar o caos isto eacute o homem natildeo possui uma definiccedilatildeo estaacutetica ele estaacute inserido em um campo interpretativo em que ora eacute um ora eacute outro ou ainda os dois ao mesmo tempo Seus atributos constituem um sistema de forccedilas que se rompem e se ligam afirmando assim seu movimento sua possibilidade de alteraccedilatildeo

Isabella Vivianny Santana Heinen

125

Este conflito no entanto antes de estabelecer uma contraposiccedilatildeo de cunho negativo instituir-se-ia como um estaacutegio de realizaccedilatildeo do homem E que para Nietzsche em Assim Falou Zaratustra a noccedilatildeo de homem jaacute expressava essas nuances conforme observa ldquoeacute uma corda atada entre o animal e o super-homem ndash uma corda sobre um abismo [] Grande no homem eacute ser ele uma ponte e natildeo um objetivo o que pode ser amado no homem eacute ser ele uma passagem e um decliacuteniordquo (NIETZSCHE 2011 p 13) Neste acircmbito o homem natildeo eacute definido ou conceituado tatildeo pouco eacute somente um estado limiacutetrofe Ele perpassa inuacutemeras variaccedilotildees entre sua constituiccedilatildeo humana cujo decliacutenio eacute compreendido como transiccedilatildeo tracircnsito pois Nietzsche sugere uma outra conotaccedilatildeo para essa proposiccedilatildeo ldquoAmo aquele que trabalha e inventa para construir a casa para o super-homem e lhe preparar terra bicho e planta pois assim quer o seu decliacutenio Amo aquele que ama a sua virtude pois virtude eacute vontade de decliacutenio e uma flecha de anseiordquo (NIETZSCHE 2011 p 13) Ou seja o processo do homem de maleabilidade eacute sua forccedila seu impulso de virtude seu decliacutenio eacute a chance de mostrar toda a sua grandeza

Em tal medida eacute exposto por Zaratustra um modo de rebaixamento indicado pela figura do uacuteltimo homem conforme podemos verificar nas seguintes passagens ldquo[] aproxima-se o tempo em que o homem jaacute natildeo daraacute agrave luz nenhuma estrela [] Aproxima-se o tempo do homem mais despreziacutevel que jaacute natildeo sabe desprezar a si mesmordquo (NIETZSCHE 2011 p 14) reitera em seguida ldquoa terra se tornou pequena entatildeo e nela saltita o uacuteltimo homem que tudo apequena Sua espeacutecie eacute inextinguiacutevel como o pulgatildeo o uacuteltimo homem eacute o que tem vida mais longardquo (NIETZSCHE 2011 p 14) Essas consideraccedilotildees acerca do uacuteltimo homem corroboram para a inferecircncia de que essa tipologia humana reverbera a espeacutecie mais nociva do homem pois impotildee sua existecircncia tanto na incapacidade de criaccedilatildeo quanto na incapacidade de reconhecer suas proacuteprias limitaccedilotildees por orgulhar-se de sua vida confortavelmente segura

Nietzsche destaca ainda que ldquoldquoNoacutes inventamos a felicidaderdquo ndash dizem os uacuteltimos homens e piscam o olho Eles deixaram as regiotildees onde era duro viver pois necessita-se de calor Cada qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega pois necessita-se de calorrdquo (NIETZSCHE 2011 p 14) Este homem manteacutem sua existecircncia nos pequenos prazeres na ideia de felicidade pautada em um ideal mediacuteocre de fixidez e ausecircncia de infortuacutenios Com isso o homem quer garantir sua proacutepria vida ao relacionar-se com outros de sua espeacutecie preservar sua existecircncia ao comunicar-se e essa relaccedilatildeo muacutetua eacute a mais simples e comum na vida em sociedade cujo cerne eacute a vida gregaacuteria habituando-se aos conceitos e valores jaacute instaurados

Felizmente o mundo natildeo se edifica sobre instintos em que o animal de rebanho apenas bonacheiratildeo encontra a sua estreita felicidade exigir que todo laquoo homem bomraquo um animal gregaacuterio tenha olhos azuis seja beneacutevolo tenha uma laquobela almaraquo ndash ou como deseja o Sr Herbert Spencer que se torne altruiacutesta seria tirar agrave existecircncia a sua caracteriacutestica maior significaria castrar a humanidade e fazecirc-la descer a uma miseraacutevel chinesice ndash E foi o que se tentou Eis o que justamente se denominou moral Nesse sentido Zaratustra chama aos bons ora laquoos uacuteltimos homensraquo ora o laquocomeccedilo do fimraquo acima de tudo considera-os como a mais prejudicial espeacutecie de homens porque levam avante a sua existecircncia tanto agrave custa da verdade como do futuro (NIETZSCHE 2000 p 17)

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche o

126

Essa figura nietzschiana expressa um homem sem anseios proacuteprios sem vontade de criaccedilatildeo uma figura rebaixada que para se desenvolver precisa sempre de uma constituiccedilatildeo democraacutetica capaz de determinar suas accedilotildees ou seja uma tipologia que encontra no estudo genealoacutegico de Nietzsche forma cabal no tipo escravo engendrado pela moral do escravo Este tipo toma fundamentaccedilatildeo praacutetica no homem gregaacuterio moderno pois em conformidade com Giacoia ldquoeacute nessa imbricaccedilatildeo entre a ideologia do igualitarismo uniforme e sua fundamentaccedilatildeo poliacutetico-religiosa pela moral cristatilde que se esclarece o significado da figura nietzschiana do ldquouacuteltimo-homemrdquordquo (GIACOIA 2002 p 18)

Este tipo nivela-se por depender do instinto gregaacuterio se auto-afirmando somente como integrante de uma coletividade a sua altivez soacute se estabelece em bando transferindo a causa de sua solidatildeo e anguacutestia a outros Este tipo amplamente criticado pelo filoacutesofo sente o pesar da vida moderna a frustraccedilatildeo da incapacidade que acredita ser provocada pelo sistema social em que eacute constituinte simplesmente natildeo se responsabiliza conforma-se Para ele a vida eacute isso mesmo

Neste sentido a perspectiva de interpretaccedilatildeo adotada no que tange a caracterizaccedilatildeo do uacuteltimo homem diz respeito a uma postura contraacuteria a afirmaccedilatildeo da vida proveniente do conflito com seu tempo que tem a moralidade e a razatildeo como forma de esgotamento Essa tipologia se desloca como defensora dos costumes e valores constituiacutedos pois alegra-se com as pequenas realizaccedilotildees do cotidiano se deixa subordinar pelas tarefas exigidas em sociedade pela aprendizagem fornecida e por sua vez natildeo consegue se distanciar das amarras da tradiccedilatildeo Age como se essa significasse a uacutenica forma possiacutevel de vida seu modo de manifestaccedilatildeo ocorre por conveniecircncia jaacute que natildeo consegue se organizar sem as determinaccedilotildees estabelecidas

O uacuteltimo homem por conseguinte reflete exatamente o homem da modernidade porque ele natildeo eacute capaz de rebaixar a si mesmo e verificar o que eacute baixo em sua proacutepria natureza Sendo justamente em funccedilatildeo disso que Nietzsche propotildee uma superaccedilatildeo deste homem e nos sugere o aleacutem-do-homem

Por isso conforme destaca-se Nietzsche indica o aleacutem-do-homem ldquoVede eu vos ensino o super-homem ele eacute este oceano nele pode afundar o vosso grande desprezordquo (NIETZSCHE 2011 p 12) Com isso avisa que o aleacutem-do-homem diferente do uacuteltimo homem natildeo depende de um consentimento ou auxiacutelio de uma figura suprema e sobrenatural que regule sua conduta e forma de manifestaccedilatildeo diante do mundo jaacute que toma a razatildeo como uma das variadas expressotildees da capacidade humana e natildeo como a absoluta dirigente do homem O ensinamento do aleacutem-do-homem evidencia sua grandiosidade por ensinar aos homens que natildeo precisam se basear em princiacutepios externos mas a partir de suas proacuteprias criaccedilotildees configuraccedilotildees e intervenccedilotildees

Zaratustra ao trazer variadas discussotildees agrave tona natildeo procura disciacutepulos no sentido tradicional do termo pois natildeo professa por impossibilidade efetiva nenhuma doutrina Ao fazer uso de expressotildees anaacutelogas a biacuteblia ele demonstra a sua forma de parodiaacute-la ldquoCompanheiros eacute o que busca o criador e aqueles que saibam afiar suas foices Destruidores seratildeo eles chamados e desprezadores de bem e malrdquo (NIETZSCHE 2011 p 18) Os disciacutepulos a quem ele se refere diferente da versatildeo biacuteblica natildeo precisam seguir um mestre poreacutem construiacuterem outras possibilidades interpretativas isto eacute ldquoaqueles que tambeacutem criem busca Zaratustrardquo (NIETZSCHE 2011 p 19) Por conseguinte superar a filosofia que prega a necessidade de um homem capaz meramente de reproduzir as suas leis e doutrinas eacute o primeiro vieacutes para a confirmaccedilatildeo do aleacutem-do-homem

Isabella Vivianny Santana Heinen

127

Nessa medida pode-se dizer que Nietzsche no Proacutelogo de Assim Falou Zaratustra interpreta a modernidade atraveacutes da configuraccedilatildeo do uacuteltimo homem como o periacuteodo crucial de decisotildees concernente ao propoacutesito da civilizaccedilatildeo pois com o aviso do decaimento moral e dos ensinamentos cristatildeos oferece margem para outras constituiccedilotildees valorativas circundantes a dois extremos o uacuteltimo homem que natildeo passa de um apequenado ou melhor em consonacircncia com o pensamento de Machado ldquoos que natildeo sabem o que eacute amor o que eacute criaccedilatildeo e o que eacute anseio ndash isto eacute tudo o que pode servir de ponte para o super-homem -rdquo (MACHADO 1999 p 54) E como reiteraccedilatildeo a essa tipologia nietzschiana cito Stegmaier

O ldquouacuteltimo homemrdquo de quem fala Zaratustra em sua terceira tentativa de aproximar o aleacutem-do-homem ao ldquopovordquo O ldquouacuteltimo homemrdquo eacute aquele que considera a destinaccedilatildeo uacuteltima do homem a de seu tempo portanto como a destinaccedilatildeo do homem em si e deste modo potildee termo agrave destinaccedilatildeo do homem em si mesmo em suas expectativas de uma ordenaccedilatildeo da vida Tratar-se-ia para Zaratustra (com foco nas expectativas vigentes no final do seacuteculo XIX) de uma ordenaccedilatildeo em que natildeo deveria haver nenhum sofrimento ndash nenhuma frieza nenhuma dureza nenhuma doenccedila nenhuma desconfianccedila nenhuma contradiccedilatildeo social nenhum domiacutenio ndash mas somente felicidade e diversatildeo (STEGMAIER 2009 p 32-33)

Ou seja o uacuteltimo homem eacute compreendido enquanto figuraccedilatildeo de um tipo proacuteprio da modernidade que se acalenta no seio de uma vida programada cuja vida eacute regada pelas pequenas felicidades por natildeo se considerar o sofrimento ou qualquer transposiccedilatildeo social que leve a uma desorganizaccedilatildeo pois este homem precisa ser enquadrado a uma rotina que lhe conceda ao final do dia a recompensa em forma de pequenas felicidades por ter cumprido todas as tarefas necessaacuterias para a regulaccedilatildeo da vida gregaacuteria

Enquanto que o outro extremo se configura na tipologia do aleacutem-do-homem Nos discursos de Zaratustra ldquoo super-homem eacute o sentido da Terra Que a vossa vontade diga o super-homem seja o sentido da Terrardquo (NIETZSCHE 2011 p 12) pretendendo que os homens obtivessem desejo de superaccedilatildeo que criassem algo superior a eles proacuteprios e se mantivessem fieacuteis a Terra De acordo com Nietzsche ldquona verdade um rio imundo eacute o homem Eacute preciso ser um oceano para acolher um rio imundo sem se tornar impurordquo (NIETZSCHE 2011 p 12) Salienta-se portanto que o aleacutem-do-homem natildeo eacute uma ideia redentora do mundo ele eacute um ensinamento para aqueles que natildeo se satisfazem com a pequenez do homem moderno

Nesse acircmbito Nietzsche anuncia o ensinamento do aleacutem-do-homem em oposiccedilatildeo ao uacuteltimo homem mas natildeo como figura do redentor ou como representaccedilatildeo divinizada tampouco como doutrinadora e sim como aquele detentor de uma assimilaccedilatildeo dionisiacuteaca do mundo apropriado para afirmar a vida a existecircncia apto a efetuar uma nova consideraccedilatildeo de cultura Destarte a ideia de aleacutem-do-homem condiz com a possibilidade de criar e superar a si proacuteprio pois se refere ao homem adequado para enfrentar a vida sem confortos metafiacutesicos estabelecidos com a finalidade de recusa das experiecircncias de tempo e tambeacutem de impulsos corpoacutereos

O aleacutem-do-homem assim eacute compreendido enquanto o renunciador do mundo supra-sensiacutevel e o afirmador da terra e da vida exatamente como elas se apresentam Ele concerne na vontade de criar de construir de transvalorar e afirmar a vida conquistando um modo diferente de interpretaccedilatildeo Por esse motivo compreende-se que o aleacutem-do-

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche o

128

homem delineia o ldquosentido da terrardquo como uma criacutetica impetuosa agraves concepccedilotildees metafiacutesicas e dogmaacuteticas do homem

Nesse acircmbito sua oposiccedilatildeo eacute contra uma configuraccedilatildeo moral que dita que qualquer outra configuraccedilatildeo moral que o homem eventualmente deseje para si natildeo eacute possiacutevel ou seja natildeo eacute possiacutevel criar alguma coisa eacute preciso que a moral crie regule determine uma possibilidade nova Vale salientar que Zaratustra natildeo apresenta o aleacutem-do-homem como uma configuraccedilatildeo capaz de governar o uacuteltimo homem jaacute que estes satildeo empreendidos enquanto tipologias

Portanto no proacutelogo de Assim Falou Zaratustra Nietzsche salienta dois aspectos importantiacutessimos o ensinamento do aleacutem-do-homem e a tipologia criacutetica do uacuteltimo homem O ensinamento do aleacutem-do-homem significa uma condiccedilatildeo ainda irrealizaacutevel poreacutem que engendra a possibilidade de refletir acerca de uma perspectiva distinta relacionada a autossuperaccedilatildeo a dinacircmica de ldquotornar-se o que se eacuterdquo atraveacutes de uma valorizaccedilatildeo da existecircncia A sua importacircncia estaacute em sublinhar o desafio da vida e ainda assim vivecirc-la com toda a forccedila necessaacuteria Por outro lado a figura do uacuteltimo homem eacute uma advertecircncia para a cultura moderna em que Nietzsche identificava um homem domesticado nivelado e impossibilitado de pensar acerca de si e de seu tempo por consequecircncia decadente

Tal anaacutelise eacute possiacutevel a partir da interpretaccedilatildeo nietzschiana da figura do uacuteltimo homem que elucida um tipo disciplinado e incrivelmente conformado com a crenccedila em uma tal felicidade Com efeito Nietzsche verifica a desqualificaccedilatildeo e deterioraccedilatildeo da vida por meio da moralizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo dos instintos que acarreta na precariedade formativa mas sua perspectiva criacutetica permite a indicaccedilatildeo de outras formas de vida para aleacutem da degenerescecircncia constituiacuteda

Segundo essas argumentaccedilotildees observa-se que Zaratustra na primeira parte da obra inicia um processo de ensinamento da superaccedilatildeo em contraposiccedilatildeo aos valores morais a Deus aos iacutedolos e a alma Indica de tal modo como possibilidade de oposiccedilatildeo a esses aspectos o sentido da terra como o elogio do corpo e de suas manifestaccedilotildees criadoras

Para confirmar esse posicionamento Nietzsche reforccedila

Que o vosso espiacuterito e a vossa virtude sirvam ao sentido da terra irmatildeos e que o valor de todas as coisas seja novamente colocado por voacutes Por isso deveis ser combatentes Para isso deveis ser criadores Sabendo purifica-se o corpo tentando com saber ele se eleva para o homem do conhecimento todos os instintos se tornam sagrados para o elevado a alma a alma se torna alegre (NIETZSCHE 2011 p 74)

Desse modo o sentido da terra indicado pelo filoacutesofo estaacute relacionado a possibilidade inerente do homem de criar valores de desenvolver mecanismos que digam respeito a sua proacutepria singularidade Isto eacute que os valores constituiacutedos sejam empregados por agentes criadores com posicionamentos que levem em consideraccedilatildeo a configuraccedilatildeo corpoacuterea capacitados a natildeo se submeter a uma medida universal embasada em uma racionalidade que serve de paracircmetro para todas as coisas

Nesse sentido Nietzsche mostra que a vida tem uma dinacircmica ininterrupta de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo prazer e desprazer bem e mal etc e esse movimento apenas eacute possiacutevel no sentido da terra no acircmbito de suas transformaccedilotildees De acordo com Nietzsche em Ecce homo Zaratustra

Isabella Vivianny Santana Heinen

129

[] diz natildeo actua por negaccedilatildeo perante tudo aquilo a que ateacute agora se disse sim e apesar de tudo pode ser o contraacuterio de um espiacuterito que diz natildeo do mesmo modo que o espiacuterito que aguenta o maior peso do destino uma fatalidade da missatildeo pode todavia ser o mais aacutegil e para aleacutem de tudo ndash Zaratustra eacute um danccedilarino ndash como o que tem a mais implacaacutevel a mais temiacutevel visatildeo da realidade que excogitou o laquopensamento mais abissalraquo natildeo encontra apesar de tudo objecccedilatildeo alguma contra a existecircncia nem se- quer contra o seu eterno retorno ndash pelo contraacuterio depara com mais um fundamento para ele proacuteprio ser o eterno sim a todas as coisas para ser o ingente e ilimitado sim e aacutemenraquo laquoA todos os abismos levo ainda o meu dizer sim fonte de becircnccedilatildeosraquo Eis poreacutem mais urna vez ainda a noccedilatildeo de Dioniso (NIETZSCHE 2003 p 28)

Zaratustra apresenta a possibilidade do dizer sim dionisiacuteaco tanto por destruir quanto por dar existecircncia desvincula-se portanto da dual concepccedilatildeo de mundo aparente e mundo verdadeiro ou ainda da oposiccedilatildeo entre corpo e alma

Eacute necessaacuterio perceber por conseguinte que na segunda parte de Assim Falou Zaratustra Nietzsche segue com o tema da autossuperaccedilatildeo compreendendo-a como desafio sugerindo a promoccedilatildeo da vontade criadora que apresenta a superaccedilatildeo como instrumento dinacircmico de sua accedilatildeo

A partir desses aspectos Nietzsche na seccedilatildeo Do homem superior acena

Os mais preocupados perguntam hoje ldquoComo conservar o homem rdquo Mas Zaratustra eacute o primeiro e uacutenico a perguntar ldquoComo superar o homem rdquo O super-homem me estaacute no coraccedilatildeo ele eacute o primeiro e uacutenico para mim ndash e natildeo o homem natildeo o proacuteximo natildeo o mais pobre natildeo o mais sofredor natildeo o melhor (NIETZSCHE 2011 p 272)

Pode-se dizer portanto que o ensinamento de superaccedilatildeo de Zaratustra natildeo tem a finalidade da conservaccedilatildeo e promoccedilatildeo do homem ao contraacuterio possibilita o aprendizado de como superar o homem e usar as adversidades concernentes a existecircncia como mecanismo de autossuperaccedilatildeo Zaratustra natildeo estaacute desconsiderando assim a dor e o sofrimento mas estaacute analisando-as como caraacuteter afirmativo da vida como possibilidade de aperfeiccediloamento e criaccedilatildeo

Por isso em continuidade a esta seccedilatildeo Nietzsche escreve

ldquoO homem tem de se tornar melhor e piorrdquo ndash assim ensino eu O pior eacute necessaacuterio para o melhor do super-homem Para aquele pregador da gente pequena pode ter sido bom que sofresse e carregasse o pecado do homem Eu poreacutem alegro-me do grande pecado como de meu grande consolo [] Oacute homens superiores julgais que estou aqui para reparar o que fizestes mal Ou que quero preparar leitos mais cocircmodos para voacutes que sofreis Ou mostrar veredas novas e mais faacuteceis a voacutes instaacuteveis perdidos e extraviados na montanha Natildeo Natildeo Trecircs vezes natildeo Cada vez mais e melhores homens de vossa espeacutecie deveratildeo perecer - pois as coisas deveratildeo ser cada vez mais duras e difiacuteceis para voacutes Somente assim cresce o homem ateacute as alturas em que o raio o atinge e despedaccedila alto o bastante para o raio (NIETZSCHE 2011 p 273-274)

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche o

130

Segundo esta anaacutelise para Nietzsche o homem precisa experimentar tanto as caracteriacutesticas que lhe satildeo mais vergonhosas quanto aquelas que lhe parecem mais virtuosas Ainda sobre isso Nietzsche acrescenta em Aleacutem do bem e do mal

Acreditamos que a insensibilidade o perigo a escravidatildeo que se encontram sempre na rua e nos coraccedilotildees a clandestinidade a austeridade toda classe de bruxarias tudo o que eacute mau terriacutevel tiracircnica tudo que existe no homem de animal predador ou de reacuteptil eacute da mesma forma que seu oposto uacutetil para elevar o niacutevel da espeacutecie humana (NIETZSCHE 1992 p 45)

Delineia-se por conseguinte que mais uma vez o filoacutesofo faz referecircncia a um tipo-homem natildeo idealizado imperfeito sujeito as mudanccedilas naturais de seu organismo e relaccedilatildeo entre os homens Os homens superiores satildeo interpretados por Nietzsche como aqueles que natildeo produzem que natildeo criam nada natildeo criam nenhuma possibilidade do novo estando absolutamente presos no dogmatismo da humanidade Zaratustra atraveacutes do grito de socorro encontra os homens superiores da modernidade que para ele esses homens satildeo na verdade esteacutereis

Isto posto considera-se que Nietzsche salienta uma forma incomum de percepccedilatildeo do homem natildeo tenta corrigi-lo ou alcanccedilar uma verdade universal sobre ele Ele indica a importacircncia de um processo de autossuperaccedilatildeo do homem em que valoriza tambeacutem os estaacutegios de existecircncia mais baixo Do mesmo modo fala aos homens superiores que seu anseio natildeo eacute trazer consolo nem evitar o sofrimento e muito menos corrigir aquilo que se concebe como erro Zaratustra salienta que eacute por meio da superaccedilatildeo de sua proacutepria enfermidade de sua proacutepria afliccedilatildeo e desventura que o homem consegue alcanccedilar o que se eacute

Isabella Vivianny Santana Heinen

131

Referecircncias bibliograacuteficasGIACOIA Oswaldo J Criacutetica da moral como poliacutetica em Nietzsche Disponiacutevel em lthttp httpwwwrubedopscbrartigosbcrimornthtmgt Acesso em 09 de Nov de 2012_____ O uacuteltimo homem e a teacutecnica moderna Revista Natureza Humana v1 n1 Satildeo Paulo jun 1999 _____ Nietzsche amp Para aleacutem de bem e mal Rio de Janeiro Jorge Zahar 2002MACHADO Roberto Nietzsche e a verdade 2ed Rio de Janeiro Rocco 1999_____ Zaratustra ndash trageacutedia nietzscheana Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001NIETZSCHE FW Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011_____ A genealogia da moral Petroacutepolis Trad Mario Ferreira dos Santos Rio de Janeiro Vozes 2009_____ A gaia ciecircncia 6 ed Lisboa Guimaratildees Editores 2000_____ Aleacutem do bem e do mal preluacutedio a uma filosofia do futuro Trad Paulo Cezar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992_____ Ecce homo Como algueacutem se torna o que eacute Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003STEGMAIER Werner Antidoutrinas Cena e doutrina em Assim falava Zaratustra de Nietzsche In Cadernos Nietzsche nordm 25 Satildeo Paulo 2009VIESENTEINER J L Nietzsche e a vivecircncia de tornar-se o que se eacute Campinas Satildeo Paulo Editora PHI 2013

O Poder do Riso em Nietzsche

132

O Poder do Riso em Nietzsche

Ivan Risafi de Pontes1

Vivo em minha proacutepria casaalgo de algueacutem jamais imitei e ndash de cada mestre debochei que de si mesmo natildeo debocha

(Inscrito sobre a minha porta Gaia Ciecircncia)

Ich wohne in meinem eignen HausHab Niemandem nie nichts nachgemachtUnd ndash lachte noch jeden Meister ausder nicht sich selber ausgelacht

(Uumlber meiner Haustuumlr Die froumlhliche Wissenschaft)

Na obra e pensamento filosoacutefico de Friedrich Nietzsche haacute um poder do riso que nos faz crer que a sua ausecircncia implica uma impotecircncia para viver Eacute possiacutevel afirmar que o riso em Nietzsche conteacutem em si um valor afirmativo da natureza humana Sob este ponto de vista o ato de rir eacute manifestaccedilatildeo dessa proacutepria natureza de suas forccedilas imaginativas de seus incontrolaacuteveis impulsos e de seus mais profundos instintos Rir de si e dos outros eacute portanto expressatildeo de poder Um poder cuja capacidade inerente eacute de preservaccedilatildeo e construccedilatildeo da vida e do mundo

Considere-se por outro lado que devemos ter em conta ao analisar essa capacidade particular do humano no contexto do pensamento de Nietzsche o impulso destrutivo contido em cada riso Pois tambeacutem nele o caraacuteter cultural de um povo encontra aleacutem da expressatildeo para sua identidade aquilo que eacute afastado como ridiacuteculo por meio de escaacuternio e da pilheacuteria da mesma forma que o indiviacuteduo o faz ao demonstrar sua particularidade na maneira e no objeto de seu riso Nestes termos emergem algumas questotildees seria possiacutevel estabelecer limites para o riso ou para a escolha de seu objeto Seria ateacute mesmo necessaacuterio determinar uma norma eacutetica e poliacutetica para a accedilatildeo dessa idiossincrasia do ser humano Quais seriam os elementos esteacuteticos e poliacuteticos que o riso manipula

Podemos afirmar indubitavelmente que o horizonte dessas questotildees nos eacute apresentado por Nietzsche em toda amplitude de sua obra Dos textos de sua juventude ateacute a maturidade de sua obra o riso de Nietzsche ecoa numa atmosfera de libertaccedilatildeo e

1 Universidade Federal do Paraacute

Ivan Risafi de Pontes

133

destruiccedilatildeo na qual as mais diversas tensotildees da vida se enfrentam para dar testemunho do caraacuteter afirmativo do viver Como quer que seja conceitos como Amor fati o dionisiacuteaco e o espiacuterito-livre incorporam em suas accedilotildees toda a gama da alegria da dor e da vontade de viver que o riso conteacutem em si

Com efeito a filosofia como reflexatildeo seacuteria que busca um distanciamento do senso comum reconheceu no riso uma fonte de conhecimento reveladora natildeo apenas de um caraacuteter moral determinante para a formaccedilatildeo do homem mas tambeacutem de um componente antropoloacutegico e filosoacutefico que se impotildee na reflexatildeo sobre o valor da vida e a capacidade humana de reconhecer o misteacuterio o invisiacutevel a vida e a morte Agrave luz das consideraccedilotildees precedentes podemos da mesma forma indagar ateacute que ponto eacute possiacutevel refletir sobre a existecircncia de um riso proacuteprio da filosofia em oposiccedilatildeo agravequele do senso comum um riso capaz de revelar tambeacutem o dom e a natureza proacutepria da filosofia Poderia portanto o riso estabelecer-se como um elemento de distinccedilatildeo filosoacutefica em contraposiccedilatildeo ao riso das multidotildees

Isto posto vejamos rapidamente um dos exemplos que a tradiccedilatildeo nos apresenta para contextualizarmos a dinacircmica do riso seu caraacuteter pilheacuterico e de ridicularizaccedilatildeo que em alguns casos pode alcanccedilar ateacute mesmo a hostilidade Tomemos com efeito a perspectiva da multidatildeo em relaccedilatildeo agrave vida contemplativa do filoacutesofo para num segundo momento nos concentramos no poder do riso filosoacutefico O caso de Tales nos eacute conhecido Ao cair num poccedilo por ter seu olhar voltado para a infinitude do universo e natildeo para as limitaccedilotildees do mundo que o cercava o filoacutesofo astroacutelogo eacute observado por uma camponesa traacutecia Vejamos como seu comentaacuterio zombeteiro sobre a situaccedilatildeo do filoacutesofo eacute fundamentado na sabedoria popular sobre o destino do filoacutesofo escutemo-lo ldquoeis aqui um homem que estuda as estrelas e natildeo pode ver o que estaacute aos seus peacutesrdquo O proacuteprio Platatildeo em Teeteto 147a testemunha a opiniatildeo da massa sobre o modo de vida do filoacutesofo e o riso pilheacuterico que a expressa lsquoQualquer pessoa que dedique sua vida agrave filosofia estaacute vulneraacutevel a esse tipo de escaacuterniohellip Toda a raleacute se juntaraacute agrave camponesa rindo dele hellip pois em seu desamparo ele parece um tolordquo

Na figura do Zaratustra de Nietzsche por outro lado podemos analisar como o filoacutesofo apropria-se do riso como um instrumento ndash sem necessidade de normatizaacute-lo ndash para fazer dele um produtor de valores que por sua vez datildeo suporte agrave criaccedilatildeo esteacutetica e agrave (des)construccedilatildeo poliacutetica de uma sociedade e de seu tempo O abandono daquele que foi objeto do riso da multidatildeo ndash que o vecirc como encarnaccedilatildeo da tolice e da ineacutepcia para viverndash ao ser transvalorado transforma-se num instrumento de afirmaccedilatildeo dos erros proacuteprios do filoacutesofo que natildeo acredita naquilo que se encontra sob seus peacutes ou agrave sua frente Apenas o filoacutesofo que enclausurado na solidatildeo de seu poccedilo eacute capaz de rir de sua queda ndash tendo consciecircncia que ser motivo de pilheacuteria para o vulgo eacute tambeacutem motivo de riso para si consegue apoderar-se do riso como um poder de transvaloraccedilatildeo O riso do filoacutesofo sobre aquilo que foi reconhecido como ridiacuteculo pela multidatildeo transforma o risiacutevel fonte de escaacuternio e zombaria em riso prazeroso diante da liberdade de viver e andar pelo mundo segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees Eacute nesse contexto que o descer de Zaratustra de sua montanha nos mostra o mesmo destino que tem Tales apoacutes sua queda em seu poccedilo A escuridatildeo de sua casa e a solidatildeo de seu isolamento satildeo o oposto da visatildeo de um universo infinito Rir de si mesmo eacute como visto apoderar-se do ridiacuteculo daquilo que a crueldade da maioria qualifica como despreziacutevel como erro em poucas palavras eacute apontar e reconhecer em sua fraqueza a maior de suas conquistas O inscrito que Nietzsche apresenta no umbral

O Poder do Riso em Nietzsche

134

de sua morada ao visitante de sua Gaia Ciecircncia nos ensina tambeacutem que aquele que natildeo ri de seu mestre nunca aprenderaacute a rir de si mesmo Ele nunca encontraraacute em suas fraquezas em seus erros e em sua debilidade ou seja na vulnerabilidade do seu ser perante a vida no seu perecer seu proacuteprio retiro uma morada E tambeacutem natildeo teraacute o poder de sobre ela colocar sua marca seu proacuteprio inscrito

Como sabemos a criaccedilatildeo de personagens-conceituais capazes de transvalorar eacute para Nietzsche absolutamente necessaacuteria agrave luta contra o enrijecimento de valores proacuteprios da estagnaccedilatildeo da vida Como valor estabelecido eacute proacuteprio da natureza moral a luta pela sua manutenccedilatildeo e natildeo um embate a fim de alcanccedilar sua expansatildeo visto que o desencadeamento de um conflito pode ocasionar sua destruiccedilatildeo Assim de forma peremptoacuteria Nietzsche nos mostra que a cultura e a moral de uma eacutepoca negam a accedilatildeo da vontade de potecircncia como expressatildeo da proacutepria vida junto ao seu intriacutenseco sentido a saber a afirmaccedilatildeo da proacutepria vida nas suas mais diversas facetas ou seja natildeo apenas no prazer na dor no sofrimento e na luta mas tambeacutem em uma de suas mais envolventes e intrigantes formas o riso

Em uma nota da primavera de 1884 sobre uma passagem da biacuteblia encontramos uma frase reveladora sobre o poder do riso em Nietzsche principalmente quando a tomamos como antiacutepoda de sua sagraccedilatildeo esteacutetica e poliacutetica do riso ldquomaldiccedilatildeo sobre aqueles que riemrdquo anota Nietzsche sobre Luc 6 25

Eacute no contexto dessas questotildees que intentaremos traccedilar algumas reflexotildees sobre o riso no pensamento e na obra de Friedrich Nietzsche De fato levado agraves suas uacuteltimas consequecircncias como hodierno diagnoacutestico e como superaccedilatildeo do niilismo a filosofia Nietzsche busca uma afirmaccedilatildeo incondicional de todas potencialidades proacuteprias do humano e de sua natureza Acreditamos que o conhecimento traacutegico da vida do qual o jovem Nietzsche nos daacute liccedilotildees em sua primeira obra publicada O Nascimento da Trageacutedia alcanccedila o seu pendant mais natural ou seja seu irrestrito complemento artiacutestico e filosoacutefico tanto na obra intitulada Gaia Ciecircncia Die Froumlhliche Wissenschaft como na criaccedilatildeo do personagem-conceitual Zaratustra

Eis que Gaia Ciecircncia o termo e tiacutetulo criado por Nietzsche revela natildeo apenas a natureza do conhecimento e da ciecircncia como fonte de alegria ndash um dos objetos de expressatildeo do riso ndash mas um jogo de significados que a palavra gaya permite revelar qual seja a ciecircncia da alegria fundamentalmente como ciecircncia do mundo e da terra ndash Gaia na mitologia grega eacute a personificaccedilatildeo da terra Por tal motivo A Teogonia de Hesiacuteodo nos apresenta o caos como sua origem e Gaia como uma das primeiras deusas sobre a Terra O estado de Gaia eacute de gravidez o que nos remete a origem indo-germacircnica da palavra Gaia a gestante

Jaacute Zaratustra a maacutescara filosoacutefica de Nietzsche impotildeem-se no acircmbito do questionamento sobre a decadecircncia proacutepria do niilismo como primeiro e uacutenico homem que riu ao vislumbrar as luzes do mundo De origem persa o nome Zaratustra significa ldquoo proprietaacuterio de valiosos camelosrdquo Os estudiosos da cultura oriental o descrevem como ldquoo poliacuteticordquo e o ldquoxamatilderdquo a fonte de sua origem eacute encontrada no Avesta uma coletacircnea de textos sagrados na qual Zaratustra eacute apresentado como fundador de uma religiatildeo monoteiacutesta fundamentada na luta entre o bem e o mal Em um fragmento do outono de 1883 podemos ler o seguinte sobre Zaratustra e sua origem ndash tambeacutem nele Nietzsche desvendaraacute a natureza do riso agrave qual Zaratustra pertence ldquoDe onde vem Zaratustra para noacutes Quem satildeo seu pai e sua matildee O destino e o riso satildeo o pai e a matildee de Zaratustra o terriacutevel destino e o doce riso geraram tal broto Alegria como o benefiacutecio secreto da

Ivan Risafi de Pontes

135

morte lsquoEstou procurando Zaratustra Zaratustra foi perdido para mimrsquordquo (NIETZSCHE 1999 vol X p 546)2 Ou ainda numa estrofe do poema Da pobreza do riquiacutessimo no livro Nietzsche contra Wagner (NIETZSCHE 2016 p 75)

Como quer que seja uma coisa contudo eacute particularmente notaacutevel ao refletirmos sobre ambos os nomes os quais Nietzsche forjou tambeacutem como insiacutegnia para a particularidade de seu pensamento sobre o poder do riso Tanto a Gaia Ciecircncia como Zaratustra carregam em si a marca e a potecircncia do nascimento e o destino mortal da natureza humana Afinal em sua dolorosa luta de libertaccedilatildeo das trevas e do caos o nascimento nos traz ao contraacuterio do que poderiacuteamos imaginar o riso como expressatildeo da vida ateacute mesmo diante da inexoraacutevel morte Sua obra eacute trazer o mais profundo valor das profundezas da terra da mesma forma como o homem busca o ouro em suas entranhas o metal mais precioso e de maior durabilidade para a construccedilatildeo de valores No capiacutetulo ldquoDos grandes acontecimentosrdquo de Zaratustra haacute uma importante menccedilatildeo sobre a natureza auriacutefera do riso ldquomas o ouro e o riso ndash ele os tira do coraccedilatildeo da terra pois que o saibas ndash o coraccedilatildeo da terra eacute de ouro [hellip] (NIETZSCHE 2011 p 126)

Se a origem do riso encontra-se para Nietzsche no acircmago e nas entranhas auriacuteferas mais profundas da terra ao contraacuterio o que se refere agrave sua condiccedilatildeo apoacutes o nascimento ou seja agrave sua vinda agrave superfiacutecie da terra seu impulso mais natural satildeo as alturas Contrariamente ao espiacuterito da gravidade que leva tudo a baixo ndash cujas criaccedilotildees satildeo como podemos ler em Zaratustra ldquocoaccedilatildeo estatuto necessidade consequecircncia finalidade vontade bem e malrdquo (NIETZSCHE 2011 p 188) ndash rir representa um ganho de perspectiva para a afirmaccedilatildeo da vida e com ela o movimento de inversatildeo de sentidos proacuteprios da transvaloraccedilatildeo de todos os valores ldquoOlhais para cima quando buscais a elevaccedilatildeo Eu olho para baixo porque estou elevado Quem entre voacutes pode ao mesmo tempo rir e sentir-se elevado Quem sobe aos montes mais altos ri das trageacutedias do palco e da vidardquo (NIETZSCHE 2011 p 40) Nesse capiacutetulo de Zaratustra intitulado ldquoLer e escreverrdquo Nietzsche segue ainda com descriccedilotildees que revelam como a risada de Zaratustra constitui-se como um iacutendice da natureza e da filosofia natildeo somente de Zaratustra mas certamente do proacuteprio filoacutesofo O ambiente no qual esses pensamentos e a vida contraacuteria ao espiacuterito de gravidade desenvolvem-se eacute o do encantamento pela danccedila da leveza e do equiliacutebrio que permitem o voo a grandes alturas Em oposiccedilatildeo a esse meio criou-se o inferno cristatildeo e uma seriedade demoniacuteaca Para que possamos melhor entender essa caracterizaccedilatildeo do espiacuterito da gravidade por Nietzsche eacute mister reproduzi-la na iacutentegra

Eu acreditaria somente num deus que soubesse danccedilarQuando vi meu diabo achei-o seacuterio meticuloso profundo e solene era o espiacuterito da gravidade ndash ele faz todas as coisas caiacuterem Natildeo com a ira mas com o riso eacute que se mata Eia vamos matar o espiacuterito da gravidade

[hellip] Agora sou leve agora voo agora me vejo abaixo de mim agora danccedila um deus atraveacutes de mimrdquo (NIETZSCHE 2011 p 40)

A partir do que foi tematizado torna-se possiacutevel agora notar um ponto absolutamente central para o esclarecimento da particularidade do riso poliacutetico e esteacutetico de Nietzsche a saber o caraacuteter cruel do riso e essa crueldade eacute santificada segundo Nietzsche pela

2 A traduccedilatildeo de todos fragmentos-poacutestumos aqui citados eacute de responsabilidade do autor

O Poder do Riso em Nietzsche

136

proacutepria natureza do riso por sua origem e genealogia por ele ser proacuteprio do coraccedilatildeo de ouro da terra Por tais motivos o riso eacute santificado Eis que o riso eacute complementar agrave virtude do homem e do espiacuterito livre que encontram na arte a expressatildeo do seu ser e na destruiccedilatildeo de taacutebuas morais sua accedilatildeo poliacutetica

ldquoSe minha virtude eacute a virtude de um danccedilarino e muitas vezes saltei com os dois peacutes para um enlevo ouro-esmeraldaSe minha maldade eacute uma maldade sorridente que se sente em casa entre roseiras e sebes de liacuterios ndash pois no riso tudo que eacute mau se acha concentrado mas santificado e absolvido por sua proacutepria bem-aventuranccedila ndashEsse eacute meu alfa e ocircmega que tudo pesado se torne leve todo corpo danccedilarino e todo espiacuterito paacutessaro e em verdade esse eacute meu alfa e ocircmegardquo (NIETZSCHE 2011 p 221)

Sob este ponto de vista eacute importante notar que o riso em Nietzsche expressa natildeo apenas a intenccedilatildeo e natureza destrutivas do rir mas tambeacutem como jaacute dito uma crueldade ldquo[hellip] O riso eacute originalmente a expressatildeo da crueldaderdquo (NIETZSCHE 1999 vol 10 p 329) escreve Nietzsche num fragmento poacutestumo do veratildeo de 1883 No foco dessa accedilatildeo cruel age um caraacuteter poliacutetico e esteacutetico que demonstra uma aversatildeo a todo tipo de fixaccedilatildeo do ser e da vida e que busca o fortalecimento espiritual para a mudanccedila Essa risada encontra seu alvo no homem cristatildeo e decadente naquele que se guia pela virtude que apequena e pelas velhas taacutebuas morais as quais impedem o florescer de novos valores

Em outras palavras o riso cruel encontra aqui no homem que crecirc na existecircncia do livre-arbiacutetrio naquele que acredita que a posse da virtude o faraacute reconhecer a justa causa para decisotildees tomadas com base no princiacutepio de causa e efeito o motivo de sua accedilatildeo destrutiva um componente proacuteprio do niilismo o qual abre espaccedilo para a ocupaccedilatildeo do nada por meio tambeacutem da accedilatildeo da natureza esteacutetica do riso ldquoMas a voz da beleza fala suavemente insinua-se apenas nas almas mais alertas Suavemente estremeceu hoje meu escudo e sorriu para mim este eacute o sagrado riso e tremor da beleza De voacutes virtuosos riu hoje minha belezardquo (NIETZSCHE 2011 p 89) A esse homem misericordioso de natureza compassiva Nietzsche direciona a crueldade letal de sua risada E assim com base no princiacutepio exposto no aforismo 200 da Gaia Ciecircncia ldquoRir ndash Rir significa ter alegria com o mal dos outros ndash ser malicioso mas com boa consciecircnciardquo (NIETZSCHE 2001 p 156) Nietzsche imporaacute o seu riso mortiacutefero contra agravequeles que amaldiccediloaram essa forccedila primaveril da vida criando o pecado ldquoQual foi ateacute agora o maior pecado aqui na terra Natildeo foi a palavra daquele que disse lsquoAi daqueles que agora riemrsquo Ele proacuteprio natildeo achou na terra motivos para rir Entatildeo procurou mal Ateacute mesmo uma crianccedila encontra motivosrdquo (NIETZSCHE 2011 p 279) Essa passagem Do homem superior de Zaratustra eacute como vemos uma clara oposiccedilatildeo a Lucas 625 ldquomaldiccedilatildeo sobre aqueles que riemrdquo

Com efeito esse riso que destroacutei ndash como um raio que emerge na escuridatildeo demostrando sua potecircncia nas alturas e seu caraacuteter mortiacutefero ao alcanccedilar a terra ndash eacute tambeacutem mateacuteria de conhecimento para o homem superior (NIETZSCHE 1999 vol 11 p 279) Esse sentimento de prazer que o riso cruel proporciona aproxima para Nietzsche o homem da natureza dos deuses do Olimpo bem como do ganho de uma nova perspectiva proacutepria das alturas ldquoObservar as naturezas traacutegicas perecerem e ainda poder rir desprezar o mais profundo entender sentir e compaixatildeo ndash eacute divinordquo (NIETZSCHE 1999 vol 10 p 63)

Ivan Risafi de Pontes

137

Aprender a rir apresenta-se nesse contexto como uma arte que eacute proacutepria do homem superior e que vive nas alturas Para o homem que desaprendeu a rir eacute necessaacuterio a pressatildeo a luta os conflitos que fazem nascer novos pensamentos e o impele a novas conquistas

Natildeo desanimeis Que importa Quanta coisa eacute ainda possiacutevel Aprendei a rir de voacutes mesmos tal como se deve rir [hellip] O que no homem eacute mais distante mais profundo alto como as estrelas sua tremenda forccedila tudo isso natildeo ferve e se embate vossa panela [hellip] Aprendei a rir de voacutes tal como se deve rir Oacute homens superiores quanta coisa eacute ainda possiacutevel (NIETZSCHE 2011 p 278)

Da maacutecula do pecado o riso eacute libertado tornando-se sagrado no processo de transvaloraccedilatildeo daquilo que o homem tem de mais sublime em si Essa condiccedilatildeo amaldiccediloada ndash a qual natildeo se tem notiacutecias nas escrituras que Jesus filho de Deus estivesse uma uacutenica vez sujeito ndash eacute transformada por Nietzsche num agente catalisador de potecircncias essenciais agrave vida agrave produccedilatildeo poliacutetica e esteacutetica O riso transforma-se num iacutendice de poder para o desvelamento daquilo que eacute decadente no homem e nos deuses impotentes diante do riso e da danccedila A capacidade de rir como podemos ver uma arte em si no pensamento nietzschiano exige um aprendizado que busca no isolamento da natureza humana o conhecimento sobre o caraacuteter artiacutestico da criaccedilatildeo da moral Assim a incapacidade do riso de Jesus expressa para Nietzsche seu niilismo e sua impotecircncia em reconhecer o valor da vida e do riso

Essa visatildeo traacutegica da vida do filho de Deus eacute contraposta ao conhecimento traacutegico dos gregos revelado no Nascimento da Trageacutedia e agrave explosatildeo do riso sagrado que se escuta e ecoa por toda Gaia Ciecircncia bem como em Zaratustra

ldquoAinda conhecia apenas laacutegrimas e a melancolia do hebreu juntamente com o oacutedio dos bons e justos ndash o hebreu Jesus entatildeo foi acometido pelo anseio da morte Tivesse ele permanecido no deserto longe dos bons e justos Talvez tivesse aprendido a viver e aprendido a amar a terra ndash e tambeacutem o risordquo (NIETZSCHE 2011 p 71)

No destino decadente desse homem seacuterio e pesado que se une a um Deus que natildeo ri Nietzsche diagnostica o mais imperdoaacutevel em sua natureza o homem que tem o poder e natildeo quer dominar como nos relata o capiacutetulo ldquoA hora mais quietardquo de Zaratustra Ao contraacuterio do peso gigantesco que esse homem exerce sobre a vida levando-a para baixo o riso sagrado de Nietzsche provoca o impulso de poderes que flexibilizam e articulam dinamicamente o fluxo de vida necessaacuterio para a ampliaccedilatildeo de poder e com ele consequentemente as conquistas de novas perspectivas Assim nos relata um outro fragmento poacutestumo de 1888 muito semelhante agrave seccedilatildeo 6 do capiacutetulo Os sete selos de Zaratustra ldquono riso todos os maus impulsos tornam-se sagrados e ainda todas as coisas pesadas se tornam levesrdquo (NIETZSCHE 1999 vol 10 p 584)

Natildeo devemos mais nos surpreender portanto como o riso assume um papel determinante para constatarmos natildeo soacute o que eacute verdadeiro filosofar ndash o bem viver e natildeo o preparar-se para a morte socraacutetica do Feacutedon de Platatildeo ndash mas tambeacutem para diferenciar o homem que faz uso de todo o poder de sua natureza para criar valores proacuteprios e afirmativos da vida daquele que perdeu a capacidade e o poder do riso ou ainda daquele outro que ri da filosofia personagem comum em todos os tempos da histoacuteria que despreza a solidatildeo

O Poder do Riso em Nietzsche

138

a dor e a alegria que o conhecimento filosoacutefico traz para a afirmaccedilatildeo da potecircncia da vida No aforismo 183 do livro Humano demasiado Humano I Nietzsche descreve atraveacutes da metaacutefora de uma chave o comportamento de escaacuternio desses desconhecedores do riso e do poder criador de valores que os pensamentos novos satildeo capazes de criar ldquoA chave ndash Aquele pensamento ao qual sob o riso e escaacuternio dos mediacuteocres um homem eminente daacute grande valor eacute para ele uma chave de tesouros secretos e para aqueles apenas um pedaccedilo de ferro velhordquo (NIETZSCHE 2002 p 123)

No contexto desse diagnoacutestico do cristianismo como religiatildeo triste que amaldiccediloa o riso no lugar de sacralizaacute-lo Nietzsche natildeo deixa de lado uma criacutetica agrave educaccedilatildeo que deveria valorizar a natureza do riso e poder provindo dela O aforismo 177 da Gaia Ciecircncia revela no acircmbito de sua criacutetica agrave cultura superior alematilde o componente educacional a ser ganho pelo riso ldquoContribuiccedilatildeo ao lsquosistema educacionalrsquo ndash Na Alemanha falta aos homens superiores um grande meio de educaccedilatildeo a risadas dos homens superiores estes natildeo riem na Alemanhardquo (NIETZSCHE 2001 p 153)

Dito assim rir assume na filosofia de Nietzsche traccedilos e caracteriacutesticas do verdadeiro filosofar Reconhecer na dor a condiccedilatildeo fundamental da existecircncia humana e no riso a sua redenccedilatildeo torna-se o ato de potecircncia e poder proacuteprio da filosofia que se coloca diante de perspectivas que ganham das alturas a visatildeo dos abismos da natureza humana

ldquoEsqueci-me de dizer que tais filoacutesofos satildeo alegres e que gostam de sentar-se no abismo de um ceacuteu perfeitamente brilhante mdash a eles satildeo necessaacuterios outros meios para suportar a vida do que a outros homens porque eles sofrem de maneira diferente (a saber com a mesma intensidade no fundo de seu desprezo humano que no amor por ele mdash O animal mais sofredor da terra inventou para si mdash o riso (NIETZSCHE 1999 vol XI p 576)

Ao contraacuterio de Zaratustra que nasceu do ventre do riso e da Gaia que libera suas forccedilas mais profundas para o mundo o filoacutesofo necessita criar o riso por meio da invenccedilatildeo Essa forccedila esteacutetica e poliacutetica que movimenta o mundo e o liberta de suas dores e de suas amarras degenerativas dando agrave filosofia o caraacuteter libertador do riso eacute contemplada por Nietzsche como uma contrapartida diante da ameaccedila do niilismo que a cultura decadente do cristianismo inculcou no espiacuterito cansado e pesado do homem moderno Numa outra passagem dos mesmos fragmentos poacutestumos de junho-julho de 1885 encontramos um depoimento sobre como Nietzsche reconhece em si mesmo esse filoacutesofo do riso o seu proacuteprio inventor

Mas para suportar esse extremo pessimismo (como soa aqui e ali em meu lsquoNascimento da Trageacutediarsquo) lsquoviver sozinho sem Deus e moralidadersquo tive que inventar uma contrapartida Talvez eu saiba melhor por que o homem ri sozinho soacute ele sofre tatildeo profundamente que teve que inventar o riso O animal desafortunado e melancoacutelico eacute como de costume o mais alegrerdquo (NIETZSCHE 1999 vol XI p 571)

Se em Ecce Homo Nietzsche afirma ldquoestimo o valor dos homens e da raccedila pelo quatildeo necessariamente concebem o deus como inseparaacutevel do saacutetirordquo (NIETZSCHE 2001 p 40) sua filosofia do riso reconhece como uma de suas tarefas diagnosticar por meio do riso onipresente na face do saacutetiro a qualidade de um pensamento seu peso ou impulso para o fluxo ininterrupto da vida Em uma palavra eacute possiacutevel agravequele que conhece a natureza aacuteurea do riso classificar a proximidade dos filoacutesofos dos deuses do Olimpo e a autenticidade de seus conhecimentos diante da tarefa humana de viver submerso no reino da dor da existecircncia

Ivan Risafi de Pontes

139

Em Aleacutem do bem e do Mal Nietzsche nos faz saber que a seriedade imposta agrave filosofia pelo riso eacute o crivo determinante de toda filosofia demonstrando que a razatildeo filosoacutefica deve se submeter ao riso seacuterio

O viacutecio oliacutempico ndash Natildeo obstante aquele filoacutesofo que como autecircntico inglecircs tentou difamar o riso entre as cabeccedilas pensantes ndash lsquoo riso eacute uma grave enfermidade da natureza humana que toda cabeccedila pensante se empenharia em superarrsquo (Hobbes) ndash eu chegaria mesmo a fazer uma hierarquia dos filoacutesofos conforme a qualidade do seu riso ndash colocando no topo aqueles capazes da risada de ouro E supondo que tambeacutem os deuses filosofem como algumas deduccedilotildees jaacute me fizeram crer natildeo duvido que eles tambeacutem saibam rir de maneira nova e sobre-humana ndash e agrave custa de todas as coisas seacuterias Os deuses gostam de gracejos parece que mesmo em cerimonias religiosas natildeo deixam de rir (NIETZSCHE 2017 p 177)

No acircmbito de accedilatildeo do riso seacuterio Nietzsche constata um tema em relaccedilatildeo ao qual o riso natildeo deve ocorrer Trata-se da crenccedila nos dogmas impostos agrave vida pelo cristianismo e de sua maleacutefica negaccedilatildeo da natureza humana ldquoNatildeo eacute risiacutevel que algueacutem ainda acredite em uma lei santa e imutaacutevel lsquoNatildeo mentiraacutesrsquo lsquoNatildeo mataraacutesrsquo ndash em uma existecircncia cujo caraacuteter eacute a constante mentira o constante assassinatordquo (NIETZSCHE 1999 vol IX p 649)

A arte do riso a ser aprendida pelos homens de natureza superior eacute revestida da mesma leveza necessaacuteria ao bom danccedilarino Sua arte eacute aquela da superaccedilatildeo da gravidade que leva e impele tudo agrave superfiacutecie da terra Criar pensamentos leves demonstra uma posiccedilatildeo no mundo semelhante agravequela do danccedilarino que coloca em accedilatildeo o sonho de conquista daquilo que os paacutessaros alcanccedilam ao desfrutar de sua natureza quando ele se desloca do chatildeo em busca da superaccedilatildeo dos limites dos movimentos

Oacute homens superiores o pior que haacute em voacutes eacute natildeo aprendestes a danccedilar como se deve danccedilar ndash indo aleacutem de voacutes mesmo Que importa se malograstes Quanta coisa eacute ainda possiacutevel Entatildeo aprendei a rir indo aleacutem de voacutes mesmos Erguei vossos coraccedilotildees oacute bons danccedilarinos Mais alto E natildeo esqueccedilais o bom riso tampoucoEsta coroa do homem que ri esta coroa de rosas a voacutes irmatildeos arremesso esta coroa Declarei santo o riso oacute homens superiores aprendei a ndash rir (NIETZSCHE 2011 p 281)

A risada dos deuses do Olimpo a de constrangimento ou causada pelas coacutecegas do bom-humor a risada puacuteblica sobre si mesmo uma outra que soa como um relinchar ou ainda aquela que o solitaacuterio ri num monoacutelogo consigo mesmo e em sua solidatildeo No pensamento e filosofia de Friedrich Nietzsche a capacidade e o poder de rir representam em suas mais diversas formas um elemento definidor e multiplicador da desmedida vontade de viver tatildeo cara ao artista nietzschiano

Como traccedilo caracteriacutestico do homem encontrado na obra de Aristoacuteteles o riso passa a exercer em Nietzsche uma funccedilatildeo esteacutetica-filosoacutefica ateacute entatildeo nunca vista na filosofia do ocidente A accedilatildeo que se porta por traacutes do riso determina essencialmente as caracteriacutesticas e os atos dos personagens conceituais que ocupam a obra nietzschiana Natildeo apenas em Zaratustra a forccedila do riso de natureza satiacuterica abre o caminho e determina a accedilatildeo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores e sua ruptura com o pessimismo bem como com

O Poder do Riso em Nietzsche

140

o niilismo Por toda obra nietzschiana o riso desvenda o caraacuteter de transvaloraccedilatildeo o qual o mundo e a vida exigem do humano Assim constituiacutedo o riso eacute siacutembolo e expressatildeo maior da vida como vontade de potecircncia

Para Nietzsche o riso determina e acompanha portanto natildeo apenas a destruiccedilatildeo de todos os valores mas tambeacutem o fundamento de uma nova moral e o estabelecimento de valores mundanos Partindo de seu aspecto esteacutetico centrado na figura do artista cujo maior representante eacute o saacutetiro primeiro ator do ocidente e da trageacutedia grega o riso alcanccedila seu acircmbito poliacutetico e moral

A accedilatildeo do riso provoca ainda a ressonacircncia que atingiraacute os ouvidos daqueles que Nietzsche acredita ser os verdadeiros artistas A esses irmatildeos de Zaratustra Nietzsche escreve na quarta parte de seu livro dedicado a todos e a ningueacutem ldquoEsta coroa do ridente esta coroa grinalda-de-rosas a voacutes meus irmatildeos eu vos atiro esta coroa O riso eu declarei santo voacutes homens superiores aprendei ndash a rirrdquo (NIETZSCHE 2011 p 281)

O riso em Nietzsche assume assim um patamar esteacutetico-filosoacutefico no qual eacute possiacutevel vislumbrar o verdadeiro filoacutesofo e livre pensador nietzschiano ndash poeta e ator muacutesico e artista personagem conceitual e danccedilarino em uma uacutenica pessoa Com o riso santificado mas natildeo apenas com seu papel filosoacutefico e poliacutetico redefinido diante da tradiccedilatildeo da cultura ocidental Nietzsche afirmaraacute em Ecce Homo ldquoEu sou um disciacutepulo do filoacutesofo Dioniacutesio eu preferiria ser um saacutetiro do que um santordquo (NIETZSCHE 2015 p 13) O caraacuteter santificado do riso de Nietzsche constitui-se portanto como um evangelho ndash um sistema filosoacutefico coeso que busca a redefiniccedilatildeo e a revalorizaccedilatildeo do que haacute de mais humano em noacutes ndash para o filoacutesofo do futuro e livre pensador o qual encontraraacute tambeacutem no final do livro I de Humano demasiado humano a reveladora dimensatildeo do riso diante da vida

ENTRE AMIGOSUm epiloacutego1Eacute belo guardar silecircncio juntosAinda mais belo sorrir juntos ndash Sob a atenda do ceacuteu de sedaEncostado ao musgo da faiaDar boas risadas com os amigosOs dentes brancos mostrando

Se fiz bem vamos manter silecircncioSe fiz mal ndash vamos rir entatildeoE fazer sempre piorFazendo pior rindo mais altoAteacute descermos agrave cova

Amigos Assim deve ser ndash Ameacutem E ateacute mais ver (NIETZSCHE 2002 p 275)

Ivan Risafi de Pontes

141

Referecircncias bibliograacuteficasNIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia 3deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2001 _____ Friedrich Aleacutem do bem e do Mal 17deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2017 _____ Friedrich Assim falou Zaratustra 3deg ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011 _____ Friedrich Ecce Homo 4deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2015 _____ Friedrich Kristiche Studienausgabe in 15 Banden 4 deged Berlim Nova Iorque Walter de Gruyter GmbH amp Co KG 1999_____ Friedrich Humano Demasiado Humano 3deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2002_____ Friedrich Nietzsche contra Wagner 1deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2016

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

142

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo Uma reflexatildeo sobre a intoleracircncia religiosa radical a partir da Genealogia da Moral

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas1

A presenccedila marcante da palavra ldquofundamentalismordquo nos noticiaacuterios nacionais e internacionais mdash sempre associada a escacircndalos de violecircncia ou a discursos sectaacuterios de oacutedio que marcam o cotidiano de inuacutemeros paiacuteses incluindo o Brasil mdash eacute um lembrete de que estes fenocircmenos situam-se entre os grandes desafios enfrentados por governos sociedades e instituiccedilotildees democraacuteticas na atualidade

Tendo surgido na virada do seacuteculo XIX para o seacuteculo XX num contexto de disputas entre grupos de protestantes nos EUA o fundamentalismo cristatildeo sofreu um baque significativo com a repercussatildeo negativa gerada pelo julgamento do professor John Scopes em 1925 por ter desafiado a lei que proibia o ensino do evolucionismo nas escolas puacuteblicas do Tennessee

Rotulado a partir de entatildeo como um movimento retroacutegrado de minorias supersticiosas ele parecia relegado ao esquecimento ateacute seu assustador ressurgimento nas deacutecadas de 1970-1980 o qual marcou o retorno de fundamentalismos dos mais diversos matizes aos palcos da geopoliacutetica global como forccedilas impossiacuteveis de serem negligenciadas condiccedilatildeo que permanece vigente ateacute os dias atuais

Considerando-se a sua natureza complexa e multifaacuteria mdash fato amplamente reconhecido e enfatizado por estudiosos do assunto2 mdash eacute seguro afirmar que o desenvolvimento de abordagens teoacutericas diferenciadas sobre os fundamentalismos tem o potencial de contribuir de maneira decisiva para a ampliaccedilatildeo das suas possibilidades de entendimento sendo este precisamente o objetivo do presente artigo

Nossa proposta de interpretar o fundamentalismo a partir de Nietzsche insere-se num conjunto de iniciativas inauguradas em 2003 com a publicaccedilatildeo de Fundamentalismus mdash maskierter nihilismus por Christoph Tuumlrcke Anos depois esta proposta foi retomada por Oswaldo Giacoia Junior em 2006 com Terrorismos e em 2013 com Nietzsche O humano como memoacuteria e como promessa Estes trabalhos juntamente com nossa pesquisa de doutorado e os textos dela derivados constituem toda a bibliografia sobre o tema o que indica o quanto ele ainda foi pouco explorado

1 Universidade Federal do Tocantins ndash UFT2 A coletacircnea organizada por Martin E Marty e R Scott Appleby comprova a complexidade caracteriacutestica dos

fundamentalismos natildeo apenas pelo seu grande volume e diversidade (mais de 100 capiacutetulos redigidos por autores diferentes totalizando cerca de 3500 paacuteginas) mas tambeacutem pela preocupaccedilatildeo expliacutecita dos organizadores em jus-tificar o emprego do termo ldquofundamentalismordquo como um denominador comum para se referir a fenocircmenos com caracteriacutesticas significativamente diferentes entre si Cf MARTY amp APPLEBY 1991 Introduccedilatildeo

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

143

O nuacutecleo argumentativo desses trabalhos gira em torno da tese de que o surgimento e o fortalecimento dos fundamentalismos satildeo reaccedilotildees tardias contra o niilismo isto eacute contra a acentuada crise dos ideais verdades e valores de natureza metafiacutesica eou transcendente bem como do ethos religioso tradicional a qual foi acompanhada pela crescente racionalizaccedilatildeo e secularizaccedilatildeo das sociedades e de suas principais instituiccedilotildees

Se por um lado o niilismo contribui para esclarecer as dimensotildees psicoloacutegica e existencial dos fundamentalismos por outro lado pretendemos mostrar aqui como o ressentimento se relaciona diretamente com a agressividade e o segregacionismo dos fundamentalistas em relaccedilatildeo agraves sociedades secularizadas e tambeacutem aos seguidores de outras religiotildees

Independentemente das especificidades de cada crenccedila eacute certo que todos os fundamentalismos satildeo intrinsecamente marcados por uma postura combativa (MARTY amp APPLEBY 1991 p 820-826) O enfrentamento dos valores do Anticristo ou da jahiliyyah3 (feminismo poliacutetica e ciecircncia laicas toleracircncia religiosa democracia igualdade de direitos para os grupos LGBT liberdade de expressatildeo etc) exige obediecircncia inquestionaacutevel disciplina rigorosa e disposiccedilatildeo para qualquer sacrifiacutecio A paradoxal criminalidade destes defensores ferrenhos da ldquomoral e dos bons costumesrdquo ― que recorrem sem qualquer escruacutepulo agrave violecircncia brutal agrave sabotagem da poliacutetica agrave discriminaccedilatildeo e assassinato de dissidentes e opositores bem como agrave destruiccedilatildeo de siacutembolos eou templos religiosos alheios ― encontra justificativa na crenccedila de que a perfeiccedilatildeo e a justeza da causa pela qual lutam automaticamente redimiria suas transgressotildees

Diante disso nossa hipoacutetese eacute a de que a disposiccedilatildeo para a violecircncia entre os fundamentalistas eacute fruto de uma condiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica doentia marcada por um profundo grau de debilidade e inseguranccedila perante si e tambeacutem perante a alteridade

() A funccedilatildeo mais importante desse absolutismo imanente [isto eacute do fundamentalismo ndash JPSVB] eacute entretanto proteger a gente das proacuteprias duacutevidas na medida em que se imuniza o novo-velho fundamento ldquoabsolutamenterdquo contra duacutevidas de fora Mas com isso jaacute se afirma tambeacutem que o fundamentalismo eacute― de forma aparentemente paradoxal ―um filho da duacutevida justamente diante do que ele anuncia O fundamentalismo eacute cego diante de si mesmo enquanto tentativa hermeticamente fechada contra toda e qualquer criacutetica de combater e curar com ajuda da droga ldquoabsolutismordquo a deficiecircncia imunoloacutegica aniacutemico-espiritual que pertence agrave constituiccedilatildeo do homem e que o abandonaria natildeo fosse a droga sem proteccedilatildeo ao viacuterus da duacutevida ― da duacutevida diante de ldquoDeusrdquo da igreja da naccedilatildeo da identidade proacutepria ou coletiva do sentido da vida Essa duacutevida eacute sentida pelas pessoas abaladas na sua seguranccedila como uma espeacutecie de AIDS espiritual que a gente contraiu no contato demasiado iacutentimo com a modernidade Sente-se que isso pode ser letal para a feacute a igreja a naccedilatildeo o ego Por isso a difusatildeo e a intensidade do fundamentalismo satildeo indicadores do grau da duacutevida e do desespero daqueles que lhe vendem a sua alma Quem tem certeza da sua feacute do seu ldquodeusrdquo e natildeo precisa por conseguinte temer muito pode demonstrar toleracircncia compreensatildeo e mesmo amor aos que seguem outro credo que pensam diferentemente

3 Em aacuterabe ldquoera da ignoracircnciardquo No Alcoratildeo esse termo refere-se agrave condiccedilatildeo primitiva das tribos aacuterabes no periacuteodo preacute-islacircmico Sayyid Qutb (1906-1966) professor teoacutelogo e literato egiacutepcio cuja obra foi a base para o surgimento e organizaccedilatildeo de grupos fundamentalistas sunitas (tais como Boko Haram Talibatilde HAMAS Al-Qaeda e Estado Islacircmico) retira-o de seu contexto original equiparando a condiccedilatildeo corrompida de todo o mundo natildeo-islacircmico e das sociedades aacuterabes da sua eacutepoca com a jahiliyyah

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

144

Na sua autocompreensatildeo esses outros natildeo ameaccedilam a sua feacute por que ele haveria entatildeo de ameaccedilaacute-los constrangecirc-los A seguranccedila que a sua feacute lhe daacute confere-lhe uma soberania aniacutemico-espiritual que natildeo necessita de nenhuma agressividade e de nenhuma violecircncia para afirmar-se Ele natildeo sofre de nenhum grave problema de identidade que pudesse forccedilaacute-lo a partir do temor da perda da identidade a delimitar-se contra instacircncias exteriores assim por exemplo com ajuda de imagens do inimigo Ele certamente tambeacutem natildeo estaacute imune contra duacutevidas mas a sua feacute eacute suficientemente forte para mantecirc-las em xeque Por isso ele tambeacutem natildeo tem necessidade de defender o seu ldquodeusrdquo ou a sua naccedilatildeo ou os seus valores atraveacutes da construccedilatildeo de um sistema de poder institucional que precisa por sua parte ser imunizado contra influecircncias dissolventes de fora se necessaacuterio com violecircncia (KUumlNZLI 1995 p 66-67) Grifo nosso

Embora Arnold Kuumlnzli natildeo tenha se referido ao arcabouccedilo teoacuterico nietzschiano para pensar sobre o fundamentalismo suas ideias apontam justamente para nossa hipoacutetese de que as razotildees da belicosidade caracteriacutestica dos fundamentalistas residem numa profunda incapacidade desses indiviacuteduos em lidarem com o novo com o diferente com o incontrolaacutevel o que por sua vez faz com que a experiecircncia da alteridade lhes seja algo extremamente desconfortaacutevel e ameaccedilador

Quando se considera o papel desempenhado pela agressividade no modus operandi fundamentalista pode-se afirmar que o emprego da violecircncia eacute tido como um meio para a consecuccedilatildeo de um entre dois principais objetivos combater as outras religiotildees para homogeneizar uma populaccedilatildeo ou entatildeo garantir a segregaccedilatildeo dos fundamentalistas em relaccedilatildeo ao restante do mundo4 No caso de enclaves fundamentalistas em sociedades onde o isolamento total natildeo eacute possiacutevel os esforccedilos de segregaccedilatildeo se concentram em controlar o mais rigorosamente possiacutevel a influecircncia de costumes praacuteticas ou de instituiccedilotildees julgadas como desvirtuadoras tais como os meios de comunicaccedilatildeo agremiaccedilotildees sociais e instituiccedilotildees educacionais

Apesar de parecerem distintos agrave primeira vista ambos os objetivos derivam de um mesmo impulso homogeneizador Conforme as condiccedilotildees histoacutericas poliacuteticas e sociais os fundamentalistas podem se dedicar agrave eliminaccedilatildeo da alteridade que existe fora do grupo ou agrave prevenccedilatildeo do surgimento da alteridade no interior do proacuteprio grupo

O histoacuterico de atuaccedilatildeo de grupos fundamentalistas em vaacuterios paiacuteses mostra que eles procuram se isolar do restante da sociedade a partir do momento em que a eliminaccedilatildeo ou a domesticaccedilatildeo da alteridade se revela como um objetivo impossiacutevel Como exemplos pode-se mencionar o lobby fundamentalista cristatildeo protestante nos EUA em favor da educaccedilatildeo domiciliar surgido apoacutes a aprovaccedilatildeo em 1958 do National Defense Education Act o qual revogou as leis que proibiam o ensino do evolucionismo nas escolas puacuteblicas de alguns estados Diante da impossibilidade de banirem o ensino do evolucionismo para todas as crianccedilas os fundamentalistas buscaram impedir que suas proacuteprias famiacutelias tivessem contato com a ciecircncia secularizada

No acircmbito do islamismo sunita apoacutes constatar que a corrupccedilatildeo generalizada havia rebaixado o mundo islacircmico agrave condiccedilatildeo de jahiliyyah Sayyid Qutb propocircs que os verdadeiros fieis formassem comunidades isoladas

4 Este anseio segregacionista dos fundamentalistas eacute semelhante agrave distopia cinematograacutefica do filme A Vila (2004) onde um grupo de pessoas profundamente traumatizadas decide se afastar do mundo para construiacuterem o sonho de uma sociedade perfeita Cf GALLO amp VEIGA-NETO 2009

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

145

Os muccedilulmanos do presente dizia Qutb precisavam igualmente rejeitar a jahiliyyah contemporacircnea e construir um enclave islacircmico puro Podiam e de fato deviam ser gentis com os descrentes e os apoacutestatas de sua sociedade mas tinham de restringir os contatos a um miacutenimo e adotar uma poliacutetica de natildeo-cooperaccedilatildeo em assuntos vitais como a educaccedilatildeo (HADDAD apud ARMSTRONG 2001 p 275)

Jaacute os judeus haredi por sua vez em face da impossibilidade de lograrem a destruiccedilatildeo do Estado de Israel para que a regiatildeo da ldquoterra santardquo permanecesse livre de instituiccedilotildees humanas como um enorme santuaacuterio eternamente consagrado ao estudo da Toraacute e agrave praacutetica da oraccedilatildeo buscaram isolar-se do restante da sociedade israelense formando comunidades centradas em torno de suas escolas religiosas tradicionais as yeshivot

Esse impulso homogeneizador que eacute incapaz de lidar com a alteridade de uma forma que natildeo seja conflituosa origina-se a partir da constataccedilatildeo dos proacuteprios fundamentalistas de que as sociedades secularizadas exerceriam uma espeacutecie de apelo sedutor e desencaminhador irresistiacutevel para eles Daiacute o acerto da descriccedilatildeo de Kuumlnzli quando emprega um linguajar meacutedico para descrever o modo como os fundamentalistas encaram o mundo corrupto e profano que os cerca um ambiente contaminado que tem o potencial de inocular um ldquoviacuterus espiritualrdquo naqueles que com ele mantiverem um contato demasiado prolongado Prova disso eacute a intensidade e a frequecircncia com que os discursos fundamentalistas representam o mundo secular como um local simultaneamente ameaccedilador e sedutor caracterizado por viacutecios depravaccedilotildees e apostasia

A esse respeito vale destacar a importacircncia da figura do Anticristo nos discursos apocaliacutepticos dos fundamentalistas cristatildeos protestantes a qual eacute associada a uma personalidade inteligente ardilosa e de grande carisma que ldquopela dupla via da perseguiccedilatildeo temporal e da seduccedilatildeo religiosa tenta provocar o fracasso do plano divino de salvaccedilatildeordquo (SEMERARO 2003 p 30)

No acircmbito judaico os haredi acreditam que a fundaccedilatildeo do Estado de Israel seria uma desobediecircncia agraves leis divinas Da mesma forma como ocorreu com o episoacutedio biacuteblico da Torre de Babel todos aqueles que satildeo favoraacuteveis agrave existecircncia de Israel teriam sucumbido agrave tentaccedilatildeo da vaidade e do poder mundanos e portanto cometeram pecado mortal Por fim entre os muccedilulmanos xiitas as expressotildees ldquoocidentoxicaccedilatildeordquo e ldquoocidentoserdquo (ARMSTRONG 2001 p 279) cunhadas por dois intelectuais iranianos entre os anos de 1960 e 1970 natildeo deixam duacutevidas sobre onde se localizaria a fonte da corrupccedilatildeo e do desencaminhamento do povo iraniano

Eacute justamente na identificaccedilatildeo das raiacutezes da belicosidade fundamentalista numa profunda inseguranccedila e incocircmodo perante o outro que se encontra a base para o estabelecimento de uma relaccedilatildeo teoacuterica destes fenocircmenos com o ressentimento Quando considerada agrave luz do ressentimento a incapacidade dos fundamentalistas em lidar com a alteridade de uma forma que natildeo seja agressiva revela-se como o resultado de uma profunda suscetibilidade fisiopsicoloacutegica associada a um princiacutepio moral que defende a eliminaccedilatildeo das diferenccedilas em favor da absolutizaccedilatildeo de uma uacutenica perspectiva de sentido verdade e valor

Na Genealogia da Moral Nietzsche subsume sob a rubrica ldquoressentimentordquo um amplo conjunto de reflexotildees que podem ser didaticamente divididas em quatro sentidos principais todos eles presentes na primeira dissertaccedilatildeo Em primeiro lugar o termo se relaciona com a caracterizaccedilatildeo de um tipo de constituiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica na qual o

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

146

ressentido eacute apresentado como um indiviacuteduo fraco e decadente em contraposiccedilatildeo a outros mais saudaacuteveis e felizes

(hellip) Os ldquobem-nascidosrdquo se sentiam mesmo como os ldquofelizesrdquo eles natildeo tinham de construir artificialmente a sua felicidade de persuadir-se dela menti-la para si por meio de um olhar aos seus inimigos (como costumam fazer os homens do ressentimento) e do mesmo modo sendo homens plenos repletos de forccedila e portanto necessariamente ativos natildeo sabiam separar a felicidade da accedilatildeo mdash para eles ser ativo eacute parte necessaacuteria da felicidade (nisso tem origem εὖ πράττειν [fazer bem estar bem]) mdash tudo isso o oposto da felicidade no niacutevel dos impotentes opressos achacados por sentimentos hostis e venenosos nos quais ela aparece essencialmente como narcose entorpecimento sossego paz ldquosabbatrdquo distensatildeo do acircnimo e relaxamento dos membros ou numa palavra passivamente (NIETZSCHE 2004 p 30)

O segundo sentido com que Nietzsche emprega o ressentimento eacute de longe o mais conhecido devido agrave estreita associaccedilatildeo com as caracteriacutesticas do protagonista do romance Memoacuterias do Subsolo de Dostoieacutevski Aqui o filoacutesofo se refere ao modo de reagir agraves contrariedades infortuacutenios e reveses inevitaacuteveis da vida enquanto que nos indiviacuteduos bem constituiacutedos as respostas se dariam por meio de uma accedilatildeo imediata os ressentidos teriam um ldquosentimento de obstruccedilatildeo fisioloacutegicardquo (NIETZSCHE 2004 p 120) Perante uma situaccedilatildeo ou um estiacutemulo externo que provoca uma determinada reaccedilatildeo o indiviacuteduo ressentido eacute total ou parcialmente incapaz de fazecirc-la devido a esta inibiccedilatildeo de forma que a carga pulsional ao inveacutes de se descarregar para fora descarrega-se para dentro Como consequecircncia os ressentidos seriam obrigados a se contentar com uma resposta meramente imaginaacuteria ldquoA rebeliatildeo escrava na moral comeccedila quando o proacuteprio ressentimento se torna criador e gera valores o ressentimento dos seres aos quais eacute negada a verdadeira reaccedilatildeo a dos atos e que apenas por uma vinganccedila imaginaacuteria obtecircm reparaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 2004 p 28-29)

A impossibilidade de eliminaccedilatildeo eou assimilaccedilatildeo dos afetos negativos somada agrave excessiva vulnerabilidade fazem com que os ressentidos continuem sentindo e sofrendo as consequecircncias de perturbaccedilotildees passadas haacute muito tempo Como resultado previsiacutevel tem-se uma profunda ldquodesordem psiacutequicardquo (PASCHOAL 2014 p 33) caracterizada por um oacutedio e rancor crescentes acompanhados de um anseio doentio por vinganccedila por fazer sofrer aqueles considerados responsaacuteveis pela miseacuteria dos ressentidos No entanto a proacutepria natureza debilitada e inibida desses indiviacuteduos faz com que este anelo vingativo permaneccedila na praacutetica irrealizaacutevel (Idem p 33-34)

Se o termo ressentimento tivesse sido empregado por Nietzsche apenas nos dois sentidos anteriormente mencionados mdash ambos situados no acircmbito de uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas psiacutequicas fisioloacutegicas e pulsionais de um determinado tipo humano mdash eacute certo que nossa proposta de empregaacute-lo como chave de leitura do modus operandi fundamentalista natildeo seria capaz de abarcar a amplitude e as peculiaridades deste fenocircmeno

Conquanto a suscetibilidade doentia dos ressentidos possa servir como recurso para pensar tanto a origem da enorme dificuldade dos fundamentalistas em aceitar a alteridade como tambeacutem a facilidade com que eles se sentem profundamente ofendidos com provocaccedilotildees de qualquer natureza5 ainda assim os fundamentalistas natildeo se enquadrariam 5 Tomando como exemplo o ataque ao escritoacuterio da revista francesa Charlie Hebdo em janeiro de 2015 que teve como

saldo 11 mortos e 11 feridos eacute possiacutevel constatar que se um grupo de indiviacuteduos considera que a ofensa causada por algumas poucas caricaturas ordinaacuterias eacute digna de morte e de fato leva esta ameaccedila agraves vias de fato entatildeo natildeo pode haver

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

147

nem de longe na categoria nietzschiana de indiviacuteduos inibidos na sua capacidade de reagir agraves ofensas Pelo contraacuterio o que se pode observar entre eles eacute o cultivo de uma postura permanente de militacircncia ativa e de agressividade expliacutecita cuja temeridade alcanccedila as raias do autossacrifiacutecio sem se deter ante qualquer perigo ou ameaccedila

Eacute preciso ressaltar todavia que os sentidos do ressentimento que melhor se prestam a um esclarecimento sobre os fundamentalismos satildeo distintos Para aleacutem de realizar uma caracterizaccedilatildeo fisiopsicoloacutegica Nietzsche tambeacutem emprega esse termo em suas reflexotildees sobre a moral Contudo para que se consiga compreender de que forma uma constituiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica doentia e inibida se relaciona com o desenvolvimento de valores morais que sustentam um discurso radicalmente intolerante e segregacionista eacute preciso refletir sobre o modo como os fundamentalistas se relacionam com a alteridade

Toda alteridade eacute um obstaacuteculo e isso vale para todos os seres vivos Desde a infacircncia somos confrontados com indiviacuteduos e situaccedilotildees que limitam a satisfaccedilatildeo de nossos desejos e a realizaccedilatildeo plena de nossas vontades Aleacutem disso eacute de amplo conhecimento que o enfrentamento dos obstaacuteculos representados pela alteridade eacute parte fundamental do processo de desenvolvimento psicoloacutegico e emocional de todo ser humano

No entender de Nietzsche o fato dos ressentidos natildeo terem condiccedilotildees de reagir agrave altura das perturbaccedilotildees sofridas priva-os da possibilidade de descarregarem para fora de si seus impulsos negativos e frustraccedilotildees Essa condiccedilatildeo quando somada agrave incapacidade deles em assimilar as energias psiacutequicas deleteacuterias desses eventos digerindo-as (incapacidade esta que por sua vez eacute uma consequecircncia da sua fragilidade fisiopsicoloacutegica referida no primeiro sentido do ressentimento) gera como resultado uma excessiva suscetibilidade visto que o delicado equiliacutebrio desses indiviacuteduos moacuterbidos acaba sendo perturbado ateacute mesmo por ocorrecircncias insignificantes

Os ressentidos sofrem grandes dificuldades ao se confrontarem com o outro com o diferente com o imprevisiacutevel de uma forma isenta de problemas porque sua debilidade fisiopsicoloacutegica faz com que o seu fraacutegil equiliacutebrio venha a ser facilmente perturbado sempre que eles se chocam com uma alteridade que lhes eacute incontrolaacutevel e da qual natildeo conseguem se desvencilhar por meio de uma reaccedilatildeo adequada Soma-se a isso o fato de que eles satildeo incapazes de compreender (ou se compreendem relutam em aceitar) que a causa de seus malogros frustraccedilotildees e experiecircncias negativas reside primordialmente na sua proacutepria fraqueza e debilidade o que os leva a impingir a culpa das suas miseacuterias agrave existecircncia eou agrave accedilatildeo dos diferentes

A consequecircncia previsiacutevel da repeticcedilatildeo de ocorrecircncias deste tipo eacute o surgimento de um oacutedio profundo perante a alteridade acompanhado pelo anseio por desvalorizaacute-la enfraquececirc-la controlaacute-la eou destruiacute-la

A partir deste ponto podemos entatildeo falar de um terceiro sentido do ressentimento o qual se constitui numa diferenciaccedilatildeo entre dois modos possiacuteveis pelos quais os indiviacuteduos seriam levados a afirmar proacutepria individualidade e por conseguinte estruturar seus juiacutezos morais enquanto que nos fortes e saudaacuteveis o ponto de partida eacute a autoafirmaccedilatildeo (constituindo uma moral que surge a partir de um olhar que se volta para o proacuteprio indiviacuteduo) nos ressentidos a criaccedilatildeo de juiacutezos morais se daacute de forma secundaacuteria reativa derivada pois eles tecircm necessidade de olhar primeiramente para fora de si negando a alteridade para soacute entatildeo afirmarem a si proacuteprios

qualquer duacutevida quanto agrave profunda vulnerabilidade da condiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica dessas pessoas Eacute inegaacutevel a diferenccedila entre sentir-se incomodado com uma provocaccedilatildeo de gosto duvidoso e responder a ela com um ataque armado

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

148

() Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma jaacute de iniacutecio a moral escrava diz Natildeo a um ldquoforardquo um ldquooutrordquo um ldquonatildeo-eurdquo mdash e este Natildeo eacute seu ato criador Esta inversatildeo do olhar que estabelece valores mdash este necessaacuterio dirigir-se para fora em vez de voltar-se para si mdash eacute algo proacuteprio do ressentimento a moral escrava sempre requer para nascer um mundo oposto e exterior para poder agir em absoluto mdash sua accedilatildeo eacute no fundo reaccedilatildeo O contraacuterio sucede no modo de valoraccedilatildeo nobre ele age e cresce espontaneamente busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior juacutebilo e gratidatildeo mdash seu conceito negativo o ldquobaixordquo ldquocomumrdquo ldquoruimrdquo eacute apenas uma imagem de contraste paacutelida e posterior em relaccedilatildeo ao conceito baacutesico positivo inteiramente perpassado de vida e paixatildeo ldquonoacutes os nobres noacutes os bons os belos os felizesrdquo (NIETZSCHE 2004 p 29)

Eacute de se esperar que em comunidades ou grupos sociais formados majoritariamente por indiviacuteduos ressentidos essa perspectiva de mundo acabe por assumir o papel de um conjunto de valores coletivamente compartilhados de forma que os diferentes venham gradualmente a ser discriminados com intensidade cada vez maior

Como se pode facilmente prever o compartilhamento social da visatildeo de mundo e dos valores dos ressentidos acaba com o passar do tempo por servir de base para um tipo de cultura profundamente marcada pela intoleracircncia pela exclusatildeo e discriminaccedilatildeo social e nos piores casos pelo extermiacutenio dos diferentes sendo que estas formas de violecircncia satildeo justificadas pela rotulaccedilatildeo da alteridade como subversiva criminosa depravada degenerada pecaminosa maacute etc

Por fim o quarto sentido do ressentimento diz respeito a um fenocircmeno social criador de valores o qual emerge como resultado das condiccedilotildees fisiopsicoloacutegicas doentias anteriormente mencionadas6 No livro Nietzsche e o ressentimento Antonio Edmilson Paschoal avanccedila no desenvolvimento deste sentido que foi primeiramente destacado por Max Scheler afirmando que o ressentimento corresponde aiacute ldquoa uma moral a uma concepccedilatildeo de justiccedila e a um modo de intervenccedilatildeo socialrdquo (PASCHOAL 2014 p 42)

Na denominada ldquomoral de animal de rebanhordquo (ABM 202) expressatildeo que Nietzsche utiliza para sintetizar aquela forma de valoraccedilatildeo tiacutepica do ressentimento a sede de vinganccedila assume contornos de uma tentativa de domiacutenio de impor uma determinada forma de organizaccedilatildeo visando desestabilizar possiacuteveis concorrentes e intensificar o proacuteprio poder Porquanto ela natildeo se volta apenas para pretensos detratores ou para aqueles que satildeo considerados culpados pelo sofrimento do fraco mas contra todos aqueles que natildeo sofrem como ele e que portanto natildeo satildeo seus iguais

Universalizada dessa maneira a sede de vinganccedila recebe o nome de ldquojusticcedilardquo institucionalizando aquele princiacutepio de igualdade que de resto conflui numa massificaccedilatildeo disforme espalhando-se por todo o corpo social como o veneno de uma taracircntula que invade sua viacutetima Em relaccedilatildeo ao fraco tal veneno funciona como um anesteacutesico que permite a ele suportar seu sofrimento sem sucumbir a ele e em relaccedilatildeo ao forte como um entorpecimento que visa enfraquececirc-lo Em ambos os casos o propoacutesito eacute um nivelamento 6 Embora de forma menos expliacutecita que os outros trecircs sentidos mencionados ainda assim a presenccedila deste quarto

sentido do ressentimento pode ser observada nos aforismos 6 a 9 da primeira dissertaccedilatildeo onde o filoacutesofo aborda o surgimento da moral sacerdotal e o posterior conflito dela com a moral dos guerreiros o qual eacute referido como a primeira transvaloraccedilatildeo de todos os valores

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

149

do homem a produccedilatildeo do rebanho universal e impedir o aparecimento de tipos diferentes de homem (PASCHOAL 2014 p 71-72)

A hipoacutetese de que o ressentimento daria ensejo ao surgimento de um anseio pelo domiacutenio absoluto de uma perspectiva unilateral de valores a qual almeja em uacuteltima instacircncia a homogeneizaccedilatildeo da humanidade e dos discursos sob uma uacutenica bandeira natildeo apenas se coaduna com uma condiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica de excessiva fraqueza como tambeacutem parece corresponder ao modus operandi dos fundamentalismos

Considerando-se que os fundamentalistas encaram a vida nas sociedades secularizadas com seus princiacutepios democraacuteticos de igualdade Estado laico liberdade de expressatildeo etc como uma experiecircncia ofensiva e ultrajante de sofrimento e desestabilizaccedilatildeo existencial e ainda considerando-se que tanto os ateus como os religiosos liberais satildeo vistos como cuacutemplices desta sociedade corrupta entatildeo eacute certo que o desejo deles pela eliminaccedilatildeo da alteridade pode perfeitamente ser considerado como um anseio doentio por vinganccedila que rotula como culpados todos aqueles que natildeo sofrem como os fundamentalistas anseio este sintetizado por Nietzsche na conhecida sentenccedila ldquoEu sofro disso algueacutem deve ser culpadordquo (NIETZSCHE 2004 p 117)

Agrave luz da presente reflexatildeo os esforccedilos dos fundamentalistas para se afastarem do mundo natildeo se contradizem com o ideal expansivo e homogeneizador da moral do ressentimento visto que este ideal acaba por transparecer nos seus contiacutenuos esforccedilos para conquistar novos proseacutelitos Por meio do amplo emprego de teacutecnicas avanccediladas de comunicaccedilatildeo de propaganda e de psicologia de massas os fundamentalistas vecircm conseguindo engrossar suas fileiras veiculando discursos simplistas que ao mesmo tempo em que apregoam a existecircncia de uma crise religiosa e moral tambeacutem apontam quais os culpados a serem enfrentados e qual a recompensa que aguarda agravequeles que seguirem fielmente o caminho redentor

Esta surpreendente semelhanccedila entre de um lado o anseio doentio dos sacerdotes asceacuteticos ressentidos por espalharem sua cura venenosa a todos buscando deliberadamente adoecer os sadios e bem logrados com o objetivo uacuteltimo de transformar a humanidade num gigantesco rebanho de animais mansos e domesticados e de outro lado o repuacutedio escancarado de todos os discursos fundamentalistas pelo pluralismo poliacutetico e religioso pelo agonismo democraacutetico e pela liberdade de expressatildeo evidencia o significativo potencial do ressentimento para esclarecer aspectos importantes do fundamentalismo

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

150

Referecircncias bibliograacuteficasARMSTRONG Karen Em nome de Deus O fundamentalismo no judaiacutesmo cristianismo e islamismo Trad Hildegard Feist Satildeo Paulo Cia das Letras 2001DE BONI Luis A (Org) Fundamentalismo Porto Alegre EDIPUCRS 1995GALLO Silvio VEIGA-NETO Alfredo (Orgs) Fundamentalismo amp Educaccedilatildeo ― A Vila Belo Horizonte Autecircntica 2009GIACOIA Junior Oswaldo Nietzsche O humano como memoacuteria e como promessa Petroacutepolis Vozes 2013MARTY Martin E amp APPLEBY R Scott (Orgs) Fundamentalisms Observed ChicagoLondres The University of Chicago Press 1991NIETZSCHE Friedrich Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB) Org Paolo DrsquoLorio Disponiacutevel em lt httpwwwnietzschesourceorg gtAcesso em 09 nov 2018_____ Genealogia da Moral Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Cia das Letras 2004PACOMIO Luciano (Org) LEXICON ndash Dicionaacuterio Teoloacutegico Enciclopeacutedico Satildeo Paulo Loyola 2003PASCHOAL Antonio Edmilson Nietzsche e o ressentimento Satildeo Paulo Humanitas 2014PASSETI Edson OLIVEIRA Salete (Orgs) Terrorismos Satildeo Paulo EDUC 2006TUumlRCKE Christoph Fundamentalismus mdash maskierter Nihilismus Springe zu Klampen Verlag 2003VILAS BOcircAS Joatildeo Paulo S Niilismo fanatismo e terror uma leitura do fundamentalismo a partir de Friedrich Nietzsche 2016 Tese (Doutorado) ― Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas Universidade Estadual de Campinas Campinas

Joseacute Nicolao Juliatildeo

151

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

Joseacute Nicolao Juliatildeo1

IntroduccedilatildeoNa uacuteltima fase da sua filosofia de forma mais geral Nietzsche quis dar uma unidade

agrave sua obra como um todo isto pode ser constatado tanto nas diversas anotaccedilotildees no espoacutelio quanto no vasto epistolaacuterio2 da eacutepoca mas tambeacutem na forma organizada como reprefaciou as obras anteriores apoacutes o teacutermino de PBM No entanto do ponto de vista teoacuterico para realizar tal tarefa ele foi buscar focirclego na fecundidade do distanciamento da moral (Distanzierung von der Moral)3 Nietzsche fez do tema do distanciamento embora natildeo fosse algo novo4 uma das tarefas fundamentais da sua filosofia madura acentuando isto nos tiacutetulos dos seus tratados PBM e GM Ele procurou portanto compreender o pensamento europeu em sua totalidade a partir da sua proacutepria posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave moral contudo tinha consciecircncia que por mais que quisesse se distanciar da moral ele natildeo poderia sair totalmente do seu domiacutenio Por isso propocircs uma transvaloraccedilatildeo dos valores (Umwerthung aller Werthe) apropriando-se da historicizaccedilatildeo oferecida pelo seacuteculo XIX para fazer tal distanciamento pois uma vez que se escreve a histoacuteria de algo distanciando-se desse algo pode-se usando na medida exata a memoacuteria e o esquecimento - que o afastamento propicia - melhor avaliar esse algo tendo desta maneira a histoacuteria em geral a seu serviccedilo A moral historicizada em oposiccedilatildeo ao seu caraacuteter metafiacutesico atemporal que Nietzsche pensa desde HH I5 eacute retomada e considerada como um fato contingente que emergiu sob determinadas condiccedilotildees de existecircncia e que consequentemente pode se remodelar ou mesmo se dissolver sob outras condiccedilotildees de existecircncia e a genealogia serve exatamente para avaliar este processo

Na uacuteltima fase da sua filosofia nomeadamente fase da transvaloraccedilatildeo dos valores Nietzsche ao tratar do sentido histoacuterico a partir da histoacuteria da emergecircncia dos sentimentos morais ele o faraacute agora6 marcado essencialmente em sua relaccedilatildeo com a atividade

1 Doutor em filosofia pela UNICAMP Prof Titular da UFRRJ2 Por exemplo Cf carta para Franz Overbeck de 24 de marccedilo de 1887 (KSB 848s) carta para Meta von Salis de 14

de setembro de 1887 (KSB 8151)3 Esta eacute uma tese de Werner Stegmaier que noacutes adotamos em nossa interpretaccedilatildeo da uacuteltima fase do pensamento de

Nietzsche Cf Stegmaier 1994 p 404 Em GC 15 Nietzsche trata da questatildeo do ldquoafastamentordquo da ldquodistacircnciardquo do ldquolongerdquo que ele agraves vezes usa como Dis-

tanz ou Ferne contudo relacionando mais com questotildees esteacuteticas5 Cf HH I segunda parte ldquoContribuiccedilatildeo agrave histoacuteria dos sentimentos moraisrdquo6 Nietzsche remissivamente no prefaacutecio agrave GM diz o seguinte sobre HH ldquo[] foi agrave primeira vez que eu apresentei

a proveniecircncia daquelas hipoacuteteses as quais estas dissertaccedilotildees satildeo dedicadas com torpeza que eu seria o uacuteltimo a querer ocultar-me ainda sem liberdade sem dispor de uma linguagem proacutepria (eigne Sprache) para dizer estas coisas proacuteprias e com muacuteltiplas recaiacutedas e flutuaccedilotildees(GM prefaacutecio 4) Em nossa interpretaccedilatildeo quando Nietzsche fala de

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

152

fundamental da vontade de poder que passa a ganhar evidecircncia capital em sua obra a partir de Aurora tornando-se a sua Grundwort desde o Zaratustra e de maneira muito especial nas obras genealoacutegicas PBM e GM7 Nesse periacuteodo de modo geral tomando as obras desde PBM ateacute EH ele teraacute em relaccedilatildeo ao sentido histoacuterico uma posiccedilatildeo ora incisivamente criacutetica ora efusivamente festiva vendo-o de forma positiva dependendo do texto e contexto da sua inserccedilatildeo Deste modo em o CI vemos Nietzsche fazer um elogio ao tema muito anaacutelogo ao jaacute apresentado em HH II 17 contrapondo-o ao ldquoegipcismordquo filosoacutefico ou seja agrave falta de sentido histoacuterico dos filoacutesofos devido ao enrijecimento atemporal de suas ideias com pretensatildeo de eternidade definidas por conceitos como modo de reaccedilatildeo ao caraacuteter mutaacutevel do devir diz ele

Quereis que vos diga tudo que eacute peculiar aos filoacutesofos Por exemplo sua falta de sentido histoacuterico seu oacutedio agrave ideia do devir seu egipcismo Creem honrar uma coisa despojando-a de seu aspecto histoacuterico sub specie aeterni quando fazem dela uma muacutemia Tudo com que os filoacutesofos se ocupam haacute milhares de anos satildeo ideias mdash muacutemias nada real saiu vivo de suas matildeos Esses senhores idoacutelatras das ideias quando adoram matam e empalham tudo eacute posto em perigo de morte quando eles adoram A morte a evoluccedilatildeo a idade tanto quanto o nascimento e o crescimento satildeo para eles natildeo soacute objeccedilotildees como ateacute refutaccedilotildees O que eacute natildeo se torna natildeo se faz e o que se torna ou se faz natildeo eacute Todos acreditam desesperadamente no ser (CI ldquoA razatildeo na filosofiardquo 1)

Nas primeiras paacuteginas da mesma obra entretanto constatamos uma caricata metaacutefora para descrever o historiador que se prende ao passado acarretando assim uma grande ineacutercia para o presente ldquoA forccedila de buscar o comeccedilo se converte em um caranguejo O historiador olha para traacutes e acaba por fim tambeacutem crendo (glaubt) para traacutesrdquo (CI ldquoMaacuteximas e saacutetirasrdquo 24) Jaacute em PBM 224 KSA XI 34(229) GM I 2 e II 12 e ainda EH ldquoAs Extemporacircneasrdquo 1 notamos uma aguda criacutetica majoritariamente ao sentido histoacuterico e ao historicismo poreacutem apontando mesmo que de forma menos expressiva para certas vantagens Assim em KSA XI 34(229) do espoacutelio de 1885 vemos um tom reprovativo no que concerne ldquoao erro baacutesico de todo historiadorrdquo ao qual ele natildeo se submete - pois natildeo admite que ldquoos fatos (die facta) sejam todos bem menores do que parecem serrdquo E na referida passagem de EH remissiva agrave Ext II Nietzsche manteacutem o mesmo diagnoacutestico de doenccedila e decadecircncia do seu seacuteculo em consequecircncia do orgulho depositado no sentido histoacuterico diz ele ldquoNeste ensaio o lsquosentido histoacutericorsquo de que o presente histoacuterico tanto se orgulha eacute pela primeira vez reconhecido como doenccedila como tiacutepico sinal de decadecircnciardquo (EH ldquoAs Extemporacircneasrdquo 1) Ainda satildeo dignas de destaque no uacuteltimo periacuteodo as criacuteticas remetidas agrave fecundidade do meacutetodo evolutivo progressivo disseminado natildeo soacute na histoacuteria mas nas ciecircncias em geral ldquoprogresso eacute simplesmente uma ideia moderna ou seja uma ideia falsa O europeu de hoje vale bem menos do que o europeu do Renascimento desenvolvimento contiacutenuo natildeo eacute forccedilosamente elevar-se aperfeiccediloar-se fortalecer-serdquo (AC 4)8 Todavia o que se torna mais relevante - segundo a nossa hipoacutetese hermenecircutica - na

uma ldquolinguagem proacutepria (eigne Sprache)rdquo ele estaacute se referindo aos conceitos chaves da sua filosofia especialmente agrave vontade de poder

7 Incluindo entre essas os prefaacutecios tardios do ano de 18868 Cf tambeacutem KSA XIII 15 (8) da mesma eacutepoca com conteuacutedo parecido ldquonatildeo devemo-nos deixar enganar O

tempo caminha a diante gostariacuteamos de acreditar que tudo que estaacute nele caminhasse tambeacutem para frente ndash que o desenvolvimento eacute o que se move para adiante E quanto ao correlato do progresso a ideia de humanidade ele diz a humanidade natildeo avanccedila nem sequer existerdquo

Joseacute Nicolao Juliatildeo

153

uacuteltima fase do processo de desenvolvimento intelectual de Nietzsche em seu tratamento filosoacutefico da histoacuteria eacute a sua concepccedilatildeo de genealogia9 apresentada implicitamente em PBM e de forma muito especial em a GM Nessas obras a moral eacute historicizada a partir de novas bases contrapondo-a a visatildeo metafiacutesica-moral do mundo sendo considerada como um fato contingente que emergiu de determinadas condiccedilotildees de existecircncia e que se pode transvalorar ou mesmo se dissolver sob outras condiccedilotildees de existecircncia e por isso eacute pensada como indefiniacutevel tal como reza a exigecircncia do ldquomeacutetodordquo ldquoDefiniacutevel eacute apenas aquilo que natildeo tem nenhuma histoacuteriardquo (GM II 13)

O sentido histoacuterico e a genealogia na Genealogia da MoralA GM e a Ext II satildeo as duas obras nas quais o seu autor de forma mais ldquosistemaacuteticardquo

ndash embora repugne sistemas10 - discorre sobre a problemaacutetica da histoacuteria em sua filosofia sem contudo ligar os dois tratados natildeo haacute nenhuma referecircncia remissiva agrave obra de juventude na madura embora alguns temas sejam comuns A primeira eacute desenvolvida ainda muito influenciada pelas teses que Nietzsche apresentou em o NT que repercutiram fortemente sobre ela Jaacute a segunda eacute marcada a partir de novos paradigmas essencialmente pela atividade fundamental da vontade de poder que comeccedilou a ser delineada a partir das reflexotildees sobre o ldquosentido da potecircnciardquo em Aurora e em alguns fragmentos poacutestumos contemporacircneos mas tambeacutem por sua tentativa de oferecer uma unidade como um todo a sua obra focada na questatildeo da moral e ainda por seu distanciamento metodoloacutegico estabelecendo certo equiliacutebrio no uso da memoacuteria e do esquecimento ndash equiliacutebrio este que jaacute havia sido proposto em a Ext II - para apreender o passado Portanto em nossa hipoacutetese interpretativa depois que a GM foi apresentada como um esclarecimento (Erlaumluterung) agrave PBM ela se tornou independente se constituindo por assim dizer como o mais completo trabalho filosoacutefico de Nietzsche nela estatildeo reunidos todos os grandes temas de sua filosofia e de forma muito especial as suas consideraccedilotildees sobre a histoacuteria ndash sentido histoacuterico e niilismo - sob a insiacutegnia da genealogia

O tema do niilismo comeccedila aparecer no final da fase intermediaacuteria na filosofia de Nietzsche ganha evidecircncia precisamente em obra publicada entre o teacutermino de PBM e o iniacutecio da GM aparecendo mais destacadamente nos aforismos iniciais do quinto livro de a GC ndash os que vatildeo de 343 a 347 ndash e no conjunto poacutestumo de sentenccedilas de Lenzer-Heide ldquoO niilismo europeurdquo Em a GM11 ainda que a escrita da palavra tenha uma presenccedila tiacutemida o tema eacute recorrente ao longo dos trecircs ensaios sendo abordado tambeacutem em outros domiacutenios que natildeo o histoacuterico pois aparece ainda como sintoma de decrepitude tanto fisioloacutegico quanto psicoloacutegico A questatildeo ocorre desde o proacutelogo 4 quando confronta Schopenhauer por ter dourado e divinizado a compaixatildeo a abnegaccedilatildeo e o sacrifiacutecio transformando-os em valores em-si a partir dos quais disse um natildeo agrave vida perpassando o paraacutegrafo 12 do primeiro ensaio definindo-o como o cansaccedilo do homem por si mesmo no qual pergunta e responde ldquoo que eacute o niilismo hoje se natildeo isto Estamos cansados do homemrdquo na variada forma do niilismo compreendido como nada no paraacutegrafo 11 do segundo ensaio no qual condena como um sinal de cansaccedilo e uma hostilidade contra a vida que lanccedilaria

9 A primeira vez Nietzsche se refere a genealogia como seu pensamento filosoacutefico eacute em um fragmento do veratildeo-ou-tono de 1884 KSA XI 26 (432) no qual eacute dito ldquoQuando eu penso em minha genealogia filosoacutefica entatildeo me sinto em um contexto antiteleoloacutegico isto eacute o movimento espinosista de nosso tempo mas com uma diferenccedila que eu tambeacutem sustento que a ldquofinalidaderdquo e a ldquovontaderdquo em noacutes isto eacute um enganordquo O termo jaacute havia aparecido antes no entanto sem se referir a sua filosofia

10 Cf CI ldquoSentenccedilas e flechasrdquo 2611 Para um estudo mais apurado da relaccedilatildeo niilismo e histoacuteria em a GM cf BORN (2010)

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

154

consequentemente a humanidade futura rumo ao nada apoiado na ideia de direito de Eugen Duumlhring12 segundo a qual ldquotoda vontade deve considerar toda outra vontade como igualrdquo (GM II 11) e ganhando destaque de quem passa de coadjuvante para protagonista tambeacutem em sua variante como nada na uacuteltima linha da obra com a seguinte formulaccedilatildeo ldquoo homem ainda prefere querer o nada do que nada quererrdquo (GM III 28) Contudo em a GM a exortaccedilatildeo maior do niilismo em seu tratamento histoacuterico fica expressa na ideia de que os valores a partir dos quais a humanidade se edificou satildeo desprovidos de valor

Quanto ao termo sentido histoacuterico ele natildeo aparece cunhado sequer uma vez no tratado entretanto surge o seu similar espiacuterito histoacuterico (historischer Geist) -que o filoacutesofo jaacute havia formulado no supracitado paraacutegrafo 223 de PBM - no segundo paraacutegrafo do primeiro ensaio ldquoTodo o respeito portanto aos bons espiacuteritos que acaso habitem esses historiadores da moral Mas infelizmente eacute certo que lhes falta o proacuteprio espiacuterito histoacuterico que foram abandonados precisamente pelos bons espiacuteritos da histoacuteriardquo (GM I 2) Natildeo obstante apesar de Nietzsche natildeo falar literalmente de sentido histoacuterico em GM II 12 articulando somente a noccedilatildeo de ldquosentidordquo (ldquoSinnrdquo) de forma geneacuterica seraacute nessa seccedilatildeo que ele seraacute mais condizente lsquometodologicamentersquo com a sua ideia apresentada imediatamente logo apoacutes terminar PBM de que ldquoA filosofia tal como eu a considero como a forma mais geral da histoacuteria a tentativa de descrever e abreviar alguns sinais do vir-a-ser (Werden) heracliacutetico (traduzir e mumificar por assim dizer uma espeacutecie de ser aparente)rdquo (KSA XI 36 (27))

A exortaccedilatildeo para que a filosofia se torne histoacuterica Nietzsche algumas vezes jaacute havia se esforccedilado para mostrar isto quando por exemplo tentou descrever uma ldquohistoacuteria dos sentimentos moraisrdquo no segundo capiacutetulo de HH I ou uma ldquohistoacuteria natural da moralrdquo no quinto capiacutetulo de PBM Todavia a sua mais bem sucedida tentativa de historicizar a moral foi apresentada em a GM um livro cuja missatildeo eacute derivada a partir de uma convicccedilatildeo profunda historicista que ldquopretende conhecer sob quais condiccedilotildees e circunstacircncias que os valores morais nasceram se desenvolveram e se transformaramrdquo (GM proacutelogo 6) Com efeito a prima facie Nietzsche parece exigir um conjunto de premissas histoacutericas demonstraacuteveis tais como que realmente houve um tempo durante o qual um conjunto de valores aristocraacuteticos dominou e um momento posterior em que se tornou obsoleto devido agrave inversatildeo promovida desses valores pela moral dos escravos E chega a reivindicar a busca da ldquomoralidade como ela realmente existiu e foi realmente vividardquo ldquoa histoacuteria real da moralidaderdquo que pode ldquorealmente ser confirmada e tenha realmente existidordquo13 Isso no entanto envolveria a genealogia de Nietzsche em problemas consideraacuteveis sobre meta-histoacuteria14 e teoria da histoacuteria alguns dos quais ele mesmo apresenta Por isso para noacutes a genealogia eacute antes de tudo uma tentativa do seu autor articular a histoacuteria do desenvolvimento dos valores morais de uma forma que mine a crenccedila dos seus contemporacircneos no valor absoluto dos seus proacuteprios valores e ele faz isso em dois niacuteveis

Em primeiro lugar oferecendo uma explicaccedilatildeo histoacuterica que revela o caraacuteter intrinsecamente histoacuterico e natildeo absoluto (metafiacutesico atemporal) dos valores morais E sobre este artigo Nietzsche tinha aliados respeitaacuteveis como Paul Reacutee e a ldquoEscola Inglesardquo 12 Cf Der Wert des Lebens (1865) sobre a relaccedilatildeo de Nietzsche e Eugen Duumlhring Venturelli (2003) pp 203-23713 Cf GM proacutelogo 714 Tomamos aqui como meta-histoacuteria a investigaccedilatildeo que se propotildee a estabelecer um conjunto de regras ou leis que

regem os fatos histoacutericos e o lugar destes fatos numa visatildeo explicativa do mundo neste sentido Nietzsche teria uma antimeta-histoacuteria uma vez que em sua visatildeo histoacuterica do mundo natildeo haacute leis e regras que rejam fatos pois os fatos nem existem satildeo produtos da interpretaccedilatildeo Cf sobre uma visatildeo acerca da meta-histoacuteria na discussatildeo na teoria da histoacuteria White H (1992)

Joseacute Nicolao Juliatildeo

155

de psicologia-moral representada principalmente por Herbert Spencer15 - que seguiu a alusatildeo de Charles Darwin que mesmo a moralidade deve ser vista como um fenocircmeno evolutivo16 Mas enquanto a sua interpretaccedilatildeo de que a evoluccedilatildeo parecia garantir o status progressivo dos valores fundamentalmente cristatildeos como altruiacutesmo honestidade cooperaccedilatildeo e compaixatildeo a proacutepria ldquopsicologizaccedilatildeo-historicizadardquo de Nietzsche descobriu um lado mais obscuro da moralidade Na verdade em virtude do texto em si representar algo como um novo-darwinismo17 ou entatildeo um anti-darwinismo18 na medida em que rejeita o progresso evolutivo substituindo-o por uma visatildeo de ldquocompeticcedilatildeo entre forccedilasrdquo como um mecanismo para explicar as mudanccedilas histoacutericas Nietzsche rejeita as estimativas darwinistas refutando as suas presunccedilotildees sobre a origem do valor que repousariam no beneficiaacuterio em vez de no agente de ldquoboasrdquo ou ldquomaacutesrdquo accedilotildees acerca da natureza com a finalidade de conservaccedilatildeo19 ao inveacutes de superaraccedilatildeo sobre a passividade e o caraacuteter acidental do sucesso evolutivo e sobre a possibilidade e o valor do altruiacutesmo dentro das estruturas sociais O sucesso dessa refutaccedilatildeo reside no fato que sendo a narrativa de Nietzsche histoacuterica de alguma forma ela eacute ldquomelhorrdquo do que a alternativa soacutecio-darwinista pois eacute mais precisa e abrangente Entretanto a genealogia de Nietzsche oferece dados histoacutericos insuficientes que justifiquem a sua proacutepria interpretaccedilatildeo dos eventos e oferece poucas fontes que dificilmente comprovem muito da sua narrativa como uma histoacuteria objetiva da moralidade ela falha em grande parte para demonstrar as hipoacuteteses de Nietzsche Pelos padrotildees atuais de pesquisa em filosofia e histoacuteria das ideias as consideraccedilotildees de Nietzsche sobre o assunto seriam avaliadas como um fracassado trabalho intelectual o que ele provavelmente tomaria como elogio

Eacute no segundo niacutevel que podemos nomear de meta-histoacuterico que a genealogia nietzschiana revela a sua originalidade duradoura O filoacutesofo argumenta que a proacutepria tentativa de reconstruir a histoacuteria do desenvolvimento da moralidade tal ldquocomo ela aconteceu propriamenterdquo (wie es eigentlich gewesen ist) eacute obstruiacuteda pois o proacuteprio narrador de acontecimentos estaacute intriacutenseco na histoacuteria ou seja o proacuteprio historiador natildeo eacute sem inclinaccedilatildeo objetivamente ponto estaacutetico de observaccedilatildeo mas ele mesmo foi se tornando temporalmente carregado de valor e subjetividade Portanto ele eacute tatildeo histoacuterico e dirigidamente constituiacutedo como os valores que ele tentava explicar Ao contraacuterio dos darwinistas Nietzsche reconheceu que a histoacuteria natildeo eacute sobre como lhe dar com os fatos ldquocomo eles propriamente satildeordquo mas de interpretaacute-los de acordo com a perspectiva informada na qual o historiador foi incorporado Considerando que os darwinistas interpretaram a evoluccedilatildeo histoacuterica da moralidade como se eles proacuteprios estivessem fora dela por isso que para Nietzsche ldquocontar - apoacutes o fato - todas as doze badaladas do reloacutegio de nossa experiecircncia da nossa vida nosso ser - ah e contamos errado Pois continuamos necessariamente estranhos a noacutes mesmos noacutes natildeo nos entendemos temos que nos mal-entenderrdquo (GM proacutelogo 1) Os valores e tambeacutem a concepccedilatildeo de que noacutes mesmos como criadores de valores afetamos dinamicamente o caminho pelo qual se interpreta estes 15 Cf GM I 3 e II 1216 Spencer foi fortemente influenciado por Darwin em 1864 ele forjou em seu livro Principles of Biology a expressatildeo

a ldquosobrevivecircncia do mais aptordquo Deste modo ele procurou aplicar em sua obra as leis da evoluccedilatildeo a todos os niacuteveis da atividade humana O filoacutesofo aplicou agrave sociologia ideias que retirou das ciecircncias naturais criando um sistema de pensamento muito influente em seu tempo Segundo ele a natureza eacute fonte da verdade incluindo a verdade moral Cf sobre Spencer Francis Mark (2007)

17 Sobre o darwinismo de Nietzsche cf Richardson (2004)18 Sobre o antidarwinismo de Nietzsche cf Johnson (2010)19 Cf KSA XII 7 (25) Comparar com GC 352 PBM 253 GM Prefaacutecio 7 CI lsquoIncursotildeesrsquo 14 KSA XI 442 KSA XIII

14 (123)

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

156

valores de modo que a tentativa de re-apresentar o ldquoprimeiro sinal (signo)rdquo que o valor original livre das distorccedilotildees de geraccedilotildees para substituir a reformulaccedilatildeo e sobretudo a transvaloraccedilatildeo desses valores torna-se impossiacutevel Consequentemente diz Nietzsche

Como procederam neste caso ateacute agora os genealogistas morais Ingenuamente como sempre - eles descobrem no castigo uma lsquofinalidade (Zwerck)rsquo qualquer por exemplo a vinganccedila ou a intimidaccedilatildeo entatildeo despreocupadamente colocam essa finalidade no comeccedilo como causa fiendi (causa da origem) do castigo e ndash eacute tudo Mas lsquofinalidade no direitorsquo eacute a uacuteltima coisa a se aplicar na histoacuteria da emergecircncia do direito pois natildeo haacute proposiccedilatildeo mais importante para toda historiografia do que esta que com grande esforccedilo se conquistou mas que tambeacutem deveria ser realmente conquistada ndash o de que a causa da emergecircncia de uma coisa e a sua utilidade final a sua efetiva utilizaccedilatildeo e inserccedilatildeo em um sistema de finalidades diferem toto coelo (totalmente) de que algo existente que de alguma forma chegou a se efetivar eacute sempre reinterpretado para novo fins requisitado de modo novo transformado e redirecionado para uma nova utilidade por um poder que lhe eacute superior de que todo acontecimento do mundo orgacircnico eacute um subjugar e assenhorear-se e todo subjugar e assenhorear-se eacute uma nova interpretaccedilatildeo um ajuste no qual o ldquosentidordquo e a ldquofinalidaderdquo anteriores satildeo necessariamente obscurecidos ou completamente obliterados [] Mas todos os fins e utilidades satildeo apenas um sinal de que a vontade de poder assenhoreou-se sobre algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma funccedilatildeo e toda a histoacuteria de uma lsquocoisarsquo um oacutergatildeo um uso pode ser desse modo uma ininterrupta cadeia contiacutenua de sinais de sempre novas interpretaccedilotildees e ajustes cujas causas nem precisam estar relacionadas entre si antes podendo se suceder e substituir de maneira meramente aleatoacuteria (GM II 12)

Esta talvez seja a mais importante passagem senatildeo de toda filosofia de Nietzsche pelo menos da obra madura nela o filoacutesofo apresenta toda forccedila do seu ldquomeacutetodordquo genealoacutegico combatendo a ideia de finalidade em teoria e consequentemente a sucessatildeo causal progressiva apresentando como alternativa a doutrina da vontade de poder compreendida como disputa entre forccedilas na determinaccedilatildeo do sentido de algo Portanto natildeo haacute fato histoacuterico antes do estabelecimento da conjugaccedilatildeo do embate entre forccedilas Nessa magistral passagem Nietzsche oferece a explicaccedilatildeo mais penetrante entre as suas consideraccedilotildees sobre a histoacuteria no periacuteodo de maturidade vale a pena por isso uma investigaccedilatildeo mais cuidadosa Parece haver trecircs teses inter-relacionadas Primeiro a histoacuteria praticada corretamente deve estar coadunada com a natureza verdadeira da realidade Para Nietzsche os outros ldquogenealogistasrdquo - que neste contexto satildeo representados principalmente por Paul Reacutee e os moralistas de inspiraccedilatildeo darwinista como Herbert Spencer - estatildeo em uma posiccedilatildeo de vantagem em relaccedilatildeo aos filoacutesofos metafiacutesicos como Platatildeo Spinoza e Kant por exemplo na medida em que acertadamente reconhecem a fluidez dos conceitos morais No entanto onde os ldquogenealogistasrdquo realistas ingenuamente erram eacute na irrefletida presunccedilatildeo de que as suas proacuteprias interpretaccedilotildees dos conceitos morais satildeo de alguma forma verdadeiras por todos os tempos e para todas as pessoas em outras palavras que as suas interpretaccedilotildees do fluxo da histoacuteria de alguma forma ficam fora do fluxo da histoacuteria20 Em segundo lugar a genealogia de Nietzsche se adapta ao que poderia ser chamado de uma teoria antirrealista da explicaccedilatildeo e descriccedilatildeo histoacuterica Termos como ldquocausardquo ldquoefeitordquo 20 Cf sobre a posiccedilatildeo dos outros ldquogenealogistasrdquo e tradiccedilatildeo metafiacutesica e entre eles e a genealogia nietzschiana Johnson

(2010 p 116-148) ver tambeacutem Born (2010 p 202-52)

Joseacute Nicolao Juliatildeo

157

e ldquofinalidaderdquo natildeo satildeo elementos de um mundo ldquorealrdquo senatildeo signos que se tornaram uacuteteis para comunicar sentidos (significados) intersubjetivamente a partir de um embate entre forccedilas Em terceiro lugar e como consequecircncia das duas primeiras teses natildeo pode haver nenhuma interpretaccedilatildeo uacutenica e ldquoabsolutardquo do passado as interpretaccedilotildees satildeo funccedilotildees do mundo histoacuterico Como todos os fenocircmenos elas mudam e se transformam ao longo do tempo de acordo com as exigecircncias profundas e muitas vezes inconscientes dos agentes que inventam aceitar ou rejeitar essas interpretaccedilotildees O exemplo do castigo na passagem supracitada ilustra particularmente bem como o significado de uma uacutenica palavra se desloca em determinadas eacutepocas e culturas O que explica essa mudanccedila eacute a dinacircmica do poder fluiacutedo devido o embate de forccedilas tanto em historiadores quanto na esfera mais ampla do que uma cultura considera um ldquofato histoacutericordquo ao longo do tempo Por isso que soacute eacute definiacutevel aquilo que natildeo tem histoacuteria (GM II 13) ou seja o que eacute estagnado

Apesar da sua convicccedilatildeo de que a filosofia deva ser histoacuterica Nietzsche compreendeu simultaneamente que a escrita filosoficamente histoacuterica tem um esforccedilo profundamente problemaacutetico Qualquer tentativa de descrever ou explicar um evento histoacuterico equivale a uma descontextualizaccedilatildeo eacute ilegiacutetima a tentativa de fixar o invariaacutevel com conceitos supostamente estaacuteticos E este impasse Nietzsche descreveu em carta ao seu amigo o teoacutelogo historiador Franz Overbeck em 23 de fevereiro de 1887 ldquoenfim minha desconfianccedila agora se volta para a questatildeo de saber se a histoacuteria eacute realmente possiacutevel O que entatildeo queremos verificar (feststellen) - algo que em um momento do acontecimento natildeo eacute ldquopermanenterdquo (ldquofeststandrdquo)rdquo (KSB 8 28) A situaccedilatildeo piora ao reconhecer que natildeo soacute a realidade eacute descrita em um estado de fluxo mas aquele que a reconhece estaacute em um estado de fluxo semelhante

Por todos esses problemas por noacutes aqui levantados sobre a relaccedilatildeo precisa do histoacuterico com o filosoacutefico na genealogia necessitam ainda ser feito muitos esclarecimentos Pretendemos no final desse estudo ter uma noccedilatildeo de conjunto das consideraccedilotildees de Nietzsche sobre a histoacuteria dentro de uma abordagem que preserve a continuidade a unidade e o sentindo do processo de ressignificaccedilotildees apresentando o seu desfecho em sua noccedilatildeo de genealogia A genealogia por sua vez natildeo pode ser identificada nem com a teoria da histoacuteria nem com filosofia da histoacuteria ou seja nem como ciecircncia estrita nem como metafiacutesica Neste sentido acompanhamos Martin Saar21 argumentando que o genealoacutegico natildeo eacute o tribunal do todo histoacuterico mas que natildeo eacute algo totalmente diferente tampouco como algo totalmente restrito agrave filosofia da histoacuteria Considerando que alguns dos melhores inteacuterpretes de Nietzsche lhe atribuem agrave visatildeo de que ldquoa genealogia eacute histoacuteria corretamente praticadardquo22 Saar defende a tese de que a genealogia eacute a histoacuteria de forma diferentemente praticada ou seja a histoacuteria com uma diferenccedila que soacute pode ser explicada filosoficamente ndash acrescentamos - uma histoacuteria criativa

21 Cf Saar (2008 p 297) Cf tb Saar (2007) e (2002 p 231ndash245)22 Saar se refere explicitamente a Nehamas (1985 p 46) e a Geuss (1999 p 3 ss)

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

158

Referecircncias bibliograacuteficasNIETZSCHE Friedrich Kritische Studienausgabe (KSA) In 15 B Herausgegeben von G Colli und M Montinari BerlinNY dtvde Gruyter 1988_____ Saumlmtliche Briefe-Kritische Studienausgabe (KGB) In 7 B dtv Walter Gruyter BerlinNY dtvde Gruyter 1986BORN Marcus Andreas Nihilistisches Geschichtsdenken Nietzsches perspektivische Genealogie Muumlnchen Wilhelm Fink 2010FRANCIS Mark Herbert Spencer and the Invention of Modern Life Stocksfield Acumen 2007GEUSS R ldquoNietzsche and Genealogyrdquo in Morality Culture and History Essays on German Philosophy 17 Cambridge Cambridge University Press 1999JOHNSON Dirk R Nietzschersquos Anti-Darwinism Cambridge Cambridge University Press 2010NEHAMAS A ldquoThe Genealogy of Genealogy Interpretation in Nietzschersquos Second Untimely Meditationand in On the Genealogy of Moralsrdquo in Nietzsche Genealogy and Morality edited by Richard Schacht Berkeley University of California Press 1994 269ndash83RICHARDSON John Nietzschersquos New Darwinism OxfordNova York Oxford University Press 2004SAAR M ldquoGenealogy and Subjectivityrdquo In European Journal of Philosophy Blackwell Publishers Ltd 2002 p 231ndash245_____ Genealogie als Kritik Geschichte und Theorie des Subjekts nach Nietzsche und Foucault (Theorie und Gesellschaft) FrankfurtNew York Campus Verlag 2007_____ ldquoUnderstanding genealogy history power and the selfrdquo In Journal of the Philosophy of History 2 295ndash314 2008 STEGMAIER W Nietzsches `Genealogie der Moral` Darmstatt Wissenschaftliche Buchgellschaft 1994VENTURELLI A Kunst Wissenschaft und Geschichte bei Nietzsche BerlinNew York Walter de Gruyter 2003WHITE Hayden A Meta-Histoacuteria ndash a Imaginaccedilatildeo Histoacuterica no seacuteculo XIX Satildeo Paulo EDUSP 1992

Laura Elizia Haubert

159

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre a consciecircncia [Bewuszligtsein]

Laura Elizia Haubert1

IntroduccedilatildeoO interesse em compreender a consciecircncia bem como as estruturas da mente

ocupa um nuacutemero consideraacutevel de filoacutesofos contemporacircneos Apoacutes anos de predomiacutenio da linguagem e anaacutelise loacutegica devido agrave ldquovirada linguiacutesticardquo em especial entre os analiacuteticos nas uacuteltimas deacutecadas voltou-se a atenccedilatildeo para o problema da consciecircncia A consciecircncia se tornou novamente um toacutepico central na filosofia

Entre os temas principais destaca-se a triangulaccedilatildeo entre consciecircncia linguagem e natureza Estes trecircs toacutepicos foram o centro nas uacuteltimas deacutecadas de intensos debates e controveacutersias que abrangeram filoacutesofos neurocientistas psicoacutelogos e linguistas As diferentes aacutereas de pesquisa buscam solucionar o enigma da consciecircncia sobretudo o curioso fato de que seres bioloacutegicos foram capazes de desenvolvecirc-la

Natildeo surpreende que os olhares se voltem justamente para Nietzsche ao tratar do assunto Com efeito em suas obras e fragmentos poacutestumos o filoacutesofo oferece inuacutemeras reflexotildees sobre os temas da linguagem consciecircncia e natureza bem como sobre suas conexotildees Nietzsche discutiu a gecircnese da consciecircncia seu alcance sua supervaloraccedilatildeo as realizaccedilotildees epistecircmicas e o surgimento do ego e da linguagem Aleacutem disso o filoacutesofo ainda escreveu interessantes passagens a respeito do inconsciente e de processos da percepccedilatildeo

Apesar das numerosas passagens a respeito o tema da consciecircncia em Nietzsche foi interpretado de modo divergente por seus comentadores sendo muitas destas anaacutelises contraditoacuterias e paradoxais o que gerou a impressatildeo de que sua teoria sobre a consciecircncia seria inconsistente confusa e obscura Poreacutem essa eacute uma imagem errocircnea gerada por interpretaccedilotildees descuidadas ldquoNietzsche na verdade tem um relato coerente e novo da consciecircnciardquo (KATSAFANAS 2005 p 1)

Nietzsche parece querer demarcar os limites da consciecircncia e da linguagem na medida em que os associa a uma forma de perigo e hipostatizaccedilatildeo da consciecircncia Ele associa impulsos e consciecircncia bem como orgacircnico e psicoloacutegico Contudo suas posiccedilotildees estatildeo longe de poderem ser interpretadas de modo reducionista materialista Vale recordar que o filoacutesofo estava a par dos debates cientiacuteficos do idealismo tardio e sobre este preferiu assumir uma posiccedilatildeo de impossibilidade tanto sobre o conhecimento do mundo quanto sobre uma reduccedilatildeo ao material

1 Mestranda em Filosofia Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica-PUCSP Bolsista do CNPq

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre

160

Natildeo obstante de fato haacute em Nietzsche um destaque para o caraacuteter orgacircnico da consciecircncia em clara oposiccedilatildeo agrave noccedilatildeo de consciecircncia transcendental da tradiccedilatildeo filosoacutefica desenvolvida a partir de Descartes O filoacutesofo apresenta uma teoria da consciecircncia voltada para uma compreensatildeo a partir da fisiologia e da zoologia conforme seraacute tratado a seguir

Os aportes de Nietzsche a respeito da consciecircncia se estendem pelo periacuteodo de 1880 ateacute 1888 Os mais importantes e detalhados remontam a notas poacutestumas dos anos de 1884 e 1885 Contudo apesar do nuacutemero consideraacutevel de fragmentos apenas uma parcela diminuta de suas ideias a respeito foram tema nas obras destinadas a publicaccedilatildeo Dentre estas concentrou-se os esforccedilos de anaacutelise nos aforismos de ldquoA Gaia Ciecircnciardquo

Nesta obra haacute dois aforismos que tratam diretamente da consciecircncia o aforismo sect11 e o sect354 O aforismo sect11 remonta ao periacuteodo de escrita original da obra entre 18811882 e eacute particularmente importante Nele o filoacutesofo especifica pela primeira vez em obras publicadas a natureza pulsional e bioloacutegica da consciecircncia Jaacute o aforismo sect354 pertence ao livro V que fez parte de um acreacutescimo agrave ediccedilatildeo original em sua republicaccedilatildeo supervisionada por Nietzsche tendo sido composto no ano de 1886 (LUPO 2006)

Nas paacuteginas a seguir buscou-se sem a pretensatildeo de esgotar o rico assunto e os complexos aforismos apresentar de modo sinteacutetico o que parece ser as caracteriacutesticas essenciais da consciecircncia a saber (i) ela natildeo eacute uma propriedade essencial da mente (ii) existe uma relaccedilatildeo entre linguagem e consciecircncia e (iii) essa relaccedilatildeo depende de um caraacuteter social que auxilia a falsificar a proacutepria consciecircncia

Aforismo sect11O aforismo sect11 eacute essencial para o primeiro ponto da argumentaccedilatildeo qual seja a

consciecircncia natildeo eacute uma propriedade essencial da mente Essa caracteriacutestica parece estar embasada por ao menos duas ideias que estatildeo desenvolvidas no aforismo Satildeo elas (i) a consciecircncia eacute um desenvolvimento orgacircnico e tardio e (ii) haacute estados mentais inconscientes

Nietzsche inicia o aforismo intitulado ldquoA consciecircnciardquo (Bewuszligtsein) esclarecendo que ldquoa consciecircncia [Bewuszligheit] eacute o uacuteltimo e derradeiro desenvolvimento do orgacircnico e por conseguinte tambeacutem o que nele eacute mais inacabado e menos forterdquo (NIETZSCHE 2012 sect11) Eacute preciso analisar melhor as informaccedilotildees contidas nesta breve passagem

Em primeiro lugar porque o filoacutesofo realiza uma mudanccedila de termos Ele transforma a consciecircncia substacircncia [Bewuszligtsein] em uma consciecircncia processo [Bewuszligheit] Em segundo lugar porque com isso ele destaca que natildeo estaacute narrando a histoacuteria da consciecircncia tradicional transcendente mas sim uma histoacuteria de um sistema evolutivo que pode ser observado a partir de uma perspectiva natural e bioloacutegica A consciecircncia passa a ser algo no corpo perdendo seu privileacutegio trata-se dela como se trataria de qualquer outro oacutergatildeo (BERTINO 2012))

Esse iniacutecio do aforismo revela ainda uma outra caracteriacutestica essencial da consciecircncia O fato de que ela eacute apenas um desenvolvimento orgacircnico implica que haacute uma passagem contiacutenua para o pensador entre o fisioloacutegico e o psiacutequico Esse processo de continuidade permite que Nietzsche se afaste de qualquer compreensatildeo dualiacutestica Essa passagem junto das caracteriacutesticas aprofundadas no aforismo seguinte deu margem ao que inteacuterpretes nomearam como o princiacutepio do continuum (ABEL 2001) Isto eacute em Nietzsche do extremo inorgacircnico ateacute o orgacircnico do corpo agrave consciecircncia e aos estados mentais haacute uma contiacutenua relaccedilatildeo de desenvolvimento

Laura Elizia Haubert

161

Justamente a criacutetica de Nietzsche no aforismo visa despertar o leitor para o fato de que natildeo se pode perder de vista a ideia de que a consciecircncia eacute apenas um dos extremos de uma longa cadeia de elos onde haacute inuacutemeras relaccedilotildees entre impulsos a cada momento que estatildeo sendo passados por alto e ignorados (CONSTAcircNCIO 2011) Esta criacutetica fica ainda mais clara no decorrer do aforismo

[] Pensam que nela estaacute o acircmago do ser humano o que nele eacute duradouro derradeiro eterno primordial Tomam a consciecircncia por uma firme grandeza dada Negam seu crescimento suas intermitecircncias Veem-na como lsquounidade do organismorsquo - Essa ridiacutecula superestimaccedilatildeo e maacute-compreensatildeo da consciecircncia tem por corolaacuterio a grande vantagem de que assim foi impedido o seu desenvolvimento muito raacutepido [] (NIETZSCHE 2012 sect11)

Para Nietzsche os homens compreenderam errado a consciecircncia e a superestimaram - em especial os filoacutesofos Ela natildeo passa de algo no corpo e estaacute longe de ser o centro ou o acircmago do humano Nela natildeo haacute nada de duradouro eterno ou primordial Ela eacute pelo contraacuterio orgacircnica inacabada o que implica numa certa fraqueza de sua parte A consciecircncia natildeo eacute de todo necessaacuteria ao homem e ele poderia passar bem sem este uacuteltimo desenvolvimento tardio do corpo

Outra caracteriacutestica que parece apontar para a mesma conclusatildeo eacute o fato de que se ignorou o caraacuteter intermitente [Intermittenzen] da consciecircncia Ser intermitente significa que haacute impulsos que se desenvolvem em estados mentais conscientes e outros que natildeo Isto eacute quando se trata de estados psiacutequicos natildeo existe um ldquotudo ou nadardquo um ldquoon-offrdquo mas sim um cenaacuterio onde estados conscientes se relacionam com um nuacutemero ainda maior de estados inconscientes (CONSTAcircNCIO 2011)

Os estados conscientes teriam origem a partir de uma multiplicidade de estados inconscientes sendo a consciecircncia nada mais que uma aglutinaccedilatildeo de determinados estados conscientes que emergem em uma forma de produto final que nada tem a ver com os estados inconscientes dos quais deriva (KATSAFANAS 2016)

O proacuteprio filoacutesofo mais tarde reformulou claramente estas ideias no aforismo sect357 afirmando que ldquo[] a consciecircncia eacute tatildeo soacute um accidens [acidente] da representaccedilatildeo natildeo seu atributo necessaacuterio e essencial []rdquo porque ela constitui um desenvolvimento tardio onde ldquoapenas um estado de nosso mundo espiritual e psiacutequico (talvez um estado doentio) e de modo algum ele proacutepriordquo (NIETZSCHE 2012 sect357)

Essa mesma ideia de que a consciecircncia eacute um desenvolvimento tardio fraco inacabado e de modo algum eacute uma propriedade essencial da mente aparece melhor desenvolvida no aforismo seguinte onde o filoacutesofo apresenta sua formulaccedilatildeo mais famosa a respeito da consciecircncia

Aforismo 354Nietzsche logo na abertura do aforismo destacou novamente o caraacuteter desnecessaacuterio

da consciecircncia uma vez que ldquoo problema da consciecircncia [] soacute nos aparece quando comeccedilamos a entender em que medida poderiacuteamos passar sem elardquo Isto eacute seria possiacutevel para o homem ldquopensar sentir querer recordar poderiacuteamos igualmente lsquoagirrsquo em todo sentido da palavra e [] nada disso precisaria nos lsquoentrar na consciecircnciarsquordquo (NIETZSCHE 2012 sect354)

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre

162

Com efeito o fato de que seria possiacutevel que o homem passasse sem consciecircncia isto eacute de que ela natildeo constitui uma propriedade essencial da mente levanta quase de imediato uma questatildeo importante a saber ldquopara que entatildeo consciecircncia quando no essencial eacute supeacuterfluardquo (NIETZSCHE 2012 sect354)

A resposta do filoacutesofo eacute a de que ldquoa sutileza e a forccedila da consciecircncia estatildeo sempre relacionadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por sua vez agrave necessidade de comunicaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 2012 sect354) Isto parece implicar para inteacuterpretes que haacute formas de sentir querer pensar e agir que tornam o homem consciente de si poreacutem a efetiva consciecircncia soacute ocorre quando ela eacute formulada na comunicaccedilatildeo entre os homens (CONSTAcircNCIO 2012)

A afirmaccedilatildeo de Nietzsche eacute assim bastante radical porque implica que ldquoa reflexatildeo eacute imanente agrave comunicaccedilatildeo ou em outras palavras que haacute uma dimensatildeo inescapavelmente puacuteblica na lsquointencionalidadersquo humanardquo (CONSTAcircNCIO 2012 p 206) Isto significa que natildeo importa o quanto algueacutem possa se sentir isolado o pensamento consciente - qualquer pensamento consciente - eacute sempre embasado em uma esfera de necessidade de comunicaccedilatildeo em contexto puacuteblico

A necessidade de comunicaccedilatildeo nasceu do fato de que os homens precisaram durante geraccedilotildees sob pressatildeo fazer-se entender pelos demais de modo raacutepido e efetivo quase em uma espeacutecie de cadeia de comando e obediecircncia numa comunicaccedilatildeo de ordens que visava a sobrevivecircncia

Consciecircncia eacute na realidade apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre pessoas - apenas como tal ela teve que se desenvolver um ser solitaacuterio e predatoacuterio natildeo necessitaria dela O fato de nossas accedilotildees pensamentos sentimentos mesmo movimentos nos chegarem agrave consciecircncia - ao menos parte deles - eacute consequecircncia de uma terriacutevel obrigaccedilatildeo que por longuiacutessimo tempo governou o ser humano ele precisava sendo o animal mais ameaccedilado de ajuda proteccedilatildeo precisava de seus iguais tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensiacutevel - e para isso tudo ele necessitava antes de lsquoconsciecircnciarsquo isto eacute lsquosaberrsquo o que lhe faltava lsquosaberrsquo como se sentia lsquosaberrsquo o que pensava Pois dizendo-o mais uma vez o ser humano como toda criatura viva pensa continuamente mas natildeo o sabe o pensar que se torna consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia Em suma o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciecircncia (natildeo da razatildeo mas apenas do tomar-consciecircncia-de-si da razatildeo) andam lado a lado (NIETZSCHE 2012 sect354)

O excerto acima reitera a segunda caracteriacutestica a ser ressaltada haacute uma relaccedilatildeo profunda entre linguagem e consciecircncia De fato haacute um triacircngulo de relaccedilotildees entre linguagem consciecircncia e sociabilidade de modo que Nietzsche define a consciecircncia como uma conexatildeo [Verbindungsnetz] uma rede entre pessoas Ou seja a consciecircncia natildeo seria possiacutevel para um indiviacuteduo em completo isolamento

Isto porque aleacutem de ser um elo o desenvolvimento da consciecircncia estaacute atrelado ao desenvolvimento da linguagem Com efeito ldquoa alegaccedilatildeo central desta passagem eacute que o pensamento consciente e apenas o pensamento consciente ocorre em palavrasrdquo (KATSAFANAS 2005 p 3) Essa conexatildeo parece extremamente importante

Laura Elizia Haubert

163

Na concepccedilatildeo de Nietzsche esta relaccedilatildeo significa que natildeo apenas consciecircncia e linguagem satildeo contiacutenuas mas que satildeo mutuamente dependentes Isto eacute todo o pensamento consciente necessariamente deve ocorrer dentro da linguagem ou em suas margens e o niacutevel de clareza depende da verbalizaccedilatildeo Mas natildeo eacute possiacutevel pensar sem linguagem - ao menos uma forma consciente de pensamento (CONSTAcircNCIO 2009)

O esforccedilo empreendido por Nietzsche parece ser o de recolocar natildeo apenas a consciecircncia - coisa que ele jaacute havia feito no aforismo sect11 ndash mas tambeacutem a linguagem de volta em um domiacutenio orgacircnico e instintivo Nisto natildeo haacute nenhuma reduccedilatildeo materialista seu naturalismo eacute apenas uma forma de traduzir o homem de volta agrave sua histoacuteria isto eacute de volta agrave cultura e agrave sociedade

Por isso natildeo se pode deixar de observar a relevante afirmaccedilatildeo de Nietzsche que coloca a consciecircncia e a cultura em uma esfera natildeo meramente bioloacutegica mas em uma dependecircncia social e cultural A linguagem tal como a consciecircncia desenvolve-se a partir de uma sede histoacuterica real

A conexatildeo interna entre consciecircncia e linguagem eacute extremamente importante em vaacuterios aspectos Ao direcionar a atenccedilatildeo para o viacutenculo entre consciecircncia e linguagem surgem diferentes aspectos da consciecircncia que tecircm um status ontoloacutegico diferente dos componentes jaacute discutidos nas rubricas do lsquocontinuumrsquo lsquodesenvolvimento emergentersquo lsquoprocessorsquo e lsquoorganizaccedilatildeo funcionalrsquo O uso da linguagem e dos signos satildeo componentes que tecircm sua sede no mundo social histoacuterico e cultural Eles natildeo podem simplesmente ser reduzidos a processos orgacircnicos ou neurobioloacutegicos Isso eacute particularmente verdadeiro nos aspectos de ordem mais elevada da consciecircncia como a autoconsciecircncia a experiecircncia da sua proacutepria individualidade e as auto interpretaccedilotildees - por exemplo de um agente de accedilatildeo livre Quando se trata de tais aspectos ateacute mesmo nos presente os pesquisadores do ceacuterebro reconhecem que lsquoparecem exigir implicaccedilotildees que transcendem o reducionismo puramente neurobioloacutegicorsquo (Singer 1998 1830) O ponto decisivo eacute que a consciecircncia e a mente agora se tornaram tematizadas na interseccedilatildeo entre os desenvolvimentos na esfera natural e orgacircnica e nos domiacutenios social histoacuterico e cultural (ABEL 2015 p 48)

Assim a consciecircncia depende da comunicaccedilatildeo porque os homens satildeo animais fracos natildeo possuem garras nem forccedila nem satildeo velozes Eles precisaram desenvolver uma ferramenta que pudesse suprimir essas deficiecircncias e esta eacute justamente a linguagem e a consciecircncia Ao se comunicarem os homens estabeleceram uma rede de significados que satildeo transmitidos e permitem o agir em comum

O foco de Nietzsche eacute o problema da vulgarizaccedilatildeo ou da generalizaccedilatildeo Se a consciecircncia de um indiviacuteduo se desenvolve ao mesmo tempo que sua habilidade de se comunicar pela linguagem e se a linguagem depende de uma certa comunidade e de seus usos entatildeo o homem estaacute permanentemente condicionado por este social devido agrave linguagem mesmo naquilo que lhe parece mais iacutentimo e privado como sua consciecircncia

O que fica subentendido eacute que ldquoquando se acessa a introspecccedilatildeo e conscientemente o mundo interior individual o que se encontra laacute natildeo eacute de forma alguma individual mas sim linguiacutestico e portanto puacuteblicordquo (CONSTAcircNCIO 2015 p 307) A consciecircncia embora pareccedila interior e particular eacute jaacute um ambiente puacuteblico inserido em uma determinada comunidade que estabelece suas diretrizes Isto significa que o indiviacuteduo soacute se opotildee agrave comunidade na aparecircncia ele eacute prioritariamente um ldquoanimal de rebanhordquo

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre

164

De fato as vivecircncias individuais das quais os homens tomam consciecircncia portanto satildeo apenas aquelas que podem ser organizadas pelas palavras isto eacute que obedecem ao pressuposto esquema linguiacutestico De outra forma as impressotildees e impulsos permanecem no inconsciente onde natildeo podem ser acessadas (GIACOIA JUNIOR 2001)

Meu pensamento como se vecirc eacute que a consciecircncia natildeo faz parte realmente da existecircncia individual do ser humano mas antes daquilo que nele eacute natureza comunitaacuteria e gregaacuteria que em consequecircncia apenas em ligaccedilatildeo com a utilidade comunitaacuteria e gregaacuteria ela se desenvolveu sutilmente e que portanto cada um de noacutes com toda a vontade que tenha de entender a si proacuteprio de maneira mais individual possiacutevel de lsquoconhecer a si mesmorsquo sempre traz agrave consciecircncia justamente o que natildeo possui de individual o que nele eacute lsquomeacutediorsquo - que nosso pensamento mesmo eacute continuamente suplantado digamos pelo caraacuteter da consciecircncia - pelo lsquogecircnio da espeacuteciersquo que nele domina - e traduzido de volta para a perspectiva gregaacuteria Todas as nossas accedilotildees no fundo satildeo pessoais de maneira incomparaacutevel uacutenicas ilimitadamente individuais natildeo haacute duacutevida mas tatildeo logo as traduzimos para a consciecircncia natildeo parecem mais secirc-lo [] Este eacute o verdadeiro fenomenalismo e perspectivismo como eu o entendo a natureza da consciecircncia animal ocasiona que o mundo de que podemos nos tornar conscientes seja soacute um mundo generalizado vulgarizado - que tudo o que se torna consciente por isso mesmo torna-se raso ralo relativamente tolo geral signo marca de rebanho que a todo tornar-se consciente estaacute relacionada uma grande radical corrupccedilatildeo falsificaccedilatildeo superficializaccedilatildeo e generalizaccedilatildeo Afinal a consciecircncia crescente eacute um perigo e quem vive entre os mais conscientes europeus sabe ateacute que eacute uma doenccedila (NIETZSCHE 2012 sect354)

Desponta por fim a terceira caracteriacutestica que se buscou ressaltar a respeito da consciecircncia como em Nietzsche ela depende de um ambiente puacuteblico social que acaba por influenciar seu desenvolvimento e assim condicionaacute-lo Isto significa que embora se possa ter estados mentais privados inconscientes natildeo se pode ter estados mentais conscientes sem que eles sejam diretamente afetados pela sociabilidade

O aforismo apresenta uma inversatildeo paroacutedica da noccedilatildeo socraacutetica de conhecer a si mesmo jaacute que conhecer a si mesmo - ou qualquer forma de conhecimento - depende da consciecircncia e da linguagem que por sua vez eacute dependente do aspecto mais comum e ordinaacuterio da convivecircncia Assim o conhecer a si mesmo implica tambeacutem em uma forma de perder-se de si proacuteprio (GIACOIA JUNIOR 2001)

Essa passagem conta ainda com um jogo de palavras em alematildeo que serve para ressaltar essa condiccedilatildeo Nietzsche utiliza o termo Gemeinde (comunidade) e gemein (comum mediacuteocre) para expressar que o que estaacute na esfera da consciecircncia eacute somente o que eacute gemein porque ela se desenvolve sob a pressatildeo dos valores da Gemeinde (GIACOIA JUNIOR 2001)

De fato haacute que se observar que ldquoao empregar os mesmos signos para as mesmas experiecircncias intensifica-se a Gemeinheitrdquo (VIESENTEINER 2009 p 249) Ou seja a passagem pela linguagem ateacute a consciecircncia implica uma transformaccedilatildeo para diferentes esferas do particular interior para o comum acessiacutevel por todos Trata-se de um processo de abandono das proacuteprias singularidades em detrimento da possibilidade de sobrevivecircncia que soacute ocorre em comunidade

Laura Elizia Haubert

165

Com efeito isto significa que a linguagem - e portanto tambeacutem a consciecircncia - pressupotildee e lida jaacute com um certo ethos na medida em que eacute experimentada pelos sujeitos natildeo sendo uma criaccedilatildeo puramente epistemoloacutegica que lida com fatos racionais A linguagem e a consciecircncia satildeo responsaacuteveis por aplainar as diferentes perspectivas e impulsos pessoais por meio de um modo de falsificaccedilatildeo

O perspectivismo e o fenomenalismo da consciecircncia significam justamente que os conteuacutedos psiacutequicos inconscientes - estes podem ser verdadeiramente individuais - natildeo podem ser conceituados de uma uacutenica maneira mas sim de diversos modos desde que os homens ainda sejam capazes de compreenderem uns aos outros (KATSAFANAS 2016)

Nietzsche novamente utiliza uma seacuterie de adjetivos negativos ao tratar da consciecircncia Ela eacute uma simplificaccedilatildeo uma falsificaccedilatildeo bem como uma generalizaccedilatildeo Essas caracteriacutesticas em conjunto analisadas desvelam o fato de que a consciecircncia natildeo pode para o filoacutesofo garantir nenhuma objetividade do conhecimento natildeo fornece nenhum acesso agrave estrutura ontoloacutegica da realidade pelo contraacuterio ela eacute apenas uma forma de reduccedilatildeo da riqueza e diversidade do mundo (GIACOIA JUNIOR 2001)

Consideraccedilotildees finais Nietzsche elabora o aforismo a partir de diferentes extratos de argumentaccedilatildeo que

vatildeo ao longo do texto se intercalando Isto eacute haacute diferentes conceitos mais ou menos desenvolvidos com os quais se estaacute trabalhando constantemente - vide a consciecircncia a inconsciecircncia a linguagem e o orgacircnico para citar apenas alguns Embora ocasionalmente possam parecerem confusos o filoacutesofo sem duacutevida pretende tranccedilaacute-los em uma amaacutelgama

Consciecircncia linguagem corpo e sociedade tornam-se assim um mesmo problema observado e analisado a partir de diferentes perspectivas Pode-se falar de uma consciecircncia epistemoloacutegica racional mas ela eacute antes disso jaacute uma forma de consciecircncia eacutetica porque ela eacute linguagem e esta depende da sociedade A consciecircncia depende da linguagem e de sua forccedila violenta para poder ser expressada

Expressar-se para e com os demais faz parte das necessidades mais baacutesicas do ser humano Desta depende a proacutepria sobrevivecircncia O homem eacute colocado sob suas ordens de forma semelhante agrave situaccedilatildeo do gecircnio da espeacutecie de Schopenhauer onde o impulso sexual da espeacutecie vence qualquer forma de individualidade

Isto parece significar que em uacuteltima instacircncia a consciecircncia eacute o caminho por meio do qual o homem se perde de si mesmo porque fala porque conceitua e assim se torna cada vez mais alheio de si sem perceber as teias da linguagem que o envolvem e afastam dos instintos e impulsos pessoais e inconscientes

Por fim observa-se que a consciecircncia eacute o uacuteltimo desenvolvimento corporal algo natildeo necessaacuterio aos estados mentais algo supeacuterfluo falso e que constantemente permite enredar-se e perder-se por meio da linguagem em um mundo externo e social Em suma ao inveacutes de um voltar-se para si a consciecircncia eacute a dissoluccedilatildeo do indiviacuteduo na sociedade

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre

166

Referecircncias bibliograacuteficasABEL Gunter Bewusstsein - Sprache - Natur Nietzsche Philosophie des Geistes Nietzsche-Studien 30 2001ABEL Gunter Consciousness language and nature Nietzsche philosophy of mind and nature In DRIES Manuel KAIL PJE (ed) Nietzsche on mind and nature Oxford Oxford University Press 2015BERTINO Andrea Discovering moral aspects of the philosophical discourse about language and consciousness with Nietzsche Humboldt and Levinas In CONSTANCIO Joatildeo BRANCO Maria Joatildeo M As the Spider Spins essays on Nietzschersquos critique and use of language Berlin Walter de Gruyter 2012CONSTAcircNCIO Joatildeo Consciousness communication and self-expression Towards an interpretation of aphorism 354 of Nietzschersaquos The Gay Science In CONSTAcircNCIO Joatildeo BRANCO Maria Joatildeo Mayer As the spider spins essays on Nietzschersquos critique and use of language BerlinBoston De Gruyter 2012_____ Instinct and language in Nietzschersquos beyond good and evil In CONSTAcircNCIO Joatildeo BRANCO Maria Joatildeo Mayer Nietzsche on Instinct and Language BerlinBoston De Gruyter 2009_____ Nietzsche on decentered subjectivity or the existential crisis of the modern subject In CONSTAcircNCIO Joatildeo BRANCO Maria Joatildeo Mayer RYAN Bartholomew Nietzsche and the problem of subjectivity BerlinBoston de Gruyter 2015_____ On Consciousness Nietzschersquos departure from Schopenhauer Nietzsche-Studien n 40 p 1-42 2011GIACOIA JUNIOR Oswaldo Nietzsche como psicoacutelogo Satildeo Leopoldo Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos 2001 [Coleccedilatildeo Focus]KATSAFANAS Paul Nietzschersquos theory of mind consciousness and conceptualization European Journal of Philosophy v 13 n 1 p 1-31 2005_____ The Nietzschean self moral psychology agency and the unconscious Oxford Oxford University Press 2016LUPO Luca Le colombe dello scettico riflessioni di Nietzsche sulla coscienza negli anni 1880-1888 Pisa Edizioni ETS 2006NIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2012VIESENTEINER Jorge Luiz Experimento e vivecircncia a dimensatildeo da vida como Pathos [Tese de Doutorado apresentada a Universidade Estadual de Campinas] Campinas SP 2009

Leonardo Arauacutejo Oliveira

167

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida em Nietzsche e Rosset

Leonardo Arauacutejo Oliveira1

Clement Rosset em seu livro ldquoA forccedila maiorrdquo realiza uma leitura afirmativa de Nietzsche tendo como ponto de reflexatildeo principal a alegria aquilo que se configura como a forccedila maior referida no tiacutetulo O autor ressalta o caraacuteter paradoxal da alegria Ela pode aparecer sem qualquer motivo dispensando qualquer razatildeo de existir chegando a aparecer inclusive em sua forma mais intensa nas situaccedilotildees mais adversas possiacuteveis nos estados de penuacuteria infortuacutenio privaccedilatildeo (Cf ROSSET 1983 p11) Por seu caraacuteter paradoxal estaria situada no exterior da razatildeo A alegria tambeacutem eacute paradoxal por se constituir como uma aprovaccedilatildeo traacutegica da existecircncia Ela existe em consonacircncia com os aspectos terrificantes da vida e ela existe apenas diante dessa contrariedade e comportando uma contradiccedilatildeo interna (Cf ROSSET 1983 p25)

Sem razatildeo de ser a alegria aparece sem espera como um acreacutescimo de vida Ela se constitui como essa forccedila maior que sem uma causa determinada e especiacutefica natildeo deriva de um ponto central mas ao contraacuterio faz com que tudo mais se derive dela Que ela seja causada natildeo se dispensa que ela ignore suas causas de modo que seja permitido falar em um efeito superior agrave causa em um processo que sendo o efeito preexistente agrave proacutepria causa ele se manifesta nela de modo que o papel da causa de uma alegria seja meramente o de ceder o meio para que o efeito se expresse Rosset invoca Spinoza para ressaltar essa primazia da alegria Em sua leitura do filoacutesofo judeu ldquoo uacutenico afeto eacute a alegria (e seu contraacuterio a tristeza) todo outro afeto natildeo eacute mais do que uma modificaccedilatildeo desse afeto primeiro visto que ele estaacute sujeito aos caprichos do acaso e da sorterdquo (ROSSET 1983 p12) Eacute desse modo que o autor vecirc a afirmaccedilatildeo da vida em Nietzsche como uma forccedila primeira que guia e se manifesta nas outras esferas de sua filosofia Zaratustra busca que a alegria seja criteacuterio ateacute mesmo para o conhecimento ldquoconsideremos falsa toda verdade em que natildeo houve ao menos uma risadardquo (NIETZSCHE 2011 p 202 Z III Das velhas e novas taacutebuas 23) na medida em que enquanto manifestaccedilatildeo da vida em ascensatildeo de potecircncia o riso se autojustifica ldquopois no riso tudo que eacute mau se acha concentrado mas santificado e absolvido por sua proacutepria bem-aventuranccedilardquo (NIETZSCHE 2011 p 221 Z III Os sete selos 6)

Rosset constata que na histoacuteria da filosofia predomina a ideia de que a alegria soacute eacute legiacutetima se situada para aleacutem da simples alegrias dos encontros durante a passagem da vida O autor busca uma concepccedilatildeo de alegria que se situe precisamente na contingecircncia naquilo que eacute pereciacutevel mutaacutevel inacabado impermanente efecircmero o juacutebilo terreno que se daacute

1 Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida

168

nos encontros habituais com a fruiccedilatildeo da vida a simples alegria de viver (Cf ROSSET 1983 p19-20) Essa ideia parece ganhar muito espaccedilo no pensamento de Nietzsche Renegar a alegria pueril da vida em sua ingenuidade em nome da esperanccedila em uma alegria permanente por vir consiste naquela confianccedila no supraterreno a qual Zaratustra se contrapotildee logo no iniacutecio de sua jornada Essa accedilatildeo eacute proacutepria daqueles que Zaratustra denomina de ldquotransmundanosrdquo homens esgotados paralisados cansados da vida Contra todo tipo de permanecircncia Zaratustra eacute partidaacuterio do movimento e da oscilaccedilatildeo ldquoEu sou um andarilho e um escalador de montanhas disse para seu coraccedilatildeo eu natildeo gosto de planiacutecies e ao que parece natildeo posso ficar muito tempo paradordquo (NIETZCHE 2011 p145 Z III O andarilho) Ao abandonar toda transcendecircncia Zaratustra se volta para terra e encontra regozijo nos encontros que realiza com travessias homens animais montanhas alimentos e consigo mesmo ndash visto que a variaccedilatildeo contiacutenua a impermanecircncia a transformaccedilatildeo se realizam desde o corpo proacuteprio

Mas Zaratustra tambeacutem se entristece Talvez seja essa a resistecircncia que seria possiacutevel encontrar na histoacuteria da filosofia a respeito da alegria natildeo suportar a exigecircncia de variaccedilatildeo desse afeto que pode por muitas vezes ser vertido em seu contraacuterio das maneiras mais avassaladoramente inesperadas Essa exigecircncia tambeacutem contempla o aspecto paradoxal da alegria como enfatiza Rosset Quando o sofrimento subtrai a alegria e invade o espiacuterito alegre ele ainda eacute considerado pela sabedoria alegre ndash enquanto conhecimento traacutegico ndash como um estimulante um ldquoacreacutescimo de gaacuteudio [gaieteacute] que prevalece sobre o sofrimentordquo (ROSSET 1983 p43) O sofrimento aparece como uma prova para a alegria Nas palavras de Zaratustra ldquoDissestes uma vez Sim a um soacute prazer Oh meus amigos entatildeo dissestes tambeacutem Sim a todo sofrimentordquo (NIETZSCHE 2011 p307 Z IV O canto eacutebrio 10 grifo do autor)

Rosset inicia seu capiacutetulo sobre Nietzsche e a moral enfatizando as intenccedilotildees criacuteticas de Nietzsche mormente nos uacuteltimos anos de sua produccedilatildeo em que estaria concentrado seu projeto de transvaloraccedilatildeo dos valores mas potildee em cheque a interpretaccedilatildeo ndash segundo ele dominante entre comentadores ndash que faz de Nietzsche um filoacutesofo que pauta sua filosofia sob uma inclinaccedilatildeo fundamentalmente criacutetica pois a preocupaccedilatildeo criacutetica natildeo poderia estar em primeiro lugar em uma filosofia da afirmaccedilatildeo da vida A criacutetica seria secundaacuteria e proveniente da afirmaccedilatildeo Nietzsche natildeo estaria fundamentalmente engajado na luta contra a moral contra o cristianismo contra o platonismo etc Assim Rosset declara abertamente que esse ponto da leitura de Deleuze eacute contestaacutevel O autor de Nietzsche e a filosofia centra o peso da filosofia de Nietzsche na postura criacutetica valorizando a desmistificaccedilatildeo como o ponto mais positivo da filosofia e chegando a encontrar a afirmaccedilatildeo naquilo que Rosset denomina de ldquonegaccedilatildeo dialeacutetica da negaccedilatildeordquo (ROSSET 1983 p 74-75)

Rosset reconhece a discussatildeo entre o negativo e o positivo como possivelmente o principal problema interno da filosofia nietzschiana mas eacute categoacuterico em sua posiccedilatildeo o poder criacutetico natildeo pode ser o mais positivo ele deve advir do poder afirmativo Seria faacutecil notar segundo o autor que a criacutetica enquanto derivada da afirmaccedilatildeo incidiria sobre elementos julgados como natildeo-afirmativos Entretanto Rosset se pergunta como essa ldquocriacutetica dialeacuteticardquo se sustenta a partir da recusa de Nietzsche em alguns momentos agrave luta e a acusaccedilatildeo como no 276 da Gaia ciecircncia em que eacute apresentado o amor fati Segundo o autor o caminho da resoluccedilatildeo da questatildeo consiste em uma delimitaccedilatildeo do conceito nietzschiano de criacutetica

Leonardo Arauacutejo Oliveira

169

Em um procedimento negativo Rosset inicia pela explicitaccedilatildeo do sentido de criacutetica que Nietzsche natildeo faz uso ldquopocircr em duacutevida contestar atacar acusarrdquo Esse seria o uso mais cotidiano do termo Assim seria preciso ir ateacute a etimologia do mesmo onde se poderia encontrar o sentido do uso nietzschiano da criacutetica ldquocriticar significa tambeacutem e primeiramente segundo a etimologia grega e latina do termo (Krinocirc kritikos cernere) observar discernir distinguirrdquo(ROSSET 1983 p 76) Esse segundo sentido natildeo contempla a ideia de combate luta conflito Essa eacute a razatildeo para Rosset valorizaacute-lo Aos olhos do autor a criacutetica de Nietzsche natildeo visa o ataque mas a compreensatildeo natildeo intenta uma interferecircncia na realidade natildeo busca remeacutedios soluccedilotildees mudanccedilas mas consiste em ver e fazer ver natildeo tem como fito diminuir a tolice e a baixeza do pensamento (como diz Deleuze) mas se efetua como uma espeacutecie de observaccedilatildeo impiedosa embora sem qualquer ldquomaacute intenccedilatildeordquo ldquoEacute por isso que os comentadores atuais que atribuem a Nietzsche uma preocupaccedilatildeo qualquer com a luta contra os valores estabelecidos ou contra qualquer outra coisa me parecem ter feito o caminho erradordquo (ROSSET 1983 p 74-77)

Pensando no aspecto positivo Rosset acredita haver uma moral em Nietzsche mas diz que ela eacute secundaacuteria estabelece sua constituiccedilatildeo em suma enquanto uma moral do gozo de todas as coisas O homem virtuoso seria aquele capaz de gozar o mundo Em contrapartida aquilo que Nietzsche criticaria aquele que ele condenaria moralmente seria o homem do sofrimento e do ressentimento Rosset concorda com Deleuze na caracterizaccedilatildeo psicoloacutegica desse tipo de homem ele eacute impossibilitado de reagir Ele absorve a dor o sofrimento a ofensa mas natildeo expressa seu rancor ao inveacutes disso paralisa Assim o homem do ressentimento impossibilitado de afirmar natildeo consegue nem mesmo negar Ele se contenta em emitir falsos ldquosinsrdquo (Cf ROSSET 1983 p 78-79) Eacute ele a quem Nietzsche representa com a figura do asno de Zaratustra

Em um primeiro momento pensar que a criacutetica entra em conflito com a afirmaccedilatildeo da vida pode nos levar a seguinte linha de leitura que encontra eco em textos de Nietzsche se a principal preocupaccedilatildeo do autor do Anticristo fosse uma criacutetica total levada ateacute o fim de sua potecircncia ateacute mesmo a vida natildeo escaparia dela o que desembocaria em um conflito com a insiacutegnia nietzschiana de que a vida natildeo pode ser avaliada que ao contraacuterio ela eacute o criteacuterio de toda avaliaccedilatildeo Assim a criacutetica soacute poderia ser secundaacuteria em relaccedilatildeo agrave vida e sua afirmaccedilatildeo uma vez que a avaliaccedilatildeo deve partir dela ateacute mesmo a avaliaccedilatildeo daqueles que se potildeem a avaliar a vida ndash nos termos de Zaratustra ldquoEsses acusadores da vida a vida os supera com um piscar de olhosrdquo (NIETZSCHE 2011 p209 Z III O convalescente)

A passagem do Crepuacutesculo dos iacutedolos em que se baseia o argumento acima parece sugerir que a vida seria um elemento extra-filosoacutefico e por isso estaria fora do acircmbito da avaliaccedilatildeo Rosset ressalta como o tema da afirmaccedilatildeo da vida natildeo tem justificaccedilatildeo teoacuterica Ele o coloca sempre em termos necessitaristas e afetivos como que separados de qualquer teoria Contudo gostariacuteamos de lembrar que mesmo se a vida eacute uma tema difuso e de difiacutecil articulaccedilatildeo conceitual em Nietzsche o autor se preocupa em ligaacute-la agrave vontade de poder conceito sobre o qual ele teoriza fecundamente Sobre a afirmaccedilatildeo da vida em especiacutefico ela se encontra atrelada a doutrina do eterno retorno Esses dois conceitos que se apresentam na trama de Zaratustra estabelecem a vida e sua afirmaccedilatildeo como um problema filosoacutefico debatido filosoficamente ainda que com ferramentas pouco aceitaacuteveis em alguns ciacuterculos como a narrativa a linguagem metafoacuterica o uso deliberadamente retoacuterico da escrita a dramatizaccedilatildeo a movimentaccedilatildeo e transformaccedilatildeo de ideias em funccedilatildeo de seus contextos de aplicaccedilatildeo em suma mecanismos que supotildeem uma noccedilatildeo mais ampliada de argumentaccedilatildeo

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida

170

Do mesmo modo Nietzsche natildeo visa simplesmente negar ou se opor agrave razatildeo mas pensar uma noccedilatildeo mais ampliada de racionalidade culminando naquilo que Zaratustra denomina de ldquogrande razatildeordquo

Mas essa natildeo parece ser a preocupaccedilatildeo de Rosset Ele se concentra em explicitar a recusa de Nietzsche ao combate ao ataque agrave condenaccedilatildeo Pois bem de fato em alguns momentos de sua produccedilatildeo Nietzsche se coloca numa posiccedilatildeo de recusa ao embate em que se considera demasiadamente nobre para lutar Por exemplo em Ecce homo quando comenta que sua campanha contra a moral em Aurora natildeo tinha relaccedilatildeo com negaccedilatildeo ou ataque (Cf NIETZSCHE 2008 p75 EH A 1) e na Gaia ciecircncia em que ao declarar o amor fati se recusa a ser um acusador (Cf NIETZSCHE 2001 p 166 GC 276) Contudo em vaacuterias outras passagens de Nietzsche (muitas citadas aqui) o conflito eacute natildeo soacute elogiado (filosofia praacutetica) como tambeacutem eacute necessaacuterio (ontologia) Para quem atribui creacutedito a uma ideia de filosofia primeira tem-se o conflito de forccedilas desde sua cosmologia ou ontologia da vontade de poder

Assim falou Zaratustra eacute uma obra providencial para ser tomada como contra-exemplo agrave recusa de conflito e negaccedilatildeo em Nietzsche O ldquodizer natildeordquo eacute de fundamental importacircncia para o percurso de Zaratustra Esse dito soa inclusive tatildeo necessaacuterio quanto o ldquodizer simrdquo O natildeo do leatildeo o guerreiro amado pela sabedoria a paz como mero meio para a guerra o momento certo de dizer natildeo o retorno de Zaratustra possibilitado por sua negaccedilatildeo o desejo apreccedilo e amor pelos inimigos negar como a tempestade destruir como o raio a tripla negaccedilatildeo tripla contra o adivinho contra os homens do fastio e contra a reparaccedilatildeo dos males acomodaccedilotildees e caminhos faacuteceis Essas ideias e imagens constituem alguns dos momentos de negaccedilatildeo e conflito pelos quais passa e aos quais chega Zaratustra

Do mesmo modo eacute possiacutevel contrapor o texto do Zaratustra a ideia de Rosset de que Nietzsche natildeo visava criticar os valores estabelecidos Ora o ldquonatildeordquo do leatildeo se direciona precisamente a eles O problema do valor eacute tatildeo importante ao ponto de se declarar o estreito viacutenculo entre vida e avaliaccedilatildeo Eacute veemente a necessidade da destruiccedilatildeo de valores que seratildeo substituiacutedos reposicionados criados precisamente por aqueles que satildeo a um soacute tempo criadores e combatentes O texto clama pelo destroccedilamento das velhas taacutebuas de valores

Portanto o sentido predominante da criacutetica em Nietzsche natildeo eacute aquele que tem como eixo principal a observaccedilatildeo e o discernimento A maneira com que Rosset a enuncia dando relevo a falta de acusaccedilatildeo agrave compreensatildeo ao fazer ver lembra um trecho da Gaia ciecircncia em que Nietzsche critica Spinoza por esse uacuteltimo segundo o filoacutesofo alematildeo ignorar que a compreensatildeo natildeo existe de forma independente a certos afetos uma vez que inversamente natildeo existe o puro entendimento A compreensatildeo se envolve com uma complexidade de afetos da qual ela resulta Nietzsche se opotildee a tal pretensatildeo ao purismo no campo do conhecimento

A questatildeo natildeo pode ser separada da problemaacutetica da vontade e poder e do perspectivismo Ateacute mesmo no que diz respeito agraves ciecircncias da natureza em sua relaccedilatildeo com o conhecimento puro somente o que comportaria de pureza seria sua pretensatildeo a esse ideal de conhecimento que natildeo ultrapassaria a condiccedilatildeo de pura pretensatildeo pois o perspectivismo implicado ao conceito de vontade de poder tambeacutem atua no saber cientiacutefico fazendo com que esse tipo de conhecimento esteja embasado natildeo em fatos mas em interpretaccedilotildees vinculadas a manifestaccedilotildees de vontades de poder

Leonardo Arauacutejo Oliveira

171

Ainda que fosse possiacutevel conceber um ser humano que anulasse seus afetos e sua proacutepria vontade ao adentrar no processo gnosioloacutegico natildeo se poderia estabelecer uma separaccedilatildeo entre ciecircncia e vontade uma vez que esse homem estaria a serviccedilo de interesses de outro(s) Esse tipo de ser humano eacute configurado por Nietzsche com a imagem do erudito Se Nietzsche aderisse a essa espeacutecie de ldquoobservaccedilatildeo imaculadardquo pela qual Rosset concebe a criacutetica ele se aproximaria dos eruditos que tanto critica tendo dedicado uma seccedilatildeo de Assim falou Zaratustra para essa criacutetica Sobre eles nos diz Zaratustra ldquose acham frequentemente sentados na fria sombra querem ser apenas espectadores em tudo e evitam sentar-se ali onde o sol queima os degrausrdquo (NIETZSCHE 2011 p119 Z II Dos eruditos) Essa observaccedilatildeo somente pela observaccedilatildeo oblitera o envolvimento afetivo ligado a toda compreensatildeo natildeo passando de uma armadilha moral

Eacute certo que a noccedilatildeo de criacutetica em Nietzsche comporta o sentido do afastamento para um bom discernimento Mas como procuramos mostrar ateacute aqui esse sentido natildeo eacute uacutenico e nem primeiro em relaccedilatildeo aos outros Aleacutem disso esse proacuteprio afastamento natildeo eacute unitaacuterio mas muacuteltiplo O conhecimento eacute tanto mais preciso quanto mais observaccedilotildees diversas forem realizadas (Cf NIETZSCHE 2009 p110 GM III 13) Em alguns momentos essa distacircncia tomada natildeo visa somente a constataccedilatildeo mais apurada mas tambeacutem algo como uma tomada de impulso com o fito de acertar um golpe mais forte

Essa concepccedilatildeo de criacutetica como pura observaccedilatildeo sem interferecircncia ou qualquer tipo de intenccedilatildeo transformadora se adeacutequa bem a concepccedilatildeo que Rosset faz da afirmaccedilatildeo da vida um gozo irrestrito e irracional de todas as coisas Residiria aiacute a ldquoaprovaccedilatildeo jubilatoacuteria da existecircncia sob todas suas formasrdquo (ROSSET 1983 p74) Contudo ambas as concepccedilotildees bem como seu casamento natildeo se aliam ao reconhecimento da criacutetica de Nietzsche ao ldquofalso simrdquo Eacute certo que a figura do asno pode representar adequadamente o homem ressentido aquele que natildeo sabe negar e que toma a pura resignaccedilatildeo como afirmaccedilatildeo Mas eacute certo tambeacutem que essa figura pode representar aqueles que Zaratustra denomina de ldquocontentes com tudordquo Contra esses Zaratustra aponta a necessidade da negaccedilatildeo a capacidade de selecionar a necessidade de se diferenciar daqueles que se alimentam de tudo sem qualquer criteacuterio

O ldquonatildeordquo eacute importante para a afirmaccedilatildeo na medida em que a afirmaccedilatildeo nietzschiana natildeo ldquoafirmardquo tudo de modo indiferente isto eacute natildeo aceita tudo A afirmaccedilatildeo se liga a uma seleccedilatildeo e portanto um percurso afirmativo natildeo dispensa a negaccedilatildeo Em Ecce homo Nietzsche diz que o homem dotado de uma iacutendole bem lograda (Wohlgeratenheit) eacute ldquoum princiacutepio seletivordquo (NIETZSCHE 1999 p419 EH Por que sou tatildeo saacutebio 2) A aprovaccedilatildeo de tudo eacute uma afirmaccedilatildeo inadequada Nos termos do bestiaacuterio de Zaratustra trata-se da aceitaccedilatildeo de toda carga pelo camelo do falso e grotesco ldquosimrdquo do asno e da asquerosa alimentaccedilatildeo do porco

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida

172

Referecircncias bibliograacuteficasNIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011_____ Ecce homo como algueacutem se torna o que eacute Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008_____ Genealogia da moral uma polecircmica Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Obras incompletas Traduccedilatildeo de Rubens Rodrigues Torres Filho Satildeo Paulo Nova Cultural 1999 (Col Os pensadores)ROSSET Clement La force majeure Paris Les Eacuteditions de Minuit 1983

Luiza Fonseca Regattieri

173

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche e seus desdobramentos eacutetico-esteacuteticos

Luiza Fonseca Regattieri1

IntroduccedilatildeoA proposta desta apresentaccedilatildeo eacute abordar os pontos que eu acredito serem iniciais

para pensar um sentido de justiccedila proacuteprio agrave filosofia de Nietzsche Para nesse vieacutes de investigaccedilatildeo eu possa comeccedilar a delinear a hipoacutetese de que Nietzsche relacionaria justiccedila e gosto borrando os limites entre eacutetica e esteacutetica

Em Genealogia da Moral Nietzsche critica o esforccedilo filosoacutefico moderno em especial o de Eugen Duumlhring2 de colocar a justiccedila como um princiacutepio de accedilatildeo impulsionado pela vinganccedila e o ressentimento (Cf DUumlHRING 2011) Nesta tradiccedilatildeo moderna criticada por Nietzsche a justiccedila se implicaria moral e politicamente a partir desses afetos para superaacute-los atraveacutes de um complexo de poder imparcial com o fim de garantir igualdade universal e eliminar as injusticcedilas (NIETZSCHE 1998 p 64-65GM II sect11) Diferentemente para Nietzsche a justiccedila natildeo proveria de tais afetos e nem teria uma funccedilatildeo correcional da vida como defende Duumlhring Nietzsche propotildee algo diferente em GM que a justiccedila surge como ldquoboa vontade entre homens de poder aproximadamente igual [] de lsquoentender-sersquo mediante um compromissordquo (NIETZSCHE 1998 p 60GM II sect8) ldquocomo um meio na luta entre complexos de poderrdquo (NIETZSCHE 1998 p 65GM II sect11) ldquopara criar maiores unidades de poderrdquo (NIETZSCHE 1998 p65GM II sect11) Essa definiccedilatildeo pode nos lembrar tambeacutem um fragmento poacutestumo de 1884 em que ele escreve ldquoJusticcedila como funccedilatildeo de um poder de abrangecircncia da visatildeo que olha aleacutem das pequenas perspectivas de bem e mal portanto um horizonte mais amplo de vantagem ndash do que a intenccedilatildeo de obter algo que eacute mais do que isso ou essa pessoardquo (NIETZSCHE FP-1884 26[149])

Para entendermos essa definiccedilatildeo eu vou adentrar nos pontos que eu entendo como centrais desta investigaccedilatildeo a partir dos seguintes elementos conceituais a) a necessaacuteria injusticcedila (NIETZSCHE 2000 p 12-13 e 38-39HDHI Proacutelogo sect6 HDHI sect32) b) a boa vontade de entender-se (NIETZSCHE 1998 p 60GM II sect8) c) o mal-entendimento (NIETZSCHE 1998 p 7GM Proacutelogo sect1 BM sect27) d) a autosubsunccedilatildeo da justiccedila (NIETZSCHE 1998 p 62GM II sect10) e e) o gosto (NIETZSCHE 2001 p 169GC III sect184 HDHII sect219 HDHII sect170)

1 Doutoranda no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGFUFRJ) 2 (1833-1921) filoacutesofo e economista poliacutetico alematildeo

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche

174

Justiccedila e gosto borrando os limites entre eacutetica e esteacutetica Em Humano demasiado humano I na seccedilatildeo 32 Nietzsche escreve sobre a

necessidade de ser injusto a primeira informaccedilatildeo que Nietzsche nos apresenta nesse aforismo eacute de que os juiacutezos satildeo injustos porque iloacutegicos Ele define a injusticcedila como uma incontornaacutevel inexatidatildeo do juiacutezo no entanto aqui entra sua segunda informaccedilatildeo o juiacutezo natildeo pode ser freado i e ele se daacute necessariamente na vida em todo impulso em toda accedilatildeo Avaliar ou seja julgar a vida os valores os acontecimentos eacute irrenunciaacutevel embora seja uma operaccedilatildeo inevitavelmente iloacutegica Eacute impossiacutevel haver conhecimento absoluto ou exato de algo ou algueacutem pois ldquoo modo como se apresenta o material [eacute] muito incompletordquo (NIETZSCHE 2000 p 38-39 HDHI sect32) cada parte dele nos chega de maneira inexata e sua soma natildeo poderia ser atingida a partir dessa inexatidatildeo Aleacutem disso natildeo haacute algo estaacutevel que sirva de crivo ou medida para o julgamento natildeo haacute uma grandeza imutaacutevel natildeo existe um fundamento que justifique a avaliaccedilatildeo que faccedila jus ao julgamento

Nietzsche toma como necessaacuterio o movimento irrefreaacutevel de fundar apesar do sem fundamento proacuteprio da criaccedilatildeo de modos de vida Disso decorre a terceira ideia que ele apresenta ldquosomos [] capazes de reconhecerrdquo (NIETZSCHE 2000 p 39 HDHI sect32) esta insoluacutevel desarmonia da existecircncia conseguimos perceber o sem fundamento da vida e nosso movimento de fundamentaacute-la Parto da hipoacutetese que essa capacidade eacute a funccedilatildeo da justiccedila no sentido nietzschiano A justiccedila eacute o natildeo desviar do olhar para a produccedilatildeo de fundamentaccedilotildees e para o campo de batalha entre elas Ela se exercita como dever de

aprender a perceber o que haacute de perspectiva em cada valoraccedilatildeo [em disputa] ndash o deslocamento a distorccedilatildeo e a aparente teleologia dos horizontes e tudo o que se relaciona agrave perspectiva tambeacutem o quecirc de estupidez que haacute nas oposiccedilotildees de valores e a perda intelectual com que se paga todo proacute e todo contra Vocecirc deve apreender a injusticcedila necessaacuteria de todo proacute e contra a injusticcedila como indissociaacutevel da vida a proacutepria vida como condicionada pela perspectiva e sua injusticcedila (NIETZSCHE 2000 p 12-13HDH I Proacutelogo sect 6)

A justiccedila se daacute entatildeo neste incessante aprender a perceber perspectivas e perdas da avaliaccedilatildeo Esse sentido eacute retomado em Genealogia da Moral quando Nietzsche define a justiccedila como o empenho de entender ldquojusticcedila eacute a boa vontade entre humanos de poder aproximadamente igual [] de lsquoentender-sersquordquo (NIETZSCHE 1998 p 60GM II sect8) O entender-se foi destacado entre aspas no texto original Essa ecircnfase lembra singelamente ao leitor que se o entendimento pleno natildeo eacute possiacutevel o entender pressupotildee um ldquomal-entenderrdquo (NIETZSCHE 1998 p 7GM Proacutelogo sect1) como explica Nietzsche

Eacute difiacutecil ser entendido [] ndash faccedilo eu tudo para me tornar dificilmente entendido ndash e deve-se ser de coraccedilatildeo reconhecidamente grato soacute pela boa vontade em alguma sutileza de interpretaccedilatildeo Que [isso] poreacutem diz respeito ldquoaos bons amigosrdquo que estatildeo sempre em [situaccedilatildeo] cocircmoda e justamente por serem amigos acreditam ter direito a tal comodidade ora eacute bom que se conceda a eles de imediato uma margem de manobra e um espaccedilo de recreaccedilatildeo para o mal-entendimento - assim se haacute de rir ainda - ou absolutamente [haacute] de se repelir esses bons amigos e assim tambeacutem rir (NIETZSCHE 1992 p 32BM sect27)

Luiza Fonseca Regattieri

175

Nietzsche coloca nesse aforismo algo que deve haver ali no movimento para entender uma boa vontade em alguma sutileza de interpretaccedilatildeo ou seja um empenho de querer entender considerar natildeo ser indiferente Afinal ele afirma ldquoquem nada entendeu de mim negava que eu em geral fosse levado em consideraccedilatildeordquo (NIETZSCHE 1995 p 21-22EH Por que escrevo tatildeo bons livros sect1) Essa eacute a mesma boa vontade que Nietzsche coloca como condiccedilatildeo para ldquoQuando realmente acontece de o homem justo ser justo [] (e natildeo apenas frio comedido distante indiferente ser justo eacute sempre uma atitude positiva)rdquo (NIETZSCHE 1998 p 63GM II sect11)

O filoacutesofo ainda recomenda que agrave boa vontade seja concedida uma ldquomargem de manobra e um espaccedilo de recreaccedilatildeo para o mal-entendimentordquo (NIETZSCHE 1992 p 32BM sect27) Como bem aponta Werner Stegmaier no artigo traduzido como Signos de Nietzsche o mal-entender eacute acolher a incompreensatildeo como compreensatildeo ou seja ldquoesforccedilar-se por condescender a outros por meio de compreensibilidaderdquo (STEGMAIER 2013 p 143) e o acolhimento do incompreendido se daacute nessa margem de manobra e espaccedilo de recreaccedilatildeo apontado por Nietzsche3 Esse espaccedilo natildeo eacute algo necessaacuterio Nietzsche o recomenda ldquoeacute bom que se concedardquo (NIETZSCHE 1992 p 32BM sect27) Mas a concessatildeo de um espaccedilo para o acolhimento do incompreensiacutevel do estranho da diferenccedila soacute eacute possiacutevel quando se reconhece a estranheza Nesse sentido como observa Stegmaier conceder a margem de manobra para o mal-entendimento eacute uma soluccedilatildeo eacutetica fornecida por Nietzsche para o problema da dificuldade de ser entendido (STEGMAIER 2013 p139) Essa margem evidencia que o entendimento eacute a possibilidade de entendermos algo e nesse mesmo ato produzir e acolher um equiacutevoco

Proponho que a soluccedilatildeo eacutetica indicada por Nietzsche agrave dificuldade de ser entendido pode ser aplicada tambeacutem agrave justiccedila o acolhimento da ambivalecircncia A justiccedila em Nietzsche seria esse espaccedilo de recreaccedilatildeo essa margem de manobra Quando Nietzsche escreve ldquoVocecirc deve apreender a injusticcedila necessaacuteria de todo proacute e contra a injusticcedila como indissociaacutevel da vida []rdquo (NIETZSCHE 2000 p 12-13HDH I Proacutelogo sect 6) ele tambeacutem aqui recomenda ndash ldquovocecirc deverdquo ndash que se conceda a margem para o acolhimento da inexatidatildeo do juiacutezo Para esse acolhimento Nietzsche nos diz que eacute preciso boa vontade ou seja esforccedilo para perceber a injusticcedila que necessariamente resta na justiccedila esta eacute sua genialidade ser ldquouma adversaacuteria das convicccedilotildeesrdquo (NIETZSCHE 2000 p 305HDHI sect636)

Entretanto independentemente dessa ambivalecircncia ser acolhida a produccedilatildeo do sentido de justiccedila eacute marcada por ela Nietzsche em Genealogia da Moral descreve que a produccedilatildeo do justo em uma comunidade se daacute por um processo de suspenccedilatildeo do que se compreendia como justiccedila anteriormente O que outrora se compreendeu por justiccedila eacute visto por uma nova perspectiva como injusticcedila e a partir disso eacute produzido um novo sentido de justo Nietzsche denomina esse processo de autossubsunccedilatildeo da justiccedila

Aumentando o poder de uma comunidade ela natildeo mais atribui tanta importacircncia aos desvios do indiviacuteduo [] pelo contraacuterio [] as tentativas de achar equivalentes e acomodar a questatildeo (compositio) [] a vontade cada vez mais firme de considerar toda infraccedilatildeo resgataacutevel de algum modo de isolar [] o criminoso de seu ato ndash estes satildeo os traccedilos que marcam cada vez mais nitidamente a evoluccedilatildeo posterior do direito

3 Stegmaier descreve esse espaccedilo de manobra ldquocomo um espaccedilo no qual algueacutem ou alguma coisa pode se comportar de acordo com lsquoregras de atuaccedilatildeorsquo (Spielregen) proacuteprias espaccedilo que natildeo obstante eacute limitado por meio de regras ou dados de fato (Gegebenheiten) sobre os quais nem um nem outro nesse espaccedilo pode ldquorecreandordquo impor-serdquo (2013 p 143)

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche

176

penal [] A justiccedila que iniciou com ldquotudo eacute resgataacutevel tudo tem que ser pagordquo termina como toda coisa boa sobre a terra superando a si mesma [sich selbst aufheben] A autossubsunccedilatildeo [Selbstaufhebung] da justiccedila sabemos com que belo nome ela se apresenta ndash graccedila ela permanece como eacute oacutebvio privileacutegio do poderoso ou melhor o seu ldquoaleacutem do direitordquo (NIETZSCHE 1998 p 61-62GM II sect10)4

O aforismo nos mostra que uma forma de justiccedila (compensaccedilatildeo ldquotudo eacute resgataacutevel tudo tem que ser pagordquo) eacute negada por uma perspectiva que a vecirc como injusta assim para se superar essa injusticcedila se produz uma nova compreensatildeo de justiccedila (composiccedilatildeo) Nesse sentido a justiccedila se processa enquanto autossuspenccedilatildeo isto eacute superaccedilatildeo de injusticcedilas sem entretanto extinguir a injusticcedila que lhe eacute inerente natildeo podendo assim dar cabo agrave sua proacutepria produccedilatildeo

Nietzsche entende que esse movimento de superaccedilatildeo acontece irrefreavelmente ldquoSe crescem o poder e a consciecircncia de si de uma comunidade torna-se mais suave o direito penal se haacute enfraquecimento dessa comunidade [] formas mais duras desse direito voltam a se manifestarrdquo (NIETZSCHE 1998 p 61-62GM II sect10) No entanto para Nietzsche noacutes natildeo nos atentamos a esse processo de autossubsunccedilatildeo (NIETZSCHE 20001 p 220-221GC IV sect 333) e acreditamos que a justiccedila eacute uma avaliaccedilatildeo loacutegica e objetiva uma evoluccedilatildeo purificadora Mas essa crenccedila soacute eacute possiacutevel se negamos a vida como condicionada pela perspectiva e sua injusticcedila Assim eacute em razatildeo dessa denegaccedilatildeo que o processo de autossubsunccedilatildeo da justiccedila se apresenta com o nome de graccedila (NIETZSCHE 1998 p 61-62GM II sect10)

A autossubsunccedilatildeo da justiccedila natildeo eacute para Nietzsche uma graccedila O filosofo recusa a ideia de inspiraccedilatildeo (NIETZSCHE FP-187724[1]) ldquoToda atividade humana eacute assombrosamente complexa natildeo soacute a do gecircnio mas nenhuma eacute um lsquomilagrersquordquo (NIETZSCHE 2000 p 124HDHI sect162) Assim ldquocomo a ideia da obra de arte do poema o pensamento fundamental de uma filosofiardquo (NIETZSCHE 2000 p 119-120HDHI sect 155) natildeo caem ldquodo ceacuteu como um raio de graccedilardquo (Idem) mas longe disso satildeo produto de um ldquojulgamento (Urteilskraft) () [que] rejeita seleciona combinardquo(Idem) a autossubsunccedilatildeo da justiccedila eacute tambeacutem proacutepria dessa capacidade de julgar

Nos aforismos em que Nietzsche recusa a crenccedila na inspiraccedilatildeo e afirma o julgamento que escolhe (NIETZSCHE FP-187724[1] ) ele trata da arte da literatura e da filosofia (NIETZSCHE 2000 p 119-124HDHI sect155 e sect162) No entanto o que nos permite estender essa compreensatildeo agrave justiccedila eacute aleacutem do sect 10 jaacute citado de Genealogia da Moral a seccedilatildeo 184 de Gaia Ciecircncia Nele Nietzsche nos diz ldquoJusticcedila ndash Melhor se deixar roubar 4 Entendo Selbstaufhebung der Gerechtigkeit como autossubsunccedilatildeo da justiccedila e natildeo como auto-supressatildeo na versatildeo em

portuguecircs traduzida por Paulo Ceacutesar A palavra supressatildeo carrega o sentido de extinccedilatildeo o que pode levar agrave interpre-taccedilatildeo de que a Selbstaufhebung eacute o processo de extinccedilatildeo da justiccedila sentido esse que na minha interpretaccedilatildeo o aforismo natildeo possui No prefaacutecio tardio agrave Aurora no aforismo 4 apoacutes ter explanado sobre o pessimismo alematildeo e ter terminado o aforismo anterior exemplificando esse pessimismo em Hegel citando a frase ldquoa contradiccedilatildeo move o mundo todas as coisas contradizem a si mesmasrdquo Nietzsche se questiona se Aurora natildeo seria um livro pessimista pois ele representa uma contradiccedilatildeo e natildeo tem medo dela Nesse sentido Nietzsche escreve que essa contradiccedilatildeo eacute a de que o livro retira a confianccedila na moral mas por moralidade e que ele assim o faz atraveacutes de uma vontade que natildeo quer voltar atraacutes de tudo que jaacute se acredita superado uma vontade pessimista que se nega com prazer Enfim ele escreve que se for desejado uma ldquofoacutermulardquo para isso ela eacute a autossubsunccedilatildeo da moral (die Selbstaufhebung der Moral) Dessa forma natildeo soacute fica explicito o sentido de negar sem suprimir que Nietzsche enxerga em Aufhebung como esse sentido guarda uma relaccedilatildeo com o conceito de Aufhebung em Hegel Hegel como explica Vladimir Safatle em seu curso transcrito sobre a Fenomenologia do Espiacuterito ldquofornece pela primeira vez uma definiccedilatildeo operacional de Aufhebung lsquoO superar apresenta sua dupla significaccedilatildeo verdadeira que vimos no negativo eacute ao mesmo tempo um negar (Negieren) e um conservar (Aufbewahren)rsquo(HEGEL Fenomenologia par 113)rdquo Aufheben eacute como bem observou Georges Bataille inspirado pela filosofia de Hegel um verbo intraduziacutevel que tem o sentido de superar mantendo (BATAILLE 2014 p 59 nota 4) Para mais discussotildees sobre o verbo alematildeo aufheben e as relaccedilotildees entre o conceito em Hegel e Nietzsche conf KAUFMANN 1974 p 236-238

Luiza Fonseca Regattieri

177

do que ter espantalhos ao seu redor ndash eis o meu gosto E em todas as circunstacircncias isso eacute uma questatildeo de gosto ndash e nada maisrdquo (NIETZSCHE 2001 p 169GC sect184) ou seja justiccedila (Justiz5) eacute questatildeo de gosto ou seja uma forma determinada de justiccedila eacute uma produccedilatildeo do gosto Nesse pequeno aforismo Nietzsche propotildee o gosto como a medida do justo resta entatildeo em nos perguntarmos sobre o gosto em sua filosofia

Aproximando gosto e justiccedila Nietzsche se afasta mais uma vez da tradiccedilatildeo filosoacutefica moderna especialmente de Kant para quem o gosto eacute reservado agrave produccedilatildeo de juiacutezos esteacuteticos Quando Nietzsche considera que as atividades do artista do filoacutesofo e do cientista (NIETZSCHE 2000 p 124HDHI sect162) satildeo um julgamento que escolhe e as equipara como uma mesma atividade que parte da fantasia6 ele se afasta do empreendimento kantiano (Cf KANT 1995) pois Kant entende o gosto como um juiacutezo meramente esteacutetico atraveacutes do qual seria impossiacutevel a produccedilatildeo de conhecimento ou de justiccedila por ele natildeo ser um juiacutezo objetivo e universalizaacutevel e ainda divide gosto e julgamento (gosto como desinteressado e proacuteprio do acircnimo de quem julga e julgamento como a mediaccedilatildeo entre o entendimento ou a razatildeo e a imaginaccedilatildeo) Como aponta Katia Hanza em seu texto que discute o gosto na obra intermediaacuteria de Nietzsche

Diferentemente de Kant para quem a tarefa da faculdade de julgar consiste na mediaccedilatildeo entre o entendimento ou a razatildeo e a imaginaccedilatildeo Nietzsche soacute leva em conta dois termos desta constelaccedilatildeo a faculdade de julgar e a fantasia (ou imaginaccedilatildeo) O entendimento ou a razatildeo natildeo satildeo considerados em absoluto pois se ele menciona a ldquoideia da obra de arte da poesiardquo ou o ldquopensamento fundamental de uma filosofiardquo eacute para relacionaacute-los diretamente com a fantasia Eacute como se pensamentos ou ideias fossem produtos apenas da imaginaccedilatildeo e natildeo do entendimento ou da razatildeo Por este motivo as atividades do artista e do filoacutesofo satildeo compreendidas analogicamente Enquanto Kant procura especificar a tarefa da mediaccedilatildeo que a faculdade de julgar realiza entre a intuiccedilatildeo e o entendimento [] Nietzsche reconhece soacute uma faculdade de julgar a que ldquoescolherdquo (auswaumlhlende) [] Como vimos o gosto e a faculdade de julgar cumprem para Nietzsche a mesma funccedilatildeo (HANZA 2005 p 109)

Se pudermos corroborar essa hipoacutetese poderiacuteamos propor que pensando o gosto como medida da justiccedila Nietzsche borra os limites entre os campos eacutetico e esteacutetico Ele afirma que ldquojuiacutezos esteacuteticos e morais satildeo lsquotons sutiliacutessimosrsquo da physisrdquo (NIETZSCHE 2001 p 83GC I sect 39) pois ldquoseu julgamento lsquoIsso estaacute certorsquo tem uma preacute-histoacuteria nos seus impulsos inclinaccedilotildees aversotildees experiecircncias e inexperiecircnciasrdquo (NIETZSCHE 2001 p 222-225GC IV sect 335) Assim ele aproxima os juiacutezos de gosto a instintos e conclui que ldquoOs juiacutezos esteacuteticos (o gosto desagrado asco etc) constituem a base das taacutebuas de valor [Guumltertafel] Estas por sua vez satildeo a base dos juiacutezos moraisrdquo (NIETZSCHE FP-188111[78]) havendo assim um contiacutenuo esteacutetico eacutetico ou melhor Nietzsche coloca os valores morais como superfiacutecies sintomas de valores esteacuteticos Tudo isso me encaminha para a necessidade de investigar o sentido de gosto na filosofia de Nietzsche para comeccedilar a tentar compreender o que seria essa justiccedila como questatildeo de gosto e de nada mais5 O dicionaacuterio Wahrig Alematildeo define o verbete ldquoJustiz ltf - unzgt Rechtswesen Rechtspflegerdquo Rechtswesen tem

o sentido de aquilo que pertence ao Direito e Rechtspflege aquilo que cuida ou assiste ao Direito por isso aponto a diferenccedila entre Justiz e Gerechtigkeit

6 ldquoa fantasia do bom artista ou do pensador produz continuamente [] o seu julgamento altamente aguccedilado e exer-citado rejeita seleciona combinardquo (HDHI sect162)

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche

178

Referecircncias bibliograacuteficasBATAILLE G O Erotismo Belo Horizonte Autecircntica Editora 2014DUumlHRING E A satisfaccedilatildeo transcendente da vinganccedila Traduccedilatildeo de Edmilson Pascoal Estudos Nietzsche Curitiba v 2 n 1 p 123-138 janjun 2011 HANZA K Distinccedilotildees em torno da faculdade de distinguir o gosto na obra intermediaacuteria de Nietzsche Cadernos Nietzsche 19 p 101-122 2005 KANT Immanuel Criacutetica da faculdade do juiacutezo 2ordm ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1995KAUFMANN W Nietzsche philosopher psycologist antichrist 4ordm ed Princeton Pinceton University Press 1974NIETZSCHE F Aleacutem do bem e do mal Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992_____ Assim Falou Zaratustra Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011_____ Aurora [eBook] Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 _____ Digitale Kritische Gesamtausgabe ndash Digital version of the German critical edition of the complete works of Nietzsche edited by Giorgio Colli and Mazzino Montinari Disponiacutevel em lthttpwwwnietzschesourceorggt Acesso em 04092017_____ Ecce Homo Satildeo Paulo Companhia de Bolso 1995_____ A Gaia Ciecircncia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 _____ Genealogia da Moral Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ Humano demasiado humano I Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000_____ Humano demasiado humano II Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008SAFATLE V Curso integral ndash A Fenomenologia do Espiacuterito de Hegel 2007 Disponiacutevel em lt httpswwwacademiaedu5857053Curso_Integral_-_A_Fenomenologia_do_EspC3ADrito_de_Hegel_2007_gt Acesso em 04092017STEGMAIER W Signos de Nietzsche In VISENTEINER J GARCIA A (Org) As linhas fundamentais do pensamento de Nietzsche Petroacutepolis Vozes 2013 WAHRIG-BURFEIND R Wahrig dicionaacuterio semibiliacutengue para brasileiros alematildeo Traduccedilatildeo de Karina Janini amp Rita de Caacutessia Machado 4 ed Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2011

Maria Helena Lisboa da Cunha

179

A danccedila aleacutem do bem e do mal

Maria Helena Lisboa da Cunha1

A natureza do corpo eacute correlata agrave natureza do ambiente mudando-se o ambiente muda-se o corpo muda-se o cenaacuterio muda-se o contexto a exemplo do que acontece no Butocirc uma arte ldquoexplosivardquo onde danccedila e teatro se imbricam fazendo eclodir pulsotildees inconscientes danccedilada pelo danccedilarino japonecircs Kasuo Ohno em 1928 teve inspiraccedilatildeo no teatro japonecircs traacutegico Nocirc e na danccedilarina espanhola Antonia Mercecirc la Argentina Para Ohno La Argentina no depoimento de Mark Holborn incarnava a danccedila a literatura a muacutesica e a arte mas principalmente ela simbolizava o amor e a dor da vida real (MAUREY 2004 p97) No Butocirc termo que designa etimologicamente com BU saltar pular enquanto TO martelamento daiacute que Butocirc seja da ordem ldquoascendenterdquo como ascensatildeo vertical dos saltos de Nijinski ou como ldquofonte de luzrdquo para a qual tendia Isadora Duncan Butocirc eacute da ordem da ldquodescidardquo da terra do solo nele o corpo eacute um corpo morto o que lhe daacute vida eacute a relaccedilatildeo que se estabelece entre o corpo e o ambiente Essa espeacutecie de comunicaccedilatildeo do corpo com o mundo tem como premissa a afirmaccedilatildeo radical de Merleau-Ponty de que ldquonosso corpo natildeo estaacute no espaccedilo ele eacute o espaccedilordquo (PONTY 1966 p173) ele me constitui e se dilata ateacute onde vai a minha percepccedilatildeo a exemplo do quarto do vizinho de baixo onde ouccedilo ruiacutedos agrave noite

O Butocirc foi originalmente influenciado pela escrita do novelista japonecircs Yukio Mishima (1925-1970) dono de uma escrita densa e de protesto e dos textos de Artaud poeta e dramaturgo francecircs que acabou seus dias num asilo para doentes mentais agrave procura de sua identidade estrangulada pelo crescimento da ocidentalizaccedilatildeo do Japatildeo depois do fim da Segunda guerra mundial apoacutes a explosatildeo atocircmica em Hiroshima e Nagasaki pelos Aliados Segundo consta no relato de Inecircs Bogeacutea foi com a peccedila Kinjiki baseada na obra Cores Esquecidas do novelista japonecircs que o butocirc entrou em cena em 1959 danccedilada por Tatsumi Hijikata ao mesmo tempo em que o estilo danccedilado foi cognominado Ankoku Butoh ldquodanccedila das trevasrdquo mais tarde tendo se tornado simplesmente Butoh (de bu danccedila e toh descer para o chatildeo cfr supracitado) A estrateacutegia em Artaud visa criar um ldquocorpo sem oacutergatildeosrdquo para desestabilizar o discurso do poder negaccedilatildeo do corpo como organismo com seus suores feacutetidos seus hormocircnios seus odores inventar a danccedila para redescobrir o corpo ilusatildeo fazendo o corpo danccedilar pelo avesso o que natildeo estaacute nem dentro e nem fora do corpo mas ldquoentrerdquo ldquoNatildeo haacute transiccedilatildeo de um gesto para grito ou para um movimento todos os sentidos se interpenetram como se atraveacutes de estranhos canais escavados no proacuteprio espiacuteritordquo (ARTAUD sd p85)

1 Profa Titular de Filosofia da UERJ

A danccedila aleacutem do bem e do mal

180

Essa danccedila ldquoenvelopardquo o espectador as trevas sendo para ele o ldquoventre da matildeerdquo Kazuo Ohno precisa ldquoDe uma hora para a outra noacutes renascemos isto natildeo eacute tatildeo simples como ter nascido do ventre materno Muitos nascimentos satildeo necessaacuterios eacute necessaacuterio renascer sempre e em toda parterdquo (BOGEacuteA 2003 p35) Inecircs Bogeacutea assim o define Kazuo Ohno danccedila entre o mundo visiacutevel e o invisiacutevel Num movimento crepuscular que eacute difiacutecil descrever e mesmo difiacutecil definir o que eacute obscuro e o que eacute luminoso na nossa natureza ele cede para os sentidos sem perder sua ambiguidade e sem contradiccedilatildeo () Cada imagem cada instante eacute uma singularidaderdquo (IDEM p27) e mesmo o peso da morte ele consegue carregar nas suas costas em cada movimento em cada performance O ator precisa ldquoVida eacute movimento mover significa lsquoprocurar a vidarsquo Cada pequeno instante nas minhas performances pode ser modificado porque eacute a proacutepria vida que determina issordquo (IDEM IBIDEM) na sua percepccedilatildeo da realidade vida e morte se alternam num fluxo contiacutenuo completando-se daiacute que ter consciecircncia desse movimento deve monitorar o ritmo da danccedila

Ohno sinaliza que sua arte eacute improvisada ele anotava palavras de poemas e pinturas que no momento da danccedila se corporificam e vatildeo dando lugar a movimentos do corpo por outro lado segundo relata ele tenta carregar no seu corpo o peso e o misteacuterio da vida e da morte ldquoEu sigo todo o tempo minhas memoacuterias para traacutes para o ventre maternordquo (IDEM p 38) danccedila na qual ele se traveste em velho e jovem homem e mulher forte e fraco ao mesmo tempo trazendo agrave baila para reflexatildeo a indeterminaccedilatildeo das forccedilas inconscientes e primitivas em oposiccedilatildeo agraves conscientes focadas e unilaterais O corpo eacute um centro energeacutetico nele uma pluralidade de forccedilas estaacute em accedilatildeo e eacute por isso que a danccedila eacute tida como uma experiecircncia de vitalidade natildeo soacute porque ela requer um corpo viril mas tambeacutem porque ela daacute essa virilidade essa elasticidade ao corpo ldquoNatildeo eacute a gordura que um danccedilarino pretende obter de sua alimentaccedilatildeo mas o maacuteximo de elasticidade e forccedila e natildeo conheccedilo nada que um filoacutesofo goste mais do que ser um bom danccedilarino Porque a danccedila eacute o seu ideal sua arte tambeacutem sua uacutenica piedade seu lsquocultorsquordquo (NIETZSCHE 1982 sect 381)

Em Nietzsche a danccedila se transforma numa proposta anti-metafiacutesica porque eacute sedutora proteiforme dionisiacuteaca ldquoaleacutem do bem e do malrdquo ela manifesta a vida natildeo como um fardo que se carrega mas como uma alegria que se afirma primeiramente a danccedila da vida embriaguez dionisiacuteaca que se apresenta como criaccedilatildeodestruiccedilatildeo das formas na obra A origem da trageacutedia concebida como a relaccedilatildeo DionisoApolo em segundo lugar como a danccedila das forccedilas coacutesmicas que criam e se recriam na teoria das forccedilas a danccedila de Shiva Nataraja deus hindu da geraccedilatildeo e da transformaccedilatildeo coacutesmica e em terceiro lugar a danccedila dos conceitos que como a vida satildeo dinacircmicos fluidos natildeo estaacuteticos soacutelidos ldquoOs homens que se dizem superiores natildeo sabem danccedilar como eacute preciso ndash danccedilar com os conceitosrdquo (IDEM 1908 ldquoDo homem superiorrdquo sect 20)

A consequecircncia desse posicionamento estaacute no fato de que um pensamento que danccedila natildeo se subordina a sistemas nem a estruturas duraacuteveis de valores por isso segundo Nietzsche essa imagem do pensamento tem no danccedilarino sua mais alta expressatildeo ldquoPensar necessita uma teacutecnica um programa uma vontade de mestria o pensamento tem que ser aprendido como se aprende a danccedilar como uma espeacutecie de danccedila () saber danccedilar com os peacutes com as ideias com as palavras com a penardquo (IDEM 1974 sect 7) O conceito nietzschiano de aleacutem-do-homem concebido em algumas traduccedilotildees como super-homem tem por objetivo o surgimento de uma poliacutetica traacutegica que tem na imagem do danccedilarino a sua mais alta expressatildeo ldquoEacute danccedilando que sei dizer os siacutembolos das coisas mais sublimesrdquo

Maria Helena Lisboa da Cunha

181

(IDEM 1908 ldquoO canto do tuacutemulordquo sect 159) isto porque a danccedila mediatiza o visiacutevel e o invisiacutevel reconciliando os instintos animais e espirituais duas vitais dimensotildees da existecircncia tornando-se traacutegica Poreacutem a proposta nietzschiana contra a metafiacutesica natildeo diviniza somente a danccedila como supramencionado na nota 2 ldquonatildeo conheccedilo nada de que um filoacutesofo goste mais do que ser um bom danccedilarinordquo (IDEM 1982 sect 381) mas tambeacutem o riso ldquoTodas as boas coisas riemrdquo (IDEM 1908 ldquoDo homem superiorrdquo sect 17) segundo o filoacutesofo eacute preciso saber inclusive rir de si mesmo ldquoMoro em minha proacutepria casa nada imitei de ningueacutem e ndash ainda rio de todo mestre que natildeo riu de si tambeacutemrdquo (IDEM 1982 p19)

Os antigos jaacute concebiam o universo como tendo nascido de uma enorme gargalhada uma gargalhada diaboacutelica como se deus de repente se desse conta do absurdo da existecircncia eacute de se morrer de rir (Autor anocircnimo do papiro alquiacutemico Papiro de Leyde do seacutec III) Ibsen em sua peccedila Esperando Godot coloca como protagonistas dois vagabundos Vladimir e Estragon monologando sobre o ldquonadardquo da existecircncia e o diaacutelogo termina com uma interrogaccedilatildeo de um dos protagonistas para o outro ―ldquoVocecirc acha que a vida tem um sentidordquo Ao que o outro responde com uma gargalhada e o pano cai sobre os dois Na poesia e na muacutesica a poliacutetica traacutegica articula-se por meio das maacutescaras o bufatildeo o poeta e o muacutesico dionisiacuteaco atores no palco da vida satildeo ilusionistas no mais alto grau a arte eacute ldquoa mais alta potecircncia do falsordquo (IDEM 1995 sect 107) daiacute que a questatildeo da existecircncia em Nietzsche tome essa feiccedilatildeo traacutegica o valor de um livro de uma muacutesica ou de um ser humano assenta na possibilidade ou na impossibilidade de serem leves como os paacutessaros danccedilarinos portanto ou pesados como a gravidade a carga que a humanidade carrega tendo o seu simbolismo na imagem do camelo e do asno animais de carga ldquoE isto eacute meu alfa e o meu ocircmega que tudo o que eacute pesado se torne leve que todo corpo se torne danccedilarino todo espiacuterito paacutessarordquo (IDEM 1908 ldquoOs sete selosrdquo sect 6) Vale observar que o bailarino conhece o mundo natildeo com a cabeccedila (a aranha da razatildeo) mas com os peacutes (onde se encontram a terminaccedilatildeo dos centros nervosos zona por isso mesmo extremamente sensiacutevel) daiacute a consideraccedilatildeo do filoacutesofo ldquoEstamos acostumados a pensar ao ar livre caminhando saltando subindo danccedilando e acima de tudo nas solitaacuterias montanhas ou na orla do mar onde estatildeo incluiacutedos os caminhos que se fazem meditativosrdquo (IDEM 1982 sect 366)

Em um texto sobre ldquoTeatro e Maacutescara no pensamento de Nietzscherdquo Franco Ferraz (2002 pp117-132) observa que a maacutescara tem como poliacutetica traacutegica a criacutetica ao modelo de identidade do platonismo posto que pura diferenccedila simulacro e natildeo coacutepia ela esconde e revela ao mesmo tempo pondo a ambiguidade em cena desqualificando a miacutemesis categoria precipuamente platocircnica para erigir no seu lugar o outro que natildeo ela mesma a Goacutergona medusa ou similar Parmecircnides e seu famoso princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo estariam para sempre sepultos por isso no aforismo 40 de Aleacutem do bem e do mal Nietzsche afirma ldquoTudo que eacute profundo ama a maacutescarardquo () ldquomais ainda ao redor de todo espiacuterito profundo cresce continuamente uma maacutescara graccedilas agrave interpretaccedilatildeo perpetuamente falsa ou seja rasa de cada palavra cada passo cada sinal de vida que ele daacuterdquo inaugurando o primado da aparecircncia da ilusatildeo e da ausecircncia de fundamento fruto do afundamento do terreno metafiacutesico propondo uma ponte agrave outras maacutescaras outras cavernas por detraacutes das cavernas ldquouma caverna ainda mais profunda por detraacutes de cada cavernardquo () posto que segundo o filoacutesofo ldquoToda filosofia tambeacutem esconde uma filosofia toda opiniatildeo eacute tambeacutem um esconderijo toda palavra tambeacutem uma maacutescarardquo (NIETZSCHE 1998 sect 289)

A danccedila aleacutem do bem e do mal

182

Joseacute Gil na obra Movimento total se refere ao fato de que a danccedila eacute o seu danccedilado ela eacute sempre o que eacute daiacute que sendo a danccedila contemporacircnea do seu devir ela sempre eacute ldquoEacute proacuteprio da danccedila que o seu movimento possa tender infinitamente para a energia pura a fim de atingir a maior liberdade () Este paradoxo implica como princiacutepio do movimento danccedilado a possibilidade teoacuterica de converter totalmente o peso em energiardquo (GIL 2005 p19) Esta caracteriacutestica eacute uma das que distinguem um gesto comum do gesto danccedilado o bailarino cria o espaccedilo com o seu movimento constituindo um ldquoespaccedilo do corpordquo espaccedilo paradoxal virtual diferente do objetivo posto que investido de forccedilas e afetos que o intensificam expandindo e prolongando os seus limites aleacutem de seus contornos visiacuteveis

A arte do bailarino consiste em construir um maacuteximo de instabilidade em desarticular as articulaccedilotildees em segmentar os movimentos em separar os membros e os oacutergatildeos a fim de poder reconstruir um sistema de equiliacutebrio infinitamente delicado ndash uma espeacutecie de caixa de ressonacircncia ou de amplificador dos movimentos microscoacutepicos do corpo (IDEM p 23)

Um exemplo do que estamos afirmando podemos ter na danccedila de possessatildeo transes danccedila de Satildeo Vito tarantela thiaso dionisiacuteaco danccedila dos coribantes adoradores de Cibele deusa-matildee da regiatildeo da Friacutegia na Aacutesia menor onde o proacuteprio corpo se torna a cena da danccedila como se outro corpo danccedilasse no interior do primeiro Na possessatildeo eacute o movimento que danccedila natildeo haacute um eu a danccedilar Na esteira de Spinoza Nietzsche eacute um filoacutesofo que vai fazer do corpo o seu conceito-chave e a partir dele eacute toda a filosofia francesa encabeccedilada por Deleuze Guattari Derrida Foucault Bataille Baudrillard e outros tantos que seguiraacute nessa direccedilatildeo

Instrumento de teu corpo eacute tambeacutem a tua pequena razatildeo meu irmatildeo a qual chamas ldquoespiacuteritordquo pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razatildeo ldquoEurdquo dizes e ufanas-te desta palavra Mas ainda maior no que natildeo queres acreditar ndash eacute o teu corpo e a tua grande razatildeo esta natildeo diz eu mas faz eu (NIETZSCHE 1908 ldquoDos desprezadores do corpordquo)

Adeus ceacuterebro flutuante adeus filoacutesofos de gabinete magros e esquaacutelidos hoje haacute ateacute uma filosofia que se intitula filosofia da mente que aposta na profunda interaccedilatildeo existente entre corpo ceacuterebro e emoccedilotildees como observa Antonio Damaacutesio em sua obra O erro de Descartes corroborando as intuiccedilotildees junguianas e nietzschianas ldquoO ceacuterebro e o corpo encontram-se indissociavelmente integrados por circuitos bioquiacutemicos e neurais dirigidos um para o outrordquo (2000 p113) por duas vias a primeira constituiacuteda por nervos motores e sensoriais perifeacutericos transportando sinais do corpo para o ceacuterebro e vice-versa e a segunda conhecida e decantada pelos antigos atraveacutes da corrente sanguiacutenea que cuida do transporte dos hormocircnios os neurotransmissores e os neuromoduladores O autor se estende sobre o tema afirmando que haacute tambeacutem uma interaccedilatildeo entre o corpo-ceacuterebro e o meio-ambiente seja ela comportamental ou imagiacutestica (visual auditiva ou somatosensorial) na esteira de Jung que jaacute apregoava no seacuteculo dezenove ldquoComo a psique e a mateacuteria estatildeo encerradas em um soacute e mesmo mundo e aleacutem disso se acham permanentemente em contato entre si () haacute natildeo soacute a possibilidade mas ateacute mesmo certa probabilidade de que a mateacuteria e a psique sejam dois aspectos diferentes de uma soacute e mesma coisardquo ( JUNG 1982 p152) Com Deleuze essa questatildeo desemboca num pensamento ousado

Maria Helena Lisboa da Cunha

183

O pensamento natildeo eacute arborescente e o ceacuterebro natildeo eacute uma mateacuteria enraizada nem ramificada O que se chama equivocadamente de lsquodendritosrsquo natildeo assegura uma conexatildeo dos neurocircnios num tecido contiacutenuo A descontinuidade das ceacutelulas o papel dos axocircnios o funcionamento das sinapses a existecircncia de microfendas sinaacutepticas o salto de cada mensagem por cima destas fendas fazem do ceacuterebro uma multiplicidade que no seu plano de consistecircncia ou em sua articulaccedilatildeo banha todo um sistema probabiliacutestico incerto um certain nervous system (DELEUZE 2004 p25)

Filosofia e danccedila portanto filosofia e muacutesica satildeo almas gecircmeas os primeiros filoacutesofos como Pitaacutegoras e seus disciacutepulos satildeo tanto matemaacuteticos como muacutesicos A muacutesica se constitui para eles num objeto de estudo privilegiado eles se espantam de ouvir certos intervalos produzirem um som particular e de constatar que esses intervalos compreendem as leis fiacutesicas e matemaacuteticas Esses pensadores assim como Platatildeo e o teoacuterico da muacutesica Aristoacutexeno de Tarento ou Plutarco depois os teoacutericos romanos como Aristides Quintiliano ou Claacuteudio Ptolomeu elaboram as leis matemaacuteticas e fiacutesicas da muacutesica que conhecem uma grande repercussatildeo na histoacuteria ocidental da teoria musical Essas teorias tecircm por base o princiacutepio matemaacutetico das ldquoconsonacircnciasrdquo (sumphonia em grego) atribuiacutedo a Pitaacutegoras que corresponde aos intervalos de oitava (escala do-do) de quinta (escala do-sol) e de quarta (escala do-faacute) e se traduzem matematicamente pela foacutermula (n + 1n) dita ldquosuperparcialrdquo Desse modo cada modo musical e cada gecircnero contem trecircs graus fixos que entreteacutem entre eles uma relaccedilatildeo de consonacircncia e correspondem respectivamente agrave nota fixa mais baixa do modo ou do gecircnero a mediana e a mais alta As leis matemaacuteticas de harmonia se desenvolvem nas civilizaccedilotildees gregas e romanas a partir desses princiacutepios Relevando da fiacutesica da matemaacutetica e da filosofia essas leis natildeo satildeo conhecidas dos muacutesicos daquela eacutepoca que natildeo recebiam formaccedilatildeo teoacuterica tatildeo aprofundada na antiguidade mas sim dos filoacutesofos

Dadas essas premissas compreendemos a estreita e imprescindiacutevel relaccedilatildeo existente desde a antiguidade claacutessica entre filosofia muacutesica e danccedila e natildeo se entende como e nem porque essa triacuteade se desfez ou melhor se entende como um desvio cultural perpetrado pelo crescente racionalismo que tomou conta do panorama filosoacutefico e cientiacutefico a partir de Soacutecrates Platatildeo e Aristoacuteteles e galopante ateacute nossos dias Mas esse galope estaacute com os seus dias contados inuacutemeros pensadores e poetas do passado e da atualidade se rebelaram com esse feito e denunciaram o engessamento da cultura bem como propalaram a articulaccedilatildeo da filosofia com as letras e as com artes Cito apenas trecircs para natildeo me estender demasiado o primeiro se encontra no diaacutelogo Feacutedon da maturidade de Platatildeo Soacutecrates traz agrave baila um sonho em que lhe cobram o fato de natildeo ter feito muacutesica na sua existecircncia ao que ele responde que na verdade jaacute faz ldquo() pois para mim a filosofia eacute a muacutesica suprema e eacute justamente isto que eu faccedilordquo (60-61a)

Platatildeo sabe que a alma possui movimentos e que estes satildeo suscetiacuteveis de se desorganizar por isso propotildee em As leis obra da velhice do filoacutesofo a muacutesica por sua afinidade com a dialeacutetica como potecircncia capaz de harmonizar os afetos e os desregramentos internos propiciando a temperanccedila (sophrosyacutene) virtude eacutetica maacutexima para os gregos que se consideravam aristoacutei isto eacute os melhores A teoria dos movimentos da alma atribui a esta os mesmos movimentos que os astros considerados de harmonia perfeita pela sua circularidade regularidade e beleza essa esteacutetica frequentemente tomou como referencial a proacutepria beleza inscrita no kosmos Haacute toda uma linhagem de filoacutesofos que propotildee que o homem se transforme eticamente na medida em que ele vai se tornando kosmios (ordenado)

A danccedila aleacutem do bem e do mal

184

ou seja na medida em que ele vai conquistando para a sua realidade pessoal a beleza e a ordenaccedilatildeo que estariam dadas exemplarmente na proacutepria organizaccedilatildeo do kosmos Em uma nota de rodapeacute o tradutor e comentador das Obras completas de Platatildeo na Bibliothegraveque de la Pleacuteiacircde Leacuteon Robin e seu colaborador Mndash J Moreau fazem a seguinte referecircncia ldquoBasta com efeito que uma esfera coincida pelo seu centro com seu proacuteprio centro para que ela coincida consigo mesma em todos os pontos propriedade que soacute ela possui entre todos os soacutelidos regularesrdquo

Nietzsche em vaacuterios aforismos diz que a vida eacute muacutesica e numa carta a Peter Gast seu amigo e bioacutegrafo datada de 15011888 na cidade de Nice ao sul da Franccedila declara ldquoA vida sem muacutesica eacute simplesmente um erro uma tarefa cansativa um exiacuteliordquo (CUNHA 2009 p98) Concluo com Deleuze para quem a muacutesica eacute ldquoatividaderdquo constitui o ldquoato da Razatildeo sensiacutevelrdquo o que equivale a dizer que a ldquorazatildeo natildeo tem por funccedilatildeo representar no sentido de generalizar abstraindo mas atualizar a potecircncia isto eacute instaurar relaccedilotildees humanas numa mateacuteria expressivardquo fazer movimento neste caso a mateacuteria sonora (DELEUZE 2003 p16) Para o pensador a muacutesica eacute movimento que agindo sobre todo o corpo o utiliza como seu proacuteprio palco por isso ela tambeacutem eacute uma poliacutetica uma guerrilha e uma resistecircncia ainda que sem imagens potecircncia de expressatildeo dramaticidade histrionismo dionisiacuteaco ldquoEacute como se a arte musical tivesse dois aspectos um como danccedila de moleacuteculas sonoras revelando a ldquomaterialidade dos movimentos que atribuiacutemos agrave almardquo () mas tambeacutem outro como instauraccedilatildeo de relaccedilotildees humanas nessa mateacuteria sonora que produz diretamente os afetos que costumam ser explicados pela psicologiardquo (IDEM pp52-3) Em Mateacuteria e memoacuteria Bergson diz coisa semelhante quando afianccedila que a consciecircncia natildeo representa mas conecta ou desconecta imagens como uma central telefocircnica

A muacutesica tem por funccedilatildeo produzir afetos ela atualiza as forccedilas que perpassam os corpos ldquotorna visiacutevel o invisiacutevelrdquo frase do pintor abstracionista alematildeo Paul Klee no seu ensaio Teoria da arte moderna Uma oacutepera natildeo eacute feita para que pensemos no que Mozart sentiu quando fez Don Giovanni mas para que vivenciemos o desejo de Elvira por Don Giovanni para que esse desejo se aposse de nossa alma e nos sufoque ou entatildeo que nos apossemos do desejo de Carmen por Don Joseacute quando ela o seduz danccedilando a Seguidilla ou cantando a famosa aacuteria da Habanera na taberna de Lillas Paacutestia ldquoO amor eacute um paacutessaro rebelde que ningueacutem pode aprisionar e eacute em vatildeo que o chamamos se lhe conveacutem recusar O amor o amor O amor eacute uma crianccedila boecircmia ele nunca conheceu leis se tu natildeo me amas eu te amo se eu te amo toma cuidadordquo corroborando as afirmaccedilotildees de Nietzsche-Zaratustra ldquoPor seus cantos e por suas danccedilas o homem mostra que ele eacute membro de uma comunidade superior ele esqueceu a marcha e a palavra ele estaacute a ponto de voar danccedilando pelos ares [] O homem natildeo eacute mais um artista se converteu numa obra de arterdquo (NIETZSCHE 1977 sect 1)

Maria Helena Lisboa da Cunha

185

Referecircncias bibliograacuteficasARTAUD Antonin O teatro e o seu duplo Trad Fiama Hasse Pais Brandatildeo Prefaacutecio de Urbano Tavares Rodrigues Lisboa Minotauro sd p 185BERGSON H Matiegravere et memoire Paris PUF 1965BOGEacuteA Inecircs Kazuo Ohno Satildeo Paulo Cosac Naify Photos Emidio Luisi 2003CUNHA M H Lisboa da Nietzsche ndash Espiacuterito artiacutestico Londrina CEFIL 2003 _____ Rhizoma Uma esteacutetica da existecircncia em Platatildeo Nietzsche e Jung Rio de Janeiro Verbete 2009 DAMAacuteSIO Antonio R O erro de descartes Trad Dora Vicente Georgina Segurado 5ordf ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000DELEUZE Gilles Mil platocircs Trad Aureacutelio Guerra Neto e Ceacutelia Pinto Costa 3ordf ed Rio de Janeiro Editora 34 2004_____ Peacutericles e Verdi A filosofia de Franccedilois Chacirctelet Trad Hortecircncia S Lencastre Rio de Janeiro Pazulin 2003 FRANCO FERRAZ Maria Cristina Nove variaccedilotildees sobre temas nietzschianos Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2002GIL Joseacute Movimento total Satildeo Paulo Iluminuras 2005JUNG Carl Gustav Obras completa v VIII2 A natureza da psique Trad Pe Dom Mateus Ramalho Rocha OSB 1 ed Petroacutepolis Vozes 1982MAUREY Catheacuterine laquo Danser la cruauteacute Correspondances entre les theacuteories theacuteacirctrales drsquo Antonin Artaud et le Buto raquo In Aesthetics looking at japanese culture nordm 11 (Special Issue) The Japanese Society for Aisthetics University of Tokyo 2004MERLEAU-PONTY Maurice Pheacutenomeacutenologie de la perception Paris Gallimard 1966NIETZSCHE Friedrich Whilelm Oeuvres philosophiques complegravetes Textes et variantes eacutetablis par Giorgio Colli et Mazzino Montinari tome V Le gai savoir laquo Gaya ciecircncia raquo Fragments posthumes (Eacuteteacute 1881 ndash eacuteteacute 1882) Trad Pierre Klossowski Paris Gallimard 1982_____ Oeuvres philosophiques complegravetes (automne 1869printemps 1872) Traduction de Michel Haar Philippe Lacoue-Labarthe et Jean-Luc Nancy Textes et variantes eacutetablis par Giorgio Colli et Mazzino Montinari tome I v 1 La naissance de la trageacutedie Fragments posthumes Paris Gallimard 1977_____ Oeuvres philosophiques complegravetes tome VIII v 1 Creacutepuscule des idoles trad Jean-Claude Heacutemery Textes et variantes eacutetablis par G Colli et M Montinari Paris Gallimard 1974_____ Ainsi parlait Zarathoustra (un livre pour tous et pour personne) Trad Henri Albert 17egraveme ed Paris Societeacute du Mercure de France 1908 _____ La volonteacute de puissance Trad Geneviegraveve Bianquis 2vs Paris Gallimard 1995_____ Aleacutem do bem e do mal Trad Paulo Ceacutezar de Souza1 ed Satildeo Paulo Companhia da Letras 1998PLATON Oeuvres complegravetes Traduction et notes de Leacuteon Robin avec la colaboration de MndashJ Moreau Paris Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard 1999 2vs

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

186

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees de sujeito transcendental e de coisa em si no primeiro capiacutetulo de Humano demasiado humano I

Marina Gomes de Oliveira1

A criacutetica nietzscheana ao sujeito transcendentalNietzsche abre o primeiro capiacutetulo de Humano demasiado humano com dois

aforismos programaacuteticos nos quais opotildee duas modalidades de filosofia a metafiacutesica e a histoacuterica Essa uacuteltima eacute descrita no primeiro aforismo como natildeo podendo mais ser concebida como ldquodistinta da ciecircncia natural o mais novo dos meacutetodos filosoacuteficosrdquo Jaacute a filosofia metafiacutesica possui como um de seus traccedilos fundamentais a ldquofalta de sentido histoacutericordquo o ldquodefeito hereditaacuterio dos filoacutesofosrdquo Esse diagnoacutestico eacute realizado no segundo aforismo que transcrevemos abaixo de forma parcial

Defeito hereditaacuterio dos filoacutesofos ndash Todos os filoacutesofos tecircm em comum o defeito de partir do homem atual e acreditar que analisando-o alcanccedilam seu objetivo Involuntariamente imaginam ldquoo homemrdquo como uma aeterna veritatis [verdade eterna] como uma constante em todo o redemoinho uma medida segura das coisas Mas tudo o que o filoacutesofo declara sobre o homem no fundo natildeo passa de testemunho sobre o homem de um espaccedilo de tempo bem limitado Falta de sentido histoacuterico eacute o defeito hereditaacuterio de todos os filoacutesofos (hellip) Natildeo querem aprender que o homem veio a ser e que mesmo a faculdade de cogniccedilatildeo veio a ser enquanto alguns deles querem inclusive que o mundo inteiro seja tecido e derivado desta faculdade de cogniccedilatildeo ndash Mas tudo o que eacute essencial na evoluccedilatildeo humana se realizou em tempos primitivos antes desses quatro mil anos que conhecemos aproximadamente nestes o homem jaacute natildeo deve ter se alterado muito O filoacutesofo poreacutem vecirc ldquoinstintosrdquo no homem atual e supotildee que estejam entre os fatos inalteraacuteveis do homem e que possam entatildeo fornecer uma chave para a compreensatildeo do mundo em geral () Mas tudo veio a ser natildeo existem fatos eternos assim como natildeo existem verdades absolutas ndash Portanto o filosofar histoacuterico eacute doravante necessaacuterio e com ele a virtude da modeacutestia (NIETZSCHE 2005 p16)

Embora Nietzsche natildeo faccedila aqui nenhuma referecircncia nominal fica claro qual eacute o alvo especiacutefico de sua criacutetica Kant com sua pretensatildeo de que o ldquomundo inteiro seja tecido e derivadordquo da humana ldquofaculdade de cogniccedilatildeordquo O argumento nietzschiano eacute o de que esta tese opera implicitamente com uma concepccedilatildeo do homem como um ser eterno as caracteriacutesticas que possui hoje e que o definem como sujeito cognoscente as possuiria

1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Marina Gomes de Oliveira

187

deste o momento do seu aparecimento na Terra Jaacute a teoria evolucionista a cujas linhas gerais Nietzsche adere afirma que estas caracteriacutesticas foram lentamente adquiridas ao longo do processo de evoluccedilatildeo sendo parcialmente compartilhadas pelos chamados animais superiores Essa concepccedilatildeo do homem difere da adotada pela tradiccedilatildeo filosoacutefica que segundo Nietzsche sempre o tomou como um ser dotado de uma natureza inalteraacutevel que o distingue fundamentalmente do restante dos animais Partindo dessa premissa os filoacutesofos da tradiccedilatildeo teriam buscado definir e fixar os traccedilos fundamentais dessa natureza na crenccedila de que isto lhes forneceria a chave para a compreensatildeo da essecircncia do mundo em geral

Ao lanccedilarmos um olhar retrospectivo sobre a histoacuteria da filosofia percebemos que o primeiro a realizar explicitamente este movimento foi Parmecircnides ao estabelecer o princiacutepio de identidade como a lei fundamental do pensamento estendeu automaticamente esta suposta necessidade loacutegica agrave esfera ontoloacutegica reduzindo o mundo acessiacutevel atraveacutes dos sentidos a mera aparecircncia ilusoacuteria A partir de entatildeo o grande desafio da filosofia grega foi o de conciliar a evidecircncia dos sentidos com as exigecircncias da razatildeo A esse respeito as tentativas de Platatildeo e Aristoacuteteles se tornaram paradigmaacuteticas tendo influenciado de forma direta ou indireta os empreendimentos de toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica posterior Como se sabe isso se deveu natildeo soacute aos seus indiscutiacuteveis meacuteritos filosoacuteficos mas tambeacutem a questotildees de ordem histoacuterica poliacutetica e religiosa

Na Modernidade Kant influenciado pelo empirismo de Hume se posiciona de forma ceacutetica em relaccedilatildeo agraves pretensotildees epistecircmicas dessa tradiccedilatildeo representada agrave eacutepoca na Alemanha pelo influente leibnizianismo da escola de Christian Wolff Em sua obra capital a Criacutetica da Razatildeo Pura cuja primeira ediccedilatildeo data de 1781 expotildee a conhecida doutrina de que as formas puras da sensibilidade e as categorias ou conceitos puros do entendimento fornecem as condiccedilotildees transcendentais de possibilidade do assim denominado mundo fenomecircnico na medida em que mantecircm uma relaccedilatildeo constitutiva com os objetos que o integram O mundo do fenocircmeno eacute assim segundo Kant o produto da conjunccedilatildeo das formas e categorias a priori com um ldquoXrdquo desconhecido (a coisa em si) que ao afetar a faculdade sensorial fornece a mateacuteria bruta das sensaccedilotildees o papel dos elementos transcendentais da sensibilidade e do entendimento eacute basicamente o de unificar e organizar a multiplicidade deste caos sensorial dando origem ao mundo tal como nos aparece atraveacutes da experiecircncia

O problema apontado por Nietzsche no aforismo supracitado reside poreacutem no seguinte se a subjetividade transcendental eacute condiccedilatildeo de possibilidade da existecircncia da proacutepria natureza (entendida como o conjunto de todos os fenocircmenos e de suas relaccedilotildees espaacutecio-temporais) entatildeo ela mesma natildeo pode estar submetida a essas determinaccedilotildees Em outras palavras aquilo que eacute condiccedilatildeo de possibilidade da proacutepria historicidade dos fenocircmenos na medida em que lhes impotildee a priori a forma necessaacuteria da sucessatildeo natildeo pode ele mesmo ser histoacuterico Isso traz agrave tona outros problemas tal como aquele que diz respeito agrave origem da espeacutecie humana A aporia que se instaura aqui pode ser formulada da seguinte maneira como o ser humano pode ter vindo a ser a partir de espeacutecies mais primitivas tal como afirma a teoria evolucionista se a proacutepria existecircncia do mundo natural eacute funccedilatildeo da vigecircncia das leis a priori da subjetividade transcendental Torna-se clara a partir de questionamentos deste tipo a existecircncia de uma incompatibilidade incontornaacutevel entre as premissas gerais do idealismo transcendental e os postulados baacutesicos da teoria da evoluccedilatildeo das espeacutecies eacute impossiacutevel afirmar simultaneamente e sem contradiccedilatildeo que as estruturas e elementos transcendentais satildeo por um lado condiccedilatildeo de possibilidade

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

188

da realidade empiacuterica e por outro que a existecircncia do ser humano como uma espeacutecie dotada de capacidades cognitivas especiacuteficas eacute o produto tardio e acidental de uma longa e complexa seacuterie de processos naturais que antecedem em muito o seu aparecimento na Terra

Eacute justamente nesta incompatibilidade que residem para Nietzsche as implicaccedilotildees metafiacutesicas da concepccedilatildeo kantiana do homem na medida em que este eacute identificado em sua qualidade de sujeito cognoscente com a subjetividade transcendental A seu ver o filoacutesofo de Koumlnigsberg ainda compartilharia com a tradiccedilatildeo metafiacutesica - a despeito dos esforccedilos que empreendeu para dela se afastar atraveacutes do estabelecimento dos limites intriacutensecos ao conhecimento humano que decorrem por sua vez do caraacuteter finito do nosso intelecto - a concepccedilatildeo do homem como um ser destacado da natureza que natildeo soacute escaparia agraves determinaccedilotildees processuais do mundo do fenocircmeno como estaria em sua proacutepria origem No aforismo 16 intitulado Fenocircmeno e coisa em si Nietzsche destaca um segundo traccedilo fundamental da ldquofilosofia metafiacutesicardquo jaacute entrevisto na exposiccedilatildeo que realizamos ateacute aqui Trata-se da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo ontoloacutegica da realidade em duas esferas distintas e separadas poreacutem natildeo estanques

Os filoacutesofos costumam se colocar diante da vida e da experiecircncia ndash daquilo que chamam de mundo do fenocircmeno ndash como diante de uma pintura que foi desenrolada de uma vez por todas e que mostra invariavelmente o mesmo evento esse evento acreditam eles deve ser interpretado de forma correta para que se tire uma conclusatildeo sobre o ser que produziu a pintura isto eacute sobre a coisa em si que sempre costuma ser vista como a razatildeo suficiente do mundo do fenocircmeno (NIETZSCHE 2005 p 25)

Nietzsche parte aqui da interpretaccedilatildeo da filosofia transcendental conhecida como ldquointerpretaccedilatildeo dos dois mundosrdquo2 de acordo com a qual a distinccedilatildeo kantiana entre fenocircmenos e coisas em si daacute origem a uma clivagem ontoloacutegica fundamental por meio da qual a realidade eacute dividida em dois domiacutenios distintos de objetos a saber os objetos empiacutericos e os objetos transcendentais sendo que estes uacuteltimos se identificariam ainda com o sentido negativo do conceito de nuacutemeno3 Este por sua vez ldquocorresponderia ao fenocircmeno como seu substrato como algo inteligiacutevel que soacute poderia ser conhecido como objeto por uma intuiccedilatildeo natildeo-sensiacutevelrdquo (BONACCINI 2003 P 323) Ora o que distingue essencialmente a filosofia criacutetica de Kant da tradiccedilatildeo metafiacutesica anterior eacute justamente a negaccedilatildeo categoacuterica por parte do filoacutesofo da possibilidade desse conhecimento negaccedilatildeo esta que deriva da premissa de que o homem eacute um ser dotado exclusivamente de intuiccedilotildees sensiacuteveis e por isso natildeo pode pretender conhecer as coisas tais como satildeo em si mesmas Isso natildeo elimina poreacutem a necessidade da postulaccedilatildeo da existecircncia de um domiacutenio incondicionado de objetos que atuam como a causa das afecccedilotildees as quais por sua vez datildeo origem aos fenocircmenos ao pocircr em accedilatildeo a faculdade representativa

Acontece no entanto que a tese fulcral do idealismo transcendental reside no princiacutepio de que soacute conhecemos representaccedilotildees ou seja de que nosso acesso agrave realidade eacute sempre e necessariamente mediado pelos elementos transcendentais que promovem a unidade sinteacutetica do muacuteltiplo segundo regras A primeira etapa da unificaccedilatildeo ocorre jaacute

2 A respeito da interpretaccedilatildeo alternativa conhecida como ldquoteoria dos dois aspectosrdquo advogada dentre outros por Alli-son conferir Bonaccini 2003 pp 226 ndash 257

3 A respeito da identificaccedilatildeo dos conceitos de coisa em si objeto transcendental e nuacutemeno em sentido negativo ver Bonaccini 2003 p 325

Marina Gomes de Oliveira

189

na esfera da sensibilidade na qual o material bruto das sensaccedilotildees ie das modificaccedilotildees sofridas pelos sentidos eacute organizado nas formas do espaccedilo e do tempo que posteriormente seratildeo referidas pelos conceitos do entendimento a objetos dando origem ao mundo tal como nos aparece atraveacutes da experiecircncia Os contemporacircneos de Kant natildeo demoraram a perceber a aporia implicada por este quadro se soacute conhecemos representaccedilotildees isto eacute se nossos conceitos tecircm seu domiacutenio de validade restrito agraves sensaccedilotildees que direito possuiacutemos a postular a existecircncia das coisas em si e ainda mais de lhes atribuir uma accedilatildeo causal sobre nossa sensibilidade Por outro lado se natildeo existem objetos externos agraves representaccedilotildees para fornecer-lhes o seu material como podemos falar em conceitos como os de representaccedilatildeo ou de fenocircmeno que perdem todo o seu sentido sem a referecircncia a algo que cumpra o papel de um objeto externo e existente por si mesmo ao qual se refiram como a seu substrato

O problema da coisa em si em Hegel Schopenhauer e SpirSegundo J A Bonaccini esta objeccedilatildeo jaacute aparece mesmo que forma impliacutecita na

famosa recensatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura atribuiacuteda a Feder e a Garve cuja publicaccedilatildeo data de 19 de janeiro de 1782 mas o iniciador propriamente dito daquela que ficou conhecida como a ldquopolecircmica da coisa em sirdquo teria sido Friedrich Heinrich Jacobi que apresentou o primeira criacutetica clara e precisa a este conceito no conhecido Apecircndice a seu livro David Hume Uumlber der Glauben oder Idealismus und Realismus Ein Gespraumlch intitulado Sobre o Idealismo Transcendental Estaria neste texto de Jacobi a origem do ldquoproblema da coisa em sirdquo tambeacutem conhecido como o ldquoproblema da afecccedilatildeordquo Ainda segundo Bonaccini trata-se na verdade natildeo de um uacutenico problema mas de uma ldquoproblemaacutetica que se desdobra numa seacuterie de objeccedilotildees () intimamente ligadas () que depois seratildeo retomadas na maior parte dos casos separadamenterdquo por autores como ldquoSchulze Maimon Fichte Schelling e Hegel () e pensadores posteriores como Schopenhauer e Nietzscherdquo (BONACCINI 2003 p 42) 4

No deacutecimo aforismo de Humano demasiado humano que transcrevemos abaixo na iacutentegra Nietzsche se refere a este problema de forma expliacutecita no contexto de uma alusatildeo criacutetica a Schopenhauer

Inocuidade da metafiacutesica no futuro ndash Logo que a religiatildeo a moral e a arte tiverem sua gecircnese descrita de maneira tal que possam ser inteiramente explicadas sem que se recorra agrave hipoacutetese de intervenccedilotildees metafiacutesicas no iniacutecio e no curso do trajeto acabaraacute o mais forte interesse no problema puramente teoacuterico da ldquocoisa em sirdquo e do ldquofenocircmenordquo Pois seja como for natildeo tocamos a ldquoessecircncia do mundo em sirdquo estamos no domiacutenio da representaccedilatildeo nenhuma ldquointuiccedilatildeordquo pode nos levar adiante Com tranquilidade deixaremos para a fisiologia e a histoacuteria dos organismos e dos conceitos a questatildeo de como pode a nossa imagem do mundo ser tatildeo distinta da essecircncia inferida do mundo (NIETZSCHE 2005 p 20)

Na continuaccedilatildeo do aforismo de nuacutemero 16 jaacute citado parcialmente acima Schopenhauer eacute novamente aludido indiretamente e de forma criacutetica na sequecircncia Hegel eacute tambeacutem alvo de uma criacutetica velada Antes dessas duas alusotildees Nietzsche faz ainda uma referecircncia impliacutecita a Afrikan Spir54 As objeccedilotildees de Jacobi podem ser resumidas segundo esse autor da seguinte forma 1- A tese central do idealismo

transcendental de que soacute conhecemos fenocircmenos ie representaccedilotildees conduziria ao solipcismo 2- Esse solipcismo eacute incompatiacutevel com a postulaccedilatildeo das coisas em si como os fundamentos externos dos fenocircmenos 3- A tese da incog-noscibilidade das coisas em si mesmas conduz ao ceticismo

5 Afrikan Spir (1837 ndash1900) eacute um filoacutesofo de origem russa que publicou suas obras em alematildeo com o qual Nietzsche manteve um diaacutelogo permanente ao longo de sua obra

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

190

Por outro lado loacutegicos mais rigorosos apoacutes terem claramente estabelecido o conceito do metafiacutesico como o do incondicionado e portanto tambeacutem incondicionante contestaram qualquer relaccedilatildeo entre o incondicionado (o mundo metafiacutesico) e o mundo por noacutes conhecido de modo que no fenocircmeno precisamente a coisa em si natildeo aparece e toda conclusatildeo sobre esta a partir daquele deve ser rejeitada Mas de ambos os lados se omite a possibilidade de que essa pintura ndash aquilo que para noacutes homens se chama vida e experiecircncia ndash gradualmente veio a ser estaacute em pleno vir a ser e por isso natildeo deve ser considerada como uma grandeza fixa a partir da qual se possa tirar ou rejeitar uma conclusatildeo acerca do criador (a razatildeo suficiente) () o intelecto humano fez aparecer o fenocircmeno e introduziu nas coisas suas errocircneas concepccedilotildees fundamentais Tarde bem tarde ndash ele cai em si agora o mundo da experiecircncia e a coisa em si lhe parecem tatildeo extraordinariamente distintos e separados que ele rejeita a conclusatildeo sobre esta a partir daquele ndash ou de maneira terrivelmente misteriosa exorta agrave renuacutencia do nosso intelecto de nossa vontade pessoal de modo a alcanccedilar o essencial tornando-se essencial Outros ainda recolheram todos os traccedilos caracteriacutesticos do nosso mundo do fenocircmeno - isto eacute da representaccedilatildeo do mundo tecida com erros intelectuais e por noacutes herdada ndash e em vez de apontar o intelecto como culpado responsabilizaram a essecircncia das coisas como causa desse inquietante caraacuteter efetivo do mundo e pregaram a libertaccedilatildeo do ser (NIETZSCHE 2005 p 25)

De acordo com Bonaccini Hegel reconduz a problemaacutetica legada por Jacobi ldquoagrave pressuposiccedilatildeo fundamental de Kant qual seja o dualismo ontoloacutegicordquo (BONACCINI 2003 p 143) que opotildee de um lado as esferas do sujeito da consciecircncia e do pensamento e do outro os domiacutenios do objeto da realidade e do ser Ultrapassa o escopo do presente trabalho a exposiccedilatildeo da forma como Hegel procurou descrever e fundamentar em seu complexo sistema a identidade dialeacutetica entre ser e pensar interessa-nos aqui apenas apontar para o modo como o filoacutesofo alematildeo buscou descontruir o conceito de coisa em si ao questionar o pressuposto kantiano da existecircncia de um abismo originaacuterio e intransponiacutevel entre as esferas do sujeito e do objeto Este esforccedilo pode ser percebido de acordo com Bonaccini jaacute em suas primeiras obras anteriores agraves grandes exposiccedilotildees da Fenomenologia do Espiacuterito e da Ciecircncia da Loacutegica

Como eacute sabido um ano depois da publicaccedilatildeo do Differenzschrift em 1802 Hegel publica Feacute e saber O intuito de Hegel continua sendo a criacutetica da filosofia da eacutepoca enquanto esta pressupotildee uma dualidade entre o sujeito e o objeto que impossibilita alcanccedilar a identidade que ela busca O esforccedilo de Hegel constitui ainda uma tentativa de alccedilar-se por cima das oposiccedilotildees para mostrar a identidade originaacuteria que reuacutene o ser e o pensar A criacutetica do conceito kantiano de coisa em si prende-se desse modo agrave criacutetica da filosofia da reflexatildeo - segundo a denominaccedilatildeo cunhada por Hegel em Feacute e saber ndash a qual oporia o pensamento agrave realidade empiacuterica afirmando a finitude das categorias do entendimento humano e a impossibilidade de conhecer o absoluto a natildeo ser pela feacute (BONACCINI 2003 p 133)

Hegel busca apontar dessa forma para o fato de que a defesa kantiana da tese do caraacuteter puramente formal das categorias do entendimento e da sua consequente aplicabilidade exclusiva ao conteuacutedo fornecido pela sensibilidade depende da pressuposiccedilatildeo de um dualismo de base entre o pensamento e a realidade Uma vez superado esse ponto

Marina Gomes de Oliveira

191

de vista o proacuteprio conceito de fenocircmeno ganharia novos contornos diferentemente do que afirmava Kant o caraacuteter relativo e condicionado do conhecimento empiacuterico natildeo teria origem na finitude constitutiva do entendimento a qual faria com que os objetos da experiecircncia nos apareccedilam sempre como fenocircmenos mas sim no fato de esses objetos serem em si mesmos fenocircmenos ie ldquoa manifestaccedilatildeo finita de um fundamento inteligiacutevel que eacute o proacuteprio absolutordquo (BONACCINI 2003 p 139)

Eacute importante apontar para o fato de que a identidade entre o ser e o pensar postulada por Hegel natildeo se apresenta como uma unidade imediata isto eacute como algo presente de forma efetiva desde o iniacutecio mas sim como uma identidade que soacute se concretiza e realiza ao teacutermino de um processo que tem lugar no tempo trata-se portanto de uma identidade dialeacutetica cujas etapas de constituiccedilatildeo o autor busca descrever nas paacuteginas da Ciecircncia da Loacutegica Nesta obra de 1816 Hegel traccedila um itineraacuterio loacutegico-ontoloacutegico que vai do ser ao conceito passando pela essecircncia Sem entrar nos detalhes da complexa exposiccedilatildeo hegeliana interessa-nos apenas apontar para o fato de que um dos pressupostos fundamentais da loacutegica dialeacutetica eacute o de que a realidade possui um caraacuteter fundamentalmente contraditoacuterio na medida em que a passagem da indeterminaccedilatildeo do ser em geral agrave determinaccedilatildeo plena do conceito na ideia absoluta se efetiva atraveacutes de sucessivas negaccedilotildees dos estaacutegios anteriores as quais simultaneamente os conservam e aprofundam

A esse respeito pode-se identificar em Schopenhauer a presenccedila de uma atitude baacutesica compartilhada com Hegel no que tange agraves suas respectivas relaccedilotildees com a heranccedila da filosofia criacutetica Trata-se de uma atitude marcada por ambiguidades e tensotildees e que pode ser expressa resumidamente atraveacutes da ideia de que Kant teria aberto ou indicado o caminho correto para a filosofia sem ter tido no entanto a coragem de segui-lo ateacute o final esta tarefa caberia agrave posteridade que teria como missatildeo a correccedilatildeo e desenvolvimento do precioso legado de que eacute herdeira O problema da coisa em si surge nesse contexto como o principal desafio que qualquer um que aspire agrave consecuccedilatildeo dessa tarefa deve enfrentar na medida em que se trata de uma questatildeo que desde sua formulaccedilatildeo original por Jacobi foi retomada de diferentes maneiras representando uma espeacutecie de ponto cego no sistema kantiano que o torna amplamente vulneraacutevel a ataques externos

Schopenhauer tomou contato durante seus anos de formaccedilatildeo atraveacutes das aulas de G E Schulze que frequentou na universidade de Goumlttingen com o aspecto mais emblemaacutetico da problemaacutetica levantada por Jacobi qual seja a criacutetica jaacute explicitada acima ao caraacuteter autorrefutatoacuterio do conceito de coisa-em-si como causa externa das sensaccedilotildees Isso o levou a formular em sua famosa obra O Mundo como Vontade e Representaccedilatildeo (1819) a tese que devemos buscar o acesso agrave realidade tal como eacute em si mesma natildeo atraveacutes de uma relaccedilatildeo que invoque o conceito de causalidade (cuja proacutepria definiccedilatildeo limita seu escopo de aplicaccedilatildeo ao domiacutenio fenomecircnico) mas sim atraveacutes da consciecircncia imediata do nosso proacuteprio corpo que obtemos por ocasiatildeo dos nossos atos voluntaacuterios Isso se deve ao fato de que o corpo eacute para Schopenhauer o uacutenico objeto que se manifesta para noacutes em um duplo aspecto simultacircneo qual seja por um lado o de um objeto empiacuterico dentre outros cujas condiccedilotildees de possibilidade remetem ao quadro da reelaboraccedilatildeo da deduccedilatildeo transcendental das categorias efetuada em sua tese de doutoramento intitulada A Quaacutedrupla Raiz do Princiacutepio de Razatildeo Suficiente (1813) e por outro o de uma percepccedilatildeo interna de um ato de vontade a qual forneceria um acesso imediato ao ldquolado de dentrordquo do proacuteprio indiviacuteduo Ao estender analogicamente essa duplicidade ontoloacutegica ao restante dos seres que integram o mundo o filoacutesofo concebe um sistema que partindo da aceitaccedilatildeo da dualidade kantiana

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

192

entre sujeito e objeto busca ao mesmo tempo superaacute-la atraveacutes de uma abordagem imanente cujo nuacutecleo consiste na tese metafiacutesica de que a Vontade (entendida natildeo em um sentido estritamente psicoloacutegico mas como um princiacutepio coacutesmico destituiacutedo de finalidade e sabedoria uma espeacutecie de impulso cego) e a representaccedilatildeo devem ser compreendidas como os dois lados de uma mesma e uacutenica moeda

Fiel neste ponto agrave inspiraccedilatildeo da filosofia transcendental Schopenhauer afirma que a origem do mundo como representaccedilatildeo localiza-se no intelecto humano Isso se deve ao fato de que a estrutura deste uacuteltimo corresponderia como mencionado acima ao princiacutepio da razatildeo suficiente o qual ao determinar que toda experiecircncia seja submetida agraves condiccedilotildees do tempo do espaccedilo e da causalidade produz a fragmentaccedilatildeo da unidade originaacuteria da Vontade em uma multiplicidade de indiviacuteduos que competem permanentemente pelos recursos necessaacuterios agrave proacutepria sobrevivecircncia criando assim um mundo de luta e violecircncia um cenaacuterio aterrador de autofagia da Vontade anaacutelogo a um pesadelo no interior do qual a consciecircncia se manteacutem aprisionada Isso faz com que caiba a cada um uma vez que se decirc conta dessa situaccedilatildeo a tarefa de purificar sua vontade atraveacutes de etapas sucessivas que correspondem agrave percepccedilatildeo esteacutetica agrave consciecircncia moral e finalmente agrave autossuperaccedilatildeo plena na atitude asceacutetica Essa uacuteltima conduziria a uma modalidade de consciecircncia livre de toda dor e de todo conflito um estado de contemplaccedilatildeo miacutestica no qual as fronteiras entre sujeito e objeto encontram-se agrave beira da dissoluccedilatildeo Eacute a esta uacuteltima etapa que Nietzsche se refere no aforismo 16 supracitado ldquo() ou de maneira terrivelmente misteriosa exorta agrave renuacutencia do nosso intelecto de nossa vontade pessoal de modo a alcanccedilar o essencial tornando-se essencialrdquo

Depreende-se facilmente deste mesmo aforismo a posiccedilatildeo de Nietzsche a respeito das soluccedilotildees encontradas por Hegel e Schopenhauer para o problema da coisa em si ele as rejeita igualmente encontrando aspectos problemaacuteticos em ambas Qual eacute poreacutem a sua atitude em relaccedilatildeo agrave soluccedilatildeo de Spir Para responder a esta pergunta empreenderemos primeiro uma breve reconstituiccedilatildeo das teses deste pensador que representa uma das principais fontes de diaacutelogo criacutetico para Nietzsche

Assim como Hegel e Schopenhauer Spir almeja fornecer com sua filosofia uma correccedilatildeo do kantismo ou seja uma saiacuteda para a aporia suscitada pelo problema da coisa em si tal como originalmente formulado por Jacobi Em sua tentativa de realizar esta tarefa chega poreacutem a conclusotildees opostas agraves alcanccediladas pelos filoacutesofos supracitados em que pesem as especificidades inerentes a seus respectivos sistemas tanto Hegel como Schopenhauer partem de uma mesma premissa qual seja a de que a relaccedilatildeo existente entre aquilo que Kant denominava as esferas do nuacutemeno e do fenocircmeno eacute de imanecircncia e natildeo de transcendecircncia Isso significa dizer que para esses pensadores o erro de Kant foi o de ter estabelecido uma distinccedilatildeo excessivamente riacutegida entre os domiacutenios da realidade empiacuterica e da realidade tal como eacute em si mesma Ora para Spir o problema com o sistema de Kant eacute exatamente o oposto em sua tentativa de estabelecer as fronteiras entre os domiacutenios do nuacutemeno e do fenocircmeno e assim circunscrever a esfera de validade das proposiccedilotildees sinteacuteticas a priori formuladas pelas ciecircncias em geral e pela fiacutesica newtoniana em particular Kant teria por assim dizer borrado a linha que divide os referidos domiacutenios no proacuteprio ato de traccedilaacute-la

Segundo Rogeacuterio Lopes existem para Spir cinco pontos centrais na filosofia de Kant que devem ser revistos para que seu sistema seja adequadamente reformulado Para os fins

Marina Gomes de Oliveira

193

da presente exposiccedilatildeo destacarei trecircs destes pontos quais sejam 1- rdquoa tese da idealidade transcendental do tempo deve ser abandonadardquo 2- rdquoos conceitos a priori do entendimento deduzidos por Kant carecem de um princiacutepio de unificaccedilatildeo Eacute preciso derivaacute-los de uma uacutenica lei a priori esta lei loacutegica fundamental eacute o princiacutepio de Identidaderdquo 3- rdquosegundo Spir Kant teria se contentado em provar a existecircncia de conceitos a priori e sua validade subjetiva Spir propotildee como tarefa da filosofia transcendental a) demonstrar a existecircncia do a priori b) provar sua validade objetivardquo (LOPES 2008 p 281)

A respeito do primeiro ponto sem entrar nos detalhes da argumentaccedilatildeo de Spir interessa-nos aqui apenas apontar para o modo como em uma passagem de Denken und Wirklichkeit citada por Nietzsche em sua obra de juventude A filosofia na era traacutegica dos gregos o filoacutesofo russo critica a tese kantiana da idealidade transcendental do tempo6 defendendo que este possui uma realidade objetiva Para tal faz uso de argumentos que recordam os utilizados por Nietzsche ao criticar a ldquofalta de sentido histoacutericordquo dos filoacutesofos no segundo aforismo de Humano demasiado humano

() a suposiccedilatildeo de Kant implica absurdidades tatildeo evidentes que algueacutem toma por milagre o fato de ele tecirc-las ignorado De acordo com tal suposiccedilatildeo Ceacutesar e Soacutecrates natildeo estatildeo efetivamente mortos mas vivem tatildeo bem como haacute dois mil anos e parecem estar simplesmente mortos em virtude de um arranjo do meu lsquosentido internorsquo Aqui cumpre indagar acima de tudo como pode o iniacutecio e o fim da vida consciente incluindo todos os sentidos internos e externos existirem simplesmente agrave maneira do sentido interno O fato eacute que natildeo se pode denegar em absoluto a realidade da mudanccedila (NIETZSCHE 2008 p 104)

No aforismo 18 de Humano demasiado humano intitulado Questotildees fundamentais da metafiacutesica Nietzsche se refere diretamente ao segundo ponto citando outro trecho da obra seminal de Spir

Quando algum dia se escrever a histoacuteria da gecircnese do pensamento nela tambeacutem se encontraraacute sob uma nova luz a seguinte frase de um loacutegico eminente ldquoA originaacuteria lei universal do sujeito cognoscente consiste na necessidade de reconhecer cada objeto em si em sua proacutepria essecircncia como um objeto idecircntico a si mesmo portanto existente por si mesmo e no fundo sempre igual e imutaacutevel em suma como uma substacircnciardquo (NIETZSCHE 2005 p 27)

Spir busca reduzir assim o conjunto das formas e conceitos a priori de Kant a um uacutenico princiacutepio qual seja o princiacutepio de Identidade Chegamos assim ao terceiro ponto destacado por Lopes qual seja o de que para Spir este princiacutepio possui uma validade que ultrapassa a esfera do a priori tal como definido por Kant Sua necessidade e universalidade natildeo dizem respeito somente agrave esfera da subjetividade transcendental e do domiacutenio dos fenocircmenos por ela condicionados mas possuem uma validade propriamente objetiva Quando confrontamos esta afirmaccedilatildeo com a tese da realidade igualmente objetiva da sucessatildeo temporal chegamos facilmente agrave conclusatildeo que Nietzsche enuncia no aforismo 16 de Humano demasiado humano

6 Trata-se da famosa passagem contida em uma nota de rodapeacute no sect 7 da Primeira Parte da Doutrina Transcendental dos Elementos da Criacutetica da Razatildeo Pura na qual Kant defende a tese de que a experiecircncia que possuiacutemos da sucessatildeo dos pensamentos em nossa mente corresponde somente agrave representaccedilatildeo desses mesmos pensamentos pelo sentido interno e natildeo a uma determinaccedilatildeo da realidade tal como eacute em si mesma

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

194

Por outro lado loacutegicos mais rigorosos apoacutes terem claramente estabelecido o conceito do metafiacutesico como o do incondicionado e portanto tambeacutem incondicionante contestaram qualquer relaccedilatildeo entre o incondicionado (o mundo metafiacutesico) e o mundo por noacutes conhecido de modo que no fenocircmeno precisamente a coisa em si natildeo aparece e toda conclusatildeo sobre esta a partir daquele deve ser rejeitada (NIETZSCHE 2005 p 25)

Para Spir existe portanto um abismo intransponiacutevel entre a ldquotemporalidade e particularidade da sensaccedilatildeordquo e a ldquoatemporalidade e simplicidade da apercepccedilatildeordquo (GREEN 2002 p 47) isto eacute entre as esferas da sucessatildeo temporal que rege o mundo empiacuterico por um lado e do princiacutepio de Identidade compreendido como lei originaacuteria do sujeito cognoscente e da proacutepria realidade tal como eacute em si mesma por outro Kant teria tentado ao ver de Spir sem sucesso superar essa contradiccedilatildeo atraveacutes do esquematismo transcendental que cumpriria a funccedilatildeo de conectar a passividade da sensibilidade com a espontaneidade do entendimento supostamente reduzindo a realidade da sucessatildeo temporal ao estatuto de uma representaccedilatildeo circunscrita na unidade de uma consciecircncia atemporal conferindo assim algo da unidade e estabilidade do ldquomundo metafiacutesicordquo agrave multiplicidade caoacutetica da realidade empiacuterica

Marina Gomes de Oliveira

195

Referecircncias bibliograacuteficasBONACCINI Juan Adolfo O problema da coisa em si no idealismo alematildeo 1ordf ed Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2003GREEN Michael Nietzsche and the Transcendental Tradition Champaign IL University of Illinois Press 2002LOPES Rogeacuterio Antocircnio Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche 573 f Tese (Doutorado em Filosofia) Minas Gerais Universidade Federal de Minas Gerais 2008NIETZSCHE Friedrich Humano demasiado humano um livro para espiacuteritos livres1ordf ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005_____ A filosofia na era traacutegica dos gregos 1ordf ed Satildeo Paulo Hedra 2008

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

196

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface entre Nietzsche e Freud

Michaella Carla Laurindo1

A funccedilatildeo do meacutedico da cultura na obra de NietzscheEste trabalho propotildee uma interface investigativa entre Nietzsche e Freud O objetivo

eacute identificar especificamente a funccedilatildeo do filoacutesofo como ldquomeacutedico da culturardquo e a funccedilatildeo do psicanalista como ldquomeacutedico das neurosesrdquo examinando suas aproximaccedilotildees e diferenccedilas Na obra de Nietszche e de Freud encontramos o termo impulso [Trieb2] mas empregado com conotaccedilotildees distintas Em Nietzsche temos sua doutrina de Vontade de Potecircncia eacute um conceito mais amplo que a Trieb freudiana e diretamente ligada agrave funccedilatildeo do filoacutesofo como ldquomeacutedico da culturardquo

O termo Trieb eacute utilizado para compreender a relaccedilatildeo entre o orgacircnico e o inorgacircnico no que tange agrave concepccedilatildeo de vontade de potecircncia ldquoCada movimento cada histoacuteria do mundo eacute sintoma de ajustamentos e subversotildees de relaccedilotildees de potecircncia vigentes entre as mais vigorosas correntes pulsionaisrdquo3 Os impulsos nessa perspectiva nietzschiana natildeo satildeo corpo e nem alma A vontade de potecircncia pode se manifestar na esfera do inorgacircnico como forccedila no orgacircnico na forma de impulsos fisioloacutegicos e tambeacutem na esfera cultural Na concepccedilatildeo do autor o mundo estaacute em constante mutaccedilatildeo que se efetiva como Vontade de Potecircncia (Wille zur Macht) atraveacutes de uma variedade de impulsos concorrentes ldquoo termo Wille entendido enquanto disposiccedilatildeo tendecircncia impulso e Macht associado ao verbo machen fazer produzir formar efetuar criarrdquo (MARTON 2016 p424) Em Para aleacutem de bem e mal sect36 ([1886] 2005) ele diz

Supondo finalmente que se conseguisse explicar toda nossa vida instintiva como elaboraccedilatildeo e ramificaccedilatildeo de uma forma baacutesica de vontade - vontade de potecircncia como eacute minha tese - supondo que se pudesse reconduzir todas as funccedilotildees orgacircnicas a essa vontade de potecircncia e nela se encontrasse tambeacutem a soluccedilatildeo para o problema da geraccedilatildeo e nutriccedilatildeo ndash eacute um soacute problema - entatildeo se obteria o direito de definir toda forccedila atuante inequivocamente como vontade de potecircncia O mundo visto de dentro o mundo definido e designado conforme o seu ldquocaraacuteter inteligiacutevelrdquo ndash seria justamente ldquovontade de potecircnciardquo e nada mais

1 UNIOESTE2 O termo alematildeo Trieb seraacute nesse artigo traduzido como ldquopulsatildeordquo quando utilizado no contexto freudiano e ldquoimpulsordquo

quando utilizado no contexto nietzschiano3 KSA XII Nachgelassene Fragmente 188587 p 654

Michaella Carla Laurindo

197

Dessa forma constata-se que na concepccedilatildeo nietzschiana ldquotoda forccedila atuante eacute vontade de potecircnciardquo sendo que tanto o organismo quanto as produccedilotildees culturais satildeo conjuntos de forccedila lutando entre si Essa noccedilatildeo dissolveria os limites entre o cultural e o bioloacutegico compreendidos nessa visatildeo como processos de hierarquizaccedilatildeo de impulsos (FREZZATTI Jr 2006 p 31) Trieb portanto eacute o quantum de potecircncia que tende ao crescimento

Mas Nietzsche nos adverte que a domesticaccedilatildeo e o amansamento dos impulsos humanos na tentativa de produzir um ldquohomem bom e uacutetil agrave sociedaderdquo conduz agrave decadecircncia por negar o mundo como um fluxo contiacutenuo de mudanccedilas e por negar a efetivaccedilatildeo do quanta de potecircncia Isso paralisa o movimento a mudanccedila da cultura Considerando esse aspecto torna-se fundamental explicitar o que eacute a fisiopsicologia ndash a forma como meacutedico filosoacutefico poderaacute investigar os sintomas culturais

A fisiopsicologia para Nietzsche seria uma forma de abordagem profunda dos problemas Na visatildeo do autor a psicologia permaneceu superficial em seu entendimento sobre o homem presa em concepccedilotildees de tradiccedilatildeo cientiacutefico-filosoacutefica uma psicologia resumida em fazer ciecircncia a partir dos atos de consciecircncia e tambeacutem impregnada pelas noccedilotildees morais de bem e mal Seria um modelo que limita a compreensatildeo que o homem pode ter de si mesmo pois eacute ldquoheranccedilardquo do pensamento metafiacutesico com seus juiacutezos de realidade e de valor um modelo a ser superado Nietzsche em Humano Demasiado Humano critica a psicologia como estudo dos fenocircmenos intelectuais e morais

que se impocircs graccedilas ao trabalho de Christian Wolff (1679-1754) Testemunha e cuacutemplice do processo geral de naturalizaccedilatildeo que se iniciava Wolff dedicou-se a mostrar que a psicologia estava mais distante das questotildees sobre a origem do universo que dos problemas acerca da interaccedilatildeo do homem com o que o rodeava Se teve o meacuterito de ser um dos primeiros a consideraacute-la uma disciplina especiacutefica natildeo abandonou os princiacutepios transcendentes Partindo da noccedilatildeo leibniziana de alma entendida como uma substacircncia simples e incorpoacuterea capaz de representar o mundo Wolff sustentou que suas representaccedilotildees podiam ser perfeitas se fossem plenamente adequadas ou imperfeitas se natildeo o fossem Sendo claramente conhecidas a ideias de perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo por sua vez engendravam as de bem e mal (MARTON 2016 p 348)

Para compreender a funccedilatildeo da psicologia eacute relevante citar o aforismo 23 de Aleacutem do bem e do mal

Toda psicologia ateacute o momento tem estado presa a preconceitos e temores morais natildeo ousou descer agraves profundezas Compreendecirc-la como morfologia e doutrina de desenvolvimento da vontade de potecircncia tal como faccedilo ndash isto eacute algo que ningueacutem tocou sequer em pensamento na medida em que eacute permitido ver no que foi ateacute agora escrito um sintoma do que foi ateacute aqui silenciado A forccedila dos preconceitos morais penetrou profundamente no mundo mais espiritual aparentemente mais frio e mais livre de pressupostos ndash de maneira inevitavelmente nociva inibidora ofuscante deturpadora (NIETZSCHE [1886] 2005 p 27 traduccedilatildeo modificada)

Cabe entatildeo ao fisiopsicoacutelogo ldquoousar descer agraves profundezasrdquo Trata-se de analisar a relaccedilatildeo das produccedilotildees culturais para aleacutem das noccedilotildees de bem e mal ou seja como uma

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

198

expressatildeo dos impulsos na acircnsia pelo aumento de potecircncia Mas eacute relevante considerar o uso especiacutefico da palavra ldquofisiologiardquo nesse contexto - os processos fisioloacutegicos natildeo equivalem a processos bioloacutegicos Nietzsche utiliza o termo de forma ampliada pois considera tanto corpos vivos quanto inorgacircnicos e produccedilotildees humanas ndash Estado religiatildeo filosofia etc - como conjunto de forccedilas ou impulsos (FREZZATTI Jr 2006 p 25)

Mas o quecirc significa compreender a fisiopsicologia como morfologia e doutrina do desenvolvimento da vontade de potecircncia

Morfologia porque investiga a hierarquia de impulsos Nietzsche em um fragmento poacutestumo intitulado ldquoVontade de Poder Morfologiardquo nos remete agrave questatildeo das modalizaccedilotildees da vontade de poder ldquoVontade de potecircncia como lsquonaturezarsquo como vida como sociedade como vontade de verdade como religiatildeo como arte como moral como humanidaderdquo4 A vontade de potecircncia assume diversas formas mas isso natildeo significa que devemos tomar uma dessas modalizaccedilotildees como sua essecircncia

Ela [vontade de potecircncia] natildeo eacute um fundamento do mundo que produz vida ou que se exterioriza como arte ou se efetiva como humanidade Muito ao contraacuterio as lsquoconfiguraccedilotildeesrsquo (Gestaltungen) apresentadas por Nietzsche satildeo segundo sua essecircncia vontade de poder Tornar visiacutevel essa essecircncia nos lsquoacircmbitosrsquo de espeacutecie diversa eacute a tarefa de uma lsquomorfologiarsquo da vontade de poder (MUumlLLER-LAUTER 1997 p 86-87 traduccedilatildeo modificada)

Teoria do desenvolvimento porque tenta entender a dinacircmica da variaccedilatildeo da quantidade de potecircncia e da formaccedilatildeo contiacutenua de hierarquias (FREZZATTI Jr 2008 p305)

Os novos filoacutesofos na concepccedilatildeo do autor deveriam ser ldquoespiacuteritos fortes e originais o bastante para estimular valorizaccedilotildees opostas e transvalorar e transtornar lsquovalores eternosrsquordquo Seriam os ldquohomens do futurordquo teriam que se achar sempre em contradiccedilatildeo com o ldquoideal de seu hojerdquo5 Eacute atraveacutes da fisiopsicologia que o meacutedico da cultura pode diagnosticar as produccedilotildees em termos de sauacutede ou doenccedila Seu papel natildeo eacute o do ldquomeacutedico de almasrdquo e se opotildee ao ideal civilizatoacuterio que preconiza o ldquoprogressordquo ldquoQue noacutes natildeo nos enganemos O tempo corre avante - noacutes gostariacuteamos de crer que tudo que estivesse no tempo tambeacutem corresse avante que o desenvolvimento [Entwicklung] fosse uma evoluccedilatildeo [Vorwaumlrts-Entwicklung] Isso eacute a aparecircncia enganosa que seduz os mais prudentes mas o seacuteculo XIX natildeo eacute um progresso em relaccedilatildeo ao XVIrdquo6 Neste ponto eacute pertinente considerar e ampliar as conjecturas e criacuteticas de Nietzsche sobre a civilizaccedilatildeo compreendida como ldquomelhoramento e progresso do homemrdquo A domesticaccedilatildeo e amansamento dos instintos na tentativa de tornar o ldquohomem bomrdquo o tornam apenas obediente e servil o que significa a desagregaccedilatildeo dos instintos de um indiviacuteduo ou de uma cultura Nietzsche aponta que a filosofia metafiacutesica o socratismo o platonismo o cristianismo a moral e a arte satildeo expressotildees de um mundo supostamente civilizado mas que na verdade evidenciam essa desagregaccedilatildeo Nesse sentido podemos considerar esses ldquoavanccedilos sociaisrdquo como os sintomas de uma doenccedila Em A gaia ciecircncia ele aponta

4 Cf Fragmento poacutestumo 14 [72] primavera 1888 v 4 p 5315 Cf Humano Demasiado Humano sect 203 e 2126 Cf Fragmento poacutestumo 15 [8] primavera 1888 v 4 p 626

Michaella Carla Laurindo

199

Eu espero ainda que um meacutedico filosoacutefico no sentido excepcional do termo ndash algueacutem que persiga o problema da sauacutede geral de um povo de uma eacutepoca de uma raccedila da humanidade - tenha futuramente a coragem de levar ao cuacutemulo a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmaccedilatildeo em todo o filosofar ateacute o momento a questatildeo natildeo foi absolutamente a ldquoverdaderdquo mas algo diferente como sauacutede futuro potecircncia crescimento vida (NIETZSCHE [1886] 2001 p10)

Estimar o erudito e o impulso de conhecimento cientiacutefico satildeo sinais de doenccedila assim como a pretensatildeo de determinar uma verdade absoluta ndash satildeo aspectos sob os quais incide o crivo do meacutedico filosoacutefico pois satildeo sinais de doenccedila ldquoQualquer alianccedila com o eruditos deve ser rejeitada Esse eacute o maior inimigo porque dificultam o trabalho dos meacutedicos e negam a existecircncia da doenccedilardquo7 Para o filoacutesofo alematildeo natildeo haacute imparcialidade nessa dedicaccedilatildeo agrave ciecircncia ndash o anseio por essa verdade a ser ldquodesveladardquo representa a luta entre os proacuteprios impulsos mas numa mescla muito variada

O meacutedico da cultura tambeacutem deve estar atento aos sintomas representados pela compaixatildeo culpa conceitos de pecado e castigo ndash jaacute que a maacute-consciecircncia eacute signo de doenccedila Segundo Nietzsche a religiatildeo cristatilde com sua moral de ressentimento inventou a ldquogrande estratagemardquo para aliviar a dor do homem ao responsabilizaacute-lo e culpabilizaacute-lo por seu sofrimento Foi a forma de dar-lhe um sentido pois o que o homem natildeo suporta natildeo eacute a dor mas sim sua falta de sentido ldquoo homem preferiraacute ainda querer o nada a nada quererrdquo (NIETZSCHE [1887] 2009 p 140)

A funccedilatildeo do meacutedico das neuroses na obra de FreudNa obra freudiana haacute duas teorias sobre as pulsotildees a primeira apresenta o dualismo

pulsotildees sexuais e pulsotildees de autoconservaccedilatildeo a segunda apresenta o dualismo pulsotildees de vida e pulsotildees de morte

A pulsatildeo eacute definida na primeira teoria como um ldquoconceito-limite entre o psiacutequico e o somaacutetico como o representante psiacutequico dos estiacutemulos que provecircm do interior do corpo e alcanccedilam a psique como uma medida da exigecircncia de trabalho imposta ao psiacutequico em consequecircncia de sua relaccedilatildeo com o corpordquo (FREUD [1915] 2006 p 148)

Parece evidente mas eacute preciso considerar atentamente o que o autor quer transmitir ao dizer ldquoum estiacutemulo que proveacutem de interior do corpo e atua no psiquismordquo Trata-se de uma fronteira portanto eacute preciso evitar o equiacutevoco de cindir o termo Trieb e trata-lo como referente ao bioloacutegico ou soacute ao que eacute humano e de inclinaccedilatildeo psiacutequica ndash natildeo haacute uma dicotomia mente-corpo No mesmo artigo intitulado A pulsatildeo e seus destinos8 Freud sublinha que a pulsatildeo tem uma forccedila constante tem sua origem em fontes de estimulaccedilatildeo internas do organismo e nenhuma accedilatildeo de fuga prevalece contra ela Dessa forma ele marca a distinccedilatildeo entre um estiacutemulo interno que atua no psiquismo e um estiacutemulo externo que tem origem fisioloacutegica Mas quantas pulsotildees nessa fase dos escritos Freud supotildee existir Ele propotildee a distinccedilatildeo de dois grupos de pulsotildees primordiais o das pulsotildees do Eu ou de autoconservaccedilatildeo9 e o das pulsotildees sexuais ndash distinccedilatildeo que se assenta nas duas grandes tendecircncias reconhecidas pela biologia da eacutepoca Encontram-se sob o predomiacutenio

7 Cf Fragmento poacutestumo 29 [222] veratildeo-outuno 1872-1873 Nietzsche v 2 p 5498 Texto de abertura do conjunto de artigos concebidos entre 1914 e 1915 para apresentar a Metapsicologia A teoria

psicanaliacutetica de Freud eacute composta por uma parte empiacuterica - a sua psicologia dos fatos cliacutenicos - e outra especulativa - a metapsicologia Podemos entender como uma perspectiva

9 Pulsatildeo do Eu e Pulsatildeo de autoconservaccedilatildeo seratildeo usados como sinocircnimos no texto

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

200

de diferentes princiacutepios de funcionamento Pulsotildees do Eu satildeo regidas pelo princiacutepio de realidade e soacute podem satisfazer-se com um objeto real Pulsotildees sexuais encontram-se sob o predomiacutenio do princiacutepio do prazer podendo satisfazer-se com objetos da fantasia As pulsotildees sexuais logo que surgem estatildeo ligadas agraves pulsotildees do Eu das quais soacute gradativamente se separam10 O movimento pulsional se origina numa fonte implica uma forccedilapressatildeo tem uma meta e essa meta se apoia em um objeto ldquoO objeto da pulsatildeo eacute aquilo em que ou por meio de que a pulsatildeo pode alcanccedilar sua meta [a satisfaccedilatildeo] Ele eacute o elemento mais variaacutevel da pulsatildeo e natildeo estaacute originariamente ligado agrave ela sendo-lhe apenas acrescentado em razatildeo de sua aptidatildeo para propiciar satisfaccedilatildeo [] o objeto poderaacute ser substituiacutedo por interminaacuteveis outros objetosrdquo (FREUD [1915] 2006 p 149)

Em 1920 Freud formula a oposiccedilatildeo entre Pulsatildeo de Vida e Pulsatildeo de Morte A pulsatildeo de vida eacute concebida como a tendecircncia agrave formaccedilatildeo de unidades maiores agrave aproximaccedilatildeo e agrave unificaccedilatildeo entre as partes dos seres vivos A pulsatildeo de morte ao contraacuterio eacute vista como a tendecircncia agrave separaccedilatildeo agrave destruiccedilatildeo e em uacuteltima anaacutelise agrave volta ao estado inorgacircnico O conceito de pulsatildeo aqui eacute muito mais amplo Em vez de uma exigecircncia de trabalho feita pelo soma ao aparelho psiacutequico tem-se duas tendecircncias gerais que se aplicam a toda mateacuteria viva No trabalho intitulado O problema econocircmico do masoquismo ([1924] 2007) o autor declara que os dois tipos de pulsatildeo sempre satildeo amplamente misturados em variadas proporccedilotildees Eacute digno da atenccedilatildeo do leitor que a segunda teoria natildeo substitui inteiramente a primeira mas a engloba com algumas alteraccedilotildees

Mas para o objetivo do presente trabalho conveacutem retomar o esclarecimento sobre o objeto pulsional pelo qual o homem busca satisfazer-se e que pode variar e se deslocar para outros objetos No texto Projeto de uma psicologia cientiacutefica Freud realiza uma decomposiccedilatildeo da primeira experiecircncia de satisfaccedilatildeo e descreve o objeto inicial supondo se tratar de outro ser humano como sendo o primeiro objeto de satisfaccedilatildeo Um outro ser humano seraacute responsaacutevel pela accedilatildeo especiacutefica de nutrir o receacutem nascido pois ldquoo organismo humano eacute a princiacutepio incapaz de promover essa accedilatildeo especiacutefica Ela se efetua por ajuda alheia [Nebenmensch] quando a atenccedilatildeo de uma pessoa experiente eacute voltada para um estado infantil por descarga atraveacutes da via de alteraccedilatildeo internardquo (FREUD [1895] 1996 p370) Mas o que seria apenas a satisfaccedilatildeo de uma necessidade [fome] no humano se mescla com uma satisfaccedilatildeo sexual - portanto pulsional

Quando a pessoa que executa o trabalho da accedilatildeo especiacutefica no mundo externo para o desamparado este uacuteltimo fica em posiccedilatildeo por meio de dispositivos reflexos de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessaacuteria para remover o estiacutemulo endoacutegeno A totalidade do evento constitui entatildeo a experiecircncia de satisfaccedilatildeo que tem as consequecircncias mais radicais no desenvolvimento das funccedilotildees do indiviacuteduo (FREUD [1895]1996 p370 grifo da autora)

Uma vez jaacute experienciada a satisfaccedilatildeo reaparecendo o ldquoestado de urgecircncia ou desejordquo (p371) haacute uma ativaccedilatildeo concomitante entre a representaccedilatildeo do objeto [lembranccedila] e a imagem reconstruindo a presenccedila do objeto a partir de uma alucinaccedilatildeo ldquoNatildeo tenho duacutevida de que na primeira instacircncia essa ativaccedilatildeo do desejo produz algo idecircntico a uma percepccedilatildeo ndash a saber uma alucinaccedilatildeo Quando uma accedilatildeo reflexa eacute introduzida em seguida a esta a consequecircncia inevitaacutevel eacute o desapontamentordquo (FREUD [1895] 1996 p372) Esse eacute

10 Um exemplo seria a boca e o ldquosugar com deleiterdquo a princiacutepio a serviccedilo da alimentaccedilatildeo e posteriormente a serviccedilo da sexualidade

Michaella Carla Laurindo

201

o argumento sobre a busca de objetossituaccedilotildees que satisfaccedilam a pulsatildeo Esse eacute o recalque primordial e que faraacute o ser humano buscar a satisfaccedilatildeo miacutetica ao longo da vida

Acompanhando Freud Quinet (2012) destaca que a satisfaccedilatildeo pulsional seraacute sempre parcial pois o objeto que supostamente traria a satisfaccedilatildeo completa estaacute perdido Assim as pulsotildees satildeo investidas em diversos objetos que trazem satisfaccedilatildeo momentacircnea mas nunca ininterrupta O ser humano procura constantemente este objeto que um dia trouxe uma suposta satisfaccedilatildeo sem igual uma plena satisfaccedilatildeo Isso ocasiona uma vida de procura e reencontros tatildeo somente com substitutos fugazes Assim ele [o objeto] natildeo estaacute de volta eacute somente uma sombra do que foi perdido sem nem mesmo ter existido11

A funccedilatildeo do psicanalista como meacutedico das neuroses eacute pautada nos sintomas de um corpo que eacute material mas tambeacutem pulsional ou seja estreitamente relacionado com o psiquismo e em consequecircncia com o inconsciente Eacute o corpo atravessado pela Trieb ndash natildeo eacute um corpo puramente anatocircmico mas simboacutelico Para Freud a neurose e suas formaccedilotildees sintomaacuteticas satildeo respostas agrave exigecircncia pulsional de satisfaccedilatildeo que se expressa em sofrimento e morbidez Eacute funccedilatildeo desse meacutedico estar atento ao fato de que o ser humano emprega defesas e estrateacutegias para interagir com o mundo externo em sua busca incessante de realizar suas pulsotildees mas que satildeo inconciliaacuteveis com a vida em civilizaccedilatildeo O processo de formaccedilatildeo das sociedades traz inerentemente consigo uma sensaccedilatildeo de mal-estar ocasionada pelos sacrifiacutecios impostos pela civilizaccedilatildeo ao homem Dentre eles pode-se citar os relacionados agrave sexualidade e agrave agressividade Isso diminui as probabilidades de o ser humano ser feliz em sociedade pois torna a vida ldquoaacuterdua demaisrdquo O homem civilizado a partir disso troca uma quantia de satisfaccedilatildeo por uma quantia de seguranccedila ou seja viver em sociedade provocou uma perda de liberdade em ganho de seguranccedila (FREUD [1930] 1996) O padecimento sempre estaacute relacionado justamente agrave tentativa de amansar ou tentar deixar latente a forccedila pulsional desconhecida pela consciecircncia

Uma das funccedilotildees do meacutedico das neuroses eacute escutar sem julgamentos preacutevios de base moral Essa postura tambeacutem eacute solicitada a quem o procura que deve associar livremente ldquo[] lhe ocorreratildeo vaacuterios pensamentos que vocecirc quer rechaccedilar com certas restriccedilotildees criacuteticas [] nunca ceda a essa criacutetica diga-o mesmo assim justamente porque vocecirc sente uma rejeiccedilatildeo diante dissordquo (FREUD [1913] 2017 p 136) Trata-se de uma escuta com atenccedilatildeo equiflutuante e neutralidade evitando o perigo de selecionar certos trechos do discurso em meio ao material apresentadoNatildeo eacute possiacutevel que o analista faccedila seleccedilatildeo com base em suas proacuteprias inclinaccedilotildees ou expectativas isso apenas falsificaria a percepccedilatildeo ldquoNatildeo nos esqueccedilamos que ouvimos coisas cuja importacircncia soacute se revelaratildeo a posteriori (FREUD [1912] 2017 p 94) O analista precisa ldquodirigir para o inconsciente emissor do paciente o seu proacuteprio inconsciente enquanto oacutergatildeo receptorrdquo (p99) e ldquocolocar de lado todos os seus afetos e ateacute a compaixatildeo humanardquo (p98) A frieza emocional do analista tem o objetivo de evitar a ambiccedilatildeo terapecircutica natildeo eacute possiacutevel que o tratamento busque o efeito de convencimento no paciente ldquoO meacutedico precisa ser opaco para o analisando e assim como uma superfiacutecie espelhada natildeo deve mostrar nada aleacutem daquilo que lhe eacute mostradordquo (p 102) Tambeacutem natildeo cabe ao praticante ter ambiccedilatildeo educativa pois a atividade intelectual natildeo alivia os efeitos da neurose pelo contraacuterio - refletir muito e frequentemente com muita erudiccedilatildeo eacute um sinal de resistecircncia

Os dois uacuteltimos artigos afirmam que natildeo haacute uma ldquoverdade absolutardquo de posse do analista ou um juiacutezo em termos de ldquobem e malrdquo O significado singular da vida do sujeito 11 A satisfaccedilatildeo miacutetica daraacute origem agrave noccedilatildeo freudiana de realidade psiacutequica isso significa que a verdade eacute uma ficccedilatildeo

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

202

soacute seraacute conhecido a posteriori12 com base no discurso do proacuteprio analisando Afirmam tambeacutem que a compaixatildeo a erudiccedilatildeo e o uso das capacidades conscientes em nada o auxiliam

Na visatildeo freudiana a internalizaccedilatildeo das imposiccedilotildees morais da cultura como pecado ndash castigo tambeacutem provocam o adoecimento do analisando na forma de um supereu muito severo Portanto outra funccedilatildeo do meacutedico das neuroses eacute abrandar a severidade do supereu pois o sentimento de culpa condena qualquer tentativa de satisfaccedilatildeo pulsional e ainda produz auto-recriminaccedilatildeo Freud explica que as exigecircncias culturais as criacuteticas dos pais e as censuras dos educadores satildeo os meios encontrados por essas proibiccedilotildees de fora que falam na terceira pessoa para se internalizarem como a voz da consciecircncia por efeito do recalcamento A religiatildeo busca aplacar a falta de sentido da vida e ldquoo homem comum soacute pode imaginar essa Providecircncia sob a figura de um pai ilimitadamente engrandecido Apenas um ser desse tipo pode compreender as necessidades dos filhos dos homens enternecer-se com suas preces e aplacar-se com os sinais de seu remorso Tudo eacute tatildeo patentemente infantilrdquo (FREUD [1930] 1996 p 82) Alega ainda redimir a humanidade do sentimento de culpa a que chamam de pecado utilizando a seu favor a severidade do supereu

3 O vazio de sentido ndash a reinvenccedilatildeo de si proacuteprioEacute necessaacuterio a princiacutepio demarcar aproximaccedilotildees e tambeacutem diferenccedilas entre as

abordagens de Nietzsche e Freud O primeiro faz uma construccedilatildeo cosmoloacutegica ao formular seu conceito de Forccedilas e Vontade de Potecircncia enquanto o segundo ocupa-se de uma terapecircutica Satildeo dois corpos teoacutericos distintos em que uma interlocuccedilatildeo eacute possiacutevel mas com certa cautela para evitar o reducionismo No momento cabe sintetizar alguns pontos que auxiliam na anaacutelise dessas aproximaccedilotildees e diferenccedilas

Nietzsche e Freud fizeram um diagnoacutestico e criacutetica da eacutepoca em que viveram ndash e tambeacutem do presente Separaram-se daquilo que era tido como verdadeiro natildeo foram dogmaacuteticos numa busca pela verdade ldquouacuteltimardquo Natildeo se limitaram a um mero diagnoacutestico cliacutenico das patologias da modernidade mas se arriscaram na emissatildeo de um prognoacutestico Seus respectivos pontos de vista satildeo uma criacutetica a concepccedilatildeo que o homem moderno fez de si ndash como um lsquosujeito racionalrsquo lsquoconscientersquo e apresentaram um contra ideal perante as exigecircncias da civilizaccedilatildeo Podemos encarar suas obras como perspectivas interpretaccedilatildeo sobre o mundo

O que eacute adoecedor decadente e qual o papel do psicanalista e do filoacutesofo O que eacute adoecedor na visatildeo de Freud satildeo os ideais e exigecircncias da civilizaccedilatildeo e que satildeo inconciliaacuteveis com as exigecircncias pulsionais Ele destaca que as pulsotildees devem ser conhecidas pelo sujeito e natildeo rechaccediladas A civilizaccedilatildeo inventou doutrinas e praacuteticas terapecircuticas para tratar no niacutevel coletivo as infelicidades inerentes agrave condiccedilatildeo humana A religiatildeo seria uma dessas ldquoideologias da promessardquo Freud afirma que o mal estar na civilizaccedilatildeo eacute um conflito indissoluacutevel sua uacutenica ldquopromessardquo eacute ldquotransformar um sofrimento neuroacutetico numa infelicidade comum [] estar mais bem armado contra essa infelicidaderdquo13(FREUD [1895] 1996 p316)

Jaacute em Nietzsche vemos que a humanidade natildeo evolui para o melhor para o mais forte ou para o superior O principal papel do meacutedico filosoacutefico seria deixar acontecer o 12 Freud aponta no capiacuteto II do Mal-estar na ciilizaccedilatildeo que a felicidade deve ser construiacuteda individualmente ldquoNatildeo haacute

aqui um conselho vaacutelido para todos cada um tem que descobrir a sua maneira particular de ser felizrdquo ([1930] 2010 p40-41)

13 Outra aproximaccedilatildeo entre os autores eacute o ldquosentimento inconsciente de culpardquo e ldquomaacute consciecircnciardquo - os dois principais sin-tomas que denunciam uma ldquodoenccedilardquo que se alastra da moral para outros domiacutenios da cultura e desta para o psiquismo

Michaella Carla Laurindo

203

ciclo vital14 e tambeacutem que suas fases sejam superadas Adoecedor seria negar a vida que na verdade deveria ser um processo incessante de autossuperaccedilatildeo Elevaccedilatildeo da cultura significa expressar os impulsos no intuito de autossuperaccedilatildeo propiciar a accedilatildeo criadora e de renovaccedilatildeo da cultura sem a ilusatildeo de uma felicidade suprema

Haacute nos dois autores uma articulaccedilatildeo entre sintoma individual cultural Mas Nietzche parece enfatizar o sintoma cultural quando escreve ldquoNos indiviacuteduos a loucura [Irrsinn] eacute rara - mas no grupos partidos povos eacutepocas eacute a regra e por isso os historiadores natildeo tecircm falado da loucura ateacute hoje Mas chegaraacute o tempo em que os meacutedicos escreveratildeo a histoacuteriardquo15 De qualquer forma tanto psicanalista quanto filoacutesofo tecircm que ldquolutar com resistecircncias inconscientes no proacuteprio coraccedilatildeo do investigador sem condicionamentos entre lsquobom e malrsquo se posicionar para aleacutem da moralrdquo (NIETZSCHE sect23 [1886] 2005 p27-28)

O vazio de sentido e a reinvenccedilatildeo construccedilatildeo de si proacuteprio tanto em Nietzsche quanto em Freud haacute uma interrogaccedilatildeo sobre o que vem a ser a verdade Em Freud por exemplo vimos que toda a busca de sentido ao longo da vida estaacute assentada em uma ficccedilatildeo ndash haacute uma total falta de sentido para a existecircncia Eacute que o objeto da pulsatildeo eacute uma experiecircncia de satisfaccedilatildeo em torno da qual estruturou-se o circuito da pulsatildeo Mas se trata de uma experiecircncia de satisfaccedilatildeo que carece de essecircncia ou melhor dizendo eacute um nada de substacircncia Eacute o encontro com esse nada que a neurose pretende evitar a todo preccedilo (GODINO-CABAS 2009) Em Genealogia da Moral vemos que ldquoalgo faltava que uma monstruosa lacuna circundava o homem ndash ele natildeo sabia justificar explicar afirmar a si mesmo ele sofria do problema do seu sentido []o ideal asceacutetico lhe ofereceu um sentidordquo (NIETZSCHE [1887] 2009 p 139) Os conceitos dos dois autores orbitam em torno de se permitir a experiecircncia da falta de sentido que as identificaccedilotildees e as idealizaccedilotildees declinem Trata-se de assumir a proacutepria vida sem as proacuteteses da ilusatildeo e tentar fazer dela uma obra de arte uma reinvenccedilatildeo permanente de si mesmo O conflito decorrente da vida em civilizaccedilatildeo pode ser produtivo Construir um mundo individual e comunitaacuterio menos sofrido Essa construccedilatildeo natildeo toma por base uma esperanccedila de natureza religiosa nem uma certeza ndash eacute uma aposta sem as garantias de um final feliz Trata-se portanto de fomentar a criatividade humana e a constante mudanccedila de valores e conceitos recusando-se agrave estagnaccedilatildeo

14 Fase de juventude fase de apogeu e fase debilitada da cultura15 Cf Fragmento poacutestumo 3[1] [159] veratildeo-outuno 1882 Nietzsche v 3 p 67

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

204

Referecircncias bibliograacuteficasFREUD S A psicoterapia da histeria [1895] In Ediccedilatildeo Standart Brasileira das Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud (Vol II) Rio de Janeiro Imago 1996_____ Projeto de uma psicologia cientiacutefica [1895] In Ediccedilatildeo Standart Brasileira das Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud (Vol I) Rio de Janeiro Imago 1996_____ Recomendaccedilotildees ao meacutedico para o tratamento psicanaliacutetico [1912] In Obras Incompletas de Sigmund Freud Autecircntica Editora 2017_____ Sobre o inicio do tratamento [1913] In Obras Incompletas de Sigmund Freud Autecircntica Editora 2017_____ A pulsatildeo e destinos da pulsatildeo [1915] In Obras Psicoloacutegicas de Sigmund Freud - Volume 1 ndash Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente Rio de Janeiro Imago 2004_____ Aleacutem do princiacutepio do prazer [1920] In Obras Psicoloacutegicas de Sigmund Freud - Volume 2 ndash Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente Rio de Janeiro Imago 2006_____ O problema econocircmico do masoquismo [1924] In Obras Psicoloacutegicas de Sigmund Freud - Volume 3 ndash Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente Rio de Janeiro Imago 2007_____ O mal-estar na civilizaccedilatildeo [1930] In Obras completas de Sigmund Freud (Vol XVIII) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 FREZZATTI Jr Wilson Anotnio A fisiologia de Nietzsche a superaccedilatildeo da dualidade culturabiologia Ijuiacute Ed Unijuiacute 2006_____ O problema de Soacutecrates um exemplo da fisiopsicologia de Nietzsche Rev Filos Aurora Curitiba v 20 n 27 p 303-320 juldez 2008GODINO-CABAS A O sujeito na psicanaacutelise de Freud a Lacan Da questatildeo do sujeito ao sujeito em questatildeo Rio de Janeiro Zahar 2009MARTON S Verbete Vontade de Potecircncia [Wille zur Macht] Psicologia [Psychologie] In GEN Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo Loyola 2016MUumlLLER-LAUTER W A doutrina da vontade de poder em Nietzsche Trad O Giacoacuteia Jr Satildeo Paulo Annablume 1997NIETZSCHE FW Humano demasiado humano [1878] Traduccedilatildeo P C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2005 _____ Aleacutem do bem e do mal [1886] Traduccedilatildeo P C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2005_____ A gaia ciecircncia [1886] Traduccedilatildeo P C de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____Genealogia da moral uma polecircmica [1887] Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ [1967] Nachgelassene Fragmente 1885-1887 Em G Colli amp M Montinari (Orgs) Kritische Studienausgegeben ndash KSA Vol 12 BerlinNew York Walter de Gruyter _____ Fragmentos Poacutestumos 1885-1889 (vol II) Madrid Editorial Tecnos 2016_____ Fragmentos Poacutestumos 1885-1889 (vol III) Madrid Editorial Tecnos 2016_____ Fragmentos Poacutestumos 1885-1889 (vol IV) Madrid Editorial Tecnos 2016QUINET A (2012) Os outros em Lacan Rio de Janeiro Zahar

Neomar Sandro Mignoni

205

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as influecircncias de Paul Reacutee 1

Neomar Sandro Mignoni2

Quando veio a puacuteblico em maio de 1878 Humano demasiado humano provocou inuacutemeras reaccedilotildees entre os amigos e leitores de Nietzsche Com exceccedilatildeo de Burckhardt que se refere agrave obra quase como a um ldquolivro soberanordquo3 e de Reacutee que entusiasmadamente o definiu como ldquoo livro dos livrosrdquo (cf KGB II6 850) as demais reaccedilotildees foram incocircmodas e ateacute explicitamente negativas Wagner se recusou a ler o livro Cosima o definiu como ldquoum livro tristerdquo ldquofruto da perversatildeordquo que ldquoprovoca grande constrangimento entre os amigosrdquo Rohde permaneceu consternado Malwida embaraccedilada e Marie Baumgartner afirmou ter ldquotremido de espantordquo4 Numa carta que enviou a Reacutee (12 de maio de 1878) Nietzsche confessou que apesar de sua obra ter causado ldquoirritaccedilatildeo mal-entendidos estranhamentosrdquo ele se sentia ldquorejuvenescido semelhante a um paacutessaro de montanha que estaacute laacute em cima no alto vizinho ao gelo a olhar o mundo laacute embaixordquo (Epistolario III 720) Foi tambeacutem nesse espiacuterito que ainda nos primeiros dias de 1878 num rascunho da carta destinada a Wagner o filoacutesofo escrevera ldquoEste livro eacute meu eu trouxe agrave luz minha mais iacutentima percepccedilatildeo sobre os homens e as coisas e pela primeira vez circulei a periferia de meu proacuteprio pensamentordquo (Epistolario III 676)

Mais do que ldquoo monumento de uma criserdquo (EH Humano demasiado humano sect1) Humano eacute tambeacutem o marco decisivo do retorno a si mesmo da retomada de uma via de pensamento que jamais seraacute abandonada Esta eacute a obra na qual o filoacutesofo se sente no direito de afirmar a proacutepria autonomia intelectual de buscar a proacutepria liberdade de espiacuterito No entanto nem todos assim o compreenderam Se por um lado congratulava-se com Reacutee pela consonacircncia de suas ideias (cf Epistolario III 743) por outro confrontava-se com Rohde em defesa da originalidade de suas proacuteprias conclusotildees frente a acusaccedilatildeo deste de que ele se despira da proacutepria alma para assumir a de Reacutee Em sua defesa Nietzsche escreveu

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - coacutedigo de Financiamento 001

2 Bolsista na Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Campus Toledo Paranaacute3 Essa opiniatildeo positiva do historiador e colega de profissatildeo de Nietzsche adveacutem de uma carta enviada a von Preen

em dezembro de 1878 (cf KGV IV4 p48) na qual afirmara ldquoNotaste que Nietzsche em seu livro faz uma meia conversatildeo em direccedilatildeo ao otimismo Eacute um homem extraordinaacuterio Para todas as coisas tem seu proacuteprio ponto de vista adquirido de maneira autocircnomardquo

4 Em relaccedilatildeo agraves reaccedilotildees dos leitores da obra veja-se Epistolario III 720s p 291s e suas respectivas notas aleacutem da KGB IIVI2 p850)

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as

206

Entre parecircntesis procure sempre a mim em meu livro e natildeo o amigo Reacutee Estou orgulhoso de ter descoberto as suas esplendidas qualidades e aspiraccedilotildees mas acerca da concepccedilatildeo da minha lsquophilosophia in nucersquo ele natildeo exerceu sequer a menor influecircncia esta estava pronta e em boa parte jaacute confiada ao papel quando o conheci de modo mais proacuteximo no outono de 1876 Nos encontramos colocados sobre um plano idecircntico o prazer dos nossos coloacutequios era sem limites e foi certamente de grande vantagem para ambos (Epistolario III 727)

A nosso modo de ver esta talvez seja a afirmaccedilatildeo que melhor ilustra seja o caraacuteter de Humano demasiado humano seja a influecircncia exercida por Reacutee no periacuteodo da elaboraccedilatildeo da obra Vejamos Nietzsche conheceu Reacutee na primavera de 18735 e em 1875 expressou grande apreccedilo agraves Observaccedilotildees psicoloacutegicas6 de Reacutee que fora publicada naquele mesmo ano No entanto eacute somente em 1876 que amizade entre os dois se consolida definitivamente apoacutes a visita de Reacutee agrave Basileacuteia em fevereiro deste mesmo ano Em agosto ambos se apresentaram em Bayreuth para a primeira ediccedilatildeo do festival wagneriano Depois que Nietzsche abandonou o Festival Reacutee o acompanhou agrave Basileacuteia onde iniciaram uma seacuterie de leituras e estudos em comum Eacute tambeacutem nesse periacuteodo que Nietzsche ditou a Gast o Die Plufgschar (O arado) (cf caderno M I 1 de 1876 grupo 18) Posteriormente dirigiram-se a Bex7 e mais tarde partiram em direccedilatildeo ao sul onde se encontraram com Malwida e Brenner para a estadia em Sorrento Seraacute pois em Sorrento que tanto a Origem dos sentimentos morais quanto Humano demasiado humano foram gestados pelo menos em sua maior parte

Uma anaacutelise mais acurada do espoacutelio de Nietzsche evidencia que justamente ao longo dos anos de 1875 e 1876 Nietzsche passou por uma profunda crise intelectual e emocional cujas consequecircncias transformaram seu modo de pensar e conceber o mundo8 No entanto essa crise natildeo eacute algo que veio agrave tona por forccedila do acaso tampouco de maneira suacutebita e inesperada Desde pelo menos 1872-73 eacute possiacutevel verificar alguns sinais desse evento A publicaccedilatildeo de O Nascimento da Trageacutedia (1872) jaacute evidenciara que a exuberante visatildeo do mundo que o filoacutesofo construiacutera ao longo da obra constituiacutea apenas uma bela ilusatildeo da qual nem mesmo ele acreditava muito (cf DrsquoIORIO 2014 p 11) Prova disso eacute a profunda cisatildeo existente entre aquilo que tornou puacuteblico atraveacutes da obra e aquilo que manteve no segredo de suas anotaccedilotildees privadas eou confiadas agraves liccedilotildees que proferiu a seus alunos Essa cisatildeo soacute alcanccedilaraacute seu fim no decorrer de sua estadia no Sul em Sorrento quando de fato toda aquela atividade de pensamento todo aquele fluxo que se manteve oculto ateacute entatildeo comeccedila a emergir dando vida a Humano demasiado humano5 Na ocasiatildeo Reacutee estivera na Basileacuteia para prestigiar a livre-docecircncia de seu amigo Romundt que tambeacutem era amigo

de Nietzsche Este em carta a Rohde descreveu Reacutee como um ldquoum homem muito reflexivo e talentosordquo (cf Episto-lario II 307) Reacutee permaneceu na Basileacuteia por todo o semestre de veratildeo onde juntamente com Gersdorff frequentou as aulas de Nietzsche sobre os preacute platocircnicos

6 Por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo Nietzsche cumprimentou o autor numa carta ldquoCaro senhor doutor as suas Observaccedilotildees psicoloacutegicas me fizeram muito prazer porque levastes a seacuterio o seu incoacutegnito poacutestumo (ldquodo legado literaacuteriordquo) [] Se vocecirc natildeo publicar mais anda aleacutem destas maacuteximas formadoras do ESPIacuteRITO se estaacute obra for e seraacute verdadeiramente o seu legado tudo bem tambeacutem quem vive em tanta independecircncia e segue adiante por sua proacutepria conta tem o direito de exigir que se lhe poupe elogios e esperanccedilasrdquo (Epistolaacuterio II 492) Reacutee agradeceu generosamente poucos dias depois

7 Um ano mais tarde Reacutee ainda lembraraacute desta estadia ldquoNestes tempos de agora meus pensamentos vagueiam por Bex e natildeo querem deixar-se expulsar de laacute De algum modo foi a lua de mel de nossa amizade e a pequena casa agrave parte a sacada de madeira os cachos de uva e o Saacutebio completam o quadro de uma situaccedilatildeo perfeitardquo (cf Triangolo di lettere Paul Reacutee a Nietzsche em 10 de outubro de 1877 p 28)

8 Alguns sintomas dessas mudanccedilas podem ser encontrados ateacute mesmo entre seus escritos de 1873 e 1874 especial-mente os escritos durante o veratildeo-outono de 1873 como por exemplo o caderno U II 2

Neomar Sandro Mignoni

207

As consequentes mudanccedilas provocadas por essa crise alteraram natildeo soacute o seu modo de pensar ou o seu modo de escrita mas influenciaram ateacute mesmo suas leituras Agrave medida em que se tornou evidente o real significado do renascimento cultural proposto por Wagner agrave medida que as ideias de Schopenhauer natildeo o convenciam mais Nietzsche ampliou seus horizontes de estudos Em 1875 adquiriu uma seacuterie de obras muitas delas de cunho puramente cientiacutefico como no caso das obras publicadas na Internationale wissenschaftliche Bibliothek o filoacutesofo passou a ocupar-se tambeacutem com muitas outras leituras ateacute entatildeo ineacuteditas como por exemplo os moralistas franceses9 Spencer Duumlhring e obviamente as Observaccedilotildees Psicoloacutegicas de Paul Reacutee entre outras

Nesse meio tempo enquanto Nietzsche se ocupava com seus estudos cientiacuteficos e com a quarta extemporacircnea Richard Wagner em Bayreuth Reacutee iniciava seus estudos para sua segunda obra a jaacute citada Origem dos sentimentos morais Interessante notar que tanto Reacutee quanto Nietzsche jaacute vinham se ocupando de suas respectivas obras desde 1875 e que tanto Origem dos sentimentos morais quanto Humano demasiado humano soacute foram publicadas apoacutes a intensa convivecircncia dos dois autores 1877 e 1878 respectivamente Sendo assim eacute bastante natural que tais obras incorporem elementos provenientes do intenso diaacutelogo entre seus autores Contudo delimitar tais influecircncias eacute algo bastante complexo senatildeo impossiacutevel razatildeo pela qual natildeo nos cabe aqui reconstruir esse diaacutelogo mas antes apontar alguns desses elementos que a nosso ver satildeo essenciais agrave compreensatildeo das mutuas influecircncias entre Nietzsche e Reacutee Aqui vale ressaltar que a amizade entre os dois autores se solidificou efetivamente apoacutes o rompimento de Nietzsche com Wagner Reacutee natildeo teve nenhuma influecircncia sobre o distanciamento de Nietzsche para com Wagner no entanto nos parece bastante razoaacutevel que em virtude desse afastamento a posterior influecircncia de Reacutee tenha contribuiacutedo positivamente com Nietzsche na sua busca pela proacutepria originalidade de pensamento

As razotildees pelas quais Nietzsche empreende novos estudos sobretudo no acircmbito cientiacutefico mais do que um retorno ao seu antigo e contiacutenuo interesse pela temaacutetica cientiacutefica representa tambeacutem a tomada de consciecircncia das questotildees essenciais de uma nova eacutepoca que agora despontava O homem moderno jaacute natildeo se satisfaz com as promessas metafiacutesicas ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da ciecircncia traz consigo questotildees cada vez mais complexas que o colocam em confronto com sua proacutepria existecircncia Dentre as grandes novidades do periacuteodo certamente natildeo passaram despercebidas ao filoacutesofo as vozes que traziam notiacutecias de Londres sobre o encontro de Darwin com Ruumltimeyer de 1877 por exemplo ou aquelas da Alemanha que debatiam o cientificismo positivista de Ernest Haeckel ou ainda as da Franccedila que faziam irromper o movimento antirromacircntico impulsionados pelo impressionismo de Manet e Rodin A muacutesica tambeacutem teve suas expressotildees quando por exemplo Brahms assumiu a corrente antiwagneriana salvando o prestiacutegio e a legitimaccedilatildeo da sinfonia O mesmo pode ser visto na literatura na medida em que ecoava o naturalismo em obras como Lrsquoassomoir de Emile Zola de 1876 (cf JANZ 1980 p 780) O clima era de intensa mudanccedila e Nietzsche com a sensibilidade de um sismoacutegrafo certamente natildeo soacute percebera a ebuliccedilatildeo dessa nova atmosfera como tambeacutem tratou de inserir-se nesse novo meio cultural

9 Entre eles La Rochefoucauld Vauvenargues Chamfort Montaigne e La Bruyegravere e os Filoacutesofos do Iluminismo principalmente Voltaire mas tambeacutem Diderot Helvetius e Fontenelle e provavelmente tambeacutem Rousseau em suas Confissotildees

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as

208

Paul Reacutee por sua vez mediante seus heterogecircneos interesses parecia incorporar esta nova efervescecircncia cientiacutefico-cultural Apaixonado por etnologia antropologia e direito comparado Reacutee representava praticamente uma antiacutetese daquilo que Nietzsche vivenciara ateacute entatildeo nos ciacuterculos wagnerianos e schopenhauerianos dos quais agora procurava afastar-se Ceacutetico em relaccedilatildeo aos confrontos com o idealismo metafiacutesico Reacutee manteve tambeacutem um vivo diaacutelogo com os moralistas franceses a ponto de alguns o considerarem como o responsaacutevel pela iniciaccedilatildeo de Nietzsche na escrita em forma de aforismos Influenciado pelo positivismo e consciente do papel que o instinto e a imaginaccedilatildeo desempenham na construccedilatildeo do pensamento afastara-se progressivamente de Schopenhauer para avizinhar-se do empirismo e das novas disciplinas cientiacuteficas10 (cf FORNARI 2006 p 34)

Em certa medida a amizade com Reacutee ocorreu em um momento crucial e decisivo para o filoacutesofo Diante de seus interesses a influecircncia de Reacutee contribuiu ainda mais para a ampliaccedilatildeo de seu horizonte de leituras Depois de aprofundar ainda mais seus interesses pelas ciecircncias naturais Nietzsche passou a adquirir e estudar uma seacuterie de obras de escritores britacircnicos e americanos que em grande parte se dedicavam agrave ciecircncia natural e agrave antropologia11 Aleacutem de sua preocupaccedilatildeo com cientistas ingleses que agora em muito expandiam a ciecircncia para aleacutem do continente Nietzsche tambeacutem se ocupou com os pensadores franceses em sua maioria moralistas aleacutem de outros importantes nomes da Alemanha

O momento eacute de transiccedilatildeo e ao mesmo tempo em que o filoacutesofo se dedica cada vez mais agraves temaacuteticas cientiacuteficas e filosoacuteficas a autores iluministas franceses e ingleses ele tambeacutem se ocupa ainda que por pouco tempo sobre algumas obras de autores com vieacutes schopenhaueriano como por exemplo E Duumlhring e P Mainlaumlnder O abandono de todas aquelas posiccedilotildees metafiacutesicas idealistas pessimistas ateacute entatildeo guiadas pela esteacutetica e pela arte o permitem lanccedilar-se agora em direccedilatildeo a posiccedilotildees mais ceacuteticas e ateacute mesmo agrave concessatildeo de elogios ao Iluminismo Aleacutem disso um outro fator importante senatildeo decisivo eacute o fato da ciecircncia adquirir a partir de agora predominacircncia sobre a arte garantindo sua soberania a partir de um livre pensar cuja expressatildeo mais niacutetida aparece agrave luz por vez primeira em Humano demasiado humano (cf EH Humano demasiado humano sect1-5) Provavelmente a maior parte desses elementos figuravam entre as principais motivaccedilotildees pelas quais aqueles que lhe eram proacuteximos quedarem-se perplexos diante daquilo que julgavam como uma suacutebita mudanccedila de perspectiva e que agora aparecia estampada em sua mais recente obra

Nesse sentido natildeo haacute duacutevidas que Humano demasiado humano seja o ldquomonumento de uma criserdquo mas de uma crise em vias de superaccedilatildeo Provavelmente Nietzsche natildeo pretendia fazer dele uma declaraccedilatildeo de guerra mas antes a definitiva constataccedilatildeo do crepuacutesculo dos ldquoideaisrdquo metafiacutesicos sintetizados sob a figura de Schopenhauer e dos miacuteticos mantidos sob a eacutegide de Wagner ldquoCom ele [Humano demasiado humano] me libertei do que natildeo pertencia agrave minha naturezardquo escreveu tambeacutem no Ecce Homo (EH Humano demasiado humano sect1) Em outro fragmento escreveu tambeacutem ldquoQuero expressamente explicar aos leitores dos meus escritos anteriores que desisti das visotildees metafiacutesicas e artiacutesticas que os dominam essencialmente elas satildeo agradaacuteveis poreacutem insustentaacuteveisrdquo E em seguidardquo numa espeacutecie de 10 ldquoDepois de ter estudado em Leipzig e Berlim com professores do calibre de Curtius Drobisch Gerber e Robert

Hartmann (foi tambeacutem um dos poucos que foram admitidos para seguir as liccedilotildees privadas do aluno de Liebig Au-gust Wilhelm von Hofmann) Reacutee participou antes de mais nada da atmosfera do laboratoacuterio que foi de Johannes Muumlller autecircntica central de energia intelectual da Europa da metade do seacuteculo que tomado de volta de Karl Reichert e Emile Du Bois-Reymond depois da morte do grande fisioacutelogo renano pretendia uma explicaccedilatildeo experimental do vivente confiada agraves ciecircncias quiacutemicas e fiacutesicasrdquo (FORNARI 2006 p 34)

11 Confira-se o caderno N I 3b da primavera de 1875 por exemplo

Neomar Sandro Mignoni

209

mea culpa acrescenta ldquoQualquer pessoa que se permita falar publicamente em uma idade precoce geralmente eacute obrigada a discordar publicamente logo depoisrdquo (FP 23[159] final de 1876-veratildeo de 1877)

Mais do que expressar em primeira matildeo todas essas mudanccedilas Humano demasiado humano incorpora tambeacutem de maneira ineacutedita a afirmaccedilatildeo ainda que tateante em alguns aspectos de uma filosofia que se reconhece como tal Nesse sentido vale recordar aqui da jaacute mencionada carta enviada a Wagner no princiacutepio de 1878 na qual Nietzsche afirma que Humano eacute um livro seu em que pela primeira vez traccedilou os contornos de seu proacuteprio pensamento Um livro sobre o qual diz natildeo conhecer ningueacutem que tenha os mesmos pontos de vista um livro do qual ldquome orgulho de ter pensado natildeo como indiviacuteduo mas como coletividade [] Um arauto que precedeu os demais com seu cavalo e natildeo sabe bem se a fila de cavaleiros o segue ou se existe aindardquo (cf Epistolario III 676) Esse eacute tambeacutem um dos motivos que o levaram a afirmar que ldquoHumano demasiado humano eacute o monumento de uma criserdquo (EH Humano demasiado humano sect1) Aliaacutes na proacutepria obra o filoacutesofo numa espeacutecie de retrospectiva da proacutepria vida tambeacutem reflete

As fases habituais da cultura espiritual que se atingiu ao longo da histoacuteria satildeo recobradas pelos indiviacuteduos cada vez mais raacutepido Atualmente eles comeccedilam a entrar na cultura como crianccedilas movidas pela religiatildeo e aos dez anos de idade atingem talvez a vivacidade maior desse sentimento depois passando a formas mais atenuadas (panteiacutesmo) enquanto se aproximam da ciecircncia deixam para traacutes a noccedilatildeo de Deus de imortalidade e coisas assim mas sucumbem ao encanto de uma filosofia metafiacutesica Esta lhes parece tambeacutem pouco digna de creacutedito afinal e a arte parece prometer cada vez mais de modo que por algum tempo a metafiacutesica soacute persiste e sobrevive transformada em arte ou como disposiccedilatildeo artisticamente transfiguradora Mas o sentido cientiacutefico torna-se cada vez mais imperioso e leva o homem adulto agrave ciecircncia natural e agrave histoacuteria sobretudo aos meacutetodos mais rigorosos do conhecimento enquanto a arte vai assumindo uma significaccedilatildeo mais branda e mais modesta Nos dias de hoje tudo isso costuma suceder nos primeiros trinta anos da vida de um homem (HDH sect272)

Em certo sentido esta parece ser a descriccedilatildeo do percurso daquelas ideias que ateacute entatildeo permaneciam em segredo e que foram se desenvolvendo ao longo dos uacuteltimos anos e que pouco a pouco foi ganharam forccedilas ateacute o filoacutesofo natildeo possuir mais razotildees para mantecirc-las ocultas Ainda pouco antes do festival de Bayreuth e dos manuscritos de Humano demasiado humano o filoacutesofo declara ldquoNatildeo deveraacute passar muito tempo e deverei manifestar opiniotildees que satildeo consideradas ignominiosas para aquele que as nutre Tambeacutem os amigos e conhecidos se tornaratildeo tiacutemidos e assustadosrdquo (FP 5 [190] do veratildeo de 1875) De fato a mudanccedila entre os escritos anteriores e o que agora se apresenta eacute bastante perceptiacutevel seja no estilo ou no conteuacutedo Entretanto apesar das inuacutemeras mudanccedilas Nietzsche natildeo abandona seu apreccedilo por Goethe pelos antigos gregos nem tampouco deixa de ocupar-se com a cultura ou com os valores o que muda agora eacute a perspectiva cuja proeminecircncia pertence agrave ciecircncia

Todos esses novos elementos que vieram agrave tona e revelaram um Nietzsche ateacute entatildeo desconhecido levaram Rohde sobretudo mas natildeo somente ele a desconfiar do alcance da influecircncia de Reacutee Mesmo depois do filoacutesofo ter defendido sua proacutepria filosofia a imagem

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as

210

da influecircncia de Reacutee no acircmbito do Humano demasiado humano continuaraacute assombrando-o por muitos anos Natildeo por acaso em vaacuterios outros momentos o filoacutesofo sentiraacute a necessidade de defender-se dessa filiaccedilatildeo indesejada ldquoNatildeo quero mais ser confundido com ningueacutemrdquo escreveu a Koumlselitz (carta de 17 de abril de 1883) ainda em referecircncia agrave Reacutee (cf Epistolario IV 402) Ou ainda quando no prefaacutecio (sect2 sect4 e sect7) da Genealogia da moral refuta a possibilidade de ter sido influenciado por Reacutee na eacutepoca do Humano defendendo que aquele ldquolivrinho claro limpo e sagaz ndash e marotordquo natildeo passa de uma antiacutetese de Humano assim como seu meacutetodo ingecircnuo e ldquoreconhecidamente inglecircsrdquo teria sido jaacute deixado de lado por ele12

Nesse embate haacute quem defenda que Reacutee foi apenas uma figura ao acaso na vida de Nietzsche de modo que poderia haver alguma relevacircncia de ordem afetiva e psicoloacutegica mas natildeo no acircmbito intelectual13 Por outro lado haacute tambeacutem aqueles que defendem uma muacutetua influecircncia muitas vezes ateacute em sentido exagerado14 Maria Cristina Fornari em sua obra intitulada La Morale evolutiva del gregge Nietzsche legge Spencer e Mill (2006) nos oferece uma terceira possibilidade de interpretaccedilatildeo Segundo a autora a relaccedilatildeo de Nietzsche com os autores que lecirc segue por algumas vias muito mais complexas que a simples apropriaccedilatildeo ou da simples refutaccedilatildeo (cf FORNARI 2006 p 47-48)

Assim sendo o caso de Reacutee eacute sem duacutevidas um caso bastante particular Isso porque eacute o uacutenico caso em que um texto (Origens dos sentimentos morais) eacute trazido pelo filoacutesofo agrave baila em trecircs momentos distintos de sua obra publicada15 Aleacutem disso a cada momento em que eacute citado ele passa assumir um significado diverso Por exemplo se a relaccedilatildeo de Nietzsche com Reacutee depende de uma consonacircncia concreta entre intenccedilotildees e aspiraccedilotildees as quais satildeo passiacuteveis de serem localizadas na efetiva familiaridade das duas obras posteriormente agrave medida em que Nietzsche amplia e aprofunda seu horizonte filosoacutefico ele passaraacute a citar o amigo sobretudo na Genealogia da moral como um exemplo de erros de perspectiva nos quais ele mesmo havia se enredado Isso jaacute configuraria o amadurecimento de Nietzsche em seu contraste com os ldquoinglesesrdquo dos quais Reacutee em muito dependia para entatildeo visualiza-los agora enquanto expoentes da ingenuidade histoacuterica e como maus genealogistas Mas isso evidenciaria tambeacutem que o filoacutesofo tem consciecircncia de que esteve muito proacuteximo de assumir ldquoas hipoacuteteses e o deacutebito intelectual contraiacutedo com as proacuteprias fontes agrave medida em que alcanccedila uma posiccedilatildeo mais profunda e que se sustente cientificamenterdquo (FORNARI 2006 p 48)

12 ldquoSe para isso [ao propoacutesito de procurar companheiros no questionamento dos valores morais] pensei no menciona-do dr Reacutee entre outros isso ocorreu por natildeo duvidar que a natureza mesma das suas questotildees o levaria a meacutetodos mais corretos para alcanccedilar as respostas Teria me enganado nisso Meu desejo em todo o caso era dar a um olhar tatildeo agudo e imparcial uma direccedilatildeo melhor a direccedilatildeo da efetiva histoacuteria da moral prevenindo-o a tempo contra essas hipoacuteteses inglesas que se perdem no azulrdquo (GM Prefaacutecio sect7)

13 Essa eacute por exemplo a visatildeo de K Jaspers (Nietzsche Einfuumlhrung in das Verstaumlndnis seines Philosophierens Berlin 1936) e D Haleacutevy (Nietzsche Paris 1944) Ambos consideram que a influecircncia entre os dois autores eacute puramente biograacute-fica e psicoloacutegica-sentimental Para Eugen Fink (Nietzsches Philosophie Stuttgart 1960) Reacutee seria o responsaacutevel por consentir a Nietzsche que este vivesse de modo livre sua fase iluminista Jaacute Andler (Nietzsche sa vie et sa penseacutee 1958) assume que Reacutee fora um pensador infinitamente modesto frente agrave Nietzsche o que natildeo impediria Nietzsche de ter sido influenciado por ele eacute verdade poreacutem segundo o autor uma comparaccedilatildeo entre as obras evidencia que a semel-hanccedila entre elas eacute iacutenfima (cf FORNARI 2006 p 47)

14 P L Ausson por exemplo considera Reacutee como um ldquoantiacutedoto a Wagnerrdquo e sua influecircncia teria o significado de um ldquopassaporte na direccedilatildeo de um novo mundo filosoacuteficordquo Desse modo a Origem dos sentimentos morais seria como que ldquoa dinamite que permitiu de escrever o lsquoLivro para espiacuteritos livresrsquordquo (cf AUSSON 1979 p 5-68) Outros autores que seguem nessa linha satildeo B Donnellan (Friedrich Nietzsche and Paul Reacutee cooperation and conflict in Journal of the Study of Ideas 1982 p 595-612) e L Battaglia (Due Genealogie della morale Nietzsche e Reacutee in Intinerati Nietzschiani ESI Napoli 1983 p 67-93)

15 Cf HDH sect37 GM Prefaacutecio sect4 EH Humano demasiado humano sect6

Neomar Sandro Mignoni

211

Em certa medida essa seria a razatildeo daquela espeacutecie de irritaccedilatildeo e o tom vagamente ressentido com o qual Nietzsche se afasta de Reacutee Nesse sentido eacute como se Nietzsche apelasse a uma espeacutecie de sobreposiccedilatildeo quase que uma superaccedilatildeo dialeacutetica daquele que um dia fora seu amigo Isso se torna ainda mais evidente no Ecce Homo quando o filoacutesofo ao retomar passagens do Humano demasiado humano (cf HDH I sect37) retoma juntamente com elas a proposiccedilatildeo de Reacutee de que ldquoo homem moral natildeo estaacute mais proacuteximo do mundo inteligiacutevel (metafiacutesico) que o homem fiacutesicordquo para em seguida atribuiacute-la natildeo mais a Reacutee mas a si mesmo ldquo(lizes [leia-se] Nietzsche o primeiro imoralista)rdquo e o faz no intuito de apresentar a sua ldquoTransvaloraccedilatildeo de todos os valoresrdquo (cf (EH Humano demasiado humano sect6)

Interessante perceber que esse inesperado retorno a Reacutee ocorre muitos anos depois da amizade entre os dois haver-se exaurido naquele embaraccedilante affaire que teve como protagonista a jovem Lou Salomeacute Mais curioso ainda eacute que mesmo apoacutes o fim da amizade Nietzsche manteacutem um vivo diaacutelogo com o texto de Reacutee Tanto eacute que a partir de 1883 Nietzsche natildeo soacute relecirc a obra de Reacutee como tambeacutem passa a ocupar-se com algumas de suas ideias como eacute o caso do conceito de culpa e de castigo que em certa medida daratildeo a tonalidade da retomada do autor da Origem dos sentimentos morais quase como um contraponto ao Nietzsche questionador da moral

Entretanto por mais que Nietzsche tenha mantido um diaacutelogo bastante profiacutecuo com a obra de Reacutee as possiacuteveis influecircncias advindas do autor se restringem a acircmbitos bastante especiacuteficos embora natildeo menos importantes do pensamento nietzschiano como eacute o caso da moral e natildeo propriamente agrave totalidade do conjunto dos elementos que compotildeem a obra Por mais que a influecircncia de Reacutee seja significativa ela natildeo eacute determinante A nosso ver o estranhamento dos que eram proacuteximo a Nietzsche com a receacutem-publicada obra eacute muito mais fruto de uma incompreensatildeo e desconhecimento e descreacutedito para com o que de fato o filoacutesofo pensava do que com uma possiacutevel justificativa acerca das influecircncias de Reacutee

Assim sendo por estes e outros elementos vale ressaltar que Humano demasiado humano natildeo eacute uma consequecircncia direta resultante do afastamento de Nietzsche em relaccedilatildeo a Wagner muito menos o resultado das inuacutemeras leituras levadas a cabo no periacuteodo de elaboraccedilatildeo da obra e tampouco pode ser resumida na siacutentese das reflexotildees e mutuas influecircncias mantidas com Reacutee Humano demasiado humano eacute antes de tudo o fruto de um longo e silencioso processo de amadurecimento intelectual gestado ao longo de vaacuterios anos mas que por razotildees obvias durante a fase wagneriana permaneceu confiado apenas ao material natildeo publicado dando origem agravequela cisatildeo entre os escritos publicados de cunho wagneriano e estes que satildeo mantidos no anonimato de suas liccedilotildees e anotaccedilotildees privadas

Nesse sentido se bem analisarmos os escritos anteriores ao Humano demasiado humano veremos guardadas as devidas proporccedilotildees uma intensa continuidade e coerecircncia entre os escritos juvenis marcados pelo elogio de Demoacutecrito o esboccedilo sobre e teleologia e a impiedosa criacutetica agrave metafiacutesica de Schopenhauer ainda na segunda metade da deacutecada de 1860 para com as aulas sobre os preacute-platocircnicos e o natildeo publicado escrito acerca de A filosofia na era traacutegica dos gregos da primeira metade da deacutecada de 1870 e por fim para com a filosofia do espiacuterito livre da segunda metade da deacutecada de 1870 Tatildeo evidente quanto as diferenccedilas entre Humano demasiado humano e as obras publicadas nos anos anteriores especialmente O Nascimento da Trageacutedia satildeo as tensotildees natildeo resolvidas entre a forccedila miacutetica

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as

212

coesiva da arte caracteriacutestico dos escritos de cunho wagneriano e o espiacuterito analiacutetico e desagregador da filosofia tatildeo evidente nas liccedilotildees sobre os preacute-platocircnicos

Humano demasiado humano resolve essas cisotildees agrave medida em que mantendo a coerecircncia com o desenvolvimento intelectual de Nietzsche iniciado antes mesmo de conhecer Wagner devolve a autonomia e a liberdade de pensamento ao seu autor Essas satildeo as razotildees pelas quais a obra figura enquanto o ldquomonumento de uma criserdquo com o qual foi possiacutevel dar um ldquobrusco fim a todo lsquoembuste superiorrsquo lsquoidealismorsquo lsquosentimento belorsquordquo com os quais fora contagiado E o papel de Reacutee em todo esse processo me parece ser justamente o de coadjuvante no proacuteprio processo de busca pela autonomia filosoacutefica que lhe garantisse a libertaccedilatildeo do espiacuterito Atraveacutes dele Nietsche logrou natildeo soacute discutir e esclarecer suas proacuteprias convicccedilotildees mas tambeacutem tomar conhecimento e entrar em contato com uma gama de autores que certamente em muito contribuiacuteram com sua filosofia

Portanto mais do que uma ponte atraveacutes da qual Nietzsche pode acessar uma seacuterie de outros autores a influecircncia de Reacutee foi sem duacutevidas fundamental para que aquele idecircntico plano de interesses e aspiraccedilotildees convergissem aos propoacutesitos que o filoacutesofo almejava com sua obra A influecircncia certamente foi muacutetua poreacutem nunca determinante razatildeo pela qual Nietzsche pode rebater a provocaccedilatildeo de Rohde solicitando que este buscasse no Humano demasiado humano natildeo Reacutee mas Nietzsche E por Nietzsche eu acrescentaria buscar natildeo apenas o que abandona Wagner e Schopenhauer mas sobretudo o Nietzsche interessado em Demoacutecrito que se ocupou com as questotildees da teleologia que fez duras criacuteticas agrave metafisica de Schopenhauer o Nietzsche filoacutelogo interessado nos neoplatocircnicos ou ainda aquele Nietzsche que dedicou grande parte de seu tempo ao estudo das ciecircncias naturais Talvez com isso o significado de ldquoum livro para espiacuteritos livresrdquo se torne ainda mais evidente

Neomar Sandro Mignoni

213

Referecircncias bibliograacuteficasAUSSON Paul-Laurent Nietzsche et le Reacuteealisme Eacutetude-Preface In REacuteE Paul De lrsquoorigine des sentiments moraux Paris Presses Universitaires de France 1982DrsquoIORIO Paolo Nietzsche na Itaacutelia A viagem que mudou os rumos da filosofia Trad Joana Angeacutelica drsquoAvila Melo Rio de Janeiro Zahar 2014FAZIO Domenico M Paul Reacutee un profilo filosofico Bari Palomar Alternative 2003FORNARI Maria Cristina La morale evolutiva del gregge Nietzsche legge Spencer e Mill Pisa Edizioni ETS 2006NIETZSCHE Friedrich Digitale Kritische Gesamtausgabe (eKGWB) ndash Digital version of the German critical edition of the complete works of Nietzsche edited by Giorgio Colli and Mazzino Montinari The eKGWB is edited by Paolo DrsquoIorio and published by Nietzsche Source httpwwwnietzschesourceorg_____ Briefwechsel Kritische Gesamtausgabe hrsg von G Colli und M Montinari de Gruyter Berlin 1975 ssg (KGB)_____ Epistolario Vol III 1875-1879 Edizione stabilita da Giorgio Colli e Mazzino Montinari Milano 1995_____ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007_____ Humano Demasiado Humano I um livro para espiacuteritos livres Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004_____ Genealogia da Moral uma polecircmica Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ Triangolo di Lettere Cartegio di Friedrich Nietzsche Lou von Salomeacute e Paul Reacutee A cura di M Carpitella Adelphi Milano 1999SMALL Robin Nietzsche and Reacutee a star friendship New York Oxford University Press Inc 2005

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)

214

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)1

Newton Pereira Amusquivar Junior2

A interpretaccedilatildeo de Nietzsche sobre o caraacuteter agoniacutestico de HeraacuteclitoPara Nietzsche a luta tem uma grande importacircncia na sua filosofia esse eacute um dos

motivos de admiraccedilatildeo a Heraacuteclito e o filoacutesofo alematildeo reconhece muito bem o caraacuteter agoniacutestico natildeo apenas em Heraacuteclito mas tambeacutem nos gregos em geral No texto A disputa de Homero presente em Cinco prefaacutecios para cinco livros natildeo escritos Nietzsche cita e traduz uma passagem de Trabalhos e dias de Hesiacuteodo em que identifica e diferencia duas deusas Eris (ἔρις)

Uma Eris deve ser tatildeo louvada quanto a outra deve ser censurada pois diferem totalmente no acircnimo essas duas deusas Pois uma delas conduz agrave guerra maacute e ao combate a cruel Nenhum mortal preza sofrecirc-la pelo contraacuterio sob o jugo da necessidade prestam-se as honras ao fardo pesado dessa Eris segundo os desiacutegnios dos imortais Ela nasceu como mais velha da noite negra a outra poreacutem foi posta por Zeus o regente altivo nas raiacutezes da Terra e entre os homens como algo bem melhor Ela conduz ateacute mesmo o homem sem capacidades para o trabalho e um que carece de posses observa o outro que eacute rico e entatildeo se apressa a semear e plantar do mesmo modo que este e a ordenar bem a casa o vizinho rivaliza com o vizinho que se esforccedila para seu bem-estar Boa eacute essa Eris para os homens Tambeacutem o oleiro guarda rancor do oleiro e o carpinteiro do carpinteiro o mendigo inveja o mendigo e o cantor inveja o cantor(NIETZSCHE 2007 p 69)

Nietzsche argumenta contra a interpretaccedilatildeo moderna que considera esses versos como natildeo autecircnticos por considerar a boa Eris com rancor e inveja pois Aristoacuteteles e os gregos em geral natildeo perceberam nenhuma contradiccedilatildeo na referecircncia a tais versos para a boa Eris dado que aponta para uma Eris como maacute e depois enaltece uma outra como boa ldquoaquela que como ciuacuteme rancor inveja estimula os homens para a accedilatildeo mas natildeo para a luta aniquiladora e sim para a accedilatildeo da disputardquo (NIETZSCHE 2007 p 70) Diferente do nosso tempo moderno o grego natildeo vecirc a inveja como defeito mas como qualidade O grego tem como caracteriacutestica a disputa e Nietzsche nota isso em Xenoacutefanes de Colofon em relaccedilatildeo a Homero em Platatildeo com sua disputa aos sofistas e artistas no ostracismo dos efeacutesios ao banir Hermodoro pois ldquoelimina-se aqueles que sobressaem para que o jogo da disputa desperte novamenterdquo (NIETZSCHE 2007 p 72) Haacute sempre vaacuterios gecircnios 1 Esse trabalho faz parte da minha tese de doutorado realizado na UNICAMP com o financiamento da bolsa CAPES 2 Doutorando em filosofia na UNICAMP

Newton Pereira Amusquivar Junior

215

que se estimulam na disputa Assim nas disputas os gregos buscavam honrar a sua cidade natal nos jogos oliacutempicos na educaccedilatildeo os jovens foram educados a disputarem entre si assim como seus educadores disputavam entre si como os sofistas e os artistas musicais e dramaturgo

Por conta disso em Os filoacutesofos preacute-platocircnicos quando Nietzsche interpreta Heraacuteclito ele coloca oπόλεμος como o seu terceiro conceito principal (NIETZSCHE 1995 p 272) E ao se referir ao fragmento DK3 B80 ele considera como uma das maiores ideias ldquo uma ideia que foi retirada do mais profundo fundamento da essecircncia grega Isso eacute a boa Eacuteris de Hesiacuteodo tornada o princiacutepio do mundordquo (NIETZSCHE 1995 p 272) A δίκη como ἔρις eacute essa ideia grega que parte da boa Eacuteris que foi analisada em A disputa de Homero ou seja que estimula a disputa e natildeo leva a completa aniquilaccedilatildeo Nietzsche nota tambeacutem em A filosofia na era traacutegica dos gregos que aqui ldquotrata-se da boa Eacuteris de Hesiacuteodo transfigurada em princiacutepio cosmoloacutegico ()rdquo(NIETZSCHE 2008 p 60) Assim Heraacuteclito transferiu a disputa da luta social dos gregos para o que haacute de mais universal a engrenagem do cosmo A vitoacuteria de um natildeo destroacutei completamente seu oponente jaacute que a destruiccedilatildeo tambeacutem faria cessar a luta dando ensejo ao predomiacutenio nefasto da maacute Eris

O πόλεμος como legalidade do devir aparece de maneira ainda mais niacutetida em A filosofia na era traacutegica dos gregos considerando todo o vir-a-ser como algo que surge da guerra entre opostos

Todo vir-a-ser surge da guerra dos opostos as qualidades determinadas que se nos aparecem como sendo duradouras exprimem tatildeo-soacute a prevalecircncia momentacircnea de um dos combatentes mas com isso a guerra natildeo chega a seu termo poreacutem a luta segue pela eternidade Tudo se daacute de acordo com esse conflito e eacute precisamente esse conflito que revela a justiccedila eterna(NIETZSCHE 2008 p 60)

Nessa passagem pode-se notar cinco aspectos importantes da interpretaccedilatildeo de Nietzsche sobre Heraacuteclito primeiramente o devir surge da guerra dos opostos entatildeo o devir natildeo eacute um simples fluxo sem nenhuma unidade ele tem sim sua unidade mas ela eacute formada pelo πόλεμος ou seja uma luta constante entre os opostos Em segundo lugar a determinaccedilatildeo e a unidade do devir exprime uma predominacircncia do combatente vitorioso logo natildeo eacute uma determinaccedilatildeo absoluta mas completamente relativa com a luta que ainda estaacute presente mesmo com o predomiacutenio de um dos opostos Em terceiro lugar a luta continua eternamente ela natildeo cessa pois o predomiacutenio de um dos opostos eacute temporaacuterio e mesmo com ele haacute ainda uma luta que impotildee resistecircncia Em quarto lugar Nietzsche faz referecircncia ao fragmento DK B80 em que considera que tudo se daacute segundo conflito logo πόλεμος eacute universal estaacute presente em tudo Por uacuteltimo eacute desse conflito que se tem a justiccedila eterna haacute uma clara referecircncia novamente ao DK B80 em que justiccedila (δίκη) eacute discoacuterdia (ἔρις) O que significa que a justiccedila eacute discoacuterdia Para Nietzsche isso parece significar que eacute na proacutepria luta entre os opostos que se forma a legalidade e justiccedila natildeo haacute um juiz neutro e fora do conflito para julgar mas os proacuteprios lutares satildeo os juiacutezes

Enquanto a imaginaccedilatildeo de Heraacuteclito mensurava o universo incansavelmente movido a ldquoefetividaderdquo com o olho do feliz espectador que vecirc inumeraacuteveis pares combaterem numa alegre competiccedilatildeo sob a

3 Indico a citaccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito por meio da sigla DK indicando a organizaccedilatildeo dos fragmentos dos preacute-socraacuteticos realizada por Hermann Diels e Walther Kranz

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)

216

eacutegide de riacutegidos aacuterbitros adveio-lhe um pressentimento mais elevado ele jaacute natildeo podia tomar os pares beligerantes e os juiacutezes como coisas separadas entre si haja vista que os proacuteprios juiacutezes pareciam lutar e os proacuteprios lutadores pareciam julgar a si mesmos ndash e jaacute que no fundo percebeu apenas uma justiccedila eternamente dominante ele ousou exclamar ldquoO proacuteprio conflito do muacuteltiplo eacute a uacutenica justiccedilardquo E em geral o um eacute o muacuteltiplo ()rdquo(NIETZSCHE 2008 p 62)

Natildeo haacute nenhum ser fora do devir para poder julgar a luta entre os opostos Por isso a justiccedila ocorre pelo proacuteprio conflito pela boa discoacuterdia (ἔρις) que estimula a disputa entre os opostos e manteacutem o devir continuamente numa alternacircncia de predomiacutenio de um com o outro pois ateacute mesmo num momento estaacutevel a luta estaacute presente de maneira latente

Para ilustrar como o πόλεμος estaacute eternamente presente no devir Nietzsche se utiliza de uma passagem de O mundo como vontade e representaccedilatildeo que trata da constante alteraccedilatildeo na natureza causada pela eterna disputa pela mateacuteria na qual se engajam todos os indiviacuteduos Esse combate inexoraacutevel reflete a discoacuterdia interna da vontade que ao objetivar-se na multiplicidade da realidade empiacuterica crava incessantemente os dentes na sua proacutepria carne

Cada grau de objetivaccedilatildeo da Vontade combate com outros por mateacuteria espaccedilo e tempo Constantemente a mateacuteria que subsiste tem de mudar de forma na medida em que pelo fio condutor da causalidade entra em cena e assim arrebatam uns aos outros a mateacuteria pois cada um quer manifestar a proacutepria Ideia Esse conflito pode ser observado em toda natureza () Tal conflito entretanto eacute apenas a manifestaccedilatildeo da discoacuterdia essencial da Vontade consigo mesma () Assim a Vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria carne () (SCHOPENHAUER 2005 p 211)

Notamos novamente como Nietzsche percebe em fragmentos de Heraacuteclito aspectos da filosofia schopenhaueriana da vontade natildeo soacute na concepccedilatildeo de devir como pura sucessatildeo de tempo mas tambeacutem no proacuteprio πόλεμος Entretanto aqui Nietzsche faz uma ressalva importante em Schopenhauer o conflito na natureza eacute um tanto diferente do πόλεμος de Heraacuteclito ldquona medida que para o primeiro a luta eacute uma prova da cisatildeo interna da vontade de vida um devorar-se-a-si-mesmo desse impulso opressivo e sombrio um fenocircmeno horriacutevel que de maneira alguma traz felicidaderdquo (NIETZSCHE 2008 p 61) Eacute justamente nesse ponto que a filosofia de Heraacuteclito se distancia de Schopenhauer para este a luta eacute resultado de uma dilaceraccedilatildeo inerente agrave natureza metafiacutesica da vontade para Heraacuteclito segundo a interpretaccedilatildeo de Nietzsche no lugar disso a proacutepria luta eacute a instacircncia geradora da unidade

Com isso nota-se que Nietzsche viu em Heraacuteclito uma fonte para afirmar ainda mais a luta dentro da efetividade logo a luta assim como a transitoriedade e o sofrimento natildeo constituem uma objeccedilatildeo contra a existecircncia tal como ocorre com Schopenhauer Essa interpretaccedilatildeo seraacute de suma importacircncia para poder formar uma concepccedilatildeo cosmoloacutegica em constante luta tambeacutem no conceito de vontade de poder Com a interpretaccedilatildeo de Nietzsche sobre Heraacuteclito podemos notar primeiramente que o πόλεμος eacute universal estaacute sempre presente e eacute comum o devir conteacutem a constante luta entre esses opostos e a justiccedila (δίκη) eacute discoacuterdia (ἔρις) natildeo haacute um juiz que julga os lutadores mas eacute a proacutepria

Newton Pereira Amusquivar Junior

217

luta que configura a justiccedila Tambeacutem natildeo haacute uma unidade totalizadora que resgate os combatentes natildeo haacute nada fora do fluxo do devir a partir e em referecircncia ao qual este possa ser julgado

O πόλεμος na funccedilatildeo do ser orgacircnico como vontade de poder Nietzsche deu grande importacircncia para a fisiologia medicina e ciecircncia natural e

isso se mostra no grande nuacutemero de escritos de ciecircncia natural adquirido ou emprestado por ele Por conta disso eacute bem notaacutevel nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche uma relaccedilatildeo entre vontade de poder e o ser orgacircnico Em trecircs fragmentos poacutestumos4 (26 [273] 1884 35 [15] 1885 e 1 [30] 1885-6) Nietzsche considera a vontade de poder como funccedilatildeo do ser orgacircnico deixando portanto claro a importacircncia do ser orgacircnico para compreender a vontade de poder Ateacute o momento a vontade de poder foi analisada com relaccedilatildeo ao ser e devir sendo pela explicaccedilatildeo de todos os acontecimentos mas agora notamos essa relaccedilatildeo da vontade de poder com o ser orgacircnico Isso eacute compreensiacutevel pelo fato de Nietzsche natildeo ter uma ontologia separada do ser orgacircnico pois dar uma estabilidade de algo no devir se relaciona com o ser orgacircnico Poreacutem o que significa a vontade de poder como funccedilatildeo do ser orgacircnico O iniacutecio da resposta a essa pergunta pode estar na frase ldquogovernar e obedecer como expressatildeo da vontade de poder no orgacircnicordquo (39 [13] 1885) Nietzsche vecirc na natureza orgacircnica uma relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo mas essa relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo natildeo ocorre com um puro mandar e obedecer como pode parecer nessa citaccedilatildeo mas eacute tambeacutem resistecircncia e luta Em outro fragmento poacutestumo isso fica mais niacutetido (14 [174] de 1888)

O ser humano natildeo busca o prazer e natildeo evita o desprazer se entende ao qual o famoso prejuiacutezo que me oponho com isso prazer e desprazer satildeo meras consequecircncias meros fenocircmenos concomitantes - o que o ser humano quer o que cada parte minuacutescula de um organismo quer eacute um plus de poder Ao se esforccedilar-se por consegui-lo se produzem tanto o prazer como o desprazer a partir dessa vontade o organismo busca resistecircncia necessita algo que se ponha contra O desprazer enquanto impedimento da vontade de poder eacute pois um faktum normal o ingrediente normal de todo acontecer orgacircnico o ser humano natildeo desvia dele pelo contraacuterio o necessita constantemente toda vitoacuteria todo sentimento de prazer todo acontecer pressupotildee uma resistecircncia superada

Ao considerar que o ser humano e o ser orgacircnico natildeo buscam prazer e nem evitam o desprazer Nietzsche coloca como princiacutepio cardial do organismo a vontade de poder ou seja busca mais poder mas essa busca conteacutem resistecircncia sendo por isso um fato normal da dinacircmica da vontade de poder Nesse mesmo fragmento (14 [174] 1888) Nietzsche toma como exemplo a nutriccedilatildeo primitiva do protoplasma que estende seus pseudoacutepodos para buscar algo que resiste natildeo por fome mas pela vontade de poder logo nutriccedilatildeo eacute um fenocircmeno posterior de se tornar mais forte e que encontra como consequecircncia uma resistecircncia que estabelece uma luta

A luta (ou o πόλεμος) tem uma grande importacircncia na dinacircmica da vontade de poder presente na relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e essa luta natildeo eacute espaccedilo ou alimento mas pela proacutepria luta como afirma o fragmento poacutestumo 26 [276] 1884

4 Os fragmentos poacutestumos foram consultados em Friedrich Nietzsche Digital critical edition of the complete works and letters based on the critical text by G Colli and M Montinari BerlinNew York de Gruyter 1967- edited by Paolo DrsquoIorio no site httpwwwnietzschesourceorgeKGWB Acesso em 18 Maio de 2018 Como natildeo haacute paacutegina eu irei me referir ao fragmento poacutestumo pelo nuacutemero catalogado e o ano

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)

218

Quando dois seres orgacircnicos colidem quando soacute haacute luta pela vida ou pela alimentaccedilatildeo como Eacute necessaacuterio que haja a luta pela luta e dominar eacute suportar o contrapeso da forccedila mais fraca portanto um modo de continuaccedilatildeo da luta Obedecer tambeacutem eacute uma luta enquanto ainda ficar forccedila para resistir

Nessa passagem fica ainda mais claro que a relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo (mando e obediecircncia) se estabelece por meio da luta e da resistecircncia como afirma Frezzatti ldquoA dominaccedilatildeo (e a submissatildeo) eacute um aspecto do impulso vital a relaccedilatildeo entre o dominador (o que comanda) e o dominado (o que resiste) eacute a proacutepria luta e portanto a busca por dominaccedilatildeo prevalece sobre a conservaccedilatildeordquo (FREZZATTI 2014 p73)

Natildeo podemos deixar de lado o fato dessa importacircncia da luta do ser orgacircnico ser natildeo apenas uma influecircncia de Heraacuteclito mas tambeacutem de bioacutelogos do seacuteculo XIX que Nietzsche entrou em contato entre 1881 e 1883 Entre esses bioacutelogos destaco Wilhelm Roux pois para ele a luta tambeacutem ocorre na proacutepria constituiccedilatildeo do organismo

Nietzsche adquiriu e leu o livro A luta das partes no organismo (Der Kampf der Theile im Organismus) de Roux e foi influenciado por ele mas tambeacutem tinha sua visatildeo criacutetica em relaccedilatildeo ao autor Focarei aqui mais a influecircncia pois o tema que mais me interessa no momento eacute mostrar o πόλεμος na vontade de poder e acredito que isso fica mais evidente notando a luta nos seres orgacircnicos como funccedilatildeo de mando e obediecircncia da vontade de poder

Para Roux o organismo eacute resultado da luta entre suas proacuteprias moleacuteculas ceacutelulas tecidos e oacutergatildeos Haacute trecircs momentos em que ocorre a luta entre as partes do organismo No primeiro momento a luta das moleacuteculas orgacircnicas pelo espaccedilo o liacutequido nutritivo exterior a ceacutelula favorece mais a assimilaccedilatildeo de determinadas moleacuteculas como o espaccedilo molecular eacute limitado entatildeo se produz entre as moleacuteculas uma competiccedilatildeo no qual a que tem maior nuacutemero definiraacute o tipo da ceacutelula Num segundo momento se tem a luta entre ceacutelulas no qual da mesma forma que as moleacuteculas ocorrem reaccedilotildees aos fatores externos e ocupa um espaccedilo limitado do organismo As ceacutelulas que se nutrem mais raacutepidos satildeo as que se tornam predominantes Pela reproduccedilatildeo das ceacutelulas a diferenciaccedilatildeo no niacutevel superior ou seja dos tecidos se acentua No terceiro momento a luta eacute entre os tecidos e os oacutergatildeos que segue a mesma loacutegica das ceacutelulas mas haacute limites colocados pelo organismo como um todo pois uma predominacircncia muito forte de certos tecidos ou oacutergatildeos podem ser nocivos ao organismo como um todo logo a luta soacute prossegue na medida em que contribui para o uso econocircmico do alimento e do espaccedilo

Assim diferente de Darwin que pressupotildee os organismos dados para a luta pela vida Roux explica a gecircnese do organismo pela luta de suas partes que o compotildee Soacute pode haver luta entre os seres vivos se cada um se conservar na sua luta interior por espaccedilo e nutriccedilatildeo presente nas ceacutelulas tecidos e os oacutergatildeos Essa explicaccedilatildeo da gecircnese do organismo pela luta tem convergecircncia com Heraacuteclito e o proacuteprio Roux sabe disso e cita o fragmento DK B53 ldquo lsquoA briga eacute o pai das coisasrsquo diz Heraacuteclito ()rdquo (ROUX 1881 p 65) destacando tambeacutem outros autores como Empeacutedocles Darwin e Wallace para os quais tambeacutem a luta eacute fundamental

Assim a concepccedilatildeo de que a formaccedilatildeo do organismo ocorre por meio da luta tem como precursor Heraacuteclito Nietzsche daacute uma grande importacircncia ao Roux justamente por poder atraveacutes dele comprovar o πόλεμος como funccedilatildeo do ser orgacircnico enquanto vontade

Newton Pereira Amusquivar Junior

219

de poder Muumlller-Lauter destaca que ldquoo entendimento de Nietzsche do organismo como uma multiplicidade de vontade de poder que luta uma com a outra foi preparado pela sua leitura de Rouxrdquo(MUumlLLER-LAUTER 1999 p 102)

Portanto o que predomina na natureza natildeo eacute uma legalidade mas sim uma constante luta que como jaacute destacamos conteacutem uma relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo de forccedilas da vontade de poder Isso fica bem niacutetido no fragmento poacutestumo 40 [55] de 1885

A legalidade da natureza eacute uma falsa interpretaccedilatildeo humanitaacuteria Trata-se de uma constataccedilatildeo absoluta da relaccedilatildeo de poder de toda brutalidade sem a suavizaccedilatildeo que a vida orgacircnica traz consigo a antecipaccedilatildeo do futuro cuidado astuacutecia e esperteza em resumo o espiacuterito A absoluta instantaneidade da vontade de poder governa no homem (e jaacute na ceacutelula) essa constataccedilatildeo eacute um processo que desloca-se continuamente com o crescimento de todos participantes ndash uma luta supondo que se entenda essa palavra um sentido amplo e profundo como para entender tambeacutem a relaccedilatildeo do que domina com o dominado como combate e da relaccedilatildeo do que obedece com o que domina como resistecircncia

Nesse sentido Nietzsche se afasta do mecanicismo de Roux pois natildeo eacute de uma relaccedilatildeo mecacircnica das partes do organismo de busca por alimento que se constitui a luta mas a luta por si mesmo se constitui como relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo de mando e obediecircncia da vontade de poder ldquoa progressatildeo do orgacircnico natildeo estaacute ligado agrave nutriccedilatildeo mas ao poder de comandar e controlar a nutriccedilatildeo eacute somente um resultadordquo (26 [272] 1884) De modo semelhante Nietzsche tambeacutem afirma ldquoA alimentaccedilatildeo soacute uma consequecircncia da apropriaccedilatildeo insaciaacutevel da vontade de poderrdquo (2[76] 1885-6) Assim a alimentaccedilatildeo tem sua importacircncia para fortalecer o ser orgacircnico e natildeo para o conservar como afirma Meca ldquoO impulso baacutesico da vida natildeo eacute conservar uma unidade ou uma identidade estaacutevel alguma vez conseguida mas sim nutrir-se crescer e exceder em cada momento o jaacute alcanccedilado esforccedilando-se para tornar-se cada vez mais forte e ser mais apropriando-se de tudo aquilo que lhe puder fazer crescerrdquo(MECA 2011 p20)

Nesse sentido a vontade de poder visa conservar a proacutepria luta e natildeo a constituiccedilatildeo do ser orgacircnico ldquoem virtude do ser orgacircnico natildeo se quer conservar o ser mas sim a proacutepria luta() O que chamamos de lsquoconsciecircnciarsquo e lsquoespiacuteritorsquo eacute apenas meio e instrumento mediante se quer conservar natildeo um sujeito mas sim uma lutardquo (1[124] 1886) Portanto a busca por se tornar mais forte da vontade de poder tem como pressuposto a luta natildeo por conservaccedilatildeo mas por mais poder por isso luta por si mesmo

No entanto a vontade de poder deve ser vista como uma multiplicidade ou seja natildeo eacute apenas uma luta por dominaccedilatildeo mas tambeacutem haacute uma resistecircncia contra a dominaccedilatildeo Nietzsche destaca isso em dois fragmentos poacutestumos um ele relaciona com a incorporaccedilatildeo do protoplasma e afirma logo no comeccedilo ldquoA vontade de poder soacute pode se manifesta diante de resistecircncia ela busca portanto por aquilo que resiste a elardquo (9 [151] 1887]) Em um outro fragmento poacutestumo (26[272] 1884) Nietzsche relaciona essa necessidade de resistecircncia com o desprazer

O desprazer eacute um sentimento com inibiccedilatildeo mas dado que o poder soacute pode ser consciente com inibiccedilotildees entatildeo o desprazer eacute um ingrediente necessaacuterio de toda atividade (toda atividade estaacute direcionada contra algo que deve ser superado) A vontade de poder portanto anseia por

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)

220

resistecircncias por desprazer No fundo haacute em todo organismo vivo uma vontade de sofrimento (contra ldquofelicidaderdquo como ldquometardquo)

Assim a vontade de poder busca o que lhe daacute desprazer o que faz resistecircncia contra sua forccedila Isso implica que o sofrimento natildeo pode ser uma objeccedilatildeo contra a existecircncia como pensou Schopenhauer A dor natildeo eacute motivo para a negaccedilatildeo da vida antes o contraacuterio eacute verdadeiro a afirmaccedilatildeo da vida inclui necessariamente a afirmaccedilatildeo da dor O que eacute poderoso ama ser desafiado e por sua forccedila contra uma resistecircncia jaacute o dominado sempre teraacute poder para pode resistir como jaacute citamos Zaratustra fala ldquoRebeliatildeo ndash esta eacute a nobreza do escravordquo (NIETZSCHE 2011 p 47) A vontade de poder natildeo eacute uma coisa uma res ou substacircncia mas eacute uma relaccedilatildeo de poder que visa acumular domiacutenio para ser mais forte e isso implica que haja resistecircncia por isso ela eacute muacuteltipla e natildeo una

E o desprazer natildeo torna o poder mais fraco pelo contraacuterio num fragmentos poacutestumo de anos depois (1887) Nietzsche retomaraacute esse tema do desprazer e resistecircncia da vontade de poder como o que a faz ela ser reforccedilada (11[77] 1887)

Conforme as resistecircncias que uma forccedila para se tornar senhor sobre elas assim precisa crescer a medida do fracasso e a fatalidade que com ele se provocam e na medida em que toda forccedila soacute pode descarregar diante de resistecircncia eacute necessaacuterio em toda accedilatildeo o ingrediente do desprazer Esse desprazer atua apenas como estiacutemulo da vida e fortalece a vontade de poder

Com isso notamos que a resistecircncia diante da vontade de poder fortalece e por isso faz parte da sua proacutepria dinacircmica logo a luta eacute central para a compreensatildeo da vontade de poder pois somente com conflito se tem a busca por mais poder Se a vontade de poder estaacute em tudo entatildeo tudo tambeacutem eacute luta tal como pensou Heraacuteclito E com isso se deve notar uma influecircncia do filoacutesofo grego em Nietzsche tal como observou Paul van Tongeren ldquoO fato de que tudo eacute vontade de poder traz consigo a noccedilatildeo de que nessa perspectiva tudo eacute compreendido a partir de tal combate No mesmo contexto desse tema do combate novamente se mostra a influecircncia de Heraacuteclitordquo (TONGEREN 2012 p225)

Mostramos aqui como a vontade de poder eacute funccedilatildeo do ser orgacircnico pela luta como jaacute destacamos a vontade de poder natildeo estaacute apenas no ser orgacircnico mas tambeacutem no inorgacircnico como mostramos isso no fragmento poacutestumo (34 [247] 1885) A vontade de poder estaacute no mundo em sua totalidade e numa dinacircmica de forccedila que o aproxima de Heraacuteclito por conta da luta Eacute o que pretendo demonstrar agora para depois de verificar essa aproximaccedilatildeo entre Nietzsche e Heraacuteclito notar aspectos ontoloacutegicos que o aproxima mais do pensador grego e se afasta da interpretaccedilatildeo de Heidegger sobre a vontade de poder como ser do ente

Newton Pereira Amusquivar Junior

221

Referecircncias bibliograacuteficas FREZZATTI Junior Wilson Antonio Nietzsche contra Darwin 2ordf ediccedilatildeo ampliada Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 HERAacuteCLITO Die Fragmente der Vorsokratiker Organizada por Hermann Diels e Walther Kranz Berlim Weidmann 1989MECA Diego Saacutenchez ldquoVontade de potecircncia e interpretaccedilatildeo como pressupostos de todo processo orgacircnicordquo in Cadernos Nietzsche no 28 p13-47 2011 MUumlLLER-LAUTER W Der Organismus als innerer Kampf Der Einfluss von Wilhem Roux auf Friedrich Nietzsche In Uumlber Werden und Wille zur Macht Nietzsche-Interpretationen I Walter de Gruyter Berlin e New York 1999NIETZSCHE F A filosofia na era traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Fernando R de Moraes Barros Satildeo Paulo Hedra 2008 _____ Assim falou Zaratustra Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011 _____ Die vorplatonischen Philosophen In Werke Gesamtausgabe Zweite Abteilung Vierter Band Hereausgegeben von Fritz Bormann Berlin New York Wlater de Guyter1995_____Digital critical edition of the complete works and letters based on the critical text by G Colli and M Montinari BerlinNew York de Gruyter 1967- edited by Paolo DrsquoIorio no site httpwwwnietzschesourceorgeKGWB Acesso em 18 Maio de 2018_____Cinco prefaacutecios para cincos livros natildeo escritos 7 Letras Rio de Janeiro 2007 ROUX Wilhelm Der Kampf der Theile im Organismus ein Beitrag zur Vervollstaumlndigung der Mechanischen Zweckmaumlssigkeitslehre Hanse Leipizg 1881 SCHOPENHAUER A O mundo como vontade e representaccedilatildeo 1ordm tomo Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 TONGEREN Paul van A moral da criacutetica de Nietzsche agrave moral estudo sobre Para aleacutem de bem e mal Traduccedilatildeo Jorge Luiz Viesenteiner Curitiba Champagnat 2012

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees

222

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees desinteressadas em Nietzsche

Rafael dos Santos Ramos1

Elementos para uma genealogia da razatildeo (praacutetica)A crenccedila em construir algum conhecimento (Erkenntniss) ou mesmo qualquer

ideia que se pretenda fixar eacute segundo Nietzsche um erro (Irrtum) necessaacuterio que desde os tempos mais primitivos permitiu agrave espeacutecie humana conservar-se e expandir-se no transcorrer histoacuterico do mundo O aspecto negativo destes erros se daacute em parte pelo modo com que os filoacutesofos da tradiccedilatildeo conceberam o homem natildeo como Nietzsche o descreve enquanto vontade de potecircncia2 (Wille zur Macht) mas sim como uma dualidade razatildeocorpo Segundo estes filoacutesofos a racionalidade caracterizaria certa distinccedilatildeo e primazia da espeacutecie em relaccedilatildeo agraves outras mas tambeacutem desempenharia um controle legiacutetimo sobre os instintos (o corpo) Para Nietzsche o corpo eacute prova do devir o absoluto fluxo das forccedilas esta afirmativa torna toda pretensatildeo humana de fixidez uma ilusatildeo (IIIusion Taumluschung)

O desenvolvimento da linguagem e da moral quando analisadas de perto expressariam minuciosamente algumas nuances de tais ilusotildees ou erros a proacutepria noccedilatildeo de consciecircncia (Bewuβtsein) eacute tambeacutem um exemplo disso Em A Gaia ciecircncia (livro I sect 10 e sect11) Nietzsche apresenta seu projeto de ldquoincorporaccedilatildeo do saberrdquo em que expliacutecita que durante a evoluccedilatildeo e a histoacuteria incorporamos erros fundamentais em nossa cogniccedilatildeo

Por acreditarem jaacute terem a consciecircncia os homens natildeo se empenharam em adquiri-la ndash e ainda hoje natildeo eacute diferente A tarefa de incorporar o saber e torna-lo instintivo eacute ainda inteiramente nova apenas comeccedila a despontar para o olho humano dificilmente perceptiacutevel ndash uma tarefa vista apenas por aqueles que entenderam que ateacute hoje foram incorporados somente os nossos erros e que toda nossa consciecircncia diz respeito a erros (NIETZSCHE 2001 pg 63)

A noccedilatildeo nietzschiana de erro designa aquilo que o autor entende por conhecimento No entanto por hora eacute importante destacar que as representaccedilotildees ldquoerrosrdquo (como exemplo do conteuacutedo de nossa consciecircncia descrito acima por Nietzsche) tiveram a utilidade de

1 Mestrando no PPGFIL pela Universidade Federal de Pelotas2 Esta expressatildeo natildeo pode ser concebida como mera unidade ou essecircncia mas enquanto multiplicidade de forccedilas que a

todo tempo se reconfiguram no fluxo do eterno vir a ser eacute forccedila que faz nas palavras de Marton ldquoQualidade de todo acontecer ela diz respeito ao efetivar-se das forccedilas Mais proacuteximo da archeacute dos preacute-socraacuteticos que daacute entelecheacuteia de Aristoacuteteles o conceito nietzschiano de vontade de potecircncia constitui um dos principais pontos de ruptura em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo filosoacuteficardquo (Marton 2016 pg 425)

Rafael dos Santos Ramos

223

conservaccedilatildeo e expansatildeo da vida Neste sentido podemos afirmar que tais erros acenam para uma perspectiva positiva dos axiomas que se pretendiam absolutos (a fixidez de uma ideia ndash a ldquoverdaderdquo por exemplo)

Mas por outro lado em uma perspectiva negativa o engendramento destas ideias fixas em certo momento histoacuterico teriam contribuiacutedo para que o humano negasse aquela afirmativa que o potildee no mesmo status de todos os outros seres vivos ou seja a confianccedila em certos axiomas (erros) construiacutedos pelos proacuteprios humanos no transcorrer histoacuterico do mundo teriam contribuiacutedo para a negaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo que faz Nietzsche a saber de que a uacutenica realidade do humano eacute o corpo com suas pulsotildees organizadas hierarquicamente obedecendo assim a dinacircmica da vontade da potecircncia ndash esta deve ser concebida nas dimensotildees tanto psicoloacutegica quanto fisioloacutegica (SALANSKIS 2016 p159)

Em Aleacutem do Bem e do mal sect 23 Nietzsche funde a psicologia e fisiologia em fisiopsicologia (Physio-Psychologie) e nesta acepccedilatildeo o corpo se comparado agrave mera introspecccedilatildeo ofereceria certo privileacutegio metodoloacutegico para uma anaacutelise filosoacutefica Segundo essa perspectiva (fisiopsicoloacutegica) o corpo eacute descrito enquanto uma multiplicidade de almas que em suas relaccedilotildees de mando e obediecircncia teriam como criteacuterio de organizaccedilatildeo as condiccedilotildees que permitissem a manutenccedilatildeo e expansatildeo da vida Estas novas nuances satildeo de extrema relevacircncia para genealogia nietzschiana e seu projeto de cultivo (SALANSKIS 2016 p 160) em que concebe certa noccedilatildeo de indiviacuteduo cujo o conceito de razatildeo dever-se-ia investigar frente agrave dinacircmica da vontade de potecircncia

Em seu Assim Falou Zaratustra (Dos desprezadores do corpo sect 5 sect 6) Nietzsche menciona duas dimensotildees em se tratando do conceito de razatildeo pois o corpo seria a grande razatildeo e a outra chamada de pequena razatildeo

O corpo eacute uma grande razatildeo uma multiplicidade com um soacute sentido uma guerra e uma paz um rebanho e um pastorInstrumento de teu corpo eacute tambeacutem tua pequena razatildeo que chamas de ldquoespiacuteritordquo meu irmatildeo um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razatildeoldquoEurdquo dizes tu e tens orgulho desta palavra A coisa maior poreacutem em que natildeo queres crer ndash eacute teu corpo e sua grande razatildeo essa natildeo diz Eu mas faz EuO que o sentido sente o que o espiacuterito conhece jamais tem fim em si mesmo Mas sentido e espiacuterito querem te convencer de que satildeo o fim de todas as coisas tatildeo vaidosos satildeo eles (NIETZSCHE 2011 pg 35)

Esta ldquopequena razatildeordquo forjada pela tradiccedilatildeo natildeo seria mais que um instrumento do corpo (LIMA 2016 p 352) Assim destaca-se que qualquer significaccedilatildeo atribuiacuteda ao corpo (Leib) eacute tambeacutem mera ilusatildeo metodoloacutegica Segundo Nietzsche a confusatildeo em tornar tal ilusatildeo numa certeza (Gewissheit) teve seu aacutepice na modernidade com filosofia cartesiana especialmente na concepccedilatildeo dogmaacutetica do ldquoeurdquo como uma unidade distinta e governante do corpo3

Na Genealogia da Moral (segunda dissertaccedilatildeo sect1 e sect2) Nietzsche remete agrave Aurora (livro I sect9) obra em que desenvolve o conceito de ldquoeticidade do costumerdquo (Sittlichkeit der

3 Marton comenta sobre o pensamento nietzschiano acerca do ldquoeurdquo em seu texto Do dilaceramento do sujeito agrave plenitude dionisiacuteaca ldquoAo contraacuterio do que se supotildee o eu natildeo comanda o corpo mas dele decorre natildeo executa as accedilotildees mas se constitui enquanto lsquoefeitorsquo delas Natildeo se trata pois de inverter a relaccedilatildeo tradicionalmente estabelecida entre corpo e alma mas de mostrar que o homem eacute lsquotodo corpo e nada aleacutem dissorsquo ()rdquo (MARTON 2009 pg 55)

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees

224

Sitte) supondo que desde os tempos mais primitivos as relaccedilotildees de mando e obediecircncia bem como o engendramento de valores e normas no transcorrer civilizatoacuterio fizeram o indiviacuteduo sofrer sacrificar-se e assim forjou-se suas capacidades cognitivas ou ainda o desenvolvimento de suas faculdades intelectuais Neste iacutenterim parece-nos necessaacuterio aprofundar e expor minimamente como Nietzsche concebe o conceito de razatildeo pois em se tratando de disputa teoacuterica este seja talvez o conceito mais caro da histoacuteria da filosofia

Dada a multiplicidade e certa disputa sobre o modo de conceber o conceito de razatildeo nas reflexotildees filosoacuteficas contemporacircneas eacute que julgamos demasiado pertinente o pensamento nietzschiano Seguindo nossa abordagem atentamos para a importacircncia de se interpretar a segunda dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral segunda dissertaccedilatildeo sect 3 na qual o autor destaca aspectos crueacuteis na construccedilatildeo dos valores humanos forjados a ferro e fogo Dentre eles a capacidade do homem de cumprir promessas de assenhorar-se diante de si mesmo sua responsabilidade Estes aspectos proviriam de uma necessidade primitiva pois segundo Nietzsche foi preciso superar o esquecimento (Vergessen) este uacuteltimo entendido como uma espeacutecie de forccedila orgacircnica oriunda da animalidade humana necessariamente teria de ser superado especialmente a partir da construccedilatildeo de uma memoacuteria Desta capacidade de memorizaccedilatildeo surge a responsabilidade como ldquoinstinto dominanterdquo ndash a isso o homem teria chamado de sua consciecircncia

Para demostrar parte do processo deste construto Nietzsche menciona a mais antiga e douradora psicologia da terra explicada a partir da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoGrava-se algo a fogo para que fique na memoacuteria apenas o que natildeo cessa de causar dor fica na memoacuteriardquo (NIETZSCHE 1998 pg 50) Ao argumentar sobre este diagnoacutestico destaca exemplos de puniccedilotildees que outrora eram tidas como normais (assim como castraccedilotildees esquartejamentos etc) Justamente nesta ilustraccedilatildeo sobre como formamos nossas capacidades cognitivas que percebemos certa perspectiva de Nietzsche a partir da qual podemos apontar para uma genealogia da razatildeo Notemos o que diz o autor ao refletir sobre as condiccedilotildees que permitiram a racionalidade destacando algumas imagens das puniccedilotildees (procedimentos de castigos e torturas em puacuteblico) no transcorrer histoacuterico

Com ajuda de tais imagens e procedimentos termina-se por reter na memoacuteria cinco ou seis ldquonatildeo querordquo com relaccedilatildeo aos quais se fez uma promessa a fim de viver os benefiacutecios da sociedade ndash e realmente Com ajuda dessa espeacutecie de memoacuteria chegou-se finalmente ldquoa razatildeordquo ndash Ah a razatildeo a seriedade o domiacutenio sobre os afetos toda essa coisa sombria que se chama reflexatildeo todos esses privileacutegios e adereccedilos do homem como foi alto seu preccedilo Quanto sangue e quanto horror haacute no fundo de todas as lsquocoisas boasrsquo (NIETZSCHE 1998 pg 52)

A mnemoteacutecnica como meacutetodo na ldquoincorporaccedilatildeordquo de axiomas se instituiria nas esferas juriacutedicas religiosas etc Ateacute um ponto em que nas relaccedilotildees humanas numa loacutegica credordevedor internalizar-se-ia a noccedilatildeo de ldquodiacutevidardquo Transmutando-a em sentimento de culpa (Schuld) tal sentimento (se pensado na dinacircmica da vontade de potecircncia) desembocaria numa espeacutecie de descarga interna promovendo assim a doenccedila da maacute consciecircncia (schlechtes Gewissen) Tal doenccedila explica Nietzsche (em sua primeira versatildeo) decorre do contexto das primeiras comunidades onde teriam se desdobrado inicialmente os elementos do conceito de eticidade do costume (como vimos podemos conferir em sect 9 de Aurora) mas ganha um contorno mais forte a partir das teorias de Parmecircnides e Platatildeo especialmente neste uacuteltimo buscava-se em um fora (no suprassensiacutevel) ideias fixas

Rafael dos Santos Ramos

225

(como os valores por exemplo) reivindicando assim um lugar para a verdade (Wahrheit) no acircmbito da loacutegica (Logik) esta tentativa de superar o saber miacutetico atraveacutes da filosofia destes racionalistas forjaram uma forma de conceber o mundo e se conciliariam posteriormente ao cristianismo disso surgiria uma nova apresentaccedilatildeo da ldquomaacute consciecircnciardquo na genealogia nietzschiana a saber aquela natildeo mais do homem em geral que nos primoacuterdios luta contra a sua animalidade construindo uma espeacutecie de segunda natureza4 mas sim a ldquomaacute consciecircnciardquo com a dimensatildeo do sofrimento eterno a noccedilatildeo de pecado operando em uma medida que tiraniza desagrega os impulsos (Trieb) Obviamente haacute outros caminhos a se percorrer nos textos de Nietzsche que nos permitiria concluir tambeacutem que a razatildeo estaacute intimamente ligada agrave construccedilatildeo da noccedilatildeo nietzschiana de segunda natureza e na medida em que a racionalidade eacute forjada ndash enquanto resultado de configuraccedilotildees que a proacutepria vida humana demandou diante das necessidades (manutenccedilatildeo e expansatildeo por mais potecircncia) no entanto o que apuramos ateacute aqui nos possibilita obter minimamente o estatuto da razatildeo na filosofia nietzschiana

Conhecimento enquanto o erro mais profundo Com intento de ampliar a reflexatildeo que o autor faz sobre o conceito de razatildeo

seguimos nossa abordagem na direccedilatildeo da concepccedilatildeo de conhecimento tomada por Nietzsche Pois uma vez que a razatildeo ao inveacutes de algo essencialmente dado (da categoria humana) foi construiacuteda ao longo de muito tempo ao passo em que o homem por necessidade incorporou-a ateacute um ponto em que se tornou um instinto uma espeacutecie de forccedila na multiplicidade da vontade de potecircncia que desempenha um papel instrumental muito importante (em especial sua utilidade de facilitar a vida por exemplo) a partir da noccedilatildeo de nossa capacidade em produzir ficccedilotildees regulativas

Neste sentido a razatildeo em sua gecircnese jaacute carregaria uma dimensatildeo praacutetica por necessidade e todo conhecimento teoacuterico em alguns casos chamado de puro para Nietzsche seria equivalente a ficccedilotildees regulativas (qualquer signo pretensatildeo de objetividade unidade etc) forjadas por necessidade e por isso estariam sempre passiacuteveis de novas configuraccedilotildees (a proacutepria troca de paradigma cientifico na histoacuteria do mundo seria prova desta afirmativa) Com o que vimos ateacute aqui podemos passar a desenvolver elementos que busquem corroborar a tese de que em Nietzsche o conhecimento tem sua gecircnese com base na moral uma vez que os seres humanos desenvolveram suas capacidades de conhecimento a partir das relaccedilotildees interpessoais sempre condicionados por lutas de forccedilas que buscam em sua singularidade manter e expandir o seu poder

Na tradiccedilatildeo filosoacutefica especialmente em Kant em sua obra Criacutetica da razatildeo pura a razatildeo operaria sob diferentes interesses e nisso eacute marcado o ponto de ruptura entre o uso da razatildeo pura e o uso da razatildeo praacutetica Na primeira com o interesse de estabelecer as condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento vaacutelido o que para Kant soacute eacute possiacutevel se dar na esfera dos fenocircmenos em que o conceito de causa eacute constitutivo do conhecimento Jaacute em seu uso praacutetico a razatildeo lidaria com princiacutepios regulativos dos quais ela natildeo seria

4 Haacute muitos autores que aprofundam uma importante discussatildeo acerca do naturalismo em Nietzsche podemos desta-car a leitura de cunho cientificista de B Leiter em seu O naturalismo de Nietzsche reconsiderado In Cadernos Niet-zsche USP Satildeo Paulo 29 (2011) pag 77-126 Bem como tambeacutem a leitura mais abrangente de R Schacht em seu O naturalismo de Nietzsche In Cadernos Nietzsche USP Satildeo Paulo v I n 29 (2011) pp 45) este uacuteltimo reivindica outras dimensotildees como a cultura a histoacuteria etc A nossa perspectiva de abordagem concorda de certa forma com as teses de Schacht mas chamamos atenccedilatildeo a noccedilatildeo de segunda natureza levando em conta as formas mais primitivas de conhecimento ou seja a construccedilatildeo da linguagem e posteriormente os efeitos de sua seduccedilatildeo (especialmente ao analisar a primeira forma de manifestaccedilatildeo da maacute consciecircncia exposta em Genealogia da moral)

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees

226

legitimada a conferir alguma intuiccedilatildeo via intelecto aos objetos que ela postula Ou seja pode-se interpretar nos escritos kantianos que o interesse (ou uso) praacutetico da razatildeo se daacute na dimensatildeo em que Kant suprime o conhecimento para dar espaccedilo aos erros (crenccedilas que natildeo podem ser verificadas via conhecimento) Neste acircmbito os postulados (ou as Ideias) da razatildeo enquanto princiacutepios regulativos tais como Deus a imortalidade da alma o mundo ou a liberdade seriam (se comparado ao que se pode conhecer) erros da razatildeo (entendidos como impossibilidade de conferir conhecimento a certos objetos) Isto Kant chamou de nocircumenos isto eacute objetos os quais natildeo podemos conhecer No entanto enquanto exercendo certa legitimidade que a razatildeo atribui aos erros estes postulados pela razatildeo podem ser pensados5 e por conseguinte funcionariam como princiacutepios regulativos

Esta marca kantiana que expressa a distinccedilatildeo daquilo que podemos conhecer daquilo que podemos pensar deve nos auxiliar se comparada agrave concepccedilatildeo nietzschiana sobre o que chamamos aqui de ficccedilotildees regulativas (ou ainda conhecimento enquanto ldquoo erro mais profundordquo) pois como jaacute afirmamos acima Nietzsche nega a possibilidade de algum tipo de conhecimento totalmente puro que seja isento das demandas e das valoraccedilotildees morais6

A criacutetica nietzschiana ao conhecimento eacute tambeacutem uma criacutetica agrave moral pois a forma segundo a qual o ser humano desenvolveu sua linguagem (construccedilatildeo dos signos crenccedilas baacutesicas dar unidade agrave multiplicidade dos sentidos atraveacutes de signos palavras etc) e a proacutepria justificaccedilatildeo e busca de fundamentaccedilatildeo da verdade derivariam do acircmbito da valoraccedilatildeo moral Assim a distinccedilatildeo entre interesses da razatildeo que se pode evidenciar na filosofia de Kant (enquanto uso praacutetico e uso puro) em Nietzsche natildeo procede pois ao operar sobre as regras da linguagem e concluir a partir de conceitos (e categorias) que visam estancar o fluxo do vir a ser (werden) dando unidade ao caos da multiplicidade obtida por nossos sentidos pode-se afirmar que a razatildeo apenas ofereceria adequaccedilatildeo discursiva a um interesse maior do que ela poderia desenvolver por conta proacutepria Ou seja enquanto uma forccedila na multiplicidade da vontade de potecircncia a razatildeo teria uma atuaccedilatildeo a partir de erros que estatildeo sempre passiacuteveis de novas configuraccedilotildees Assim a razatildeo mesmo quando estivesse operando o mais abstratamente estaria no fundo atuando sob um interesse praacutetico a saber aquele tendo em vista estar conforme os interesses de uma determinada perspectiva interpretativa que pode afirmar (tipo forte) ou negar (tipo fraco) certa dinacircmica no fluxo de forccedilas do proacuteprio corpo (vida)

Eacute importante mencionar o projeto de transvaloraccedilatildeo de todos os valores pois a moral e o conhecimento (em todo transcorrer histoacuterico do mundo) teriam sido para Nietzsche superestimados como soluccedilotildees dos problemas existenciais A ponto de seus valores enquanto ficccedilotildees que regulariam as diferentes perspectivas interpretativas de avaliaccedilotildees (e em contextos especiacuteficos) em algum momento tornaram-se ideias absolutas ldquoiacutedolosrdquo Ou seja metodologicamente o homem inventou uma mentira para poder obter

5 Maiores desdobramentos sobre a comparaccedilatildeo entre Kant e Nietzsche eacute possiacutevel explorar o comentaacuterio de LIMA Maacutercio Joseacute Silveira Em Funccedilotildees regulativas em Kant e Nietzsche

6 Atenuando a isso destacamos o comentaacuterio de Corbanezi ldquo() Nenhum conhecimento repousa em uma necessi-dade puramente teoacuterica e abstrata isolada de interesses praacuteticos revela-se antes funesta a pretensa distinccedilatildeo entre teoria e praacutetica conforme ressaltam anotaccedilotildees poacutestumas de 1888 () Impossiacutevel em um mundo que vem a ser o assim chamado conhecimento pressupotildee como sua condiccedilatildeo necessaacuteria um mundo fictiacutecio criado e arranjado de modo a nos aparecer como lsquocognosciacutevelrsquo Assim o conhecimento repousa na crenccedila em identidade permanecircncia igualdade e muitas outras noccedilotildees por noacutes inventadas as quais como esquemas reguladores forjam um mundo calcu-laacutevel e formulaacutevel para noacutes Da aplicaccedilatildeo dessas ficccedilotildees decorrem apenas simplificaccedilotildees e falsificaccedilotildees se satildeo muitas vezes consideradas verdades absolutas eacute porque possibilitam a conservaccedilatildeo de uma determinada espeacutecie de vida Eis contudo o maior erro tomar aquele mundo de ilusotildees como um mundo verdadeiro e atribuir-lhe valor supremordquo (CORBANEZI 2016 pag 152153)

Rafael dos Santos Ramos

227

uma verdade algo fixo absoluto universal tais invenccedilotildees (fictiacutecias) teriam a utilidade de trazer objetividade para a manutenccedilatildeo e constacircncia da vida Mas o conhecimento eacute um erro Nas palavras de Nietzsche ldquoViver eacute a condiccedilatildeo para conhecer Errar eacute a condiccedilatildeo para viver e na verdade errar profundamente Conhecer eacute o erro que natildeo elimina o erro Ele natildeo eacute nada de amargo Temos que amar e tomar conta do erro ele eacute a origem do conhecimentordquo (NIETZSCHE 1881 FP MIII1 11[162])

Ficccedilotildees regulativas e a dinacircmica das accedilotildees desinteressadas Depois de explorar minimamente a compreensatildeo que Nietzsche faz do conceito

de razatildeo e de porte de sua concepccedilatildeo de erro podemos dar um passo adiante e buscar circunscrever uma anaacutelise de cunho moral acerca do que o autor pensou das accedilotildees desinteressadas Assim podemos mostrar que a noccedilatildeo de altruiacutesmo pode ser entendida tambeacutem como ficccedilatildeo regulativa7

Ao refletir sobre as accedilotildees desinteressadas (o conceito de altruiacutesmo) Nietzsche se distancia de suas primeiras referecircncias (em especial Schopenhauer e Wagner) e passa analisar o tema junto a Paul Reacutee Este uacuteltimo propotildee uma explicaccedilatildeo naturalista sobre os sentimentos morais Em 1875 Reacutee publica sua obra Observaccedilotildees Psicoloacutegicas em 1877 lanccedila A origem dos sentimentos morais Aleacutem de toda parceria e certa influecircncia reciacuteproca que tiveram em suas obras durante esse periacuteodo se distinguiam especificamente em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de altruiacutesmo pois de modo resumido podemos dizer que para Reacutee o bom eacute o natildeo egoiacutesta enquanto o mau eacute o egoiacutesta Sentimentos e accedilotildees natildeo egoiacutestas satildeo o que conta nas relaccedilotildees Assim Reacutee defende que somente accedilotildees altruiacutestas satildeo boas e somente accedilotildees egoiacutestas satildeo maacutes

Se para Nietzsche todas as accedilotildees podem ser interpretadas a partir da dinacircmica da vontade de potecircncia nesta perspectiva natildeo haacute desinteresse dos indiviacuteduos em seus relacionamentos mesmo no acircmbito moral Em 1878 em HDH I (Capiacutetulo segundo seccedilatildeo 57 ndash A moral como auto divisatildeo do homem) jaacute se nota certa impossibilidade de algum agir desinteressado nas relaccedilotildees interpessoais Neste contexto Nietzsche passa a exemplificar alguns modos de como o humano se autodivide a partir do fenocircmeno moral demonstrando quatro exemplos em que podemos perceber o conceito de altruiacutesmo (ou as accedilotildees desinteressadas) nos dilemas da vida praacutetica (1) o autor que deseja ser superado (auto desinteresse) em relaccedilatildeo a tema em que desenvolve (2) a jovem apaixonada que pretende testar a fidelidade de seu companheiro (3) a entrega da vida do soldado (por ele mesmo) pela relevacircncia de pertencimento em sua ldquopaacutetriardquo e no uacuteltimo exemplo (a nosso entender o mais chocante) (4) a privaccedilatildeo de algumas necessidades da matildee em relaccedilatildeo a seu filho ou seja nem mesmo o interesse materno escaparia de um tipo de auto interesse ndash de egoiacutesmo Em cada um destes exemplos o autor nos remete diretamente a noccedilatildeo de altruiacutesmo e a seguir problematiza com as seguintes questotildees

() mdash Mas seratildeo todos esses estados altruiacutestas Seratildeo milagres esses atos da moral jaacute que na expressatildeo de Schopenhauer satildeo ldquoimpossiacuteveis e contudo reaisrdquo Natildeo estaacute claro que em todos esses casos o homem tem

7 Tais ficccedilotildees regulativas (altruiacutesmo compaixatildeo etc) tambeacutem satildeo caracterizadas por Nietzsche como sintoma da deacuteca-dence fisioloacutegica pois na perspectiva nietzschiana nossas accedilotildees desinteressadas em uacuteltima instacircncia se aportariam em uma justificativa que se caracterizaria em uma dimensatildeo esteacutetica se comparada a um embasamento eacutetico Ou seja tal justificaccedilatildeo das accedilotildees desinteressadas decorreria de uma espeacutecie de vaidade que dependendo da perspectiva in-terpretativa revelaria tambeacutem um tipo de egoiacutesmo especifico (como veremos adiante) Tratar do tema da deacutecadence fisioloacutegica demandaria outro trabalho ainda maior que este no entanto fica o registro da extensatildeo abrangente acerca do termo ficccedilatildeo regulativa

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees

228

mais amor a algo de si um pensamento um anseio um produto do que a algo diferente de si e que ele entatildeo divide seu ser sacrificando uma parte agrave outra Seraacute algo essencialmente distinto quando um homem cabeccedila-dura diz ldquoPrefiro ser morto com um tiro a me afastar um passo do caminho desse homemrdquo () (NIETZSCHE 2000 pag 3637)

Assim como conceber que o conhecimento enquanto crenccedilas verdadeira e justificada eacute mais uma das ficccedilotildees que estatildeo assentadas em erros e portanto precisam de certa desmistificaccedilatildeo requer-se tambeacutem ao conceito de egoiacutesmo certo desvelamento ou seja concebecirc-lo como ldquomaurdquo (como fazem as principais correntes teoacutericas em filosofia moral) Segundo Nietzsche iraacute depender de uma determinada perspectiva (forte ou fraca) que interpreta e avalia pois tal perspectiva pode ser do tipo que afirme a vontade de potecircncia criando certa harmonia na integridade dos impulsos ou aquela que ao contraacuterio desagregaria seus impulsos Ainda sem o escopo de sua teoria das forccedilas e no contexto de Humano demasiado humano I (Capiacutetulo segundo seccedilatildeo 101 ndash Natildeo julgueis) Nietzsche afirma

() ndash O egoiacutesmo natildeo eacute mau porque a ideia de ldquoproacuteximordquo ndash a palavra eacute de origem cristatilde e nem corresponde agrave verdade ndash eacute muito fraca em noacutes e nos sentimos em relaccedilatildeo a ele quase tatildeo livres e irresponsaacuteveis quanto em relaccedilatildeo a pedras e plantas Saber que o outro sofre eacute algo que se aprende e que nunca pode ser apreendido inteiramente (NIETZSCHE 2000 pg 77)

Notemos a impossibilidade de agarrar ou apreender (pelo menos inteiramente) algo no fluxo eterno do vir a ser

Se inicialmente constatamos essas mesmas condiccedilotildees humanas acerca do conhecimento (ao qual eacute possiacutevel questionar a objetividade de tudo que se pretenda como fixo) agora tambeacutem nos aparece o mesmo problema (ou seja se eacute possiacutevel apreender o sofrimento de outrem) expresso na esfera moral

Consideraccedilotildees finaisPor hora demonstramos que a razatildeo (ou a racionalidade) em Nietzsche se comparada

a perspectiva da filosofia moderna (especialmente com o criticismo kantiano) opera sempre em perspectiva praacutetica ou seja ateacute em nossas abstraccedilotildees mais complexas a racionalidade se daacute a partir de conflitos de forccedilas que com ela concorrem Ademais destacamos a impossibilidade de agarrar ou apreender (pelo menos inteiramente) algo no fluxo eterno do vir a ser pois se inicialmente constatemos essas condiccedilotildees humanas acerca do conhecimento (cuja eacute possiacutevel questionar a objetividade de tudo que se pretenda como fixo) por uacuteltimo buscamos demonstrar o mesmo problema expresso na esfera moral ou seja de que natildeo eacute possiacutevel aprender o sofrimento de outrem Com intento de desenvolver certa propedecircutica para pensar ndash como eacute uma norma na concepccedilatildeo de Nietzsche transitamos ateacute aqui por abordagens de cunho epistecircmico e moral Como resultado dentre outras constataccedilotildees demonstramos que para Nietzsche se natildeo podemos escapar de nossas ficccedilotildees regulativas que nada tem de puro tambeacutem estamos condicionados a certo egoiacutesmo (oriundo de certa tipificaccedilatildeo) e que pode afirmar ou negar a vida

Rafael dos Santos Ramos

229

Referecircncias bibliograacuteficasCORBANEZI Eder Verbetesconhecimento (BewuBtsein) IN Dicionaacuterio Nietzsche [editora responsaacutevel Scarlett Marton] ndash Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 ndash (Sendas amp Veredas) [154-156]KANT Emmanuel Criacutetica da razatildeo pura Traduccedilatildeo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujatildeo 5 Ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulberkian 2001 680p_____ Criacutetica da razatildeo praacutetica Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Valeacuterio Rohden Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 620 p LIMA Maacutercio Joseacute Silveira Funccedilotildees regulativas em Kant e Nietzsche Kriterion Belo Horizonte nordm 128 p 367-382 Dez2013_____ Verbetesrazatildeo (Vernunft) IN Dicionaacuterio Nietzsche [editora responsaacutevel Scarlett Marton] ndash Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 ndash (Sendas amp Veredas) [352-354]LEITER Brian O naturalismo de Nietzsche reconsiderado Traduccedilatildeo de Oscar Augusto Rocha Santos In Cadernos Nietzsche USP Satildeo Paulo 29 (2011) pag 77-126MARTON Scarlett Do dilaceramento do sujeito agrave plenitude dionisiacuteaca IN Cadernos Nietzsche v 25 p 53-81 2009_____ Verbetesvontade de potecircncia (Wille zur Macht) IN Dicionaacuterio Nietzsche [editora responsaacutevel Scarlett Marton] ndash Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 ndash (Sendas amp Veredas) [pag 423-425]NIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza Satildeo Paulo Cia das Letras 2001_____ Aleacutem do bem e do mal preluacutedio a uma filosofia do futuro Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza _ Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005_____ Assim Falou Zaratustra traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza Satildeo Paulo Cia das Letras 1998_____ Aurora traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza Satildeo Paulo Cia das Letras 2005_____ Fragmentos poacutestumos (1875-1882) (Vol II) Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego Saacutenches Meca Madrid Editorial Tecnos (Grupo Anaya S A) 2008 _____ Genealogia da moral uma polecircmica Friedrich Nietzsche traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Ceacutesar de Souza ndash Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ Humano demasiado humano um livro para espiacuteritos livres Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza ndash Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000REacuteE Paul Basic writings Urbana University of Illinois Press 2003_____ Ursprung der moralischenEmpfindungen Chemnitz Schmeitzner 1877 ROHDEN V Interesse da razatildeo e liberdade Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1981SALANSKIS Emmanuel VerbetesCorpo (Leib) IN Dicionaacuterio Nietzsche [editora responsaacutevel Scarlett Marton] ndash Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 ndash (Sendas amp Veredas) [pag 159-160]SCHACHT Richard O naturalismo de Nietzsche Traduccedilatildeo de Oliacutempio Pimenta In Cadernos Nietzsche USP Satildeo Paulo v I n 29 (2011) pp 45

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

230

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica de Nietzsche ao cristianismo

Rafael Gonccedilalves da Silveira1

1 IntroduccedilatildeoO escritor e pensador brasileiro Maacuterio Ferreira dos Santos publicou em menos de

quinze anos a coleccedilatildeo Enciclopeacutedia de Ciecircncias Filosoacuteficas e Sociais que abrange cerca de 45 volumes incluindo obras de caraacuteter teoacuterico e tiacutetulos de caraacuteter histoacuterico-criacutetico Seu modo particular de filosofar eacute apresentado na obra Filosofia Concreta publicada em 1957 Para o autor a filosofia possui um genuiacuteno valor epistemoloacutegico seja na investigaccedilatildeo e na sistematizaccedilatildeo seja na anaacutelise e na siacutentese de temas expositivos e polecircmicos Ele apresentou uma nova metodologia para guiar o estudante no campo do saber filosoacutefico e social na sua obra Meacutetodos Loacutegicos e Dialeacuteticos publicada em 1959

Aleacutem de filosofo e advogado Maacuterio Ferreira dos Santos dedicou-se a traduccedilatildeo traduzindo para o portuguecircs diversos filoacutesofos tais como Pitaacutegoras Aristoacuteteles Nietzsche Kant Pascal Tomaacutes de Aquino e Duns Scot De Nietzsche traduziu direto do alematildeo as obras Aurora Assim Falava Zaratustra Aleacutem do Bem e do Mal e Vontade de Potecircncia2

O presente artigo busca analisar as criacuteticas de Nietzsche ao cristianismo pela oacutetica de Maacuterio Ferreira em seu ensaio O homem que foi um campo de batalha publicado em 1945 como um prefaacutecio para sua traduccedilatildeo da obra Vontade de Potecircncia Apoacutes analisar a interpretaccedilatildeo de Maacuterio neste ensaio passamos a analisar as criacuteticas do filosofo alematildeo em suas obras criacuteticas principalmente O Anticristo livro em que o autor busca operar sua transvaloraccedilatildeo de todos os valores Destacamos a figura do sacerdote como central para estabelecer um viacutenculo entre a criacutetica de Nietzsche ao cristianismo e a interpretaccedilatildeo de Maacuterio Ferreira dos Santos

2 A interpretaccedilatildeo de Maacuterio Ferreira dos Santos Para Maacuterio Ferreira dos Santos o primeiro homem que encontrou uma norma geral

que definiu um determinado grupo de fenocircmenos sentiu-se como um Deus o primeiro Deus Para o autor a ldquoideia de Deusrdquo soacute nasce onde os poucos atingem um grau que permita estabelecer regras normativas leis gerais Para ele essas ideias jaacute seriam a tentativa

1 Mestrando em Ciecircncias Sociais pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel)2 A obra Vontade de Potecircncia na verdade natildeo pertence a Nietzsche pois o autor teria abandonado o projeto de es-

crever tal livro Contudo ela foi publicada com sendo do autor alematildeo devido a uma deturpaccedilatildeo feita por sua irmatilde Elisabeth Nietzsche que devido agrave sauacutede fraca do filosofo estava responsaacutevel pelos arquivos nietzschianos Somente com a ediccedilatildeo criacutetica das obras de Nietzsche feita por Giorgio Colli e Mazzino Montinari entre 1967-1978 eacute que foi possiacutevel ter acesso aos livros realmente escritos pelo autor

Rafael Gonccedilalves da Silveira

231

de estabelecer uma lei universal Ele ressalta no entanto que isto natildeo implica em uma refutaccedilatildeo de Deus Conforme ele diz

O que desconhecemos natildeo estaacute refutado pela ignoracircncia A humanidade ainda natildeo existe como totalidade ocircntica ( jaacute era o pensamento de Gothe de Nietzsche etc ) Conceber que na razatildeo estava o tiacutetulo o atributo das gloacuterias do homem foi uma ingenuidade uma longa e milenar ingenuidade de filoacutesofos (SANTOS 1945 p45)

Em parte isso contrasta com o que Nietzsche pensa sobre Deus e religiatildeo Em Nietzsche pessoa sinteacutetica e coletivamente alienada de cada povo todo Deus acumularia sob a perspectiva da vontade de potecircncia o inteiro processo de conformaccedilatildeo dos impulsos e forccedilas afetivas das quais se seguiram quais sintomas os valores religiosamente instituiacutedos e esposados por cada povo Segundo o filosofo alematildeo

Mesmo com um miacutenimo de religiosidade no peito um Deus que no instante certo cura um resfriado ou que nos faz subir na carruagem quando comeccedila uma tempestade deveria nos parecer tatildeo absurdo que teria de ser eliminado ainda que existisse um Deus como domeacutestico como carteiro como calendarista ndash no fundo uma palavra para designar o mais estuacutepido tipo de acaso ( NIETZSCHE 2016 p 63 )

Maacuterio Ferreira daacute um tom existencial sobre a relaccedilatildeo do homem com Deus Diz ele ldquoSe o homem tende para o infinito eacute porque precisamente eacute finito Aiacute estaacute um dos sentidos dos traacutegicos da vida Esse desejo de eternidade e da ldquoinfinituderdquo eacute um ldquopathosrdquo do desejo de Deus porque ele eacute o desejado absoluto (SANTOS 1945 p 45 ) Maacuterio fala entatildeo da finitude humana e do desejo do ldquoinfinitordquo Fala em tempo e eternidade Para o autor nesse ponto a ideia de Deus eacute irrefutaacutevel pois ldquonatildeo se refuta o ldquoinfinitamenterdquo grande com a alegaccedilatildeo do ldquoinfinitamenterdquo pequeno nem se mede a concepccedilatildeo de Deus por escalas racionalistasrdquo (SANTOS 1945 p 45)

Maacuterio chama a atenccedilatildeo para o modo como os homens e os filoacutesofos quiseram medir Deus por escolas racionalistas buscar racionalizar Deus quando na verdade Deus eacute um sentimento para ser vivido ndash sobre isso vemos o que diz Nietzsche na obra O Anticristo sobre um ldquocristianismo autecircntico ser possiacutevel ldquoo cristianismo autecircntico original sempre seraacute possiacutevel Natildeo uma feacute mas um fazer sobretudo um natildeo-fazer-muitas-coisas um ser de outro modordquo(NIETZSCHE 2016 p 44) Nesse ponto da interpretaccedilatildeo ferreriana ambos os autores estatildeo de acordo

Ainda sobre o aspecto da concepccedilatildeo racionalista de Deus para o autor brasileiro ldquoa mais satilde ideia coloca-o no inatingiacutevel para o homem como homem daiacute a interpretabilidade por que refuta eacute aplicar medidas humanas (SANTOS 1945 p45) Para Maacuterio chama-lo de absoluto eacute negaacute-lo Chamaacute-lo de incondicionado tambeacutem eacute negaacute-lo O absoluto natildeo condiciona porque soacute o condicionado condiciona Definiacute-lo eacute sempre negaacute-lo Assim ldquoa afirmaccedilatildeo de Deus pertence agrave feacute e somente a feacute Tudo o mais eacute tateamento ensaiordquo (SANTOS 1945 p 45-46 )

Entatildeo em Maacuterio eacute por isso que toda e qualquer ideia que de Deus faccedilamos se refutada natildeo o refuta mas sim agrave ideia Os homens natildeo podem ldquocompreender lsquocom palavrasrsquo o que transcende a tudo mas pode lsquovive-lorsquo Deus eacute assim um lsquosentimentorsquo para ser lsquovividorsquo natildeo uma ideia para ser pensada nem para ser medida (SANTOS 1945 p 46) O autor

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

232

aponta que para o crente a ldquoinfinituderdquo dos espaccedilos coacutesmicos eacute um ldquolimiterdquo agrave sua crenccedila e criar-lhe o ponto torturado de uma duacutevida Para o natildeo-crente essa mesma ldquoinfinituderdquo eacute uma fronteira de sua duacutevida na possibilidade de Deus Para Maacuterio Ferreira dos Santos eacute na concepccedilatildeo do ldquoinfinitordquo do cosmos que os limites se encontram tanto dos crentes como dos natildeo crentes Para ele ldquoos atributos humanos da ideia de Deus eacute que levaram os filoacutesofos a negaacute-lo (SANTOS 1945 p 46)

Para Maacuterio a arma de defesa dos crentes ndash a razatildeo ndash serviu afinal de arma de ataque E nessa anaacutelise de Maacuterio encontramos aquilo que Nietzsche chamou de vontade de verdade3 E sobre esta razatildeo fixamos isso ao analisar a obra nietzschiana pois nos encontramos em face de contradiccedilotildees que se excluem Para Maacuterio

Nietzsche proclama-se ora ateu ora teiacutesta Mas a conclusatildeo final eacute Nietzsche apenas refutara a ideia do Deus moral do Deus antropomoacuterfico ldquopreocupadordquo com as coisas humanas do Deus caprichoso para quem se construiu uma ciecircncia e para quem se estabeleceram limites de accedilatildeo criando-se-lhe racionalmente aprioriacutesticos atributos ldquoinfinitosrdquo (SANTOS 1945 p 46)

Para Maacuterio esse Deus tornou-se afinal o prisioneiro de seus sacerdotes que lhe negavam e restringiam direitos Propriamente aceitando um ldquoperspectivismo traacutegicordquo do mundo compreendendo os limites do homem negando a concepccedilatildeo ocircntica aparentemente teria negado a Deus Em Maacuterio Nietzsche no entanto desvestindo o mundo dos seus acidentes e atributos criava a divindade Seu ideal de super homem tem algo desse anelo Nietzsche natildeo era ateu no sentido vasto Negava o Deus que os homens haviam criado agrave imagem de um Deus falso refutado

Para Maacuterio Deus eacute uma resposta que o homem daacute a um ponto de interrogaccedilatildeo e aqui ele faz referecircncia a Nietzsche As perguntas irrespondiacuteveis da ciecircncia e da filosofia nele ficam postadas e ateacute o homem coloca a imagem projetada de si mesmo num grande ser que teria todas as qualidades e atributos humanos ampliados aleacutem dos seus limites Deus eacute assim um ideal de super- humanidade Um ideal grosseiro mas ingecircnuo sincero vindo dos seus anseios naturais considera o autor afirmando que para Nietzsche era digna de respeito tal projeccedilatildeo humana Deus para Nietzsche de acordo com a interpretaccedilatildeo de Maacuterio Ferreira era mais uma estratificaccedilatildeo da vontade humana de potecircncia Mas nem por isso o filosofo alematildeo o negava apenas deixava esse problema para depois Para Maacuterio Ferreira o homem sempre teraacute um problema ao qual chamaraacute Deus Deus seraacute sempre as perguntas natildeo respondidas Assim para o autor

o ateiacutesmo de Nietzsche ia agrave negaccedilatildeo do sentido vulgar do sentido sacerdotal de Deus essa concepccedilatildeo humana ldquoridiacuteculardquo que faz de Deus um monstro de sabedoria obra dos filoacutesofos que tem a pretensatildeo que filosofar eacute um atributo divino Nietzsche era contra o Deus todo bondade ou todo justiccedila ( SANTOS 1945 p47)

Estudando-lhe os atributos que predominavam em determinadas eacutepocas e que eram projeccedilotildees coagulaccedilotildees dos desejos maiores do homem A criacutetica nietzschiana ao 3 Nietzsche apesar de caracterizar a vontade de verdade de maneira negativa ele confere a essa noccedilatildeo um papel

fundamental na histoacuteria da mentalidade religiosa da civilizaccedilatildeo ocidental Isso porque o filoacutesofo defende a seguinte relaccedilatildeo loacutegica entre vontade de verdade e ateiacutesmo o ideal de praticidade intelectual que constitui a vontade conduzi-ria necessariamente agrave negaccedilatildeo da ldquomais longa mentirardquo do ocidente isto eacute a mesma mentira da existecircncia de Deusrdquo (NETO SET de Melo 2016p 427)

Rafael Gonccedilalves da Silveira

233

cristianismo fundamentava-se nos seguintes pontos durante dois mil anos o cristianismo havia explorado um sentimento de ausecircncia Para Maacuterio

O cristianismo ldquoprometera a felicidade que faltava agraves vastas massas sociais da eacutepoca mas a prometera para um futuro que sempre afirmou proacuteximo coletivo quando viesse o juiacutezo final momento alucinante da vinganccedila dos escravos sobre os seus opressores O cristianismo de iniacutecio fora isso Prometeu um mundo o ceacuteu ndash um lugar de felicidade perene eterna onde os justos apreciaram os requintes de torturas que os democircnios usariam para puniccedilatildeo dos pecadores os ricos os poderosos os opressores (SANTOS 1945 p 47)

Durante dois mil anos o cristianismo explorou essa acircnsia Quando percebeu que os tempos natildeo vinham e as profecias natildeo se realizavam prometeu um ceacuteu imediato a cada um apoacutes a morte depois de se processarem julgamento individual Desta forma o dia do julgamento final que seria coletivo ficava transferido para o fim dos seacuteculos Ideia do limbo ampliava-se natildeo mais no sentido primitivo anterior a Cristo como um lugar preacute-determinado onde permaneceriam as almas candidatas ao ceacuteu porque este soacute poderia ser aberto por um Deus Cristo o abriria e depois dele todos os que o seguissem e todos os que o esperaram no limbo teriam oportunidade de penetrar no ceacuteu Com essa promessa de felicidade eterna infinita na contemplaccedilatildeo de Deus felicidade inalcanccedilaacutevel na terra o cristianismo pregou o oacutedio agrave vida caluniando-a por seacuteculos Com os seacuteculos dezoito e dezenove o ateiacutesmo triunfante a destruiccedilatildeo das ideias religiosas a ldquomorte enfim das possibilidades do paraiacuteso no ceacuteurdquo o cristianismo alimentou os desejos de conquista do paraiacuteso na terra Para o brasileiro nesse sentido ldquoNietzsche vecirc as doutrinas libertaacuterias socialistas como avatares do cristianismo Os desejos de felicidade perduraram nos homens como um direito (SANTOS 1945 p) Ainda segundo Maacuterio

Entre os atuais cristatildeos haacute uma corrente que natildeo vecirc em Nietzsche um inimigo do cristianismo Realmente natildeo o foi Poucas vezes se ergueram vozes de tatildeo sincera exaltaccedilatildeo agrave obra de Cristo como a dele Nietzsche combatia mais a falta de feacute que a feacute Via os cristatildeos em regra geral falsos hipoacutecritas e embusteiros mas se admirava da feacute sincera de um homem como Pascal ou de um Satildeo Francisco de Assis Via no cristianismo virtudes profundas mas acusava os maus disciacutepulos de arrastarem-se numa forccedila de regressatildeo quando Cristo tivera um iacutempeto revolucionaacuterio Denunciava os maus cristatildeos os verdadeiro ldquo assassinos de Deusrdquo que o exploraram para em nome dele dar vazatildeo aos apetites e ambiccedilotildees (SANTOS 1945 p 49)

E se a critica de Nietzsche foi demasiadamente violenta era devido ao seu temperamento Era de sua personalidade atuar com energia quando polemizava Segundo o tradutor e filosofo ele mesmo dizia que esse estilo de accedilatildeo fazia parte de sua estrateacutegia Para o filoacutesofo

Nietzsche era ateiacutesta Mas ateiacutesta no sentido Nietzschiano Sua afirmaccedilatildeo contra a existecircncia de um Deus cingia-se agrave concepccedilatildeo estreita e imitativa antropomoacuterfica de Deus Ele dera em ldquoVontade de Potecircnciardquo uma definiccedilatildeo para os crentes Dizia ldquoAfastemos a grande bondade da ideia de Deus ndash ela eacute indigna de Deus Afastemo-nos outrossim a mais alta sabedoria ndash ela eacute a vaidade dos filoacutesofos que tem na consciecircncia a insacircnia desse monstro de sabedoria que seria Deusrdquo Pretendiam que Deus se lhes assemelhasse

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

234

tanto quanto possiacutevel Natildeo Deus a mais alta potecircncia ndash isto basta Dai resulta tudo o que resulta ndash ldquoo mundordquo (SANTOS 1945 p49)

Para o autor esse ateiacutesmo de Nietzsche ldquocombatia o Deus criado pelos racionalistas O Deus definido por atributos Nietzsche negava os atributos porque o atributo jaacute eacute um limiterdquo (SANTOS 1945 p 49) Haacute uma definiccedilatildeo dos primitivos nas paraacutefrases dos crentes respeitosos mais grandeza O ateiacutesmo nietzschiano ldquoeacute assim uma devoccedilatildeo respeitosardquo (SANTOS 1945 p 50) Maacuterio afirma que amar a vida era para Nietzsche uma forma de oraccedilatildeo ou prece Reconhece que sua criacutetica ao cristianismo tem momentos de exaltaccedilatildeo e que Nietzsche mesmo dizia que os cristatildeos chamaram Deus o que lhes contrariava e os prejudicava e tambeacutem que o cristianismo permitiu uma rebeliatildeo de escravos que entrou na histoacuteria como um dos movimentos mais profundos e mais castos Afirma que ldquoo cristianismo sofrera poreacutem do influxo dos entediados dos acovardados que se aproveitaram da vitoacuteria e que natildeo a construiacuteram (SANTOS 1945 p 50)

Aqui nota-se a clara defesa de Maacuterio do cristianismo e que busca tratar a inversatildeo dos valores dos cristatildeos como uma vitoacuteria O autor ainda diz que o homem criou em si o purgatoacuterio de sua vida Para ele ldquoo vale de laacutegrimas da vida natildeo fora Deus que criara Essa acusaccedilatildeo era outra infacircmia O homem-o verdadeiro satatilde ndash criara seu proacuteprio inferno porque se negava a si mesmordquo (SANTOS 1945 p51) Ainda segundo o filoacutesofo brasileiro

Cristo tambeacutem foi um transmutador de ideias e de princiacutepios Sua reforma representava para a Judeacuteia um movimento revolucionaacuterio de grande envergadura e para o romanismo uma transmutaccedilatildeo profunda que atingia os instintos das massas oprimidas da proviacutencia (SANTOS 1945 p 51)

Para Maacuterio Cristo ao pregar aos homens que fugissem agraves honrarias salopando o respeito devido aos poderosos o abandono do luxo e as riquezas pregava na verdade tudo que era condizente coa a situaccedilatildeo poliacutetica do povo judaico oprimido e dominado por Roma Segundo o autor

Tudo isso que era tatildeo necessaacuterio naquele instante histoacuterico apesar de sua prudecircncia em natildeo se jogar contra o poder romano realmente significava uma transmutaccedilatildeo da alma decadente de um povo preocupado com as lutas bizantinas dos fariseus Cristo buscava a uniatildeo do povo de Israel num rebanho com um soacute pastor (SANTOS 1945 p51)

Ainda sobre Cristo Maacuterio diz que sua doutrina combatia a decadecircncia judaica ldquo Segue-me e deixa os mortos sepultarem seus mortosrdquo Sua filosofia era uma filosofia de vida Todos os transmutadores da humanidade alccedilam a voz contra a decadecircncia E a decadecircncia eacute sempre a morte Para o brasileiro ldquoCristo via a morte no regime imperante em sua paacutetria Cristo nunca se enganou quanto ao sentido revolucionaacuterio de sua obrardquo( SANTOS 1945 p 52 ) Aqui parece que Maacuterio natildeo estaacute ciente do que Nietzsche tambeacutem considera Cristo um decadente4 Ele parece mais interessado em sua proacutepria filosofia e a interpretaccedilatildeo religiosa que vai desenvolver sobre o cristianismo e Cristo 4 Sobre este ponto Rubira (2016) aponta que que ldquoNietzsche busca compreender traccedilos psicoloacutegicos do interes-

santiacutessimo decadente um antirrealista e grande simbolistardquo (Rubira 2016 p 85) Aqui o autor faz uma anaacutelise da obra O Anticristo demonstrando como o filosofo alematildeo separa a figura de Cristo dos seus verdadeiros detratores principalmente o apoacutestolo Paulo Contudo ressalta-se que Cristo natildeo deixa de ser um decadente Analisando o tipo psicoloacutegico do ldquoRedentorrdquo sabemos que ele pode estar contido nos evangelhos apesar dos evangelhos ainda que mutilado ou carregado de traccedilos alheios como o de Francisco de Assis estaacute conservado em suas lendas apesar de suas lendas ldquoNatildeo a verdade quanto ao que fez o que disse como realmente morreu mas a questatildeo de o seu tipo ser concebiacutevel de haver sido lsquotransmitidorsquordquo (NIETZSCHE 2007 p35)

Rafael Gonccedilalves da Silveira

235

Sobre a dubiedade do cristianismo o autor considera a doutrina cristatildeo tatildeo duacutebia as demais doutrinas e filosofias Para ele ldquopouco difere poreacutem a interpretaccedilatildeo de Nietzsche E seu ataque ao cristianismo refere-se agrave dubiedade agrave fraqueza agrave concoacuterdia dos crentes Para ele Nietzsche via exceccedilotildees no cristianismo como Pascal5 e Satildeo Franscisco de Assis Trata poreacutem dos paradoxos da ldquomorte de Deusrdquo em Nietzsche Prossegue citando o filoacutesofo marxista e socioacutelogo francecircs Henri Lefeacutebvre

Lefeacutebvre tem estas palavras ldquoO assassino de Deus ndash singular paradoxo ndash natildeo eacute o ateu O ateu nietzschiano tem o sentido do divino O verdadeiro assassino de Deus eacute o Cristatildeo O cristianismo natildeo foi mais na aparecircncia que uma feacute em Deus uma vida humana no seio divino Na realidade foi ldquoo mais baixo niacutevel da evoluccedilatildeo descendente do topo divinordquo E Lefeacutebvre prossegue ldquoo criador do judeu-cristianismo como doutrina e como igreja foi Satildeo Paulo que se serviu da biografia de Cristo para espalhar a noccedilatildeo judaica do pecado do Deus mau O uacutenico e verdadeiro cristatildeo foi Cristo e morreu na cruz ndash morreu verdadeiramente Sua presenccedila seu espiacuterito se perderamrdquo (SANTOS 1945 p 53)

De fato podemos concordar que o Paulo foi o grande detrator do cristianismo No entender de Nietzsche Paulo de Tasso teria sido o maior responsaacutevel pela disseminaccedilatildeo do cristianismo tal como conhecemos O argumento paulino de aleacutem-mundo para Nietzsche teria contagiado todo o imaginaacuterio moral da civilizaccedilatildeo ocidental O cristianismo teria dominado a cultura pagatilde atraveacutes do medo e da esperanccedila ambos suscitados pelas noccedilotildees de ldquojuiacutezo finalrdquo e ldquovida eternardquo

Salvo alguns pontos de convergecircncia entre a concepccedilatildeo de Nietzsche e a interpretaccedilatildeo de Maacuterio Ferreira dos Santos podemos poreacutem encontrar muitos pontos que natildeo correspondem ao que conhecemos da obra nietzschiana na atualidade Reconhecemos que Maacuterio teve grande importacircncia por situar o filosofo alematildeo no contexto da filosofia como autor antimetafiacutesico6 de uma noccedilatildeo de vontade de potecircncia muito aleacutem da concepccedilatildeo errocircnea de metafiacutesica da violecircncia7 Poreacutem para prosseguir o objetivo deste trabalho passamos na proacutexima sessatildeo a analisar a interpretaccedilatildeo de Nietzsche sobre o cristianismo a partir das obras criacuteticas do autor

5 O filosofo de Sils-Maria ao analisar em sua obra Aurora o corpo como uma maacutequina pouco explorada e que fe-nocircmenos naturais fisioloacutegicos satildeo entatildeo interpretados como moral e religiosos faz entatildeo uma alusatildeo agrave corrupccedilatildeo de Pascal Nietzsche mostra que a corrupccedilatildeo do homem forte pelos fracos pela moral teria acometido Pascal cuja razatildeo foi corrompida pelo seu cristianismo Citando o filosofo alematildeo ldquoO que quer que provenha do estocircmago dos intestinos da batida do coraccedilatildeo dos nervos da biacutelis do secircmen ndash todas as indisposiccedilotildees fraquezas irritaccedilotildees todos os casos de uma maacutequina que conhecemos tatildeo pouco ndash tudo isso um cristatildeo como Pascal tem de considerar um fenocircmeno moral e religioso perguntando se ali se acha Deus ou o Diabo o bem ou o mal a salvaccedilatildeo ou danaccedilatildeo Oh inteacuterprete infeliz Como precisa revirar e torturar seu sistema Como ele proacuteprio necessita revirar-se e torturar-se para ter razatildeordquo(Nietzsche 2016 p62)

6 No decorrer de suas obras Nietzsche faz criacuteticas ao dualismo de Platatildeo e sua concepccedilatildeo dos mundos sensiacutevel e inteligiacutevel ndash O pensador alematildeo apresenta o corpo fiacutesico em contiacutenua mudanccedila com impulsos que determinam diferentes relaccedilotildees de poder No pensamento platocircnico o homem eacute definido como uma dualidade de uma alma e um corpo fiacutesico distintos entre si Nessa concepccedilatildeo a alma ao encarnar apoacutes abandonar o mundo das ideias ao unir-se com esse corpo presa agrave mateacuteria constituinte inferior e menos nobre em relaccedilatildeo agrave contraparte espiritual subjulga-se aos anseios menores da mateacuteria Dessa forma submete-se a ela e nessa posiccedilatildeo menos nobre sua postura moral se traduziraacute em uma forma menos elevada

7 Nesse sentido Maacuterio Ferreira dos Santos faz uma defesa de Nietzsche no ensaio O Homem que foi um campo de batalha de 1945 buscando afastar o filosofo alematildeo da acusaccedilatildeo de ser um teoacuterico do nazismo Nessa empreitada o tradutor e filosofo brasileiro busca compreender a Vontade de Potecircncia de Nietzsche em seu real sentido na filosofia de Nietzsche Conforme Maacuterio ldquoVontade de Potecircncia natildeo eacute somente a vontade de dominar O nietzschianismo natildeo eacute uma metafiacutesica da violecircncia O tiacutetulo da obra enganou muitos inteacuterpretes Vontade de potecircncia eacute somente o esforccedilo para triunfar do nada para vencer a fatalidade e o aniquilamento a cataacutestrofe traacutegica e a morte (Santos 1945 p 70)

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

236

3 A criacutetica de Nietzsche ao cristianismoEm Humano demasiado humano no capiacutetulo terceiro intitulado ldquoA vida religiosardquo

no aforismo 108 Nietzsche diz que quando um infortuacutenio nos atinge pode-se superaacute-lo de dois modos distintos ldquoeliminando a sua causa ou modificando o efeito que produz em nossa sensibilidade (NIETZSCHE 2005 p 79) ou seja reinterpretando o infortuacutenio como um bem ou utilidade para a nossa vida A religiatildeo e a arte (e tambeacutem a filosofia metafiacutesica) vai dizer Nietzsche se esforccedilou em produzir a mudanccedila da sensibilidade em parte alterando nosso juiacutezo sobre os acontecimentos (por exemplo com a ajuda da frase Deus castiga a quem amardquo) em parte despertando prazer na dor na emoccedilatildeo mesma (ponto de partida da arte traacutegica)

Para Nietzsche ldquoTanto mais diminuir o impeacuterio das religiotildees e de todas as artes da narcose tanto mais os homens se preocuparatildeo em realmente eliminar os malesrdquo ( Nietzsche 2005 p 75) No aforismo 113 (ldquoo cristianismo como antiguidaderdquo) Nietzsche diz

Quando numa manhatilde de domingo ouvimos repicarem os velhos sinos perguntamos a noacutes mesmos mas seraacute possiacutevel Isto se faz por um judeu crucificado haacute dois mil anos que se dizia filho de Deus Natildeo existe prova para tal afirmaccedilatildeo ndash Em nossos tempos a religiatildeo cristatilde eacute certamente uma antiguidade que irrompe de um passado remoto e o fato de crermos nessa afirmaccedilatildeo ndash quando normalmente somos tatildeo rigorosos no exame de qualquer pretensatildeo ndash e talvez a parte mais antiga dessa heranccedila (NIETZSCHE 2005 p 87)

Ainda ldquoJaacute o cristianismo esmagou e despedaccedilou o homem por completo e o mergulhou como um lodaccedilal profundo entatildeo nesse sentido de total objeccedilatildeo de repente fez brilhar o esplendor de uma misericoacuterdia divina rdquo(NIETZSCHE 2005 p 88) Sobre o cristatildeo comum (aforismo 116) ndash o filosofo diz que se e o cristianismo tivesse razatildeo em suas teses a cerca de um Deus vingador seria pouco provaacutevel um individuo natildeo aceitar de bom grado os preceitos divinos e dedicar sua vida para a praacutetica asceacutetica

Para Nietzsche o cristianismo representou um movimento de continuidade do ressentimento do oacutedio e da vinganccedila instaurados pela moral judaica Essa relaccedilatildeo de parentesco com o judaiacutesmo teria levado a doutrina cristatilde proceder moralmente da mesma maneira segunda a qual a moral judaica havia operado ateacute entatildeo Isto eacute a moral tambeacutem avaliaria o tipo ldquonobrerdquo atraveacutes de seu olhar bilioso e ressentido mantendo assim a mesma atitude de identificaacute-lo como sendo moralmente ldquomaurdquo Apesar de defender essa continuidade entre judaiacutesmo e cristianismo o filoacutesofo entende que a doutrina cristatilde foi ainda mais extrema no caraacuteter imaginativo de sua vinganccedila Impotentes para realizar uma reaccedilatildeo efetiva contra seus opressores os cristatildeos ldquoforjaramrdquo a existecircncia de um julgamento divino que promoveria uma revanche na vida do aleacutem Essa desforra imaginaacuteria teria por seu turno a funccedilatildeo de dar aos oprimidos cristatildeos a sensaccedilatildeo de forccedila felicidade e conforto No aleacutem os ldquobons cristatildeosrdquo receberiam como consolo pelas dores sofridas a recompensa da bem- aventuranccedila no Reino de Deus Laacute eles seriam finalmente felizes e assistiriam aos ldquomausrdquo ndash bem logrados na vida terrena ndash pagarem por suas ldquomaldadesrdquo Enfim o sofrimento a inviacutedia e a sensaccedilatildeo de impotecircncia seriam os elementos a partir dos quais teria sido engendrada a revanche fictiacutecia do cristianismo Aleacutem de promover a vinganccedila e o consolo as noccedilotildees de juiacutezo final e de vida eterna no aleacutem tambeacutem teriam a funccedilatildeo de legitimar um modo de vida proposto pela doutrina cristatilde

Rafael Gonccedilalves da Silveira

237

Para Nietzsche conforme analisamos na obra O Anticristo Maldiccedilatildeo ao cristianismo o cristianismo tambeacutem se acha em oposiccedilatildeo a toda boa constituiccedilatildeo intelectual Ele diz pode usar apenas a razatildeo doente como razatildeo cristatilde toma o partido de tudo idiota pronuncia a maldiccedilatildeo contra o ldquoespiacuteritordquo contra a soberbia (soberba) do intelecto satildeo (NIETZSCHE 2016 p 62) Para o filosofo alematildeo tal como a doenccedila eacute da essecircncia do cristianismo assim tambeacutem o tiacutepico estado cristatildeo a ldquofeacuterdquo tem de ser uma forma de doenccedila todos os caminhos retos honestos cientiacuteficos para o conhecimento tecircm de ser rejeitados como caminhos proibidos pela igreja A duacutevida assim eacute um pecado para o cristianismo

Na anaacutelise da figura sacerdotal Nietzsche mostra que a completa falta de asseio psicoloacutegico no sacerdote ndash que jaacute se revela no olhar ndash eacute uma consequecircncia da decadecircncia ( decadeacutence) ndash ele diz que ldquo feacute significa natildeo querer saber o que eacute verdadeiro O petista o sacerdote de ambos os sexos eacute falso porque eacute doente seu instinto exige que em nenhum ponto a verdade obtenha seu direito ldquo (NIETZSCHE 2016 p 62) Nietzsche aponta que o homem que se torna doente ou por natureza eacute doente eacute considerado bom8 Ao contraacuterio o que vem da plenitude da abundacircncia e do poder eacute considerado mau e tal modo de sentir as coisa eacute tiacutepico do crente Nietzsche aponta o absurdo da concepccedilatildeo supersticiosa de Deus conforme segue

Mesmo com um miacutenimo de religiosidade no peito um Deus que no instante certo cura um resfriado ou que nos faz subir na carruagem quando comeccedila uma tempestade deveria nos parecer tatildeo absurdo que teria de ser eliminado ainda que existisse Um Deus como domeacutestico como carteiro como calendarista ndash no fundo uma palavra para designar o mais estuacutepido tipo de acaso (NIETZSCHE 2016 p 63)

Na obra O Anticristo Maldiccedilatildeo ao cristianismo Nietzsche vai mostrar como os sacerdotes abusaram do nome de Deus para satisfazerem o seu fim alcanccedilar e manter o seu poder Utilizaram ldquoDeusrdquo para medir os povos e as eacutepocas segundo a forma de posiccedilatildeo sobre os sacerdotes sendo a vontade de Deus tudo que seja favoraacutevel a manutenccedilatildeo da existecircncia desse tipo parasitaacuterio ao passo que aquilo que contraria-se seu domiacutenio e existecircncia fosse contra Deus Citando Nietzsche

A realidade no lugar dessa deploraacutevel mentira eacute a seguinte uma espeacutecie parasitaacuteria de homem que prospera apenas agraves custas de todas as formas saudaacuteveis de vida os sacerdotes abusa do nome de Deus ao estado de coisas em que o sacerdote define o valor das coisas ele chama ldquoreino de Deusrdquo aos meios pelos quais um tal estado eacute alcanccedilado ou mantido ldquo a vontade de Deusrdquo com frio cinismo ele mede os povos as eacutepocas os indiviacuteduos conforme beneficiem ou contrariem a preponderacircncia dos sacerdotes (NIETZSCHE 2016 p 31)

8 Dando sequecircncia em sua investigaccedilatildeo da moral no aforismo 2 da Segunda dissertaccedilatildeo de sua Genealogia da moral Nietzsche vai destacar a origem do termo bom tendo os homens nobres como precursores aqueles que se chamaram ldquobonsrdquo em oposiccedilatildeo ao que eacute baixo e vulgar ao que eacute ruim Nietzsche ressalta que atraveacutes do pathos da distacircncia os nobres tomaram para si o direito de criar valores e cunhar nomes para estes valores No princiacutepio deste estabeleci-mento de valores a palavra bom natildeo estaacute ligada diretamente as accedilotildees natildeo-egoiacutestas pois na perspectiva nobre ainda natildeo haacute a oposiccedilatildeo de valores (egoiacutesta versus natildeo-egoiacutesta) No tipo nobre em Nietzsche podemos identificar o corpo saudaacutevel a fisiologia sadia e a afirmaccedilatildeo da vida Em oposiccedilatildeo a esse nobre haacute o fraco tipo decadente que busca apenas preservar e conservar a vida natildeo utiliza a potecircncia criadora e interioriza a sua vontade de potecircncia Eacute esse tipo fraco que vai elaborar uma moral de escravo uma moral negadora da vida e por consequecircncia do corpo Citando Nietzsche ldquoOs juiacutezos de valor cavalheiresco-aristocraacuteticos tecircm como pressuposto uma constituiccedilatildeo fiacutesica poderosa uma sauacutede florescente rica ateacute mesmo transbordante juntamente com aquilo que serve a sua conservaccedilatildeo guerra aventura caccedila danccedila torneios e tudo o que envolve uma atividade robusta livre contenterdquo (Nietzsche 2009 p22)

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

238

Nietzsche no Anticristo radicaliza sua posiccedilatildeo sobre o cristianismo e com relaccedilatildeo ao sacerdote De certo modo ele retoma muitas questotildees jaacute expostas na obra Genealogia da Moral em que o autor investiga o surgimento da moral e analisa a transvaloraccedilatildeo feita pelos sacerdotes e pelo rebanho de fracos Aqui nesta obra Nietzsche se propotildee a fazer uma nova Transvaloraccedilatildeo dos valores para retornar aos valores afirmativos da vida No Anticristo Nietzsche vai atacar fortemente os sacerdotes pois foram eles que foram responsaacuteveis pela inversatildeo dos valores nobres e pelo decliacutenio ou deacutecadence da humanidade Ele combate natildeo o nazareno a figura de Cristo que Nietzsche vai dedicar atenccedilatildeo especial mas os tipos sacerdotais Eacute preciso para o filosofo combater tais parasitas que se encontram em toda parte e em todos eventos naturais agindo de forma a desnaturaacute-los Somente nesse combate Nietzsche vislumbra a possibilidade de uma filosofia afirmativa que propotildee a incondicional afirmaccedilatildeo da vida Nietzsche apresenta-se assim como um destino por ter levantado o pano ldquoque tapava a corrupccedilatildeo do homemrdquo (NIETZSCHE 2016 p12) Conforme Rubira

Diferentemente dos sacerdotes judeus que queriam a crucificaccedilatildeo de Jesus o alvo de Nietzsche sobretudo em O anticristo natildeo eacute um ataque ao ceacutelebre homem da Galileacuteia (ldquoHouve apenas um cristatildeo e este morreu na cruzrdquo ACAC 39) mas a um tipo sacerdotal judeu que com a crucificaccedilatildeo de Jesus teria encontrado um caminho para chegar ateacute o poder um caminho para operar uma alteraccedilatildeo em todos os valores da antiguumlidade e nesta alteraccedilatildeo levar ao primeiro plano os proacuteprios valores com base no siacutembolo ldquoDeus na cruzrdquo ou ldquocristo na cruzrdquo ou ldquoo crucificadordquo tais sacerdotes teriam operado uma transvaloraccedilatildeo de todos os valores antigos - valores esses que eram a expressatildeo de uma vida afirmativa uma vida que natildeo desprezava o vir-a-ser (RUBIRA p 118 2005)

Nietzsche pretende entatildeo retomar esses valores que expressam uma vida afirmativa Nesse combate ao tipo sacerdotal e ao cristianismo o autor vai analisar como eles subvertem a realidade atraveacutes da mentira A mentira tem como finalidade no sacerdote apenas coisas ruins ldquoenvenenamento difamaccedilatildeo negaccedilatildeo da vida desprezo pelo corpo rebaixamento e autoviolaccedilatildeo do homem pelo conceito de pecadordquo (NIETZSCHE 2016 p 68) Mas para Nietzsche natildeo eacute apenas algo meramente judeu ou cristatildeo o dito direito de mentir A mentira juntamente com a ldquosagacidade da revelaccedilatildeordquo fazem parte do tipo sacerdote tanto os sacerdotes da deacutecadence como os sacerdotes do paganismo A mentira sagrada que se encontra em Confuacutecio e no coacutedigo de Manu encontra tambeacutem em Platatildeo Para Nietzsche ldquoLeirdquo a ldquovontade de Deusrdquo o ldquolivro Sagradordquo a ldquoinspiraccedilatildeordquo ndash tudo ldquoapenas palavras para as condiccedilotildees sob as quais os sacerdotes chegam ao poder com as quais ele sustenta seu poderrdquo (NIETZSCHE 2016 p67) O filosofo aqui salienta que tais conceitos satildeo encontrados nas bases de todas as organizaccedilotildees sacerdotais Como dissemos a ldquomentira sagradardquo vai de Confuacutecio ateacute Platatildeo e nas palavras de Nietzsche ldquolsquoA verdade em sirsquo isto significa onde quer que seja ouvido o sacerdote menterdquo (Nietzsche 2016 p67)

Admitimos essa conclusatildeo e radicalizaccedilatildeo da figura do sacerdote no Anticristo agrave medida que essa obra significa a proacutepria transvaloraccedilatildeo dos valores de Nietzsche operada de modo estrateacutegico Foi num terreno assim falso de valores falsos que cresceu e dominou o cristianismo como ldquouma forma de inimizade mortal agrave realidade que ateacute agora natildeo foi superadardquo (NIETZSCHE 2016 p 33) Para encerrar sua criacutetica no Anticristo natildeo eacute

Rafael Gonccedilalves da Silveira

239

por menos que Nietzsche vai propor toda negaccedilatildeo do tipo sacerdotal principalmente do sacerdote cristatildeo considerando o mesmo como aquele que ensina a antinatureza

Artigo primeiro ndash Viciosa eacute toda espeacutecie de antinatureza A mais viciosa espeacutecie de homem eacute o sacerdote ele ensina a antinatureza Contra o sacerdote natildeo haacute razotildees haacute o caacutercererdquo () Artigo quinto ndash Quem senta agrave mesa com um sacerdote eacute expulso excomunga a si mesmo da sociedade honesta O sacerdote eacute nosso chandala ndash deve ser banido esfomeado enxotado para toda espeacutecie de deserto (NIETZSCHE 2016 p 80)

4 Consideraccedilotildees finaisAo longo deste artigo buscamos apresentar a interpretaccedilatildeo feita por Maacuterio Ferreira

dos Santos sobre a criacutetica de Nietzsche ao cristianismo Focamos a exposiccedilatildeo do filosofo brasileiro principalmente em seu ensaio O homem que foi um campo de batalha publicado em 1945 Notamos que para aleacutem de um comentaacuterio fiel ao pensador do filosofo alematildeo Maacuterio escreveu uma interpretaccedilatildeo muito particular em que busca natildeo apenas descrever a criacutetica de Nietzsche mas como tambeacutem justifica-las

Tambeacutem opera uma defesa do cristianismo neste ensaio pois Maacuterio eacute um pensador cristatildeo que escreveu diversos trabalhos sobre o cristianismo principalmente sobre o anarquismo cristatildeo Percebemos que em certo ponto ele procurou estabelecer uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e a figura de Cristo mostrando a admiraccedilatildeo do filosofo alematildeo pelo ldquoRedentorrdquo principalmente atraveacutes da acusaccedilatildeo aos sacerdotes e a figura do apoacutestolo Paulo por deturpar o cristianismo autecircntico

Analisando algumas passagens das obras de Nietzsche percebemos que suas criacuteticas ao cristianismo satildeo bem mais fortes do que Maacuterio parece destacar em seu ensaio Contudo apesar das diferenccedilas latentes entre as passagens nietzschianas e o ensaio de Maacuterio prevalece o ataque ao cristianismo na figura do sacerdote como uma ponte entre os dois autores Destacamos que ao publicar seu ensaio Maacuterio ainda natildeo tinha conhecimento da revisatildeo e ediccedilatildeo criacutetica das obras de Nietzsche que seria realizada somente entre 1967-1978 atraveacutes do esforccedilo e competecircncia dos italianos Giorgio Colli e Mazzino Montinari Assim apesar do caraacuteter ameno ao analisar a criacutetica nietzschiana Maacuterio natildeo constitui ainda uma interpretaccedilatildeo cristianizada do filosofo de Assim falava Zaratustra mas tem seu meacuterito ao defender o filosofo numa eacutepoca em que Nietzsche era utilizado para justificar as mais diversas correntes tais como o socialismo o anarquismo e ateacute mesmo o movimento nazista ainda em voga na Europa da deacutecada de quarenta

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

240

Referecircncias bibliograacuteficasNETO SET de Melo Cristianismo 1ordm ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016NIETZSCHE Friedrich Humano demasiado humano Um livro para espiacuteritos livres 1ordm ed Satildeo Paulo Companhia das letras 2000_____ Aurora 1ordm ed Satildeo Paulo Companhia das letras 2016_____ Genealogia da Moral Uma polecircmica 1ordmed Satildeo Paulo Companhia das letras 2008 _____ Crepuacutesculos dos Iacutedolos Ou de como filosofar com o martelo 1ordm ed Satildeo Paulo Companhia das letras 2006_____ O Anticristo Maldiccedilatildeo ao cristianismo Ditirambos de Dioniacutesio 1ordm ed Satildeo Paulo Companhia das letras 2007RUBIRA Luiacutes Eduardo Uma introduccedilatildeo agrave transvaloraccedilatildeo de todos os valores na obra de Nietzsche1ordm ed Cascavel Revista Tempo da Ciecircncia 2005_____ Dicionaacuterio Nietzsche 1ordm ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016SANTOS Maacuterio Ferreira dos O homem que foi um campo de batalha 1ordm ed Porto Alegre O Globo 1945

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

241

Genealogia O chatildeo proacuteprio de Nietzsche

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia1

IntroduccedilatildeoHaacute em torno de quarenta registros do substantivo ldquogenealogiardquo e suas desinecircncias

em toda a obra de Nietzsche a maioria dos anos 1887 e 1888 ldquoGenealogia da moralrdquo em particular eacute uma expressatildeo que Nietzsche emprega exclusivamente no tiacutetulo de sua obra e em referecircncia a ela2 Nietzsche natildeo tem portanto como adverte Brusotti (2016 p 28) ldquoo menor interesse em designar apenas a si mesmo como lsquogenealogista da moralrsquo e qualificar apenas suas proacuteprias hipoacuteteses acerca da origem como lsquogenealoacutegicasrsquo Aleacutem disso ele nunca fala em um meacutetodo genealoacutegico mas apenas em um lsquomeacutetodo histoacutericorsquo (GM II 12 e GM II 13)rdquo Em que pese a escassez de ocorrecircncias e a ressalva do comentaacuterio Nietzsche natildeo se furta de considerar como lemos no proacutelogo da Genealogia da Moral (doravante GM) que com a genealogia ele finalmente alcanccedilou um modo proacuteprio de investigaccedilatildeo da moral

Para isso encontrei e arrisquei respostas diversas diferenciei eacutepocas povos hierarquias dos indiviacuteduos especializei meu problema das respostas nasceram novas perguntas indagaccedilotildees suposiccedilotildees probabilidades ateacute que finalmente eu possuiacutea um paiacutes meu um chatildeo proacuteprio um mundo silente proacutespero florescente como um jardim secreto do qual ningueacutem suspeitasserdquo (GM Proacutelogo 04)3

Insistindo nas imagens de Nietzsche afinal que ldquochatildeo proacutepriordquo eacute este da genealogia Quais satildeo as fronteiras de seu ldquopaiacutesrdquo os caminhos de seu ldquojardim secretordquo O que diferencia a genealogia de outros meacutetodos de investigaccedilatildeo da moral Aliaacutes a proacutepria definiccedilatildeo da genealogia como um ldquomeacutetodordquo eacute adequada Em suma o que eacute isto a genealogia O objetivo desta investigaccedilatildeo eacute demarcar algumas questotildees importantes agrave compreensatildeo da genealogia para Nietzsche a fim de contribuir para a definiccedilatildeo do objeto de anaacutelise mais amplo do receacutem-criado GT Genealogia e Criacutetica

Crise de identidadeEm German Philosophy (1760-1860) The Legacy of Idealism Terry Pinkard

reconstroacutei o ambiente histoacuterico-filosoacutefico da repentina e inesperada morte de Hegel em 1 Doutor em Filosofia pela UnicampEMA Greifswald Faculdade de Filosofia da UFG2 Binoche (2014 p 57) faz um mapeamento destas ocorrecircncias que enseja cinco conclusotildees a primeira de nosso pecu-

liar interesse nesta investigaccedilatildeo ldquoo termo genealogia sempre se remeteu sem duacutevida agrave mesma preocupaccedilatildeo a saber com uma historicidade original que supera as alternativas com as quais Nietzsche eacute confrontadordquo

3 As citaccedilotildees das obras publicadas de Nietzsche seguem a traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza da editora Companhia das Letras com exceccedilatildeo da segunda consideraccedilatildeo extemporacircnea com traduccedilatildeo de Andreacute Itaparica As citaccedilotildees do Nachlass seguem a notaccedilatildeo da KSA traduzidas por mim

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

242

novembro de 1831 e quatro meses depois a morte de Goethe Mesmo aos detratores a morte de Hegel representava o apagar de uma das maiores ldquoluzes intelectuaisrdquo da transiccedilatildeo do seacutec XVIII ao XIX e consequentemente o esfriamento das questotildees que ela iluminava Como reaccedilatildeo imediata seus alunos e amigos passaram a se mobilizar em torno de uma associaccedilatildeo dedicada a divulgar os trabalhos completos do filoacutesofo o que incluiacutea a famosa seacuterie de palestras sobre filosofia da religiatildeo filosofia da arte filosofia da histoacuteria e como marco teoacuterico desta investigaccedilatildeo a histoacuteria da filosofia

Frederick Beiser em Depois de Hegel a filosofia alematilde de 1840 a 1900 avalia a enorme influecircncia que a Geschichte der Philosophie (1833-1836) de Hegel exerceu sobre o que ele designa como as ldquonarrativas-padratildeordquo da historiografia filosoacutefica da segunda metade do seacutec XIX Grosso modo Beiser argumenta que a versatildeo do proacuteprio Hegel da filosofia que o circundava acabou por tornar-se a ldquodescriccedilatildeo padratildeordquo o ldquoparadigma predominanterdquo da filosofia do novecentos cujo principal evento o idealismo teria se iniciado em Kant passado por Reinhold Fichte e Schelling vindo a culminar no proacuteprio Hegel

Essa narrativa se consolidou em primeiro lugar dada a enorme influecircncia exercida pelo hegelianismo na primeira metade do seacutec XIX e em segundo lugar pela reafirmaccedilatildeo dessa histoacuteria por parte de outros importantes historiadores da filosofia daquele seacuteculo como Johann Erdmann e Kuno Fischer (referecircncia para Nietzsche nos estudos de filosofia moderna) sem mencionar seus desdobramentos no seacutec XX com as obras de Karl Loumlwith (1949) Richard Kroner (1921) e Frederick Copleston (1963)

O grande ocircnus dessa ldquonarrativa-padratildeordquo eacute que ela nos apresenta uma versatildeo restrita parcial da filosofia do novecentos jaacute que omite pelo menos trecircs tradiccedilotildees i) a tradiccedilatildeo idealista contemporacircnea a Hegel principalmente a sua adversaacuteria com J F Fries (1773-1843) J F Herbart (1776-1841) e F Beneke (1798-1854) ii) a tradiccedilatildeo idealista posterior a Hegel com pensadores que de algum modo reviveram o legado do idealismo como Adolf Trendelenburg (1802-1872) Hermann Lotze (1816-1881) e Eduard von Hartmann (1842-1906) iii) uma tradiccedilatildeo balizada por Schopenhauer (1788-1860) que natildeo recebe nenhuma menccedilatildeo na narrativa de Hegel mas que pauta a importante discussatildeo na segunda metade do seacutec XIX sobre o valor da vida

Contra estas narrativas-padratildeo (Hegel e Loumlwith em particular) Beiser (2017 p 25) propotildee que i) natildeo mais devemos falar sobre o fim da tradiccedilatildeo idealista em 1831 mas temos que a estender ateacute o fim do seacuteculo ii) natildeo mais devemos escrever sobre apenas uma tradiccedilatildeo idealista mas temos de considerar uma segunda e rival iii) natildeo mais devemos assumir que o marxismo e o existencialismo satildeo os principais movimentos teoacutericos da segunda metade do seacuteculo XIX iv) natildeo mais devemos tratar Schopenhauer como um dissidente Ao inveacutes disso conclui ele temos de incluir tambeacutem muitos outros movimentos tais como o idealismo tardio o historicismo o materialismo o neokantismo e o pessimismo

Cumpre mencionar por fim a grande ldquocrise de identidaderdquo que atingiu a filosofia alematilde na deacutecada de 1840 expressatildeo de Herbart Schnaumldelbach em sua Philosophie in Deutschland 1831-1933 Se antes sob o abrigo do meacutetodo a-priori e dedutivo da filosofia idealista pairava uma concepccedilatildeo mais ou menos clara e definida da filosofia de seus objetivos e meacutetodos e de suas relaccedilotildees com as ciecircncias empiacutericas com a emergecircncia do projeto fisicalista (Liebig Du Bois Reymond Helmholtz) dos primeiros neokantianos (Fries Herbart Beneke) e dos idealistas tardios (Lotze Trendelenburg Hartmann) ela se torna profundamente desacreditada A tarefa assumida pela filosofia de fornecer uma

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

243

fundamentaccedilatildeo para as ciecircncias que as abrigasse do ceticismo a partir do meacutetodo sistemaacutetico vai se esgotando na medida em que dentre outros os meacutetodos analiacuteticos de observaccedilatildeo e experimentaccedilatildeo dessas ciecircncias particularmente as ciecircncias empiacutericas como a fisiologia e a psicologia experimental em plena ascensatildeo na eacutepoca passam a alcanccedilar resultados vaacutelidos por si mesmos de maneira autocircnoma Com isso o papel central e institucionalmente estrateacutegico da filosofia como ldquoguardiatilde das ciecircnciasrdquo entra em colapso e ela passa a padecer da falta tanto de um objeto quanto de um meacutetodo proacuteprios

Meu interesse ao esquadrinhar brevemente este contexto eacute menos subscrever as descriccedilotildees propostas pelos inteacuterpretes e mais enfatizar trecircs pontos i) a profusatildeo de assuntos problemas pensadores e orientaccedilotildees que povoaram o seacuteculo XIX e em muitos casos o horizonte intelectual de Nietzsche (que conhecia direta ou indiretamente a maior parte dos pensadores e debates mencionados em especial Schopenhauer) ii) o vazio (de objetivos meacutetodos e mesmo institucional) deixado na filosofia da segunda metade do seacutec XIX com o esgotamento do idealismo especulativo iii) como consequumlecircncia disso as inuacutemeras tentativas de re-significar a filosofia na segunda metade do seacutec XIX

Isso porque num periacuteodo natildeo muito maior do que cinquenta anos o pensamento filosoacutefico na Alemanha almejou se reconstituir e redescobrir a partir de inuacutemeros projetos nenhum deles efetivamente capaz de preencher o vazio deixado pelo idealismo Tais projetos natildeo apenas pleitearam a pauta das discussotildees filosoacuteficas como disputaram a proacutepria redefiniccedilatildeo do que eacute a filosofia Mesmo considerando a dificuldade de compatibilizar uma noccedilatildeo standard de influecircncia da historiografia filosoacutefica a uma obra como a Nietzsche eacute inegaacutevel que a sua filosofia tenha sido engendrada precisamente no ambiente de crise identitaacuteria e reaccedilatildeo ao idealismo daquele meio seacuteculo Grande parte das tendecircncias e interlocutores que pleiteiam a agenda das discussotildees da segunda metade do seacutec XIX figuram no horizonte intelectual de Nietzsche e balizam a sua filosofia e particularmente a sua compreensatildeo da genealogia Sem querer com isso reduzi-la a uma soma de influecircncias espero aproximar a genealogia de Nietzsche a algumas dessas tendecircncias e interlocutores na tentativa de situaacute-la num debate mais amplo que nos permitiraacute uma primeira aproximaccedilatildeo

ReaccedilotildeesO colapso do programa fundacionista com a emergecircncia dos fisicalistas neo-

kantianos e idealistas tardios adensado pela ascensatildeo das ciecircncias empiacutericas e tornado urgente pela crise institucional na segunda metade do seacutec XIX produziu na filosofia um vazio mas tambeacutem gerou uma seacuterie de reaccedilotildees Trecircs delas inspiraram programaticamente a meu ver a genealogia Refiro-me agrave filosofia criacutetica ao historicismo e ao problema do valor da vida mais precisamente agrave postura da filosofia criacutetica o meacutetodo do historicismo e agrave pauta do valor da vida Na impossibilidade de apresentar cuidadosamente cada uma dessas reaccedilotildees tentarei alguns pontos que permitam conectaacute-las

A assim designada ldquofilosofia criacuteticardquo desenvolvida pelos intelectuais de Halle e Berlin conhecidos como os jovens ou a ldquoesquerda hegelianardquo dentre os quais menciono apenas os diretamente conhecidos por Nietzsche como Feuerbach (1804-1872) D F Strauss (1808-1874) F Vischer (1807-1887) e Bruno Bauer (1808-1892) aleacutem da origem hegeliana identificava-se por uma agenda poliacutetica radical A despeito de suas peculiaridades para esses pensadores a filosofia era entendida como uma praacutetica preponderantemente criacutetica no sentido de que ela deveria ser o escrutiacutenio das crenccedilas de diversas ordens metafiacutesicas

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

244

religiosas econocircmicas poliacuteticas Como sintetiza a famigerada afirmaccedilatildeo de Marx em carta a Arnold Ruge de setembro de 1843 a filosofia deveria se constituir como a ldquoCriacutetica implacaacutevel de qualquer coisa existenterdquo Essa criacutetica implacaacutevel operacionalizava-se no mais das vezes pela determinaccedilatildeo das origens e julgamento das pretensotildees de validade das crenccedilas numa postura tipicamente genealoacutegica aliaacutes Numa espeacutecie de iluminismo tardio pelo ldquofogo purificador da criticardquo como quer outra conhecida expressatildeo esta de Feuerbach nrsquoA essecircncia do cristianismo esses pensadores contrapunham-se agrave metafiacutesica especulativa e embora natildeo possuiacutessem nenhum compromisso com a tarefa para eles servil de fundamentaccedilatildeo das ciecircncias acreditavam poder salvaguardar a filosofia de sua crise de identidade pela tarefa fundamental e intransferiacutevel da criacutetica

Eacute importante esclarecer que o meacutetodo de investigaccedilatildeo da esquerda hegeliana deve muito de sua orientaccedilatildeo agrave teologia particularmente agrave assim designada ldquoEscola de Tuumlbingenrdquo ou ldquoEscola criacutetica da teologiardquo4 originada em meados de 1830 berccedilo intelectual de teoacutericos como B Bauer (1809-1882) e D Strauss (1808-1874) contra o qual Nietzsche insurgiu pessoalmente na primeira extemporacircnea Leitores de Spinoza eles passavam a tratar a Biacuteblia natildeo como a palavra inspirada de Deus a sagrada escritura mas como um documento histoacuterico o produto de seres humanos em um tempo e espaccedilo determinados Grosso modo portanto a filosofia criacutetica alarga o projeto da criacutetica teoloacutegica para os outros diversos acircmbitos da vida como a economia a poliacutetica a moral e a proacutepria filosofia com o objetivo de combater a alienaccedilatildeo em suas mais diferentes formas seja a crenccedila na procedecircncia divina dos priacutencipes a doutrina do espiacuterito absoluto a crenccedila em leis econocircmicas naturais ou a eacutetica baseada em mandamentos absolutos

Cumpre destacar e aqui vinculamos o historicismo agrave discussatildeo que um dos componentes fundamentais da teologia criacutetica conforme destaca Eduard Zeller (1814-1908) em seu Die Tuumlbinger historische Schule (1860) foi o meacutetodo polecircmico e inovador de tratar os textos (e temas) sagrados estritamente como documentos histoacutericos Esse meacutetodo por sua vez busca inspiraccedilatildeo no projeto da histoacuteria criacutetica engendrada no inicio dos anos 1800 por Barthold Niebuhr (1776-1831) e Leopold Ranke (1795-1886) Alcanccedilamos aqui a conexatildeo que nos permitiraacute avanccedilar aos bastidores mais proacuteximos da genealogia entre filosofia criacutetica escola de Tuumlbingen e escola criacutetica da histoacuteria De certo modo a filosofia criacutetica alarga o programa teoacuterico da escola de Tuumlbingen que por sua vez transpotildee o meacutetodo de Ranke e Niebuhr ao estudo da histoacuteria sacra

QuerelleA importante discussatildeo sobre a histoacuteria protagonizada ao longo de todo o seacutec XIX

adensa a meu ver um debate ainda mais amplo e caracteristicamente moderno que C Perrault (1628-1723) pautaraacute na Querelle des Anciens et des Modernes De modo sumaacuterio a Querelle foi uma polecircmica intelectual que agitou especialmente o mundo literaacuterio e artiacutestico francecircs do final do seacuteculo XVII ao seacuteculo XVIII e discutia a heranccedila relaccedilatildeo e superioridade dos autores da Antiguidade Claacutessica perante o pensamento moderno Em territoacuterio alematildeo ela ecoa nas discussotildees protagonizadas dentre outros por J C Gottsched (1700-1766) J J Bodmer (1698-1783) e J J Winckelmann (1717-11768) No fundo o que estaacute em jogo na Querelle eacute uma profunda investigaccedilatildeo uma auto-anaacutelise sobre o que significa ser moderno ali operacionalizada pelo contraste direto com os antigos5 4 Sobre a escola de Tuumlbingen cf WARTHMANN Stefan Die Katholische Tuumlbinger Schule Zur Geschichte ihrer

Wahrnehmung Stuttgart 2011 (Contubernium 75)5 Sobre a Querelle cf KYLOUSEK Petr Classicisme et Acircge des Lumiegraveres Masarykova univerzita Brno 2014

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

245

Esta discussatildeo comeccedila a se adensar na Alemanha com a Allgemeine Geschichtswissenschaft (1752) do pensador wolffiano Chladenius (1710-1759) em sua tentativa de estabelecer a histoacuteria como uma ciecircncia Do ponto de vista institucional por sua vez ela ganha corpo com a criaccedilatildeo das caacutetedras de histoacuteria nos cursos de teologia e direito que com a criaccedilatildeo da Universidade de Berlin em 1810 torna-se uma faculdade independente Surge neste momento justamente a escola criacutetica da histoacuteria protagonizada por Niebuhr e Ranke que tentaratildeo estabelecer definitivamente a cientificidade do conhecimento histoacuterico preconizando dentro outros que nenhuma fonte deve ser aceita simplesmente porque foi preservada e respeitada pela tradiccedilatildeo donde a necessidade de consultar os originais e avaliar sua autenticidade e que o conhecimento histoacuterico deve ser buscado por si independente da agenda do Estado e da Religiatildeo

Uma das mais fortes oposiccedilotildees que a escola criacutetica da histoacuteria encontrou foi justamente a filosofia sistemaacutetica do idealismo Fichte Schelling e Hegel como se sabe possuiacuteam uma filosofia da histoacuteria mundial formulada de acordo com meacutetodos a-priori Assim para eles a histoacuteria empiacuterica era vista como um mero objeto material para as histoacuterias especulativas Hegel aliaacutes considerava a histoacuteria criacutetica uma espeacutecie de conspiraccedilatildeo para esvaziar a histoacuteria de sentido reduzindo-a a fatos questionaacuteveis A histoacuteria assim deveria ser subordinada a um conceito um sistema filosoacutefico6

Particularmente Ranke em seu curso de 1831 insurgiraacute contra as filosofias da histoacuteria De acordo com ele a tarefa do historiador pelo meacutetodo analiacutetico natildeo eacute conhecer as leis gerais que governam uma coisa em particular mas o que haacute de uacutenico sobre ela Ranke assim contrasta os meacutetodos e aproximando o histoacuterico das ciecircncias naturais acusa a filosofia de estabelecer princiacutepios gerais que podem ser falsos e cuja legitimidade natildeo se pode estabelecer a natildeo ser atraveacutes de meios a-priori7 Antes mesmo de Marx e Kierkegaard portanto Ranke contribuiu fortemente para o descreacutedito do meacutetodo a-priori de Hegel na filosofia da histoacuteria

O historicismo de Ranke a par e passo com o positivismo cria contudo o mito da objetividade na historiografia contra o qual insurgiratildeo muitos dentre eles como aponta White (2001) J G Droysen (1808-1884) Croce (1866-1952) e Nietzsche Droysen em particular em seus cursos sobre o meacutetodo histoacuterico de 1857 contesta o ideal objetivo de Ranke pois segundo ele i) em histoacuteria natildeo eacute possiacutevel descrever fatos como nas ciecircncias naturais ii) natildeo haacute algo como fatos histoacutericos soacutelidos e seguros que independem do historiador (afinal o passado desapareceu e agora soacute existe na mente do historiador) iii) os fatos construiacutedos pelos historiadores dependem muito de seus interesses e valores e esses de seu tempoespaccedilo (cultura liacutengua etc) iv) o historiador tambeacutem eacute um fruto da histoacuteria logo o motivo e o modo dele fazer histoacuteria tambeacutem eacute histoacuterico Natildeo deve passar despercebido que um dos historiadores mais admirados por Nietzsche a quem ele endereccedilaraacute pessoalmente a sua extemporacircnea sobre a histoacuteria Jakob Burckhardt (1818-1897) estudou em Berlin entre 1839-1842 e frequentou os seminaacuterios de L Ranke Burckhardt poreacutem rejeitava tanto o historicismo quanto o positivismo e propunha com a sua historia cultural uma modalidade de literatura imaginativa proacutexima agrave poesia que natildeo pretendia a rigor contar uma histoacuteria mas pintar o retrato de uma eacutepoca ou como descreve 6 Nietzsche ataca esta postura em 5 [58] 1875 (KSA 8 56) ldquoA Alemanha se converteu na incubadora (Brutstaumltt) do

otimismo histoacuterico do qual Hegel eacute o culpado Sem embargo nenhum outro efeito da cultura alematilde resultou tatildeo perniciosordquo

7 Sobre isso cf BABEROWSKI Joumlrg Der Sinn der Geschichte Geschichtstheorien von Hegel bis Foucault Verlag C H Beck Muumlnchen 2005

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

246

Burke (2009) de apresentar uma perspectiva ou visatildeo (Anschauung) que resultasse em um retrato global (Gesamtschilderung)8

Situado o debate podemos avanccedilar agrave questatildeo que seraacute decisiva agrave compreensatildeo de Nietzsche da genealogia Refiro-me agrave compreensatildeo da histoacuteria discutida pelo filoacutesofo ao longo de toda a sua obra de modo mais concentrado numa obra publicada na segunda consideraccedilatildeo extemporacircnea

Das vantagens e desvantagens da histoacuteria para a vida (1874) condensa boa parte das posiccedilotildees de Nietzsche sobre a histoacuteria que tendo a ler concomitantemente agrave GM como uma espeacutecie de aporte metodoloacutegico Para alinhaacute-la agrave discussatildeo que vinha apresentando gostaria de destacar o triacuteplice modo de se relacionar com o passado ali descrito isto eacute o modo aistoacuterico histoacuterico e supra-histoacuterico que ensejam trecircs modalidades de historiografia a monumental a antiquaria e a criacutetica e trecircs espeacutecies de homem o de accedilatildeo o reverente e o negador A conclusatildeo de que Nietzsche ao colocar em perspectiva as vantagens e desvantagens de cada uma das histoacuterias estaria simplesmente se decidindo por uma delas parece-me apressada Isso aliaacutes ilustra bem a necessidade de se contextualizar o debate e as posiccedilotildees pois se Nietzsche simplesmente buscasse uma terceira via entre os dois modos de se relacionar com o passado e fazer histoacuteria o histoacuterico e o aistoacuterico o antiquaacuterio e o monumental sua posiccedilatildeo natildeo seria muito diferente daquela de J G Droysen por exemplo9 Nietzsche poreacutem pesa as vantagens e desvantagens de cada uma das espeacutecies de modo a promover uma anaacutelise complexa e perspectivistica do problema Assim a posiccedilatildeo da histoacuteria na segunda extemporacircnea natildeo se orienta apenas por dois pontos de referecircncia conta ou a favor mas por pelo menos seis pontos consideradas as vantagens e desvantagens de cada uma das trecircs modalidades com destaque agrave histoacuteria criacutetica por certo Eacute nesta complexidade e mesmo ambiguidade que devemos considerar a historiografia de Nietzsche e examinar suas posiccedilotildees

Ainda mais como o interesse de Nietzsche natildeo eacute reabastecer a proacutepria discussatildeo do historicismo mas colocaacute-lo tambeacutem em perspectiva ele estabelece um ponto de referecircncia balizador dos outros a vida Assim a reflexatildeo multifacetada sobre a histoacuteria tem em vista as consequecircncias que um tipo de relaccedilatildeo com o passado produz para a vida em uma eacutepoca determinada ou como podemos ler no prefaacutecio

Eacute certo que precisamos da histoacuteria mas de maneira diferente do que dela precisa o ocioso mimado no jardim do saber que pode nobremente olhar com desdeacutem para nossas toscas necessidades e nossas rudes carecircncias Isto eacute precisamos da histoacuteria para a vida e para a accedilatildeo e natildeo para uma cocircmoda renuacutencia da vida e da accedilatildeo ou ainda para a edulcoraccedilatildeo da vida egoiacutesta ou do ato covarde e vil (NIETZSCHE 2017 p 30)

Neste ponto a influecircncia de Schopenhauer transparece natildeo apenas pela contraposiccedilatildeo entre a faculdade da memoacuteria no homem e no animal que Nietzsche redige inspirado na seccedilatildeo ldquoDa histoacuteriardquo vol II do Mundo como vontade e como representaccedilatildeo mas sobretudo pelo registro em que ele se propotildee a examinar o problema da histoacuteria o da vida e seu

8 BURKE P Introduccedilatildeo In BURCKHARDT J A cultura do renascimento na Itaacutelia Traduccedilatildeo de Seacutergio Tellaroli Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009

9 Opondo-se agrave verdade e ao sentido do ponto de vista do valor certamente Nietzsche natildeo justifica apenas o uso instrumental que fez da filologia em 1872 ele encontra a ocasiatildeo para fazer um balanccedilo que retira a razatildeo de seus rivais ao mostrar que a histoacuteria positiva e a filosofia da histoacuteria satildeo igualmente patogecircnicas (BINOCHE 2014 p 39 Cadernos Nietzsche)

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

247

valor10 Com isso a triacuteplice conexatildeo que me propus a estabelecer no iniacutecio (entre filosofia criacutetica historicismo e o problema do valor da vida) estaacute caracterizada Tendo a reconhecer na genealogia ainda que em termos gerais e programaacuteticos uma inspiraccedilatildeo nestas trecircs problemaacuteticas que povoaram o seacutec XIX Eacute a partir desta demarcaccedilatildeo que proponho nos aproximarmos da GM particularmente considerando o objetivo mais amplo do GT Genealogia e Criacutetica de compreendecirc-la em e a partir de Nietzsche

GenealogiaDois apontamentos do ano de 1885 nos ajudam a compreender a dimensatildeo e a

importacircncia do problema da histoacuteria para Nietzsche que nos conduziratildeo ao centro da questatildeo que gostaria de problematizar No primeiro deles 38 [14] lemos

O que mais profundamente nos separa de qualquer modo de pensar platocircnico ou leibniziano eacute isto noacutes natildeo acreditamos em conceitos eternos valores eternos formas eternas almas eternas e a filosofia na medida em que eacute ciecircncia e natildeo legislaccedilatildeo soacute significa para noacutes a mais ampla extensatildeo do conceito de histoacuteria (KSA 11 613)

Jaacute no segundo apontamento 36 [27] Nietzsche pondera

A filosofia tal como a sigo reconhecendo isto eacute como a forma mais geral da histoacuteria [als die allgemeinste Form der Historie] como tentativa de descrever de algum modo o devir heraclitiano e reduzi-lo a signos (de traduzi-lo por assim dizer a uma espeacutecie de ser aparente e mumificaacute-lo) (KSA 11 562)

Como bem observa Jensen (2013 p 155) ldquoA historiografia eacute essencial para a filosofia de Nietzsche uma vez que seu proacuteprio assunto diz respeito a uma realidade que eacute histoacuterica por completo [] sua filosofia depende de sua versatildeo (account) do passado ndash sua capacidade de ldquodefinir aindardquo aquilo que natildeo ldquoestaacute assentadordquo11 Uma determinada versatildeo do passado eacute um paracircmetro decisivo para grande parte dos argumentos anaacutelises e personagens de Nietzsche Em sua filosofia o passado ou antes a possibilidade de retrataacute-lo de conhececirc-lo desempenha uma espeacutecie de funccedilatildeo reguladora de referencial analiacutetico sobre a qual se articulam os mais variados assuntos

No caso da moral em particular a consideraccedilatildeo da historicidade dos valores analisados e da proacutepria anaacutelise eacute uma condiccedilatildeo de probidade a qualquer anaacutelise Haacute que se empreender uma comparaccedilatildeo das diversas morais balizada pelo conhecimento acurado de povos eras e tempos como estabelece o aforismo 186 de Aleacutem do bem e do mal Por conseguinte como Nietzsche adverte pelo menos desde Humano demasiado Humano a falta de sentido histoacuterico revela-se como o ldquodefeito hereditaacuterio dos filoacutesofosrdquo que encantados pela Circe da moral soacute enxergam diante dela a possibilidade de justificaacute-la sem avanccedilar agrave consideraccedilatildeo do valor de seus valores

Esta nova perspectiva permite a Nietzsche operar uma grande revoluccedilatildeo nos estudos sobre a moral O problema que tenho em vista todavia natildeo eacute esgotado por ela O fato de 10 Eacute certo que Schopenhauer jaacute havia colocado a questatildeo do valor [Wert] da histoacuteria no capiacutetulo 38 dos suplementos

do Mundo mas era preciso entatildeo conferir ao termo seu sentido ordinaacuterio e perguntar-se qual interesse tinha o estudo da histoacuteria com que finalidade se consagrar a ela como por exemplo jaacute fazia Schiller em sua ceacutelebre aula inaugural de 1789 mesmo se fosse para responder de maneira totalmente diversa (BINOCHE 2014 p 38)

11 Neste trecho Jensen faz alusatildeo a uma carta de Nietzsche a Overbeck de 23 de fevereiro de 1887 onde lemos ldquoFi-nalmente minha desconfianccedila agora se volta para a questatildeo de saber se a histoacuteria eacute realmente possiacutevel O que entatildeo algueacutem quer definir (feststellen) Algo que em um momento de acontecimento natildeo ldquoestaacute assentadordquo (feststand)

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

248

Nietzsche empreender uma anaacutelise histoacuterica ou natural da moral natildeo legitima justifica ou valida a proacutepria possibilidade de fazecirc-lo Por isso a necessidade de reconstruir o ambiente da discussatildeo

Por que devemos confiar nas descriccedilotildees ou mesmo interpretaccedilotildees histoacutericas de Nietzsche Por exemplo nos modos de valorar do nobre e do escravo em GM ou mesmo nesta diferenciaccedilatildeo Se Nietzsche como lemos nos apontamentos acima natildeo quer pensar ao modo de um platocircnico ou leibniziano com suas figuras eternas mas ao modo heraclitiano pela descriccedilatildeo do devir qual eacute a garantia de que tal descriccedilatildeo possua o miacutenimo apelo agrave realidade e de que no limite uma obra como GM natildeo seja simplesmente uma ficccedilatildeo Objetivamente que garantia temos de que a versatildeo da histoacuteria de Nietzsche seja melhor do que as outras de que devemos levaacute-la e levaacute-lo a seacuterio

Estas satildeo verdadeiras questotildees de ordem quando nos dispomos a examinar as criacuteticas de Nietzsche particularmente se consideramos sua iniciativa de erigir uma genealogia da moral Para adensar esta questatildeo gostaria de recuperar dois trechos do proacutelogo de GM na seccedilatildeo 07

O objetivo eacute percorrer a imensa longiacutenqua e recocircndita regiatildeo da moral da moral que realmente houve que realmente se viveu [] Meu desejo em todo caso era dar um olhar tatildeo agudo e imparcial uma direccedilatildeo melhor a direccedilatildeo da efetiva histoacuteria da moral prevenindo-se a tempo contra essas hipoacuteteses inglesas que se perdem no azul

ldquoRealmenterdquo ldquoolhar agudordquo ldquoimparcialrdquo ldquodireccedilatildeo melhorrdquo ldquoefetiva histoacuteriardquo Ao escrever assim Nietzsche parece apostar na possibilidade de descrever como ele ainda designaraacute na sequecircncia do mesmo texto o ldquoefetivamente constataacutevelrdquo o ldquorealmente acontecidordquo da histoacuteria da moral Em poucas palavras Nietzsche parece acreditar que a sua versatildeo da histoacuteria da moral eacute de alguma forma melhor ou por que natildeo dizer mais verdadeira do que as outras Que o cinza de suas anaacutelises como ele sugere na diferenciaccedilatildeo da mesma seccedilatildeo (que chamaraacute a atenccedilatildeo de Foucault) eacute mais verdadeiro ou realista do que o azul das hipoacuteteses inglesas Mas como Nietzsche pode garantir isso E ademais isso natildeo comprometeria uma das diretivas baacutesicas de seu pensamento afinal de contas apenas para recordar um apontamento que se tornou proverbial ldquonatildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildeesrdquo 7 [60] (KSA 12 213)

Natildeo espero responder a estas questotildees Na verdade meu intuito ao suscitaacute-las eacute estimular o debate e apontar para questotildees elementares que deveremos enfrentar no GT Genealogia e Criacutetica Para direcionar a questatildeo neste momento gostaria de indicar algumas diretivas gerais

Tendo a pensar nestas questotildees pelo prisma de uma historiografia mais complexa como aquela preconizada desde a segunda extemporacircnea que pondera sob diversos pontos de referecircncia a partir da perspectiva da vida Neste sentido eacute preciso considerar que embora agrave primeira vista Nietzsche pareccedila apostar na possibilidade de uma descriccedilatildeo quase realista positiva do passado capaz de oferecer uma versatildeo mais verdadeira do que a de seus oponentes o procedimento genealoacutegico natildeo tem em vista a verdade mas o valor O que move a genealogia da moral natildeo eacute uma vontade de verdade mas uma vontade de poder

A genealogia de Nietzsche articula um novo modus cogitanti balizado pela vontade de poder e o perspectivismo logo o seu entendimento do que significa descrever e explicar o

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

249

passado natildeo pode ser resumido agrave oposiccedilatildeo miacuteope entre verdade e falsidade A representaccedilatildeo que produz a genealogia eacute ldquoverdadeirardquo no registro de uma historiografia peculiar que pesa vantagens e desvantagens uma historiografia criacutetica agocircnica que se constroacutei pelo contraste e escrutiacutenio de diferentes morais e tambeacutem dos diferentes modos de avaliaacute-la psicoloacutegico fisioloacutegico histoacuterico O apontamento 38 [4] de 1885 (KSA 11 613) eacute elucidativo neste sentido ldquolsquoVerdadersquo no meu modo de pensar natildeo significa necessariamente o contraacuterio do erro mas nos casos mais fundamentais tatildeo somente a posiccedilatildeo de diferentes erros entre sirdquo

Aleacutem disso a representaccedilatildeo das atuais consideraccedilotildees de valor eacute reconstruiacuteda a partir de um procedimento genealoacutegico que natildeo busca alcanccedilar algo como um principio originaacuterio mecacircnico e causal mas que tenta retratar reconstruir tipologizar os eventos e rupturas que foram mais decisivos para o seu atual estado de cristalizaccedilatildeo Trata-se de disputar pela representaccedilatildeo uma (re)interpretaccedilatildeo do passado privilegiando elementos e registros que natildeo foram privilegiados por outros justamente porque a versatildeo dos outros natildeo tem em mira a perspectivaccedilatildeo do valor mas a sua justificaccedilatildeo

Este grau esta nuance de verdade eacute o que se parece disputar na genealogia e com ela Nietzsche parece se reconciliar com o seu ofiacutecio de filoacutelogo ainda que seja como quer a famigerada expressatildeo de Willamowitz uma ldquofilologia do futurordquo

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

250

Referecircncias bibliograacuteficasBEISER Frederick C Depois de Hegel a filosofia alematilde de 1840 a 1900 Trad Gabriel Ferreira Satildeo Leopoldo Editora da Unisinos 2017BINOCHE B Do valor da histoacuteria agrave histoacuteria dos valores In Cadernos Nietzsche vol1 no34 Satildeo Paulo JanJun 2014BRUSOTTI Marco Descriccedilatildeo comparativa versus Fundamentaccedilatildeo o quinto capiacutetulo de Para Aleacutem de Bem e Mal ldquoContribuiccedilatildeo agrave histoacuteria natural da moralrdquo In Cadernos Nietzsche vol37 no1 Satildeo Paulo JanJune 2016BURCKHARDT J A cultura do Renascimento um ensaio Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009DENAT Celine A filosofia e o valor da histoacuteria em Nietzsche Uma apresentaccedilatildeo das Consideraccedilotildees extemporacircneas In Cadernos Nietzsche 26 2010 JENSEN K A Nietzschersquos Philosophy of History Cambridge Cambridge University 2013NIETZSCHE Friedrich Kritische Studienausgabe (KSA) Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari Muumlnchen Walter de Gruyter 1988_____ Das vantagens e desvantagens da histoacuteria para a vida Satildeo Paulo Hedra 2017 PINKARD Terry German Philosophy (1760-1860) The Legacy of Idealism Cambridge Cambridge University Press 2002 SCHNADELBACH H Philosophy in Germany 1831-1933 Cambridge Cambridge University Press 1984WHITE Hayden Troacutepicos do discurso Ensaios sobre a criacutetica da cultura Satildeo Paulo Ed USP 2001

Ricardo de Oliveira Toledo

251

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias no projeto cultural de Nietzsche durante a deacutecada de 1870

Ricardo de Oliveira Toledo1

1 Da necessidade de um projeto culturalDesde 1862 Nietzsche conviveu com o projeto do rei prussiano Guilherme I de

transformar os trinta e nove reinos germacircnicos num uacutenico Estado Nacional Otto von Bismarck tambeacutem conhecido como o Chanceler de Ferro liderou tal empreitada A unificaccedilatildeo se efetivou em 1871 quando a Pruacutessia venceu a Franccedila na Guerra Fanco-Prussiana Na ocasiatildeo os estados do sul foram anexados ao novo territoacuterio alematildeo Criava-se entatildeo o II Reich (ou II Impeacuterio Alematildeo) que passaria a experimentar um raacutepido desenvolvimento militar poliacutetico e econocircmico Poreacutem uma unidade permanecia natildeo concluiacuteda a identidade cultural dos cidadatildeos alematildees O problema da cultura europeia e especialmente alematilde ocupou boa parte das reflexotildees de Jacob Burckhardt e Friedrich Nietzsche

Numa carta para Friedrich von Preen do iniacutecio de 1870 Burckhardt (2003 p 275-277) demonstrou sua apreensatildeo quanto ao futuro cultural da Alemanha Ponderava que os dois povos de grande espiacuterito do continente europeu os franceses e os alematildees estavam passando por uma completa mudanccedila em sua cultura O preocupante natildeo seria a guerra travada mas o novo espiacuterito que viria a se configurar naquela eacutepoca de guerras Noutra carta ao mesmo destinataacuterio do dia 26 de abril de 1872 Burckhardt (2003 p 269) reflete sobre as recentes consequecircncias da vitoacuteria de Bismarck e de sua administraccedilatildeo militarizada que em pouco tempo empurraria os trabalhadores miseravelmente para as faacutebricas dando lugar a um Estado industrialista O desenvolvimento de uma soberania cultural duradoura ainda estava em sua infacircncia

Da parte de Nietzsche sua intensa reflexatildeo cultural nos anos 1870 pode ser observada desde sua obra O nascimento da trageacutedia Nesse livro encontra-se aquilo que poderia ser chamado de o projeto cultural juvenil de Nietzsche tendo a arte como um canal de maior calibre Aparecia em seu texto um desejo pelo alvorecer de uma cultura germacircnica forte Ao mesmo tempo havia uma preocupaccedilatildeo muito bem delineada sobre o indiviacuteduo e sua relaccedilatildeo com a cultura Nos escritos posteriores cresceria gradativamente uma veemente criacutetica agrave germanicidade artificial e decadente do poacutes-unificaccedilatildeo Um fator determinante embora natildeo exclusivo para que Nietzsche reavaliasse o seu projeto cultural de O nascimento da trageacutedia intensificando as suas criacuteticas sobre a cultura foi seu envolvimento intelectual com Jacob Burckhardt

1 Doutor em Filosofia pela UERJ

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias

252

2 A amizade e o interesse de Nietzsche pelo pensamento cultural de BurckhardtPara Andler (1958) a relaccedilatildeo entre Nietzsche e Burckhardt influenciou a ambos

A amizade entre o filoacutelogo ainda respirando os ares de sua prodigiosa juventude e o historiador uma notaacutevel figura em toda Basileia comeccedilou em 1869 quando Nietzsche decide se fixar definitivamente na cidade suiacuteccedila Escutava com admiraccedilatildeo cada liccedilatildeo sobre a histoacuteria ministrada por Burckhardt Em 7 de novembro de 1870 escreveu a Carl von Gersdorff

Ontem agrave noite tive um prazer que eu gostaria que o senhor e todas as pessoas compartilhassem Jacob Burckhardt fez uma leitura livre sobre a ldquoGrandeza Histoacutericardquo que esteve totalmente de acordo com nosso pensamento e sentimento Esse excelente e extraordinaacuterio homem embora natildeo entregue agrave distorccedilatildeo eacute ainda inclinado a abafar a verdade Mas em nossas caminhadas confidenciais ele chama Schopenhauer de ldquonosso filoacutesofordquo (NIETZSCHE 1975 v 3 p 154)

De acordo com Rossi (1987) a despeito da comum simpatia que os amigos nutriam por Schopenhauer o entusiasmo wagneriano de Nietzsche destoava do espiacuterito inteiramente emancipado que Burckhardt sempre buscou para si2 Seu amor e fidelidade agrave verdade o impediam de uma conversatildeo eufoacuterica a uma corrente intelectual vigente em seu tempo O distanciamento da cotidianidade atraveacutes de uma liberdade aristocraacutetica permitiria a Burckhardt contemplar com mais clareza a histoacuteria Assim havia feito com o otimismo hegeliano dos alematildees os positivistas de matrizes comteanas e diga-se de passagem as ondas proletaacuterias Ele era um mestre de seu tempo de seu povo apesar disso distante desse conservando sempre seu peculiar modo aristocraacutetico Mostrava repugnacircncia pelo novo conhecimento odiava os congressos a academia e a vida puacuteblica

Garner (1990) indica que aos olhos de Burckhardt as tendecircncias romacircnticas oitocentistas das quais Wagner fazia parte eram caracteriacutesticas de uma sociedade que se fundamentava em ideais revolucionaacuterios3 Em 1848 enquanto ocorria uma revoluccedilatildeo liberal e imprimia-se o Manifesto Comunista de Marx e Engels o historiador via naquelas ideias propostas de transformaccedilotildees sociais e consequentemente culturais alheias ao seu aristocratismo e conservadorismo Em seu conjunto formavam um todo confuso desembocando em muitos casos no nacionalismo exagerado com suas frentes poliacuteticas em quase todos os rincotildees europeus Correspondendo-se com Hermann Shauenburg em 23 de agosto de 1848 Burckhardt (2003 p 214) declara que tudo estava desconjuntado e que sentia a desorganizaccedilatildeo da vida privada na Alemanha e uma Europa arruinada Rechaccedilava as sublevaccedilotildees camponesas e proletaacuterias aleacutem de seus resultados Entendia que a formaccedilatildeo dos Estados nacionais esfacelava as esferas tradicionais de poder e impunha laccedilos sociais artificiais

Fernandes (2006) destaca que Burckhardt era um homem cansado de seu tempo natildeo mantendo boa relaccedilatildeo com qualquer coisa lembrasse a Modernidade A partir de uma carta para Schauenburg de fevereiro de 18464 o comentador relembra uma lista de homens dos quais o suiacuteccedilo queria se desvencilhar Eram eles os radicais comunistas industriais doutos ambiciosos reflexivos abstratos absolutos filoacutesofos sofistas fanaacuteticos do Estado e 2 Para mais informaccedilotildees sobre o assunto recomenda-se a leitura de Chaves 20003 Cf tambeacutem Kitch 20054 Cf Burckhardt 2003 p 198-199

Ricardo de Oliveira Toledo

253

idealistas Lista semelhante pode ser elaborada com base nos escritos de Nietzsche (1988 v 2) pois em vaacuterias passagens haacute criacuteticas a tais tipos de homens como se pode constatar nos aforismos 16 235 472 473 475 de Humano demasiado humano Isto demonstra o quanto ambos estavam de acordo no que tange a vaacuterios aspectos de sua cotidianidade Natildeo sabiam como lidar com as transformaccedilotildees em especial poliacuteticas pelas quais seu continente passava guardando delas um pessimismo constante

Dentre os grandiosos legados de Burckhardt algo que natildeo se pode deixar escapar eacute sua contribuiccedilatildeo a respeito da compreensatildeo da redescoberta do homem em sua singularidade na Renascenccedila italiana tese pela qual Nietzsche tinha grande apreccedilo5 Sobre ela Nietzsche (1988 v 7 p 327) comenta por exemplo em uma anotaccedilatildeo de 18716 No entendimento de Burckhardt (2009) teria havido durante o Renascimento um verdadeiro florescimento do indiviacuteduo e com este o alvorecer de uma nova humanidade que prepararia a Europa para o mundo moderno Neste ponto concorda-se com Kahan (1992) de que natildeo se deve confundir em Burckhardt Modernidade com moderno O primeiro termo se refere agrave era marcada pelo industrialismo pela agitaccedilatildeo do trabalho e pela difusatildeo de ideais poliacuteticos das massas O segundo aponta para a passagem da Idade Meacutedia para a Moderna periacuteodo no qual o homem estaacute desejoso pelo novo

Na visatildeo de Garner (1990) Burckhardt acreditava que a descoberta do ser humano o despertar da personalidade e o desenvolvimento do indiviacuteduo satildeo as marcas por excelecircncia do Renascimento como a aurora da eacutepoca moderna Surgia no periacuteodo uma nova consciecircncia do mundo do ser humano de seu impulso criativo e da cultura A individualidade passou a preceder ao sentimento imperioso do grupo do clatilde da coletividade Apoacutes a quase vigiacutelia medieval na qual o homem somente se reconhecia diluiacutedo numa coletividade foi na Itaacutelia em que pela primeira vez o homem tornou-se um indiviacuteduo espiritual reconhecendo-se como tal Todavia qualquer liberdade natildeo era gratuita pois o indiviacuteduo teria que lutar para preservar sua autonomia Uma personalidade livre enfrentaria uma vida nem sempre confortaacutevel com suacutebitas mudanccedilas assaz violentas num mundo em que a opiniotildees poderiam trazer terriacuteveis consequecircncias dentre as quais a morte e o exiacutelio A soberania poliacutetica dos principados italianos se apoiava sobre um solo recorrentemente movediccedilo As guerras e traiccedilotildees ndash algumas efetivadas entre parentes - ameaccedilavam o poder dos governantes e consequentemente a vida de seus suacuteditos e pupilos ao mesmo tempo em que geravam uma necessidade de aprimoramento beacutelico e artiacutestico tanto em acircmbito individual quanto poliacutetico Kahan (1992) salienta que a vida sem riscos almejada pela socialdemocracia europeia e levada a cabo na Alemanha por Bismarck contrastava com a atmosfera renascentista imolava e impedia a formaccedilatildeo completa do indiviacuteduo a partir de seus impulsos

Ao discutir sobre aperfeiccediloamento da personalidade nos paracircmetros renascentistas Burckhardt medita pontualmente sobre o conceito de homem universal um lugar-comum entre os historiadores do Renascimento e que natildeo foi negligenciado por Nietzsche (1988 v 2) como se lecirc no aforismo 237 de Humano demasiado humano No trecho satildeo elencadas as caracteriacutesticas da cultura do Renascimento movida por forccedilas positivas a saber a emancipaccedilatildeo do pensamento desprezo das autoridades triunfo da educaccedilatildeoformaccedilatildeo (Bildung) sobre a tradiccedilatildeo entusiasmo pela ciecircncia desgrilhoamento do indiviacuteduo e busca pela perfeiccedilatildeo em suas criaccedilotildees Huizinga (1970) explica a figura do uomo universale 5 Cf Campione et al 20036 NachlassFragmento poacutestumo (NFFP) 18719[143]

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias

254

isto eacute do grande gecircnio do Renascimento como aquele indiviacuteduo de personalidade livre que pairava sobre doutrinas e moral sendo tambeacutem arrogante friacutevolo e dado ao prazer Embora fosse curioso por tudo que o cercava orientava-se por suas proacuteprias regras Mais do que isso guardava uma paixatildeo pagatilde pela beleza pelo mundo e pela vida Tanto para Burckhardt quanto para Nietzsche essas forccedilas estavam diminuiacutedas na cultura europeia do final do seacuteculo XIX

O desenvolvimento do uomo universale aparece no texto de Burckhardt (2009) como Bildung isto eacute o aacuterduo processo para que algueacutem seja capaz de se construir e dar forma a si mesmo Numa perspectiva cultural um indiviacuteduo que reuacutene em si o maacuteximo em potecircncia histoacuterica de seu tempo eacute capaz de expressar em suas realizaccedilotildees uma gama indescritiacutevel de propriedades de sua cultura Por conseguinte transforma-se num elo necessaacuterio um momento iacutempar de sua cultura 7 Poreacutem a dominaccedilatildeo de todos os elementos da cultura natildeo eacute o mesmo que erudiccedilatildeo Mais importante que o simples saber era a utilizaccedilatildeo do conhecimento em prol da criaccedilatildeo Para o uomo universale a sua capacidade criativa era fruto de uma investigaccedilatildeo apurada do aprimoramento teacutecnico do domiacutenio do proacuteprio corpo e dos materiais ao seu redor Quanto mais rigorosa fosse a formaccedilatildeo imposta a si mesmo maior seria a tarefa para a qual se destinaria Dessa forma o Renascimento contou com aquele tipo de indiviacuteduos que Burckhardt chamou de plenamente desenvolvidos

4 Burckhardt no pensamento cultural sobre o indiviacuteduo de NietzscheSatildeo diversos os elementos nos escritos posteriores a O nascimento da trageacutedia que

demonstram que a amizade com Burckhardt e a leitura de seus textos contribuiacuteram para a que Nietzsche elaborasse uma forte criacutetica ao germanismo industrialista posterior agrave unificaccedilatildeo alematilde bem como uma avaliaccedilatildeo do tipo de indiviacuteduos de seu tempo Em Ecce Homo de 1888 Nietzsche (1988 v 6) reitera sua objeccedilatildeo agrave cultura alematilde apontando que isto o motivou a escrever as Extemporacircneas na deacutecada anterior Preocupado com o legado cultural do triunfo alematildeo na guerra contra a Franccedila iniciou sua Primeira Consideraccedilatildeo extemporacircnea David Strauss o devoto e o escritor de 1873 dizendo que uma grande vitoacuteria eacute um grande perigo Ameaccedilador se tornou o fato de a opiniatildeo puacuteblica e os pensadores alematildees acreditarem que uma conquista beacutelica desembocaria na vitoacuteria de sua cultura Natildeo era a cultura francesa que havia sido derrotada Longe disso os alematildees se mantinham dependentes dela Nas palavras do filoacutesofo ldquosoacute quando houvermos imposto a esses [os franceses] uma cultura alematilde original se poderaacute falar tambeacutem de um triunfo da cultura alematilderdquo (NIETZSCHE 1988 v 1 p 163-164) Enquanto o impeacuterio alematildeo se materializava o espiacuterito alematildeo era extirpado de seu solo O indiviacuteduo civilizado do II Reich era deacutebil e sem qualquer nobreza indiferente agraves origens de seu povo Neste ponto concorda-se com o significado do termo ldquoWolkrdquo explicitado por Mosse (1988) bastante adequado ao ponto de vista adotado por Nietzsche na Extemporacircnea em questatildeo ldquoWolkrdquo denotaria um conjunto de indiviacuteduos unidos por uma essecircncia transcendente um sentimento de comunidade que eacute igualmente fonte da criatividade de seus membros No novo Estado os alematildees se uniam por laccedilos artificiais ou seja pela exaltaccedilatildeo de valores poliacuteticos destoantes da natureza vigorosa e aristocraacutetica de seus antepassados eram meros cidadatildeos Tendo isto em conta Nietzsche exigia uma direccedilatildeo e uma unidade para a cultura alematilde ateacute entatildeo inexistente ou quando muito confundida

7 Cf Burckhardt 1959 capV

Ricardo de Oliveira Toledo

255

com os momentos culturais que nada mais eram do que horas de folga ou de digestatildeo Os alematildees se tornaram incapazes de criar um estilo proacuteprio na multiplicidade natildeo harmocircnica de uma miscelacircnea policrocircmica e desorientada de estilos emprestados O verdadeiro homem de cultura o artista criativo original e vigoroso sem o qual natildeo se pode pensar a cultura de um povo em certa eacutepoca era um tipo rariacutessimo O problema da cultura alematilde acabava passando pelo crivo do filisteu culto com sua natildeo-cultura (ou pseudocultura) filisteia ou melhor sua barbaacuterie sistemicamente estendida a todos os setores da sociedade Como reconhece Piazzesi (2003) aleacutem de natildeo haver durante os anos 1870 e 1880 uma cultura de identidade nacional inequiacutevoca natildeo havia um ser alematildeo encarnado uniacutevoco e coerente Existiam somente algumas manifestaccedilotildees isoladas sobre as quais se conseguiria construir a ideia de identidade nacional As produccedilotildees da cultura alematilde eram menos fruto de sua originalidade e mais da assimilaccedilatildeo de formas estilos estiacutemulos e de sugestotildees daquilo que lhe era estranho De algum modo os alematildees estariam sempre num certo atraso com relaccedilatildeo ao restante da civilizaccedilatildeo europeia A tarefa de dar direccedilatildeo e unidade para a cultura deveria ser para indiviacuteduos corajosos que enfrentassem a apatia cultural dos poliacuteticos pensadores artistas imprensa e instituiccedilotildees de ensino da Alemanha

A Segunda Consideraccedilatildeo extemporacircnea Das vantagens e desvantagens da Histoacuteria para vida de 1874 que conta com menccedilatildeo direta a Burckhardt8 eacute um dos momentos emblemaacuteticos que demonstram como o pensamento de Nietzsche (1988 v 1) estava contagiado por sua amizade com o suiacuteccedilo No texto na esteira de Burckhardt o filoacutesofo alematildeo aponta que um povo a quem se atribui uma cultura deve ser algo de uacutenico sem cisotildees entre o que nele eacute interno e externo forma ou conteuacutedo O restabelecimento da sauacutede de um povo passa pela promoccedilatildeo de sua unidade de estilo no reencontro de seus instintos e sua lealdade Adverte que os indiviacuteduos de seu tempo se colocavam diante de um palco como espectadores da festa de uma exposiccedilatildeo mundial organizada pelos seus artistas histoacutericos O indiviacuteduo titubeava desconfiando de seus instintos confuso pelo que ocorria agrave sua volta percebendo como caoacutetica a relaccedilatildeo entre sua interioridade e o que manifesta de si mesmo Para se preservar assumia uma maacutescara de pessoa culta douta poeacutetica e poliacutetica simulando seriedade No fundo sua personalidade deacutebil escondia as anguacutestias e as miseacuterias iacutentimas do homem da Modernidade introspectivamente rancoroso enquanto deveria ser corajoso e seguro Neste sentido este tipo de homem natildeo poderia se assemelhar aos indiviacuteduos fortes vigorosos e destemidos que numa eacutepoca qualquer construiacuteram uma verdadeira cultura A histoacuteria soacute seria suportada pelas personalidades fortes enquanto as debilitadas a cancelariam Em consonacircncia com Burckhardt Nietzsche entendia que seria o homem superior de vasta experiecircncia quem escreveria a histoacuteria Por conseguinte como um arquiteto do futuro poderia julgar o passado A melhor experiecircncia eacute retirada do presente Eacute a partir deste que se extrai o material para que artisticamente se consiga erigir uma cultura permeada pelo instinto criativo de seus indiviacuteduos Logo ldquo[] a arte se contrapotildee agrave histoacuteria e somente quando a histoacuteria suporta ser uma obra de arte pode talvez manter ou [] suscitar instintosrdquo (NIETZSCHE 1988 v 1 p 296) Natildeo era isso o que resultava da educaccedilatildeo histoacuterica dos jovens indiviacuteduos da eacutepoca de Nietzsche Sem jamais ter vivenciado aquilo que aprende o jovem pensava ser profundo conhecedor de tudo e por este motivo experiente Seu

8 Em correspondecircncia com Nietzsche em 25 de fevereiro de 1874 Burckhardt comenta a citaccedilatildeo de seu nome na obra sobre a qual se sentia pouco agrave vontade pois a imagem ali descrita natildeo era inteiramente a sua (BUR-CKHARDT 2003 p 295-297)

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias

256

aprendizado comeccedilava pelo fim do caminho uma vez que aquilo que assimilou eacute o que o filoacutesofo alematildeo chamava de ldquovelharias da humanidaderdquo Com premissas equivocadas a Modernidade tentava procriar um tipo especiacutefico de indiviacuteduos incapaz de alcanccedilar uma vitalidade que permitisse a realizaccedilatildeo de algo mais elevado do que aquilo que jaacute vivenciava em seu modelo de cultura A cultura histoacuterica oitocentista natildeo primava o grande indiviacuteduo mas dava voz a uma massa de indiviacuteduos indiscerniacuteveis A massa somente mereceria algum meacuterito por trecircs aspectos pela imitaccedilatildeo imperfeita dos grandes indiviacuteduos como obstaacuteculo para esses e enfim como seus instrumentos Por isso os instintos da massa natildeo seriam relevantes jaacute que natildeo conseguiriam fundar qualquer elemento historicamente relevante

Denat (2011) considera que a Modernidade para Nietzsche eacute uma eacutepoca de deacutecadance da vida e da cultura Sua cultura eacute uma foacutermula moacuterbida e seu homem um tipo humano fraco mediacuteocre sem personalidade e sem forccedila Ao viver uma crise pode descobrir condiccedilotildees para sua cura Embora possa cambalear entre a recuperaccedilatildeo ou a morte a Modernidade comporta as possibilidades para que o homem consiga se superar Satildeo quatro as grandes caracteriacutesticas de seu indiviacuteduo A primeira delas eacute seu desejo ilimitado de saber num apetite descomedido pela histoacuteria mas que atormenta a cultura por sua febre historiadora Nada eacute triado por essa espeacutecie de homem historicista-teoacuterico tudo eacute bom A perspectiva praacutetica ou vital eacute perdida A segunda caracteriacutestica eacute sua falta de gosto que tem como causa as ideias modernas e democraacuteticas que igualam o valor de todas as coisas impedindo que escolhas sejam operadas Natildeo se consegue mais valorizar ou desprezar reter ou rejeitar autonomamente Pior os instintos democraacuteticos levam a uma hostilidade ao que eacute mais elevado A terceira eacute a de ser difuso e caoacutetico O homem moderno eacute uma mistura de todos os estilos como aparece na Primeira Extemporacircnea ou uma acumulaccedilatildeo grotesca Sua diversidade eacute na verdade uma mistura caoacutetica e sem unidade A uacuteltima caracteriacutestica e de maior relevacircncia que pressupotildee o caos e a ausecircncia de disciplina eacute a inquietude a extrema agitaccedilatildeo que paradoxalmente pode desembocar numa paralisia conduzindo o desejo de saber ao ceticismo o otimismo teoacuterico ao pessimismo a esperanccedila do conhecimento e do domiacutenio absolutos ao sentimento de fim de desespero - niilismo Enquanto um filoacutesofo meacutedico Nietzsche especifica que sua tarefa seria a de mostrar um caminho para a superaccedilatildeo do homem moderno abrindo espaccedilo para uma grande sauacutede

A profilaxia de uma cultura fraca seria permeada por uma reflexatildeo sobre a nebulosa situaccedilatildeo do indiviacuteduo quanto aos paradigmas educacionais das instituiccedilotildees de ensino Em Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino de 1872 Nietzsche (1988 v 1) indica que o objetivo capital da educaccedilatildeo contra uma pseudocultura deveria ser a Bildung da juventude e simultaneamente o futuro da cultura e a purificaccedilatildeo do espiacuterito alematildeo Ao inveacutes de a educaccedilatildeo se comprometer com a especializaccedilatildeo erudiccedilatildeo e a formaccedilatildeo profissional com fins utilitaristas para que os alunos aprendessem a ganhar dinheiro para que se tornassem operaacuterios deveria passar por uma reforma tendo como principal objetivo o homem superior Em seu julgamento aquela cultura era inautecircntica e de mau gosto As instituiccedilotildees de ensino submetidas ao Estado reforccedilavam a tutela deste a partir de interesses utilitaristas e industrialistas Era necessaacuteria uma libertaccedilatildeo do Estado de suas universidades e do tipo de cultura que criavam9

9 Cf NFFP 187432[67]

Ricardo de Oliveira Toledo

257

Na Terceira Consideraccedilatildeo extemporacircnea Schopenhauer como educador de 1874 Nietzsche (1988 v 1) rejeita a tutela do Estado sobre a cultura atraveacutes de uma educaccedilatildeo adestradora Denuncia que os professores submetidos agraves vantagens sociais de suas profissotildees como a subsistecircncia estaacutevel propiciada por seus salaacuterios providos pelo Estado empreenderiam uma educaccedilatildeo artificializadora Dos jovens alunos restaria o indiviacuteduo cocircmodo complacente que evita o fastiacutegio sem autodomiacutenio criativo e mero repetidor da opiniatildeo puacuteblica Este seria o tipo vantajosovaloroso para o Estado que se fortalece na preguiccedila e na covardia de seus cidadatildeos mais obedientes Daiacute Nietzsche em Schopenhauer como educador apelar para que o mundo da cultura fosse independente do Estado e para que os indiviacuteduos reconhecessem outra finalidade para sua existecircncia que natildeo seja servi-lo Em seu projeto cultural entende que gecircnio deve ser o propoacutesito da cultura (Cultur) No entanto o primado educacional da erudiccedilatildeo continuava sendo um obstaacuteculo o ciacuterculo dos eruditos que se denominavam pessoas cultas bem como o tecnicismo natildeo favorecia mas impedia ldquoo desenvolvimento da cultura (Cultur) e a procriaccedilatildeo do gecircnio []rdquo (NIETZSCHE 1988 v 1 p 358)

Consideraccedilotildees finaisNietzsche foi um pensador da cultura Desde O nascimento da trageacutedia iniciou a

elaboraccedilatildeo de um projeto cultural para uma identidade do espiacuterito germacircnico O projeto sempre alterado pode ser lido com nuances proacuteprias nos escritos de 1870 dos quais foram destacados Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino e as trecircs primeiras Consideraccedilotildees extemporacircneas A expressatildeo ldquoprojeto culturalrdquo natildeo aparece nos textos do filoacutesofo alematildeo mas eacute cunhado nesta investigaccedilatildeo para expressar o que se entende como uma criacutetica cultural que possuiacutea expectativas a cura de uma cultura em crise atraveacutes do indiviacuteduo forte soberano de espiacuterito livre capaz de estender o processo criativo que deu forma a si mesmo agrave cultura tornando-se para ela um elo indispensaacutevel O pensamento de Nietzsche sobre o lugar e o papel do indiviacuteduo na cultura dialoga em vaacuterios aspectos com as reflexotildees que abordam a mesma temaacutetica em Burckhardt Para esse a cultura de seu tempo estava debilitada por estar alienada aos propoacutesitos do Estado industrialista Semelhante julgamento eacute visto em Nietzsche que atenta para os interesses econocircmicos e a tutela do Estado como prejudiciais para a cultura Burckhardt via com preocupaccedilatildeo o legado cultural da guerra entre a Franccedila e a Pruacutessia e a unificaccedilatildeo poliacutetica alematilde Este eacute outro ponto de congruecircncia com Nietzsche que natildeo percebia garantias de que a vitoacuteria alematilde seria a vitoacuteria do espiacuterito alematildeo Acreditava que a cultura germacircnica reduzida a uma cultura da naccedilatildeo alematilde estava apinhada de materiais estranhos e disformes sendo caoacutetica Para Burckhardt o Renascimento italiano foi um momento em que a instabilidade poliacutetica a competiccedilatildeo entre as cidades o entusiasmo pelo novo e o secularismo permitiram que ocorresse o desenvolvimento de indiviacuteduos soberanos e do uomo universale Isto contrastava com a realidade educacional de seu tempo muitas vezes subserviente ao Estado industrialista A formaccedilatildeo para o desenvolvimento de uma personalidade plena era colocada de lado para dar lugar agrave criaccedilatildeo de indiviacuteduos cultos ou operaacuterios das faacutebricas que buscavam sobretudo a organizaccedilatildeo o progresso a estabilidade e o bem-estar O grande indiviacuteduo indispensaacutevel para a cultura estava ameaccedilado A comparaccedilatildeo de Burckhardt entre a cultura do Renascimento italiano e a situaccedilatildeo da cultura na Alemanha na deacutecada de 1870 tambeacutem ocorre em Nietzsche A ideia de um Estado perfeito organizado e voltado para o bem-estar dos cidadatildeos poderia impedir o florescimento do grande indiviacuteduo Em contrapartida permitiria o sucesso da pseudocultura do filisteiacutesmo cultural e do indiviacuteduo vantajoso por proclamar os valores

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias

258

do Estado ou por ser um trabalhador Nietzsche desejava uma educaccedilatildeo que tivesse como grande finalidade a cultura livre das amarras do Estado que estimulasse o desenvolvimento de personalidades singulares e criativas Ao contraacuterio disso o ensino puacuteblico era nivelador massificador e portanto uniformizador O pensador alematildeo considerava necessaacuterio que o gecircnio fosse o propoacutesito da cultura pois quase todos os indiviacuteduos estavam debilitados Embora as reflexotildees de Burckhardt e de Nietzsche sejam atuais e bastante relevantes o esforccedilo desta pesquisa foi acima de tudo de fazer uma revisatildeo do pensamento de ambos para como consequecircncia obter maior compreensatildeo dos anseios do filoacutesofo alematildeo para a cultura

Ricardo de Oliveira Toledo

259

Referecircncias bibliograacuteficasANDLER C Nietzsche sa vie et sa penseacutee Les preacutecurseurs de Nietzsche La jeunesse de Nietzsche Paris Gallimard 1958BURCKHARDT J A Cultura do Renascimento na Itaacutelia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Cartas Trad Renato Rezende Rio de Janeiro Topbooks 2003_____ Meditazioni sulla storia universale Firenze Sansoni 1959CAMPIONE G et al Nietzsches persoumlnliche Bibliothek Berlin New York Walter de Gruyter 2003CHAVES E Cultura e poliacutetica O jovem Nietzsche e Jakob Burckhardt In Cadernos Nietzsche Satildeo Paulo n 9 p 41-66 2000CURT P Janz Vita di Nietzsche Bari Caterza 1982 Vol IIIDENAT Ceacuteline A concepccedilatildeo nietzschiana de homem moderno ou a modernidade como momento ldquocriacuteticordquo da histoacuteria In As ilusotildees do eu Spinoza e Nietzsche (Org MARTINS Andreacute SANTIAGO Homero OLIVA Luis Ceacutesar) Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2011FERNANDES C S Jacob Burckhardt e a preparaccedilatildeo para ldquoA Cultura do Renascimento na Itaacuteliardquo Fecircnix ndash Revista de Histoacuteria e Estudos Culturais v3 n 3 p1-18 2006GARNER R Jacob Burckhardt as a Theorist of Modernity Reading ldquoThe Civilization of the Renaissance in Italyrdquo Sociological Theory v 8 n 1 p 48-57 1990HUIZINGA J The problem of Renaissance In Men and ideas Essays on History the Middles Ages the Renaissance Trad J Holmes e H Marle New York Harper Torchbooks 1970KAHAN A S Aristocratic Liberalism The social thought of Jacob Burckhardt John Stuart Mill and Alexis de Tocqueville New York Oxford University Press 1992KITCH M Jacob Burckhardt Romanticism and cultural History In Historical Controversies and Historians W Lamont (org) London amp Pennsylvania Taylor amp Francis 2005MOSSE G The crisis of german idelology New York Grosset and Dunlap 1998NIETZSCHE F Saumlmtiliche Werke Kritische Studienausgabe ndash KSA (Herausgegeben von G Colli und M Montinari) Berlin New York Walter de Gruyter 1988 15 Baumlnden (15 volumes)_____ Brifwechsel Kritische Gesamtausgabe ndash KGB (Herausgegeben von G Colli und M Montinari) Berlin de Gruyter 1975 8 Baumlnden (8 volumes)PIAZZESI C Nietzsche Fisiologia dell rsquoarte e deacutecadence Lecce Conte Editore 2003ROSSI R Nietzsche e Burckhardt Genova Tilgher 1987

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno

260

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno retorno O resgate da inocecircncia do vir-a-ser

Roberta Franco Saavedra1

Uma das questotildees fundamentais da histoacuteria da filosofia ocidental eacute a anaacutelise das engrenagens dos pressupostos e das implicaccedilotildees das doutrinas morais Tradicionalmente os conceitos de ldquoculpardquo e ldquocastigordquo desempenham um importante papel na atribuiccedilatildeo de valores morais Tais conceitos fundamentam-se na crenccedila de que os indiviacuteduos satildeo dotados de uma suposta ldquovontade livrerdquo ou ldquolivre-arbiacutetriordquo o que em uacuteltima instacircncia permite a instituiccedilatildeo da imputabilidade ou responsabilidade moral Nietzsche como criacutetico ferrenho da tradiccedilatildeo de pensamento ocidental teria buscado desmistificar os pressupostos que garantem a sustentaccedilatildeo da chamada ldquoordem moral do mundordquo Uma das noccedilotildees centrais de sua filosofia consiste na concepccedilatildeo do eterno retorno e traz agrave tona uma interpretaccedilatildeo que reveste de necessidade o mundo e a existecircncia e destitui de sentido a oposiccedilatildeo metafiacutesica instaurada entre necessidade (mundo da natureza) e liberdade (mundo da vontade humana) A aposta no eterno retorno desestabiliza uma seacuterie de elementos cristalizados pela tradiccedilatildeo metafiacutesica mas aqui nos interessa especificamente a criacutetica agrave crenccedila no ldquolivre-arbiacutetriordquo humano Partindo disso este trabalho tem como objetivo principal investigar lanccedilando matildeo de uma perspectiva do eterno retorno a possiacutevel relaccedilatildeo de continuidade ou complementaridade e analisar os pontos convergentes entre dois textos nos quais Nietzsche trata do problema da imputabilidade moral Satildeo eles ldquoa faacutebula da liberdade inteligiacutevelrdquo (presente no corpo da obra Humano demasiado humano publicado em 1878) e o ldquoerro do livre-arbiacutetriordquo (compondo o capiacutetulo intitulado ldquoOs quatro grandes errosrdquo de Crepuacutesculo dos Iacutedolos publicado em 1888) Pretende-se diante disso investigar de que maneira a concepccedilatildeo do eterno retorno eacute uma forma de subversatildeo em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia ocidental no que concerne agrave questatildeo da imputabilidade moral ndash a partir da anaacutelise das duas possiacuteveis formas de abordagem do problema ndash e mapear os artifiacutecios dos quais Nietzsche se vale para investir no seu projeto de resgate da inocecircncia do vir-a-ser ndash inocecircncia que lhe foi despojada com a imposiccedilatildeo da crenccedila na imputabilidade ndash visando em uacuteltima instacircncia agrave inauguraccedilatildeo de um novo registro de pensamento e moralidade

O projeto da filosofia nietzschiana empenha-se sobretudo na criacutetica agrave metafiacutesica tradicional e na aposta em uma transvaloraccedilatildeo de todos os valores Em Assim falou Zaratustra por exemplo deparamo-nos com a radicalidade da criacutetica nietzschiana agrave fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da existecircncia o autor para simbolizar sua filosofia anti-metafiacutesica se vale da imagem do ldquomeio-diardquo ou seja o momento sem sombra de dicotomias suprimidas de afirmaccedilatildeo da existecircncia de uma uacutenica realidade Para marcar o ldquofim do longo errordquo 1 Doutoranda do PPGFUFRJ

Roberta Franco Saavedra

261

o filoacutesofo tambeacutem apresenta o personagem Zaratustra ldquoMeio-dia momento da sombra mais breve fim do longo erro apogeu da humanidade INCIPIT ZARATUSTRA [comeccedila Zaratustra])rdquo (Ibidem) Em sua obra autobiograacutefica Nietzsche refere-se a Assim falou Zaratustra como o auge da parte afirmativa de seu pensamento O autor presta cara homenagem a esta obra conferindo-lhe um valor superior em relaccedilatildeo aos outros escritos e cedendo a ela um lugar agrave parte (NIETZSCHE 2008 ldquoAssim Falou Zaratustrardquo sect 8 p 85) chegando ateacute mesmo a descrevecirc-la como o maior presente que ateacute agora fora ofertado agrave humanidade (Ibidem Proacutelogo sect 4 p 16) A razatildeo pela qual Nietzsche valoriza tatildeo enfaticamente Zaratustra deve-se agrave concepccedilatildeo fundamental da obra ldquoo pensamento do eterno retornordquo entendido como ldquoa mais elevada forma de afirmaccedilatildeo que se pode em absoluto alcanccedilarrdquo (Ibidem ldquoAssim Falou Zaratustrardquo sect 1 p 79) Em Assim falou Zaratustra o eterno retorno eacute trazido agrave tona atraveacutes de formas variadas e acompanhado de uma riqueza de siacutembolos a partir de uma linguagem poeacutetico-dramaacutetica mais ajustada com uma concepccedilatildeo artiacutestica existencial do que uma fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da existecircncia Partindo disso trabalharemos aqui com a hipoacutetese segundo a qual o pensamento do eterno retorno natildeo soacute confronta a tradiccedilatildeo metafiacutesica como tambeacutem cria outro registro de pensamento aliado com a arte operando para aleacutem das dualidades metafiacutesicas e efetivamente viabilizando o projeto nietzschiano de superaccedilatildeo da metafiacutesica

Apesar de compor o pensamento central de Assim falou Zaratustra o eterno retorno irrompe pela primeira vez em A gaia ciecircncia surgindo atraveacutes de uma forma de elaboraccedilatildeo que corrobora a tese de que se trata de uma ficccedilatildeo poeacutetica destituiacuteda de uma busca dogmaacutetica pela verdade (ou seja alheia a uma pretensatildeo ontoloacutegica) No livro IV de A gaia ciecircncia a anunciaccedilatildeo do eterno retorno se daacute nos seguintes termos ldquoE se um dia ou uma noite um democircnio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidatildeo e dissesse lsquoEsta vida como vocecirc a estaacute vivendo e jaacute viveu vocecirc teraacute de viver mais uma vez e por incontaacuteveis vezes ()rsquordquo (NIETZSCHE 2001 IV sect 341 p 230)

O gesto de apresentar o eterno retorno como hipoacutetese ficcional natildeo soacute ratifica e radicaliza a criacutetica agrave verdade ndash concebida como valor superior ndash como tambeacutem desmistifica uma seacuterie de conceitos cristalizados ao longo da tradiccedilatildeo de pensamento ocidental como as noccedilotildees de sujeito livre-arbiacutetrio temporalidade linear etc Conceber o eterno retorno tal como exposto por Nietzsche nos incita a pensar um novo modo de conceber a existecircncia que natildeo se ateacutem a nenhuma espeacutecie de fundamento metafiacutesico e que consiste na adoccedilatildeo de uma visatildeo traacutegica do mundo que afirma incondicionalmente a vida sem o objetivo de corrigi-la atraveacutes dos mecanismos da razatildeo

Para elucidar mais detidamente a ideia central do pensamento do eterno retorno podemos nos debruccedilar sobre uma passagem de Zaratustra na qual seus animais o reverenciam como ldquoo mestre do eterno retornordquo e com a imagem da ampulheta ndash tambeacutem presente no ldquomaior dos pesosrdquo de A gaia ciecircncia - elucidam essa outra concepccedilatildeo de temporalidade de histoacuteria de interpretaccedilatildeo da existecircncia

Pois teus animais bem sabem oacute Zaratustra quem tu eacutes e tens de tornar-te eis que eacutes o mestre do eterno retorno ndash eacute esse agora o teu destino[]Vecirc sabemos o que ensinas que todas as coisas eternamente retornam e noacutes mesmos com elas e que eternas vezes jaacute estivemos aqui juntamente com todas as coisas

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno

262

Ensinas que haacute um grande ano do vir-a-ser uma monstruosidade de grande ano tal como uma ampulheta ele tem de virar sempre de novo a fim de novamente escorrer e transcorrer -- de modo que todos esses anos satildeo iguais a si mesmos nas coisas maiores e tambeacutem nas menores ndash de modo que noacutes mesmos somos iguais a noacutes mesmos em cada grande ano nas coisas maiores e tambeacutem nas menores (NIETZSCHE 2011 ldquoO convalescenterdquo p 211 Grifos do autor)

O eterno retorno consiste portanto na repeticcedilatildeo ciacuteclica e eterna de todos os eventos a ampulheta eacute eternamente virada e tudo retorna incessantemente Nesse sentido podemos nos perguntar acerca das reverberaccedilotildees disso em um dos problemas claacutessicos da filosofia moderna como o problema da liberdade da vontade pois se o funcionamento do mundo ndash e dos sujeitos ndash opera sob o regime da necessidade como seria possiacutevel admitir ndash e demonstrar ndash a existecircncia do livre-arbiacutetrio humano Na afirmaccedilatildeo ilimitada e irrestrita do devir presente no pensamento do eterno retorno podemos dizer que natildeo existe ldquoliberdade da vontaderdquo ndash pelo menos natildeo de forma anaacuteloga agrave concepccedilatildeo tradicional do termo A partir dessa breve exposiccedilatildeo da perspectiva do eterno retorno estaremos em condiccedilotildees de melhor compreender o sentido da criacutetica que Nietzsche tece agrave ldquoliberdade inteligiacutevelrdquo e ao ldquoerro do livre-arbiacutetriordquo como modo de interpretar os desdobramentos do pensamento do eterno retorno no acircmbito do problema filosoacutefico que versa sobre as vicissitudes da dicotomia necessidadeliberdade

Um dos conceitos engendrados e enraizados pela tradiccedilatildeo metafiacutesica que o eterno retorno desestabiliza eacute a crenccedila no livre-arbiacutetrio ou na liberdade da vontade humana A concepccedilatildeo do eterno retorno traz agrave tona uma interpretaccedilatildeo que reveste de necessidade o mundo e a existecircncia e destitui de sentido a oposiccedilatildeo metafiacutesica instaurada entre necessidade (mundo da natureza) e liberdade (mundo da vontade humana) Eacute neste sentido que Nietzsche tece sua criacutetica agrave crenccedila no livre-arbiacutetrio em ldquoa faacutebula da liberdade inteligiacutevelrdquo o filoacutesofo descreve as fases principais da histoacuteria dos sentimentos em virtude dos quais os indiviacuteduos satildeo tornados responsaacuteveis por seus atos denominando esse processo como a histoacuteria dos sentimentos morais Nietzsche elenca a sequumlecircncia de ldquoerrosrdquo que por fim resulta na instituiccedilatildeo da imputabilidade moral

Primeiro chamamos as accedilotildees isoladas de boas ou maacutes sem qualquer consideraccedilatildeo por seus motivos apenas devido agraves consequumlecircncias uacuteteis ou prejudiciais que tenham Mas logo esquecemos a origem dessas designaccedilotildees e achamos que a qualidade de ldquobomrdquo ou ldquomaurdquo eacute inerente agraves accedilotildees sem consideraccedilatildeo por suas consequumlecircncias () Em seguida introduzimos a qualidade de ser bom ou mau nos motivos e olhamos os atos em si como moralmente ambiacuteguos Indo mais longe damos o predicado bom ou mau natildeo mais ao motivo isolado mas a todo o ser de um homem do qual o motivo brota como a planta do terreno (NIETZSCHE 2005 sect 39 p 45)

Os juiacutezos de valor moral ldquobomrdquo e ldquomaurdquo pressupotildeem e se sustentam na crenccedila na liberdade do sujeito que supostamente pratica a accedilatildeo pois se a accedilatildeo fosse considerada como executada de forma necessaacuteria (qual seja natildeo livre) tornar-se-ia inviaacutevel qualquer atribuiccedilatildeo de culpa qualquer espeacutecie de responsabilizaccedilatildeo Em sua abordagem Nietzsche procura demonstrar como os artifiacutecios de criaccedilatildeo do fundamento da imputabilidade foram articulados primeiramente os predicados ldquobomrdquo e ldquomaurdquo eram associados meramente

Roberta Franco Saavedra

263

agraves accedilotildees para posteriormente serem expandidos e atribuiacutedos ao ser humano isto eacute agrave totalidade do sujeito Em certo sentido podemos dizer que a condiccedilatildeo de possibilidade de todo julgamento moral eacute a crenccedila na liberdade da vontade isto eacute na liberdade do sujeito que pratica as accedilotildees ndash as quais em consonacircncia com esse sistema de raciociacutenio sustentado pelo edifiacutecio moral ndash seratildeo conformes agrave ldquonatureza moralrdquo do sujeito Como pontua Oswaldo Giacoacuteia em Nietzsche versus Kant

a teoria do caraacuteter inteligiacutevel tanto em Kant como em Schopenhauer eacute um recurso dos filoacutesofos para assegurar a legitimidade de conceitos fundamentais da moralidade tais como responsabilidade e imputaccedilatildeo e com isso justificar a atribuiccedilatildeo de culpa (GIACOacuteIA 2012 p 152)

Apoacutes elencar os erros oriundos da significaccedilatildeo moral da existecircncia Nietzsche anuncia o seu diagnoacutestico

E afinal descobrimos que tampouco este ser [o homem] pode ser responsaacutevel na medida em que eacute inteiramente uma consequumlecircncia necessaacuteria e se forma a partir dos elementos e influxos de coisas passadas e presentes portanto que natildeo se pode tornar o homem responsaacutevel por nada seja por seu ser por seus motivos por suas accedilotildees ou por seus efeitos Com isso chegamos ao conhecimento de que a histoacuteria dos sentimentos morais eacute a histoacuteria de um erro o erro da responsabilidade que se baseia no erro do livre-arbiacutetrio [] Logo porque o homem se considera livre natildeo porque eacute livre ele sofre arrependimento e remorso ndash (NIETZSCHE 2005 sect 39 p 45 ndash 46)

De acordo com o pensamento do eterno retorno o mundo eacute regido pela necessidade e o ldquoindiviacuteduordquo 2 natildeo pode ser considerado responsaacutevel por si mesmo porque estaacute inserido no ldquotodordquo

cada um eacute necessaacuterio eacute um pedaccedilo de destino pertence ao todo estaacute no todo ndash natildeo haacute nada que possa julgar medir comparar condenar nosso ser pois isto significaria julgar medir comparar condenar o todo Mas natildeo existe nada fora do todo (NIETZSCHE 2006 VI sect 8 p 46 Grifos do autor)

A responsabilidade natildeo deve ser atribuiacuteda a um suposto ldquosujeito livrerdquo porque toda vida opera conforme as leis de uma espeacutecie de ldquofatalidaderdquo Eacute neste sentido que ldquoNingueacutem eacute responsaacutevel pelo fato de existir por ser assim ou assado por se achar nessas circunstacircncias nesse ambienterdquo (Ibidem) Verificamos ainda uma nova concepccedilatildeo de tempo que parece inaugurar uma espeacutecie de temporalidade circular que unifica natildeo soacute ldquosujeitordquo e ldquomundordquo como tambeacutem passado presente e futuro ldquoA fatalidade do seu ser natildeo pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e seraacuterdquo (Ibidem) Se tudo eacute necessaacuterio entatildeo tudo estaacute contido no ldquofadordquo ndash ateacute mesmo as objeccedilotildees e resistecircncias a essa ideia afinal

cada ser humano eacute ele proacuteprio uma porccedilatildeo de fado quando ele pensa contrariar o fado [] justamente nisso se realiza tambeacutem o fado a luta eacute uma ilusatildeo mas igualmente a resignaccedilatildeo ao fado todas essas ilusotildees se acham incluiacutedas no fado (NIETZSCHE 2008 ldquoO andarilho e sua sombrardquo sect 61 p 199)

2 Entendido aqui como ficccedilatildeo pois a ideia de unidade natildeo comporta para Nietzsche as inuacutemeras relaccedilotildees entre forccedilas que compotildeem um indiviacuteduo

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno

264

Dessa forma Nietzsche desarticula e esvazia de sentido as engrenagens das dicotomias metafiacutesicas ao suprimir a oposiccedilatildeo entre ser humano e mundo assim como a oposiccedilatildeo entre sujeito e objeto ao contraacuterio ambos formam o ldquotodordquo e portanto encontram-se sob o mesmo regime de funcionamento Segundo Giacoacuteia

[] dissolve-se a oposiccedilatildeo comum a Platatildeo Kant e Schopenhauer entre necessidade mecacircnica vigente na natureza e liberdade (natildeo fenomecircnica pois o homem empiacuterico como parte da natureza encontra-se submetido agrave seacuterie necessaacuteria de causas invariaacuteveis liberdade portanto transcendental apreensiacutevel do ponto de vista natildeo fenomecircnico fora das coordenadas de tempo espaccedilo e causalidade natural ndash o uacuteltimo reduto metafiacutesico em que se abrigou na modernidade a faacutebula do livre-arbiacutetrio e com ele a possibilidade de justificaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo dos juiacutezos de valor moral e imputaccedilatildeo) (GIACOacuteIA 2012 p 153)

O termo ldquoliberdade inteligiacutevelrdquo eacute denunciado por Nietzsche como uma faacutebula porque essa concepccedilatildeo de liberdade baseia-se em princiacutepios metafiacutesicos ndash pois de acordo com a tradiccedilatildeo o mundo fenomecircnico (aparente) eacute regido pela necessidade mecacircnica ao passo que o mundo inteligiacutevel (isto eacute o mundo verdadeiro metafiacutesico) garantiria o fundamento da liberdade humana A histoacuteria dos sentimentos morais eacute interpretada como o desdobramento de uma seacuterie de equiacutevocos conceituais porque se sustenta em pressupostos forjados ndash ou seja em nenhuma medida ldquoaprioriacutesticosrdquo ndash como as noccedilotildees de sujeito liberdade inteligiacutevel imputabilidade moral etc

Na anaacutelise do ldquoerro do livre-arbiacutetriordquo a discussatildeo eacute desenvolvida em outros termos passando pelo crivo da criacutetica a partir de uma avaliaccedilatildeo mais declaradamente sintomatoloacutegica Se em Humano demasiado humano Nietzsche relata os rumos do percurso da histoacuteria dos sentimentos morais em Crepuacutesculo dos iacutedolos o filoacutesofo busca responder agraves questotildees de ordem mais psicoloacutegica afinal por que querer julgar E por que querer incutir culpa A origem da responsabilidade tem como pressuposto fisioloacutegico a fraqueza instintiva o objetivo do advento da responsabilidade (que viabilizou a criaccedilatildeo da culpa) consistiu na justificaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo da puniccedilatildeo Para Nietzsche os indiviacuteduos foram considerados livres com o intuito de permitir ou autorizar os mecanismos intriacutensecos ao ato do julgamento e sua consequumlente puniccedilatildeo A gecircnese da liberdade da vontade fora localizada no campo da consciecircncia ndash entendida como instacircncia produtora da vontade e governada pela contingecircncia ndash o que corresponde para o filoacutesofo alematildeo ldquoagrave mais fundamental falsificaccedilatildeo da moeda em questotildees psicoloacutegicasrdquo

Onde quer que responsabilidades sejam buscadas costuma ser o instinto de querer julgar e punir que aiacute busca O vir-a-ser eacute despojado de sua inocecircncia quando se faz remontar esse ou aquele modo de ser agrave vontade a intenccedilotildees a atos de responsabilidade a doutrina da vontade foi essencialmente inventada com o objetivo da puniccedilatildeo isto eacute de querer achar culpado () Os homens foram considerados lsquolivresrsquo para poderem ser julgados ser punidos ndash ser culpados em consequumlecircncia toda accedilatildeo teve de ser considerada como querida e a origem de toda accedilatildeo localizada na consciecircncia (ndash assim a mais fundamental falsificaccedilatildeo de moeda em questotildees psicoloacutegicas transformou-se em princiacutepio da psicologia mesma) (NIETZSCHE 2006 VI sect 7 p 45 ndash 46 Grifos do autor)

Roberta Franco Saavedra

265

O pensamento do eterno retorno instaura um caraacuteter de necessidade em cujo indiviacuteduo ndash concebido natildeo como sujeito mas como parte do todo como jogo instintivo de forccedilas ndash estaacute submetido O instinto de querer julgar e punir pulsa em um tipo de vida enfraquecido que se ressente contra o passado e eacute incapaz de afirmar a existecircncia tal como ela se apresenta procurando recalcar seus aspectos mais problemaacuteticos A puniccedilatildeo eacute um modo de consumaccedilatildeo da vinganccedila daqueles que natildeo possuem forccedila suficiente para afirmar o necessaacuterio para suportar o fado Eacute neste sentido que a repeticcedilatildeo eterna e circular de todos os eventos potildee em xeque uma significaccedilatildeo ontoloacutegica da existecircncia se absolutamente tudo eacute necessaacuterio e se natildeo haacute instacircncia ontoloacutegica para ldquosalvarrdquo a liberdade da vontade os juiacutezos morais de imputaccedilatildeo satildeo insustentaacuteveis

Para arrasar o edifiacutecio metafiacutesico e efetivamente viabilizar seu projeto Nietzsche inscreve-se em outro registro para reclamar o resgate da inocecircncia do vir-a-ser ndash inocecircncia que lhe foi despojada com a artimanha da responsabilidade

O fato de que ningueacutem mais eacute feito responsaacutevel de que o modo do ser natildeo pode ser remontado a uma causa prima () apenas isto eacute a grande libertaccedilatildeo ndash somente com isso eacute novamente estabelecida a inocecircncia do vir-a-ser (NIETZSCHE 2006 VI sect8 p 46 ndash 47 grifos do autor)

Importante ressaltar que o pensamento do eterno retorno natildeo incorre em uma concepccedilatildeo radicalmente determinista natildeo se trata da enunciaccedilatildeo de um fatalismo cego mas da incitaccedilatildeo de um pathos afirmativo em relaccedilatildeo agrave existecircncia A partir da compreensatildeo dessa nova forma de interpretaccedilatildeo abrem-se as possibilidades de ressignificaccedilatildeo de termos e conceitos exaustivamente utilizados pela tradiccedilatildeo como sinaliza Giacoacuteia

A paulatina compreensatildeo de que tudo eacute necessaacuterio conduz ao refinamento do sentimento e da ideia de justiccedila ndash mas de uma justiccedila que natildeo mais condena e pune senatildeo que absolve que faz compreender tambeacutem que tudo eacute inocecircncia pois tudo se encadeia numa mesma e uacutenica corrente do vir-a-ser (GIACOacuteIA 2012 p 153 Grifos do autor)

A noccedilatildeo de justiccedila adquire assim uma nova roupagem desvinculando-se de qualquer espeacutecie de vinganccedila Giorgio Agamben tambeacutem atenta agrave outra possiacutevel ressignificaccedilatildeo presente na filosofia de Nietzsche (AGAMBEN 2015 p 47) outro conceito ldquotransvaloradordquo eacute o de redenccedilatildeo ndash que historicamente eacute um termo apropriado pela doutrina cristatilde ndash ldquoZaratustra eacute aquele que ensina agrave vontade a lsquoquerer para traacutesrsquo a transformar todo lsquoassim foirsquo em um lsquoassim eu quisrsquo lsquoapenas isto se chama redenccedilatildeorsquordquo

O pensamento do eterno retorno para aleacutem de esvaziar o sentido das produccedilotildees metafiacutesicas cristalizadas na cultura ocidental estabelece uma nova interpretaccedilatildeo da existecircncia que consiste sobretudo na afirmaccedilatildeo da inocecircncia Inocecircncia entendida como constitutiva do pathos que diz respeito a todas as partes do todo ndash movimento que requer para ser plenamente compreendido o entendimento de que eacute absurdo separar a forccedila daquilo que ela pode e a vontade daquilo que lhe corresponde diretamente (DELEUZE 2018 p 36) pois a inocecircncia eacute o jogo da existecircncia da forccedila e da vontade e a primeira aproximaccedilatildeo da inocecircncia consiste na natildeo separaccedilatildeo da forccedila e no natildeo desdobramento da vontade

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno

266

Referecircncias bibliograacuteficasDELEUZE Gilles Nietzsche e a filosofia Trad de Mariana de Toledo Barbosa Oviacutedio de Abreu Filho Satildeo Paulo n-1 ediccedilotildees 2018GIACOIA JUNIOR Oswaldo Nietzsche x Kant uma disputa permanente a respeito de liberdade autonomia e dever Rio de Janeiro Casa da Palavra Satildeo Paulo Casa do Saber 2012NIETZSCHE Friedrich Humano demasiado humano Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005_____ Humano demasiado humano II Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008_____ Aurora reflexotildees sobre os preconceitos morais Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004_____ A gaia ciecircncia Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011_____ Genealogia da moral uma polecircmica Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos Trad de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006_____ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Wilson Luciano Onofri

267

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista de Nietzsche a partir do conceito de autossupressatildeo

Wilson Luciano Onofri1

Consideraccedilotildees iniciais Nos uacuteltimos anos da pesquisa Nietzsche presenciamos uma enxurrada de estudos

cujas orientaccedilotildees teoacutericas remontam abordagens naturalistas invadirem congressos e simpoacutesios dedicados ao filoacutesofo Isso natildeo deixou de causar espanto a muitos daqueles que se dedicam ao estudo o filoacutesofo natildeo porque tal abordagem natildeo encontre ressonacircncia nos textos de Nietzsche mas porque essas interpretaccedilotildees tendo seu lugar nas estrateacutegias filosoacuteficas do pensador alematildeo tem resultado em aporias interpretativas ainda mais radicais do que a exegeses estava acostumada

As contradiccedilotildees e ambiguidades sempre foram reconhecidas como presentes no pensamento do filoacutesofo sendo inclusive reconhecidas como parte de seu exerciacutecio filosoacutefico todavia os problemas comeccedilam quando se procura harmonizar as pretensotildees criacuteticas radicais presentes com sua instrumentalizaccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico e seus principais resultados no seu programa filosoacutefico O problema parece se manifestar basicamente de duas formas a saber o programa criacutetico de Nietzsche muitas vezes tem como alvo as proacuteprias ciecircncias e suas bases epistemoloacutegicas inviabilizando as pretensotildees de validade dessa perspectiva no interior de seu proacuteprio pensamento e de outro temos a presenccedila dessas abordagens de cunho naturalista inspirada nos meacutetodos e conquistas das ciecircncias apresentando-se para aleacutem de pretensotildees meramente criacuteticas mas pelo contraacuterio buscando seu lugar no tatildeo discutido vieacutes propositivo do pensamento do filoacutesofo

Como forma de se buscar transpor esse problema instaurado no interior da disputa exegeacutetica dos estudos do filoacutesofo uma epistemologia de ordem pragmaacutetica2 tem se mostrado como mais promissora na harmonizaccedilatildeo de perspectivas tatildeo contraditoacuterias no interior de um pensamento que natildeo se pretendeu sistemaacutetico mas que todavia eacute sempre intimado a prestar contas sobre suas pretensotildees e meacutetodos diante a comunidade filosoacutefica especializada

Nesse sentido buscaremos estabelecer aqui a relaccedilatildeo entre a consumaccedilatildeo da epistemologia pragmaacutetica nietzschiana e o conceito de autossupressatildeo Para tanto tomamos como ponto de partida o programa nietzschiano de criacutetica do pensamento metafiacutesico de

1 (UFES)2 Tendo em vista as dificuldades de se realizar mesmo que de forma sumaacuteria a reconstruccedilatildeo do pragmatismo niet-

zschiano adotamos um conceito frouxo referente determinaccedilatildeo de validade de uma teoria tendo em vista o ecircxito praacutetico em detrimento de correntes fundacionistas do conhecimento

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista

268

cunho socraacutetico-platocircnico como base da ontologia do ser na qual a moral ocidental se fundamenta mostrando como o desenvolvimento desse programa vai se consumando numa epistemologia pragmatista onde seus recursos de ordem naturalista estatildeo ancorados Assim aquilo que tem iniacutecio como uma criacutetica externa histoacuterico-naturalista de cunho empiacuterico evolui para uma criacutetica imanente a partir da noccedilatildeo de autossupressatildeo da veracidade

A ideia que motiva este trabalho eacute tentar demonstrar que agraves posiccedilotildees pragmaacuteticas encenadas na obra de Nietzsche que muitas vezes satildeo acusadas como parte do relativismo orgiaacutestico-dionisiacuteaco de cunho estetizante e raso subjazem um profundo zelo e rigor teacutecnico Assim conforme se tentaraacute mostrar a seguir as criacuteticas feitas por Nietzsche agrave ontologia do ser se desenvolve de uma postulaccedilatildeo empiacuterica problemaacutetica para fornecer elementos para ontologia da instabilidade do devir de onde proveacutem sua criacutetica a moralidade e evolui para uma criacutetica imanente por meio do conceito de autossupressatildeo de forma que por meio do desenvolvimento desse programa criacutetico podemos conceber uma conclusatildeo de uma epistemologia pragmatista

Da criacutetica histoacuterico-natural agrave autossupressatildeo Vemos em Humanos demasiado humano (doravante citada como HH) obra

compreendida como inaugural do periacuteodo intermediaacuterio de seu pensamento haacute um ataque por parte de Nietzsche agrave filosofia dogmaacutetico-metafiacutesica endossada entatildeo pela tradiccedilatildeo filosoacutefica Este ataque feito a partir da instrumentalizaccedilatildeo da histoacuteria natural como forma de criticar os fundamentos das quais foram construiacutedas a cultura em geral consiste em mostrar a inadequaccedilatildeo da proacutepria noccedilatildeo de estabilidade ligada agrave ontologia do ser por meio do apontamento das mudanccedilas ocorridas na histoacuteria compreendendo o proacuteprio ser humano como parte da natureza

Natildeo pode mais segundo Nietzsche a tradiccedilatildeo filosoacutefica conceber os problemas filosoacuteficos a partir da negaccedilatildeo da provisoriedade dos fenocircmenos e a partir disso a consequente postulaccedilatildeo de ldquouma origem miraculosardquo como que dois mil anos atraacutes tem feito a dogmaacutetica metafiacutesica Pelo contraacuterio deve a filosofia histoacuterica se unir enquanto ferramenta filosoacutefica agraves ciecircncias naturais a fim de que se possa superar o dualismo ontoloacutegico que contamina desde os fundamentos o pensamento filosoacutefico Natildeo mais a partir de equiacutevocos de pressuposiccedilotildees apressadas e natildeo averiguadas deve ser feita a reflexatildeo filosoacutefica mas a partir da perspectiva da anaacutelise empiacuterica do desenvolvimento dos fenocircmenos3

Dessa mesma forma tambeacutem eacute problemaacutetico a partir dessas consideraccedilotildees continuar considerando o proacuteprio homem sob as quais satildeo feitas as reflexotildees do presente nos termos de uma verdade eterna O ldquodefeito hereditaacuterio de todos os filoacutesofosrdquo eacute ldquotomar a configuraccedilatildeo mais recenterdquo como se ele tambeacutem natildeo tivesse vindo a ser 4 Dessa forma o ldquodefeito hereditaacuterio dos filoacutesofosrdquo eacute ignorar ldquosentido histoacutericordquo do objeto analisado A partir dessa constataccedilatildeo da temporalidade do tipo de homem que a filosofia trata como ldquoverdade eternardquo conclui o filoacutesofo que ldquotudo veio a ser natildeo existem fatos eternos assim como natildeo existem verdades absolutas ndash Portanto o filosofar histoacuterico eacute doravante necessaacuterio e com ele a virtude da modeacutestiardquo5

Vejamos a partir de consideraccedilotildees do proacuteprio Nietzsche que apesar de se referir ao meacutetodo histoacuterico naturalista para criticar a ontologia da estabilidade do ser quando afirma

3 HH 14 Ibidem 25 Ibidem

Wilson Luciano Onofri

269

que ldquotudo veio a ser natildeo existem fatos eternos assim como natildeo existem verdades absolutasrdquo6 ele mesmo enfatiza a necessidade ldquovirtude da modeacutestiardquo Natildeo parece difiacutecil constatar que Nietzsche tinha consciecircncia dos limites de sua ferramenta filosoacutefica e por isso exercitava ele mesmo a ldquovirtude da modeacutestiardquo em seu proacuteprio pensamento (pelo menos que se refere a tomada gradual de consciecircncia dos problemas oriundos de suas experimentaccedilotildees filosoacuteficas)

ldquoO espirito da ciecircncia eacute poderoso na parte natildeo no todordquo jaacute observava Nietzsche de forma que ldquoos campos distintos das ciecircncias satildeo tratados de modo puramente objetivordquo e jaacute as ldquograndes ciecircncias geraisrdquo como um todo em razatildeo da pouca objetividade estatildeo sempre sendo convocadas a justificar a sua utilidade7 O problema enfrentado como se pode ver eacute como a partir da perspectiva parcial das ciecircncias pode se fechar as portas de maneira definitiva agrave ontologia da estabilidade do ser A perspectiva empiacuterica das ciecircncias satildeo sempre parciais de modo que apesar de abrir para a possibilidade de criacutetica da ontologia do ser natildeo eacute forte o suficiente para estabelecer uma ontologia do devir E por isso ele eacute obrigado a confessar

Eacute verdade que poderia existir um mundo metafisico dificilmente podemos contestar a sua possibilidade absoluta Olhamos todas as coisas com a cabeccedila humana e eacute impossiacutevel cortar essa cabeccedila mas permanece a questatildeo de saber o que ainda existiria do mundo se ela fosse mesmo cortada8

Como se pode ver pela passagem Nietzsche sabia muito bem das limitaccedilotildees de sua ferramenta filosoacutefica em termos metodoloacutegicos especialmente no que se refere agrave capacidade dessa metodologia ser capaz e extirpar a metafiacutesica ligada agrave ontologia do ser9 O golpe fatal contra o pensamento metafiacutesico e suas pretensotildees de estabilidade na ontologia do ser natildeo poderia ser dado pelos recursos naturalistas oriundos da metodologia empiacuterica do pensamento cientiacutefico mas deveria ser buscado de outra maneira

Nesse mesmo aforismo Nietzsche jaacute esboccedilava os termos de seu pragmatismo ao afirmar que ainda que fosse possiacutevel conhecer o mundo metafiacutesico a sua utilidade para vida seria praticamente nula tal como para um ldquonaveganterdquo seria uacutetil o ldquoconhecimento da anaacutelise quiacutemica da aacuteguardquo Vemos aqui um tratamento privilegiado ao conhecimento uacutetil a vida no mundo em detrimento da forma meramente contemplativa Em verdade essa foacutermula natildeo eacute nova jaacute aparecendo em Verdade e mentira no sentido extra-moral uma vez que o homem era o mais indefeso de todos os animais natildeo possuindo ldquogarrasrdquo ou ldquopresasrdquo para se defender fora obrigado a se reportar ao intelecto enquanto teia linguiacutestica com que se cobriu o mundo e acabou se acreditando na ldquofaacutebula da invenccedilatildeo do conhecimentordquo10

Todavia tambeacutem nesse escrito a perspectiva da estabilidade da ontologia do ser eacute criticada de forma dogmaacutetica por meio de uma estilizaccedilatildeo da descriccedilatildeo feita por meio de elementos empiacutericos Ocorre que na medida em que sua criacutetica avanccedila penetrando nos mais profundos alicercemos morais da epistemologia os elementos desestabilizadores da metafiacutesica vatildeo ganhando novos contornos tornando cada vez mais clara a interdependecircncia 6 Embora natildeo explorado aqui pensamos que uma forma em que se pode compreender o desenvolvimento do pragma-

tismo nietzschiano eacute exatamente a evoluccedilatildeo dessa foacutermula ateacute suas configuraccedilotildees finais CI VII 17 Ibidem 68 Ibidem 99 De uma perspectiva acessoacuteria do aforismo eacute importante relatar que causa estranheza Nietzsche atribuir caraacuteter

cientiacutefico ao problema do que restaria do mundo caso essa cabeccedila fosse cortada especialmente quando pensamos no perspectivismo radical que seu pensamento iraacute encontrar

10 VM 1

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista

270

entre moralidade e racionalidade pois como observa Nietzsche ldquonatildeo existem vivecircncias que natildeo sejam morais mesmo no acircmbito da percepccedilatildeo sensiacutevelrdquo11

Tem se assim tambeacutem uma criacutetica a qualquer pretenso realismo ao qual uma abordagem empiacuterica com deacuteficit criacutetico fatalmente pode recair Pois os ldquohomens soacutebrios que se sentem defendidos contra a paixatildeo e as fantasiasrdquo e investidos em seu ldquoamor agrave realidaderdquo estatildeo igualmente atados a uma ldquofantasiardquo e portanto tambeacutem estatildeo imersos no ldquopreconceitordquo Nesse sentido ldquonatildeo haacute realidade para noacutes ndash e tampouco para vocecircs soacutebriosrdquo sendo interditada a crenccedila na ldquoincapacidade de embriaguezrdquo12 Assim teses realistas no acircmbito do pensamento de Nietzsche satildeo rechaccediladas pois tambeacutem elas estatildeo atreladas a ontologia da estabilidade do ser uma vez que ldquoajustamos para noacutes um mundo em que podemos viver - supondo linhas superfiacutecies causas e efeitos movimentos e repouso forma e conteuacutedordquo como ldquoartigos de feacuterdquo13

Eacute constataccedilatildeo a interconexatildeo entre moralidade e racionalidade diagnosticada pela primeira vez no processo de decadecircncia da Greacutecia claacutessica descrita no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche percebe estar lidando Todavia ao contraacuterio de Soacutecrates cuja criacutetica alcanccedilou apenas o acircmbito dos instintos e ao qual ldquoaquele impulso loacutegico estava inteiramente proibido de voltar-se contra si proacutepriordquo14 o filoacutesofo da Basileia pretende levar as ultimas consequecircncias uma vez que as vias alternativas estavam interditadas por forccedila de sua proacutepria argumentaccedilatildeo

A via para a consumaccedilatildeo do programa filosoacutefico de criacutetica a moral em especial no que se refere agraves pretensotildees de estabilidade ontoloacutegica natildeo poderia ser feita de forma externa nos termos de uma descriccedilatildeo empiacuterica da realidade mas de forma imanente Sendo o processo de racionalizaccedilatildeo uma dinacircmica em que natildeo haacute retornos diante a perda da inocecircncia resta a Nietzsche levar o processo ateacute as suas ultimas consequecircncias

[] ele eacute retirada a confianccedila na moral- e por que Por moralidade Ou como deveriacuteamos chamar o que nele em ndash em noacutes ndashsucede Pois conforme nosso gosto preferiacuteamos palavras mais modestas Mas natildeo haacute duacutevida tambeacutem a noacutes dirige se dirige um ldquotu devesrdquo tambeacutem noacutes obedecemos ainda a uma severa lei acima de noacutes ndash estaacute eacute a ultima moral que ainda se nos faz ouvir que tambeacutem noacutes ainda sabemos viver nisto se em alguma coisa ainda somos criaturas da consciecircncia15[]

Este movimento de criacutetica imanente empreendido por Nietzsche eacute o que a exegese chama de autossupressatildeo ou autosuperaccedilatildeo16 (selbstaufhebung) da moral Como explica Oswaldo Giacoia o movimento de autossupressatildeo consiste

[] como movimento de inflexatildeo no curso de um pensamento ou numa cadeia de eventos histoacutericos no mundo da cultura operando uma mudanccedila de sentido uma decisiva alteraccedilatildeo na direccedilatildeo seja da sequecircncia dos pensamentos seja desenrolar-se de um vir a ser dos fenocircmenos da cultura Essa inflexatildeo de sentido ou mudanccedila de direccedilatildeo caracteriza-se como uma volta contra si mesmo uma reflexatildeo e nesse sentido uma inversatildeo de rota um dobrar-se sobre si mesmo tornado possiacutevel por

11 GC 11412 Ibidem 5713 Ibidem 12114 NT 1315 A proacutelogo 416 GIACOIA 2013 p119

Wilson Luciano Onofri

271

problematizaccedilatildeo ou seja um voltar-se sobre si mesmo (e contra si mesmo) do proacuteprio sujeito ou de um processo histoacuterico no interior do qual o primeiro se encontra que de diferentes madeiras tomam a si proacuteprio como objeto o que caracteriza portanto o movimento de (auto) problematizaccedilatildeo17

Trata-se portanto de um movimento realizado a partir do reconhecimento da inexorabilidade das forccedilas desagregadoras da moralidade em que qualquer tentativa de bloqueio ou retorno estatildeo interditadas Nesse sentido resta apenas a conduccedilatildeo dessa loacutegica ateacute as suas ultimas consequecircncias de modo a essa criacutetica acabar se voltando contra si mesma como condiccedilatildeo para sua consumaccedilatildeo

Dada a forte relaccedilatildeo entre moralidade e racionalidade no pensamento de Nietzsche podemos concluir junto com Giacoia que dentre as vaacuterias modalidades de autossupressatildeo a autossupressatildeo da verdade eacute a fundamental E isso se deve ao fato de que esta ldquocomanda e determina a configuraccedilatildeo e o movimento dialeacutetico das problematizaccedilotildees em que consiste as outras figurasrdquo18 Nesse sentido o proacuteprio instrumento da criacutetica pode ser criticado a partir de si mesmo isto eacute se a racionalidade ao modo de proceder metafiacutesico de cunho socraacutetico-platocircnico eacute responsaacutevel pela estabilidade ontoloacutegica do ser essa mesma racionalidade pode ser criticada a partir de si mesma em seu ideal de veracidade e pureza

Na dinacircmica da autossupressatildeo a consciecircncia filosoacutefica imbuiacuteda pela vontade de verdade numa reflexatildeo sobre si mesma se descobre enquanto engajada moralmente em seus pressupostos Desse diagnoacutestico a incondicionalidade de sua perspectiva deve ceder ao niacutevel das demais perspectivas e se reconhecer como mais uma entre as variadas formas de racionalidade

Na ciecircncia as convicccedilotildees natildeo tem direito de cidadania eacute o que se diz com boas razotildees apenas quando elas decidem rebaixar-se agrave modeacutestia de uma hipoacutetese de um ponto de vista experimental e provisoacuterio de uma ficccedilatildeo reguladora pode lhes ser concedidas a entrada e ateacute mesmo um certo valor no reino do conhecimento ndash embora ainda com a restriccedilatildeo de que permaneccedilam sob vigilacircncia policial a vigilacircncia da suspeita ndash Mas isso natildeo quer dizer examinando mais precisamente que a convicccedilatildeo para pode obter admissatildeo na ciecircncia apenas quando deixar de ser uma convicccedilatildeo [] Eacute assim provavelmente resta a pergunta se para que possa comeccedilar esta disciplina natildeo eacute preciso haver uma convicccedilatildeo e alias tatildeo imperiosa e absoluta que sacrifica a si mesma todas as demais convicccedilotildees Vecirc-se que tambeacutem a ciecircncia repousa numa crenccedila que natildeo existe ciecircncia ldquosem pressupostosrdquo []19

Se as ciecircncias serviu de meio de criacutetica ao pensamento metafiacutesico sob a qual retroalimentava a moralidade com avanccedilo de suas investigaccedilotildees esta passou a ser percebida como um dos substratos maacuteximos da racionalidade moderna alicerccedilada sobre os mesmos fundamentos da estabilidade da ontologia do ser de cunho socraacutetico ndashplatocircnico Podemos assim concluir com Nietzsche que tambeacutem as ciecircncias enquanto expressatildeo maacutexima dessa vontade de verdade tem como base a ldquoignoracircnciardquo sobre ldquoa vontade de natildeo saberrdquo sobre o ldquoerrordquo20

17 Ibidem p12118 Idem19 GC 34420 ABM 24

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista

272

Nessa mesma toada podemos ver como Nietzsche tal como em HH 11 vai deslocando os constructos metafiacutesicos para o acircmbito do uso da linguagem pois a ldquoimportacircncia da linguagem para o desenvolvimento da cultura estaacute em que nela o homem estabeleceu um mundo proacuteprio ao lado do outro um lugar que ele considerou firme o bastante para a partir dele tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhorrdquo Todavia em ABM vemos Nietzsche ainda admitir um resiacuteduo de metafiacutesica desde que compreendida pragmaticamente nos termos de ficccedilotildees linguiacutesticas naturalisticamente constatadas a partir de nossas praacuteticas comunicativas

Tal eacute a forccedila da tese da inevitabilidade de recorrecircncia aos constructos de metafiacutesicos da ontologia do ser que natildeo podemos deixar de notar a afirmaccedilatildeo de Nietzsche no sentido de a ldquoarraigada tartufice moral pertence de modo insuperaacutevel ldquonossa carne e nosso sanguerdquo chegue a nos distorcer as palavras na bocardquo21 E isso assim o eacute dada ao caraacuteter pragmaacutetico das praacuteticas comunicativas em que exprimimos nossas ldquonecessidadesrdquo tal como ldquoponte entre os homensrdquo e natildeo porque o conhecimento tem como funccedilatildeo estritamente teoacuterico-contemplativa mas porque se reporta as praacuteticas soacutecias de comunicaccedilatildeo22

Consideraccedilotildees finaisConforme exposto no iniacutecio deste trabalho a intenccedilatildeo da presente investigaccedilatildeo foi

analisar a relaccedilatildeo entre a o movimento de autossupressatildeo da verdade com a epistemologia pragmatista nietzschiana Nesse sentido tomamos como ponto de partida o programa nietzschiano de criacutetica do pensamento metafiacutesico de cunho socraacutetico-platocircnico como base da ontologia do ser do qual a moral ocidental se fundamenta mostrando como o desenvolvimento desse programa vai se consumando numa epistemologia pragmatista onde seus recursos de ordem naturalista estatildeo ancorados Assim aquilo que teve iniacutecio como uma criacutetica externa histoacuterico-naturalista de cunho empiacuterico acabou por evoluir para uma criacutetica imanente a partir da noccedilatildeo de autossupressatildeo da veracidade para a uma epistemologia naturalista

Tal se deve em razatildeo da radicalidade do projeto filosoacutefico empreendido por Nietzsche de criacutetica a filosofia dogmaacutetico-metafiacutesica de cunho socraacutetico-platocircnico ao qual o recurso histoacuterico-natural de cunho empiacuterico se mostrou insuficiente metodologicamente diante o adversaacuterio de posiccedilatildeo ontoloacutegica Dessa forma a radicalidade do projeto criacutetico soacute alcanccedila seu aacutepice a partir de uma criacutetica imanente levada a cabo pelo conceito de autossupressatildeo estabelecendo assim uma posiccedilatildeo proba no estabelecimento de sua epistemologia pragmaacutetica

21 Idem22 GC 354

Wilson Luciano Onofri

273

Referecircncias bibliograacuteficasGIACOIA O NITZSCHE o humano como memoacuteria e como promessa Rio de Janeiro Editora Vozes 2013NIETZSCHE F Aurora Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004_____ A gaia ciecircncia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Aleacutem de Bem e mal Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992_____ Humano demasiado humano Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000_____ O nascimento da trageacutedia Satildeo Paulo Companhia de Bolso 1992_____ Verdade e mentira no sentido extra-moral Satildeo Paulo Ed Hedra 2007

Page 2: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian

ANPOF - Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

Diretoria 2019-2020Adriano Correia Silva (UFG)Antocircnio Edmilson Paschoal (UFPR) Suzana de Castro (UFRJ) Franciele Bete Petry (UFSC)Patriacutecia Del Nero Velasco (UFABC)Agnaldo Portugal (UNB)Luiz Felipe Sahd (UFC) Vilmar Debona (UFSM) Jorge Viesenteiner (UFES) Eder Soares Santos (UEL)

Diretoria 2017-2018 Adriano Correia Silva (UFG)Antocircnio Edmilson Paschoal (UFPR) Suzana de Castro (UFRJ) Agnaldo Portugal (UNB)Noeacuteli Ramme (UERJ) Luiz Felipe Sahd (UFC) Cintia Vieira da Silva (UFOP) Monica Layola Stival (UFSCAR)Jorge Viesenteiner (UFES) Eder Soares Santos (UEL)

Diretoria 2015-2016 Marcelo Carvalho (UNIFESP) Adriano N Brito (UNISINOS) Alberto Ribeiro Gonccedilalves de Barros (USP) Antocircnio Carlos dos Santos (UFS) Andreacute da Silva Porto (UFG) Ernani Pinheiro Chaves (UFPA) Maria Isabel de Magalhatildees Papaterra Limongi (UPFR) Marcelo Pimenta Marques (UFMG) Edgar da Rocha Marques (UERJ)Lia Levy (UFRGS)

Diretoria 2013-2014Marcelo Carvalho (UNIFESP)Adriano N Brito (UNISINOS)Ethel Rocha (UFRJ)Gabriel Pancera (UFMG)Heacutelder Carvalho (UFPI)Lia Levy (UFRGS)Eacuterico Andrade (UFPE)Delamar V Dutra (UFSC)

Diretoria 2011-2012Vinicius de Figueiredo (UFPR)Edgar da Rocha Marques (UFRJ)Telma de Souza Birchal (UFMG)Bento Prado de Almeida Neto (UFSCAR)Maria Aparecida de Paiva Montenegro (UFC)Darlei DallrsquoAgnol (UFSC)Daniel Omar Perez (PUCPR)Marcelo de Carvalho (UNIFESP)

Produccedilatildeo Antonio Florentino Neto

Editor da coleccedilatildeo ANPOF XVIII EncontroJorge Luiz Viesenteiner

Diagramaccedilatildeo e produccedilatildeo graacuteficaEditora Phi

Capa Adriano de Andrade

Comitecirc Cientiacutefico Coordenadoras e Coordenadores de GTs e de Programas de Poacutes-graduaccedilatildeo

Admar Almeida da Costa (UFRRJ)Adriano Correia Silva (UFG)Affonso Henrique V da Costa (UFRRJ)Agemir Bavaresco (PUCRS)Aldo Dinucci (UFS)Alessandro B Duarte (UFRRJ)Alessandro Rodrigues Pimenta (UFT)Alfredo Storck (UFRGS)Amaro de Oliveira Fleck (UFMG)Ana Rieger Schmidt (UFRGS)Andreacute Cressoni (UFG)Andreacute Leclerc (UnB)Antonio Carlos dos Santos (UFS)Antonio Edmilson Paschoal (UFPR)Antonio Glaudenir Brasil Maia (UVA)Araceli Rosich Soares Velloso (UFG)Arthur Arauacutejo (UFES)Bartolomeu Leite da Silva (UFPB)Bento Prado Neto (UFSCAR)Breno Ricardo (UFMT)Cecilia Cintra C de Macedo (UNIFESP)Celso Braida (UFSC)Cesar Augusto Battisti (UNIOESE)Christian Hamm (UFSM)Christian Lindberg (UFS)Cicero Cunha Bezerra (UFS)Clademir Luis Araldi (UFPEL)Claudemir Roque Tossato (UNIFESP)Claudinei Freitas da Silva (UNIOESTE)Claacuteudio R C Leivas (UFPEL)Cloacutevis Brondani (UFFS)Cristiane N Abbud Ayoub (UFABC)Cristiano Perius (UEM)Cristina Foroni (UFPR)Cristina Viana Meireles (UFAL)Daniel Omar Perez (UNICAMP)Daniel Pansarelli (UFABC)Daniel Peres Coutinho (UFBA)

Dirce Eleonora Nigro Solis (UERJ)Eder Soares Santos (UEL)Eduardo Aniacutebal Pellejero (UFRN)Emanuel Acirc da Rocha Fragoso (UECE)Enoque Feitosa Sobreira Filho (UFPB)Ester M Dreher Heuser (UNIOESTE)Evaldo Becker (UFS)Evaldo Sampaio (UnBMetafiacutesica)Faacutetima Eacutevora (UNICAMP)Fernando Meireles M Henriques (UFAL)Filipe Campello (UFPE)Flamarion Caldeira Ramos (UFABC)Floriano Jonas Cesar (USJT)Franciele Bete Petry (UFSC)Francisco Valdeacuterio (UEMA)Georgia Amitrano (UFU)Gisele Amaral (UFRN)Guido Imaguire (UFRJ)Gustavo Silvano Batista (UFPI)Helder Buenos A de Carvalho (UFPI)Henrique Cairus (UFRJ)Hugo F de Arauacutejo (UFC)Jacira de Freitas (UNIFESP)Jadir Antunes (UNIOESTE)Jelson Oliveira (PUCPR)Joatildeo Carlos Salles (UFBA)Jorge Alberto Molina (UERGS)Joseacute Lourenccedilo (UFSM)Juacutelia Sichieri Moura (UFSC)Juvenal Savian Filho (UNIFESP)Leonardo Alves Vieira (UFMG)Liacutevia Guimaratildees (UFMG)Luciano Carlos Utteiche (UNIOESTE)Luciano Donizetti (UFJF)Ludovic Soutif (PUCRJ)Luiacutes Ceacutesar G Oliva (USP)Luiz Carlos Bombassaro (UFRGS)Luiz Rohden (UNISINOS)Manoel Vasconcellos (UFPEL)Marcela F de Oliveira (PUCRJ)Marcelo Esteban Coniglio (UNICAMP)

Maacutercia Zebina Arauacutejo da Silva (UFG)Maacutercio Custoacutedio (UNICAMP)Marco Antonio Azevedo (UNISINOS)Marcos H da Silva Rosa (UERJ)Maria Ceciacutelia Pedreira de Almeida (UnB)Maria Cristina de Taacutevora Sparano (UFPI)Maria Cristina Muumlller (UEL)Marina Velasco (UFRJPPGLM)Mariana Claacuteudia Broens (UNESP)Mariana de Toledo Barbosa (UFF)Maacuterio Nogueira de Oliveira (UFOP)Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA)Max R Vicentini (UEM)Michela Bordignon (UFABC)Milton Meira do Nascimento (USP)Nathalie Bressiani (UFABC)Nilo Ceacutesar B Silva (UFCA)Nilo Ribeiro (FAJE)Patriacutecia Coradim Sita (UEM)Patriacutecia Kauark (UFMG)Patrick Pessoa (UFF)Paulo Afonso de Arauacutejo (UFJF)Pedro Duarte de Andrade (PUCRJ)Pedro Leatildeo da Costa Neto (UTP)Pedro Paulo da Costa Corocirca (UFPA)Peter Paacutel Peacutelbart (PUCSP)Rafael de Almeida Padial (UNICAMP)Renato Moscateli (UFG)Ricardo Bazilio Dalla Vecchia (UFG)Ricardo Pereira de Melo (UFMS)Roberto Horaacutecio de Saacute Pereira (UFRJ)Roberto Wu (UFSC)Rodrigo Guimaratildees Nunes (PUCRJ)Rodrigo Ribeiro Alves Neto (UNIRIO)Samir Haddad (UNIRIO)Sandro M Moura de Sena (UFPE)Sertoacuterio de A Silva Neto (UFU)Silvana de Souza Ramos (USP)Sofia Inecircs A Stein (UNISINOS)Socircnia Campaner (PUCSP)Tadeu Verza (UFMG)

Tiegue Vieira Rodrigues (UFSM)Viviane M Pereira (UECE)Vivianne de Castilho Moreira (UFPR)Waldomiro Joseacute da Silva Filho (UFBA)

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)Bibliotecaacuteria Juliana Farias Motta CRB75880

N677 Nietzsche Organizaccedilatildeo Clademir Luis Araldi Jorge L Viesenteiner

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia -- Satildeo Paulo ANPOF 2019

273 p ISBN 978-85-88072-87-9 Nietzsche Friedrich Wilhelm 1844-19002Filosofia alematildeI

Viesenteriner JLIIII Vecchia RDIII Tiacutetulo

CDD 193 Iacutendice para cataacutelogo sistemaacutetico

1 Nietzsche Friedrich Wilhelm 1844-19002 Filosofia alematilde

Apresentaccedilatildeo da Coleccedilatildeo do XVIII Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF

O XVIII Encontro Nacional da ANPOF foi realizado em outubro de 2018 na Universidade Federal do Espiacuterito Santo (UFES) em VitoacuteriaES e contou com mais de 2 mil participantes com suas respectivas apresentaccedilotildees de pesquisa tanto nos Grupos de Trabalho da ANPOF quanto em Sessotildees Temaacuteticas Em acreacutescimo o evento tambeacutem incluiu conjuntamente o IV Encontro Nacional ANPOF Ensino Meacutedio sob coordenaccedilatildeo do Prof Dr Christian Lindberg (UFS) cujos esforccedilos natildeo apenas amplia mas tambeacutem inclui os debates e pesquisas vinculados agrave aacuterea do Ensino de Filosofia tanto de professores vinculados ao Ensino de Filosofia quanto tambeacutem de professores e estudantes do Mestrado Profissional em Filosofia o PROF-FILO

A ANPOF publica desde 2013 os trabalhos apresentados sob a forma de livro com o intuito natildeo apenas de tornar puacuteblicas as pesquisas de estudantes e professores mas tambeacutem de fomentar o debate filosoacutefico da aacuterea especialmente por ser uma ocasiatildeo de congregar uma significativa presenccedila de colegas do Brasil inteiro interconectando pesquisas e regiotildees que nem sempre estatildeo em contato Assim a Coleccedilatildeo ANPOF sintetiza o estado da pesquisa filosoacutefica naquele determinado momento reunindo pesquisas apresentadas em Grupos de Trabalho e Sessotildees Temaacuteticas O total de textos submetidos avaliados e aprovados agrave publicaccedilatildeo na atual Coleccedilatildeo ANPOF do XVIII Encontro conta com mais de 650 artigos da comunidade em geral

Eacute importante registrar nesta ldquoApresentaccedilatildeordquo a dinacircmica utilizada no processo de organizaccedilatildeo dos 22 volumes que satildeo agora publicados cuja concepccedilatildeo geral consistiu em estruturar o processo da maneira mais amplamente colegiada possiacutevel envolvendo no processo de avaliaccedilatildeo dos textos submetidos todas as coordenaccedilotildees dos Grupos de Trabalho e dos Programas de Poacutes-graduaccedilatildeo (PPGs) em Filosofia bem como uma comissatildeo de avaliaccedilatildeo especiacutefica para os trabalhos que natildeo foram avaliados por algumas coordenaccedilotildees de PPGs Em termos praacuteticos o processo seguiu trecircs etapas 1 cada pesquisador(a) teve um periacuteodo para submissatildeo dos seus trabalhos 2 Periacuteodo de avaliaccedilatildeo adequaccedilatildeo e reavaliaccedilatildeo dos textos por parte das coordenaccedilotildees de GTs e PPGs 3 Editoraccedilatildeo dos textos aprovados pelas coordenaccedilotildees de GT e PPGs

Nessa atual ediccedilatildeo da Coleccedilatildeo ANPOF figuraram na co-organizaccedilatildeo dos volumes natildeo apenas as coordenaccedilotildees de GTs mas tambeacutem de PPGs que estiveram diretamente envolvidos no processo na medida em que ambas as coordenaccedilotildees realizaram as atividades de avaliaccedilatildeo e seleccedilatildeo dos textos desde as inscriccedilotildees ao evento ateacute avaliaccedilatildeo final dos textos submetidos agrave publicaccedilatildeo exercendo os mesmos papeacuteis na estruturaccedilatildeo da atividades Nessa medida a Coleccedilatildeo ANPOF conta com o envolvimento quase integral das coordenaccedilotildees exprimindo justamente a concepccedilatildeo colegiada na organizaccedilatildeo ndash seja diretamente na organizaccedilatildeo dos volumes seja sob a forma de comitecirc cientiacutefico ndash de modo que os envolvidos figuram igualmente como co-organizadores(as) da Coleccedilatildeo cujo ganho eacute sem duacutevida em transparecircncia e em engajamento com as atividades O trabalho de organizaccedilatildeo da Coleccedilatildeo portanto seria impossiacutevel sem o envolvimento das coordenaccedilotildees

Reiteramos nossos os agradecimentos pelos esforccedilos da comunidade acadecircmica tanto no sentido da publicaccedilatildeo das pesquisas em filosofia que satildeo realizadas atualmente no Brasil quanto pela conjugaccedilatildeo de esforccedilos para que apesar do gigantesco trabalho realizarmos da maneira mais colegiada possiacutevel nossas atividades

Boa leituraDiretoria ANPOF

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo do GT Nietzsche 14

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como efeito da depauperaccedilatildeo da cultura moderna 15

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave accedilatildeo mediante a consciecircncia Bewusstsein e a consciecircncia moral Gewissen 21

Adilson Felicio Feiler

O cristianismo face agrave criacutetica nietzschiana Pressupostos para um diaacutelogo filosoacutefico 31Adriano Geraldo da Silva

Da genealogia da teoria do crime no direito penal brasileiro Uma criacutetica ao livre - arbiacutetrio a partir de Nietzsche e a neurociecircncia 37

Alianna Caroline Sousa Cardoso

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem a partir do paradigma imunitaacuterio 57

Angela Couto Machado FonsecaDhyego Cacircmara Arauacutejo

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche 67Caius Brandatildeo

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche 75Ceacutelia Machado Benvenho

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3 83Eder David de Freitas Melo

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent 89Estevatildeo Bocalon

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise sobre a criacutetica de Nietzsche em humano demasiado humano 96

Gracy Kelly Bourscheid

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch ndash Arte Filosofia e Ciecircncia na obra nietzschiana 105

Guilherme Freire da Costa

Para que sofrer Acerca do problema do sentido do sofrimento 115Hailton Felipe Guiomarino

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche O uacuteltimo homem e o aleacutem-do-homem 123

Isabella Vivianny Santana Heinen

O Poder do Riso em Nietzsche 132Ivan Risafi de Pontes

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo Uma reflexatildeo sobre a intoleracircncia religiosa radical a partir da Genealogia da Moral 142

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche 151Joseacute Nicolao Juliatildeo

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre a consciecircncia [Bewuszligtsein] 159Laura Elizia Haubert

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida em Nietzsche e Rosset 167Leonardo Arauacutejo Oliveira

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche e seus desdobramentos eacutetico-esteacuteticos 173

Luiza Fonseca Regattieri

A danccedila aleacutem do bem e do mal 179Maria Helena Lisboa da Cunha

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees de sujeito transcendental e de coisa em si no primeiro capiacutetulo de Humano demasiado humano I 186

Marina Gomes de Oliveira

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface entre Nietzsche e Freud 196

Michaella Carla Laurindo

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as influecircncias de Paul Reacutee 205

Neomar Sandro Mignoni

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος) 214Newton Pereira Amusquivar Junior

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees desinteressadas em Nietzsche 222Rafael dos Santos Ramos

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica de Nietzsche ao cristianismo 230Rafael Gonccedilalves da Silveira

Genealogia O chatildeo proacuteprio de Nietzsche 241Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias no projeto cultural de Nietzsche durante a deacutecada de 1870 251

Ricardo de Oliveira Toledo

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno retorno O resgate da inocecircncia do vir-a-ser 260

Roberta Franco Saavedra

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista de Nietzsche a partir do conceito de autossupressatildeo 267

Wilson Luciano Onofri

14

Apresentaccedilatildeo do GT Nietzsche

Fundado em 1998 o GT Nietzsche tem como objetivo geral reunir pesquisadores de diversos estados e diferentes instituiccedilotildees para promover um maior intercacircmbio filosoacutefico e discussotildees contiacutenuas e sistemaacuteticas acerca das pesquisas de seus membros Assim o GT Nietzsche cria um espaccedilo para que os pesquisadores de Nietzsche possam discutir suas linhas de pesquisa da criacutetica corrosiva dos valores agrave filosofia positiva da trama conceitual agrave inserccedilatildeo na histoacuteria da filosofia da pesquisa de suas fontes e influecircncias agrave investigaccedilatildeo de sua contribuiccedilatildeo e articulaccedilatildeo com questotildees da atualidade os membros do GT Nietzsche a partir de diversas perspectivas tecircm a oportunidade de por agrave prova suas hipoacuteteses de trabalho

O GT Nietzsche edita semestralmente desde 2010 a revista Estudos Nietzsche (ISSN 2179-3441) Qualis B1 Estudos Nietzsche eacute uma publicaccedilatildeo semestral do GT Nietzsche da ANPOF em parceria com a Universidade Federal do Espiacuterito Santo (UFES) Os editores satildeo Prof Dr Ernani Chaves e Antocircnio Edmilson Paschoal membros do GT Nietzsche A proposta da revista estaacute articulada agraves metas que levaram a criaccedilatildeo do GT Nietzsche a saber incentivar a investigaccedilatildeo e o debate sobre os temas relevantes do pensamento de Nietzsche em ligaccedilatildeo com questotildees da atualidade

Desde 2007 o GT Nietzsche realiza reuniotildees regulares nos anos de interluacutedio dos Encontros da ANPOF Foram organizadas ediccedilotildees dos Encontros do GT Nietzsche nos anos iacutempares na UNIOESTE (ToledoPR) na PUCPR (CuritibaPR) na PUCCamp (CampinasSP) na UFOP (Ouro PretoMG) na UNIFESP (GuarulhosSP) e na UFPel (PelotasRS)

As principais atividades do GT Nietzsche ocorrem nas Reuniotildees Cientiacuteficas dos Encontros Nacionais da ANPOF nos anos pares A uacuteltima Reuniatildeo ocorreu em 2018 no XVIII Encontro Nacional da ANPOF em VitoacuteriaES Nos dias 23 24 e 25 de outubro de 2018 ocorreram apresentaccedilotildees de membros do GT Nietzsche e de doutorandos e doutores brasileiros com pesquisas atuais sobre o pensamento de Nietzsche

O GT Nietzsche eacute constituiacutedo por dois nuacutecleos i) Nuacutecleo de Sustentaccedilatildeo (atualmente com 21 membros) e ii) Nuacutecleo de Apoio (atualmente com 7 membros) agregando participantes dos Programas de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia das cinco regiotildees brasileiras As informaccedilotildees sobre a estrutura e atividades do GT podem ser encontradas no site da ANPOF no link httpanpoforgportalindexphppt-BRgt-nietzsche

Clademir L Araldi (UFPel)

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa

15

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como efeito da depauperaccedilatildeo da cultura moderna

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa1

As conferecircncias de Nietzsche realizadas entre janeiro e marccedilo de 1872 no ldquoAkademisches Kunstmuseumrdquo da Basileacuteia demonstraram a conciliaccedilatildeo pelo filoacutesofo da beleza esteacutetica do seu pensamento com a sua habilidade pedagoacutegica o que tambeacutem lhe rendera admiradores durante o tempo em que ali lecionara Desta feita o presente trabalho pretende analisar as conferecircncias nietzschianas Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino a fim de constatar as principais consideraccedilotildees no tocante ao desenvolvimento do pensamento e da cultura Nietzsche no decorrer das cinco partes na qual se encontra dividida a obra ocupa-se da investigaccedilatildeo aos estabelecimentos de ensino o primaacuterio as escolas teacutecnicas o ginaacutesio e o ensino superior Sua tese parte do entendimento de que a cultura eacute uma determinaccedilatildeo da natureza e sendo assim jamais poderaacute ser compreendida como estando fora dela Eacute dentro dessa perspectiva que exporemos suas principais criacuteticas concernentes aos meacutetodos de ensino alematildees evidenciando no surgimento da vida moderna a condenaccedilatildeo dos princiacutepios dos mecanismos e dos resultados criados pelo processo de modernizaccedilatildeo pedagoacutegica realizado nas escolas alematildes do seacuteculo XIX Veremos ainda que de acordo com Nietzsche a decadecircncia da cultura e da educaccedilatildeo estaria justificada com base no aparecimento de duas correntes segundo ele (EE 2003 p 53) de graves consequecircncias pedagoacutegicas uma que defendia o alargamento da cultura e a outra que a reduziria a uma mera funccedilatildeo a serviccedilo do Estado

De iniacutecio vemos que a base das criacuteticas feitas pelo filoacutesofo alematildeo direcionadas agrave educaccedilatildeo e agrave cultura do seu tempo se devem agraves consideraccedilotildees sobre o mundo moderno Houve da parte dele fortes interpelos a um periacuteodo em que segundo ele estava tomado pelo otimismo vulgar gerado pela modernidade que levava a cultura e seus estabelecimentos de ensino ao empobrecimento e agrave depauperaccedilatildeo Como modo de cotejar o estilo de vida moderno Nietzsche chamou atenccedilatildeo para o sentido traacutegico da cultura grega enquanto modelo de vida capaz de reavivar a cultura alematilde uma vez que os antigos gregos possuiacuteam a forccedila [Kraft] suficiente para desempenhar uma necessaacuteria revitalizaccedilatildeo Aleacutem disso vale ressaltar a mediocridade e a barbaacuterie tiacutepicas dos valores modernos causando seacuterios efeitos na educaccedilatildeo pois tendia a manter nos estudantes a ignoracircncia dos temas filosoacuteficos relacionados ao sentido da existecircncia por nutrir somente valores da integraccedilatildeo e da conformidade Afinal o que mais se podia esperar da figura de eruditos ou seja de especialistas presos a um padratildeo de ensino voltado agrave submissatildeo O que esperar de homens adestrados a pensarem de acordo com as formas acadecircmicas que estimulavam apenas o oportunismo profissional

1 UNIOESTE

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como

16

A cultura moderna estava agrave mercecirc dos interesses da produccedilatildeo industrial logo tambeacutem se via presa a criteacuterios determinados pela economia e pelo Estado A divisatildeo do trabalho vista nas empresas tambeacutem refletia na divisatildeo do trabalho das ciecircncias (EE 2003 p 76) e por efeito na distribuiccedilatildeo das disciplinas acadecircmicas nos estabelecimentos de ensino da eacutepoca

Hoje em dia vemos a compartimentaccedilatildeo do saber as ciecircncias divididas em diferentes disciplinas ministradas com abordagens especiacuteficas Desta maneira a estreiteza vista na erudiccedilatildeo dos acadecircmicos inviabilizando uma compreensatildeo filosoacutefica capaz de analisar os diferentes acircngulos de um problema simplesmente reproduz um processo pedagoacutegico viacutetima da degradaccedilatildeo e da mediocrizaccedilatildeo do pensamento causada pela disseminaccedilatildeo da cultura jornaliacutestica nas instituiccedilotildees acadecircmicas quer dizer uma cultura que despreza a reflexatildeo filosoacutefica em favorecimento dos interesses do Estado e da economia

Sobre a cultura jornaliacutestica eacute importante destacar que aleacutem de Nietzsche outros pensadores tambeacutem estiveram empenhados a tecerem duras acusaccedilotildees por conta do seu alastramento Eacute o caso de Johann Wolfgang Von Goethe que em janeiro de 1824 escreveu uma carta ao secretaacuterio JP Eckermann lamentando os recursos da imprensa e como esta costumava disseminar a semicultura entre a massa levando-a ao embrutecimento das palavras e a mais completa ignoracircncia Nietzsche na intenccedilatildeo de combater o crescimento dessa mediocrizaccedilatildeo buscava ensinar a seus alunos a importacircncia da antiguidade claacutessica fazendo-os pensar a respeito dos dilemas da existecircncia humana e dessa forma apresentando a significativa contribuiccedilatildeo do saber filosoacutefico Assim as Conferecircncias sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino nos mostram a valorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo a serviccedilo dos jovens como forma de desenvolvimento e a correlaccedilatildeo entre a educaccedilatildeo [Erziehung] a formaccedilatildeo [Bildung] e a cultura [Kultur]

Nietzsche teve como foco a investigaccedilatildeo dos estabelecimentos de ensino primaacuterio teacutecnico ginasial e universitaacuterio na Alemanha do seacuteculo XIX Vemos que a denuacutencia feita pelo filoacutesofo alematildeo parte das consequecircncias de um amplo processo histoacuterico dentre inuacutemeros fatores destacamos a unificaccedilatildeo das proviacutencias ao Estado prussiano juntamente com a revoluccedilatildeo industrial tardia ocorrida naquele paiacutes Certamente a modernizaccedilatildeo do Estado trazendo expressivas mudanccedilas de cunho poliacutetico e econocircmico implicou por efeito na educaccedilatildeo e na cultura Isso passou a significar a prioridade de um tipo de ensino em que os jovens pudessem obter uma raacutepida formaccedilatildeo e tambeacutem o ganho mais raacutepido de dinheiro Logo concebeu-se uma educaccedilatildeo de interesse utilitaacuterio subserviente aos desiacutegnios do Estado moderno

A exploraccedilatildeo quase sistemaacutetica que o Estado fez destes anos na medida em que quis o mais cedo possiacutevel atrair para si funcionaacuterios utilizaacuteveis e se assegurar atraveacutes de exames excessivamente rigorosos da sua docilidade incondicional tudo isso estava muito distante da nossa formaccedilatildeo natildeo eacuteramos determinados por qualquer espiacuterito utilitaacuterio qualquer desejo de progredir rapidamente e rapidamente fazer uma carreira percebemos todos um fato que agora nos parece consolador naquele momento nenhum de noacutes sabia no que nos tornariacuteamos e inclusive isto natildeo nos preocupava (EE 2003 p 69)

Diferente dessa euforia o filoacutesofo alematildeo partiu da tese de que a cultura [Kultur] tratar-se-ia de uma determinaccedilatildeo da natureza por isso jamais poderia ser entendida como

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa

17

algo que estivesse fora dela Sendo assim as escolas nada mais faziam senatildeo comprometer todos os princiacutepios que deviam aflorar de maneira espontacircnea pois os mecanismos de inibiccedilatildeo criados pela pedagogia moderna em detrimento da potencialidade dos jovens estudantes fatalmente comprometia todo desenvolvimento humano e integral

Conforme dissemos a pedagogia moderna segundo Nietzsche obteve apoio em duas correntes Para ele complementares e ainda antinaturais responsaacuteveis por trazerem efeitos nocivos agrave sua eacutepoca por um lado a defesa da extensatildeo da cultura e por outro a reduccedilatildeo e o enfraquecimento da mesma Opondo-se veementemente a essas correntes o filoacutesofo declara a necessidade da concentraccedilatildeo da cultura e natildeo o seu alargamento e servidatildeo ao Estado Sua defesa tem como justificativa a certeza de que a educaccedilatildeo natildeo seria um assunto burocraacutetico como o mundo moderno levava a acreditar quando incutia a preocupaccedilatildeo com a inserccedilatildeo de regras a exemplo de grades horaacuterias e dos regulamentos institucionais Nietzsche ainda alega que a extensatildeo da cultura eacute resultado da esperanccedila da modernidade numa crenccedila econocircmica e poliacutetica de interesse voltado agrave geraccedilatildeo de homens comuns apenas preocupados com o ganho de dinheiro e felicidade imediata ndash enfim homens voltados para o serviccedilo da propriedade e do lucro Ora diante disso natildeo haveria outro diagnoacutestico senatildeo o de condenar a visatildeo progressista e universalizante da cultura que acompanhada do anseio das massas e do clamor da sociedade permitiu ao Estado intervir ainda mais na educaccedilatildeo - combinaccedilotildees fatais para alcanccedilar aquilo que o pensador denominava como ldquobarbaacuterie cultivadardquo

Duas correntes aparentemente opostas ambas nefastas nos seus efeitos e finalmente unidas nos seus resultados dominam hoje nossos estabelecimentos de ensino originariamente fundados em bases totalmente diferentes por um lado a tendecircncia de estender tanto quanto possiacutevel a cultura por outro lado a tendecircncia reduzi-la e enfraquececirc-la (EE 2003 p 53)

Mas entatildeo como definirmos uma cultura superior [Kultur] Sabemos que a cultura elevada eacute atribuiccedilatildeo restrita de um pequeno e seleto nuacutemero de pessoas tornando-se portanto incompatiacutevel com o imenso aparelho pedagoacutegico defendido pelo Estado Logo em linhas gerais a cultura jamais conseguiraacute aumentar a sua forccedila enquanto a educaccedilatildeo estiver voltada para formar homens e mulheres somente para o mercado de trabalho Portanto eacute necessaacuteria uma educaccedilatildeo que seja capaz de atrair as forccedilas naturais para que o jovem entatildeo possa captaacute-las a fim de atender os desiacutegnios do vir a ser ou seja de cumprir os interesses que estejam em consonacircncia com a vida

De acordo com o diagnoacutestico nietzschiano os estabelecimentos de ensino davam provas da pobreza espiritual vistas em seus planos pedagoacutegicos por meio das teacutecnicas de formaccedilatildeo e da forma como encaminhavam os jovens para vida Tais instituiccedilotildees continham no bojo de suas transmissotildees o apreccedilo agrave uniformizaccedilatildeo agrave mediocridade e agrave utilidade sempre pautados numa livre personalidade na intenccedilatildeo de preservar os estudantes numa postura de indiferenccedila e de ignoracircncia O bom exemplo desta pobreza espiritual estaria no ginaacutesio uma vez que se tratando de uma modalidade de ensino estrateacutegica que em verdade deveria funcionar como iniacutecio da formaccedilatildeo dos jovens natildeo mostrava entretanto suficiecircncia para realizar esta tarefa e tampouco sedimentar as bases para construccedilatildeo de uma cultura superior [Kultur] O incentivo a autonomia desses estudantes anunciava a grave consequecircncia dessa maturaccedilatildeo precoce por serem obrigados a tomar decisotildees para as

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como

18

quais ainda natildeo estavam preparados Como o proacuteprio pensador afirma ldquobasta apenas entrar em contato com a literatura pedagoacutegica desta eacutepoca eacute preciso estar muito corrompido para natildeo ficar assustado quando se estuda este tema com a suprema pobreza do espiacuterito e com esta verdadeira brincadeira de roda infantilrdquo (EE 2003 p 79)

A alternativa para dar fim a esta situaccedilatildeo desoladora da educaccedilatildeo alematilde no seacuteculo XIX pareceu estar na criaccedilatildeo de outra concepccedilatildeo de educaccedilatildeo e uma nova orientaccedilatildeo pedagoacutegica em condiccedilotildees de oferecer objetivos e meacutetodos inovadores do ensino Para Nietzsche os paracircmetros curriculares e as diretrizes educacionais que deveriam predominar nas instituiccedilotildees de ensino jamais deveriam estar sob a orientaccedilatildeo de estruturas burocraacuteticas ou de interesses poliacuteticos mas sim comandadas por homens superiores dotados de profunda maturidade experiecircncia e riqueza cultural Dessa maneira a primeira accedilatildeo desses verdadeiros homens da cultura seria oporem-se agrave poliacutetica dos filisteus da cultura isto eacute a servidores puacuteblicos sem nenhuma preparaccedilatildeo responsaacuteveis pela depauperaccedilatildeo da cultura e da educaccedilatildeo das instituiccedilotildees de ensino alematildes

Nietzsche (EE 2003 p 87) entende que os curriacuteculos escolares devem ser elaborados tomando por modelo a cultura claacutessica jaacute que se propotildee a corroborar a importacircncia da filosofia e da arte Para tanto haacute a necessidade de articular experiecircncia e cultura embora se reconheccedila o quanto esta tarefa se mostra difiacutecil requerendo grande disposiccedilatildeo de tempo e de acircnimo ao longo de todo processo pedagoacutegico A tarefa da educaccedilatildeo eacute entatildeo fazer entender por meio da experiecircncia pessoal dos alunos e dos estiacutemulos recebidos dos mestres os grandes pensadores do passado uma vez que neles encontra-se o conhecimento e a maturidade que puderam elevar a cultura Dessa forma a cultura superior jamais deveraacute ser confundida com a cultura jornaliacutestica tiacutepica do estilo de vida moderna jaacute que a mesma enquanto disciplina especializada tende agrave pequenez de uma linguagem baacuterbara

Consequentemente caso a cultura natildeo venha corresponder agraves exigecircncias superiores que a enaltecem e lhe atribuem agrave honrosa heranccedila histoacuterica caso ela tenha apenas uma funcionalidade uacutetil e rentaacutevel por conta de sua servidatildeo aos assuntos de interesse do Estado e da economia caso esta cultura esteja conformada com a realidade poliacutetica da sua eacutepoca sem apresentar nenhuma oposiccedilatildeo frente agrave sua realidade caso enfim esteja absorvida e ludibriada pelo excesso de sentido histoacuterico diante disso sob tais situaccedilotildees qualquer fortalecimento da cultura pela via das instituiccedilotildees de ensino segundo a filosofia do jovem Nietzsche torna-se algo demasiadamente improvaacutevel jaacute que para ele

Eacute somente sobre o fundo de uma aprendizagem de um bom uso da liacutengua estrito artiacutestico cuidadoso que se afirma o verdadeiro sentimento da grandeza dos nossos claacutessicos que ateacute agora natildeo se aprendeu a estimar no ginaacutesio senatildeo graccedilas ao amadorismo estetizante e suspeito de alguns mestres isolados ou pelo efeito de um uacutenico conteuacutedo de algumas trageacutedias e de alguns romances mas eacute preciso saber por experiecircncia proacutepria como a liacutengua eacute difiacutecil eacute preciso ao preccedilo de longas pesquisas e de longas lutas alcanccedilar a via por onde marcharam os nossos grandes poetas para perceber com que leveza e beleza eles marcharam e com que inaptidatildeo e grandiloquecircncia os outros os seguiram (EE 2003 p 89)

A educaccedilatildeo aprendida nas escolas e nas universidades deveria se tornar um poderoso arsenal em combate agrave barbaacuterie moderna Nietzsche (EE p 103) declara que a cultura de tipo superior [Kultur] eacute um privileacutegio reservado apenas para um seleto nuacutemero de indiviacuteduos talentosos Assim sendo natildeo se pode pretender que a massa seja capaz de adquiri-la pois

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa

19

o espiacuterito da cultura autecircntica possui uma natureza aristocraacutetica O desejo muitas vezes de estender a cultura a niacuteveis cada vez mais amplos peca pela ingenuidade de ignorar a hierarquia natural existente no intelecto Cabe agrave natureza e somente a ela determinar os dons e as aptidotildees e a quem possa ser distribuiacutedo Assim a aristocracia de tipo espiritual defendida por Nietzsche se enseja por aqueles em condiccedilotildees de seguir os feitos dos grandes homens do passado e ao mesmo tempo ter a capacidade de realizar as grandes obras que ficaratildeo marcadas no selo da eternidade Essa eacute a razatildeo pela qual uma aristocracia do espiacuterito jamais poderaacute limitar-se agrave mera funccedilatildeo poliacutetica de interesse mercantil mas sim preservar a total independecircncia da sua posiccedilatildeo de formador de novas ideias

Concluiacutemos que a cultura autecircntica seraacute sempre inalcanccedilaacutevel caso se mantenha presa agrave formaccedilatildeo de profissionais que concorrem a vagas no mercado de trabalho Vemos dessa maneira que surge na proposta de Nietzsche o implemento de uma cultura aristocraacutetica para aleacutem dos interesses estadistas da poliacutetica e do dinheiro e por conseguinte uma cultura que pretende fazer o homem libertar-se da ldquomaldiccedilatildeo da modernidaderdquo Uma cultura capaz de aproximar os jovens estudantes dos homens raros do passado exibindo seus grandes feitos e o quanto servem de inspiraccedilatildeo para as accedilotildees do presente Mas para chegar-se agrave concretizaccedilatildeo deste projeto de elevaccedilatildeo da cultura seraacute necessaacuterio urgentemente os estudantes se transformarem em verdadeiros combatentes de um mundo inoacutespito que parece natildeo medir esforccedilos em tentar a todo custo esmorececirc-los

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como

20

Referecircncias bibliograacuteficasDROZ Jacques Histoire de l rsquoAllemagne Paris Ed PUF 2003FREZZATTI JR Wilson Antonio Educaccedilatildeo e cultura em Nietzsche o duro caminho para ldquotornar-se o que se eacuterdquo In Nietzsche Filosofia e Educaccedilatildeo AZEREDO Vacircnia Dutra de (Org) Ijuiacute ndash RSUnijuiacute 2008 p 39-65GOETHE Johan Wolfgan Von Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister Trad Nicolino Simone Neto Satildeo Paulo Editora 34 2009MARTON Scarlet Claustros vatildeo se fazer outra vez necessaacuterios In Nietzsche Filosofia e Educaccedilatildeo AZEREDO Vacircnia Dutra de (Org) Ijuiacute ndash RSUnijuiacute 2008 p 17-38NIETZSCHE F W A Filosofia na eacutepoca traacutegica dos gregos Trad Rubens Rodrigues Torres Filho Os preacute-socraacuteticos fragmentos doxografia e comentaacuterios Satildeo Paulo Nova Cultural 2005 _____ Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino NIETZSCHE F W Escritos sobre educaccedilatildeo Trad Noeacuteli C M Sobrinho Rio de JaneiroSatildeo Paulo PUC-Rio Loyola 2003c p 41-137_____ Schopenhauer como Educador In Nietzsche FW Escritos sobre educaccedilatildeo Trad Noeacuteli C M Sobrinho Rio de JaneiroSatildeo Paulo PUC-Rio Loyola 2003b p138-222

Adilson Felicio Feiler

21

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave accedilatildeo mediante a consciecircncia Bewusstsein e a consciecircncia moral Gewissen

Adilson Felicio Feiler1

1 IntroduccedilatildeoA consciecircncia considerada como baluarte do reconhecimento mais pleno da

dimensatildeo humana tem sido uma das dimensotildees humanas colocadas sob suspeita por Nietzsche Toda estabilidade generalizaacutevel que inspira o estado de consciecircncia eacute irredutiacutevel aos fenocircmenos internos responsaacuteveis pela manutenccedilatildeo e pelo crescimento da vida humana Neste sentido se a consciecircncia natildeo acompanha a dimensatildeo orgacircnica proacutepria da vida entatildeo representa rebaixamento e apequenamento

Por um lado a consciecircncia Bewusstsein eacute o estado de consciecircncia o ser consciente de algo na concepccedilatildeo de Nietzsche corresponde ao desenvolvimento mais inacabado da fisiologia humana pela necessidade de se comunicar estados interiores Ao traduzir tais estados na consciecircncia estes perdem a sua originalidade revelando por isso accedilotildees que natildeo correspondem agrave singularidade humana As accedilotildees humanas expressas na consciecircncia revelam nada senatildeo a superfiacutecie rasa e temeraacuteria daquilo que corresponde ao mundo e agrave riqueza humana Por outro lado o movimento de interiorizaccedilatildeo proacuteprio da consciecircncia Gewissen pela sua carateriacutestica conciliadora e apaziguadora conduz ao interdito da descarga instintual Ao inveacutes de agir reage pelo recolhimento para dentro natildeo sente mas ressente Dada esta dimensatildeo internalizadora passiva a consciecircncia Bewusstsein se aproxima de acepccedilatildeo moral da consciecircncia compreendida como maacute consciecircncia schlechte Gewissen Pois somente enquanto movimento em direccedilatildeo ao externo se torna a accedilatildeo produtiva criativa O movimento do criar eacute eminentemente um movimento para fora quando os instintos tornam-se potencializadores da criaccedilatildeo e natildeo recolhimento dos instintos para dentro repercutindo em inaniccedilatildeo Seja a consciecircncia Bewusstsein como desencadeadora de accedilotildees que falseiam os estados interiores seja a consciecircncia Gewissen como accedilotildees colocadas para dentro contra si mesmo em ambos casos estamos diante de ameaccedilas agrave accedilatildeo enquanto expressatildeo de estados interiores do mundo e do ser humano

Na Gaia Ciecircncia a consciecircncia Bewusstsein estaacute intimamente associada agrave pressatildeo da necessidade de se comunicar externar aquilo que passa por dentro ou seja tornar inteligiacutevel o que se sente e se pensa Para fazecirc-lo utiliza-se de expedientes que ao se padronizarem perdem a sua riqueza singular conformando-se ao rebanho

Na Segunda Dissertaccedilatildeo de Para a genealogia da moral Nietzsche desenvolve uma psicologia da consciecircncia Gewissen Este desenho psicoloacutegico natildeo consiste numa explicaccedilatildeo

1 Professor no PPG em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

22

metoacutedica da consciecircncia mas um caraacuteter de apelo a ela de busca da mesma Com isso torna-se patente a perversatildeo dos instintos como interioridade em que os instintos reduzidos agrave inibiccedilatildeo constituem em um campo de accedilatildeo A consciecircncia eacute o instinto de crueldade interiorizada e impedimento de se exteriorizar o que repercute em uma consciecircncia bestial que se aflige a si proacutepria Por essa razatildeo eacute uma consciecircncia maacute que torna a forccedila a disposiccedilatildeo a liberdade e a accedilatildeo latentes reprimidos recuados e mesmo afogados em si mesmos

Nossa proposta eacute a de mostrar como esse mecanismo perverso da maacute consciecircncia eacute capaz de reduzir o ser humano agrave condiccedilatildeo de inoperatividade de natildeo accedilatildeo portanto despida daquilo que o caracteriza como humano sem eacutetica Resta portanto apenas o peso de um fator poderoso externo a moral a esmagar toda a disposiccedilatildeo e propensatildeo para agir Assim como na consciecircncia moral tambeacutem a consciecircncia judicativa compromete a accedilatildeo pela necessidade de comunicaccedilatildeo em seu afatilde de tornar inteligiacutevel o interior e singular

Principiamos em estabelecer pelo meacutetodo genealoacutegico as origens da consciecircncia tanto como consciecircncia em sentido bioloacutegico Bewusstsein como consciecircncia moral Gewissen atraveacutes do processo de exteriorizaccedilatildeo comunicativa e interiorizaccedilatildeo instintual Da exteriorizaccedilatildeo da consciecircncia Bewusstsein e da interiorizaccedilatildeo da consciecircncia Gewissen quando os instintos estatildeo falsificados e encarcerados passamos a refletir sobre os fatores externos que promovem sua manutenccedilatildeo o rebanho e a moral Para enfim apontarmos a disposiccedilatildeo para a accedilatildeo a forccedila plena como remeacutedio agrave falsificaccedilatildeo dos estados interiores e agrave doenccedila conhecida como maacute consciecircncia

2 A gecircnese da consciecircncia como exteriorizaccedilatildeo comunicativa e como interiorizaccedilatildeo instintual

No aforismo 11 da Gaia Ciecircncia encontra-se a primeira reflexatildeo de Nietzsche sobre a consciecircncia Bewusstsein Ela eacute considerada pelo filoacutesofo como o desenvolvimento uacuteltimo e mais inacabado do corpo orgacircnico Pois ao inveacutes da consciecircncia servir-se dos instintos ela serve-se de juiacutezos na maioria apressados e temeraacuterios pois pretendem-se eternos e duradouros ldquoEssa ridiacutecula superestimaccedilatildeo e maacute-compreensatildeo da consciecircncia [] que ateacute hoje foram incorporados somente os nossos erros e que toda a nossa consciecircncia diz respeito a errosrdquo (NIETZSCHE 1999 p 383) A consciecircncia para Nietzsche natildeo pode constituir o ser humano eacute apenas um dos oacutergatildeos que facilitam a sua sobrevivecircncia o oacutergatildeo mais inacabado e por isso inadequado para direcionar-se ao mundo exterior A consciecircncia eacute um movimento imortalizador do nada como acompanhamos numa carta de Nietzsche a Franz Overbeck ldquoEsta humilhaccedilatildeo por trecircs anos este golpe na face este natildeo inexoraacutevel complica com a obrigaccedilatildeo para ganhar a vida [] por outro lado a consciecircncia disso um trabalho imortal que apresenta-se ao lado do nada atualrdquo (NIETZSCHE 1982 p 295) A consciecircncia tende a aguccedilar a forccedila do natildeo e por isso agravando o niilismo Logo tudo o que passa pela consciecircncia acaba falsificado como recorda Scarlett Marton ldquoSe aponta seu caraacuteter falsificador eacute para advertir que aquilo que passa por ela acaba falsificadordquo (MARTON 2016 p 155) Tal falsificaccedilatildeo impregna o proacuteprio corpo que no dizer de Werner Stegmaier ldquo[] carrega a consciecircncia e daacute a ela o que pensar estaacute por sua vez bem distante de ser um fundamento originaacuterio e incondicionadordquo (STEGMAIER 2013 p 43)

A consciecircncia nasce no mesmo solo da linguagem portanto ambos consciecircncia e linguagem estatildeo contaminados pela gregariedade ldquoPara o nascimento da consciecircncia humana poderia se utilizar a consciecircncia do rebanhordquo (NIETZSCHE 1999 p 190)

Adilson Felicio Feiler

23

Tudo o que o homem pensa jaacute estaacute impregnado pela linguagem pelas palavras se toma consciecircncia do pensamento Vacircnia Dutra de Azeredo ao comentar o fenocircmeno da consciecircncia em Nietzsche acentua que para que o homem possa fazer parte da sociedade necessita cultivar a capacidade de se comunicar e a consciecircncia ldquo[] a sua inserccedilatildeo na sociedade requer a comunicaccedilatildeo e portanto a consciecircnciardquo (AZEREDO 2003 p 155) O homem eacute pressionado a manifestar seu pensamento em palavras e quando isso acontece o pensamento torna-se descaracterizado daquilo que lhe eacute mais iacutentimo pessoal e singular Em outras palavras o pensamento pelo filtro da consciecircncia e da linguagem torna-se presa de falsificaccedilotildees A falsificaccedilatildeo promovida pela consciecircncia opera divisotildees e oposiccedilotildees entre o homem e o animal o que de per si natildeo haveria segundo Nietzsche diferenccedila alguma A dimensatildeo gregaacuteria da qual faz nascer a consciecircncia em sentido bioloacutegico ou judicativo2 temeraacuterio nivelador embora guarde suas particularidades natildeo estaacute desligada da acepccedilatildeo de consciecircncia Gewissen no sentido moral

A gecircnese fundamental do fenocircmeno da maacute consciecircncia situa-se na acepccedilatildeo da consciecircncia Gewissen moral para aleacutem da segunda dissertaccedilatildeo de Para a Genealogia da moral Nietzsche antecipa este tema em seu escrito Aleacutem do bem e do mal Preluacutedio a uma filosofia do futuro no aforismo 12 quando mostra como foi estabelecida a psique humana envolta no conceito de alma mediante a sua compreensatildeo atomiacutestica A esse respeito Nietzsche se expressa ldquo[] o atomismo da alma Permita-se designar com esse termo a crenccedila que vecirc a alma como algo indestrutiacutevel eterno indestrutiacutevel como uma mocircnada um aacutetomo essa crenccedila deve ser eliminada da ciecircnciardquo (NIETZSCHE 1999 p 27)

Ora se o corpo eacute compreendido como um campo de forccedilas entatildeo soacute haacute espaccedilo tanto para a dissoluccedilatildeo do princiacutepio claacutessico de individuaccedilatildeo como para a desintegraccedilatildeo do ldquoeurdquo Remeacutedios Aacutevila ao referir-se sobre o ldquoeurdquo desintegrado em Nietzsche recorda que este reflete a pluralidade do corpo composta por tensotildees que compotildeem um campo de batalha (AacuteVILA 1999 p 195) Neste sentido aquela estrutura social dos impulsos e afetos eacute encerrado para dentro de si mesmo Alberto Carlos Onate sobre este processo de interiorizaccedilatildeo da consciecircncia alega ldquoA lsquointeriorizaccedilatildeorsquo eacute fruto de um imenso esforccedilo conciliador apaziguador que arrefece e acaba por interditar a descarga dos instintos favoraacuteveis agrave violecircnciardquo (ONATE 2000 p 35) Este fenocircmeno de interiorizaccedilatildeo equivale a um vulcatildeo que ao inveacutes de expelir cinzas lava e fogo desde o topo de sua cratera os engole para dentro de si mesmo

A consciecircncia moral consiste como recorda Andreacute Luiz Mota Itaparica na ldquo[] introjeccedilatildeo de impulsos agressivosrdquo (ITAPARICA 2016 p 156) Este impulsos internalizados opressivamente como puniccedilatildeo aos que resistem agraves regras do rebanho convertem-se em consciecircncia moral Embora este tema seja abertamente desenvolvido na segunda dissertaccedilatildeo da Genealogia da Moral o tema da consciecircncia remonta agrave obediecircncia aos costumes morais que se depreende de Aurora como segue ldquo[] tambeacutem nossos juiacutezos e valores morais satildeo apenas imagens e fantasias sobre um processo fisioloacutegico de noacutes conhecido [] para designar certos estiacutemulos nervosos Que tudo isso que chamamos de consciecircncia eacute um comentaacuterio mais ou menos fantaacutesticordquo (NIETZSCHE 1999 p 113) Pela imposiccedilatildeo de juiacutezos e valores morais e o consequente castigo agravequeles que natildeo o cumprem tem origem a consciecircncia moral Do campo da consciecircncia permeado pelo natural e o normativo

2 Convencionamos denominar a Consciecircncia Bewusstsein aleacutem de bioloacutegica por ser um produto mais inacabado da fisiologia tambeacutem com uma acepccedilatildeo judicativa Por esta acepccedilatildeo o ser humano pela pressatildeo da necessidade de co-municar estados interiores o faz em forma de juiacutezos apressados que natildeo correspondem a sua legitimidade singular

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

24

se depreende como recorda Christopher Janawy ( JANAWAY 2012 p 04) ldquo() espaccedilo suficiente para a concepccedilatildeo de valorrdquo No campo proacuteprio do valorar que se foi moldando a consciecircncia moral desde um tempo longiacutenquo pela modalidade mais rudimentar entre credor e devedor

Este mesmo sentimento de estar nas matildeos daquele a quem natildeo se eacute capaz de saldar a diacutevida atua como doenccedila que infecta e envenena Marcelo Giglio Barbosa recorda que a ldquo[] consciecircncia aparece nesse contexto como fator de adoecimento de degenerescecircnciardquo (BARBOSA 2000 p 35) Este sintoma que permeia as mentes daqueles aacutevidos por a todo o momento trazerem agrave memoacuteria situaccedilotildees como a escravidatildeo como uma diacutevida impagaacutevel estariam trazendo agrave memoacuteria a necessidade de fazer justiccedila como movimento salutar para a exteriorizaccedilatildeo daquela carga instintual reprimida ou pelo contraacuterio estariam movidos por uma maacute consciecircncia Portanto satildeo incapazes de externar aquela carga instintual singular genuiacutena que se volta contra si mesmo Procuramos responder agrave esta questatildeo ou pelo menos problematiza-la mediante as consideraccedilotildees decorrentes sobre o rebanho e a moral no segundo capiacutetulo

3 O rebanho e a moral como obstaacuteculos agrave accedilatildeo singular e exteriorizadaA consciecircncia Bewsstsein eacute algo do qual se pode prescindir Nas palavras de Oswaldo

Giacoacuteia Juacutenior ldquo[] natildeo existe melhor forma de se inteirar dessa prescindibilidade da consciecircncia do que atraveacutes da fisiologia e da zoologiardquo (GIACOacuteIA 2002 p 31) Pois de todos estes processos fundamentais da vida humana como pensar querer sentir a consciecircncia estaacute ausente De onde vem portanto esta necessidade do refinamento da consciecircncia Natildeo eacute outro senatildeo ldquo[] aquela que inscreve a consciecircncia como funccedilatildeo da capacidade de comunicaccedilatildeordquo (GIACOacuteIA 2002 p 33)

Esta necessidade de comunicaccedilatildeo eacute avaliada em termos natildeo apenas individuais mas em termos de uma raccedila eou naccedilatildeo Por isso ldquo[] a consciecircncia em geral soacute se desenvolveu sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 1999 p 591) Eacute justamente em nome da sobrevivecircncia de grupos sociedades espeacutecies que a comunicaccedilatildeo foi sendo desenvolvida Mais uma vez a marca do rebanho acompanha o DNA da consciecircncia atraveacutes da necessidade de comunicaccedilatildeo Pois antes de se comunicar se sente a necessidade de se refletir o conteuacutedo daquilo que vai ser expressado

Eacute em funccedilatildeo daquilo que eacute comum igualitaacuterio uniformizador que a consciecircncia via linguagem elimina aquilo que eacute diferente e singular Pela eliminaccedilatildeo daqueles caracteres pessoais individuais que delineiam o ser humano se abdica daquilo que o constitui a sua capacidade de agir E justamente sobre este aspecto da accedilatildeo Nietzsche eacute enfaacutetico ldquoNossas accedilotildees satildeo no fundo todas elas pessoais de uma maneira incomparaacutevel uacutenicas ilimitadamente individuais sem duacutevida nenhuma mas tatildeo logo noacutes as traduzimos na consciecircncia elas natildeo parecem mais secirc-lordquo (NIETZSCHE 1999 p592-3) A consciecircncia atua como um filtro uniformizador sobre os caracteres pessoais eliminando as suas diferenccedilas e precisamente aquelas diferenccedilas que satildeo fundamentais para a constituiccedilatildeo da accedilatildeo Mediante o que eacute uacutenico e individual o homem em sua docilidade ao mundo permite que este em seu vir a ser constante como vontade de potecircncia perpasse os seus poros ldquoA vontade de potecircncia exerce-se nos numerosos seres vivos microscoacutepicos que formam o organismo em que cada um quer prevalecer na relaccedilatildeo com os demaisrdquo (MARTON 2000 p 140) O produto deste incessante perpassar da potecircncia nos seres eacute a criaccedilatildeo de sempre novas formas e perspectivas

Adilson Felicio Feiler

25

Ora pela consciecircncia a docilidade agrave terra que eacute abertura ao criar portanto ao agir eacute bloqueada pela imposiccedilatildeo de modelos igualitaacuterios e padronizadores ditados por aquela necessidade de reflexatildeo dos conteuacutedos a serem expressos linguisticamente para ldquo[] tornar inteligiacuteveis suas necessidades (NIETZSCHE 1999 p593) Ao inveacutes do homem ser uma expressatildeo singular e criativa da riqueza do vir a ser do mundo pelo filtro da consciecircncia passa a ser nada senatildeo um receptaacuteculo daquilo que no mundo eacute mais superficial ldquo[] o mundo de que podemos tomar consciecircncia eacute apenas um mundo de superfiacutecies e de signosrdquo (NIETZSCHE 1999 p 593) Anna Hartmann Cavalcanti em seu estudo sobre a gecircnese da concepccedilatildeo da linguagem em Nietzsche se expressa ldquo[] que o instinto assim compreendido natildeo eacute o resultado de uma determinada organizaccedilatildeo corporal ou de um mecanismo espiritual previamente disposto pela natureza mas uma atividade inconsciente do espiacuteritordquo (CAVALCANTI 2005 p 43)

A linguagem consiste num processo de trazer agrave consciecircncia toda aquela estrutura aniacutemica inconsciente que subjaz ao pensamento A abstraccedilatildeo da linguagem contribui para o desenvolvimento intensificaccedilatildeo e manutenccedilatildeo do pensamento consciente O que representa um abalo frontal a carga aniacutemica inconsciente resultando em cristalizaccedilatildeo da accedilatildeo enquanto forccedilas criativas Forccedilas estas que segundo Nietzsche desfazem a ilusatildeo dos conceitos ilusoacuterios como o de alma unidade e sujeito cognoscente De acordo com Marco Parmeggiani ldquo[] Nietzsche submete a criacutetica dos pressupostos gerais do coacutegito o eu-autoconsciente como causa do pensar e a imagem do pensamentordquo (PARMEGGIANI 2002 p 125) A simplificaccedilatildeo pela qual eacute reduzida a consciecircncia Bewusstsein em sua acepccedilatildeo bioloacutegica eacute abdicaccedilatildeo da accedilatildeo pois aqueles modelos padronizadores e igualitaacuterios impedem as relaccedilotildees de forccedila a pluralidade e originalidade da riqueza das diferenccedilas interiores responsaacuteveis pelo movimento do criar Esta caracteriacutestica eacute tambeacutem partilhada pela consciecircncia Gewissen em sua acepccedilatildeo moral Natildeo por impedir a accedilatildeo pelo nivelamento do desigual mas por impedir a externaccedilatildeo da accedilatildeo Logo em ambas acepccedilotildees da consciecircncia a accedilatildeo eacute bloqueada

Dado que os mecanismos e dispositivos da moral tendem a enfraquecer e debilitar pela cristalizaccedilatildeo e engessamentos a padrotildees preacute-determinados o antiacutedoto para tal situaccedilatildeo seria o de desobstruir tais padronizaccedilotildees que permitem realizar o movimento para fora Ora se a maacute consciecircncia eacute uma consideraccedilatildeo das suas propensotildees naturais com um olhar ruim hostil agrave vida e difamador do mundo entatildeo a saiacuteda para reverter esta situaccedilatildeo estaacute na conversatildeo do olhar um olhar bom e afeito agrave vida e que acolha o mundo A moral inibe impede agrave accedilatildeo e tolhe o comportamento desencadeando a maacute consciecircncia Por essa razatildeo o antiacutedoto contra a doenccedila da maacute consciecircncia estaacute na disposiccedilatildeo para a accedilatildeo Como a accedilatildeo repercute internamente enquanto dispositivo para refrear os efeitos maleacuteficos da falsificaccedilatildeo instintual e da maacute consciecircncia

4 A accedilatildeo como dispositivo para a superaccedilatildeo da falsificaccedilatildeo instintual e da maacute consciecircnciaAo falsificar os instintos singulares interiores a consciecircncia Bewusstsein impede

a accedilatildeo no sentido de por ela traduzir estados interiores genuiacutenos senatildeo produtos convencionados pelo rebanho Um traccedilo caracteriacutestico da consciecircncia e o seu caraacuteter falsificador ldquo[] aquilo que por ela passa acaba falsificadordquo (MARTON 2000 p 142) Este nivelamento falsificador promovido pela consciecircncia em forma de linguagem tem na accedilatildeo uma quebra desta generalizaccedilatildeo apressada As accedilotildees humanas por serem uacutenicas individuais e singulares natildeo se rendem ao padratildeo ao comum generalizado e ao vulgarizado

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

26

Elas em sua dinamicidade renovam constantemente tudo aquilo que se pretende fixo e redutiacutevel para tornar fluido Esta necessidade de fluidez esbarra na dimensatildeo do fundamento responsaacutevel por inverter a relaccedilatildeo causa efeito ldquo[] a causa ganha a consciecircncia mais tarde do que o efeito [] a causa eacute imaginada depois que o efeito aconteceurdquo (NIETZSCHE 1999 p 458-9) A centralidade da causa como fundamento de todas as accedilotildees liga-se agrave memoacuteria com base nas experiecircncias passadas e agraves ficccedilotildees com base em falsificaccedilotildees Pela interposiccedilatildeo de um fundamento anterior agrave accedilatildeo a consciecircncia mediante a linguagem pressupotildee juiacutezos destroccediladores da fluidez da experiecircncia interna Assim como a fluidez promovida pela accedilatildeo na consciecircncia Bewusstsein torna os estados interiores expressos em sua singularidade a fluidez promovida pela accedilatildeo na consciecircncia Gewissen promove a sua exteriorizaccedilatildeo

A accedilatildeo eacute um todo instintual que eacute a vida marcada pela luta entre as manifestaccedilotildees pulsionais apoliacutenea e dionisiacuteaca as quais permeiam todo o filosofar nietzschiano Na esteira dessa visatildeo traacutegica da vida Nietzsche de acordo com a leitura de David Hoy procura ldquo[] um caminho estabelecido de vida ndash que foi jaacute colapsadordquo (HOY 1986 p 74) Ora se o traacutegico marca todo o filosofar de Nietzsche entatildeo a criacutetica agrave proacutepria concepccedilatildeo de consciecircncia revela-se como um verdadeiro empreendimento desconstrutivo frente agrave metafiacutesica dogmaacutetica e agrave moral judaico-cristatilde Com isso a proacutepria noccedilatildeo de sujeito passa a perder todo o sentido de que ateacute entatildeo era provida Dada toda a natureza desconstrutiva deste pensamento o mesmo soacute se justifica mediante a afirmaccedilatildeo criadora razatildeo pela qual as teorias das forccedilas e da vontade de potecircncia satildeo de capital importacircncia

Nietzsche apresenta a essecircncia da forccedila natildeo pela fiacutesica que a explica pelos seus efeitos portanto pela crenccedila de que existem coisas Mas caracteriza a forccedila como ldquo[] quanta dinacircmicos em uma relaccedilatildeo de tensatildeo com todos os outros quanta dinacircmicosrdquo (NIETZSCHE 1999 p 373) A forccedila eacute um quanta dinacircmico em que a relaccedilatildeo causal eacute extrapolada pois se caracteriza como simples atuar em direccedilatildeo agrave uma unidade provisional Cada uma destas unidades surge mediante a luta com outros corpos que ao adquirir uma certa firmeza se ajusta com o intuito de ldquo[] expandir a sua forccedila ( - a sua vontade de potecircncia) e a repelir tudo aquilo que resiste agrave sua expansatildeordquo (NIETZSCHE 1999 p 373) Logo todo ser vivo possui uma inclinaccedilatildeo natural natildeo de auto conservaccedilatildeo mas de acreacutescimo de forccedilas3 O viver nesta dinacircmica da vontade de potecircncia natildeo eacute uma tendecircncia para a conservaccedilatildeo nem a duraccedilatildeo mas sim a superaccedilatildeo E como enfatiza Robert Pippin eacute proacuteprio do viver o enfrentamento de todo tipo de forccedilas e resistecircncias por isso a necessidade ldquo[] de reconhecimento e resistecircncia que Nietzsche elogia quando ele discute a auto-superaccedilatildeordquo (PIPPIN 2006 p 114) Diante da realidade das forccedilas a vida eacute accedilatildeo da qual demanda a verdade que eacute interpretar a avaliar E a cada interpretaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo novas e muacuteltiplas interpretaccedilotildees e avaliaccedilotildees se depreendem num movimento que se renova a cada instante que se plenifica

A instauraccedilatildeo de um instante de plenitude conduz a um fazer memoacuteria que natildeo bloqueie a accedilatildeo mas pelo contraacuterio que a potencialize para gerar ainda mais accedilatildeo A terapia que o psicoacutelogo Nietzsche oferece segundo Oswaldo Giacoacuteia eacute a de narcotizar a consciecircncia sofredora pela auto superaccedilatildeo que ldquo[] se faz pela vivecircncia do ressentimento sob o acircngulo da potecircnciardquo (GIACOacuteIA 2013 p 191)

3 ldquoOs fisioacutelogos deveriam refletir antes de estabelecer o impulso de auto conservaccedilatildeo como impulso cardinal de um ser orgacircnico Uma criatura viva quer antes de tudo dar vasatildeo a sua forccedila ndash a proacutepria vida eacute vontade de poderrdquo (NIET-ZSCHE 1999 p 27)

Adilson Felicio Feiler

27

Pelo excedente de forccedila se promove a sauacutede para aleacutem de uma prostraccedilatildeo inerte e incuraacutevel Este acuacutemulo de forccedilas natildeo admite estagnaccedilatildeo ou metas a alcanccedilar compreendidas como estaacutegio final mas como recorda Walter Kaufmann ldquo[] a meta da humanidade natildeo pode situar-se no fim mas apenas nos mais altos espeacutecimesrdquo (KAUFMANN 1968 p 319) Por isso esquecer natildeo eacute o mesmo que natildeo fazer memoacuteria mas impedir com que as marcas desta interfira na capacidade de agir e por essa razatildeo de criar pois caso contraacuterio a vida estaria seriamente comprometida Por essa razatildeo eacute preciso superar ldquo[] estados gerais de prazer e desprazer interpretados segundo a loacutegica da causalidade num processo comandado pela imaginaccedilatildeo que atribui ao mesmo tempo eficaacutecia causal e significaccedilatildeo moral a entidades ou seres fictiacutecios espiacuteritos deuses vontades substanciais consciecircncia sobretudo a consciecircncia moral (Gewissen)rdquo (GIACOacuteIA 2014 p 289)

Pois eacute no jogo instintual e aniacutemico de forccedilas que os limites causais se desconstroem e a vida vai atingindo a sua plenitude em instantes transvalorados E nestes cuja a accedilatildeo eacute tudo o que existe o sujeito natildeo passa de ficccedilatildeo gregaacuteria ditada pela consciecircncia Bewusstsein superfiacutecie signo preconceito moral e maacute consciecircncia Gewissen

5 Consideraccedilotildees finaisAs consideraccedilotildees acima nas ajudaram a perceber como a consciecircncia Bewusstsein e

a consciecircncia Gewissen constituem obstaacuteculos para a manifestaccedilatildeo da accedilatildeo Embora cada acepccedilatildeo de consciecircncia tenha a sua especificidade seja pelo acircmbito judicativo linguiacutestico da consciecircncia que perde toda a singularidade interna seja pelo acircmbito moral que impotildee obstaacuteculos aacute exteriorizaccedilatildeo da accedilatildeo ambas se encontram num ponto comum o do comprometimento da accedilatildeo Pela consciecircncia em ambas acepccedilotildees a accedilatildeo sofre obstaacuteculos agrave sua manifestaccedilatildeo

A consciecircncia Bewusstsein se manifesta pela necessidade de comunicaccedilatildeo e com isso seu conteuacutedo se externa como nivelamento aos padrotildees estabelecidos pelo rebanho A accedilatildeo que daiacute resulta natildeo corresponde aos instintos singulares interiores portanto eacute nada senatildeo juiacutezos falsificados A consciecircncia Gewissen reduz tudo ao acircmbito da desestiacutemulo do desacircnimo e de paz Desse modo ao inveacutes da carga intelectual se projetar para fora se recolhe para dentro interiorizando-se num ataque frontal contra si mesmo uma auto-conspiraccedilatildeo

A satisfaccedilatildeo das necessidades do rebanho atua no sentido de fazer da accedilatildeo massa de manobra o que implica em perda do que caracteriza fundamentalmente a accedilatildeo sua carga plural singular e instintiva A accedilatildeo que deriva deste fenocircmeno da consciecircncia eacute ficccedilatildeo o que natildeo reflete o mundo e o ser humano em sua singularidade A consciecircncia moral tem seu comprometimento da accedilatildeo no recolhimento das forccedilas instintivas ao acircmbito do interno apaacutetico e passivo A moral representa o peso da culpa que retorna a remorder a todo instante impedindo-se com que as forccedilas instintuais se exteriorizem

Logo eacute somente pela potencializaccedilatildeo da accedilatildeo que se poderaacute realizar o movimento inverso o de fazer com que toda aquela carga instintual se mostre em sua originalidade singular e se direcione para fora num processo caracterizado pelo criar No entanto faz-se necessaacuterio para que o dispositivo da accedilatildeo se expresse a ativaccedilatildeo da faculdade do esquecimento Esta longe de ser a anulaccedilatildeo da memoacuteria eacute caracterizada como o natildeo deixar-se determinar pelas feridas contagiantes do passado Eacute nesse niacutevel que o esquecimento poderaacute facilitar o desencadeamento da accedilatildeo que ao criar plenifica cada instante da vida

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

28

Este instante eacute composto por uma multiplicidade de forccedilas em combate cuja accedilatildeo e reaccedilatildeo vatildeo estabelecendo hierarquias como modos de atuaccedilatildeo das forccedilas Dessa pluralidade de forccedilas em tensatildeo origina-se o corpo vital No entanto para que o processo expansionista da criaccedilatildeo se mantenha faz-se necessaacuterio que as forccedilas ativas dominem sobre as forccedilas reativas Ao atuarem fortuitivamente tais forccedilas dissolvem aquelas unidades conceituais ldquoeurdquo ldquosujeitordquo jaacute que a accedilatildeo ocorre destituiacuteda de intencionalidade simplesmente age atua no sentido de lutar impor transvalorar O campo instintual que caracteriza a filosofia de Nietzsche cujas forccedilas manteacutem e promovem a vida necessariamente estaacute orientado para a accedilatildeo

Adilson Felicio Feiler

29

Referecircncias bibliograacuteficasAacuteVILA Remeacutedios Identidad y trageacutedia Nietzsche y la fragmentacioacuten del sujeto Barcelona Editorial Criacutetica 1999AZEREDO Vacircnia Dutra de Nietzsche e a dissoluccedilatildeo da moral Ijuiacute Editora Unijuiacute 2003BARBOSA Marcelo Giglio Criacutetica ao conceito de consciecircncia no pensamento de Nietzsche Satildeo Paulo Editora Beca Produccedilotildees Culturais 2000CAVALCANTI Anna Hartmann Siacutembolo e alegoria A gecircnese da concepccedilatildeo de linguagem em Nietzsche Satildeo Paulo Editora Annablume 2005GIACOacuteIA Oswaldo Jr Nietzsche como psicoacutelogo Satildeo Leopoldo Editora Unisinos 2002_____ Nietzsche O humano como memoacuteria e como promessa 2a ed Petroacutepolis Editoras Vozes 2014HOY David Couzens Nietzsche Hume and the genealogical method In YOVEL Y Nietzsche as affirmative thinker Dordrecht Martinus Nijhoff Publischers 1986 p 69-89ITAPARICA Andreacute Luiacutes Mota Consciecircncia Moral (Gewissen) In Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 p 156-8JANAWAY Chistopher SIMON Robertson (Ed) Introduction In Nietzsche naturalism and normativity Oxford Oxford University Press 2012 p 01-19 KAUFMANN Walter Nietzsche philosopher psychologist antichrist Princeton Princeton University Press 1968 NIETZSCHE F W Die froumlliche Wissenschaft In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Herausgegeben) Kritische Studienausgabe Berlin Verlag de Gruyter 1999 Bd 3 _____ Genealogie zur Moral In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Herausgegeben) Kritische Studienausgabe Berlin Verlag de Gruyter 1999 Bd 5 _____ Nachgelassene fragmente Herbst 1880 bis Maumlrz 1882 In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Herausgegeben) Achte Abteilung Berlin Walter de Gruyter 1999 Bd 9 _____ Nachgelassene fragmente Herbst 1887 bis Maumlrz 1888 In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Herausgegeben) Achte Abteilung Berlin Walter de Gruyter 1999 Bd 13 _____ Nietzsche Briefwechsel Januar 1885 ndash Dezenber 1886 In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Harausgegeben) Dritte Abteilung Berlin Walter de Gruyter 1981 Bd 3_____ A gaia ciecircncia Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Genealogia da Moral Uma polecircmica Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001MARTON Scarlett Extravagacircncias Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche Satildeo Paulo Discurso Editorial 2000_____ Consciecircncia (Bewusstsein) In Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 p 154-6ONATE Alberto Marcos O crepuacutesculo do sujeito em Nietzsche ou como abrir-se ao filosofar sem metafiacutesica Ijuiacute Editora Unijuiacute 2003PARMEGGIANI Marco Perspectivismo y subjetividade em Nietzsche Maacutelaga Universidad de Maacutelaga 2002PIPPIN Robert B Nietzsche psychology and first philosophy Chicago The University of

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

30

Chicago Press 2006 STEGMAIER Werner As linhas fundamentais do pensamento de Nietzsche Petroacutepolis Editora Vozes 2013

Adriano Geraldo da Silva

31

O cristianismo face agrave criacutetica nietzschiana Pressupostos para um diaacutelogo filosoacutefico

Adriano Geraldo da Silva1

A filosofia nietzschiana eacute marcada natildeo raramente pelo tom riacutespido contra algumas instituiccedilotildees que compotildeem a cena do seacuteculo XIX destacando-se sobretudo sua criacutetica ao Cristianismo cujas caracteriacutesticas satildeo amplamente expostas em diversas de suas obras e de modo mais contundente em O Anticristo As reaccedilotildees por parte dos intelectuais cristatildeos por sua vez foram as mais diversas possiacuteveis desde uma recusa categoacuterica a qualquer tipo de diaacutelogo ateacute aqueles que se abriram para tal possibilidade No presente trabalho apresentam-se alguns pressupostos considerados necessaacuterios para o estabelecimento de um possiacutevel diaacutelogo em chave filosoacutefica entre a filosofia cristatilde e Nietzsche Sabe-se contudo que este diaacutelogo tem seus limites Por um lado temos a criacutetica contundente nietzschiana a qual natildeo permite qualquer forma de ldquocristianizaccedilatildeordquo o que seria trair a originalidade de suas intenccedilotildees Por outro lado natildeo seria possiacutevel aqui definir uma ldquoessecircncia cristatilderdquo uma vez que o fenocircmeno cristianismo possui uma seacuterie de vertentes cujas facetas se modificaram ao longo dos seacuteculos que compotildee a sua histoacuteria Ainda observando o cristianismo natildeo se trata tambeacutem de repensaacute-lo ao modo nietzschiano mas de lhe propor sem nenhuma pretensatildeo um exame de consciecircncia sobre a autenticidade de seu discurso

O diaacutelogo que aqui se pretende fundamenta-se em dois eixos distintos primeiramente eacute preciso considerar o modo pelo qual o cristianismo foi interpelado pelos textos de Nietzsche bem como o teor de suas criacuteticas e sobretudo qual cristianismo foi alvo de sua censura Em segundo lugar eacute preciso considerar o que eacute especiacutefico do cristianismo ndash sem a pretensatildeo de apresentar aqui uma ldquoessecircncia do cristianismordquo ndash bem como as formas diversas que o cristianismo tomou ao longo de sua histoacuteria apesar de sua especificidade o que permite observar de modo preciso em quais dessas formas predominam as caracteriacutesticas denunciadas por Nietzsche A partir destes eixos apresentados desenvolve-se o presente trabalho

Em primeiro lugar cabe uma anaacutelise do texto nietzschiano o que torna perceptiacutevel ao leitor que o cristianismo eacute tomado primeiramente como uma forma moral na qual se cria um mundo ilusoacuterio distante da realidade

Nem a moral e nem a religiatildeo tem no cristianismo contato com algum ponto da realidade Causas puramente imaginaacuterias (lsquoDeusrsquo lsquoalmarsquo lsquoeursquo lsquoespiacuteritorsquo lsquoa vontade livrersquo e tambeacutem a natildeo livre) efeitos puramente imaginaacuterios (lsquopecadorsquo lsquoredenccedilatildeorsquo lsquograccedilarsquo lsquocastigorsquo lsquoremissatildeo dos pecadosrsquo)

1 Faculdade Catoacutelica de Pouso Alegre

O cristianismo face agrave criacutetica

32

[] Este puro mundo de ficccedilotildees se distingue muito a seu desfavor do mundo dos sonhos pelo fato de que este reflete a realidade enquanto aquele a falsifica desvaloriza em suma nega a realidaderdquo (AC 15)

Natildeo obstante aleacutem de cindir a realidade em dois mundos2 o cristianismo cria uma oposiccedilatildeo de valor entre ambos Diraacute Nietzsche

Uma vez inventado o conceito de lsquonaturezarsquo como antiacutetese ao conceito rsquoDeusrsquo a palavra para expressar lsquoreprovaacutevelrsquo teve que ser lsquonaturalrsquo ndash todo aquele mundo de ficccedilotildees tem sua raiz no oacutedio ao natural (a realidade) eacute expressatildeo de um profundo descontentamento com o real poreacutem com esta afirmaccedilatildeo tudo se aclara (AC 15)

Neste sentido a experiecircncia cristatilde seria restrita agrave negaccedilatildeo da natureza humana baseada numa forma de ascese como modo de aproximaccedilatildeo do niacutevel espiritual Desta constataccedilatildeo Nietzsche tira quatro conclusotildees as quais traccedilam um fio condutor desde o sentimento de sofrimento com a efetividade da vida ateacute o infortuacutenio da deacutecadence a) quem nega a efetividade eacute justamente quem sofre com ela [ldquoQuem eacute o uacutenico a possuir razotildees para esquivar-se atraveacutes de uma mentira da realidade Aquele que sofre com elardquo (AC15)] b) quem sofre com a efetividade eacute na verdade uma efetividade malograda fracassada c) esta efetividade malograda cria por sua vez a moral e a religiatildeo cuja causa eacute a preponderacircncia dos sentidos de desprazer sobre os sentidos de prazer d) esta eacute a foacutermula para a decadecircncia ldquoEm Deus [tido sobretudo como fundamento da realidade natildeo efetiva ou ilusoacuteria] declarada a hostilidade agrave vida agrave natureza agrave vontade de vida [] Em Deus divinizado o nada santificada a vontade de nadardquo (AC 18) Do que fora exposto pode-se estabelecer a seguinte equaccedilatildeo Fraqueza ndash Antinatureza ndash Ficccedilatildeo religiosa (estabelecimento de noccedilotildees como pecado e vida eterna) ndash Moral (que tem por causa e finalidade as ficccedilotildees religiosas) ndash Decadecircncia

Este primeiro eixo sintetiza enfim o que seriam as caracteriacutesticas na anaacutelise de Nietzsche sustentadoras da moral cristatilde a noccedilatildeo de pecado e de consciecircncia (como possibilidade de avaliar moralmente os proacuteprios atos autoconsciecircncia maacute consciecircncia ou sentido de culpa) Natildeo se trata aqui de fazer uma longa e aprofundada explanaccedilatildeo das ideias de pecado e consciecircncia mas apenas de indicar seu lugar dentro da criacutetica nietzschiana ao cristianismo Sobretudo eacute preciso dizer que ambas as noccedilotildees estatildeo intrinsecamente ligadas de tal modo que em Genealogia da moral Nietsche associa no acircmbito preacute-histoacuterico quando da formaccedilatildeo da memoacuteria no animal homem a ideia de culpa e maacute consciecircncia como fundamentais para o desenvolvimento da religiatildeo a partir da ideia de sacrifiacutecio e ascese Ou seja da inibiccedilatildeo de sua descarga de vontade o homem interioriza-se encontra-se como um animal consciente de si e de sua culpa (da culpa natural das pulsotildees volitivas)

[] Os velhos instintos natildeo cessaram repentinamente de fazer suas exigecircncias Mas era difiacutecil raramente possiacutevel lhes dar satisfaccedilatildeo [] Todos os instintos que natildeo se descarregam para fora voltam-se para dentro ndash isto eacute o que chamo de interiorizaccedilatildeo do homem eacute assim que no homem cresce o que depois se denomina sua lsquoalmarsquo (GM II 16)

2 Eacute preciso ressaltar que o cristianismo natildeo cria especificamente esta cisatildeo entre dois mundos Aqui Nietzsche tem em mente a filosofia socraacutetico-platocircnica e a distinccedilatildeo entre real e ideal Todavia esta distinccedilatildeo eacute assimilada pela teologia cristatilde e legitimada pela filosofia moderna

Adriano Geraldo da Silva

33

Na consciecircncia moral reside o que haacute de mais elaborado pelo cristianismo segundo Nietzsche Justamente nesta consciecircncia moral se defenestram os instintos e a vontade de vida agrave medida em que o homem se torna doente a partir de sua fraqueza Natildeo lhes resta outra saiacuteda a natildeo ser formular dispositivos que lhe permitam ainda que ilusoriamente superar seu estado de fraqueza e doenccedila Em outras palavras esta construccedilatildeo teoacuterica se configura como verdadeiro ato de rebeliatildeo e de vinganccedila A moral cristatilde em suma nasce da fraqueza e do oacutedio oriundo desta fraqueza impossibilitado de realizar qualquer tipo de vinganccedila senatildeo ilusoacuteria Portanto o que move o cristianismo como instituiccedilatildeo racional e moral seria a sede de vinganccedila do tipo psicoloacutegico fraco e doente em vista de sua dominaccedilatildeo sobre aqueles que verdadeiramente satildeo nobres As doutrinas cristatildes se convertem em verdadeiro narcoacutetico para a cultura dos miseraacuteveis Reduzido agrave moral o cristianismo teria como motivaccedilatildeo a vinganccedila e o oacutedio

A partir deste primeiro eixo e sem pretender nenhum tipo de sistematizaccedilatildeo artificial nem nenhum achatamento das variaccedilotildees lexicais e conceituais presentes na obra nietzschiana propotildee-se aqui a identificaccedilatildeo das teses mais recorrentes de Nietzsche em sua anaacutelise do cristianismo Mais do que um retrato exaustivo elas pretendem apenas facilitar uma visatildeo de conjunto que seraacute uacutetil para a continuaccedilatildeo da reflexatildeo

1- O cristianismo eacute uma religiatildeo que perdeu sua essecircncia religiosa (perdeu o sentimento dos mitos) pondo no lugar dela a pretensatildeo de historicidade e racionalidade no que se distancia da Antiguidade grega

2- O cristianismo opotildee-se agrave postura esteacutetica diante do mundo3- O cristianismo eacute oposiccedilatildeo agrave vida efetiva4- O cristianismo eacute sinocircnimo de fraqueza5- As proacuteprias formulaccedilotildees cristatildes satildeo incoerentes agrave medida em que se desvirtua ateacute

mesmo a Sagrada escritura com o intuito de fundamentar suas tesesSe a interpretaccedilatildeo nietzschiana vecirc no cristianismo a consequecircncia da rebeliatildeo

fraca na moral (de tal modo que os fracos sedentos de vinganccedila mas impotentes para realizaacute-la elaboram a moral como forma de imposiccedilatildeo sobre o modo de valorar nobre) parece legiacutetimo perguntar para aleacutem do trabalho teoacuterico de interpretaccedilatildeo do cristianismo feito por Nietzsche pelas formas cristatildes histoacutericas com as quais ele teve contato e que o levaram a tal trabalho teoacuterico Natildeo se trata de buscar algo como ldquocausas histoacutericasrdquo de seu pensamento mas as vivecircncias efetivas e de caraacuteter cristatildeo que representavam para Nietzsche a manifestaccedilatildeo do que ele denominava a ldquoessecircnciardquo do cristianismo Em outras palavras trata-se de procurar identificar nos textos do proacuteprio Nietzsche referecircncias a vivecircncias cristatildes histoacutericas do ressentimento

Ao proceder a esse tipo de leitura nota-se que as referecircncias fundamentais de Nietzsche podem ser associadas ao cristianismo tal como concebido em continuidade com a Reforma Protestante iniciada por Lutero especialmente na forma do pietismo Certamente a ldquovivecircncia protestante e pietistardquo podia ser encontrada tambeacutem em formas histoacutericas do catolicismo mas isso natildeo vem ao caso aqui porque o que interessa eacute destacar vivecircncias cristatildes modeladas pelo ressentimento (independentemente de serem de matriz protestante ou catoacutelica) Historicamente o cristianismo reformado e pietista seriam as duas formas fundamentais com as quais Nietzsche deparou na Alemanha do seacuteculo XIX A caracteriacutestica central dessas formas estaria sem duacutevida na identificaccedilatildeo exacerbada da

O cristianismo face agrave criacutetica

34

experiecircncia cristatilde com uma moralidade a ponto de oferecer a Nietzsche a possibilidade de distinguir entre o cristianismo de Paulo (moralista e inautecircntico) e o cristianismo de Jesus (autecircntico mas terminado na cruz)

A contraposiccedilatildeo com o Renascimento permite entender o sentido identificado por Nietzsche na Reforma Protestante Com efeito Renascimento e Reforma constituem o conjunto de eventos que marcaram profundamente a eacutepoca moderna na medida em que estabeleceram uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre si (cf Valadier 1982 p 107)

Ateacute agora houve apenas esta grande guerra e nada mais decisivo que o questionamento da Renascenccedila [] Tambeacutem nunca houve uma forma de ataque mais radical mais direta mais severa em todo o fronte contra o centro Atacar no lugar decisivo na proacutepria sede do cristianismo colocar aiacute no trono os valores nobres quer dizer introduzi-los nos instintos necessidades apetites mais baacutesicos [] O que ocorreu Um monge alematildeo Lutero esteve em Roma Esse monge que levava em seu corpo todos os instintos vingativos de um sacerdote fracassado se indignou em Roma contra o Renascimento (AC 61)

Quanto ao segundo eixo eacute preciso definir o que seria o especiacutefico cristatildeo bem como suas formas histoacutericas e qual a predominacircncia em sentido de ideologia persiste na denominaccedilatildeo cristatilde Neste momento do trabalho satildeo articulados alguns textos de Max Scheller e Joseph Ratzinger no que diz respeito agrave especificidade do cristianismo e uma posiccedilatildeo com relaccedilatildeo agraves criacuteticas nietzschianas O cristianismo eacute tomado por estes autores natildeo a partir do estabelecimento de uma doutrina moral mas sobretudo a partir de um caraacuteter precisamente existencial o que por sua vez mostra como vaacutelidas as criacuteticas de Nietzsche como fora dito anteriormente que faz ao cristianismo realizar um verdadeiro exame de consciecircncia sobre suas escolhas teoacutericas e praacuteticas desde que se considere algumas formas histoacutericas especiacuteficas e natildeo o cristianismo como um todo Em linhas gerais tal diaacutelogo o qual eacute almejado requer como dado inegociaacutevel a clara consciecircncia de que o cristianismo natildeo eacute em primeiro lugar uma moral assim como a feacute cristatilde natildeo nasce de uma decisatildeo moral

Max Scheler por exemplo se encarregaraacute de mostrar que a criacutetica nietzschiana do cristianismo natildeo pressupotildee o cristianismo em sua ldquopureza essencialrdquo3 livre das mutaccedilotildees ocorridas ao longo da Histoacuteria Assim a distinccedilatildeo entre um cristianismo essencial e autecircntico de um lado e um cristianismo histoacuterico e eventualmente inautecircntico de outro permite entrever que a posiccedilatildeo de Nietzsche eacute correta ao apontar para riscos efetivos no seio do cristianismo como o ressentimento o excessivo espiritualismo como fuga do mundo etc Dessa perspectiva uma consideraccedilatildeo da criacutetica nietzschiana pode ser de grande importacircncia para a autoanaacutelise cristatilde ldquoO que Nietzsche nos ensina mediante essa criacutetica a lsquomarteladasrsquo eacute a necessidade de submeter a uma criacutetica vigorosa o desejo que lhe confere seu valor aos olhos do proacuteprio crente antes de aderir a uma convicccedilatildeordquo (cf Granier 1981 p 128)

Parece-nos vaacutelido entatildeo fazer uma distinccedilatildeo natildeo apenas na interpretaccedilatildeo nietzschiana do cristianismo mas dentro do proacuteprio desenvolvimento histoacuterico do mesmo entre formas autecircnticas cujo frescor resguarda os lampejos da experiecircncia original e formas inautecircnticas sobretudo corrompidas de acordo com interesses nascidos no desenrolar histoacuterico Eacute justamente nesta distinccedilatildeo que encontra-se guardadas as devidas proporccedilotildees a chave para um diaacutelogo a niacutevel filosoacutefico entre o cristianismo e Nietzsche

3 O vocabulaacuterio da ldquopurezardquo deve ser entendido aqui em continuidade com o vocabulaacuterio fenomenoloacutegico (proacuteximo agrave forma vazia por exemplo) e natildeo com um vocabulaacuterio eacutetico

Adriano Geraldo da Silva

35

Como se percebe em seus escritos especialmente em O Anticristo Nietzsche distingue entre a figura de Jesus e o movimento cristatildeo posterior de tal modo que o cristianismo jaacute natildeo possuiria nada da existecircncia de seu pretenso fundador que aliaacutes teria sido o uacutenico cristatildeo que existiu de fato (cf Nietzsche 2007 p 77) mas que tambeacutem teria sido desfigurado em sua imagem quando da introduccedilatildeo do fanaacutetico em seu tipo psicoloacutegico (cf Nietzsche 2007 p 68) Entre Jesus e o cristianismo haveria um ato da mais pura sede de vinganccedila (cf Nietzsche 2007 p 80) realizado por Paulo na sistematizaccedilatildeo doutrinaacuteria e moral do cristianismo que seriam a seu ver produtos mais imediatos do ressentimento (cf Nietzsche 2007 p 80)

Natildeo deixa de ser curioso notar certa admiraccedilatildeo nutrida por Nietzsche para com a figura de Jesus No paraacutegrafo 36 de O Anticristo esta admiraccedilatildeo eacute expressa a modo de comparaccedilatildeo quando Nietzsche se diz tambeacutem um espiacuterito que chegou agrave liberdade assim como Jesus eacute dito um espiacuterito livre4 e somente por esta caracteriacutestica eacute que se poderia realizar entatildeo uma verdadeira compreensatildeo daquele evento distante quase vinte seacuteculos de si (cf Nietzsche 2008 p 73) O fato de Nietzsche comparar-se a Jesus indica para aleacutem da admiraccedilatildeo natildeo apenas o desejo de igualaacute-lo mas principalmente de superaacute-lo (cf Biser 1981 p 75) na medida em que propotildee um novo modo de conceber a vida e o mundo

As principais caracteriacutesticas pertencentes agrave figura de Jesus e elencadas por Nietzsche traccedilam um tipo completamente oposto a qualquer fixidez moral ou doutrinal que possa ser encontrada na tradiccedilatildeo eclesiaacutestica ou nos proacuteprios evangelhos Trata-se no dizer de Nietzsche de recompor a figura de Jesus contida nos evangelhos apesar de os evangelhos conterem todas as possiacuteveis desfiguraccedilotildees feitas pelas primeiras comunidades cristatildes que os transformaram em um modo de promover a autoafirmaccedilatildeo de sua doutrina e moral (cf Nietzsche 2007 p 64) Para Nietzsche Jesus eacute este espiacuterito livre (cf Nietzsche 2007 p 69) cujo discurso natildeo possui nenhuma foacutermula tampouco condiccedilotildees rituais para se comunicar com Deus (cf Nietzsche 2007 p 71) A praacutetica de Jesus para Nietzsche jaacute natildeo se situa em um aleacutem-vida e aleacutem-homem trata-se ao contraacuterio de uma praacutetica que assume a condiccedilatildeo humana sem rechaccedilaacute-la ( Jaspers 1978 p 30)

O proacuteprio reino anunciado por Jesus natildeo se confunde com qualquer estrutura poliacutetica mas trata-se de um estado do coraccedilatildeo que aliaacutes natildeo eacute reservado para uma vida aleacutem mas acontece agora (cf Nietzsche 2007 p 72) Nietzsche viu no reino anunciado por Jesus o oposto do que se via no cristianismo principalmente em formulaccedilotildees nas quais prevalecia o aspecto excessivamente moral

No entanto eacute tambeacutem verdade que em suas formas histoacutericas o cristianismo e as praacuteticas cristatildes individuais tornaram e ainda tornam opaca a autenticidade da experiecircncia cristatilde Vista sob esse aspecto a criacutetica nietzschiana parece acertada e vaacutelida

4 Eugen Biser alude a esta admiraccedilatildeo de Nietzsche para com a figura de Jesus de modo que o proacuteprio modo como Nietzsche realiza sua leitura do evento cristatildeo e ateacute mesmo da filosofia demonstra por sua vez certa semelhanccedila com o nazareno ldquoComo Jesus se considerava a luz que brilha nas trevas tambeacutem Nietzsche se sentiu como uma superabundacircncia de luz Como se narra que Jesus falava com plena autoridade tambeacutem Nietzsche tendia a mandar em vez de argumentar como Jesus chamava agrave conversatildeo tambeacutem Nietzsche exige a revalorizaccedilatildeo de todos os valores Como Jesus viveu na consciecircncia de que com ele chegara a plenitude dos tempos tambeacutem Nietzsche se sentiu como o acontecimento importante que faz eacutepoca que redetermina a histoacuteria da humanidaderdquo (Biser 1981 p 75)

O cristianismo face agrave criacutetica

36

Referecircncias bibliograacuteficas

Obras de NietzscheNIETZSCHE Friedrich El Anticristo Trad Andreacutes Sancheacutes Pascual Madrid Alianza Editorial 2007_____ Genealogia da Moral Uma polecircmica Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ La genealogia de la moral Trad Andreacutes Sancheacutes Pascual Madrid Alianza Editorial 2005_____ Obras Incompletas Trad Rubens Rodrigues Torres Filho Satildeo Paulo Abril Cultural 1999

Obras sobre Nietzsche e o cristianismoBENTO XVI A ldquoconversatildeordquo de Satildeo Paulo Audiecircncia Geral Disponiacutevel em httpsw2vaticanvacontentbenedictxviptaudiences2008documentshf_ben-xvi_aud_20080903html 3 de setembro de 2008BISER Eugen Relaccedilatildeo de Nietzsche com Jesus um confronto psico-literaacuterio Concilium Nietzsche e o Cristianismo Petroacutepolis Editora Vozes vol 165 n 5 paacuteg 74 ndash 82 1981CONCILIUM Nietzsche e o Cristianismo (Revista) Petroacutepolis Editora Vozes vol 165 n 5 1981FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Trad Joaquim Lourenccedilo Duarte Peixoto Lisboa Editorial Presenccedila 1988GRANIER Jean Pensar com e contra Nietzsche Concilium Nietzsche e o Cristianismo Petroacutepolis Editora Vozes vol 165 n 5 paacuteg 124 ndash 130 1981JASPERS Karl Nietzsche ndash Introduction agrave sa philosophie Trad Henri Niel Paris Gallimard 1950 _____ Nietzsche e il cristianesimo Trad Maria Dello Preite Bari Ecumenica Editrice 1978MUumlLLER-LAUTER Wolfgang A doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche Trad Oswaldo Giacoia Juacutenior Satildeo Paulo ANNABLUME 1997 _____ Nietzsche sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia Trad Claudemir Araudi Satildeo Paulo Editora Unifesp 2009SCHELER Max Da reviravolta dos valores Trad Marco Antocircnio dos Santos Casanova Petroacutepolis Editora Vozes Braganccedila Paulista Editora Universitaacuteria 2012SLOTERDJIK Peter Il quinto ldquoVangelordquo di Nietzsche Sulla correzione delle buone noticie Trad Eleonora Florio Milano Mimesis Edizioni 2015VALADIER Paul A condiccedilatildeo cristatilde Estar no mundo sem ser do mundo Trad Benocircni Lemos Aparecida Editora Santuaacuterio 2006 _____ Nietzsche y la critica del Cristianismo Trad Eloy Rodriguez Navarro Madrid Ediciones Cristandad 1982WOTLING Patrick Nietzsche e o problema da civilizaccedilatildeo Trad Vinicius de Andrade Satildeo Paulo Editora Barcarolla 2013

Alianna Caroline Sousa Cardoso

37

Da genealogia da teoria do crime no direito penal brasileiro Uma criacutetica ao livre - arbiacutetrio a partir de Nietzsche e a neurociecircncia

Alianna Caroline Sousa Cardoso1

IntroduccedilatildeoO direito penal brasileiro atua em consonacircncia com a perspectiva da imputabilidade

enquanto a possibilidade de se atribuir a autoria ou responsabilidade por fato criminoso a algueacutem Diante dessa oacutetica parte-se do pressuposto de que o indiviacuteduo criminoso eacute responsaacutevel pela conduta a ele atribuiacuteda e por ela deve ser punido Toda a teoria do crime encontra-se pois vinculada a uma ideia de que mencionado indiviacuteduo seria livre para a execuccedilatildeo da accedilatildeo criminosa e por ela teria optado por isto por ela deve ser responsabilizado A hipoacutetese sustentada nesse trabalho2 pressupotildee por outro lado ser possiacutevel conceber em Nietzsche que o problema da liberdade que se apresenta dentro do direito penal brasileiro como mecanismo de estrutura do segmento da punibilidade encontra-se vinculado agrave bases fundacionais de uma moralidade cristatilde arraigada numa perspectiva contratual utilitaacuteria cuja concepccedilatildeo tem eacutegide no modo como concebemos a ideia de livre-arbiacutetrio desde Santo Agostinho Mencionado livre-arbiacutetrio eacute levado a cabo na construccedilatildeo da ideia de escolha consciente

O problema da consciecircncia eacute abordado pela filosofia desde muito A partir de Descartes o que se tem eacute a separaccedilatildeo mente-corpo e toda a filosofia se desmembra a partir desta classificaccedilatildeo Em que pese possa-se afirmar que amplos debates ainda se mostram possiacuteveis natildeo houve ainda nenhum consenso acerca do papel da consciecircncia e de qual seria sua importacircncia na constituiccedilatildeo das accedilotildees humanas Sabe-se no entanto que existe uma ideia formada e que eacute pano de fundo para afirmaccedilotildees do senso comum de que a consciecircncia eacute palco da razatildeo e esta atua de modo moral a partir de uma ideia de vontade ou seja atua conscientemente aquele que afirma eu quero

Destarte Nietzsche noutro norte propotildee numa oacutetica perspectivista outro vieacutes a partir da concepccedilatildeo de uma fisiologia bioloacutegica sustentada por ele ainda no Seacuteculo XIX e que segue

1 Universidade Federal de Pelotas ndash UFPel2 O presente artigo eacute um recorte da Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Banca Examinadora do Programa de PoacutesGraduaccedilatildeo

strictu sensu em filosofia pela Universidade Federal de Mato Grosso como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre sob a orientaccedilatildeo do Professor Doutor Tiegue Vieira Rodrigues intitulada ldquoUma anaacutelise Genealoacutegica do Direito e da Pena de Prisatildeo a partir da filosofia de Friedrich Nietzscherdquo defendida em 09 de Novembro de 2016 podendo ser encontrada em httpwwwufmtbrufmtunidadeuserfilespublicacoesc7bc6613a109d9dc7084da-d742c66246pdf tambeacutem faz parte dos estudos desenvolvidos em sede de doutoramento para a construccedilatildeo da tese denominada ldquoO PROBLEMA DA LIBERDADE EM NIETZSCHE E NA NEUROCIEcircNCIA Contribuiccedilotildees para a Criacutetica ao Livre-Arbiacutetrio no Direito Penal Brasileirordquo sob a orientaccedilatildeo do Professor Dr Clademir Araldi na Universidade Federal de Pelotas- UFPel

Da genealogia da teoria do crime no direito

38

sendo alvo de debates tambeacutem dentro de outras ciecircncias como a psicologia a neurociecircncia bem como outros eixos da filosofia como a epistemologia moral a filosofia analiacutetica e a filosofia da mente O principal foco de discussatildeo eacute a influecircncia ou natildeo de circunstacircncias bioloacutegicas que possam condicionar o comportamento humano enquanto necessaacuterio e de que modo eacute possiacutevel pensar o indiviacuteduo e o problema da consciecircncia a partir de perspectivas fisio(psico)loacutegicas Sustentamos pois que a par da moralidade insculpida no comportamento humano a partir de traccedilos de uma tradiccedilatildeo cultural subsiste no homem uma moralidade compartilhada biologicamente por meio de processos inconscientes que podem contribuir para pensarmos numa tradiccedilatildeo geneacutetica donde a moralidade perpassa o caraacuteter bioloacutegico

Atraveacutes do perspectivismo Nietzschiano sustentamos ser possiacutevel analisar algumas ideias desenvolvidas pelas ciecircncias naturais para a determinaccedilatildeo da personalidade e os problemas disso resultantes sob uma anaacutelise dos estudos de Nietzsche acerca da junccedilatildeo que faz de conceitos cientiacuteficos e filosoacuteficos para a construccedilatildeo de sua ideia de liberdade a partir de sua ldquoteoria das forccedilasrdquo e a consequente tomada de sua filosofia a partir da ideia de inconsciente e sua correlaccedilatildeo com as funccedilotildees fisioloacutegicas do corpo

O principal foco de discussatildeo eacute a noccedilatildeo de consciente sob a oacutetica da fisiologia do corpo orgacircnico como guia para verificar a origem dos sentimentos e valores morais bem como como fio condutor da teoria nietzschiana da interpretaccedilatildeo sobretudo de sua psicologia da cultura moderna Retratamos pois o acircmbito ldquopsicoloacutegicordquo da existecircncia humana assimilado pela compreensatildeo do valor da vida pelo vieacutes fisioloacutegico tornando-se possiacutevel falarmos de uma ldquopsicofisiologiardquo ou de uma ldquofisiopsicologiardquo em Nietzsche (FREZZATTI 2006)

Objetivamos pois avaliar a reflexatildeo de Nietzsche acerca da suposta projeccedilatildeo de causas das impressotildees sensiacuteveis no mundo externo ou seja a ideia do filoacutesofo acerca da causa interna de uma accedilatildeo correlacionando a criacutetica Nietzschiana agrave ideia de liberdade da vontade e as accedilotildees (in)conscientes a partir de sua fisiologia e recentes estudos da neurociecircncia Para analisar se eacute possiacutevel afirmar a existecircncia de uma liberdade da vontade nas accedilotildees humanas ou se esta estaacute inserida no campo do inconsciente

A filosofia contemporacircnea ainda se debruccedila no tema da consciecircncia sem de fato chegar a uma conclusatildeo especiacutefica acerca da subjetividade existente nas experiecircncias Por natildeo haver um entendimento paciacutefico algumas subdivisotildees terminaram por emergir Citemos por exemplo os eliminativistas que eliminam qualquer caraacuteter qualitativo da experiecircncia Aleacutem destes tambeacutem precisamos considerar aqueles que negam a ideia da manifestaccedilatildeo da consciecircncia unicamente sob a oacutetica neurofisioloacutegica e ainda os que a consideram sob uma oacutetica naturalista

Acerca da divisatildeo corpo-mente GUIMARAtildeES (2010 p 215-216) nos apresenta um apanhado dos debates existentes

David Chalmers em ldquoFacing Up to The Problem of Consciousnessrdquo (1995) coloca que o problema filosoacutefico ldquodurordquo acerca da consciecircncia (the hard philosophical problem) eacute abordaacute-la a partir do problema da identidade entre o fiacutesico e o mental Para Thomas Nagel (1992) por exemplo haveria uma espeacutecie de lacuna (gap) entre a consciecircncia fenomenal e as explicaccedilotildees fisicalistas de descriccedilotildees da experiecircncia fenomenoloacutegica Segundo Nagel identificar o fenocircmeno mental com o fiacutesico reduziria a consciecircncia a meros processos neuroquiacutemicos e com isso natildeo haveria a necessidade

Alianna Caroline Sousa Cardoso

39

da qualidade da experiecircncia subjetiva os qualia fazendo com que sua concepccedilatildeo juntamente com a de Chalmers encaixe-se no segundo grupo referido anteriormente Apesar de natildeo defender a existecircncia dos fenocircmenos da consciecircncia sem o suporte fiacutesico do ceacuterebro e de suas funccedilotildees neuroquiacutemicas e fisioloacutegicas os proponentes desta concepccedilatildeo crecircem que a consciecircncia e os qualia possuam um domiacutenio privado da perspectiva do sujeito na primeira pessoa que natildeo pode ser inteiramente naturalizado nem compreendido O fisicalismo poderia predizer da perspectiva da terceira pessoa as correlaccedilotildees entre os qualia e as condiccedilotildees objetivas do ceacuterebro mas natildeo pode explicaacute-las satisfatoriamente Daniel Dennett (2003) e Fred Dretske (1997) defendem a tese de que nenhum fato consciente pode ser acessiacutevel apenas a um sujeito sob um uacutenico ponto de vista Dennett tem a sua teoria da heterofenomenologia em que a consciecircncia eacute descrita da perspectiva da terceira pessoa em uma abordagem que permite uma espeacutecie de organizaccedilatildeo e catalogaccedilatildeo dos dados primaacuterios que esta recebe Jaacute os naturalistas da mente procuram oferecer uma explicaccedilatildeo dos fatos mentais a partir de uma descriccedilatildeo dos estados e processos mentais como aspectos relativos ao ceacuterebro e ao sistema nervoso central Dentre estes estaacute Dretske que propotildee uma naturalizaccedilatildeo da consciecircncia segundo uma abordagem representacionalista () O que Dretske procura fazer grosso modo eacute a preservaccedilatildeo do caraacuteter subjetivo e privado dos qualia compatibilizando isto com a ideacuteia dos mesmos poderem ser determinados objetivamente atraveacutes de uma relaccedilatildeo representacional

De fato o debate no entorno da epistemologia moral estaacute intimamente ligado agrave ideia de como se daacute a relaccedilatildeo entre a mente (ou psique) e o corpo a partir dos escritos de Descartes No entanto independentemente de qual posiccedilatildeo adotarmos perante a ideia que se coloca frente ao dilema da existecircncia ou natildeo de uma separaccedilatildeo eacute impossiacutevel ignorarmos que dentro da proacutepria histoacuteria da filosofia alguns nomes como Hipoacutecrates com sua teoria dos humores e Galeno que a ela aperfeiccediloou estabeleciam relaccedilotildees no miacutenimo coerentes entre um elemento e outro3

Tambeacutem natildeo se pode ignorar a presenccedila dos questionamentos acerca de tais elementos e suas configuraccedilotildees jaacute em Aristoacuteteles por exemplo que indagou sobre como e porquecirc a mente capaz de sentir ldquobem como perceber ou captar impressotildees interage com objetos que aparentemente natildeo apresentam tais propriedades ou seja que ldquopresumivelmenterdquo natildeo satildeo sensitivos ou capazes de apreender impressotildeesrdquo (FARIA 2006 p10)

Desde entatildeo inuacutemeras satildeo as teorias que se desenharam no entorno desse incompreensiacutevel campo e mesmo as ciecircncias que utilizam como objeto de estudo especiacutefico o campo do inconsciente como a psicologia a psicanaacutelise (derivada de Freud e suas incursotildees) ateacute a proacutepria neurociecircncia ainda natildeo foram capazes de chegar a um consenso sobre o assunto

Contemporaneamente ao se arquitetar a ideia de consciecircncia atraveacutes da relaccedilatildeo mente-corpo e a consequente interligaccedilatildeo com processos qualitativos da experiecircncia problemas de ordem ontoloacutegicos e epistemoloacutegicos surgem e a complexidade em superaacute-los fica ainda mais evidente Certo ainda eacute que ao se mencionar a ideia de consciente trecircs outros elementos se insurgem como pontos de reflexatildeo necessaacuterios quais sejam a razatildeo (em especial com a absorccedilatildeo pela filosofia da ideia de racionalidade a partir de Descartes) o livre-arbiacutetrio e sua relaccedilatildeo com a perspectiva da ideia de liberdade da vontade consciente

3 Cf FARIA 2006 p 9

Da genealogia da teoria do crime no direito

40

e a moralidade que se insurge como ponto fulcral na forma como os aspectos qualitativos das experiecircncias se correlacionam com a percepccedilatildeo da consciecircncia

Note-se no entanto que a neurociecircncia segue comprovando-nos experimentalmente que uma ligaccedilatildeo ainda natildeo decifrada cria uma ponte entre o que se conhece da mente e o modo como o ceacuterebro atua diante das experiecircncias ajudando-nos a corroborar o entendimento de Nietzsche acerca dos processos bioloacutegicos inerentes ao corpo fiacutesico e que se relacionam com a ideia de consciente

Nietzsche concebe o homem a partir de uma teoria das forccedilas e confere ao homem o que ele viraacute chamar de vontade de potecircncia natildeo admitindo que sua identidade ou subjetividade possa ser compreendida a partir de uma ideia de consciecircncia Para ele inexiste uma identidade fixa hermeacutetica mas sim mutaacutevel a partir de forccedilas e interpretaccedilotildees Nesse sentido ideias como responsabilidade foram articuladas como atributos para respostas morais e a consciecircncia ganhou uma compreensatildeo delimitada a partir da culpa como meacutetodo de orientaccedilatildeo moral para o funcionamento de uma sociedade propositadamente condicionada

Para Nietzsche a linguagem tem grande potencial no condicionamento das respostas morais que segundo o filoacutesofo satildeo desenvolvidas no inconsciente MATTIOLI (2017) indica que Nietzsche pretende demonstrar uma cadeia condicional de pensamento a partir de funccedilotildees gramaticais inconscientes A reflexatildeo do autor diz respeito ao aforismo 20 de Aleacutem do bem e do mal onde segundo Nietzsche os filoacutesofos descrevem ldquoagrave mercecirc de um encanto invisiacutevelrdquo e ldquograccedilas ao domiacutenio e direccedilatildeo inconsciente das mesmas funccedilotildees gramaticaisrdquo sempre a mesma oacuterbita ldquoDessa forma eles preenchem sempre um certo esquema baacutesico de filosofias possiacuteveis o que significa que seu pensamento apesar do seu sentimento de independecircncia e de sua vontade criacutetica ou sistemaacutetica eacute sempre condicionado inconscientemente pelas estruturas da linguagemrdquo4

Deste modo todas as lsquoverdadesrsquo para o filoacutesofo satildeo apenas interpretaccedilotildees feitas pelo homem acerca dos fenocircmenos do mundo para a elaboraccedilatildeo de um sentido para as coisas Sua oacutetica nos revela ainda que a par das interpretaccedilotildees metafiacutesicas a proacutepria ciecircncia eacute por ela mesma uma abertura perspectivista

Matemaacutetica ndash Vamos introduzir o refinamento e o rigor da matemaacutetica em todas as ciecircncias ateacute onde seja possiacutevel natildeo na crenccedila de que por essa via conheceremos as coisas mas para assim constatar nossa relaccedilatildeo humana com as coisas A matemaacutetica eacute apenas o meio para o conhecimento geral e derradeiro do homem5

O que temos entatildeo eacute um filoacutesofo comprometido com os questionamentos que produzem uma filosofia moral proacutepria caracterizada por uma ideia de um perspectivismo que consiste em nada mais que uma foacutermula diversa de se pensar a teoria do conhecimento que vinha sendo enraizada na tradiccedilatildeo filosoacutefica Com a afirmaccedilatildeo ldquonatildeo existem fatos mas somente interpretaccedilotildeesrdquo Nietzsche coloca em cheque a possibilidade de conhecimento e de verdade no mundo e tambeacutem promove uma reflexatildeo para aleacutem do que eacute conhecimento e verdade Como consequecircncia temos uma criacutetica agrave epistemologia e sua busca por respostas Para Nietzsche inexiste uma verdade propriamente dita mas tatildeo somente interpretaccedilotildees desta

4 MATTIOLI William Cadernos de Filosofia Alematilde | jan-jun 2017 p 775 Gaia Ciecircncia 246

Alianna Caroline Sousa Cardoso

41

Ateacute que a palavra ldquoconhecimentordquo tenha sentido o mundo eacute cognosciacutevel mas este eacute interpretaacutevel de modos diversos e natildeo existe nele um sentido mas inumeraacuteveis sentidos ldquoPerspectivismordquo Satildeo os nossos desejos que interpretam o mundo os nossos instintos com seus pros e contras Cada instinto eacute uma espeacutecie de sede de domiacutenio cada um deles possui a sua perspectiva que sempre deseja impor como norma a todos os outros instintos (NachlassFP 1886-1887 7[60] KSA 12315)

Aqui natildeo equivocamos em afirmar que a filosofia da mente tambeacutem defende esse pressuposto a partir de Searle (1997) sob a ideia de que a proacutepria filosofia da linguagem atribui uma intencionalidade intriacutenseca numa correlaccedilatildeo menteceacuterebro em termos bioloacutegicos6 O que corrobora nossa assertiva de que a ideia de responsabilidade como modo de interpretaccedilatildeo natildeo estaria na certificaccedilatildeo verdadeira das condutas que implicam uma liberdade Ou ainda que a proacutepria ideia de liberdade da vontade perpassa pela invocaccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo e nesse sentido a ideia de um consciente separado do corpo estaria tambeacutem sob a oacutetica de uma representaccedilatildeo interpretativa

Nietzsche enquanto criacutetico da moral recusou a ideia de uma moralidade cujas bases sob sua oacutetica encontravam-se vinculadas agrave obediecircncia agrave autoridade de um legislador divino Diante dessa perspectiva refletiu acerca da influecircncia de tais pressupostos para o indiviacuteduo e para a cultura partindo da ideia de que as morais baacutesicas do cristianismo levariam o homem agrave debilidade uma vez que impediria-o de reconhecer as proacuteprias habilidades em nome de uma regra de convivecircncia inibidora de seus instintos e impulsos ignorando suas competecircncias e capacidades de criaccedilatildeo Para Lopes7

Isso o levou a propor experimentos de pensamento e a esboccedilar formas de vida no interior das quais natildeo apenas crenccedilas mas sentimentos morais deixam de comparecer como componentes essenciais Nietzsche foi um dos poucos filoacutesofos a insistir na tese de que a perspectiva do imoralismo deve ser levada a seacuterio ressaltando que haacute bons argumentos a favor de uma reforma de nossas praacuteticas de atribuiccedilatildeo de responsabilidade moral

De fato do que se viu depreende-se que o perspectivismo de Nietzsche estaacute diretamente ligado ao seu ldquofalsificacionismordquo que relaciona organismo e razatildeo na compreensatildeo de mundo nos remetendo ao debate jaacute abordado no presente ensaio em que mente e corpo satildeo colocados como separados e que coloca toda a ideia do consciente como problema supostamente epistemoloacutegico a partir de um vieacutes separatista

Segundo Pietro Gori e Paolo Stellino8

O perspectivismo estaacute particularmente ligado ao chamado ldquofalsificacionismordquo de Nietzsche isto eacute agrave tese de que a relaccedilatildeo do homem com o mundo seja mediada tanto pelo organismo quanto pela razatildeo por meio de um processo de elaboraccedilatildeo do dado sensiacutevel que simplifica a sua complexidade e o reduz a um esquema gerenciaacutevel De tal posiccedilatildeo decorre a ideia de que o conteuacutedo cognoscitivo que o nosso intelecto nos oferece natildeo possui os traccedilos de uma perfeita correspondecircncia com o estado de coisas mas apenas os traccedilos de uma ldquoverdaderdquo pragmaacutetica A posiccedilatildeo pela qual se pode falar de verdade apenas em termos de funcionalidade

6 SEARLE John R A redescoberta da mente Traduccedilatildeo de Eduardo Pereira e Ferreira Martins Fonted 2006 p 2 7 LOPES Cad Nietzsche Satildeo Paulo n 33 p 89-134 2013 P 938 GORI Pietro STELLINO Paolo Cad Nietzsche Satildeo Paulo n 34 - vol I p 101-129 2014 O perspectivismo

moral nietzschianoP 104

Da genealogia da teoria do crime no direito

42

de comunicaccedilatildeo e de accedilatildeo obriga Nietzsche a reconsiderar a proacutepria dicotomia verdade- -erro que ele redefine justamente em termos de utilidade praacutetica (cf FWGC 121) A determinaccedilatildeo do caraacuteter ldquoerrocircneordquo do conhecimento como traccedilo distintivo da nossa espeacutecie eacute um dos aspectos que satildeo abordados nos cadernos preparatoacuterios de FWGC em conexatildeo com o qual Nietzsche introduz pela primeira vez de maneira expliacutecita o tema do perspectivismo

Essa entrada em muito nos interessa uma vez que sua relaccedilatildeo com os elementos fisioloacutegicos eacute o que nos demonstra a inserccedilatildeo de Nietzsche numa interpretaccedilatildeo bioloacutegica que daacute a noacutes a margem para a realizaccedilatildeo de uma ponte dentre o filoacutesofo e os atuais estudos da neurociecircncia Onde pretendemos chegar

Nos parece pois que Nietzsche no percurso de sua obra agrave medida que fundamenta uma oposiccedilatildeo entre a representaccedilatildeo de mundo e a ideia de verdade configura seu pensamento acreditando haver uma distinccedilatildeo entre o que seria discursivamente imposto e a resposta do corpo presente em sua percepccedilatildeo acerca das leis da natureza

O contraste entre essa autecircntica verdade da natureza e a mentira da civilizaccedilatildeo a portar-se como a uacutenica realidade eacute parecido ao que existe entre o eterno cerne das coisas a coisa em si e o conjunto do mundo fenomenal (GT 8 KSA1 p58-9)

Se Nietzsche argumenta sua criacutetica agrave moral com ideias constituiacutedas a partir da oacutetica do corpo natildeo nos equivocariacuteamos em alargar seu perspectivismo e pensar na ideia de que ele mesmo trouxe agrave baila alguns dos resultados mais significativos da pesquisa neurocientiacutefica das uacuteltimas deacutecadas Aqui apresentamos algumas descobertas empiristas a par de recaiacuterem na contradiccedilatildeo existente diante da criacutetica do filoacutesofo agrave ideia de causalidade que podem nos mostrar que atualmente alguns resultados da neurociecircncia podem nos ajudar a pensar a relaccedilatildeo entre crenccedilas morais e fisiologia

Pretendemos apresentar a concepccedilatildeo de que o consciente a razatildeo a liberdade da vontade e a moralidade podem ter fundamentos fisioloacutegicos ignorados pela dicotomia mente-corpo e que embora tratado como um problema epistemoloacutegico a consciecircncia pode de fato ser um problema que mereccedila atenccedilatildeo pelas ideias de uma biologia do corpo e suas accedilotildees inconscientes

Apresentamos pois um exemplo dado pelo fisioacutelogo americano Bejamin Libet de que nossas accedilotildees satildeo iniciadas de modo inconsciente ou seja aquilo que efetivamente daacute origem agrave nossos atos voluntaacuterios natildeo satildeo elementos que podem ser explicados atraveacutes de nossa consciecircncia mas sim processos inconscientes do ceacuterebro ou seja do corpo

A partir desta ideia o fisioacutelogo aduz que o ldquolivre-arbiacutetriordquo natildeo estaacute diretamente ou ainda causalmente relacionado a accedilatildeo propriamente dita Essa conclusatildeo eacute extraiacuteda de uma seacuterie de experimentos relativos ao tempo necessaacuterio para que um determinado conteuacutedo seja representado na consciecircncia

O que encontramos em suma foi que o ceacuterebro exibiu um processo de iniciaccedilatildeo comeccedilando 550 msec antes do ato livremente voluntaacuterio mas a consciecircncia da vontade consciente de executar o ato apareceu apenas de 150 a 200 ms antes do ato O processo voluntaacuterio eacute portanto iniciado inconscientemente cerca de 400 ms antes que o sujeito tome consciecircncia de sua vontade ou intenccedilatildeo de realizar o ato (Libet 2004 p 123s)

Alianna Caroline Sousa Cardoso

43

Dentro de uma oacutetica fisioloacutegica a ideia de que os atos antecedem a uma interpretaccedilatildeo dos acontecimentos encontra-se vinculada a ideia de representaccedilatildeo que em muito condiz com a perspectiva Nietzschiana de processos fisioloacutegicos que manifestam-se para aleacutem de uma moralidade latente constituiacuteda culturalmente

Conforme MATIOLLI (2014)9 Segundo Nietzsche

este atraso se deve ao fato de que o mecanismo interpretativo que estaacute na base da consciecircncia precisa encontrar uma causa determinada para um certo estado fisioloacutegico antes que este estado seja de alguma forma representado na consciecircncia Nietzsche denomina esse mecanismo ldquoimpulso causalrdquo Um exemplo deste processo nos eacute dado pela experiecircncia do sonho

ldquoPartindo do sonho a uma determinada sensaccedilatildeo devida a um longiacutenquo tiro de canhatildeo por exemplo eacute atribuiacuteda posteriormente uma causa [hellip] A sensaccedilatildeo perdura enquanto isso numa espeacutecie de ressonacircncia ela como que aguarda ateacute que o impulso causal lhe permita passar a primeiro plano ndash natildeo mais como acaso mas como ldquosentidordquo O tiro de canhatildeo aparece de modo causal numa aparente inversatildeo do tempo O ulterior a motivaccedilatildeo eacute vivenciado primeiramente [hellip] e o tiro vem depois Que aconteceu As representaccedilotildees produzidas por uma certa condiccedilatildeo foram mal-entendidas como causas delardquo (CI Os quatro 4)

Eacute como dizer em outras palavras que a partir de uma oacutetica fisioloacutegica o organismo se apodera de determinados pressupostos e atua a partir destes de modo inconsciente o que significaria dizer que tais elementos natildeo poderiam constituir senatildeo uma crenccedila moral arraigada que exerce papel de conhecimento de base e atua de maneira que o sujeito natildeo tenha liberdade da vontade para a determinaccedilatildeo de suas accedilotildees

Um fragmento poacutestumo de 1888

toda verdadeira accedilatildeo do mundo externo sucede de modo inconsciente A parcela de mundo externo da qual nos tornamos conscientes surge ulteriormente apoacutes o efeito que eacute exercido sobre noacutes a partir do exterior eacute posteriormente projetada como sua lsquocausarsquo (FP 1888 15[90])

Outro experimento pode contribuir para a concepccedilatildeo da ideia de uma formaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo geneacutetica ou seja uma oacutetica fisioloacutegica para a constituiccedilatildeo de crenccedilas morais para aleacutem de uma tradiccedilatildeo cultural

Uma publicaccedilatildeo meacutedica da Revista US National Library of MedicineNational Institutes of Health da Publimedgov da NCBI10 traz artigo publicado acerca da conexatildeo entre stress poacutes-traumaacutetico e a relaccedilatildeo com DNA Segundo o artigo em questatildeo de autoria de Yehuda R Bierer LM o transtorno de estresse poacutes-traumaacutetico parental (PTSD) tem uma relaccedilatildeo intriacutenseca com os recentes estudos neuroendoacutecrinos na prole de pais com o transtorno

De acordo com o estudo os descendentes de sobreviventes de trauma com PTSD mostram niacuteveis excessivos de excreccedilatildeo urinaacuteria de cortisol de 24 h e niacuteveis de cortisol salivares bem como supressatildeo plasmaacutetica de cortisol aumentada em resposta agrave baixa dose de administraccedilatildeo de dexametasona do que descendentes de sobreviventes sem PTSD Em 9 Estudos Nietzsche Curitiba v 5 n 2 p 305-344 juldez 201410 Disponiacutevel em httpswwwncbinlmnihgovpubmed18037011 Acessado em 04112017

Da genealogia da teoria do crime no direito

44

todos os casos as medidas neuroendoacutecrinas foram correlacionadas negativamente com a gravidade dos sintomas de PTSD parental mesmo apoacutes o controle de PTSD e ateacute mesmo outros sintomas na prole Embora a maioria do trabalho tenha se concentrado em descendentes adultos de sobreviventes do Holocausto observaccedilotildees recentes em bebecircs nascidos de matildees graacutevidas no 11 de setembro demonstram que o baixo cortisol em relaccedilatildeo ao PTSD parental parece estar presente no iniacutecio do desenvolvimento e pode ser influenciado por fatores in utero como a programaccedilatildeo de glicocorticoacuteides Uma vez que os baixos niacuteveis de cortisol estatildeo particularmente associados agrave presenccedila de PTSD materno os achados sugerem o envolvimento de mecanismos epigeneacuteticos

O que a linguagem meacutedica nos traz eacute basicamente que apoacutes analisar dados geneacuteticos colhidos de homens e mulheres que haviam sido prisioneiros nos campos de concentraccedilatildeo nazistas que testemunharam e sofreram torturas ou permaneceram escondidos durante a Segunda Guerra Mundial concluiu que ldquoMudanccedilas geneacuteticas derivadas de traumas sofridos por sobreviventes do Holocausto podem ser transmitidas aos filhos destes no mais claro sinal ateacute o momento de que as experiecircncias de vida de uma pessoa podem afetar as geraccedilotildees subsequentesrdquo

Os pesquisadores tambeacutem analisaram os genes dos filhos dos participantes e encontraram as mesmas mutaccedilotildees que foram constatadas no DNA dos pais O trabalho da equipe de Yehuda vem demonstrar que os traumas satildeo passados dos pais para os filhos atraveacutes da ldquoheranccedila epigeneacuteticardquo que considera mutaccedilotildees geneacuteticas adquiridas por meio de haacutebitos alimentares fumo estresse e agora inclui tambeacutem os traumas emocionais que passando de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo poderatildeo afetar os netos e ainda outras geraccedilotildees 11

Significa dizer em outras palavras que os efeitos intergeracionais natildeo satildeo transmitidos apenas pelas influecircncias sociais dos pais ou pela heranccedila geneacutetica regular mas tambeacutem pelos traumas emocionais Nesse artigo tambeacutem foi citado o estudo sobre a transmissatildeo do medo que nos animais jaacute foi constatado A estas heranccedilas descritas pelo artigo podemos ainda acrescentar a memoacuteria cultural como observada por Menezes (2007 p 28)12 ldquoQuando observamos o corpo como miacutedia primaacuteria natildeo estamos apenas nos referindo agraves suas funccedilotildees bioloacutegicas Percebemos que o corpo aleacutem de ser um organismo vivo uma expressatildeo da natureza tambeacutem tem sua memoacuteria culturalrdquo

Da reflexatildeo apresentada depreende-se ser possiacutevel pensar em Nietzsche como um precursor da ideia de uma criacutetica agrave moral a partir de uma oacuterbita fisioloacutegica De fato os recortes de sua obra apresentados datildeo uma introduccedilatildeo a uma possiacutevel exegese que nos levariam a afirmaccedilatildeo de Nietzsche como um filoacutesofo da moral Nietzsche valoriza a projeccedilatildeo de causas das impressotildees sensiacuteveis no mundo externo atraveacutes de um tipo de etiologia do erro deduzida de nossa vivecircncia do tempo13

Conforme MATTIOLLI

Luca Lupo (2006 p 42) se refere nesse contexto a uma fenomenologia do erro uma vez que a investigaccedilatildeo da origem desse erro cognitivo se daacute no acircmbito da anaacutelise acerca da consciecircncia e de seus processos

11 Reportagem divulgada na Revista GGN na coluna Cidadania em 26082015 por Joatildeo Paulo Caldeira Dispo-niacutevel Em httpsdirectjornalggncombrnoticiatraumas-podem-afetar-genes-de-filhos-de-vitimas Acessado em 10112017

12 MENEZES Joseacute Eugecircnio de Radio e cidade viacutenculos sonoros Satildeo Paulo Annablume 200713 Cf MATTIOLLI William A Temporalidade da consciecircncia e o problema da eficaacutecia causal da vontade em Niet-

zsche Estudos Nietzsche Curitiba v 5 n 2 p 305-344 juldez 2014

Alianna Caroline Sousa Cardoso

45

Nietzsche daacute a esse erro o nome de ldquoerro das causas imaginaacuteriasrdquo Mas a tese que eacute derivada dessa fenomenologia serve ainda como suporte para uma perspicaz criacutetica agrave assim chamada ldquomoral das intenccedilotildeesrdquo Assim como a representaccedilatildeo consciente de uma causa a agir sobre noacutes a partir do exterior a representaccedilatildeo consciente da causa interna de uma accedilatildeo isto eacute a representaccedilatildeo do motivo deve ser vista como um construto a posteriori que eacute imaginado apoacutes a iniciaccedilatildeo do ato No aforismo anterior de Crepuacutesculo dos iacutedolos que trata do erro da falsa causalidade Nietzsche considera o motivo como um mero ldquofenocircmeno superficial da consciecircncia um acessoacuterio do atordquo (CI Os quatro 3) Aqui ocorre igualmente uma inversatildeo do tempo Analisemos o problema mais de perto Num outro fragmento poacutestumo de 1885 intitulado ldquoa ordem temporal invertidardquo Nietzsche esclarece o modus operandi deste mecanismo na constituiccedilatildeo do mundo externo da seguinte forma ldquoO lsquomundo externorsquo age sobre noacutes o efeito eacute telegrafado no ceacuterebro eacute ali ajustado modelado e reconduzido agrave sua causa apoacutes isso a causa eacute projetada e somente entatildeo o fato vecircm agrave consciecircncia Isto eacute o lsquomundo fenomecircnicorsquo aparece a noacutes enquanto causa somente depois que lsquoelersquo agiu e o efeito foi elaborado Isto eacute noacutes invertemos constantemente a ordem daquilo que ocorre ndash Enquanto lsquoeursquo vejo isto jaacute vecirc outra coisa (waumlhrend lsquoichrsquo sehe sieht es bereits etwas Anderes) Ocorre aqui o mesmo que ocorre no caso da dorrdquo (FP 1885 34[54])

O aforismo 354 de ldquoA Gaia Ciecircnciardquo demonstra dois elementos de fundamental importacircncia para compreendermos como funciona o consciente dentro da filosifia de Nietzsche primeiro ele se insurge como aquele que valoriza os processos vitais e segundo assimila os processos do corpo atribuindo-lhes as mesmas configuraccedilotildees psicofisioloacutegicas Vejamos

ldquoDo ldquogecircnio da espeacutecierdquo mdash O problema da consciecircncia (ou mais precisamente do tornar-se consciente) soacute nos aparece quando comeccedilamos a entender em que medida poderiacuteamos passar sem ela e agora a fisiologia e o estudo dos animais nos colocam neste comeccedilo de entendimento (necessitaram de dois seacuteculos portanto para alcanccedilar a premonitoacuteria suspeita de Leibniz) Pois noacutes poderiacuteamos pensar sentir querer recordar poderiacuteamos igualmente ldquoagirrdquo em todo sentido da palavra e natildeo obstante nada disso precisaria nos ldquoentrar na consciecircnciardquo (como se diz figuradamente) A vida inteira seria possiacutevel sem que por assim dizer ela se olhasse no espelho tal como de fato ainda hoje a parte preponderante da vida nos ocorrem sem esse espelhamento (GC 354)

Significa dizer em suma que Nietzsche acredita que a maioria dos processos vitais ocorre sem a necessidade de uma consciecircncia Ou seja tanto processos vegetativos e fisioloacutegicos como comer e digerir para o filoacutesofo funcionam no ser humano como o querer e o pensar sem a necessidade de uma referecircncia de uma consciecircncia para realizar-se No mesmo aforismo Nietzsche prossegue

Para que entatildeo consciecircncia quando no essencial eacute supeacuterflua Bem se querem dar ouvidos agrave minha resposta a essa pergunta e agrave sua conjectura talvez extravagante parece-me que a sutileza e a forccedila da consciecircncia estatildeo sempre relacionadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por sua vez agrave necessidade de comunicaccedilatildeo mas natildeo entenda-se que precisamente o indiviacuteduo mesmo que eacute mestre

Da genealogia da teoria do crime no direito

46

justamente em comunicar e tornar compreensiacuteveis suas necessidades tambeacutem seja aquele que em suas necessidades mais tivesse de recorrer aos outros Parece-me que eacute assim no tocante a raccedilas e correntes de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem a compreenderem uns aos outros de forma raacutepida e sutil () Supondo que esta observaccedilatildeo seja correta posso apresentar a conjectura de que a consciecircncia desenvolveu-se apenas sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeomdash de que desde o iniacutecio foi necessaacuteria e uacutetil apenas entre uma pessoa e outra (entre a que comanda e a que obedece em especial) e tambeacutem se desenvolveu apenas em proporccedilatildeo ao grau dessa utilidade Consciecircncia eacute na realidade apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre as pessoas mdash apenas como tal ela teve que se desenvolver um ser solitaacuterio e predatoacuterio natildeo necessitaria dela O fato de nossas accedilotildees pensamentos sentimentos mesmo movimentos nos chegarem agrave consciecircncia mdash ao menos parte deles mdash eacute consequumlecircncia de uma terriacutevel obrigaccedilatildeo que por longuiacutessimo tempo governou o ser humano ele precisava sendo o animal mais ameaccedilado de ajuda proteccedilatildeo precisava de seus iguais tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensiacutevel mdash e para isso tudo ele necessitava antes de ldquoconsciecircnciardquo isto eacute ldquosaberrdquo o que lhe faltava ldquosaberrdquo como se sentia ldquosaberrdquo o que pensava Pois dizendo-o mais uma vez o ser humano como toda criatura viva pensa continuamente mas natildeo o sabe o pensar que se torna consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos mdash pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia Em suma o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciecircncia (natildeo da razatildeo mas apenas do tomar-consciecircncia-de-si da razatildeo) andam lado a lado

Nesse sentido fico claro que para Nietzsche a consciecircncia tambeacutem eacute fruto de uma invenccedilatildeo catalogada a partir da necessidade de comunicaccedilatildeo Destarte no Proacutelogo da mesma obra Nietzsche menciona sua imensa frustraccedilatildeo com o modo com que a filosofia ateacute entatildeo ignorava as necessidades do corpo e suas manifestaccedilotildees priorizando numa oacutetica cartesiana a ideia de uma racionalidade apoliacutenea tanto refutada por Nietzsche

() frequumlentemente me perguntei se ateacute hoje a filosofia de modo geral natildeo teria sido apenas uma interpretaccedilatildeo do corpo e uma maacute-compreensatildeo do corpo Por traacutes dos supremos juiacutezos de valor que ateacute hoje guiaram a histoacuteria do pensamento se escondem maacutes-compreensotildees da constituiccedilatildeo fiacutesica seja de indiviacuteduos seja de classes ou raccedilas inteiras Podemos ver todas as ousadas insacircnias da metafiacutesica em particular suas respostas agrave questatildeo do valoraacuteagrave existecircncia antes de tudo como sintomas de determinados corpos e se tais afirmaccedilotildees ou negaccedilotildees do mundo em peso tomadas cientificamente natildeo tecircm o menor gratildeo de importacircncia fornecem indicaccedilotildees tanto mais preciosas para o historiador e psicoacutelogo enquanto sintomas do corpo como afirmei do seu ecircxito ou fracasso de sua plenitude potecircncia soberania na histoacuteria ou entatildeo de suas inibiccedilotildees fadigas pobrezas de seu pressentimento do fim sua vontade de fim Eu espero ainda que um meacutedico filosoacutefico no sentido excepcional do termo mdash algueacutem que persiga o problema da sauacutede geral de um povo uma eacutepoca de uma raccedila da humanidade mdash tenha futuramente a coragem de levar ao cuacutemulo a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmaccedilatildeo em todo o filosofar ateacute o momento a questatildeo natildeo foi absolutamente a ldquoverdaderdquo mas algo diferente como sauacutede futuro poder crescimento vida

Alianna Caroline Sousa Cardoso

47

Disto podemos afirmar que o debate mente-corpo configurado sob uma orientaccedilatildeo cartesiana e ainda hoje pano de fundo de diversas consideraccedilotildees acerca da existecircncia dos processos conscientes e o modo como a epistemologia moral agrega a ideia do inconsciente a par das correntes que subsistem e degladiam entre si defendemos a possibilidade do uso da transdisciplinaridade para a tentativa de uma compreensatildeo dos estados imanentes a partir de uma oacutetica fisioloacutegica considerando a consciecircncia tambeacutem como modo de apreensatildeo do conhecimento sem ignorar outrossim tratar-se ambos conceitos de interpretaccedilotildees

Isto quer dizer em suma que acreditamos que o problema filosoacutefico da liberdade da vontade tem relaccedilatildeo intriacutenseca com a ideia de consciente e que pode ser questionado a partir da transdisciplinaridade vinculando-se agraves contribuiccedilotildees da psicologia e da neurociecircncia para se conceber um novo modo de pensar se as accedilotildees humanas satildeo conscientes ou se antes disto encontra razotildees no emaranhado das cadeias neuropsicoloacutegicas a partir de uma fisiologia do corpo

Acreditamos pois que atraveacutes de uma anaacutelise historiograacutefica e a desconstruccedilatildeo de alguns dogmas a filosofia de Nietzsche poderia auxiliar para reatualizar o Direito Penal jaacute que por tratar-se de normatividades juriacutedicas estas denotam-se unilaterais e consequentemente especiacuteficas Sendo assim a memoacuteria da construccedilatildeo do Direito Penal brasileiro seria ferramenta a ser observada atraveacutes de Friedrich Nietzsche nos possibilitando a compreensatildeo dos mecanismos de puniccedilatildeo ampliando as perspectivas para uma nova constituiccedilatildeo do direito penaliacutestico e da proacutepria pena de prisatildeo

Da genealogia da teoria do crime no direito

48

Referecircncias bibliograacuteficas

Referecircncias Primaacuterias

Obras de NietzscheNIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 _____ Aleacutem do bem e do mal Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2007 _____ Aurora reflexotildees sobre os preconceitos morais Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2004 _____ Cinco prefaacutecios para cinco livros natildeo escritos Trad de Pedro Suumlssekind Rio de janeiro 7 Letras 2000 _____ Crepuacutesculo dos iacutedolos ou como se filosofa com o martelo Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2010 _____ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2008 _____ Fragmentos poacutestumos (1875-1882) (Vol II) Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego Saacutenches Meca Madrid Editorial Tecnos (Grupo Anaya S A) 2008 _____ Fragmentos poacutestumos (1882-1885) (Vol III) Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego Saacutenches Meca Madrid Editorial Tecnos (Grupo Anaya S A) 2010 _____ Fragmentos poacutestumos (1885-1888) (Vol IV) Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego Saacutenches Meca Madrid Editorial Tecnos (Grupo Anaya S A) 2008 _____ Genealogia da moral uma polecircmica Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2009 _____ Humano Demasiado Humano Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2008 _____ O Anticristo Maldiccedilatildeo ao cristianismo Ditirambos de Dioniso Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2007

Obras sobre Nietzsche ALMEIDA Rogeacuterio Miranda de Nietzsche e os impasses do princiacutepio de prazer uma leitura a partir do primeiro periacuteodo Estudos Nietzsche Curitiba v 2 n 2 p 163-184 juldez 2011 ALMEIDA Viniacutecius Andrade de A QUESTAtildeO DA MORAL A PARTIR DE HUMANO DEMASIADO HUMANO UM LIVRO PARA ESPIacuteRITOS LIVRES p88 ARALDI Clademir Luiacutes A vontade de potecircncia e a naturalizaccedilatildeo da moral Cadernos Nietzsche V 30 2012 p 101-120 _____ Niilismo Criaccedilatildeo e Aniquilamento Nietzsche a e filosofia dos extremos Satildeo Paulo Editora Unijuiacute 2004 _____ A espiritualizaccedilatildeo da paixatildeo Sobre a moralizaccedilatildeo dos impulsos em Nietzsche Nat hum Satildeo Paulo v 12 n 2 p 1-17 2010 Disponiacutevel em lthttppepsicbvsaludorgscielophpscript=sci_arttextamppid=S1517-24302010000200005amplng=ptampnrm=isogt acessos em 13 nov 2016_____ Nietzsche e Paul Reacutee Acerca da existecircncia de impulsos altruiacutestas Dossiecirc ldquoNietzsche e as Tradiccedilotildees moraisrdquo Cad Nietzsche vol37 no1 Satildeo Paulo JanJune 2016

Alianna Caroline Sousa Cardoso

49

_____ Para uma caracterizaccedilatildeo do niilismo na obra tardia de Nietzsche Cadernos Nietzsche Satildeo Paulo v5 1998 p76AZEREDO Vacircnia Dutra de Nietzsche e a Interpretaccedilatildeo do mundo ao texto In AZEREDO Vacircnia Dutra de SILVA JUacuteNIOR Ivo (Org) Nietzsche e a Interpretaccedilatildeo Curitiba Editora CRV 2012 p 143-155 _____ Nietzsche e a autora de uma nova eacutetica Satildeo Paulo Editora Unijuiacute 2008 _____ CASTRO Fabio Guimaratildees de A RELACcedilAtildeO CREDOR-DEVEDOR Como passagem da noccedilatildeo de responsabilidade-diacutevida agrave noccedilatildeo de justiccedila e ao sentido do direito no pensamento de Nietzsche REVISTA LAMPEJO Nordm 3- 062013 _____ OS JUIacuteZOS DE VALOR EM NIETZSCHE E SEUS REFLEXOS SOBRE A EDUCACcedilAtildeO II SEMANA NACIONAL DE FILOSOFIA Universidade Federal de Santa Maria ndash UFSM Cultura e Alteridade Amarildo Luiz Trevisan e Elizette M Tomazetti (orgs) Confluecircncias Ed Uniajaiacute 2006 p 01-10_____ Nietzsche e a dissoluccedilatildeo da moral Satildeo Paulo Discurso Editorial 2000_____ Nietzsche e a modernidade ponto de virada Cadernos Nietzsche n 27 2010BALKE From a Biopolitical Point of View Nietzschersquos Philosophy of Crime MAY Simon Nietzsche on Freedom and Autonomy Edited by Ken Gemes and Simon May Oxford University Press 2009 New York United StatesBAPTISTA Marlon Tomazella O que significa ser livre e responsaacutevel O indiviacuteduo soberano como ideal moral de Nietzsche Estudos Nietzsche Espiacuterito Santo v 6 n 1 p 42-65 JanJun 2015BENOIT Blaise NIETZSCHE DA CRIacuteTICA DA LOacuteGICA DO DIREITO PENAL AO PROBLEMA DA CONCEPCcedilAtildeO DE UM NOVO DIREITO PENAL Revista de Filosofia Dissertatio Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Instituto de Filosofia Sociologia e Poliacutetica Universidade Federal de Pelotas Traduccedilatildeo Bruna de Oliveira Revisatildeo Teacutecnica Luiacutes Rubira Dissertatio 36 Veratildeo de 2013 p 11-36_____ O problema da Justiccedila Cadernos Nietzsche n 26 2010BITTAR Eduardo Carlos Bianca NIETZSCHE NIILISMO E GENEALOGIA MORAL Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 98 (2003) p 477 ndash 501_____ Direito e Justiccedila em Revista da Faculdade de Direito Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo v 93 p 339-359 jan 1998 ISSN 2318-8235BORNEDAL Peter ON THE INSTITUTION OF THE MORAL SUBJECT ON THE COMMANDER AND THE COMMANDED IN NIETZSCHErsquoS DISCUSSION OF LAW kriterion Belo Horizonte nordm 128 Dez2013 p 439-457CAMPIONI Giuliano Friedrich Nietzsche Histoacuteria da Filosofia Organizador Jean-Franccedilois Pradeau Texto Original francecircs Histoire de la Philosophie Petroacutepolis Vozes Rio de Janeiro PUC-Rio 2011 p 387 CARNIO Henrique Garbellini A Gecircnese Do Direito Entre Kelsen E Nietzsche Repositoacuterio NOMOS Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC 2009 Volume 292 Fortaleza p- 39-57CARVALHO Amilton Bueno de Direito Penal a Marteladas (Algo sobre Nietzsche e o Direito) Ed LumenJuris Direito Rio de Janeiro2013CARVALHO Salo de AntiManual de Criminologia 6ordf Ediccedilatildeo Revista e Ampliada 2ordf tiragem 2015 - Satildeo Paulo Saraiva 2015DrsquoAMBROS Bruno Da possibilidade de uma criacutetica nietzscheana agrave democracia moderna

Da genealogia da teoria do crime no direito

50

Anais do Seminaacuterio Direito e Ditadura Eixo 2 Democracia e Cultura Universidade Federal de Santa Catarina ndash UFSC Direito e Democracia p 78 DELBOacute Adriana Nietzsche sobre alguns problemas morais da democracia moderna Cadernos Nietzsche Disponiacutevel em httpwwwcadernosnietzscheunifespbrhomeitem233-nietzsche-sobre-alguns-problemas-morais-da-democracia-moderna Acessado em 08062016FERNANDES Rodrigo Rosas Nietzsche e o Direito Tese de Doutorado apresentado para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia na Pontiacuteficia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo ndash PUC 2005FREZZATTI JR Wilson Antonio Haeckel e Nietzsche aspectos da criacutetica ao mecanicismo no seacuteculo XIX scientiaeligzudia Vol 1 No 4 2003 p 435-61 p 437_____ ldquoTraduccedilatildeo dos poacutestumos de Nietzsche sobre Darwinrdquo In Estudos Nietzsche v1 n2 juldez 2010 Curitiba p 403-419 BROBJER Thomas Nietzschersquos philosophical context an intellectual biography Illinois University of Illinois Press 2008 p 170 16 ldquoOs sinais lt gt indicam que a palavra foi escrita abreviada ou foi suprimida por Nietzsche As letras entre os sinais foram acrescentadas pelos editores da KSArdquo (FREZZATTI JUacuteNIOR Wilson Antocircnio ldquoTraduccedilatildeo dos poacutestumos de Nietzsche sobre Darwinrdquo In Estudos Nietzsche v1 n2 juldez 2010 Curitiba p 403-419) GEMES Ken JANAWAY Christopher Nietzsche on free will autonomy and the Sovereign Individual Proceedings of the Aristotelian Society V 80 2006 p 321-357 GIACOIA JUNIOR Oswaldo Nietzsche x Kant uma disputa permanente a respeito da liberdade autonomia e dever Satildeo Paulo Editora Casa do Saber 2012 _____ Nietzsche o humano como memoacuteria e como promessa Petroacutepolis Editora Vozes 2013 _____O GRANDE EXPERIMENTO SOBRE A OPOSICcedilAtildeO ENTRE ETICIDADE (SITTLlCHKEIT) E AUTONOMIA EM NIETZSCHE TransFormlAccedilatildeo Satildeo Paulo 12 97- 132 1989 Departamento de Filosofia - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias - UNESP - 17S00 - Man1ia-SP p 101 _____ ldquoTeses Sobre a Gecircnese do Direito em Nietzscherdquo In Pommer A Fraga P (Org) Filosofia e Criacutetica Lijui-RS Unijuiacute 2007 2007 p 399 _____ Livre-arbiacutetrio e Responsabilidade Filosofia Unisinos 8(1)22-32 janabr 2007GONCcedilALVES Ricardo Juozepavicius JUSTICcedilA DIREITO E VINGANCcedilA NA FILOSOFIA MORAL DE FRIEDRICH NIETZSCHE Rev Fac Direito Satildeo Bernardo do Campo n20 | 2014 p 1-18HIGGINS Kethleen M MAGNUS Bernd The Cambridge Companion to Nietzsche The Cambridge Companion to Nietzsche (Cambridge Companions to Philosophy) Paperback ndash March 7 1996 ISHIKAWA Iacutetalo Kiyomi A METAacuteFORA DO MEIO-DIA EM NIETZSCHE Dissertaccedilatildeo apresentada ao Curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal do Paranaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Filosofia Universidade Federal do Paranaacute ndash UFPR 2015 156 pJANAWAY Christopher Naturalism and Genealogy A companion to Nietzsche Edited by Keith Ansell Pearson Blackwell Companions to Philosophy First published 2006 by Blackwell Publishing Ltd Australia P 337-352LEITER Brian Nietzschersquos Moral and Political Philosophy First published Thu Aug 26 2004 substantive revision Wed Oct 7 2015 Stanford Encyclopedia of Philosophy

Alianna Caroline Sousa Cardoso

51

Disponiacutevel em httpplatostanfordeduentriesnietzsche-moral-political Acessado em 02102016_____Christopher Janaway Beyond Selflessness Reading Nietzschersquos Genealogy Christopher Janaway Beyond Selflessness Reading Nietzschersquos Genealogy Oxford University Press 2007 284pp $4900 (hbk) ISBN 9780199279692 Reviewed by Brian Leiter University of Texas Austin Notre Dame Philosophycal Reviews na eletronical Jornal 20080603 Disponiacutevel em httpndprndedunews23543-beyond-selflessness-reading-nietzsche-s-genealogy Acesso em 14112016LOBOSQUE Ana Marta A vontade livre em Nietzsche Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade de Minas Gerais como parte dos requisitos para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia Belo Horizonte - FAFICHUFMG 2010 Orientador Oswaldo Giacoia Jr Tese (doutorado) ndash Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas 306 fMARTON Scarlett Nietzsche Das forccedilas coacutesmicas aos valores humanos Editora Brasiliense 1ordf Ediccedilatildeo Preparaccedilatildeo de originais Luacutecia Jahn Revisatildeo Ana Maria Mendes Barbosa e Rosemary C Machado Satildeo Paulo 1990 MATA-MACHADO Edgar de Godoi Elementos de teoria geral do direito Belo Horizonte Editora Liacuteder 2005 p 137MELO SOBRINHO Noeacuteli Correia de Escritos sobre Direito Friedrich Nietzsche Rio de Janeiro PUC ndash Rio Satildeo Paulo Ed Loyola 2009MELO NETO Joatildeo Evangelista Tude de NIETZSCHE O ETERNO RETORNO DO MESMO A TRANSVALORACcedilAtildeO DOS VALORES E A NOCcedilAtildeO DE TRAacuteGICO Tese Apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo - USP - 2013 OLIVEIRA Eacuterico Andrade M de A criacutetica de Nietzsche agrave Moral Kantiana por uma moral miacutenima Cadernos Nietzsche 27 2010 p 169-189OLIVEIRA Leonardo Camacho de Uma genealogia do direito penal contribuiccedilotildees nietzschianas para se pensar uma justiccedila punitiva para aleacutem da moral do ressentimento A Genealogy of Criminal Law Nietzschersquos contributions to think a Punitive Justice beyond resentment morality Estudos Nietzsche Espiacuterito Santo v 6 n 2 p 281-298 jul dez 2015_____ O suposto antagonismo entre liberdade e determinismo em Nietzsche o traccedilo estoico do compatibilismo nietzschiano Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em filosofia da Universidade Federal de Pelotas como requisito agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em Filosofia Orientador professor Dr Clademir Araldi Pelotas 2014 131fPASCHOAL Antonio Edmilson Nossas Virtudes Indicaccedilotildees para uma Moral do Futuro Cadernos Nietzsche 12 2002 p 53-69_____AS FORMAS DO RESSENTIMENTO NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE PHILOacuteSOPHOS 13 (1) 11 -33 janjun 2008 p 13PAULA Wander Andrade de GIACOIA JUacuteNIOR O Nietzsche o humano como memoacuteria e como promessa Petroacutepolis Vozes 2013 Estudos Nietzsche Curitiba v 5 n 2 p 349-363 juldez 2014p 354PRINZ Jesse J The Emotional Construction of Morals Oxford University Press Published in the United States by Oxford University Press Inc New York 2007 REacuteE P Basic writings Translated and edited by Robin Small Urbana Chicago University

Da genealogia da teoria do crime no direito

52

of Illinois Press 2003SAMPAIO Wilson Maranhatildeo SANTOS Leandro Carvalho Considerations on western civilization Freud and Nietzsche as a benchmark Fractal Revista de Psicologia v 24 ndash n 1 p 59-80 JanAbr 2012SANTOS Vani Letiacutecia Fonseca dos A criacutetica da moral e a transvaloraccedilatildeo dos valores em Nietzsche Uma possibilidade para a formaccedilatildeo de um indiviacuteduo aleacutem-da-moral Dissertaccedilatildeo apresentada ao programa de poacutes-graduaccedilatildeo em filosofia da Universidade Federal de Pelotas 2010 SILVA Alexandre Antocircnio Bruno da Nietzsche Justiccedila e Direito Lumen Juris Rio de Janeiro 2015TEIXEIRA Joaquim de Souza A filosofia Moral de Satildeo Tomaacutes de Aquino Faculdade de Ciecircncias Humanas (UPC) didaskalia xxxvii (2007)1 345-361 LisboaTELLES Leonardo Dias da Silva A metodologia da Pesquisa em Direito e o Pensamento de Nietzsche Metodologia de Pesquisa em Direito e a Filosofia Coordenadores Rodolfo Pamplona Filho e Nelson Cerqueira Editora Saraiva Satildeo Paulo 2011 p 201-215WARREN Mark Nietzsche and political thought Massachusetts The MIT Press 1988 [trad Noeacuteli Correia de Melo Sobrinho] WOODWARD Ashley Nietzscheanismo Traduccedilatildeo de Diego Kosbiau Trevisan ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2016 ndash (seacuterie Pensamento Moderno) tiacutetulo original Understanding NietzscheanismWOTLING Patrick When power gives proof of spirit origins and logic of justice according to Nietzsche Quando a potecircncia daacute prova de espiacuterito origem e loacutegica da justiccedila segundo Nietzsche Quand la puissance fait preuve drsquoesprit Origine et logique de la justice selon Nietzscherdquo In WOTLING P (org) Paris Vrin 2007 p 113-140 copyLibrairie Philosophique J Vrin Traduccedilatildeo de Ivo da Silva Juacutenior1 Trad de Karina Jannini Cad Nietzsche no32 Satildeo Paulo 2013

Bibliografia PrincipalACAMPORA Christa Davis ACAMPORA Ralph r A Nietzschean Bestiary Becoming Animal Beyond Docile and Brutal ROWMAN amp LITILEFIELD PUBLISHERS INC Lanhambull Boulderbull New Yorkbull Torontobull Oxford 2004 1019 fGOODRICH Peter VALVERDE Mariana Nietzsche and Legal Theory Half-Written Laws Routledge Taylor and Francis Group Nietzsche and legal theory half-written laws edited by Peter Goodrich and Mariana Valverde New York 2005 219 fJANAWAY Christopher Beyond Selflessness Reading Nietzschersquos Genealogy Oxford University Press 2007 284ppMAY Simon Nietzsche on Freedom and Autonomy Edited by Ken Gemes and Simon May Oxford University Press 2009 New York United States 293 p

Referecircncias SecundaacuteriasAGUIAR Roberto A R de Direito poder e opressatildeo Editora Alfa-Omega 3ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo 1990BARATTA Alessandro Criminologia Criacutetica e Criacutetica do Direito Penal Introduccedilatildeo agrave Sociologia do Direito Penal Editora Revan Coleccedilatildeo Pensamento Criminoloacutegico Instituto Carioca de Criminologia 6ordf Ediccedilatildeo outubro de 2011 2ordf reimpressatildeo Agosto de 2014BRAGA Ana Gabriela Mendes Criminologia e prisatildeo caminhos e desafios da pesquisa empiacuterica no acircmbito prisional Revista de Estudos Empiacutericos em Direito Brazilian Journal

Alianna Caroline Sousa Cardoso

53

of Empirical Legal Studies vol 1 n1 Jan 2014 p 46-62BITENCOURT Caroline Muller SILVA Carla Luana da POSITIVISMO JURIacuteDICO E SUAS CLASSIFICACcedilOtildeES COMPREENDENDO SUA IMPORTAcircNCIA PARA A TEORIA DO DIREITO XXI SEMINAacuteRIO INTERNACIONAL DE DEMANDAS SOCIAIS E POLIacuteTICAS PUacuteBLICAS NA SOCIEDADE CONTEMPORAcircNEA VIII MOSTRA DE TRABALHOS JURIacuteDICOS CIENTIacuteFICOS 2015 Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito Departamento de Ciecircncias Juriacutedicas ndash CEPEJUR Universidade de Santa Cruz do Sul ndash UNISC anais p 1-22 Disponiacutevel em httpsonlineuniscbracadnetanaisindexphpsidspparticleviewFile130782219 Acessado em 08102016BITTENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal 17ordf Ediccedilatildeo Editora Saraiva Satildeo Paulo 2012 838pBOBBIO Norberto O positivismo juriacutedico liccedilotildees de filosofia do direito Satildeo Paulo Iacutecone 1999 _____ Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant Brasiacutelia UnB 1997BONAVIDES Paulo Ciecircncia Poliacutetica 22ordf Ediccedilatildeo Malheiros Editores Satildeo Paul 2015BOZZA Faacutebio da Silva FINALIDADES E FUNDAMENTOS DO DIREITO DE PUNIR DO DISCURSO JURIacuteDICO Agrave CRIacuteTICA CRIMINOLOacuteGICA Dissertaccedilatildeo (mestrado) - Universidade Federal do Paranaacute Setor de Ciecircncias Juriacutedicas Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito Defesa Curitiba 2005BRANDAtildeO Claacuteudio Curso de Direito Penal Parte geral Rio de Janeiro Forense 2008_____ Introduccedilatildeo ao Direito Penal Rio de Janeiro Forense 2005_____ Teoria Juriacutedica do Crime 2ordf ed Rio de Janeiro Forense 2007BRUNO Aniacutebal Direito Penal Parte geral Rio de Janeiro Forense 1967CARNELUTTI Francesco Teoria Geral do Direito Satildeo PauloLejus 1999CERQUEIRA Nelson PAMPLONA FILHO Rodolfo - Coordenadores Metodologia da Pesquisa em Direito e a Filosofia Satildeo Paulo Saraiva 2011CHIAVERINI Tatiane Origem da Pena de Prisatildeo Dissertaccedilatildeo de Mestrado Mestrado em Filosofia do Direito PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DE SAtildeO PAULO - PUCSP 2009 132 p p 09 CUNHA Paulo Ferreira da Universidade do Porto Other universities From the SelectedWorks of Paulo Ferreira da Cunha November 16 2011 Available at httpworksbepresscompfc124DARMON Pierre Meacutedicos e assassinos na ldquoBelle Eacutepoquerdquo a medicalizaccedilatildeo do crime Rio de Janeiro Paz e Terra 1991DIAS Camila Caldeira Nunes PCC ndash Hegemonia nas Prisotildees e Monopoacutelio da Violecircncia Coleccedilatildeo Saberes Monograacuteficos Editora Saraiva 2013DIAS Jorge de Figueiredo Direito penal parte geral t I Questotildees Fundamentais ndash A doutrina geral do crime Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2007FAUSTINO Eliana Ribeiro PIRES Sandra Regina Abreu A ressocializaccedilatildeo como finalidade da prisatildeo algumas consideraccedilotildees sobre seu significado Sociedade em Debate Universidade Catoacutelica de Pelotas v 15 n 2 (2009)FELDENS Luciano APROXIMACcedilOtildeES TEOacuteRICOS SOBRE O GARANTISMO JURIacuteDICO Criminologia e sistemas juriacutedico-penais contemporacircneos II [recurso eletrocircnico] Ruth Maria Chittoacute Gauer (Org) Aury Lopes Jr [et al] ndash Dados eletrocircnicos ndash Porto Alegre EDIPUCRS 2010351P P 258-272

Da genealogia da teoria do crime no direito

54

FEUERBACH Anselm V Tratado de derecho penal Buenos Aires Eitorial Hammurabi SRL 1989FOUCAULT Michel A verdade e as formas juriacutedicas Editora NAU PUC Rio Departamento de Letras 3ordf Ediccedilatildeo 1ordf Reimpressatildeo Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro_____ Vigiar e Punir Histoacuteria da Violecircncia nas Prisotildees Nascimento da prisatildeo 3ordf Ediccedilatildeo Traduccedilatildeo de Liacutegia M Pondeacute Vassallo Petroacutepolis 1984Freud S(1913) Totem e Tabu In Obras psicoloacutegicas completas Ediccedilatildeo Standard Brasileira Rio de Janeiro Imago 1996GORDON Richard A Assustadora Histoacuteria da Medicina Traduccedilatildeo Aulyde Soares Rodrigues 9ordf Ediccedilatildeo Rio de Janeiro Ediouro 1997GRECO Luiacutes Introduccedilatildeo agrave dogmaacutetica funcionalista do delito Em comemoraccedilatildeo aos trinta anos de ldquoPoliacutetica criminal e sistema juriacutedico-penalrdquo de Roxin Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo v 8 n 32 p 120-163 outdez 2000_____ Tem futuro o conceito de accedilatildeo Em GRECO Luis e LOBATO Danilo Temas de Direito penal ndash Parte geral Rio de Janeiro Renovar 2008JAKOBS Guumlnther Derecho Penal parte general Fundamentos y teoria de la imputacioacuten Madrid Marcial Pons Ediciones juridicas 1997_____ A imputaccedilatildeo objetiva no Direito Penal Traduccedilatildeo de Andreacute Luiacutez Callegari Editora Revista dos Tibunais Satildeo Paulo 2000_____ A imputaccedilatildeo penal da accedilatildeo e da omissatildeo Estudos de Direito Penal v7 Satildeo Paulo Manole 2003_____ Accedilatildeo e omissatildeo no Direito Penal Estudos de Direito Penal v 2 Satildeo Paulo Manole 2003_____Tratado de Direito Penal Teoria do Injusto Penal e Culpabilidade Belo Horizonte Del Rey 2008KANT Emmanuel Introduccioacuten a la teoriacutea del derecho MadridInstituto de Estudios Poliacuteticos 1954 LIMA Joatildeo Francisco Lopes de A CRIacuteTICA AO HUMANISMO EM EDUCACcedilAtildeO E AS REPERCUSSOtildeES SOBRE O DISCURSO PEDAGOacuteGICO NO CENAacuteRIO CONTEMPORAcircNEO IX CONGRESSO NACIONAL DE EDUCACcedilAtildeO ndash EDUCERE 26 a 29 de outubro de 2009 PUC-PR Aacuterea Temaacutetica Cultura Curriacuteculo e SaberesLISZT Franz von Tratado de Direito Penal allematildeo v I Trad Joseacute Hygino Duarte Pereira Brasiacutelia Senado Federal 2006_____ Capiacutetulos de Direito Penal Parte geral Satildeo Paulo Saraiva 1985LUMIA Giuseppe Elementos de Teoria e Ideologia do Direito Traduccedilatildeo Denise Agostinetti Editora Martins Fontes Satildeo Paulo 2003MACHADO NETO A L Introduccedilatildeo agrave Ciecircncia do Direito (Sociologia Juriacutedica) Satildeo Paulo Saraiva 1963 v2 p204-5MACHADO Marta Rodriguez de Assis Socioedade do Risco e Direito Penal Uma avaliaccedilatildeo de novas tendecircncias poliacutetico-criminais Instituto Brasileiro de Ciecircncias Criminais ndash IBCCRIM Satildeo Paulo 2005MANTOVANI Ferrando Diritto penale Parte generale 6ordf ed Itaacutelia Cedam 2009MATOS Andityas Soares De Moura Costa A CONCEPCcedilAtildeO DE JUSTICcedilA DE HANS

Alianna Caroline Sousa Cardoso

55

KELSEN EM FACE DO POSITIVISMO RELATIVISTA E DO JUSNATURALISMO ABSOLUTISTA Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade Federal de Minas Gerais ndash UFMG 2004 Disponiacutevel em httpwwwbibliotecadigitalufmgbrdspacebitstreamhandle1843BUOS-967PD6direito_andityassoaresmouracostamatos_disserta__opdfsequence=1 P 13 MONTEIRO Washington de Barros Curso de Direito Civil ndash Parte Geral 37 Ed Satildeo Paulo Saraiva 2000 v1MORAES Pedro Rodolfo Bodecirc de Puniccedilatildeo Encarceramento e Construccedilatildeo de identidade profissional entre agentes penitenciaacuterios IBBCRIM Satildeo Paulo 2005NUCCI Guilherme de Souza Manual de Direito Penal 10ordf Ediccedilatildeo Grupo Editorial Nacional Editora Forense Rio de Janeiro 2014RIBEIRO Renato Janine Democracia e Direitos Humanos Universidade de Satildeo Paulo Faculdade de Educaccedilatildeo Curso de Difusatildeo Cultural ldquoEducaccedilatildeo Democracia e Direitos Humanosrdquo Direitos Humanos nas Escolas Programa de Formaccedilatildeo Docente 2008ROXIN Claus Cuestiones sobre la moderna teoriacutea de la imputacioacuten penal Lima ARA 2009RUDAacute Antoacutenio Soloacuten Breve histoacuteria do direito penal e da criminologia do primitivismo criminal agrave era das escolas penais Jus Navigandi Disponiacutevel em httpsjuscombrartigos25959brevehistoriadodireitopenaledacriminologia Acessado em 11052016SANTOS Juarez Cirino Direito Penal Parte Geral 3ordf ed rev e atual Curitiba ICPC LumenJuris 2008SANTOS Robinson dos A CONCEPCcedilAtildeO DE JUSTICcedilA PENAL NA DOUTRINA DO DIREITO DE KANT ethic-Florianoacutepolis v 10 n 3 p 103 - 114 Dez 2011 SCHMIDT Andrei Zenkner O meacutetodo do direito penal sob uma perspectiva interdisciplinar Rio de Janeiro Lumen Juris 2007SILVA Pablo Rodrigo Alflen Culpabilidade e livre-arbiacutetrio novamente em questatildeo Os influxos da neurociecircncia sobre o Direito Penal (httpsjuscombrartigos13089culpabilidade-e-livre-arbitrio-novamente-em-questao) Revista Jus Navigandi ISSN 1518-4862 Teresina ano 14SILVA Andreacute Adriano do Nascimento BREVES LINHAS SOBRE OS AVANCcedilOS DAS NEUROCIEcircNCIAS E O DIREITO PENAL Interfaces Cientiacuteficas - Direito bull Aracaju bull V2 bull N3 bull p 45 - 52 bull Jun 2014SILVA SANCHEacuteZ Jesuacutes Maria La expansioacuten del derecho penal Aspectos de la poliacutetica criminal em las sociedades postindustriales 2ordf ed Madrid Civitas 2001_____ Aproximacioacuten al Derecho penal contemporaacuteneo 2 ed Buenos Aires Montevideo B de F 2010TORRES Ana Paula Repolecircs UMA ANAacuteLISE EPISTEMOLOacuteGICA DA TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN Revista CEJ Brasiacutelia n 33 p 72-77 abrjun 2006 P 74VALLS Alvaro L M O que eacute eacutetica Editora Brasiliense Coleccedilatildeo Primeiros Passos - Nordm 177 ISBN 85-11-01177-3 -Ano 1994 p 20 WARAT Luis Alberto Introduccedilatildeo geral ao direito II a epistemologia juriacutedica da modernidade Traduccedilatildeo de Joseacute Luiz Bolzan de Morais Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1995WEBER Thadeu Direito e justiccedila em Kant Revista de Estudos Constitucionais Hermenecircutica e Teoria do Direito (RECHTD) 5(1) 38-47 janeiro-junho 2013 p 39

Da genealogia da teoria do crime no direito

56

WELZEL Hans Derecho Penal Alemaacuten 2ordf ed Castellana Santiago Editorial Juridica de Chile 1976_____ Derecho Penal Alemaacuten 11ordf Ed Editorial juriacutedica de Chile Chile 1997_____ O novo Sistema Juriacutedico-Penal Uma Introduccedilatildeo agrave doutrina da accedilatildeo finalista 2ordf ed traduzida Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2009ZAFFARONI Eugenio Rauacutel Tratado de Derecho Penal Parte general III Buenos Aires EDIAR 1981_____ Poliacutetica y dogmaacutetica juriacutedico-penal In En torno de la cuestioacuten penal Buenos Aires B de F 2005_____ Direito Penal brasileiro t II Teoria do delito ndash introduccedilatildeo histoacuterica e metodoloacutegica accedilatildeo e tipicidade Rio de Janeiro Revan 2010_____ PIERANGELI Joseacute Henrique Manual de Direito Penal Brasileiro Parte geral Volume I 6ordf ed rev e atual Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2006

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

57

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem a partir do paradigma imunitaacuterio

Angela Couto Machado Fonseca1

Dhyego Cacircmara Arauacutejo2

IntroduccedilatildeoEm que pese a pertinecircncia dos debates especiacuteficos sobre o valor da vida e da pessoa

humana que alimentam a anaacutelise juriacutedica de natildeo legitimaccedilatildeo do poder soberano para matar por meio de uma sentenccedila penal condenatoacuteria entendemos que existem outras perspectivas de anaacutelise sobre as condiccedilotildees da morte para aleacutem da sua (i)legitimidade na figura pontual da pena de morte

A proposta de pensar a ocorrecircncia da morte fora do plano restrito de sua legitimidade soberana - registro que trata da possibilidade ou natildeo da condenaccedilatildeo e o cometimento de assassinatos - se justifica pela percepccedilatildeo de que na realidade social ocorrem continuados eventos nos quais a vida eacute exterminada ou exposta agrave morte sem que tais eventos possam na sua totalidade ou de modo faacutecil encaixar-se naqueles paracircmetros da legitimidade

Se por um lado eacute viaacutevel balizar a produccedilatildeo da morte questionando se ela cabe ou natildeo ao Estado e diante dos casos concretos de sua ocorrecircncia fazer pesar sua condiccedilatildeo de ilicitude por outro lado escapa a esse modelo interpretativo o alcance compreensivo de que certos modos de existecircncia satildeo mais vulneraacuteveis agrave morte Mais que isso tal vulnerabilidade ligada ao risco e agrave concretizaccedilatildeo da morte natildeo se explica pelos paracircmetros de morte pensados no ordenamento juriacutedico Para enunciar tais vidas expostas agrave morte basta aqui de modo breve atentarmos para a condiccedilatildeo de maior precariedade (BUTLER 2015) da populaccedilatildeo negra LGBTI de mulheres das pessoas em situaccedilatildeo de rua das prostitutas daqueles que vivem em favelas e etc Sugerimos assim que o evento da morte para ser devidamente pensado requer a agregaccedilatildeo de outros referenciais analiacuteticos

O terreno teoacuterico-filosoacutefico que nas uacuteltimas deacutecadas mais precisamente desde meados da deacutecada de 1970 tecircm se ocupado de pensar as relaccedilotildees entre vidamorte e poder eacute aquele que Michel Foucault veio a denominar por biopoliacutetica Trata-se de explicitar as teacutecnicas e as praacuteticas que fizeram da vida bioloacutegica o alvo privilegiado do poder na poliacutetica ocidental bem como seus inuacutemeros desdobramentos no campo social

1 UFPR2 UEPG

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

58

Essa tomada da vida pelo poder como pensada pela biopoliacutetica problematiza que o objeto das relaccedilotildees de poder natildeo eacute o sujeito de direitos mas sim a populaccedilatildeo como coleccedilatildeo de processos bioloacutegicos O horizonte biopoliacutetico trata da gestatildeo da vida o que admite pensar que essa administraccedilatildeo organize em diferentes niacuteveis as vidas e possa privilegiar ou barrar caracteriacutesticas bioloacutegicas elaboradas como beneacuteficas ou prejudiciais

Por tal vieacutes de anaacutelise permite-se vislumbrar a construccedilatildeo em torno do que se entende por vida de uma teia capaz de capturaacute-la naquilo que se considera como da ordem do orgacircnico e natural possibilitando o surgimento de saberes estatiacutesticos a respeito de taxas de natalidade mortalidade e morbidade a implementaccedilatildeo de programas de previdecircncia e poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede a organizaccedilatildeo do espaccedilo urbano para melhor circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e doenccedilas etc

Com a identificaccedilatildeo do surgimento da biopoliacutetica no seacuteculo XVIII feita por Michel Foucault as relaccedilotildees entre poder e vida bem como entre poder e morte ganharam novos matizes Natildeo mais um poder soberano de ldquofazer morrer e deixar viverrdquo mas a partir de entatildeo um poder que se manifesta de modo diverso e sob uma nova alcunha denominado biopoder caracteriza-se pelo ldquofazer viver e deixar morrerrdquo (FOUCAULT 2011) Ora se de acordo com o diagnoacutestico foucaultiano haacute a partir do seacuteculo XVIII um predomiacutenio de um tipo de poder que se dirige agrave promoccedilatildeo da vida como explicar as diversas situaccedilotildees em que natildeo se verifica o seu estiacutemulo e proliferaccedilatildeo mas exatamente o contraacuterio a sua exposiccedilatildeo agrave morte ou mesmo o seu extermiacutenio Algumas vidas tornam-se nessa complexa relaccedilatildeo entre poder e biacuteos passiacuteveis de morte

O ponto que tanto Foucault quanto Esposito perceberam mesmo que tenham desenvolvimentos diversos e por vezes Esposito conteste e critique Foucault eacute o de que a biopoliacutetica revela um circuito de proteccedilatildeo e risco no que se refere agrave vida Para proceder uma real e seacuteria discussatildeo dos processos de incitaccedilatildeo e proteccedilatildeo da vida eacute preciso colher o caraacuteter biopoliacutetico dos mecanismos que realizam tais processos assim como perceber que pertence aos seus proacuteprios movimentos na defesa da vida tambeacutem a produccedilatildeo da morte Para produzir e gerir vidas defensaacuteveis tambeacutem satildeo produzidas vidas descartaacuteveis Esse eacute um reverso circular do funcionamento das poliacuteticas sobre a vida

Se eacute assim no particular e no cenaacuterio brasileiro podemos pensar num primeiro momento a partir do recorte de gecircnero a situaccedilatildeo vivida pela comunidade LGBTI Tais vidas posicionadas como menos vaacutelidas pelo padratildeo heternormativo vigente satildeo cotidianamente abaladas por violecircncias continuadas e produccedilatildeo de mortes Ainda que se possa argumentar que tais mortes satildeo efeitos indesejados de uma sociedade injusta eacute preciso tambeacutem lembrar do cenaacuterio aqui delineado onde praacuteticas de poder voltadas para a vida desenham os corpos e os desenham tambeacutem em seu valor e utilidade Resulta de uma hieraacuterquica disposiccedilatildeo das vidas e suas condiccedilotildees de validade no cenaacuterio poliacutetico a vizibilizaccedilatildeo ldquodesviadardquo e ldquoanormalrdquo dos corpos LGBT A vida dos LGBT construiacuteda como ldquoabjetardquo eacute permissatildeo para investidas negativas sobre tais vidas ndash eacute permissatildeo para exposiccedilatildeo agrave morte

Levando em consideraccedilatildeo a hierarquizaccedilatildeo social promovida pelo biopoder Foucault vislumbra a existecircncia de um paradoxo no quadro desenhado pela tecnologia biopoliacutetica ou seja a contradiccedilatildeo levada a cabo por um tipo de poder cuja promoccedilatildeo da vida eacute o seu objetivo mas que resulta na produccedilatildeo da morte Tal situaccedilatildeo apresenta a transmutaccedilatildeo da biopoliacutetica em tanatopoliacutetica quer dizer remete a essa conversatildeo do fazer viver no fazer morrer

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

59

Se na deacutecada de 70 foi possiacutevel a Foucault identificar o formato paradoxal dessa relaccedilatildeo entre poder e vidamorte os seus trabalhos posteriores natildeo enfrentaram exaustivamente a problemaacutetica levantada pela dicotomia biopoliacuteticatanatopoliacutetica Para o filoacutesofo a emergecircncia do biopoder trouxe consigo para o interior do Estado a figura do racismo3 a qual permite nesse domiacutenio da vida instaurar um corte capaz de determinar quem deve viver e quem deve morrer (FOUCAULT 2010 p 214)

No arcabouccedilo filosoacutefico foucaultiano o desdobramento da biopoliacutetica em tanatopoliacutetica4 foi pensado em termos de um paradoxo Sua reflexatildeo nos eacute necessaacuteria para localizar a biopoliacutetica e com ela as relaccedilotildees de pertinecircncia de um poder que ao ter como objeto o fazer viver tambeacutem exercita o fazer morrer Continua-se o debate com Roberto Esposito precisamente porque seu pensamento quer apontar para uma possiacutevel resposta ao paradoxo concedendo lugar privilegiado para os desdobramentos tanatopoliacuteticos nos exerciacutecios de poder contemporacircneos Esposito provoca seu leitor a considerar que os eventos poliacuteticos atuais somente podem ser devidamente compreendidos quando usamos o quadro categorial da biopoliacutetica e com ele as condiccedilotildees de vida e morte

A esse respeito podemos retornar agraves paacuteginas que abrem a introduccedilatildeo do livro Biacuteos Biopoliacutetica e Filosofia do filoacutesofo italiano onde satildeo mencionadas vaacuterias situaccedilotildees ocorridas em diferentes lugares do mundo ndash como por exemplo a Guerra lsquohumanitaacuteriarsquo no Afeganistatildeo em 2001 o resgate de refeacutens presos pelo comando checheno em Moscou em 2002 que matou tanto civis quanto terroristas e o relatoacuterio da ONU em 2004 informando que em Ruanda cerca de 10000 crianccedilas resultam de violaccedilotildees eacutetnicas ocorridas mediante um estupro coletivo no confronto dos Hutus com os Tutsis ndash para expor que o fio invisiacutevel que amarra e permite ler eventos tatildeo distintos e distantes eacute o fio da biopoliacutetica Em suas palavras ldquoNo seu centro estaacute a noccedilatildeo de biopoliacutetica Soacute a partir dela eacute que acontecimentos que escapam de uma interpretaccedilatildeo mais tradicional como aqueles que acabamos de evocar encontram um sentido de conjunto que vaacute aleacutem da sua simples manifestaccedilatildeordquo (ESPOSITO 2010 p 22)

A identificaccedilatildeo de um tipo de poder que muito embora natildeo parta do Estado em direccedilatildeo agrave vidamorte dos sujeitos mas que o atravessa lhe reconfigurando dentro de um quadro distinto da anaacutelise restrita da (i)legalidade sobre a produccedilatildeo da morte revela a pertinecircncia da anaacutelise que ora se propotildee

3 Natildeo se trata o racismo como uma figura nova ou inventada nas tramas da biopoliacutetica Em sua genealogia do racis-

mo Foucault demonstra o seu surgimento como um discurso histoacuterico-poliacutetico de enfrentamento em relaccedilatildeo a um discurso juriacutedico-filosoacutefico ndash proeminente desde a Idade Meacutedia ndash que buscava deslegitimaacute-lo reivindicando a luta das raccedilas como seu mote de embate Raccedilas vistas como dois grupos distintos marcados pela origem local liacutengua ou religiatildeo Posteriormente a histoacuteria da luta das raccedilas tornou-se de um lado a luta de classes e de outro o racismo nesse momento lido a partir de uma matriz bioloacutegica e que seraacute tomado pelo biopoder para servir de justificativa e operacionalizaccedilatildeo do seu exerciacutecio de morte Para uma anaacutelise detalhada sobre esse movimento genealoacutegico da figura do racismo bioloacutegico de Estado consultar a Aula de 28 de janeiro de 1976 do curso Em defesa da Sociedade (FOUCAULT 2010)

4 Ao falarmos de tanatopoliacutetica o que aparece eacute a conversatildeo da biopoliacutetica ndash do fazer viver ndash no seu contrario fazer morrer Tanto Michel Foucault quanto Roberto Esposito (autores aqui trabalhados) perceberam que a proacutepria biopoliacutetica opera como tanatopoliacutetica ela mesma se converte no seu contraacuterio em suas praacuteticas de regulaccedilatildeo da vida Embora esses autores tenham pensado essa conversatildeo em diferentes bases ndash Foucault como um paradoxo e Esposito pelo paradigma imunitaacuterio ndash ambos a diagnosticam e a percebem como um problema inescapaacutevel Assim vida e morte no cenaacuterio politico contemporacircneo satildeo pensados por esses dois autores a partir do vieacutes da biopoliacutetica Eacute a biopoliacutetica que permite compreender as praacuteticas de poder que atuam sobre a vida seja no seu incremento ou na sua invalidaccedilatildeo e morte

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

60

2 Esposito e o paradigma imunitaacuterio a proteccedilatildeo negativa da vidaSobre a fenda aberta por Michel Foucault outras satildeo as reflexotildees apresentadas

por Roberto Esposito a respeito do ldquoenigma da biopoliacuteticardquo Em sua obra eacute elaborado um verdadeiro percurso de desconstruccedilatildeo acerca da capacidade analiacutetica das categorias poliacuteticas moderna5 em seu alcance compreensivo dos eventos poliacuteticos contemporacircneos Sua obra fornece um quadro criacutetico que acusa a permanecircncia de uma semacircntica poliacutetica ndash dos direitos do contrato da liberdade e da democracia ndash incapaz de responder agrave realidade mais presente

Mas esse movimento desconstrutivo de desmontagem conceitual que procura visibilizar a inefetividade do leacutexico poliacutetico moderno estaacute associado a um movimento de redirecionamento O sentido interno da denuacutencia estaacute associado agrave intenccedilatildeo de propor novos conceitos que emergem de sua leitura da biopoliacutetica Eacute na direccedilatildeo ou melhor na nova direccedilatildeo assumidamente biopoliacutetica que seus dispositivos conceituais como comunidade imunidade e impessoal se localizam e pretendem contribuir no alcance dos acontecimentos poliacuteticos

Suas anaacutelises partem de Foucault e polemizam com Foucault uma vez que o italiano ao pretender elaborar as condiccedilotildees de uma biopoliacutetica afirmativa enfrenta o circuito proteccedilatildeo da vida e risco de vida inerente agrave biopoliacutetica Esposito pretende superar essa relaccedilatildeo em sua face de paradoxo elaborando o paradgima imunitaacuterio elemento que em sua leitura foi a ldquochave interpretativardquo (ESPOSITO 2010 p 73) que faltou a Foucault

O enigma segundo o qual a biopoliacutetica esse conjunto consistente de accedilotildees e praacuteticas voltadas para a produccedilatildeo e proteccedilatildeo da vida se reverte ou decai numa tanatopoliacutetica se resolve para este autor pela foacutermula da imunizaccedilatildeo O acesso agrave biopoliacutetica pela noccedilatildeo de imunizaccedilatildeo eacute fundamental pois pensa a proacutepria poliacutetica moderna como imunitaacuteria e a biopoliacutetica como sua expressatildeo

A proposiccedilatildeo conceitual precisa da imunidade eacute apresentada como ldquoproteccedilatildeo negativa da vidardquo (ESPOSITO 2010 p 21) mas natildeo haacute como alcanccedilar o significado dessa proteccedilatildeo negativa sem relacionar imunidade e comunidade Numa retomada etimoloacutegica natildeo usual Esposito expotildee que comunidade (communitas) deriva de cum e munus O primeiro termo remete a uma relaccedilatildeo - a um lsquocomrsquo- que eacute a um soacute tempo irresistiacutevel e impossiacutevel ao passo que o munus - que recebe maior atenccedilatildeo e importacircncia ndash indica por um lado tarefa obrigaccedilatildeo ofiacutecio e por outro dom Trata-se de um dom que exige ldquoo dom que se daacute natildeo o que receberdquo (CAMPBELL 2010 p 18)

A partir dessa localizaccedilatildeo etimoloacutegica a comunidade eacute dissociada da noccedilatildeo de propriedade6 A comunidade natildeo eacute o que integra os sujeitos a partir da apropriaccedilatildeo de um proacuteprio que lhes seja dado por natureza Nem mesmo seria possiacutevel pensar em sujeitos jaacute que natildeo haacute sequer contrato inaugurado na base da apropriaccedilatildeo de elementos inerentes do homem e que os redefina como sujeitos O desenho do homem da comunitas que aparece eacute de um homem improacuteprio e ligado pela pura exterioridade do munus ndash do dever e do dom de dar (ESPOSITO 2006)

A comunidade baseada no munus se configura como exposiccedilatildeo e abertura apresenta nesse fazer e natildeo receber a contiacutenua situaccedilatildeo de risco e de perigo extremo de morte ao homem Eacute dentro desse quadro que a imunidade se coloca Ela aparece como forma de 5 Categorias poliacuteticas como liberdade democracia direitos individuais e direitos coletivos por exemplo 6 A esse respeito ldquoil munus che la communitas condivide non egrave una proprietagrave o unrsquoappartenenza Non egrave un avere ma

al contrario un debito un pegno un dono-da-dare (hellip) il commune non egrave caraterizzato dal proprio ma dallrsquoimpro-priordquo(ESPOSITO 2006 p XIII-XIV)

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

61

remediar os excessos de exposiccedilao do dom e se desenha como emblema da filosofia poliacutetica moderna

Em Termos da Poliacutetica Esposito diz que a ldquosalvaguarda da vida humana diante dos perigos da extinccedilatildeo violenta que a ameaccedilamrdquo (ESPOSITO 2017 p 154) explicita a condiccedilatildeo biopoliacutetica da modernidade de modo que ldquopoderia chegar-se a dizer que natildeo foi a modernidade a colocar o problema da autoconservaccedilatildeo da vida mas esta uacuteltima a pocircr em existecircncia por assim dizer a lsquoinventarrsquo a modernidade como um complexo de categorias em condiccedilotildees de resolver tal problemardquo (ESPOSITO 2017 p 154) Essas passagens satildeo profundamente eloquentes para relacionar a comunidade como a exposiccedilatildeo que pode chegar a ser letal (problema biopoliacutetico) e a imunidade como o desdobramento imanente da comunidade para barrar esse seu efeito danoso Nesse ponto ignorando todos os importantes desdobramentos da poliacutetica moderna como imunitaacuteria a definiccedilatildeo do paradigma imunitaacuterio como proteccedilatildeo negativa encontra a possibilidade de sua compreensatildeo

Tal como na fisiologia7 do corpo humano o funcionamento da imunizaccedilatildeo se caracteriza pela proteccedilatildeo da comunidade a partir de sua articulaccedilatildeo com elementos negativos mas que a partir de tal operaccedilatildeo acarretam a criaccedilatildeo de uma rede de proteccedilatildeo Protege na medida em que evita os excessos do dom comunitaacuterio mas eacute negativa porque nega a comunidade ndash revela a passagem do comum ao individual Diante da possibilidade iminente de intensificaccedilatildeo daqueles elementos danosos tal rede protetiva eacute ativada evitando assim fatores de riscos produzidos pela proacutepria comunidade Esses fatores de risco seriam sua desagregaccedilatildeo generalizada a dessubjetivaccedilatildeo de seus membros e no limite sua morte (ESPOSITO 2002 2010 NALI 2012 2013) ldquoo sistema imunitaacuterio eacute assim um complexo estrateacutegico de proteccedilatildeo da vida de seu equiliacutebrio a partir do desequiliacutebrio incitado extremamente dinacircmico e homeostaacuteticordquo (NALI 2013 p 92)

Conforme exposto por Nali (NALI 2013 p 86) com a demonstraccedilatildeo e descriccedilatildeo pela ciecircncia do funcionamento do sistema imunoloacutegico dos organismos implantou-se no acircmbito da accedilatildeo poliacutetica tais ideias com vistas a produzir mecanismos imunitaacuterios e de proteccedilatildeo agrave comunidade Junto agrave descoberta e isolamento dos agentes etioloacutegicos e em especial de como se valer de culturas enfraquecidas de tais agentes para induzir um processo de imunizaccedilatildeo do corpo transplantou-se tais saberes para a comunidade Pressupotildee-se que haacute um mal a afligiacute-la requisitando portanto meios de reproduzir ldquode forma controlada o mal do qual deve protegerrdquo (ESPOSITO 2009 p 17)

O paradigma imunitaacuterio segundo Esposito seria representante do uacutenico modo interpretativo capaz de restaurar o elo existente entre a biopoliacutetica e a modernidade uma vez que entende que ldquosoacute a modernidade faz da autopreservaccedilatildeo individual o pressuposto de todas as outras categorias poliacuteticas da soberania agrave liberdaderdquo (ESPOSITO 2010 p 21)

Nesse cenaacuterio a leitura que ora se propotildee a partir da imunizaccedilatildeo aponta que se encare o paradoxal sentido da sedimentaccedilatildeo de uma comunidade ligado aos processos de imunizaccedilatildeo efetivados enquanto resultado da perigosa exposiccedilatildeo da vida dessa mesma

7 Interessante notar que Esposito ao identificar essa interaccedilatildeo discursiva entre os saberes poliacuteticos e biomeacutedicos e em-preendendo numa anaacutelise etimoloacutegica dos termos communitas e immunitas prontamente identifica que natildeo se trata de um discurso bioloacutegico que afeta o campo da poliacutetica e da defesa da comunidade mas antes de uma construccedilatildeo discursiva no campo da biologia que procura explicar o funcionamento de um organismo a partir de metaacuteforas beacutelicas e de defesa O que se consolida em uma leitura analiacutetica corrente na biologia a imunologia para em seguida retornar ao campo das defesas poliacuteticas de uma comunidade de um territoacuterio de uma sociedade de um Estado Tal retorno entretanto marcado neste momento natildeo apenas por constituir-se como um discurso de guerra e de defesa beacutelica mas com ares cientiacuteficos e epistemoloacutegicos

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

62

comunidade Isto eacute o paradigma imunitaacuterio como ldquoproteccedilatildeo negativa da vidardquo (ESPOSITO 2010 p 21) A immunitas natildeo se refere a uma leitura de poder que o considere como uma forccedila externa atuando sobre a vida a partir do fora (ESPOSITO 2002) mas que propotildee por outro lado que ldquoo proacuteprio modo de atuaccedilatildeo da vida eacute conflitual e portanto natildeo pode ocorrer agrave revelia das relaccedilotildees de poder A imunidade eacute inteiramente colocada como as formas de proteccedilatildeo da vida em sua inerente relaccedilatildeo com o poderrdquo (FONSECA 2016 p 70)

Desse modo vida e morte passam natildeo mais a integrar aquela aparente relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo muacutetua Dissolvem-se as fronteiras estanques entre tais termos bem como entre subjetivaccedilatildeo e dessubjetivaccedilatildeo substituindo-se a oposiccedilatildeo anterior por uma relaccedilatildeo de imanecircncia e inclusatildeo em que a morte natildeo eacute mais pensada como o limite externo situado no polo contraacuterio agrave vida mas como fenocircmeno vital (NALI 2013 p 90)

A compreensatildeo da biopoliacutetica a partir do paradigma imunitaacuterio nos leva a consideraacute-la como uma exposiccedilatildeo controlada da comunidade aos riscos e fatores que a negam e a ameaccedilam Nesse sentido tanto a vida como a subjetividade devem sofrer os infortuacutenios e vicissitudes de sua proacutepria negaccedilatildeo ainda que de maneira calculadamente controlada de modo que resulte num fortalecimento da comunidade contra futuras ameaccedilas antagocircnicas mais fortes provenientes contudo de seu proacuteprio seio O sistema imunitaacuterio destarte eacute tomado pelo filoacutesofo em estreita correlaccedilatildeo com a comunidade vez que a compreende como o proacuteprio motor da imunizaccedilatildeo (ESPOSITO 2010)

Essa traduccedilatildeo imediata da vida em poliacutetica tal qual sugerida pelo filoacutesofo ou ainda essa formulaccedilatildeo da poliacutetica caracterizada como intrinsecamente bioloacutegica (ESPOSITO 2010 p 21) faz com que natildeo mais se perceba tais relaccedilotildees como uma biopoliacutetica sobre a vida mas como uma poliacutetica da vida A imunizaccedilatildeo portanto sugere uma concepccedilatildeo de imanecircncia entre poliacutetica e vida poreacutem no limite a imunizaccedilatildeo necessaacuteria agrave conservaccedilatildeo da comunidade pode vir a superar os limites de sua proteccedilatildeo e sobrevivecircncia e se perverter em uma espeacutecie de doenccedila autoimune como o que se pocircde verificar nas atrocidades cometidas pelo nazismo (ESPOSITO 2010 p 26)

Segundo Esposito na experiecircncia nazista a instrumentalizaccedilatildeo da morte natildeo vinha apenas como efeito de uma proteccedilatildeo negativa da vida mas o proacuteprio condicionamento e potenciamento da vida se dava sob uma crescente dialeacutetica destinada a produccedilatildeo estendida de morte (ESPOSITO 2010 p 24)

Em sua leitura o regime nazista levou agraves uacuteltimas consequecircncias a biologizaccedilatildeo da poliacutetica ponto que outrora jamais fora alcanccedilado vez que considerou o povo alematildeo como uma totalidade orgacircnica um corpo doente necessitado de uma cura radical e cuja recomendaccedilatildeo era a extraccedilatildeo e expurgaccedilatildeo de seus agentes etioloacutegicos que consistia ao fim e ao cabo ldquona ablaccedilatildeo violenta da parte espiritualmente jaacute mortardquo (ESPOSITO 2010 p 25) bastando lembrar como prova disso das ordens finais de autodestruiccedilatildeo proferidas por Hitler contra todo o povo alematildeo

No capiacutetulo dedicado agrave tanatopoliacutetica (o ciclo do ghenos) em Biacuteos biopoliacutetica e filosofia assim como no capiacutetulo O Nazismo e Noacutes do Termos da Poliacutetica comunidade imunidade biopoliacutetica Esposito verticaliza a leitura das ligaccedilotildees proacuteprias e natildeo improacuteprias ou paradoxais da poliacutetica da vida como igualmente poliacutetica da morte Deixa clara outra distinccedilatildeo sua em relaccedilatildeo a Foucault Se para Foucault eacute somente com o nazismo e o racismo de Estado que aparece a circularidade entre fazer viver e fazer morrer entre soberania e biopoliacutetica

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

63

para o filosofo italiano o paradigma imunitaacuterio como emblema da modernidade opera tanto no regime da soberania com a presenccedila dos direitos quanto na loacutegica biopoliacutetca No limiar extremo do nazismo aparece de modo mais claro a pertinecircncia entre os pontos que pareciam antinocircmicos revelando ldquouma singular forma de indistinccedilatildeo que faz de um ao mesmo tempo o reverso e o complemento do outrordquo (ESPOSITO 2010 p 159)

Nessa percepccedilatildeo tornada possiacutevel pelo extremo do nazismo acerca da lsquosobreposiccedilatildeorsquo da loacutegica soberana e biopoliacutetica da vida e da morte costuradas pela praacutetica imunitaacuteria percebe-se uma separaccedilatildeo bioloacutegica entre os que devem viver e aqueles que devem morrer A terapecircutica meacutedica presente no nazismo eacute a indicaccedilatildeo de um cuidado da vida de alguns que exige a morte de outros ndash exige a imunizaccedilatildeo de alguns a respeito de outros E tal elaboraccedilatildeo revela que ldquoo genociacutedio foi o resultado natildeo da ausecircncia mas sim da presenccedila de um eacutetica meacutedica pervertida no seu contrariordquo (ESPOSITO 2010 p 166) A sauacutede do povo alematildeo ou seja a sua imunizaccedilatildeo em face ao risco da doenccedila judaica precisou requerer o extermiacutenio do inimigo Somente a catgoria imunitaacuteria ldquopotildee claramente a nu o noacute mortiacutefero que junta a proteccedilatildeo da vida agrave sua potencial negaccedilatildeordquo (ESPOSITO 2010 p 159)

Ainda que se desvie dos movimentos hiperboacutelicos do nazismo esse noacute mortiacutefero natildeo desaparece ndash foi ali apenas elevado ao seu aacutepice e evidecircncia plena ndash uma vez que tal noacute alimenta o proacuteprio paradigma imunitaacuterio da modernidade Sobre isso Esposito diz que

Da guerra do e contra o terrorismo agraves migraccedilotildees em massa das poliacuteticas de sauacutede agraves demograacuteficas das medidas de seguranccedila preventiva agrave extensatildeo ilimitada das legislaccedilotildees de emergecircncia natildeo haacute fenocircmeno de relevo internacional que seja estranho agrave dupla tendecircncia que situa as histoacuterias a que se faz referecircncia numa uacutenica linha de significado por um lado uma crescente sobreposiccedilatildeo entre o acircmbito da poliacutetica ou do direito e o da vida por outro uma implicaccedilatildeo igualmente estreita que parece derivar daquela em relaccedilatildeo agrave morte (ESPOSITO 2010 p 22)

O problema da degeneraccedilatildeo por exemplo questatildeo iacutentima agrave biopoliacutetica tambeacutem evidencia o incocircmodo e o perigo que representam certas formas de vida ou certas condiccedilotildees bioloacutegicas perante as formas de vida consideradas saudaacuteveis Toda uma gama de diferentes discursos desde os mais claros e assumidos a outros suavizados pronunciam e fabricam o medo do contaacutegio da degenerescecircncia que certos comportamentos ou modos de vida parecem carregar Drogados viciados vadios imorais e desviados constituem perigos que justificam a defesa da sociedade em face de sua presenccedila Torna-se preciso delimitar comportamentos ou traccedilos degenerados dar-lhes uma causa bioloacutegica eacutetnica ou socialcultural inquebrantaacutevel para poder segregar e higienizar Eacute preciso imunizar a sociedade da presenccedila problemaacutetica desses grupos e nesse movimento excluiacute-los da imunizaccedilatildeo Fazer dessas formas de vida vidas precaacuterias que natildeo satildeo originariamente precaacuterias mas que satildeo assim posicionadas nas relaccedilotildees ndash na exposiccedilatildeo do munus alguns precisam ser protegidos e isso leva a fragilizaccedilatildeo de outros Na imunizaccedilatildeo que eacute salvaguarda da vida lhe eacute inerente e tambeacutem sua contrapartida o enviar para a morte Imunizar alguns em face dos outros eacute sempre imunizar alguns e natildeo outros - esse eacute o proacuteprio movimento imunitaacuterio em seu ciclo de defesa e ataque da vida

Assim pensar a exposiccedilatildeo para a morte exige nesse quadro de referecircncias expor os movimentos que ordenam em diferentes posiccedilotildees as vidas Pensar a produccedilatildeo da morte nesse

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

64

contexto retira o olhar do agente ou do ato isolados que pensam em termos de (i)legitimidade para requerer a anaacutelise das distribuiccedilotildees hieraacuterquicas das vidas e os mecanismos de poder que se articulam e contribuem nas suas disposiccedilotildees Discursos meacutedicos poliacutetico-partidaacuterios de movimentos sociais poliacuteticas puacuteblicas produccedilatildeo de pacircnicos morais todos esses diferentes lugares passam a contar para uma efetiva compreensatildeo dos processos imunitaacuterios

Eacute nesse sentido que Esposito afirma de maneira categoacuterica o fato de que nunca como atualmente ldquoos conflitos as feridas os medos que o dilaceram [o mundo] parecem pocircr em causa nada menos do que a sua proacutepria vidardquo movimento que opera uma inversatildeo no claacutessico motivo filosoacutefico sobre o ldquomundo da vidardquo para considerar a partir de entatildeo a ldquovida do mundordquo (ESPOSITO 2010 p 26) Essa modificaccedilatildeo da bios levada a cabo por uma poliacutetica tomada enquanto teacutecnica e a sua leitura imunitaacuteria requer seu entendimento natildeo por uma perspectiva de mera reaccedilatildeo uma forccedila reativa aos processos desagregadores proacuteprios da comunidade mas como accedilatildeo calculada da geraccedilatildeo e controle do conflito poreacutem cujo caacutelculo pode lhe exacerbar e se reverter em autoimunizaccedilatildeo

Tal qual o corpo atua junto ao antiacutegeno o sistema imunitaacuterio de uma comunidade parece operar de maneira similar (ESPOSITO 2002 p 59) Em um primeiro momento assimila aqueles que natildeo se encaixam aos padrotildees de equiliacutebrio estabelecidos ao bom funcionamento do organismo social forccedilando-os a se adequar aos seus modos de operaccedilatildeo regular e saudaacutevel mas para isso obriga a se revelarem constantemente a fim de que sejam reconhecidos Essa revelaccedilatildeo permanente da subjetividade para posterior assimilaccedilatildeo e constrangimento agrave regra eacute uma das teacutecnicas dos procedimentos imunitaacuterios (NALI 2013 p 98-99)

A gestaccedilatildeo e a proteccedilatildeo poliacutetica da vida pelos seus proacuteprios meios requer e aciona procedimentos de imunizaccedilatildeo consistentes na promoccedilatildeo de um equiliacutebrio vital da comunidade mas que apenas se realiza na medida em que equaciona em seus caacutelculos a eliminaccedilatildeo via ataques imunitaacuterios de elementos e fatores ndash indiviacuteduos ndash compreendidos como risco de desagregaccedilatildeo da proacutepria comunidade8

Nesses jogos procedimentais de demarcaccedilatildeo de alvos de imunizaccedilatildeo o caacutelculo operado no modelo de proteccedilatildeo negativa da vida leva em consideraccedilatildeo um agregado de vidas a ser salvo em razatildeo de suas qualidades verificadas in locu e em virtude de sua proacutepria ldquohumanidaderdquo criteacuterio este utilizado tambeacutem para se determinar aqueles que seratildeo expostos agrave morte vez que representam um perigo agrave proacutepria comunidade tomada enquanto corpo bioloacutegico A ideia de humanidade subjacente a todos esses processos de imunizaccedilatildeo e compreendida como fator de diferenciaccedilatildeo dos humanos dispostos numa hierarquia superior em relaccedilatildeo a todas as outras espeacutecies viventes paradoxalmente aderiu agrave proacutepria mateacuteria bioloacutegica agora carregada de valores poliacuteticos Nesse contexto afirma Esposito ldquoconfundida com a sua pura substacircncia vital e assim subtraiacuteda a qualquer forma juriacutedico-poliacutetica a humanidade do homem fica necessariamente exposta agravequilo que pode simultaneamente salvaacute-la e aniquilaacute-lardquo (ESPOSITO 2010 p 19)

A leitura pelo vieacutes da imunizaccedilatildeo nos coloca diante das produccedilotildees de morte que ocorrem agrave revelia da permissatildeo juriacutedica na medida em que representam a proteccedilatildeo do proacuteprio organismo social Essa proteccedilatildeo do social depende da expulsatildeo da igualdade generalizada Eacute soacute imunizando e portanto diferenciando e acobertando uns em detrimento

8 De acordo com Esposito ldquoCiograve che ne risulta egrave un movimento bilanciato di neutralizzazione ndash chiaramente ricon-ducibile alla logica immunitariardquo(ESPOSITO 2002 p 69)

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

65

de outros que a vida cabe na poliacutetica moderna A moderna poliacutetica da vida assim se movimenta aplicando e desaplicando proteccedilotildees imunitaacuterias Eacute deste modo num contexto mais abrangente que a produccedilatildeo da morte deve ser pensada Natildeo se trata de balizar sua permissatildeo ou negaccedilatildeo legal mas de analisar como a proacutepria tessitura poliacutetica moderna opera de modo antinocircmico abrindo fendas na suposta igualdade e valor da vida em abstrato

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

66

Referecircncias bibliograacuteficasBUTLER Judiht Quadros de guerra quando a vida eacute passiacutevel de luto Traduccedilatildeo de Seacutergio Tadeu de Niemeyer Lamaratildeo Arnaldo Marques da Cunha Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2015CAMPBELL Timothy Poliacutetica Imunidade Vida O pensamento de Roberto Esposito no debate contemporacircneo In ESPOSITO Roberto Termos da Poliacutetica comunidade imunidade biopoliacutetica Traduccedilatildeo de Angela C Machado Fonseca Joatildeo Paulo Arrosi Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca Curitiba Ed UFPR 2017 CORTE IDH Caso Favela Nova Brasiacutelia Vs Brasil Sentenccedila de 16 de fevereiro de 2017 Seacuterie C Nordm 333 Disponiacutevel em httpwwwcorteidhorcrdocscasosarticulosseriec_333_porpdf Acesso em 16 de setembro de 2017DIOacuteGENES Francisco Bruno Pereira Racismo de Estado e Tanatopoliacutetica sobre o paradoxo do Nazismo em Michel Foucault e Giorgio Agamben Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea Brasiacutelia n 2 ano 1 p 156-193 2013DUARTE Andreacute Macedo De Michel Foucault a Giorgio Agamben a trajetoacuteria do conceito de biopoliacutetica In Fenomenologia Hoje III ndash Bioeacutetica biotecnologia biopoliacutetica Editora Edipucrs 2008 Texto em versatildeo digital p 1-22 Disponiacutevel em httpsworksbepresscomandre_duarte17 Acesso em 06 de ago de 2016ESPOSITO Roberto Bios biopoliacutetica e filosofia Traduccedilatildeo de M Freitas da Costa Lisboa Ediccedilotildees 70 2010_____ Termos da Poliacutetica comunidade imunidade biopoliacutetica Traduccedilatildeo de Angela C Machado Fonseca Joatildeo Paulo Arrosi Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca Curitiba Ed UFPR 2017 _____ Communitas Origine e destino della comunitagrave Torino Einaudi 2006 _____ Immunitas Protezione e negazione della vita Torino Einaudi 2002 FONSECA Angela Couto Machado Biopoliacutetica e Direito fabricaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo do corpo moderno Belo Horizonte Arraes Editores 2016FONSECA Ricardo Marcelo O poder entre o direito e a lsquonormarsquo Foucault e Deleuze na Teoria do Estado In FONSECA Ricardo Marcelo (org) Repensando a teoria do Estado Belo Horizonte 2004 p 259-281_____ Modernidade e contrato de trabalho do sujeito de direito agrave sujeiccedilatildeo juriacutedica Satildeo Paulo LTr 2002FOUCAULT Michel Histoacuteria da sexualidade 1 A vontade de saber (Traduccedilatildeo de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque) Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 2011_____ Em defesa da sociedade Curso no Collegravege de France (1975-1976) (Traduccedilatildeo de Maria Emantina Galvatildeo) ndash 2ordf ed ndash Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2010_____ Vigiar e Punir nascimento da prisatildeo (Traduccedilatildeo de Raquel Ramalhete) 39 ed Petroacutepolis Rio de Janeiro Vozes 2011NALI Marcos CommunitasImmunitas a releitura de Roberto Esposito da biopoliacutetica Revista Filosofia Aurora Curitiba v 25 n 37 p 79-105 2013_____ A abordagem imunitaacuteria de Roberto Esposito biopoliacutetica e medicalizaccedilatildeo Revista INTERthesis Florianoacutepolis v 9 n 2 p 39-50 2012

Caius Brandatildeo

67

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

Caius Brandatildeo1

As posiccedilotildees paradoxais assumidas por Nietzsche acerca do livre-arbiacutetrio eacute uma questatildeo bastante espinhosa provocando ainda hoje tensotildees entre os seus estudiosos que manteacutem candente o debate afinal em relaccedilatildeo ao problema da liberdade da vontade Nietzsche deve ser considerado um compatibilista ou um fatalista Na Genealogia da moral o filoacutesofo argumenta que a doutrina do livre-arbiacutetrio nada mais eacute do que uma invenccedilatildeo da moralidade escrava para atender agrave sua necessidade de crenccedila no ldquolsquosujeitorsquo indiferente e livre para escolherrdquo (GM I sect13) Com essa crenccedila na liberdade da vontade surge a ideia de responsabilidade e portanto de imputaccedilatildeo moral Assim as noccedilotildees de culpa e merecimento seriam um desenvolvimento tardio da moralidade humana quando a doutrina do livre-arbiacutetrio foi finamente criada pela revolta escrava da moral Em suas palavras ldquodurante o mais largo periacuteodo da histoacuteria humana natildeo se castigou porque se responsabilizava o delinquente por seu ato ou seja natildeo pelo pressuposto de que apenas o culpado devia ser castigadordquo (GM II sect4) Ainda de acordo com Nietzsche

natildeo eacute de espantar que os afetos entranhados que ardem ocultos oacutedio e vinganccedila tirem proveito dessa crenccedila e no fundo natildeo sustentem com fervor maior outra crenccedila senatildeo a de que o forte eacute livre para ser fraco e a ave de rapina livre para ser ovelha ndash assim adquirem o direito de imputar agrave ave de rapina o fato de ser o que eacute (GM I sect13)

Com base nessas passagens da Genealogia da moral jaacute eacute possiacutevel observar pelo menos duas categorias de livre-arbiacutetrio postas em questatildeo pelo filoacutesofo a liberdade de escolha para agir moralmente e a liberdade para ser o que se eacute Natildeo obstante em seguida na mesma obra Nietzsche apresenta a figura enigmaacutetica do indiviacuteduo soberano ldquosenhor do livre-arbiacutetriordquo que deteacutem o ldquoprivileacutegio extraordinaacuterio da responsabilidaderdquo (GM II sect2) O problema contudo toma proporccedilotildees ainda mais amplas e complexas quando se coteja passagens de diferentes obras do filoacutesofo onde por vezes ele parece afirmar uma noccedilatildeo positiva da liberdade da vontade enquanto que em outros trechos rejeita categoricamente o livre-arbiacutetrio e consequentemente a responsabilidade do agente moral da mesma forma como a responsabilidade da pessoa por ser o que eacute

Neste texto propomos apresentar as interpretaccedilotildees parcialmente conflitantes sobre este tema de dois importantes representantes da recepccedilatildeo anglo-saxocircnica contemporacircnea da filosofia de Nietzsche Ken Gemes professor do Instituto Berkbeck da Universidade

1 Doutorando Mestre e Bacharel em Filosofia Universidade Federal de Goiaacutes (UFG)

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

68

de Londres e Brian Leiter diretor e professor do Centro de Direito Filosofia e Valores Humanos da Universidade de Chicago

Ken GemesNo capiacutetulo intitulado ldquoNietzsche on Free Will Autonomy and the Sovereign

Individualrdquo de sua obra Nietzsche on Freedom and Autonomy publicada em 2009 pela Oxford University Press Ken Gemes propotildee tratar o problema da liberdade a partir de duas categorias A primeira delas faz referecircncia ao livre-arbiacutetrio de meacuterito (deserts free will) o qual autoriza a noccedilatildeo de quem eacute merecedor de puniccedilatildeo ou recompensa A segunda categoria proposta por Gemes se refere ao livre-arbiacutetrio de agecircncia (agency free will) o qual autoriza as noccedilotildees de autonomia e de agecircncia genuiacutena e que estaria relacionado agrave ideia de accedilatildeo ao inveacutes de um mero fazer (GEMES 2009 p 322) De antematildeo o professor da Universidade de Londres deixa claro que o objetivo do seu texto eacute defender a sua compreensatildeo de que Nietzsche rejeita o livre-arbiacutetrio de meacuterito e afirma o livre-arbiacutetrio de agecircncia a despeito de que somente pessoas muito raras seriam capazes de alcanccedilar real autonomia e responsabilidade a exemplo do indiviacuteduo soberano da Genealogia da moral

Gemes observa que jaacute haacute muito tempo as noccedilotildees de livre-arbiacutetrio e responsabilidade caminham juntas e que a tradiccedilatildeo filosoacutefica reconhece a liberdade da vontade como condiccedilatildeo para a responsabilidade moral Para o professor de Birkbeck uma ambiguidade existente no termo ldquoresponsabilidaderdquo faz com que as pessoas cometam o erro de natildeo separar o livre-arbiacutetrio de meacuterito do livre-arbiacutetrio de agecircncia Quando afirmamos que algueacutem eacute responsaacutevel por algo pode ser que o que queremos dizer eacute que esta pessoa merece uma puniccedilatildeo ou uma recompensa por ter feito o que fez Por outro lado pode ser tambeacutem que queremos dizer simplesmente que foi esta pessoa quem fez o que fez Em suma o primeiro significado de responsabilidade estaacute associado agrave noccedilatildeo de merecimento enquanto o segundo agrave noccedilatildeo de agecircncia Gemes entatildeo passa a separar categoricamente esses dois tipos de significado para o termo ldquoresponsabilidaderdquo para concluir que Nietzsche rejeita a responsabilidade de meacuterito mas deixa algum espaccedilo para se afirmar a responsabilidade de agecircncia Vejamos em suas proacuteprias palavras como o professor de Birkbeck chega a essa conclusatildeo

Ora algueacutem pode levantar uma objeccedilatildeo e dizer que Nietzsche estaacute constantemente culpando as pessoas (Soacutecrates Jesus Satildeo Paulo Wagner) e muitas vezes louvando os outros (Napoleatildeo Beethoven Goethe Wagner Nietzsche) portanto isto significa que seria difiacutecil aceitar que ele natildeo estaria interessado em questotildees de meacuteritos Eacute importante aqui separar os conceitos de puniccedilatildeo e recompensa dos conceitos de culpa e elogio [] A fim de separar esses pares conceituais seria uacutetil trazer o foco para a nossa atitude em relaccedilatildeo a figuras que haacute muito desapareceram Por exemplo aqueles de noacutes que admiram Soacutecrates podem elogiaacute-lo mas esse elogio dificilmente constitui uma recompensa ndash em certo sentido os mortos estatildeo fora do alcance das recompensas embora naturalmente possam ser honrados Aqueles que assim como Nietzsche consideram que Soacutecrates eacute uma influecircncia em grande parte maleacutefica podem ateacute culpaacute-lo mas natildeo devemos entender essa culpa como sendo qualquer tipo de puniccedilatildeo Ordinariamente punir e recompensar eacute algo que fazemos com os seres vivos natildeo agravequeles que jaacute morreram Nietzsche de fato fez vaacuterios elogios e atribuiu culpa a

Caius Brandatildeo

69

figuras que eram seus contemporacircneos e figuras que haviam morrido antes dele A minha opiniatildeo eacute que para Nietzsche tais elogios e culpas significam que ele os considera responsaacuteveis por vaacuterios efeitos mas apenas no que se refere agrave agecircncia e natildeo aos meacuteritos Que Nietzsche culpe e louve natildeo demonstra que ele esteja comprometido com uma explicaccedilatildeo positiva da responsabilidade ou do livre-arbiacutetrio de meacuterito Nietzsche rejeita as noccedilotildees de puniccedilatildeo e recompensa em parte porque elas satildeo em certo sentido dirigidas ao passado uma questatildeo de dar o que foi merecido ao passo que para Nietzsche as atitudes de elogiar e culpar satildeo fundamentalmente direcionadas ao futuro [] Ele culpa figuras tais como Soacutecrates Jesus Paulo e agraves vezes Wagner natildeo porque ele queira meramente atribuir a eles seus meacuteritos mas antes porque ele quer diminuir suas influecircncias atuais e futuras Da mesma forma ele elogia Beethoven Goethe Nietzsche e agraves vezes Wagner porque ele deseja aumentar suas influecircncias sobre noacutes e sobre o futuro mesmo que agraves vezes eles sejam apresentados somente como exemplares (GEMES 2009 pp 323 e 324)

Temos entatildeo que em sua cadeia argumentativa Ken Gemes contrapotildee dois grupos de pares conceituais de um lado o livre-arbiacutetrio e a responsabilidade de meacuterito e do outro lado o livre-arbiacutetrio e a responsabilidade de agecircncia Para sustentar a sua interpretaccedilatildeo de que Nietzsche rejeita o livre-arbiacutetrio e a responsabilidade de meacuterito Gemes cita a seguinte passagem do aforismo 39 de Humano demasiado humano

E afinal descobrimos que tampouco este ser pode ser responsaacutevel na medida em que eacute inteiramente uma consequecircncia necessaacuteria e se forma a partir dos elementos e influxos de coisas passadas e presentes portanto que natildeo se pode tornar o homem responsaacutevel por nada seja por seu ser por seus motivos por suas accedilotildees ou por seus efeitos Com isso chegamos ao conhecimento de que a histoacuteria dos sentimentos morais eacute a histoacuteria de um erro o erro da responsabilidade que se baseia no erro do livre-arbiacutetrio (HH I sect39)

Ao nos reportarmos ao trecho final desse mesmo aforismo encontramos uma reiteraccedilatildeo da mesma afirmaccedilatildeo

mdash Ningueacutem eacute responsaacutevel por suas accedilotildees ningueacutem responde por seu ser julgar significa ser injusto Isso tambeacutem vale para quando o indiviacuteduo julga a si mesmo Essa tese eacute clara como a luz do sol no entanto todos preferem retornar agrave sombra e agrave inverdade por medo das consequecircncias (HH I sect 39)

De fato aqui Nietzsche rejeita a responsabilidade do homem ldquopor suas accedilotildees ou por seus efeitosrdquo Todavia Gemes parece natildeo perceber que esse mesmo aforismo compromete a sua interpretaccedilatildeo de que o filoacutesofo teria deixado espaccedilo para se afirmar a responsabilidade de agecircncia afinal ele diz categoricamente que natildeo se pode tornar o homem responsaacutevel por nada inclusive pelo seu proacuteprio ser Parece-nos razoaacutevel afirmar que somente podem assumir responsabilidade por sua proacutepria agecircncia aqueles que agem livre e autonomamente Gemes tambeacutem reconhece essa relaccedilatildeo de necessidade entre livre-arbiacutetrio de agecircncia e autonomia Conforme ele expotildee

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

70

Algueacutem pode por exemplo negar que haacute livre-arbiacutetrio no sentido tradicionalmente visto como necessaacuterio para fundamentar questotildees de meacuterito e ao mesmo tempo afirmar que haacute livre-arbiacutetrio no sentido tradicionalmente visto como necessaacuterio para fundamentar a noccedilatildeo de agecircncia e de autonomia (GEMES 2009 p 322)

Ora se Gemes reconhece que a autonomia eacute tributaacuteria do livre-arbiacutetrio de agecircncia entatildeo seria razoaacutevel esperar que um indiviacuteduo autocircnomo fosse livre e capaz de responder por seu proacuteprio ser Mas convenhamos esta natildeo parece ser a conclusatildeo que podemos defender pelo menos com base nesse aforismo de Humano demasiado humano onde Nietzsche eacute categoacuterico ao dizer que ldquoningueacutem responde por seu serrdquo

Para Gemes uma das evidecircncias de que Nietzsche seja um compatibilista pode ser encontrada na passagem da Segunda Dissertaccedilatildeo da Genealogia da moral onde o filoacutesofo introduz a figura do indiviacuteduo soberano o senhor do livre-arbiacutetrio Para Gemes o tipo de liberdade que Nietzsche estaria invocando aiacute natildeo envolve a liberdade da ordem causal nem se liga a questotildees de meacuterito Para o professor da Universidade de Londres a noccedilatildeo de liberdade atribuiacuteda ao indiviacuteduo soberano estaria claramente ligada agrave questatildeo da autonomia e do que ele chama de ldquoagecircncia genuiacutenardquo Mas a bem da verdade e como veremos a seguir essa passagem sobre o indiviacuteduo soberano ainda suscita diferentes interpretaccedilotildees

Brian Leiter Passemos agora agrave apresentaccedilatildeo do texto Who is the lsquosovereign individualrsquo Nietzsche

on freedom de Brian Leiter que foi originalmente publicado em 2011 pela Cambridge University Press como um capiacutetulo do livro Nietzschersquos On the Genealogy of Morality A Critical Guide organizado por Simon May

Primeiramente Leiter critica o consenso entre os inteacuterpretes contemporacircneos de Nietzsche de acordo com o qual o trecho sobre o indiviacuteduo soberano serviria para confirmar uma suposta teoria positiva da liberdade na filosofia do pensador alematildeo Leiter cita nominalmente alguns desses inteacuterpretes entre eles Keith Ansell-Pearson John Richardson Peter Poellner e Ken Gemes Em nota de rodapeacute Leiter faz a seguinte anaacutelise do texto ldquoNietzsche on Free Will Autonomy and the Sovereign Individualrdquo de Ken Gemes

A terminologia e a discussatildeo de Gemes nos parecem um tanto confusas Ele faz a comparaccedilatildeo entre o que chama de ldquolivre-arbiacutetrio de meacuteritordquo [deserts free will] e ldquolivre-arbiacutetrio de agecircnciardquo [agency free will] De acordo com este uacuteltimo ldquoo debate sobre livre-arbiacutetrio estaacute intrinsecamente ligado agrave questatildeo da agecircncia o que constitui a accedilatildeo ao contraacuterio do mero fazerrdquo (2009 33) Na verdade ningueacutem pensa que possa existir livre-arbiacutetrio ou livre-agecircncia se natildeo haacute diferenccedila entre accedilotildees e ldquomeros fazeresrdquo por exemplo meros movimentos corporais Mas existem vaacuterias formas de salientar a distinccedilatildeo que natildeo guarde relaccedilatildeo com qualquer questatildeo que algueacutem na filosofia agora ou no passado identifique com a questatildeo do ldquolivre-arbiacutetriordquo Talvez as accedilotildees exijam intenccedilotildees para agir enquanto que ldquomeros fazeresrdquo ndash tais como os movimentos reflexivos do corpo ndash carecem delas Isto ainda deixaria totalmente em aberto o conhecido problema acerca da liberdade da vontade Gemes emprega outras formulaccedilotildees para a sua idiossincraacutetica categoria de ldquolivre-arbiacutetrio de agecircnciardquo Ele diz estar preocupado com a questatildeo sobre ldquoo que permite a autonomiardquo (33) e depois afirma que o ldquolivre-arbiacutetrio de agecircnciardquo estaacute ligado ldquoagrave questatildeo

Caius Brandatildeo

71

ainda mais profunda de lsquoo que significa agir em primeiro lugar o que eacute ser um eu capaz de agirrdquo (39) Infelizmente natildeo haacute evidecircncia textual de que estas sejam preocupaccedilotildees de Nietzsche Gemes tambeacutem afirma mais uma vez sem apresentar evidecircncias ou citaccedilatildeo que aqueles interessados no ldquolivre-arbiacutetrio de meacuteritordquo ldquotendem a escrever como se noacutes jaacute tiveacutessemos uma noccedilatildeo sobre o eu e sobre a accedilatildeo mais ou menos estabelecida e que estariacuteamos somente levantando a questatildeo de se tais lsquoeusrsquo deveriam ser considerados moralmente responsaacuteveis por suas accedilotildeesrdquo (LEITER 2011 p 111)

Para contrapor o que parece ser consensual entre seus colegas da recepccedilatildeo anglo-saxocircnica ou seja que Nietzsche teria criado o indiviacuteduo soberano para afirmar um tipo de liberdade o professor da Universidade de Chicago se propotildee a analisar duas alternativas que ajudam a deflacionar as interprestaccedilotildees correntes desta figura controversa a qual aparece somente uma vez na Genealogia da moral A primeira leitura possiacutevel seria a de compreender este trecho da obra sob a chave da ironia ndash neste caso

a figura do ldquoindiviacuteduo soberanordquo seria completamente irocircnica ndash uma zombaria sobre o pequeno burguecircs preocupado com seu insignificante empreendimento comercial ndash suas habilidades de fazer promessas e de se lembrar de suas diacutevidas seriam o fruto mais elevado da criaccedilatildeo (LEITER 2011 p 103)

Apesar de Leiter propor enxergar o indiviacuteduo soberano como um pequeno burguecircs preocupado com suas diacutevidas talvez seja verdade que Nietzsche natildeo estaria interessado em classes sociais na sua Genealogia da moral Quiccedilaacute a zombaria sob a provaacutevel oacutetica irocircnica de Nietzsche tenha como alvo o ideal kantiano de homem autocircnomo e supramoral No sect2 da Segunda Dissertaccedilatildeo Nietzsche apresenta a consciecircncia moral do indiviacuteduo soberano e no paraacutegrafo seguinte o genealogista indaga o que haacute por traacutes desse conceito de consciecircncia ldquoJaacute se percebe que o conceito de ldquoconsciecircnciardquo com que deparamos aqui em sua manifestaccedilatildeo mais alta quase desconcertante tem uma longa histoacuteria e variedade de formas atraacutes de sirdquo (GM II sect3) A histoacuteria e variedade de formas da consciecircncia moral do indiviacuteduo soberano satildeo marcadas pelo ldquosangue martiacuterio e sacrifiacuteciordquo (GM II sect3) impostos pela mnemoteacutecnica da moralidade dos costumes Eacute por pavor ao castigo que o homem inaugura em si a capacidade da memoacuteria e com ela de acordo com Nietzsche finalmente a razatildeo

ndash Ah a razatildeo a seriedade o domiacutenio sobre os afetos toda essa coisa sombria que se chama reflexatildeo todos esses privileacutegios e adereccedilos do homem como foi alto o seu preccedilo Quanto sangue e quanto horror haacute no fundo de todas as ldquocoisas boasrdquo (GM II sect 3)

Temos portanto que a consciecircncia moral do indiviacuteduo soberano compreende essa razatildeo que exerce domiacutenio sobre os afetos Isso nos leva a crer que aqui na verdade Nietzsche tem em mente a sua criacutetica a uma tradiccedilatildeo de pensamento particularmente agrave filosofia moral de Kant

A segunda leitura deflacionaacuteria proposta por Leiter considera que o indiviacuteduo soberano representa o ideal do self moderno capaz de ldquoautodomiacuteniordquo o qual

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

72

seria estranho aos ldquoeusrdquo menos coerentes (cujos impulsos momentacircneos os puxam de um lado ou de outro) Mas este eu e o seu autodomiacutenio satildeo em termos nietzschianos um artefato natural fortuito (um pouco de ldquodestinordquo) natildeo uma conquista autocircnoma pela qual ningueacutem poderia ser responsaacutevel Associar esse ideal do eu com a linguagem de ldquoliberdaderdquo e ldquolivre-arbiacutetriordquo significa um exerciacutecio de ldquodefiniccedilatildeo persuasivardquo de Nietzsche uma habilidade retoacuterica na qual ele amiuacutede era o mestre (LEITER 2011 p 103)

Leiter sugere que a segunda leitura eacute provavelmente a mais correta embora a apresentaccedilatildeo ridiacutecula e hiperboacutelica que Nietzsche faz do indiviacuteduo soberano faccedila com que a primeira leitura nos pareccedila mais atraente Mas conforme Leiter ambas as leituras ldquonos permitiriam compreender como e porque Nietzsche o fatalista e superceacutetico acerca do livre-arbiacutetrio teria criado a figura do indiviacuteduo soberanordquo (LEITER 2011 p 103) De acordo com Leiter a capacidade de autodomiacutenio natildeo eacute uma escolha autocircnoma da pessoa Natildeo haacute em seu entendimento nenhum ldquoeurdquo no autodomiacutenio em suas proacuteprias palavras natildeo existe

nenhum ldquoeurdquo consciente ou livre que contribua com algo ao processo O ldquoautodomiacuteniordquo natildeo passa de um efeito da interaccedilatildeo de certos impulsos sobre os quais o eu consciente natildeo exerce nenhum controle (apesar de poder por assim dizer torcer por um lado ou por outro) O ldquoeu conscienterdquo e seu corpo eacute tatildeo somente uma arena onde a luta dos impulsos se desenrola como eles terminam determina o que o eu acredita valoriza e se torna Mas enquanto eu consciente ou ldquoagenterdquo a pessoa natildeo tem parte ativa no processo De fato alguns ldquotipos mais elevadosrdquo ndash Goethes e Nietzsches por exemplo ndash seriam exemplares de uma hierarquia unificada de impulsos o que Nietzsche ocasionalmente chama de exemplares da ldquoliberdaderdquo (LEITER 2011 p 110)

Eacute com base nessa concepccedilatildeo de autodomiacutenio que Leiter propotildee compatibilizar a passagem sobre o indiviacuteduo soberano na Genealogia da moral com a negaccedilatildeo do livre-arbiacutetrio e da responsabilidade moral nesta e em tantas outras obras de Nietzsche

Em seguida Leiter coteja a sua explicaccedilatildeo fatalista do indiviacuteduo soberano com as noccedilotildees de liberdade e de livre-arbiacutetrio identificadas em diversos escritos do filoacutesofo Inicialmente contudo ele expotildee a posiccedilatildeo de Peter Poellner para quem a visatildeo positiva da liberdade em Nietzsche representa uma espeacutecie de ldquoideal substantivordquo Leiter associa esta interpretaccedilatildeo de Poellner com a posiccedilatildeo de Ken Gemes para quem Nietzsche estaria propondo um ldquoideal de agecircncia que exigiria uma espeacutecie de unidade de impulsosrdquo (LEITER 2011 p 111) Leiter entatildeo pondera que talvez o polecircmico indiviacuteduo soberano represente tal ideal mas natildeo concorda que ele esteja ligado agraves noccedilotildees de liberdade e livre-arbiacutetrio ou mesmo de autonomia Aqui o argumento central do professor da Universidade de Chicago eacute que Nietzsche utiliza os conceitos de liberdade e de livre-arbiacutetrio em sentido revisionista promovendo o que Charles Stevenson chama de ldquodefiniccedilatildeo persuasiva da liberdaderdquo Para Leiter Nietzsche

deseja revisar radicalmente o conteuacutedo da palavra ldquoliberdaderdquo enquanto explora a valecircncia positiva que o termo possui para seus leitores A razatildeo disto eacute que Nietzsche reconhece que para transformar realmente a consciecircncia de seus leitores preferidos ele deve tocaacute-los no niacutevel

Caius Brandatildeo

73

emocional ateacute mesmo subconsciente e uma forma de fazecirc-lo eacute associar os seus ideais aos valores cujos seus leitores jaacute se encontram emocionalmente investidos (LEITER 2011 p 112)

Leiter propotildee que para Nietzsche liberdade significa a atitude fatalista diante da realidade conhecida como amor fati ou seja a afirmaccedilatildeo intransigente da maneira como as coisas realmente satildeo ao inveacutes de se render agraves fantasias dos idealistas Nas palavras de Leiter ldquoser livre neste sentido significa entatildeo ser livre do desejo de que a realidade seja diferente daquilo que ela eacute ndash isto eacute desigual terriacutevel e cruelrdquo (LEITER 2011 p 118)

Em suas consideraccedilotildees finais Leiter afirma que o desejo de tornar o filoacutesofo ldquomenos temiacutevelrdquo aos delicados leitores modernos explica o ldquoconsensordquo em torno da leitura de um Nietzsche que acredite na liberdade e no livre-arbiacutetrio Enfim para natildeo deixar duacutevida sobre a sua interpretaccedilatildeo fatalista o professor da Universidade de Chicago afirma na conclusatildeo de seu texto

Nietzsche natildeo crecirc na liberdade ou na responsabilidade ele natildeo acredita que noacutes exercitamos qualquer controle significativo sobre nossas vidas ele natildeo crecirc que o seu sentido revisionista de ldquoliberdaderdquo ndash a ldquovontade longa e duradourardquo como ele coloca na passagem da GM II sect2 [] ndash esteja ao alcance de qualquer um de noacutes ou que qualquer um poderia simplesmente ldquoescolherrdquo possuiacute-la (LEITER 2011 p 119)

Por essa razatildeo Leiter rejeita categoricamente a persistente influecircncia maligna das leituras moralizantes das obras do filoacutesofo alematildeo

Em suma enquanto Leiter e Gemes concordam que Nietzsche rechaccedila o livre-arbiacutetrio e a responsabilidade moral eles divergem sobre a liberdade enquanto autonomia Na visatildeo compatibilista de Gemes Nietzsche afirma a liberdade da vontade e a responsabilidade quando associadas agrave agecircncia genuiacutena e autocircnoma Leiter por sua vez defende uma leitura fatalista do filoacutesofo argumentando que mesmo homens raros como Goethe seriam frutos da fortuna

Quais satildeo as consequecircncias de acordo com Nietzsche em HH I sect 39 que nos obrigariam a retornar agrave sombra e agrave inverdade Se natildeo temos o direito de imputar agrave ave de rapina o fato de ela ser o que eacute como podemos nos dar o direito de castigaacute-la por isso Como podemos julgar algueacutem e ateacute a noacutes mesmos por ter agido de determinada forma se for verdade que a vontade racional natildeo eacute a causa de nossas accedilotildees Uma vez confirmada essa teoria de Nietzsche estariacuteamos irremediavelmente diante da imensa tarefa de transvaloraccedilatildeo dos valores morais e de autossupresatildeo da justiccedila

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

74

Referecircncias bibliograacuteficasGEMES Ken Nietzsche on Free Will Autonomy and the Sovereign Individual In GEMES Ken (org) Nietzsche on Freedom and Autonomy Oxford Oxford University Press 2009LEITER Brian Who is the ldquoSovereign Individualrdquo Nietzsche on Freedom In MAY Simon (org) Nietzschersquos On the Genealogy of Morality A Critical Guide Cambridge Cambridge University Press 2011NIETZSCHE Friedrich Genealogia da moral ndash uma polecircmica Trad de Paulo Ceacutesar Lima de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Humano demasiado humano Trad de Paulo Ceacutesar Lima de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Ceacutelia Machado Benvenho

75

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche1

Ceacutelia Machado Benvenho2

Embora natildeo forme um corpus unificado nem mesmo se concentre em textos especiacuteficos Nietzsche faz uma reflexatildeo radical da linguagem desde seus primeiros escritos (1869 a 1871) quando ainda filoacutelogo e a ela dedicaraacute uma especial atenccedilatildeo a ponto de condicionar a tarefa de compreender as transformaccedilotildees que a linguagem havia sofrido desde suas possibilidades originais como uma condiccedilatildeo para a compreensatildeo do desenvolvimento da proacutepria filosofia Nesse sentido embora habitualmente a obra de Nietzsche seja dividida em trecircs periacuteodos distintos com algumas variaccedilotildees de pontos de vistas a linguagem serve como um fio condutor um dos elementos fundamentais para compreensatildeo da sua criacutetica aos problemas tradicionais da metafiacutesica e epistemologia Sua principal criacutetica seraacute aos poderes representativos da linguagem ou seja agrave crenccedila no poder da linguagem de nos fornecer um conhecimento adequado da realidade

No periacuteodo de 1869-70 quando receacutem-nomeado professor na Universidade da Basileacuteia o filoacutesofo prepara um de seus primeiros cursos Liccedilotildees sobre gramaacutetica latina em que num capiacutetulo introdutoacuterio cujo tiacutetulo eacute Sobre a origem da linguagem faz um estudo da gecircnese da linguagem e desenvolve a sua primeira concepccedilatildeo de linguagem e manifesta interesse por diferentes teorias da linguagem da eacutepoca3 Entre os anos de 1872 e 1874 Nietzsche tambeacutem daraacute aulas sobre Retoacuterica antiga4 e Histoacuteria da eloquecircncia grega

Dentre as reflexotildees de Nietzsche sobre a linguagem nos interessa aqui tratar da concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem que aparece nas anotaccedilotildees para o Curso de retoacuterica realizado entre os anos de 1872 e 1874 e no escrito inacabado Sobre verdade e mentira no sentido extramoral de 1873 em que Nietzsche defende a tese de que a linguagem eacute essencialmente e por sua proacutepria natureza uma arte Pretendemos investigar no acircmbito da filosofia do jovem Nietzsche como a concepccedilatildeo retoacuterica da linguagem se mostra relevante e quais as influecircncias dessa abordagem no seu estilo de filosofar posterior A questatildeo que se coloca eacute se esta concepccedilatildeo retoacuterica da linguagem jaacute natildeo anuncia uma objeccedilatildeo do filoacutesofo agrave pretensatildeo metafiacutesica de um discurso que expresse a verdade objeccedilatildeo tiacutepica da criacutetica genealoacutegica que ele iraacute empreender

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001

2 Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute3 Tais como Filosofia do Inconsciente de E Von Hartmann Histoacuteria da Ciecircncia da Linguagem de Th Benfey e Criacutetica

da Faculdade do Juiacutezo de E Kant (Cf CAVALCANTI Anna Hartmann 2005 p 29-39)4 Texto agrupado em seu Curso de Retoacuterica cujo tiacutetulo original eacute Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga anunciado pela Univer-

sidade da Basileacuteia para acontecer no semestre de 1874 Guervoacutes (2000 p 13-16) ressalta que nesse Curso Nietzsche trata sistematicamente e historicamente da retoacuterica e pressupotildee a leitura da obra de Gustav Gerber Die Sprache als Kunst pertencente a uma tradiccedilatildeo filosoacutefica-linguiacutestica e agrave filosofia da linguagem do seacuteculo XIX e de outro grupo que corresponderia agrave tradiccedilatildeo da filologia claacutessica (A Westermann L Spengel R Volkmann e F Blass)

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche

76

Concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem Em notas para o seu Curso de retoacuterica realizado entre os anos de 1872 e 1874

Nietzsche defende a tese de que a linguagem eacute essencialmente e por sua proacutepria natureza uma arte Faz isso sob a influecircncia da obra de Gustav Gerber A linguagem como arte retomando o caraacuteter original da linguagem como uma obra de arte a linguagem se origina de um procedimento esteacutetico originaacuterio inconsciente intuitivo um processo de criaccedilatildeo simboacutelica que tem iniacutecio na percepccedilatildeo humana do mundo A partir desse contexto assim como em outros textos da juventude a relaccedilatildeo do homem com o mundo caracteriza-se como uma relaccedilatildeo esteacutetica Enquanto arte a linguagem expressa somente nossa relaccedilatildeo com as coisas com o mundo ou seja sua origem natildeo eacute intelectual mas intuitiva Tudo se inicia com um estiacutemulo nervoso uma excitaccedilatildeo que suscita uma sensaccedilatildeo que por sua vez eacute representada em uma imagem e depois modelada em um som

O homem que forma a linguagem natildeo percebe coisas ou processos mas excitaccedilotildees [Reize] natildeo transmite sensaccedilotildees mas somente coacutepias de sensaccedilotildees A sensaccedilatildeo suscitada atraveacutes de uma excitaccedilatildeo nervosa natildeo apreende a proacutepria coisa essa sensaccedilatildeo eacute representada externamente atraveacutes de uma imagem (Curso de retoacuterica sect 3)

Em seu ensaio poacutestumo Sobre verdade e mentira em sentido extra-moral5 (1873) simplificando o esquema de Gustav Geber6 Nietzsche diz ldquoUm estiacutemulo nervoso (Nervenreiz) primeiramente transposto (uumlbertragen) em uma imagem (Bild) Primeira metaacutefora A imagem por sua vez modelada em um som Segunda metaacuteforardquo (WLVM sect1) Aqui estaacute uma das chaves para entendermos a defesa de Nietzsche de uma estrutura tropoloacutegica da linguagem que trataremos com mais detalhes a seguir O que ocorre eacute um procedimento de criaccedilatildeo simboacutelica em que se produz uma imagem a partir de outra imagem por um processo de transposiccedilatildeo Estamos sempre operando num processo de transposiccedilatildeo de imagem a imagem No entanto pergunta Nietzsche ldquoComo um ato da alma pode ser representado atraveacutes de uma imagem sonora (Curso de Retoacuterica sect 3) Podemos acrescentar outras questotildees o que temos acesso da coisa percebida pela nossa percepccedilatildeo O que captamos dela O que podemos representar dela por meio das palavras O proacuteprio Nietzsche nos ajuda com as respostas ldquoNatildeo satildeo as coisas que penetram na consciecircncia senatildeo a maneira que noacutes nos colocamos ante elas o pithanoacuten (poder de persuasatildeo) Nunca se capta a essecircncia plena das coisas () Em vez da coisa a sensaccedilatildeo soacute capta um sinal (Merkmal) () um sinal que lhe parece predominanterdquo (Curso de Retoacuterica sect 3) Essa relaccedilatildeo que o homem estabelece com as coisas eacute a base do modelo retoacuterico de linguagem para Nietzsche ldquoAs propriedades contecircm apenas relaccedilotildeesrdquo (NachlassFP KSA 7 9[242] Veratildeo 1872-1874) e mais especificamente relaccedilotildees humanas

A tese de Nietzsche eacute que a linguagem eacute em sua essecircncia retoacuterica ou seja a linguagem antes de ser referecircncia das coisas eacute uma transposiccedilatildeo linguiacutestica pois o homem utiliza a palavra como um siacutembolo uma imagem para representar o que experimentou ldquoNossos sentidos imitam a natureza na medida em que a retratam constantemente A imitaccedilatildeo pressupotildee uma recepccedilatildeo e logo uma transposiccedilatildeo continuada da imagem recebida em mil

5 Doravante WLVM6 Simplificaccedilatildeo feita por Nietzsche do esquema de Gerber em sua obra A linguagem como arte ldquoPartindo da coisa em

si se produz um impulso nervoso que provoca uma sensaccedilatildeo que por sua vez se transforma em som que eacute a imagem externa da de uma sensaccedilatildeo Ao agrupar as distintas observaccedilotildees particulares sobre a coisa se forma a representaccedilatildeo que eacute uma imagem interna da sensaccedilatildeordquo (Cf GUERVOacuteS 2000 p43)

Ceacutelia Machado Benvenho

77

metaacuteforas todas atuandordquo (NachlassFP KSA 7 19[226] Veratildeo 1872-1874) Sendo assim as palavras natildeo satildeo mais que o resultado dessa relaccedilatildeo mimeacutetica com as representaccedilotildees intuitivas o que se tem na origem da linguagem natildeo eacute um procedimento de transmissatildeo de informaccedilatildeo ou comunicaccedilatildeo mas uma transposiccedilatildeo sensorial algo que afeta e que produz efeito

Ora se natildeo haacute uma conexatildeo loacutegica entre as palavras e as coisas se os enunciados linguiacutesticos natildeo estatildeo relacionados a um significado ideal ou com a essecircncia das coisas buscar um criteacuterio de correspondecircncia entre as palavras e o mundo exterior natildeo eacute mais que um mero artifiacutecio ilusoacuterio Por isso natildeo eacute estranho pensar que as questotildees epistemoloacutegicas se coloquem de forma mais apropriada como questotildees retoacutericas para Nietzsche Para ele o mundo pode ser descrito de um modo adequado com categorias retoacutericas porque ele mesmo estaacute constituiacutedo completamente de um modo retoacuterico na medida em que se mostra acessiacutevel aos homens somente como uma imagem o reflexo da opiniatildeo do homem sobre si mesmo ldquoO homem conhece o mundo na medida em que ele se conhece quer dizer a profundidade do mundo se desvela ao homem na medida em que ele se maravilha de si mesmo e de sua complexidaderdquo (NachlassFP 19[118] Veratildeo de 1872 comeccedilo de 1873)

Desse modo a base da linguagem eacute retoacuterica que por sua vez eacute soacute um aperfeiccediloamento dos recursos artifiacutecios jaacute presentes na linguagem os tropos utilizado por Nietzsche no sentido de transportar saltar de um lugar para o outro um recurso expressivo em que se associa o sentido de uma palavra a outra lhe dado um sentido diferente do literal atraveacutes de um processo de semelhanccedila como no caso que acontece com a metaacutefora e metoniacutemia exemplos de tropos tratados pelo filoacutesofo ldquoA ideia de troacutepoitropos - lsquodesignaccedilotildees improacutepriasrsquo- indica artifiacutecios importantes da retoacuterica datildeo agraves palavras significados que inicialmente elas natildeo tecircm mudando substituindo acentuando certas caracteriacutesticas e fazendo uso de engenhosos recursos sempre por meio da transposiccedilatildeordquo (Curso de retoacuterica sect 8) De modo similar aparece num fragmento do veratildeo de 1872 ldquoNossas percepccedilotildees sensoriais natildeo se baseiam em raciociacutenios inconscientes senatildeo em tropos O processo original consiste em identificar o semelhante com o semelhante ndash em descobrir uma certa semelhanccedila entre uma coisa e outrardquo (NachlassFP KSA 7 19[217] Veratildeo 1872-1874)

Sendo assim o uso de artifiacutecios no discurso de tropos natildeo eacute um fator estranho na linguagem e por isso natildeo podemos caracterizaacute-lo como uma linguagem artificial improacutepria ou retoacuterica no sentido pejorativo do termo Ao contraacuterio a artificialidade compotildee a proacutepria essecircncia da linguagem em todas as ocasiotildees uma vez que a proacutepria linguagem eacute retoacuterica ou seja composta de artifiacutecios natildeo haacute nada dentro da estrutura da liacutengua ou de conhecimentos derivados da linguagem que natildeo tenham presente em seu acircmago a retoacuterica ldquoNatildeo existe de maneira alguma a lsquonaturalidadersquo natildeo retoacuterica da linguagem a qual se pudesse apelar a linguagem mesmo eacute resultado de artes puramente retoacutericasrdquo (Curso de retoacuterica sect 3) Ou seja aquilo que foi chamado de retoacuterico no discurso antigo a capacidade de desentranhar e extrair o que em cada coisa eacute ativo e produz impressatildeo eacute a essecircncia da linguagem e natildeo podemos classificar isso como artificial ou improacuteprio em oposiccedilatildeo a algo natural e proacuteprio

Ora se todas as questotildees que se referem agrave linguagem satildeo questotildees retoacutericas ou seja toda expressatildeo linguiacutestica pode ser reduzida em seus elementos essenciais agrave sua estrutura retoacuterica inerente todo resultado do uso linguiacutestico natildeo pode ser uma episteme um conhecimento jaacute que natildeo nos diz como as coisas satildeo em sua essecircncia e verdade mas meras opiniotildees ldquoEste eacute o primeiro ponto de vista a linguagem eacute retoacuterica porque apenas

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche

78

quer transmitir (uumlbertagen) uma doxa e natildeo uma epistemerdquo (Curso de retoacuterica sect 3) Essa aparente limitaccedilatildeo significa que o mais importante no discurso eacute a persuasatildeo a forccedila do convencimento que eacute o que na realidade exerce um papel essencial em nossa percepccedilatildeo do mundo e em nossa comunicaccedilatildeo com os demais O discurso natildeo tem como objetivo transmitir um conhecimento verdadeiro mas comunicar uma opiniatildeo a partir de um efeito esteacutetico

Como diz Guervoacutes (2000 p23) Nietzsche desprezando o modelo representacional da linguagem em favor do modelo retoacuterico da mesma ldquonatildeo soacute afirma a identidade estrutural entre linguagem e retoacutericardquo jaacute que a linguagem utiliza os mesmos mecanismos que a retoacuterica para fazer-se uma imagem do mundo como tambeacutem ldquoassinala uma identidade de funccedilotildees entre linguagem e retoacutericardquo na medida em que uma linguagem obedece ao mesmo imperativo que a retoacuterica Por isso a afirmaccedilatildeo de Nietzsche no Curso de retoacuterica

Natildeo eacute difiacutecil provar agrave luz clara do entendimento que o que se chama lsquoretoacutericorsquo como meio de uma arte consciente jaacute agia como um meio de uma arte inconsciente na linguagem e no seu desenvolvimento e inclusive que a retoacuterica eacute um aperfeiccediloamento dos artifiacutecios jaacute presentes na linguagem (Curso de retoacuterica sect 3)

Guervoacutes (2000 p32) ainda ressalta que se observarmos o proceder do pensamento loacutegico assim como dos processos abstratos cujo resultado eacute o que chamamos de conhecimento veremos que operam a partir do mesmo modelo retoacuterico com figuras Tudo que se denomina eloquecircncia eacute linguagem figurada

O pensamento loacutegico categoriza objetiva e generaliza porque deduz de uma observaccedilatildeo a essecircncia completa das coisas E isso natildeo eacute mais que um processo de simplificaccedilatildeo que totaliza uma parte em um todo e opera por isso como uma sineacutedoque O mesmo poderia se dizer dos processos abstrativos que propotildee a loacutegica na mudanccedila do individual ao general pois tambeacutem as abstraccedilotildees satildeo metoniacutemias Desta maneira Nietzsche pode argumentar que tanto a linguagem conceitual como o conhecimento se fundamentam em inversotildees substitutivas

Metaacutefora como tropos por excelecircnciaTanto no Curso de retoacuterica como no texto Sobre verdade e mentira no sentido extra-

moral Nietzsche toma a metaacutefora como um tropo7 por excelecircncia na medida em que eacute um importante instrumento de exemplificaccedilatildeo do processo artiacutestico que ocorre na relaccedilatildeo do homem com o mundo ldquotransporte ou deslocamento de sentidordquo que ocorre no ldquoato de traduccedilatildeo de uma esferardquo perceptiva agrave ldquooutrardquo

Nietzsche se apropria da ideia aristoteacutelica de metaacutefora como ldquotransposiccedilatildeordquo (epiphora) embora utilize o vernaacuteculo Uumlbertragung como correspondente para o termo grego e junto dela a ideia impliacutecita de dynamis que o filoacutesofo alematildeo interpretaraacute como forccedila (Kraft) Aristoacuteteles caracteriza a metaacutefora como a transposiccedilatildeo de uma palavra cujo significado habitual eacute outro Essa transposiccedilatildeo se daria de quatro tipos 1) Transferecircncia de uma expressatildeo proacutepria de um gecircnero para uma espeacutecie Ex lsquoo barco descansarsquo em vez de lsquoo barco estaacute ancoradorsquo 2) Transferecircncia de um termo proacuteprio de uma espeacutecie a um gecircnero Ex lsquoUlisses empreendeu 7 Segundo Nietzsche chegou a ser estabelecido 38 tipos de tropos quanto ao nuacutemero e divisatildeo apesar das divergecircn-

cias dos quais ele trata somente de 15 tipos em seu Curso de retoacuterica Trabalharemos aqui com a metaacutefora por ser considerada o tropo por excelecircncia

Ceacutelia Machado Benvenho

79

ldquomilhotildeesrdquo de accedilotildees famosasrsquo 3) Transferecircncia de um termo especiacutefico a outro termo especiacutefico Ex lsquosuprimindo a vida com o bronzersquo e lsquocortando com o bronze invenciacutevelrsquo suprimir e cortar pertencem agrave ideia de separar 4) Quando a metaacutefora nasce daquilo que parece comum a uma proporccedilatildeo quando os dois termos comungam um mesmo traccedilo semacircntico Ex lsquoa velhice estaacute para a vida como o entardecer para o diarsquo (Cf Curso de retoacuterica sect 7)

No entanto Nietzsche natildeo acompanha8 Aristoacuteteles quando esse afirma que a metaacutefora se constitui como imagem primeira do mundo dos objetos transportada e figurativa e por isso uma imagem improacutepria desprovida de caraacuteter filosoacutefico e sem valor cognoscitivo A metaacutefora nesse sentido se apresenta como oposiccedilatildeo agraves palavras usuais comuns proacuteprias ou seja eacute um efeito da linguagem preacute-constituiacuteda Para Nietzsche os termos ldquotransposiccedilatildeordquo e por conseguinte ldquometaacuteforardquo natildeo se refere ao processo de constituiccedilatildeo de palavras e conceitos mas a um procedimento originaacuterio inconsciente preacute-linguiacutesitico em que se postula a existecircncia de algo que nada mais eacute em uacuteltima instacircncia uma concepccedilatildeo subjetiva O que constitui a linguagem eacute a forccedila que se radica na transposiccedilatildeo porque a linguagem fundamentalmente eacute transposiccedilatildeo linguiacutestica antes de ser referecircncias das coisas algo que eacute puramente secundaacuterio e derivado

A forccedila (Kraft) que Aristoacuteteles chama retoacuterica que eacute a forccedila de deslindar e de fazer valer para cada coisa o que eacute eficaz e impressiona essa forccedila eacute ao mesmo tempo a essecircncia da linguagem esta se reporta tatildeo pouco como a retoacuterica ao verdadeiro agrave essecircncia das coisas natildeo quer instruir mas transmitir a outrem uma emoccedilatildeo e uma apreensatildeo subjetivas (Curso de retoacuterica sect 3)

Assim a metaacutefora se caracteriza mais do que um simples tropo retoacuterico (um mero recurso estiliacutestico ou um simples ornato) na medida em que pertence a um acircmbito originaacuterio proacuteprio da atividade humana do qual se originaria a linguagem e natildeo o contraacuterio Esse procedimento originaacuterio eacute definido por Nietzsche em suas notas de 1872 como um processo perceptivo analoacutegico que por meio da comparaccedilatildeo busca relacionar coisas diferentes a partir da identificaccedilatildeo de uma semelhanccedila ldquoMetaacutefora significa tratar como idecircntico algo que se reconheceu em um ponto como semelhanterdquo (NachlassFP KSA 7 19[249] Veratildeo 1872-1874) Nietzsche complementa num fragmento do mesmo periacuteodo (19[227]) a metaacutefora eacute ldquoum raciociacutenio analoacutegicordquo cujo resultado permite que ldquose descubram e se reavivam de novo as semelhanccedilasrdquo Ainda em notas do mesmo periacuteodo o filoacutesofo ressalta que toda ldquocomparaccedilatildeo (pensamento original) eacute uma imitaccedilatildeo [] Nossos sentidos imitam a natureza na medida em que a retratam constantementerdquo (19 [226]) A metaacutefora eacute esse jogo vital que nos obriga agrave imitaccedilatildeo ldquoA imitaccedilatildeo pressupotildee uma recepccedilatildeo e logo uma transposiccedilatildeo continuada da imagem recebida em mil metaacuteforas todas atuandordquo (NachlassFP KSA 7 19[226] Veratildeo 1872-1874)

Para Nietzsche a linguagem se origina desse processo artiacutestico inconsciente em que estaacute em accedilatildeo um impulso criativo fundamental a formaccedilatildeo de imagens um processo de transposiccedilatildeo que consiste em engendrar uma imagem no lugar de uma coisa o metaforizar A linguagem eacute fundamentalmente transposiccedilatildeo linguiacutestica antes de ser referecircncias das coisas algo que eacute puramente secundaacuterio e derivado 8 Na Introduccedilatildeo a retoacuterica de Aristoacuteteles redigida no inverno de 1874-1875 Nietzsche elogia Aristoacuteteles na Retoacuterica

dizendo que ningueacutem teve um talento retoacuterico como ele no entanto natildeo faz o mesmo elogio em relaccedilatildeo agrave Poeacuteti-caldquoCom frequecircncia descubro na Poeacutetica algo em que digo para mim aqui estaacute Aristoacuteteles completamente como um estranho e fora do lugar ele natildeo pode ensinar nada aqui porque carece de capacidade naturalrdquo (NIETZSCHE Introduccedilatildeo a retoacuterica de Aristoacuteteles)

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche

80

A base de todas as construccedilotildees da linguagem do edifiacutecio dos conceitos eacute um impulso fundamental o metaforizar ou seja a fantasia a imaginaccedilatildeo criadora a forccedila-formadora-de-imagens Esse impulso segue fluindo como fonte inesgotaacutevel e busca para sua atividade um campo novo e uma via distinta e os encontra no mito e de modo geral na arte (WLVM sect 2)

Depois de investigar o processo de formaccedilatildeo de palavras e conceitos Nietzsche descarta a possibilidade de uma ldquoexpressatildeo adequada de um objeto no sujeitordquo e afirma que entre esferas tatildeo distintas natildeo existe mais do que uma relaccedilatildeo esteacutetica na qual sempre ocorre uma traduccedilatildeo para uma linguagem completamente heterogecircnea Entre a sensaccedilatildeo experimentada pelo indiviacuteduo e o balbuciar por ele emitido haacute um abismo profundo O conteuacutedo representado pela palavra natildeo eacute expressatildeo das proacuteprias coisas mas de um acircmbito puramente fenomecircnico o de nossas representaccedilotildees O processo de traduccedilatildeo do sentimento indica a dimensatildeo simboacutelica e figurativa da linguagem jamais expressa direta ou indiretamente o sentimento mas o traduz em signos simboliza-o Ora se a palavra natildeo passa de um siacutembolo natildeo pode haver uma relaccedilatildeo de correspondecircncia imediata entre a palavra e as coisas pois as palavras natildeo expressam as intuiccedilotildees originaacuterias mas as representaccedilotildees imagem que temos das mesmas Por isso a insistecircncia de Nietzsche que as palavras e conceitos natildeo expressam adequadamente a realidade nem verdades absolutas mas designam relaccedilotildees humanas

Na multiplicidade das liacutenguas se revela imediatamente o fato de que palavra e coisa natildeo coincidem e nem se completam necessariamente Poreacutem o que simboliza a palavra Sem duacutevida nada mais que representaccedilotildees sejam conscientes ou como sucede na maioria das vezes inconscientes pois como uma palavra-siacutembolo poderia corresponder agravequela essecircncia intimiacutessima da qual noacutes mesmos e o mundo somos imagens Esse nuacutecleo noacutes soacute o conhecemos em forma de representaccedilotildees e unicamente nos eacute familiar em suas expressotildees simboacutelicas fora disso natildeo haacute nenhuma ponte direta que nos conduza ateacute o mesmo (NachlassFP KSA 12 [1])

Haacute uma impossibilidade linguiacutestica ou conceitual de expressar a natureza do real porque a linguagem soacute tem valor em seus aspectos simboacutelicos e figurativos ldquoNatildeo haacute expressotildees proacuteprias nem conhecimento proacuteprio senatildeo metaacuteforas [] Conhecer natildeo eacute mais que trabalhar com as metaacuteforas preferidas [] uma imitaccedilatildeo jaacute natildeo percebida como imitaccedilatildeordquo (NachlassFP 19[228] - 1872-1874) A radicalizaccedilatildeo se daacute quando pelo uso constante e habitual das designaccedilotildees se esquece da origem metafoacuterica das palavras e cria-se a ilusatildeo de que entre elas e as coisas existe uma conexatildeo mais iacutentima de caraacuteter eminentemente metafiacutesico a crenccedila de que a verdade se apresenta na linguagem Conforme o filoacutesofo descreve em um poacutestumo do veratildeo de 1872 ndash comeccedilo de 1873 ldquoPor lsquoverdadeirorsquo haacute de se entender somente aquilo que usualmente eacute metaacutefora habitual ndash por conseguinte soacute uma ilusatildeo que se fez familiar por um uso frequente e que natildeo eacute percebida como ilusatildeo metaacutefora esquecida quer dizer uma verdade que se esqueceu de que eacute uma metaacuteforardquo (NachlassFP 19 [229] 1872 ndash 1874) Antes aquilo que se denominara verdade se revela afinal ldquoum batalhatildeo moacutevel de metaacuteforas metoniacutemias antropomorfismos enfim uma soma de relaccedilotildees humanas que foram enfatizadas poeacutetica e retoricamente transpostas enfeitadasrdquo (WLVM sect 1)

Ceacutelia Machado Benvenho

81

Como a atividade originaacuteria do homem eacute metafoacuterica o conceito seria somente um produto resultante deste processo pois assim como a metaacutefora o conceito constroacutei similaridades entre duas coisas que natildeo satildeo similares Quando se desconsidera os traccedilos individuais e passa a igualar o desigual por meio de uma ilusatildeo de identidade temos o conceito e assim comeccedila-se o conhecimento Eacute da ldquoigualaccedilatildeo do natildeo-igualrdquo e da ldquodesconsideraccedilatildeo do individual e efetivordquo que nasce o conceito (WLVM sect 1) Razatildeo e conhecimento portanto satildeo ilusotildees criadas a partir do pressuposto da identidade e da estabilidade dos conceitos ldquoNo entanto natildeo haacute uma correspondecircncia com a essecircncia das coisas trata-se de um processo cognitivo que natildeo afeta a essecircncia das coisasrdquo (NachlassFP 1872 ndash 1874 19[236] KSA 7493) ldquoCremos saber algo das coisas mesmas quando falamos de aacutervores cores neve e flores e natildeo possuiacutemos no entanto mais do que metaacuteforas das coisas que natildeo correspondem em absoluto agraves essecircncias primeirasrdquo (WLVM sect 1)

Ao identificar a doxa como base da retoacuterica tornando-a uma caracteriacutestica da proacutepria linguagem Nietzsche quebra com a ilusatildeo de uma linguagem verdadeira e reabilita a linguagem da persuasatildeo enquanto doxa O que de fato eacute importante eacute a persuasatildeo a forccedila originaacuteria que tem um papel essencial em nossa relaccedilatildeo com o mundo e em nossa comunicaccedilatildeo com os demais A linguagem eacute um meio por meio do qual todas as expressotildees satildeo transpostas do individual ao coletivo apesar de toda a subjetividade pressuposta a linguagem atinge um niacutevel de exteriorizaccedilatildeo comum O viacutenculo indissociaacutevel entre pensamento e linguagem permitiu aproximar a retoacuterica da filosofia e evidencia a emergecircncia do pensamento metafoacuterico como forma originaacuteria do conhecimento humano Como diz Guervoacutes (2000 p 54) ldquoSe a metaacutefora estaacute na origem do conceito Nietzsche despreza a relaccedilatildeo metafiacutesica entre linguagem e realidade destronando a soberania conceitual e revelando o caraacuteter metafoacuterico dos conceitosrdquo ou caraacuteter ficcional da linguagem

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche

82

Referecircncias bibliograacuteficasCAVALCANTI Anna Hartmann Siacutembolo e alegoria a gecircnese da concepccedilatildeo de linguagem em Nietzsche Satildeo Paulo Annablume Fapesp Rio de Janeiro DAAD 2005CRAWFORD C The beginnings of Nietzschersquos theory of language New York de Gruyter 1998 NIETZSCHE Friedrich Wilhelm Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe (KSA) G Colli e M Montinari (Hg) Berlin Walter de Gruyter 1999 15 Bn _____ Curso de Retoacuterica Traduccedilatildeo Thelma L da Fonseca In Cadernos de Traduccedilatildeo Satildeo Paulo 1999_____ Da retoacuterica Trad Tito Cardoso e Cunha Lisboa Passagens 2002 _____ Escritos sobre retoacuterica Ediccedilatildeo traduccedilatildeo e introduccedilatildeo de Luis Enrique de Santiago Guervoacutes Madrid Editorial Trotta 2000_____ Fragmentos poacutestumos (1869-1874) Trad Luis E de Santiago Guervoacutesv I 2 ed Madrid Tecnos 2010 _____ Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral (Org e Trad Fernando de Moraes Barros) Satildeo Paulo Hedra 2007

Eder David de Freitas Melo

83

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3

Eder David de Freitas Melo1

A tese central do aforismo 3 de ABM eacute a tese da contiguidade entre atividades instintivas e pensamentos conscientes ou seja a tese de que os pensamentos conscientes (ou ao menos a maior parte desse tipo de pensamento) e as atividades instintivas satildeo atividades que operam no mesmo registro ndash corporal ndash e atendem a necessidades de mesma origem quais sejam necessidades de regulaccedilatildeo fisioloacutegica e sobrevivecircncia2

Nesta comunicaccedilatildeo tentaremos mostrar que subjaz de forma velada a essa tese uma perspectiva genealoacutegica de anaacutelise daquele tipo de pensamento Nietzsche explica a relaccedilatildeo entre pensamento consciente e instintos como veremos natildeo pelas suas estruturas e conteuacutedos internos uma certa loacutegica racional daqueles em seus motivos e ldquopor quecircsrdquo ou a falta de razatildeo dos instintos com sua impetuosidade aparentemente cega Antes essa relaccedilatildeo eacute explicada segundo uma certa noccedilatildeo naturalista de praacutexis vital na qual as condiccedilotildees de surgimento e atuaccedilatildeo dos pensamentos conscientes dizem respeito concomitantemente a demandas fisioloacutegicas caracteriacutesticas do humano e necessidades de sobrevivecircncia da espeacutecie Assim Nietzsche contextualizaria histoacuterica e biologicamente as atividades instintivas bem como as atividades de pensamento segundo a pergunta genealoacutegica pela origem e pelas condiccedilotildees de desenvolvimento de algo

Pois bem o primeiro questionamento que colocamos diz respeito agrave possibilidade de se falar de um meacutetodo genealoacutegico em Nietzsche anterior agrave Genealogia da Moral Ora no aforismo 32 de Aleacutem do bem e do mal a criacutetica da moral e sua possibilidade de superaccedilatildeo se configuram a partir de uma genealogia do valor da accedilatildeo e dos modelos de agecircncia Assim ele divide como a accedilatildeo foi inicialmente em um periacuteodo preacute-histoacuterico e preacute-moral entendida e avaliada a partir de suas consequecircncias depois em um periacuteodo moral a partir de sua origemintenccedilatildeo para enfim sugerir que em um periacuteodo extra-moral a accedilatildeo seria valorada diversamente de como se deu anteriormente ou seja a partir daquilo que nela eacute natildeo-intencional isto como decorrecircncia de ldquoum novo auto-escrutiacutenio e aprofundamento do homemrdquo

Concordamos com Paolo Stellino (2015 p 562-565) em seu artigo Self-Knowledge Genealogy Evolution o qual afirma que tambeacutem no aforismo 335 de A Gaia Ciecircncia Nietzsche se serve do meacutetodo genealoacutegico para analisar como nossos juiacutezos morais vem agrave

1 Doutorando em Filosofia Universidade Federal de Goiaacutes2 A bem ver em Nietzsche a regulaccedilatildeo fisioloacutegica natildeo objetiva apenas sobrevivecircncia ou um estado de equiliacutebrio de

bem estar por assim dizer ou saudaacutevel Agraves vezes mesmo o oposto eacute o caso ldquotambeacutem a inutilizaccedilatildeo parcial a atrofia e degeneraccedilatildeo a perda de sentido e propoacutesitordquo e ateacute mesmo a morte estaacute ldquoentre as condiccedilotildees para o verdadeiro progres-sus o qual sempre aparece em forma de vontade e via de maior poderrdquo (NIETZSCHE 2009 p 62) (grifos do autor)

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3

84

existecircncia com sua preacute-histoacuteria em nossos instintos e impulsos em nossas experiecircncias e inexperiecircncias Ademais no proacuteprio prefaacutecio da Genealogia da Moral paraacutegrafo segundo Nietzsche sinaliza que mesmo antes de Humano demasiado humano ele jaacute refletia sobre a moralidade em uma perspectiva sobre a origem desses preconceitos morais ou ainda como coloca no aforismo 2 de Autora que a origem dos valores morais eacute para ele uma questatildeo de primeira ordem a qual direciona para o futuro da humanidade semelhantemente agrave anaacutelise de Aleacutem do bem e do mal 32 onde de um olhar para a origem de algo aventa-se algo para o futuro ou seja a anaacutelise genealoacutegica do valor da accedilatildeo nos periacuteodos preacute-moral e moral desemboca em uma possiacutevel ou talvez desejaacutevel era extra-moral

Pois bem dito isso sobre uma posiccedilatildeo mais abrangente em torno do meacutetodo genealoacutegico vejamos agora o que eacute aventado no aforismo objeto desta comunicaccedilatildeo Seguindo a ordem do texto as principais afirmaccedilotildees que Nietzsche faz resumidamente satildeo

(i) A maior parte do pensamento consciente deve ser contado entre as atividades instintivas

(ii) Inclusive a atividade filosoacutefica deve ser aiacute considerada (iii) Os juiacutezos nos seus variados tipos tem seu valor na medida da importacircncia

reguladora para a fisiologia corporal e natildeo por seu valor de verdade (falsidade ou verdade)(iv) O ser humano natildeo eacute sujeito de determinaccedilatildeo ou indeterminaccedilatildeo da verdadeSegundo interpretamos essas afirmaccedilotildees se organizam em torno da seguinte questatildeo

assumindo que o ser humano natildeo eacute polo de determinaccedilatildeo essencial ou indeterminaccedilatildeo da verdade qual a relaccedilatildeo entre nossos procedimentos mentais conscientes e nossa fisiologia de modo que juiacutezos de valor possam indicar atividades fisioloacutegicas caracteriacutesticas Ou colocando de forma mais breve qual eacute a relaccedilatildeo entre pensamentos conscientes e atividades instintivas em um contexto de indeterminaccedilatildeo do conhecimento da verdade

Comeccedilando a leitura pelo final do aforismo lemos o seguinte

Por exemplo que o determinado tenha mais valor que o indeterminado a aparecircncia menos valor que a ldquoverdaderdquo tais avaliaccedilotildees [Schaumltzungen] poderiam [koumlnnten] natildeo obstante a sua importacircncia reguladora para noacutes ser apenas avaliaccedilotildees-de-fachada [Vordergrunds-Schaumltzungen] um determinado tipo de niaiserie [tolice] tal como pode ser necessaacuterio justamente para a preservaccedilatildeo de seres como noacutes Supondo [Gesetzt] claro que natildeo seja precisamente o homem a ldquomedida de todas as coisasrdquo (NIETZSCHE 2005 p 11) (grifos do autor)

Postular que o homem natildeo eacute a ldquomedida de todas as coisasrdquo negando assim a famosa sentenccedila de Protaacutegoras natildeo coloca a princiacutepio nada de novo na histoacuteria da filosofia Tanto Platatildeo quanto Aristoacuteteles escreveram refutando Protaacutegoras esse conhecido sofista Mas isso claro se deu no acircmbito da epistemologia O debate era entre o relativismo de Protaacutegoras e a defesa filosoacutefica de Platatildeo e Aristoacuteteles em torno do conhecimento verdadeiro

Jaacute Nietzsche desloca a questatildeo da validade do valor de verdade dos juiacutezos sobre a realidade para o ambiente das valoraccedilotildees do grau de importacircncia (ou capacidade reguladora) que algo possui em relaccedilatildeo a noacutes3 ao assumir que o ser humano natildeo possui 3 Como ele escreve no aforismo seguinte ldquoA falsidade de um juiacutezo natildeo chega a constituir para noacutes uma objeccedilatildeo

contra ele [] A questatildeo eacute em que medida ele promove ou conserva a vida conserva ou ateacute mesmo cultiva a espeacutecierdquo (NIETZSCHE 2005 p 11)

Eder David de Freitas Melo

85

nem um criteacuterio objetivo de avaliaccedilatildeo da realidade nem um puramente subjetivo para isso pois ele natildeo eacute a medida do real Assim Nietzsche vai por uma terceira via ele se orienta no registro da questatildeo do valor do quanto algo contribui ou natildeo para preservaccedilatildeo da nossa fisiologia e cultivo do nosso tipo ou seja em torno das estimativas de valor que noacutes seres humanos consciente ou inconscientemente construiacutemos para tornar nossa vida possiacutevel e desejaacutevel

Que a histoacuteria da filosofia seja preenchida pela busca da ldquoverdaderdquo pela possibilidade de estabelecimento da exatidatildeo em suas vaacuterias aacutereas de investigaccedilatildeo isso diz algo da nossa fisiologia dos estados caracteriacutesticos de nossos impulsos Nesse iacutenterim Nietzsche escreve no iniacutecio do aforismo

Depois de por muito tempo ler nos gestos e nas entrelinhas [zwischen die Zeilen und auf die Finger] dos filoacutesofos disse a mim mesmo a maior parte do pensamento consciente [bewussten Denkens] deve [muss] ser incluiacuteda [rechnen] entre [unter] as atividades instintivas ateacute mesmo o pensamento filosoacutefico (NIETZSCHE 2005 p 10)

A primeira sentenccedila dessa citaccedilatildeo enfatiza o cuidado a atenccedilatildeo prolongada na arte de interpretar por nuances Olhar sobre [auf] os dedos de algueacutem eacute prestar atenccedilatildeo nas minuacutecias nos sinais que uma pessoa vela mas que os dedos desvelam mostrando as reais intencionalidades do natildeo dito4 Por intencionalidade buscamos indicar o movimento dos impulsos e afetos constitutivos do humano como um direcionamento de si mesmo em direccedilatildeo e em relaccedilatildeo a algo que lhe seja outro como forccedila configuradora de sentido de perspectiva e natildeo no sentido mais usual de intenccedilatildeo da vontade de um eu de um eu como sujeito autocircnomo5

Nesse sentido Nietzsche chama a atenccedilatildeo nesse trecho para as dinacircmicas sutis da individualidade que levam a determinados valores e conceitos Em A Gaia Ciecircncia aforismo 370 Nietzsche chama esse tipo de movimento interpretativo de ldquoinferecircncia regressivardquo ou seja a inferecircncia ldquoque vai da obra ao autor do ato ao agente do ideal agravequele que dele necessita de todo modo de pensar e valorar agrave necessidade que por traacutes dele comandardquo (2001 p 273) (grifos do autor) Assim tem-se um sinal do princiacutepio genealoacutegico de anaacutelise com respeito agraves condiccedilotildees de surgimento e desenvolvimento ldquode todo modo de pensar e valorarrdquo ao afirmar que haacute necessidades anteriores agraves formas de pensamento e de valoraccedilatildeo necessidades que comandam a emergecircncia deles segundo demandas fisioloacutegicas e histoacutericas como se percebe no todo do aforismo Isso eacute semelhante ao que Nietzsche pontua na Genealogia da moral onde se lecirc ldquocom a necessidade com que uma aacutervore tem seus frutos nascem em noacutes nossas ideias nossos valores nossos sins e natildeos ses e quecircs ndash todos relacionados e relativos uns aos outrosrdquo (2009 p 8) (grifo nosso)

Outra questatildeo que emerge da citaccedilatildeo acima relaciona-se agraves condiccedilotildees de sentido da conclusatildeo nietzscheana qual seja que ldquoa maior parte do pensamento consciente deve ser incluiacuteda entre as atividades instintivasrdquo Para ela ser realmente uma conclusatildeo e natildeo apenas uma convicccedilatildeo disfarccedilada de conclusatildeo haacute de existir algum nexo semacircntico-formal-fisioloacutegico no conjunto de ldquosistemasrdquo que integra a vida humana Ou seja as possibilidades

4 Sobre essa arte da leitura um aprendizado do espiacuterito para a qual necessita-se ser educado Nietzsche escreve no Crepuacutesculo dos Iacutedolos capiacutetulo O que falta aos alematildees sect6 ldquoAprender a ver acostumar os olhos ao repouso agrave paciecircncia habituaacute-los a deixar ver as coisas a localizar o juiacutezo aprender a cercar e envolver o caso concreto Esta eacute a primeira preparaccedilatildeo para educar o espiacuteritordquo (2006 p 60)

5 Encontra-se esse mesmo uso por exemplo em Constacircncio 2015 p 304

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3

86

de configuraccedilatildeo de sentido (semacircntica) as estruturas gramaticais que permitem essa construccedilatildeo (forma) e os estados caracteriacutesticos do conjunto de impulsos que formam o ser humano (fisiologia) em relaccedilatildeo com as caracteriacutesticas do meio em que esse habita (um conjunto de forccedilas em constante relaccedilatildeo agoniacutestica) devem possuir algum tipo de nexo6 A necessidade desse nexo se coloca no mesmo sentido que no aforismo 20 de ABM Nietzsche escreve sobre um certo esquema baacutesico de filosofias possiacuteveis no qual acaba-se por percorrer sempre a mesma oacuterbita servindo-se novamente dos mesmos trilhos ou caminhos [Pfaden] Ou seja haacute que ter certos trilhos que permitem o movimento a ligaccedilatildeo entre as constelaccedilotildees de impulsos e as configuraccedilotildees de sentido Caso contraacuterio natildeo haveria como fazer inferecircncia regressiva aos moldes acima nem ter alguma determinaccedilatildeo de sentido Natildeo seria possiacutevel ir das entrelinhas e dos gestos para as demandas fisioloacutegicas e instintivas de algueacutem nem dispor das condiccedilotildees contextuais e estruturais necessaacuterias para se orientar na interpretaccedilatildeo genealoacutegica e nas configuraccedilotildees de sentido

O conhecido capiacutetulo do Zaratustra intitulado Dos desprezadores do corpo eacute particularmente significativo e provocante no que diz respeito agrave origem ou origens de algumas das demandas que se constituem na emergecircncia daquele nexo semacircntico-formal-fisioloacutegico da praacutexis vital do ser humano Nesse texto Nietzsche delineia importantes distinccedilotildees sobre o corpo como a existecircncia de uma grande e uma pequena razatildeo de um Eu (ou espiacuterito) e um Si-mesmo O Si-mesmo enquanto expressatildeo da totalidade e unidade do corpo identifica-se agrave grande razatildeo O Eu enquanto atividade consciente de um logos ou um espiacuterito identifica-se agrave pequena razatildeo A relaccedilatildeo entre essas duas razotildees se daacute segundo o poder de comando da maior delas comando esse que mostra-se enquanto instacircncia capaz de determinar quais satildeo as necessidades do indiviacuteduo em torno de sua regulaccedilatildeo fisioloacutegica e condiccedilotildees de existecircncia

Os termos ldquopequenardquo e ldquogranderdquo na expressatildeo pequena e grande razatildeo natildeo denotam apenas uma distinccedilatildeo meramente morfoloacutegica entre elas ou seja de que uma seja estruturalmente maior que a outra na qual a menor integra a estrutura da maior A diferenccedila entre a pequena e a grande razatildeo natildeo eacute apenas de ldquotamanhordquo ou em outras palavras de abrangecircncia e estrutura Nos dois termos grande razatildeo e pequena razatildeo o substantivo ldquorazatildeordquo natildeo possui o mesmo significado natildeo denota o mesmo conteuacutedo Se assim o fosse a uacutenica diferenccedila entre a pequena e a grande razatildeo seria que uma eacute grande abrangendo todo o corpo outra pequena abrangendo apenas o que identificamos estritamente como atividade mental

Natildeo obstante isso eacute possiacutevel identificar uma distinccedilatildeo fisioloacutegica entre elas a pequena razatildeo se identifica ao exerciacutecio de um Eu ou seja de uma subjetividade consciente de si contudo consciente tatildeo somente enquanto produto de um agente o Eu o qual natildeo passa de uma ficccedilatildeo e um instrumento da grande razatildeo Esta esse Si-mesmo identifica-se a uma potecircncia plasmadora artiacutestica que se encerra em uma unidade o corpo atraveacutes de uma multiplicidade de impulsos Ela forja o Eu esse simulacro de uma paz enquanto racionalidade e unidade de consciecircncia para ser um instrumento de suas proacuteprias 6 Eacute sugestivo que no conhecido aforismo 23 de ABM o qual encerra o primeiro capiacutetulo desse livro caracterizando a

psicologia como a rainha das ciecircncias e caminho para os problemas fundamentais Nietzsche tambeacutem caracteriza a singularidade da sua psicologia com uma ecircnfase em dois aspectos peculiares a ela quais sejam estudo da estrutura e da atividade dos impulsos Enquanto morfologia Nietzsche sublinha a importacircncia de se investigar uma certa conformaccedilatildeo estrutural dos impulsos e suas expressotildees e enquanto fisiologia (teoria da evoluccedilatildeo da vontade de poder e fisiopsicologia no texto) ele procura colocar em vista o modo de atividade e funcionamento dos impulsos ou seja a importacircncia e as decorrecircncias de se interpretar o humano como uma relaccedilatildeo agoniacutestica e perene entre impulsos como um movimento constante por mais poder

Eder David de Freitas Melo

87

demandas Por isso enquanto os pensamentos conscientes do Eu se datildeo segundo as regras da racionalidade da pequena razatildeo o jogo agoniacutestico de impulsos instintos e afetos do corpo no registro da grande razatildeo possuem seu rigor proacuteprio que ao mesmo tempo cria as exigecircncias de um cogito o Eu sem identificarem ou restringirem suas possibilidades a ele

Nesse sentido aleacutem de uma diferenccedila morfoloacutegica (uma pequena outra grande sendo a pequena um ldquooacutergatildeordquo da grande) haacute tambeacutem uma diferenccedila fisioloacutegica entre essas razotildees Ambas satildeo expressotildees dos impulsos corporais da hierarquia do corpo mas a pequena razatildeo eacute limitada ao exerciacutecio consciente e racional do pensamento o que nem por isso deixa de ser uma das formas de atividade do corpo em seus impulsos instintos e afetos permanecendo assim como atividades contiacuteguas

Como essa relaccedilatildeo se daacute sob as demandas fisioloacutegicas do corpo haacute uma dinacircmica instrumental na qual a grande razatildeo ldquoconhecerdquo melhor as necessidades do indiviacuteduo e transmite essas necessidades ou ao menos parte delas agrave pequena razatildeo Esta com sua melhor sabedoria tem de pensar para prover uma soluccedilatildeo agravequelas demandas Por isso natildeo nos tornamos conscientes por meio de nossos pensamentos e sensaccedilotildees de tudo o que ocorre conosco e ao nosso redor mas apenas daquilo que emerge na superfiacutecie do Eu atraveacutes grande razatildeo segundo uma ldquoheuriacutestica da necessidaderdquo na qual os anseios e necessidades dos nossos impulsos da economia fisioloacutegica de nosso corpo forccedilam o pensamento consciente (pequena razatildeo) em determinada direccedilatildeo forjando e reproduzindo conceitos imprimindo sentido criando e aprendendo valores tornando a vida possiacutevel de determinado modo7 Assim atividades e necessidades fisioloacutegicas em boa medida inconscientes instintivas mas nem por isso desprovidas da unidade e individualidade do corpo levam a juiacutezos de valor conscientes expressos em pensamentos e linguagem mais ou menos determinados

Por isso Nietzsche escreve que

Assim como o ato de nascer natildeo conta [so wenig] no processo e progresso geral da hereditariedade tambeacutem ldquoestar conscienterdquo natildeo [wenig] se opotildee de algum modo decisivo ao que eacute instintivo mdash em sua maior parte o pensamento consciente de um filoacutesofo eacute secretamente guiado e colocado em certas trilhas pelos seus instintos (NIETZSCHE 2005 p 10)

Ora se o ato de pensar eacute direcionado pelos instintos segundo uma hierarquia do corpo enquanto instrumento da grande razatildeo uma anaacutelise do pensamento consciente como ferramenta do processo de sobrevivecircncia e incremento de poder acaba por levar obrigatoriamente em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees fisioloacutegicas e histoacutericas de emergecircncia e direcionamento pelos instintos do ldquotornar-se consciente de sirdquo sem o qual perde-se o sentido da atribuiccedilatildeo de valor como processo de regulaccedilatildeo fisioloacutegica sobrevivecircncia e expansatildeo de vida ou seja perde-se o sentido da praacutexis vital Portanto concluiacutemos que na tese da contiguidade entre atividades instintivas e pensamentos conscientes subjaz a pergunta genealoacutegica pelas condiccedilotildees de emergecircncia dos pensamentos conscientes o que exige pensar em qualquer circunstacircncia sobre as condiccedilotildees bioloacutegicas e histoacutericas de surgimento e ocorrecircncia desse tipo de pensamento o que foi empreendido em sua forma mais completa no corpus nietzscheano no conhecido aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia

7 Sobre a noccedilatildeo de heuriacutestica da necessidade Cf Stegmaier 2010

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3

88

Referecircncias bibliograacuteficasBORNEDAL Peter A Silent World Nietzschersquos Radical Realism World Sensation Language Nietzsche-Studien Walter de Gruyter-Berlin-New York v 34 2005 p 1-47CLARK Maudemarie DUDRICK David The soul of Nietzschersquos Beyond good and evil Cambridge Cambridge University Press 2012 CLARK Maudemarie Nietzsche on truth and philosophy Cambridge Cambridge University Press 2002 CONSTAcircNCIO Joatildeo Nietzsche on Decentered Subjectivity or the Existential Crisis of the Modern Subject In CONSTAcircNCIO Joatildeo Branco MARIA J M RYAN Bartholomew (Eds) Nietzsche and the Problem of Subjectivity BerlinBoston de Gruyter 2015 p 279-316 HEIT Helmut Nietzsches Zukunft als Kritiker (Vortragsmanuskript) In Stegmaier W Giacoia O (Orgs) Tagung ldquoNiezsches Zukunftrdquo an der Unicamp Campinas Unicamp 2016 MUumlLLER-LAUTER Wolfgang A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche Trad Oswaldo Giacoia Juacutenior Satildeo Paulo Anna Blumme 1997NIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Aleacutem do bem e do mal Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras [bolso] 2005_____ Crepuacutesculo dos Iacutedolos Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006_____ Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB) BerlinNew York Walter de Gruyter 1967- Disponiacutevel em lthttpwwwnietzschesourceorgeKGWBgt Acesso em 20 out 2017 _____ Genealogia da moral Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras (bolso) 2010 _____ Kritische Studienausgabe [KSA] 15 vol Editado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari Muumlnchen DTV De Gruyter 1988_____ Assim falou Zaratustra Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1983PIPPIN Robert The Expressivist Nietzsche In CONSTAcircNCIO Joatildeo Branco MARIA J M RYAN Bartholomew (Eds) Nietzsche and the Problem of Subjectivity BerlinBoston de Gruyter 2015 p 654-667RICHARDSON John Nietzschersquos Psychology In Abel G Brusotti M Heit H (Eds) Nietzsches Wissenschaftsphilosophie Berlin de Gruyter ndashVerlag 2012 STELLINO Paolo Self-Knowledge Genealogy Evolution In CONSTAcircNCIO Joatildeo Branco MARIA J M RYAN Bartholomew (Eds) Nietzsche and the Problem of Subjectivity BerlinBoston de Gruyter 2015 p 550-573 STEGMAIER Werner O pessimismo dionisiacuteaco de Nietzsche interpretaccedilatildeo contextual do aforismo 370 drsquoA Gaia Ciecircncia Trad Jorge L Viesenteiner Revista Estudos Nietzsche v 1 n 1 p 35-60 2010

Estevatildeo Bocalon

89

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent1

Estevatildeo Bocalon2

O presente trabalho versa sobre a noccedilatildeo de fisiopsicologia elaborada pelo filoacutesofo alematildeo Friedrich Nietzsche (1844-1900) e demonstrada a partir das criacuteticas desferidas contra o compositor conterracircneo Richard Wagner (1813-1883) A fisiopsicologia seraacute entendida aqui segundo o sentido desenvolvido por Nietzsche em Aleacutem do Bem e do Mal sect23 ldquomorfologia e doutrina do desenvolvimento [Entwicklungslehre] da vontade de potecircnciardquo Eacute com esse sentido de fisiopsicologia em mente que se realizaraacute a constituiccedilatildeo de um tipo que opera como expressatildeo maacutexima da deacutecadence na cultura alematilde moderna o tipo Wagner enquanto artista da deacutecadence Dito isso o foco principal dessa investigaccedilatildeo seraacute nas obras da maturidade filosoacutefica de Nietzsche principalmente O Caso Wagner (1888) e Ecce Homo (1888) embora em virtude do tema proposto seja necessaacuterio recorrer agrave outras obras do mesmo periacuteodo de produccedilatildeo filosoacutefica O problema nisso eacute a ausecircncia desse termo (fisiopsicologia) na obra O Caso Wagner na qual o pensador alematildeo tece os principais elementos da deacutecadence na produccedilatildeo artiacutestica de Wagner Ora eacute justamente pela noccedilatildeo de deacutecadence desenvolvida na obra citada acima que eacute possiacutevel identificar tambeacutem a fisiopsicologia Para aleacutem disso ressalta-se um paralelo entre indiviacuteduo e cultura devidamente apontado por Nietzsche por tomar Wagner como a personificaccedilatildeo da deacutecadence na cultura alematilde moderna O compositor eacute tomado como uma ldquolente de aumentordquo que permite analisar a cultura alematilde em sua eacutepoca

Em primeira instacircncia para compreender como se daacute a construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent como dito anteriormente eacute preciso atentar para o fato de que a anaacutelise fisiopsicoloacutegica resulta em um diagnoacutestico Trata-se de uma investigaccedilatildeo que remete a origem de toda produccedilatildeo intelectual e artiacutestica de um organismo e ateacute mesmo de uma cultura Conforme apontado pelo autor essas produccedilotildees satildeo sintomas de uma dinacircmica impulsional em um dado organismo e de forma semelhante ocorre em uma cultura Eacute importante salientar que uma dinacircmica impulsional natildeo eacute constituida apenas por processos bioloacutegicos visto que natildeo satildeo somente impulsos orgacircnicos pois esta possui resultantes natildeo-orgacircnicas como a arte filosofia ciecircncia etc Portanto essas forccedilas ocorrem tambeacutem nas produccedilotildees culturais

Como alvo da investigaccedilatildeo fisiopsicoloacutegica estaacute propriamente a dinacircmica impulsional engendrada pela vontade de potecircncia Ou seja a primeira eacute expressatildeo da

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001

2 Mestrando em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute ndash UNIOESTE Bolsista CAPES

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo

90

segunda pois a vontade de potecircncia de forma breve constitui-se de uma constante luta entre impulsos por mais potecircncia Para tal investigaccedilatildeo eacute necessaacuterio atentar-se para os sintomas expressos em uma produccedilatildeo artiacutestica ou cultura Acerca da produccedilatildeo artiacutestica eacute somente atraveacutes dela que se realiza um diagnoacutestico do artista e natildeo ao contraacuterio Eacute a obra que possibilita investigar a dinacircmica impulsional do artista natildeo se pode inferir isso a partir do artista mesmo A partir disso Nietzsche em primeiro lugar investiga qual a relaccedilatildeo que essa produccedilatildeo estabelece com a vida e entatildeo caracteriza a dinacircmica impulsional expressa como sadia ou doente

Adiante tambeacutem eacute possiacutevel perceber se haacute potencializaccedilatildeo ou natildeo da vontade em uma determinada dinacircmica De forma mais clara ldquoSe o conjunto de impulsos for bem hierarquizado ou potente ele eacute saudaacutevel se for desorganizado ou anaacuterquico e despotencializado ele eacute moacuterbidordquo (FREZZATTI 2016 p236) Um conjunto de impulsos saudaacutevel caracteriza-se por expressar afirmaccedilatildeo da vida haacute uma confluecircncia com o devir mundano e a finitude inerente a existecircncia Por outro lado negar esse fluxo contiacutenuo negar o proacuteprio estatuto efecircmero da vida fixando e valorando com conceitos eternos e absolutos o mundo na medida que este vem a ser satildeo sintomas de uma configuraccedilatildeo de impulsos despotencializada sem hierarquia Eis o criteacuterio para a realizaccedilatildeo de tal diagnoacutestico a vida Eacute desse modo que Nietzsche analisa a produccedilatildeo artiacutestica de Wagner em sua obra O Caso Wagner como seraacute visto mais adiante

Uma vez que alguns dos pressupostos da fisiopsicologia foram esclarecidos faz-se necessaacuterio explicitar o entendimento nietzschiano sobre a vida o criteacuterio que permite avaliar a configuraccedilatildeo de impulsos em um dado organismo ou em uma cultura tal como o faz com o compositor alematildeo (Wagner) e a cultura alematilde A vida pode ser compreendida no contexto da vontade de potecircncia como um contiacutenuo processo de autossuperaccedilatildeo Acrescenta-se com isso ainda que a vida natildeo possui uma finalidade especiacutefica um objetivo a ser cumprido eacute pura e simplesmente busca por superar a si mesma Posto isso eacute possiacutevel identificar alguns aspectos sobre a relaccedilatildeo que as produccedilotildees intelectuais e artiacutesticas estabelecem com a vida ou ainda sobre a valoraccedilatildeo moral sobre esta realizada pelos homens enquanto sintoma de uma dinacircmica impulsional Isto se deve ao fato de que ldquoAo falar de valores falamos sob a inspiraccedilatildeo sob a oacutetica da vida a vida mesma nos forccedila a estabelecer valores ela mesma valora atraveacutes de noacutes ao estabelecermos valoresrdquo (NIETZSCHE 2006 p 30) Nesta passagem podemos identificar que a valoraccedilatildeo moral da vida eacute manifestaccedilatildeo de um sintoma valoraccedilatildeo esta que eacute resultante de uma dinacircmica impulsional mas que ela mesma a vida natildeo possui valor moral algum Eacute o homem que estabelece valores acerca da vida

A vida sendo o criteacuterio para realizar um diagnoacutestico atraveacutes da fisiopsicologia natildeo pode ser moralmente valorada Desta forma toda valoraccedilatildeo atribuiacuteda agrave vida eacute ilusoacuteria perene ou ainda um sintoma Em outras palavras

[] esses mais saacutebios dos homens em alguma coisa coincidiam fisiologicamente para situar-se ndash ter de situar-se ndash negativamente perante a vida Juiacutezos juiacutezos de valor acerca da vida contra ou a favor nunca podem ser verdadeiros afinal eles tecircm valor apenas como sintomas satildeo considerados apenas como sintomas [] o valor da vida natildeo pode ser estimado Natildeo por um vivente pois ele eacute parte interessada ateacute mesmo objeto da disputa e natildeo juiz e natildeo por um morto por um outro motivo (NIETZSCHE 2006 p 14-15)

Estevatildeo Bocalon

91

Quando o homem exerce qualquer valoraccedilatildeo da vida este manifesta um sintoma de sua configuraccedilatildeo de impulsos mas que natildeo fazem jus a vida mesma mas antes apenas a proacutepria configuraccedilatildeo de impulsos nele presente

Eacute possiacutevel identificar a partir do que foi dito ateacute aqui que a fisiopsicologia (componente da noccedilatildeo de fisiologia propriamente nietzschiana) busca realizar um retorno as origens das produccedilotildees artiacutesticas e culturais tendo como pano de fundo a vontade de potecircncia uma dinacircmica impulsional e por fim a vida mesma Eacute por isso que tanto uma produccedilatildeo artiacutestica quanto uma cultura que simboliza uma reuniatildeo dessas produccedilotildees artiacutesticas e da moralidade desenvolvida por uma tradiccedilatildeo podem ser investigadas a partir da fisiopsicologia

Em seus escritos Nietzsche realiza uma anaacutelise fisiopsicoloacutegica de diversas culturas como a civilizaccedilatildeo grega romana a cultura francesa entre outras Cada uma delas enquanto expressotildees de uma ou mais configuraccedilotildees de impulsos Pode-se perceber ainda que ldquoa concepccedilatildeo de corpo passa a ter um papel fundamental para entendermos a culturardquo (FREZZATTI 2004 p118) ressaltando assim a importacircncia dos estudos fisioloacutegicos realizados pelo autor A cultura eacute entatildeo entendida como expressatildeo da condiccedilatildeo humana Essa expressatildeo se daacute pela produccedilatildeo cultural de um povo caracterizando um grau de complexidade maior de uma dinacircmica impulsional mais complexa do que a que se daacute no homem A cultura eacute desse modo supra-orgacircnica resultante das produccedilotildees culturais realizadas pelo homem que podem tambeacutem ser decadentes ou sadias Elevar a condiccedilatildeo do homem para que possibilite o surgimento de povos com cultura mais elevada configura uma das preocupaccedilotildees axiais no pensamento nietzschiano

O surgimento do grande homem ou gecircnio eacute importante pois este eacute capaz de criar novas culturas e novos valores Mas tambeacutem ocorre de levar a cultura a deacutecadence como seraacute visto a respeito do tipo Wagner deacutecadent que surgiu como resultante da cultura alematilde decadente segundo Nietzsche Diante disso pode-se agora investigar como a deacutecadence manifesta-se atraveacutes do tipo Wagner delineado por Nietzsche

Segundo a concepccedilatildeo de fisiopsicologia de Nietzsche tem-se as produccedilotildees intelectuais e artiacutesticas como capazes de oferecer um vieacutes interpretativo e metafoacuterico acerca do mundo e da vida Como vimos uma produccedilatildeo artiacutestica pode ser um sintoma da disposiccedilatildeo dos impulsos moacuterbida no caso de fomentar em uma visatildeo negativa da vida pessimista ou sadia caso afirme a vida e o constante devir mundano Quando ocorre de uma interpretaccedilatildeo ser moacuterbida quando expressa uma relaccedilatildeo de negaccedilatildeo com a vida isso quer dizer que a dinacircmica impulsional manifesta eacute deacutecadent Pois em uma dinacircmica impulsional assim os impulsos encontram-se com baixo grau de hierarquia provocando uma fragmentaccedilatildeo e enfraquecimento dessa um decliacutenio Isto leva o homem a procurar valores fixos e absolutos como ponto de apoio que nega o constante devir mundano a mutabilidade dos valores e a vida mesma Um exemplo de uma interpretaccedilatildeo de mundo moacuterbida eacute a metafiacutesica tradicional que pensa o mundo pautado em uma dualidade de conceitos transcendentes e absolutos (um mundo ideal e um aparente)

Quarta tese Dividir o mundo em um ldquoverdadeirordquo e um ldquoaparenterdquo seja agrave maneira do cristianismo seja agrave maneira de Kant (um cristatildeo insidioso afinal de contas) eacute apenas uma sugestatildeo da deacutecadence ndash um sintoma da vida que declina O fato de o artista estimar a aparecircncia mais que a realidade natildeo eacute objeccedilatildeo a essa tese Pois ldquoa aparecircnciardquo significa neste

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo

92

caso novamente a realidade mas numa seleccedilatildeo correccedilatildeo reforccedilo (NIETZSCHE 2006 p 24 grifos do autor)

Como visto do mesmo modo eacute possiacutevel proceder a partir da arte para se estabelecer uma compreensatildeo do que eacute o artista tambeacutem de forma orgacircnica psicoloacutegica e bioloacutegica para entatildeo reconhececirc-lo em uma eacutepoca Pois mesmo que um artista tenha preferecircncia para a aparecircncia trata-se de uma adaptaccedilatildeo de realidade sintomas de uma dinacircmica impulsional Assim ocorre com as anaacutelises de Nietzsche sobre o compositor Richard Wagner Em O Caso Wagner lecirc-se ldquo[] a esteacutetica se acha indissoluvelmente ligada a esses pressupostos bioloacutegicosrdquo (NIETZSCHE 1999 p 42) Nietzsche assim leva agrave cabo a ligaccedilatildeo entre a fisiologia e a vontade de potecircncia e eacute desse modo que Wagner seraacute caracterizado nessa obra (O Caso Wagner) Natildeo eacute apenas o compositor Wagner que eacute assim analisado mas tambeacutem o periacuteodo moderno na Alemanha dessa eacutepoca Eis aqui um indiacutecio da fisiopsicologia presente nessa obra

A partir do que foi exposto eacute preciso que se defina o que eacute a Deacutecadence para Nietzsche O conceito de deacutecadence eacute em certa medida utilizado por Nietzsche atraveacutes das leituras do romancista francecircs Paul Bourget3 (1852-1935) Eacute a partir da formulaccedilatildeo desse conceito por Bourget que Nietzsche avalia as mais variadas produccedilotildees artiacutesticas de sua eacutepoca Assim como para Bourget segundo o pensador alematildeo a deacutecadence se manifesta nos escritos literaacuterios mas natildeo somente nisso tambeacutem na muacutesica no teatro nas oacuteperas e ateacute mesmo na moral Ou seja

No momento me deterei apenas na questatildeo do estilo ndash Como se caracteriza toda deacutecadence literaacuteria Pelo fato de a vida natildeo mais habitar o todo A palavra se torna soberana e pula fora da frase a frase transborda e obscurece o sentido da paacutegina a paacutegina ganha vida em detrimento do todo ndash o todo jaacute natildeo eacute um todo Mas isto eacute uma imagem para todo estilo da deacutecadence a cada vez anarquia dos aacutetomos desagregaccedilatildeo da vontade ldquoliberdade individualrdquo em termos morais (NIETZSCHE 1999 p 23 grifos do autor)

Eacute dessa forma segundo a definiccedilatildeo de deacutecadence que ocorre tambeacutem com a dinacircmica impulsional expressada pelo compositor alematildeo diagnosticada como enfraquecida Os impulsos que se encontram de forma desorganizada perdem potecircncia e fragmentam-se e isso acarreta em uma obra que representa essa configuraccedilatildeo doente Em suma a obra eacute expressatildeo de uma ou mais configuraccedilotildees de impulsos presentes no artista Por isso eacute que eacute possiacutevel uma avaliaccedilatildeo fisiopsicoloacutegica atraveacutes da arte da produccedilatildeo artiacutestica A deacutecadence aparece como indissociavelmente ligada agrave fisiopsicologia e tambeacutem agrave vontade de potecircncia Posto isso passa-se a identificar os elementos da fisiopsicologia contidos na obra O Caso Wagner

Na obra em supracitada Richard Wagner eacute tomado como uma ldquolente de aumentordquo que eacute utilizada para avaliar toda a cultura e arte alematilde de sua eacutepoca Nietzsche relaciona o decliacutenio da arte em geral em consonacircncia com o decliacutenio do artista (em consequecircncia a cultura alematilde dessa eacutepoca) Desta forma

Um decliacutenio de caraacuteter poderia talvez ser expresso provisoriamente com esta foacutermula o muacutesico agora se faz ator sua arte se transforma cada

3 A obra de Paul Bourget que influenciou o pensamento nietzschiano acerca da deacutecadence eacute especificamente Essais de Psychologie Contemporaine de 1883

Estevatildeo Bocalon

93

vez mais num talento para mentir [] essa metamorfose geral da arte em histrionismo eacute uma expressatildeo de degenerescecircncia fisioloacutegica (mais precisamente uma forma de histerismo) tanto quanto cada corrupccedilatildeo e fraqueza da arte inaugurada por Wagner por exemplo a instabilidade da sua oacutetica que obriga (a todo instante) a mudar de posiccedilatildeo diante dela Nada se compreende de Wagner ao distinguir nele apenas um arbitraacuterio jogo da natureza um capricho e um acaso Ele natildeo era um gecircnio ldquoincompletordquo ldquodesafortunadordquo ldquocontraditoacuteriordquo como jaacute foi dito Wagner era algo perfeito um tiacutepico deacutecadent no qual natildeo haacute ldquolivre-arbiacutetriordquo cada feiccedilatildeo tem sua necessidade (NIETZSCHE 1999 p 22-23 grifos do autor)

Para melhor entender como a deacutecadence afeta a arte e principalmente a obra de Wagner pode-se observar como que para impelir um sentimento entusiasmado de sua produccedilatildeo artiacutestica no espectador o compositor faz uso das danccedilas teatrais do drama exacerbado (histrionismo) das gesticulaccedilotildees desmedidas das minimidades cotidianas ou seja a trivialidade da vida particular em detrimento do todo Aleacutem disso haacute tambeacutem a presenccedila de ideais aceacuteticos nas suas obras Muacutesicas que provocam histeria para ldquoexcitar nervos cansadosrdquo Fica mais clara assim a relaccedilatildeo entre fisiopsicologia com a noccedilatildeo de decaacutedence pois a mesma eacute constituiacuteda por uma configuraccedilatildeo de forccedilas desorganizada na qual as partes ganham mais importacircncia que o todo

Apesar das criacuteticas nietzschianas serem direcionadas especificamente agraves obras de Wagner os atributos nelas percebidos satildeo sintomas presentes na modernidade Nietzsche evidencia que o compositor em questatildeo eacute a personificaccedilatildeo da doenccedila que aflige a sua eacutepoca e mais ainda foi responsabilidade dele acelerar este adoecimento ao qual a modernidade estaria fadada Aleacutem disso segundo o pensador alematildeo

Wagner eacute uma grande corrupccedilatildeo para a muacutesica Ele percebeu nela um meio para excitar nervos cansados ndash com isso tornou a muacutesica doente Natildeo eacute pouco seu taleno na arte de aguilhoar os totalmente exaustos de chamar agrave vida os semimortos Ele eacute o mestre do passe hipnoacutetico mesmo os mais fortes ele derruba como touros O sucesso de Wagner ndash seu sucesso junto ao nervos e em consequencia junto agraves mulheres ndash transformou o mundo dos muacutesicos ambiciosos em seguidores da sua arte oculta E natildeo soacute os ambiciosos tambem os sagazes Hoje se faz dinheiro apenas com muacutesica doente nossos grandes teatros vivem de Wagner (NIETZSCHE 1999 p 19-20 grifos do autor)

Justifica-se dessa forma as mais variadas produccedilotildees artiacutesticas da eacutepoca todas apresentando caracteriacutesticas em comum a frieza mercantilista com que a arte eacute produzida os ideais asceacuteticos peccedilas demasiadamente dramaacuteticas e de cunho apelativo Satildeo estas caracteriacutesticas todas encontradas na obra de Wagner que Nietzsche considera danoso doente

Minhas objeccedilotildees agrave muacutesica de Wagner satildeo fisioloacutegicas por que disfarccedila-las em foacutermulas esteacuteticas Afinal a esteacutetica natildeo passa de fisiologia aplicada ndash meu ldquofatordquo meu ldquopetit fait vrai [pequeno fato verdadeiro]rdquo eacute que jaacute natildeo consigo respirar direito quando essa muacutesica me atinge logo meu peacute se irrita com ela e se revolta ele necessita de compasso danccedila marcha [] Wagner torna doente (NIETZSCHE 1999 p 50 grifos do autor)

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo

94

Conforme se viu ateacute aqui a deacutecadence assolou a arte moderna na Alemanha Eacute o que se confirma pelo proacuteprio autor em Ecce Homo a respeito de servir-se de Wagner como ldquolente de aumentordquo como dito anteriormente na seguinte passagem ldquoTerceiro nunca ataco pessoas ndash sirvo-me da pessoa como uma forte lente de aumento com que se pode tornar visiacutevel um estado de miseacuteria geral poreacutem dissimulado pouco palpaacutevel [] Assim ataquei Wagnerrdquo (NIETZSCHE 1995 p 30) Com isso pode-se confirmar que a construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent natildeo se trata de um ataque pessoal em primeira instacircncia Eacute antes uma anaacutelise das suas obras com vistas aos valores nelas expressos

Assim se configura um tipo para a filosofia de Nietzsche que serve como exemplo do que ocorre com a cultura em geral um padratildeo Esse modus operandi que aparece nas obras de Wagner configuram a construccedilatildeo de um tipo deacutecadent com todas as caracteriacutesticas apontadas por Nietzsche Seguindo esses pressupostos pode-se notar que a fisiopsicologia leva em consideraccedilatildeo sua correspondecircncia com a vontade de potecircncia As interpretaccedilotildees realizadas por Wagner satildeo resultantes de sua dinacircmica impulsional que como visto nos paraacutegrafos anteriores preconizam e reforccedilam uma vez mais os valores e ideais metafiacutesicos que influenciaram o compositor Trata-se de um reflexo de suas vivecircncias interpretadas a partir de valores metafiacutesicos (como o ideais asceacuteticos de redenccedilatildeo)

Desse modo Wagner eacute um sedutor em grande estilo Nada existe de cansado de caduco de vitalmente perigoso e de caluniador do mundo entre as coisas do espiacuterito que a sua arte natildeo tenha secretamente tomado em proteccedilatildeo [] Ele incensa todo instinto niilista (- budista) e o transveste em muacutesica ele incensa todo o cristianismo toda a forma de expressatildeo religiosa da deacutecadence Abram seus olhos tudo o que jamais cresceu no solo da vida empobrecida toda a falsificaccedilatildeo que eacute a transcendecircncia e o Aleacutem tem na arte de Wagner o seu mais sublime advogado (NIETZSCHE 1999 p 36 grifos do autor)

Uma vez mais identifica-se o processo constitutivo desse tipo a partir de uma configuraccedilatildeo de impulsos moacuterbida onde haacute enfraquecimento de potecircncia as manifestaccedilotildees dessa configuraccedilatildeo nas produccedilotildees artiacutesticas de Wagner resultam em uma interpretaccedilatildeo de mundo empobrecida devido aos ideais metafiacutesicos cristatildeos expressos em sua obra Eacute assim que a construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent desenvolveu-se a partir da investigaccedilatildeo de Nietzsche acerca das obras do compositor alematildeo O que somente foi possiacutevel ao fazer uso da anaacutelise fisiopsicoloacutegica mesmo que esta noccedilatildeo natildeo apareccedila em uma definiccedilatildeo precisa em O Caso Wagner

Estevatildeo Bocalon

95

Referecircncias bibliograacuteficasFREZZATTI Jr W A A fisiologia de Nietzsche a Superaccedilatildeo da Dualidade CulturaBiologia Ijuiacute Unijuiacute 2006_____ Verbete ldquoFisiopsicologiardquo In GEN Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo GEN Loyola 2016 p 236-238MUumlLLER-LAUTER W A doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche Traduccedilatildeo de Oswaldo Giacoia Junior Satildeo Paulo Annablume 1997_____ Deacutecadence artiacutestica enquanto deacutecadence fisioloacutegica A propoacutesito da criacutetica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner Traduccedilatildeo de Scarlett Marton Cadernos Nietzsche Satildeo Paulo n6 p 11-30 1999MARTON S Verbete ldquoVontade de Potecircnciardquo In GEN Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo GEN Loyola 2016 p 423-425NIETZSCHE F W Aleacutem do Bem e do Mal Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005_____ Ecce Homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008_____ Genealogia da Moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Assim falou Zaratustra Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Compainha das Letras 2011_____ A Gaia Ciecircncia Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2012_____ O caso Wagner Nietzsche contra Wagner Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2016_____ Crepuacutesculo dos Iacutedolos Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Compainha das Letras 2017

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

96

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise sobre a criacutetica de Nietzsche em humano demasiado humano

Gracy Kelly Bourscheid1

A histoacuteria dos sentimentos moraisA abordagem criacutetica de Nietzsche acerca da moral em Humano demasiado humano

I (1878) tem seu ponto de partida na ecircnfase sobre o papel da histoacuteria na observaccedilatildeo de que a maioria dos erros cometidos pelos filoacutesofos decorre da falta de anaacutelises sobre os aspectos histoacutericos da moralidade ldquofalta de sentido histoacuterico eacute o defeito hereditaacuterio de todos os filoacutesofosrdquo (MAIHHI sect2) Opondo-se ao modo de investigaccedilatildeo que se baseia em verdades eternas o filoacutesofo indica que as crenccedilas morais devem ser analisadas a partir de seu surgimento histoacuterico

Todos os filoacutesofos tecircm em comum o defeito de partir do homem atual e acreditar que analisando-o alcanccedilam seu objetivo Involuntariamente imaginam ldquoo homemrdquo como uma aeterna veritas [verdade eterna] como uma constante em todo o redemoinho uma medida segura das coisas Mas tudo o que o filoacutesofo declara sobre o homem no fundo natildeo passa de testemunho sobre o homem de um espaccedilo de tempo bem limitado (MAIHHI sect2)

Observando o homem de nosso tempo percebemos as caracteriacutesticas morais culturais religiosas poliacuteticas que se manifestam socialmente Sabemos entretanto que tais particularidades natildeo nos servem como chave de compreensatildeo sobre a humanidade O ponto de divergecircncia de Nietzsche em relaccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo de alguns filoacutesofos decorre do modo como estes cristalizaram caracteriacutesticas morais histoacutericas em fatos eternos A anaacutelise de uma manifestaccedilatildeo social de compaixatildeo para com algueacutem que sofre de dores intensas por exemplo natildeo pode ser determinante na visatildeo do filoacutesofo para que se considere que algueacutem efetivamente sofra diante da dor alheia

Nietzsche observa que as manifestaccedilotildees do homem satildeo histoacutericas dentro de um espaccedilo de tempo bem limitado emanam de interesses especiacuteficos e natildeo podem portanto ser consideradas como medida para a anaacutelise de todos os homens ldquoTudo veio a ser natildeo existem fatos eternos assim como natildeo existem verdades absolutas ndash Portanto o filosofar histoacuterico eacute doravante necessaacuteriordquo (MAIHHI sect2) A histoacuteria eacute vista desse modo como um importante instrumento para tomar a moral como um problema para investigaacute-la a partir de suas manifestaccedilotildees efetivas Para que seja possiacutevel uma anaacutelise sobre o surgimento da

1 Mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Paranaacute turma 2017-2019

Gracy Kelly Bourscheid

97

moralidade Nietzsche recorre aos aspectos histoacutericos que determinam como os sentimentos morais surgiram e de que modo foram transmitidos

Nietzsche considera que atraveacutes da observaccedilatildeo histoacuterica eacute possiacutevel constatar que certos conceitos e virtudes morais natildeo existem efetivamente Isso ocorre quando analisamos cuidadosamente as accedilotildees ditas altruiacutestas e tambeacutem as desinteressadas Para o filoacutesofo a exaltaccedilatildeo de tais accedilotildees vistas como virtudes eacute fruto de um exagero decorrente de crenccedilas populares e concepccedilotildees metafiacutesicas Tambeacutem os conceitos opostos e bem delineados tais como bem e mal altruiacutesmo e egoiacutesmo culpa e inocecircncia salvaccedilatildeo e danaccedilatildeo satildeo considerados como contraposiccedilotildees que para o filoacutesofo soacute fazem sentido para as especulaccedilotildees metafiacutesicas e religiosas A negaccedilatildeo de dualidades fixas e eternas se configura atraveacutes do pensamento de que todas as coisas em efetividade satildeo dinacircmicas estatildeo em constante mudanccedila As coisas humanas natildeo devem portanto ser vistas a partir de crenccedilas em verdades eternas mas sim como configuraccedilotildees que estatildeo num processo contiacutenuo de transformaccedilotildees

A filosofia histoacuterica que natildeo se pode mais conceber como distinta da ciecircncia natural o mais novo dos meacutetodos filosoacuteficos constatou em certos casos (e provavelmente chegaraacute ao mesmo resultado em todos eles) que natildeo haacute opostos salvo no exagero habitual da concepccedilatildeo popular ou metafiacutesica e que na base dessa contraposiccedilatildeo estaacute um erro da razatildeo conforme sua explicaccedilatildeo a rigor natildeo existe accedilatildeo altruiacutesta nem contemplaccedilatildeo totalmente desinteressada ambas satildeo apenas sublimaccedilotildees em que o elemento baacutesico parece ter se volatizado e somente se revela agrave observaccedilatildeo mais aguda (MAIHHI sect1)

Na consideraccedilatildeo de Nietzsche as explicaccedilotildees morais sobre as accedilotildees consideradas altruiacutestas representam um erro comum a muitos filoacutesofos que consideram as manifestaccedilotildees ditas altruiacutestas como se fossem um bem em si Sobre o sentimento altruiacutesta o filoacutesofo se distancia tambeacutem do pensamento de seu amigo e interlocutor Paul Reacutee Em concordacircncia com Nietzsche o pensador Paul Reacutee tambeacutem se opotildee agraves certezas metafiacutesicas e agraves especulaccedilotildees sobre o homem a partir de conceitos absolutos2 ldquoa essecircncia de todo sentimento soacute eacute clara uma vez que a histoacuteria de seu surgimento eacute clarardquo (REacuteE 2018 p50) Nietzsche reconhece a contribuiccedilatildeo das observaccedilotildees psicoloacutegicas de Reacutee em contraposiccedilatildeo agraves especulaccedilotildees metafiacutesicas Mas a sua abordagem acerca do altruiacutesmo natildeo eacute conciliaacutevel agraves perspectivas sobre os sentimentos morais do filoacutesofo alematildeo Analisando as manifestaccedilotildees de sentimentos altruiacutestas e egoiacutestas Reacutee os toma como instintos naturais do homem ldquotodo homem traz em si dois instintos ou seja o egoiacutesta e o altruiacutestardquo (REacuteE 2018 p 45) Essa consideraccedilatildeo se choca com a convicccedilatildeo nietzschiana de que o homem natildeo possui nenhuma caracteriacutestica moral em sua constituiccedilatildeo Enquanto Nietzsche considera todos os aspectos morais incluindo altruiacutesmo e egoiacutesmo como meras manifestaccedilotildees pontuais transformadas

2 Em suas anaacutelises sobre a moralidade nos escritos de A origem dos sentimentos morais Paul Reacutee recusa as convicccedilotildees metafiacutesicas da imortalidade da alma da existecircncia e da bondade de Deus da liberdade da vontade humana e observa que a feacute na imortalidade da alma e numa possiacutevel retaliaccedilatildeo eterna aos autores das maacutes accedilotildees pode explicar algumas accedilotildees morais ldquoos selvagens acreditam que o que eles sonham de fato ocorre na vida por exemplo acreditam realmen-te ter visitado uma pessoa que eles visitaram no sonho Mas tendo em vista que seu corpo natildeo deixou o lugar que ocupava como eles notam no despertar e como eacute confirmado por outras pessoas entatildeo uma coisa separada do corpo deve ter empreendido aquela viagem Na morte a alma se desprende totalmente do corpo assim como no sono ela se separa temporariamente dele Desse modo pocircde surgir a crenccedila numa retaliaccedilatildeo depois da morte Que os teoacutelogos ainda hoje acreditem nela pode ser explicado pelo fato de que eles raramente se preocupam em provar aquilo que foi aceito como vaacutelido em sua igreja Natildeo faz parte da natureza humana como ela habitualmente eacute arriscar a paz de espiacuterito (que deve ser muito grande numa feacute cega) por causa de um conhecimento inexoraacutevel da verdade ou colocar seu emprego e seu salaacuterio em jogo por causa da profissatildeo de feacute na verdaderdquo (REacuteE 2018 p 97-98)

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

98

em virtudes ou viacutecios Reacutee toma o egoiacutesmo e o altruiacutesmo como caracteriacutesticas efetivas da natureza humana ldquoPor causa do instinto altruiacutesta o homem faz do bem-estar dos outros em funccedilatildeo deles mesmos o fim uacuteltimo de sua accedilatildeo seja para auxiliar no bem-estar deles seja para lhes evitar o danordquo (REacuteE 2018 p 46) Considerando o altruiacutesmo como um instinto natural Reacutee buscou nas manifestaccedilotildees afetivas dos reconhecidos altruiacutestas e compassivos uma chave para a explicaccedilatildeo de sua tese As accedilotildees visando o bem do proacuteximo ou a evitar um sofrimento aparente convenceram o pensador de que haacute no homem um instinto altruiacutesta natural

Natildeo sentimos dor apenas quando experimentamos a dor alheia mas eacute o fato do sofrimento alheio que nos doacutei noacutes sentimos de forma altruiacutesta [] Quando o compassivo ajuda o sofredor isso acontece para aliviar o sofrimento alheio ele ajuda o outro em funccedilatildeo do outro natildeo em funccedilatildeo de si mesmo por exemplo a matildee age exclusivamente para livrar o filho da dor em funccedilatildeo do filho portanto e natildeo em funccedilatildeo de si mesma A observaccedilatildeo (sobretudo a auto-observaccedilatildeo) pode ensinar que essas accedilotildees altruiacutestas realmente existem (REacuteE 2018 p 46-47)

Na perspectiva de Reacutee o homem natildeo soacute se compadece diante do sofrimento alheio como tambeacutem age no sentido de livrar o proacuteximo do sentimento danoso Nietzsche discorda completamente desta concepccedilatildeo Para o filoacutesofo alematildeo natildeo existem accedilotildees altruiacutestas e as manifestaccedilotildees de compaixatildeo satildeo meras representaccedilotildees com um interesse especiacutefico de causar uma boa impressatildeo social observa que ldquoa sede de compaixatildeo eacute uma sede de gozo de si mesmordquo (MAIHHI sect50) Nesse caso a avaliaccedilatildeo eacute de que toda accedilatildeo considerada moralmente como desinteressada e altruiacutesta possui alguma caracteriacutestica interesseira seja a sensaccedilatildeo de bem estar ao ser engrandecido socialmente ou de algum outro interesse pessoal Seja como for o filoacutesofo afirma ldquonum exame rigoroso o conceito de lsquoaccedilatildeo altruiacutestarsquo se pulveriza no ar Jamais um homem fez algo apenas para outros e sem qualquer motivo pessoalrdquo (MAIHHI sect133) Haacute para Nietzsche algum interesse especiacutefico em toda accedilatildeo aparentemente altruiacutesta As manifestaccedilotildees morais satildeo portanto evidentes marcas do desejo pessoal de suscitar algum reconhecimento social Nietzsche pontua que as accedilotildees consideradas virtuosas natildeo passam de impressotildees manipuladas por atores com interesses especiacuteficos de comover a sua plateacuteia

Mesmo na dor mais profunda o ator natildeo pode deixar de pensar na impressatildeo produzida por sua pessoa e por todo o efeito cecircnico ateacute no enterro de seu filho por exemplo ele choraraacute por sua proacutepria dor e as manifestaccedilotildees dela como sua proacutepria plateacuteia [] Se algueacutem quer parecer algo por muito tempo e obstinadamente afinal lhe seraacute difiacutecil ser outra coisa A profissatildeo de quase todas as pessoas mesmo a do artista comeccedila com hipocrisia com uma imitaccedilatildeo do exterior com uma coacutepia daquilo que produz efeito Aquele que sempre usa a maacutescara do rosto amaacutevel teraacute enfim poder sobre os acircnimos beneacutevolos sem os quais natildeo pode ser obtida a expressatildeo da amabilidade ndash e estes por fim adquirem poder sobre ele ele eacute beneacutevolo (MAIHHI sect51)

Em oposiccedilatildeo ao instinto altruiacutesta defendido por Reacutee o filoacutesofo alematildeo considera que as manifestaccedilotildees morais refletem o interesse social do homem em suscitar a imagem de uma pessoa boa As accedilotildees consideradas altruiacutestas ou compassivas satildeo para o filoacutesofo meras manifestaccedilotildees do nosso interesse social em causar boa impressatildeo aos espectadores

Gracy Kelly Bourscheid

99

que jaacute envolvidos na teia da crenccedila em caracteriacutesticas morais absolutas costumam nos ver com bons olhos e nos exaltam como seres compassivos e bons

Agrave medida que as especulaccedilotildees sobre o homem estiverem pautadas em seu fazer especiacutefico dentro de um espaccedilo de tempo limitado as certezas absolutas que caracterizam e moldam o homem comeccedilam a ser passiacuteveis de questionamentos Nietzsche considera portanto a filosofia histoacuterica como importante mecanismo da ciecircncia natural um novo meacutetodo cientiacutefico que passa a investigar as especificidades dos sentimentos morais religiosos esteacuteticos e culturais do homem em suas relaccedilotildees sociais histoacutericas

Tudo o que necessitamos e que somente agora nos pode ser dado graccedilas ao niacutevel atual de cada ciecircncia eacute uma quiacutemica das representaccedilotildees e sentimentos morais religiosos e esteacuteticos assim como de todas as emoccedilotildees que experimentamos nas grandes e pequenas relaccedilotildees da cultura e da sociedade (MAIHHI sect1)

Em oposiccedilatildeo agraves especulaccedilotildees metafiacutesicas o filoacutesofo propotildee uma anaacutelise quiacutemica dos sentimentos morais Quiacutemica no sentido de observar cuidadosamente as caracteriacutesticas especiacuteficas dos sentimentos suas propriedades seu aparecimento histoacuterico e sobretudo as suas transformaccedilotildees culturais ao longo do tempo Meacutetodo que tambeacutem deve ser adotado para analisar as transformaccedilotildees gerais da moral da religiatildeo da arte ldquocom a religiatildeo a arte e a moral natildeo tocamos a lsquoessecircncia do mundo em sirsquo estamos no domiacutenio da representaccedilatildeordquo (MAIHHI sect10) Ao observar os fenocircmenos morais como representaccedilotildees e sentimentos o que se manifesta satildeo as superfiacutecies das coisas que nos aparecem em detrimento da crenccedila de que pudeacutessemos tocar a essecircncia das coisas A desmistificaccedilatildeo de sentimentos considerados socialmente como altruiacutestas desinteressados compassivos demanda a percepccedilatildeo de que tais accedilotildees natildeo passam de manifestaccedilotildees humanas demasiado humanas

Certo de que natildeo existem fatos morais e de que a dinacircmica efetiva da histoacuteria permite uma nova disposiccedilatildeo de vida o filoacutesofo recorre agrave investigaccedilatildeo sobre a proveniecircncia dos sentimentos para demonstrar que as nossas convicccedilotildees morais satildeo frutos do costume do haacutebito de admitir como boas as accedilotildees jaacute reconhecidas tradicionalmente como virtudes Ocorre que justamente esse haacutebito carece de questionamentos para que assim possamos pintar a nossa histoacuteria com novas cores ldquoos estudos histoacutericos cultivam a qualificaccedilatildeo para essa pintura pois sempre nos desafiam ante um trecho da histoacuteria a vida de um povo ndash ou de um homemrdquo (MAIHHI sect274) Uma caracteriacutestica importante da filosofia histoacuterica eacute a perspectiva de reformulaccedilatildeo das convicccedilotildees Em Humano demasiado humano I Nietzsche indica que a vida de um povo pode ser vista a partir de ciclos3 de desenvolvimento que se manifestam numa dinacircmica entre a religiatildeo a moral a arte e a ciecircncia O filoacutesofo observa que essas fases satildeo habituais na cultura dos povos e estatildeo num processo dinacircmico contiacutenuo Reconhece que todas as fases da cultura satildeo necessaacuterias Neste sentido a moralidade deve ser vista como uma das fases culturais do homem que poderaacute ser transformada diante do 3 Na observaccedilatildeo de Frezzatti um dos papeacuteis da filosofia histoacuterica em Humano demasiado humano I eacute indicar que a vida

deve ser observada a partir desse processo histoacuterico dinacircmico que nos permite visualizar uma nova fase de cultura humana ldquoEm Humano demasiado humano I esboccedila-se o que temos chamado de ldquociclo vital da culturardquo Ao consi-derar as fases culturais o fisiopsicoacutelogo nietzschiano pode recorrer a uma tipologia das culturas pois o movimento ciacuteclico embora apresente expressotildees diferentes em cada cultura tem como possibilidade a mesma sequecircncia de fases [] Nietzsche entende portanto o processo histoacuterico em Humano demasiado humano I como um movimento ciacuteclico e repartido em fases Seu sentido histoacuterico permite que possamos conhecer experimentando-as fases anteriores do desenvolvimentordquo (FREZZATTI 2018 p 27) O sentido histoacuterico como um movimento ciacuteclico e repartido em fases nos indica que o conhecimento detalhado das manifestaccedilotildees morais religiosas artiacutesticas possibilitaraacute o surgi-mento de uma nova fase histoacuterica da humanidade

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

100

surgimento de novos haacutebitos ldquocompreendemos nossos semelhantes como tais sistemas e representantes bem definidos de culturas diversas isto eacute como necessaacuterios mas alteraacuteveisrdquo (MAIHHI sect274) Diante desta perspectiva o homem moral poderaacute ser transformado poderaacute recriar seus costumes e assim ver surgir uma nova cultura ldquopor algum tempo a metafiacutesica soacute persiste e sobrevive em arte ou como disposiccedilatildeo artisticamente transfiguradora Mas o sentido cientiacutefico torna-se cada vez mais imperioso e leva o homem adulto agrave ciecircncia natural e agrave histoacuteriardquo (MAIHHI sect 272) Esse ciclo dinacircmico da cultura aponta para uma perspectiva de desenvolvimento em que uma fase abre caminho para a sua superaccedilatildeo e o surgimento de uma nova fase da cultura O olhar voltado para o aparecimento das criaccedilotildees morais tem um papel portanto que vai aleacutem da criacutetica agraves convicccedilotildees morais enquanto verdades absolutas Aponta tambeacutem para a possibilidade de elevaccedilatildeo da cultura do homem

Nietzsche considera os sentimentos morais a partir das inclinaccedilotildees e aversotildees do homem isto eacute dos impulsos que nos movem em direccedilatildeo ao que parece ser proveitoso ou nos afastam para longe de algo supostamente nocivo ldquoUm impulso em direccedilatildeo ou para longe de algo sem o sentimento de querer o que eacute proveitoso ou se esquivar do que eacute nocivo [] natildeo existe no homemrdquo (MAIHHI sect32) Nessa dinacircmica as accedilotildees satildeo motivadas por um interesse especiacutefico que nos inclina ou nos afasta de algo O filoacutesofo esclarece que nossas accedilotildees satildeo motivadas pelos impulsos mas natildeo possuem uma caracteriacutestica boa ou maacute em si ldquotodas as lsquomaacutesrsquo accedilotildees satildeo motivadas pelo impulso de conservaccedilatildeo ou mais exatamente pelo propoacutesito individual de buscar o prazer e evitar o desprazer satildeo assim motivadas mas natildeo satildeo maacutesrdquo (MAIHHI sect99) O mesmo tambeacutem ocorre com as accedilotildees consideradas boas satildeo motivadas pela busca do prazer mas natildeo satildeo boas em si Investigando o mecanismo desta cadeia de motivaccedilotildees Nietzsche observa que as accedilotildees humanas satildeo motivadas pela sensaccedilatildeo de prazer ldquosem prazer natildeo haacute vida a luta pelo prazer eacute a luta pela vidardquo (MAIHHI sect104) Na vida comunitaacuteria o homem sente prazer ao fazer aquilo que eacute habitual O filoacutesofo observa que a crenccedila de que os costumes satildeo comprovada sabedoria de vida faz com que o homem se adeque agraves coerccedilotildees morais e limite seus impulsos naturais

A moralidade eacute antecedida pela coerccedilatildeo e ela mesma eacute ainda por algum tempo coerccedilatildeo agrave qual a pessoa se acomoda para evitar o desprazer Depois ela se torna costume mais tarde obediecircncia livre e finalmente quase instinto entatildeo como tudo o que haacute muito tempo eacute habitual e natural acha-se ligada ao prazer ndash e se chama virtude (MAIHHI sect99)

O sentimento de prazer ao realizar alguma accedilatildeo comprovadamente uacutetil agrave comunidade torna o homem domesticado O filoacutesofo observa que esse mecanismo coercitivo estaacute tatildeo fortemente enraizado nas comunidades que a pessoa segue os costumes de modo obediente sem qualquer reflexatildeo Essa dinacircmica de apego agrave tradiccedilatildeo eacute transmitida como heranccedila e a adequaccedilatildeo ao costume eacute vista como uma virtude moral Em Humano demasiado humano I o filoacutesofo pontua o que pode ser considerado como uma virtude boa para a tradiccedilatildeo moral ldquoBomrdquo diz ele ldquoeacute chamado aquele que apoacutes longa hereditariedade e quase por natureza pratica facilmente e de bom grado o que eacute moralrdquo E sobre a concepccedilatildeo habitual do que possa ser um homem moral esclarece ldquoser moral morigerado eacutetico significa prestar obediecircncia a uma lei ou tradiccedilatildeo haacute muito estabelecidardquo (MAIHHI sect96) A obediecircncia aos costumes morais eacute apontada pelo filoacutesofo como central para a compreensatildeo deste sentimento de dever moral herdado4 e perpetuado historicamente 4 No Humano demasiado humano II publicado em 1879-80 o filoacutesofo confirma o caraacuteter hereditaacuterio dos sentimentos

morais afirmando que ldquoa moralidade (o modo de agir herdado transmitido instintivo segundo sentimentos morais)rdquo

Gracy Kelly Bourscheid

101

Destituiacutedo das convicccedilotildees metafiacutesicas mas focado nas manifestaccedilotildees morais Nietzsche considera que o homem natildeo pode ser considerado moral ou imoral por sua obediecircncia ou negligecircncia ao costume moral Isso porque na visatildeo do filoacutesofo natildeo somos responsaacuteveis por nossas accedilotildees Considerando a inocecircncia das nossas accedilotildees indica que ldquoa histoacuteria dos sentimentos morais eacute a histoacuteria de um erro o erro da responsabilidade que se baseia no erro do livre-arbiacutetriordquo (MAIHHI sect39) No pensamento do filoacutesofo nossas accedilotildees natildeo satildeo consequumlecircncias de uma vontade livre que nos permita agir deste ou daquele modo Considera que o homem natildeo eacute dotado de vontade livre e portanto natildeo deveria ser responsabilizado por suas accedilotildees Nietzsche afirma que a histoacuteria dos sentimentos morais eacute a histoacuteria pela qual tornamos o homem responsaacutevel por todas as suas accedilotildees ldquoa histoacuteria dos sentimentos em virtude dos quais tornamos algueacutem responsaacutevel por seus atos ou seja a histoacuteria dos chamados sentimentos moraisrdquo (MAIHHI sect39) Analisando a histoacuteria dos sentimentos morais o filoacutesofo constata que a tradiccedilatildeo moral e religiosa obteve ecircxito em tornar o homem culpado A partir da crenccedila moral e religiosa de que o homem possui liberdade para escolher entre essa ou aquela accedilatildeo surge a sensaccedilatildeo nos espectadores e no proacuteprio agente de que a accedilatildeo considerada imoral poderia ter sido evitada

O sentimento de culpa por desobedecer a uma regra um costume moral eacute um forte repressor social Na concepccedilatildeo de Nietzsche esse sentimento eacute fruto do erro em acreditar na liberdade da vontade ldquoporque o homem se considera livre natildeo porque eacute livre ele sofre arrependimento e remorsordquo (MAIHHI sect39) Esse sentimento poderaacute ser superado segundo o filoacutesofo agrave medida que o homem reconhecer sua inocecircncia ao agir ldquoningueacutem eacute responsaacutevel por suas accedilotildees ningueacutem responde por seu ser julgar significa ser injusto Isso tambeacutem vale para quando o indiviacuteduo julga a si mesmordquo (MAIHHI sect39) Considerando que o homem natildeo dispotildee de vontade livre o filoacutesofo propotildee um novo modo de olhar para as accedilotildees humanas Em sua anaacutelise o homem natildeo pode ser responsabilizado por suas accedilotildees porque age por necessidade

A total irresponsabilidade do homem por seus atos e seu ser eacute a gota mais amarga que o homem do conhecimento tem de engolir se estava habituado a ver na responsabilidade e no dever a carta de nobreza de sua humanidade Todas as suas avaliaccedilotildees distinccedilotildees aversotildees satildeo assim desvalorizadas e se tornam falsas seu sentimento mais profundo que ele dispensava ao sofredor ao heroacutei baseava-se num erro ele jaacute natildeo pode louvar nem censurar pois eacute absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidade (MAIHHI sect107)

Se considerarmos como propotildee o filoacutesofo as accedilotildees como totalmente necessaacuterias o homem natildeo poderaacute ser responsabilizado por elas E isso ocorre tanto para as accedilotildees consideradas tradicionalmente como boas quanto com as consideradas maacutes Assim como ao homem considerado bom natildeo caberaacute honras e meacuteritos agravequele que parecer mau agrave comunidade natildeo poderaacute ser penalizado A concepccedilatildeo nietzschiana sobre a irresponsabilidade das accedilotildees se choca com um importante aparato de repressatildeo moral Um dos pilares da tradiccedilatildeo moral e religiosa eacute a noccedilatildeo de recompensa e castigo vinculada agraves accedilotildees ldquose desaparecessem o castigo e o precircmio acabariam os motivos mais fortes que nos afastam de certas accedilotildees e nos impelem a outrasrdquo (MAIHHI sect105) Segundo o filoacutesofo meacuterito ou castigo natildeo cabem ao homem porque as nossas accedilotildees satildeo tatildeo necessaacuterias quanto agraves accedilotildees da natureza ldquoeacute absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidaderdquo (MAIHHI sect107) Desse modo somos tatildeo

(MAIIHHII sect212)

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

102

responsaacuteveis pelos impulsos que movem nosso corpo quanto agrave natureza eacute responsaacutevel pelos seus movimentos

Natildeo acusamos a natureza de imoral quando ela nos envia uma tempestade e nos molha por que chamamos de imoral o homem nocivo Porque neste caso supomos uma vontade livre operando arbitrariamente e naquele uma necessidade Mas tal diferenciaccedilatildeo eacute um erro (MAIHHI sect102)

Ao abordar a sua concepccedilatildeo acerca da irresponsabilidade do homem sobre as suas accedilotildees o filoacutesofo indica que os atos humanos devem ser considerados do mesmo modo que os movimentos da natureza Homem e natureza agem por necessidade e natildeo por vontade livre Nossas accedilotildees satildeo tatildeo necessaacuterias portanto como uma chuva numa tarde de veratildeo Essa consideraccedilatildeo de Nietzsche coloca sob questionamento a convicccedilatildeo moral e religiosa a respeito da liberdade e responsabilidade individual Habituamo-nos a reconhecer nossas accedilotildees como responsabilidade individual Diante da crenccedila na responsabilidade individual pela qual o homem considerado imoral eacute julgado e punido Nietzsche esclarece ldquoningueacutem eacute responsaacutevel por suas accedilotildees ningueacutem responde por seu ser julgar significa ser injusto Isso tambeacutem vale para quando o indiviacuteduo julga a si mesmordquo (MAIHHI sect39) A partir da compreensatildeo de que o homem eacute totalmente irresponsaacutevel por seus atos o filoacutesofo propotildee um novo modo de sentimento a adoccedilatildeo do sentimento de inocecircncia em detrimento do sentimento de culpa Se o homem incorporar a sua inocecircncia sobre as accedilotildees natildeo aceitaraacute mais ser premiado ou castigado tampouco puniraacute ou aplaudiraacute accedilotildees alheias afinal nenhuma accedilatildeo poderia ter ocorrido de outra maneira

Quem compreendeu plenamente a teoria da completa irresponsabilidade jaacute natildeo pode incluir a chamada justiccedila punitiva e premiadora no conceito de justiccedila se esta consiste em dar a cada um o que eacute seu Pois aquele que eacute punido natildeo merece a puniccedilatildeo eacute apenas usado como meio para desencorajar futuramente certas accedilotildees tambeacutem aquele que eacute premiado natildeo merece o precircmio ele natildeo podia agir de outro modo (MAIHHI sect105)

Esse novo modo de olhar para as accedilotildees humanas abala toda a estrutura da moralidade Todo louvor diante das accedilotildees vistas como virtuosas se tornaria dispensaacutevel Toda nossa reprovaccedilatildeo diante de supostas infraccedilotildees morais se tornaria ridiacutecula Afinal como reprovar ou aplaudir accedilotildees que natildeo poderiam ocorrer de outro modo ldquoseu sentimento mais profundo que ele dispensava ao sofredor ao heroacutei baseava-se num erro ele jaacute natildeo pode louvar nem censurar pois eacute absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidaderdquo (MAIHHI sect107) Nietzsche reconhece que o surgimento do sentimento de inocecircncia em substituiccedilatildeo ao sentimento moral de culpa eacute um processo O homem precisa assimilar a sua inocecircncia e compreender que natildeo eacute responsaacutevel por seus atos Trata-se de um novo conhecimento ldquotudo eacute necessidade ndash assim diz o novo conhecimento e ele proacuteprio eacute necessidade Tudo eacute inocecircncia e o conhecimento eacute a via para compreender essa inocecircnciardquo (MAIHHI sect107) O filoacutesofo pontua que assim como a moralidade gerou sentimentos e mecanismos coercitivos atraveacutes da transmissatildeo dos costumes esse novo conhecimento poderaacute criar um novo homem o homem saacutebio e inocente

Tudo no acircmbito da moral veio a ser eacute mutaacutevel oscilante tudo estaacute em fluxo eacute verdade - mas tudo se acha tambeacutem numa corrente em direccedilatildeo a uma meta Pode continuar a nos reger o haacutebito que herdamos de avaliar amar odiar erradamente mas sob o influxo do conhecimento

Gracy Kelly Bourscheid

103

crescente ele se tornaraacute mais fraco um novo haacutebito o de compreender natildeo amar natildeo odiar abranger com o olhar pouco a pouco se implanta em noacutes no mesmo chatildeo e daqui a milhares de anos talvez seja poderoso o bastante para dar agrave humanidade a forccedila de criar o homem saacutebio e inocente (consciente da inocecircncia) da mesma forma regular como hoje produz o homem tolo injusto consciente da culpa ndash que eacute natildeo o oposto mas o precursor necessaacuterio daquele (MAIHHI sect107)

O filoacutesofo considera o resgate da origem dos sentimentos morais como importante mecanismo para que o homem compreenda que o sentimento de culpa eacute um erro moral histoacuterico que o prejudica Em Humano demasiado humano I Nietzsche ainda natildeo indica objetivamente de que modo considera as accedilotildees humanas como totalmente necessaacuterias Essa noccedilatildeo ficaraacute mais clara a partir da concepccedilatildeo do filoacutesofo sobre a vida humana ou seja da vida enquanto vontade de potecircncia A definiccedilatildeo da vida enquanto vontade de potecircncia permitiraacute a compreensatildeo de que os impulsos responsaacuteveis pelas accedilotildees seguem sua constituiccedilatildeo natural de luta por expansatildeo Nessa dinacircmica portanto natildeo haacute escolha moral as accedilotildees seguem uma luta contiacutenua de busca por expandir-se De qualquer forma o apontamento acerca da irresponsabilidade sobre as accedilotildees em Humano demasiado humano I jaacute demonstra claramente a intenccedilatildeo do filoacutesofo em livrar o homem do sentimento de culpa Nietzsche nos indica que assim como a moralidade fez surgir o homem culpado o conhecimento da irresponsabilidade do homem sobre as suas accedilotildees permitiraacute o surgimento de um novo homem um homem saacutebio e inocente consciente de sua inocecircncia Se considerarmos a cultura como um processo dinacircmico de transformaccedilatildeo o homem moral o homem culpado poderaacute ser visto como precursor do homem inocente O surgimento desse novo homem desponta na perspectiva analisada em Humano demasiado humano I como uma meta

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

104

Referecircncias bibliograacuteficasFREZZATTI W A JR As noccedilotildees de histoacuteria na II Consideraccedilatildeo Extemporacircnea e em Humano demasiado humano In Cadernos Nietzsche vol 39 n 1 Satildeo Paulo janabr 2018NIETZSCHE Friedrich Wilhelm Humano demasiado humano Um livro para espiacuteritos livres Volume 1 12ordf reimp Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2017_____ Humano demasiado humano Um livro para espiacuteritos livres Volume 2 Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008REacuteE Paul A origem dos sentimentos morais Traduccedilatildeo de Andreacute Itaparica e Clademir Araldi Satildeo Paulo Editora UNIFESP 2018

Guilherme Freire da Costa

105

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch ndash Arte Filosofia e Ciecircncia na obra nietzschiana

Guilherme Freire da Costa1

ApresentaccedilatildeoUma vez Nietzsche afirmou que a profundidade de um filoacutesofo poderia ser medida

pelo tempo necessaacuterio para decifraacute-lo E o fato de estar aqui debruccedilado sobre outra possibilidade interpretativa jaacute natildeo seria um sintoma de criaccedilatildeo eternamente em devir Por outro lado existiria uma plenitude compreensiva Um encerramento de possibilidades e perspectivas Ou estamos fadados agraves configuraccedilotildees de nossa espaccedilo-temporalidade Do vir-a-ser em que nos tornarmos quem somos Seria a dinacircmica compreensiva apenas conjuntos de configuraccedilotildees contingentes das capacidades e tensotildees interpretativas Conjuntos derivados de forccedilas que se configuram e se destroem permanentemente nos corpos Enfim muitas questotildees Mas precisamos encaraacute-las vivenciaacute-las e interpretaacute-las se queremos honrar a superaccedilatildeo permanente

A primeira vez que tomei em matildeos seus mais notaacuteveis inteacuterpretes do seacuteculo XX forccedilas me conduziram agrave percepccedilatildeo de que se efetivava uma das previsotildees que Nietzsche havia deixado sobre si mesmo a da quarta parte do Zaratustra quando o filoacutesofo alematildeo se autocelebrou como asno ao se projetar nas expressotildees de homens superiores do porvir ndash Eram incapazes de sua obra presos por grilhotildees da tradiccedilatildeo idealista que tanto combateu E o que natildeo fariam da filosofia do Zaratustra Em sua projeccedilatildeo dos vindouros expressou a criaccedilatildeo de uma festa para celebrar a si mesmo como asno Nietzsche assim se celebrando havia se tornado um burro Sua filosofia ganhava interpretaccedilotildees mais baixas que a dos uacuteltimos homens Perdia-se promessa cultivo e realizaccedilatildeo do Uumlbermensch2

Natildeo vou aqui aprofundar o que compreendo sobre tornar Nietzsche um asno Para cada homem superior que assim o celebra no futuro que jaacute eacute passado seria necessaacuterio um estudo agrave parte e para cada tipo o que eacute impossiacutevel em espaccedilo tatildeo curto Aqui vou expressar um conjunto de forccedilas quantificado Seria possiacutevel expressar uma qualidade E mesmo que provisoriamente a posse de uma vontade de potecircncia Quero algo mais que o comentaacuterio sobre outrem Quero afirmar possibilidades proacuteprias tensotildees resultantes de meus estados fisioloacutegicos pois me sinto liberado em instintos sentimentos e interpretaccedilotildees 1 Programa de poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro2 Gostaria de assinalar que natildeo me agradam as expressotildees super-homem e aleacutem-do-homem A primeira natildeo por si

mesma mas pela degradaccedilatildeo que sofreu com a produccedilatildeo cultural desde princiacutepios do seacuteculo XX A segunda pelos perigos assinalados por Nietzsche diante de esperanccedilas e sentimentos ultraterrenos ou seja diante das promessas religiosas que necessitam negar vida e corpo para se imporem ao contrapocirc-los a uma promessa de aleacutem-mundo E apesar de ser do meu agrado a utilizaccedilatildeo do termo sobrehomem manterei a expressatildeo original cunhada por Ni-etzsche na maior parte do texto

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

106

para esse voo de superaccedilatildeo E o que mira meu arco teso ao atirar a flecha ndash Ferir a tradiccedilatildeo e potencializar condiccedilotildees ao cultivo e devir do Uumlbermensch Pretendo pois transmutar valores e funcionamentos das relaccedilotildees que se configuraram entre arte filosofia e ciecircncia afastando as tradicionais interpretaccedilotildees que sobrevalorizaram as artes subvalorizando as ciecircncias ou vice-versa

Entretanto natildeo tenho como algo fechado o que a seguir expressarei Senatildeo que se trata de um tentame de uma elevaccedilatildeo de suspeitas pessoais a dimensotildees de compartilhamento onde me beneficiarei por novas suspeitas que natildeo as minhas e que seratildeo expressas na linguagem de vocecircs Claro se me julgarem merecedor da potecircncia de suas forccedilas no esforccedilo interpretativo do que escrevo

Finalmente assinalo qual estiacutemulo me direcionou agrave construccedilatildeo textual aqui apresentada Foi a leitura de um artigo que me impulsionou transmutando ato intelectivo autossuficiente em vontade de compartilhar e de ser desafiado ao desafiar Nomeado O Mal do Mar em Nietzsche tem autoria do professor Charles Feitosa e foi publicado em 2003 no livro Assim Falou Nietzsche IV ndash A Fidelidade agrave terra3

Referecircncias para a efetivaccedilatildeo do UumlbermenschApoacutes ter sido tocado pelo artigo do professor Feitosa foi sua uacuteltima frase que

primeiro me tocou Percebi mais uma vez quanto se distanciam meus pensamentos das interpretaccedilotildees de grande parte da atualidade e do passado mas tambeacutem o quanto devo a elas Ao concluir seu texto afirma Feitosa que a Kinderland (terra das crianccedilas) nietzschiana seria ldquoldquouma utopia no sentido mais radical da palavra natildeo um sonho ou ideal impossiacutevel de ser realizado mas um lugar que natildeo existe aindardquordquo FEITOSA O Mal do Mar em Nietzsche in Assim Falou Nietzsche IV pag 332) Muito bem para mim esse lugar jaacute existia antes mesmo da vida ter vindo a ser ele estaacute aiacute desde sempre desde muito antes do aparecimento do homem Esse lugar seria o universo e soacute existe vida porque ele se efetiva em eterno movimento ndash E aqui expresso minha primeira particularidade ao pensar a superaccedilatildeo do homem a necessidade de experimentar vivecircncias no universo de estar vivendo e se movimentando em outras relaccedilotildees com a gravidade pois que efetivando deslocamentos ao voar para dentro do ceacuteu4

Voar para dentro do ceacuteu Sim e muito falta para tal conquista comeccedilando pela criaccedilatildeo de linguagem matemaacutetica que simbolize a capacidade corretiva para movimentos em altas velocidades de trajetoacuterias astronocircmicas Linguagem que necessita para vir a ser de criaccedilatildeo filosoacutefica e intermediaccedilatildeo da arte na geraccedilatildeo de meacutetodos cientiacuteficos O proacuteximo degrau A criaccedilatildeo de tecnologia a dar conta das necessidades nascentes de experimentaccedilatildeo do Uumlbermensch Jaacute iniciamos a conquista do universo por mais tosca que se efetive E jaacute poucos eleitos viveram em seus corpos breves temporalidades sem os efeitos do espiacuterito de gravidade Mas permanecemos muito afastados de deslocamentos velozes em grandes distacircncias de um grau miacutenimo de seguranccedila em dinacircmicas de sobrevivecircncia no cosmos

3 Cito o uacuteltimo paraacutegrafo do artigo de Feitosa ldquoO lsquomal do marrsquo pode agraves vezes ser o sintoma de uma nostalgia im-proacutepria por terra segura pela paacutetria a terra do pai [Vaterland] o lugar das certezas paradigmaacuteticas que nos ajudam a justificar a existecircncia Mas o lsquomal do marrsquo pode ser tambeacutem o elixir que vai nos deixar leves o suficiente para navegar ateacute a Kinderland literalmente a lsquoterra de crianccedilasrsquo terra de homens superiores um lugar onde tudo pode ser inventa-do A Kinderland de Zaratustra eacute uma utopia no sentido mais radical da palavra natildeo um sonho ou ideal impossiacutevel de ser realizado mas apenas um lugar que natildeo existe aindardquo

4 Refiro-me ao paraacutegrafo Antes do Nascer do Sol do Zaratustra onde em minha interpretaccedilatildeo Nietzsche aponta para a experimentaccedilatildeo necessaacuteria da vida leve como efetivaccedilatildeo e inocecircncia do Uumlbermensch Ou seja para que se efetive ele mesmo na realidade espaccedilo-temporal de seu corpo

Guilherme Freire da Costa

107

Pois bem em favor da compreensatildeo que afirma Nietzsche como precursor de tal necessidade para a efetivaccedilatildeo do Uumlbermensch gostaria de primeiro invocar trecircs momentos em sequecircncia de A Gaia Ciecircncia a uacuteltima frase do paraacutegrafo 123 ldquoldquoexiste alguma coisa nova na histoacuteria quando o conhecimento deseja ser mais que um meiordquordquo a primeira frase do paraacutegrafo 124 ldquoldquodeixamos a terra firme e subimos a bordo Destruiacutemos a ponte atraacutes de noacutes e mais destruiacutemos todos os laccedilos com a terra atraacutes de noacutesrdquordquo e todo o paraacutegrafo 125 onde destaco as seguintes passagens apoacutes afirmada a morte de Deus

Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro Que fizemos quando desatamos esta terra do seu Sol Para onde vai ela agora Para onde vamos noacutes mesmos Para longe de todos os soacuteis Natildeo estamos incessantemente a cair Para diante para traacutes para os lados em todas as direccedilotildees Natildeo sentimos na face um sopro frio Natildeo se tornou ele mais frio Natildeo anoitece eternamente Natildeo seraacute necessaacuterio acender os candeeiros logo de manhatilde

E conclui ldquoldquoChego cedo demais disse ele entatildeo o meu tempo ainda natildeo chegou Esse acontecimento enorme ainda estaacute a caminho e ainda natildeo chegou ao ouvido dos homensrdquordquo (NIETZSCHE A Gaia Ciecircncia paraacutegrafo 125)

Agora peccedilo que fechem os olhos e enxerguem nosso planeta como se estivessem leves envolvidos por energia escura e abandonados no cosmos Poderiacuteamos falar de horizonte Dispor das medidas usuais de quantificaccedilatildeo dos dias das estaccedilotildees climaacuteticas etc para mediccedilotildees de tempo Natildeo estariacuteamos em uma noite permanente enquanto em deslocamentos ultra velozes no universo Os candeeiros natildeo estariam acesos mesmo de dia

Avancemos aos discursos do Zaratustra agravequele intitulado Antes do Nascer do Sol Aqui jaacute temos o sentimento que o homem precisa ser superado e a percepccedilatildeo de que eacute agrave moral que se precisa fazer guerra E o que nos diz Nietzsche em sua vontade de superaccedilatildeo ao falar para o ceacuteu ldquoldquoLanccedilar-me agrave tua altura ndash eis a minha profundeza Ocultar-me em tua pureza ndash eis a minha inocecircncia O deus eacute encoberto por sua beleza assim escondes tuas estrelasrdquordquo E continua ldquoldquoE todo o meu caminhar e subir montanhas apenas necessidade recurso de um canhestro - somente voar deseja a minha vontade voar para dentro de tirdquordquo (NIETZSCHE Assim Falou Zaratustra paacutegs 156 e 157) Justamente por lhe faltar a condiccedilatildeo para a experimentaccedilatildeo do Uumlbermensch que depende de invenccedilotildees tecnoloacutegicas Nietzsche mira seu pensamento em outro alvo Natildeo percebendo possiacutevel se efetivar precisa entatildeo criar os valores que possibilitaratildeo seus herdeiros a finalizar as pontes que compreende necessaacuterias agrave superaccedilatildeo do homem O que exige elevar ao maacuteximo o que de melhor e pior deve ser cultivado nos homens de tipos superiores ou natildeo para que viva o Uumlbermensch Afinal toda a vida quer dar vazatildeo agrave sua forccedila seja ela uma promessa de futuro seja ela uma negaccedilatildeo da proacutepria vida ndash Tambeacutem o niilismo precisa encontrar sua expressatildeo mais potente

Compreendo pois que o centro de forccedilas da perspectiva filosoacutefica de Nietzsche venha a se configurar um duro e decisivo ataque agrave moral enquanto conjunto de elementos que interferem no cultivo do homem Valores e juiacutezos organizaccedilatildeo social e estatal instruccedilatildeo tais movimentos satildeo esmiuccedilados e em seus modos cristatildeos e modernos combatidos Mas o centro se configura dinacircmico se deslocando atraveacutes de um fio condutor que nessa perspectiva vem a ser a superaccedilatildeo do homem E superaccedilatildeo que natildeo pode ser reduzida agrave

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

108

produtividade exclusiva do intelecto agrave consciecircncia que temos do mundo e de noacutes mesmos Natildeo Eacute preciso primeiro atacar o cultivo vigente do corpo pois eacute aiacute que Nietzsche reconhece o iniacutecio dos erros de razatildeo que se sucederam ao longo da histoacuteria Eacute quando o corpo se torna desvalorizado pela filosofia platocircnica e depois refutado pelo cristianismo que o homem passa a correr grande risco de extinccedilatildeo

Tambeacutem natildeo podemos esquecer que a ciecircncia de seu tempo estaacute comeccedilando a engatinhar na direccedilatildeo da leveza e de novas tecnologias E Nietzsche reconhece a impossibilidade de abordar diretamente a realidade do Uumlbermensch passando a priorizar seus esforccedilos sobre a realidade corporal humana em suas configuraccedilotildees de forccedilas e combater erros que poderiam vir a efetivar o refreamento da superaccedilatildeo ou sua natildeo realizaccedilatildeo A sobrehumanidade era inalcanccedilaacutevel mas natildeo a moral que a coloca em risco

Uma uacuteltima citaccedilatildeo para mais uma vez iluminar a necessidade de vivecircncias no universo como condiccedilatildeo de devir do Uumlbermensch

Suponha que algueacutem frequentemente sonhe que estaacute voando e assim que comeccedila a sonhar se torna consciente da arte e da habilidade de voar como seu privileacutegio assim como sua felicidade mais particular e invejaacutevel - algueacutem assim que pensa poder negociar todo tipo de curvas e acircngulos com o menor impulso que conhece o sentimento de uma certa facilidade divina um ldquopara cimardquo sem tensatildeo ou forccedila um ldquopara baixordquo sem condescendecircncia ou rebaixamento - sem gravidade5

Nietzsche aponta para uma necessidade que deve se tornar sentida para o homem que nessa vida acorrentada agrave gravidade que experimentamos na Terra jamais conseguiremos vivenciar o Uumlbermensch quanto menos projetar a dimensatildeo das transmutaccedilotildees orgacircnicas fisioloacutegicas e valorativas que se sucederatildeo na leveza do cosmos E o primeiro movimento mesmo que ainda em sonhos eacute de linguagem na matemaacutetica atual superar o determinismo do caacutelculo tensorial e comeccedilar a pensar em um caacutelculo correcional transmutativo para deslocamentos seguros em altas velocidades e pronto para se corrigir diante das modificaccedilotildees de trajetoacuteria em funccedilatildeo de encurvamentos efetivados na proximidade de corpos massivos por menores que sejam Pois uma coisa eacute idealizar a partir de observaccedilotildees experiecircncias na mente ou reproduzi-las em ambientes controlados de laboratoacuterio outra eacute vivenciaacute-las efetivamente sem controle laboratorial6 Afinal tomando o encurvamento do espaccedilo-tempo quando da presenccedila de corpos se deslocando e estabelecendo relaccedilotildees com a energia escura ou outros corpos precisamos para o movimento seguro de um ponto a outro ter agrave disposiccedilatildeo caacutelculos que possibilitem quaisquer correccedilotildees para escapar do fim de toda continuidade de encurvamento espaccedilo-temporal Natildeo podemos para nos deslocarmos no espaccedilo-tempo escolher a trajetoacuteria sem essa consideraccedilatildeo inicial sob o risco de nos 5 Nietzsche F W Beyond Good and Evil Prelude to a Philosophy of the Future paragraph 193 Traduccedilatildeo de Judith

Norman New York Cambridge University Press 2002 ldquoSuppose someone frequently dreams that he is flying and as soon as he starts dreaming he becomes aware of the art and ability of flight as his privilege as well as his most particular most enviable happiness ndash someone like this who thinks he can negotiate every type of curve and corner with the slightest impulse who knows the feeling of an assured divine ease an ldquoupwardsrdquo without tension or force a ldquodownwardsrdquo without condescension or abasement ndash without heavinessrdquo (Posto em negrito e traduzido livremente por mim)

6 Aqui quero chamar a atenccedilatildeo para o caraacuteter observacional das cosmologias mais recentes que se contentam com muito pouco e acreditam encontrar verdades em deduccedilotildees antropomoacuterficas do que conseguem ver atraveacutes de lentes de aumento Para esses fiacutesicos (Hawking por exemplo) muitas vezes incensados e mais que incensados a leitura de Sobre a Verdade e a Mentira em Sentido Extramoral seria uma excelente opccedilatildeo de remeacutedio para a patologia metafiacutesica que expressam

Guilherme Freire da Costa

109

chocarmos com outro corpo ou de provocarmos a criaccedilatildeo de um buraco negro que nos absorveraacute7

Dito isso gostaria de colocar algumas questotildees e derivaccedilotildees se tomarmos como uma das tarefas assumidas por Nietzsche a transvaloraccedilatildeo de todos os valores e aleacutem se colocarmos essa transvaloraccedilatildeo na necessidade de estiacutemulo ao gecircnio da criaccedilatildeo artiacutestica-filosoacutefica-cientiacutefica dos elementos e eventos que levem o homem agrave superaccedilatildeo e ao desbravamento do universo natildeo estaria sua filosofia ainda capengando Jaacute natildeo deveriacuteamos ter alcanccedilado um grau de experimentaccedilatildeo muito superior ao que vivemos Sequer conseguimos estabelecer os primeiros entrepostos de suporte agrave continuidade do desbravamento do cosmos Temos uma estaccedilatildeo orbital que funciona apenas como ponto avanccedilado de pesquisa Natildeo fizemos quase nada E por que Talvez pela falta de combatentes De filoacutesofos que legislem Estariam os uacuteltimos homens pendendo muito para o senso comum ao inveacutes de se almejarem homens superiores Promovemos sentimentos e valoraccedilotildees para a derrocada da arte filosofia e ciecircncia Natildeo parece que faltam uacuteltimos homens superiores Ou Filoacutesofos com vivecircncias nos meios onde se tomam decisotildees e se estabelecem finalidades transitoacuterias das pesquisas de ponta Natildeo estaacute o mais frio de todos os monstros frios abandonado agraves forccedilas dos mais mesquinhos tipos de homem E que tais tipos jamais promoveratildeo a superaccedilatildeo permanente pois sequer enxergam ou desejam o Uumlbermensch

Na presenccedila de tais questotildees natildeo podemos nos eximir noacutes filoacutesofos de nossos atos e escolhas tambeacutem do que vem a se efetivar como nossos pensamentos Nos escondemos nas universidades e falamos para um puacuteblico cada vez mais restrito fugimos do combate franco contra forccedilas promotoras da manutenccedilatildeo dos uacuteltimos homens ndash os que mais duram Natildeo afirmou Nietzsche que o cientista ndash ou homem da ciecircncia ndash natildeo passa de um instrumento a ser utilizado pelas matildeos de outros homens os que possuem e projetam o conhecimento das possibilidades e necessidades de superaccedilatildeo em cada transitoriedade das gradaccedilotildees da vida E tais homens deveriam ser os filoacutesofos natildeo investidores poliacuteticos ou militares esses vivem em perspectivas curtas de visatildeo e em interesses especiacuteficos que longe se encontram do Uumlbermensch em sua significaccedilatildeo mais profunda Que digo Sequer conseguem percebecirc-lo quanto mais pensaacute-lo Precisamos nos colocar na vanguarda de uma reorganizaccedilatildeo sociopoliacutetica que decirc vazatildeo agraves potencialidades da filosofia nietzschiana Soacute assim conseguiremos acelerar as pesquisas para que o Uumlbermensch entre em seus derradeiros niacuteveis de preacute-efetivaccedilatildeo

Ultimas Suspeitas ndash Relaccedilotildees e Hierarquias entre Arte Filosofia e CiecircnciaExpressei algumas primiacutecias do Uumlbermensch Insisto no homem presente e

potencializo as tensotildees entre suas relaccedilotildees afirmaccedilotildees e reaccedilotildees existenciais suas accedilotildees 7 Poreacutem tambeacutem pode haver a possibilidade de um buraco negro nada mais ser que a passagem de um universo a

outro em ampliaccedilatildeo que pode ser pensada e quem sabe um dia testada diante da esteacutetica do multiverso Acredito pessoalmente que existam muacuteltiplos universos e que os buracos negros sejam os canais de transferecircncia de grandes quantidades de forccedilas responsaacuteveis pelos movimentos expansivos e de retraccedilatildeo que ocorrem Ora se o nuacutemero de universos se manteacutem constante pode ser que jamais entremos em um processo de retraccedilatildeo podendo entatildeo trabalhar a superaccedilatildeo permanente com o sentimento tranquilizador de eternidade Se eles por outro lado continuarem a ser criados pode ser que a energia se torne insuficiente e que acabem por iniciarem processos de retraccedilatildeo e colapso de alguns desses universos Da minha parte acredito que colapsos e criaccedilotildees satildeo a regra constante Para que uns se ex-pandam outros tem que se colapsar e pensar em um iniacutecio ou fim dessa dinacircmica eacute perder o foco no que realmente vale a pena em valores vitais de existecircncia e potencializaccedilatildeo do conhecimento Nesse sentido seria muito mais interessante e mesmo frutiacutefero que pesquisaacutessemos modos de adentrarmos e vencermos os buracos negros visando descobrir por experiecircncia inuacutemeras possibilidades de dinacircmicas existenciais tanto em relaccedilatildeo aos movimentos desses muacuteltiplos universos como em relaccedilatildeo a noacutes mesmos interagindo com essas imensuraacuteveis possibilidades de forccedila

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

110

criativas e de cultivo e seus estaacutegios linguiacutesticos Para comeccedilar coloco algumas questotildees 1) se assumimos que estamos no niacutevel de uacuteltimos homens como nos afirmar e agir nessa realidade 2) Como a partir de tentativas permanentes de superaccedilatildeo estimular o outro a tambeacutem se superar permanentemente afastando do Uumlbermensch atavismos notadamente ideoloacutegicos e socioeconocircmicos 3) Tendo conquistado o equiliacutebrio espaccedilo-temporal entre grande e pequena razatildeo como conquistar a posiccedilatildeo8 de comando na tomada de decisotildees que estimulem uacuteltimos homens a se tornarem superiores mesmo em suas limitaccedilotildees E 4) como expandir exponencialmente a quantidade dos construtores de pontes assim como a qualidade dos meacutetodos de construccedilatildeo maximizando a eficiecircncia no uso de riquezas e forccedilas naturais9

Insisto o princiacutepio eacute assumir a impossibilidade experimental do Uumlbermensch nos faltam valores e tecnologia Precisamos nos liberar da interpretaccedilatildeo sobrevalorizada de noacutes mesmos e encontrar no passo atraacutes um degrau firme na escada E tendo apoio tensionar as pernas e preparar o grande salto aquele que vence a gravidade Poreacutem no processo de conquista dos graus de movimento precisaremos contar com certos elementos a serem inventados mesmo que natildeo possamos projetar neles a realidade sobrehumana Eacute pois pela perspectiva do ainda humano que se iniciam os estiacutemulos agrave criatividade e superaccedilatildeo O problema do valor dos valores e da hierarquia de forccedilas Nos colocamos em perigo talvez diante do maior de todos os perigos A metaacutefora nietzschiana de embarcar e abandonar a terra atraacutes de si se transforma em tentativas de abandonar a Terra caindo para noacutes Projetamos movimentos em velocidades jamais realizadas por isso a necessidade de se reescreverem os modos de expressatildeo matemaacutetica (caacutelculos) apoacutes reinventarmos os meios pelos quais criamos o se expressar (filosofia e arte) Abolimos o determinismo pois assumimos a perspectiva Agora jaacute podemos conquistar os caacutelculos para deslocamentos coacutesmicos e os cantos e danccedilas em um viver sem gravidade

Nossas melhores invenccedilotildees ndash arte filosofia e ciecircncia ndash agora transbordam em novas criaccedilotildees atuam para transformar nossa estupidez em riso e transmutar o riso em promessas e possibilidades de futuro Acreditamos por muitos seacuteculos no Ser ao inveacutes de no devir Na pretensatildeo de poder identificar e definir o Ser acabamos por utilizar medidas e materiais falsos impossiacuteveis para uma existecircncia como a nossa As linguagens e as loacutegicas das linguagens natildeo passam de antropomorfismos que se negam Soacute pela arte criaremos o riso que postula um abismo sem fundo soacute a filosofia com sua inventividade expressiva superaraacute a arte e elevaraacute o riso permitindo projetar contingencialmente um tipo de terra na profundeza sem fim soacute a ciecircncia com sua inventividade edificante concretizaraacute riso e terra permitindo que possamos repetir corrigindo movimentos e inventar o apoio que nos permita saltar Beleza conhecimento e praacutexis atuando em sucessotildees combinatoacuterias para transformar o riso que escarniava em riso de promessa e superaccedilatildeo e afastar o medo pelo rugir vitorioso da coragem de quem se abandona a si mesmo diante do desconhecido E mais uma vez no eterno retorno ampliado das condiccedilotildees e possibilidades de vivecircncias manifestarem-se gradaccedilotildees de suspeitas e escaacuternios que iniciam ciclos eternamente seguindo o fluxo do devir em seu superar-se Natildeo superamos de uma soacute vez o Ser e o

8 Posiccedilatildeo aqui significa a combinaccedilatildeo fluida e dinacircmica entre sentimento e consciecircncia9 Entendo aqui forccedilas e riquezas naturais de forma ampla ou seja tanto em referecircncia ao mundo-universo como ao

mundo-homem em processo de superaccedilatildeo

Guilherme Freire da Costa

111

eterno retorno do mesmo e do diferente10 Natildeo podemos superar capacidades de corrigir direccedilotildees e ampliar movimentos a cada ciclo

Mas ouccedilamos Zaratustra ao dormir e acordar ao meio-dia quando tensotildees entre grande e pequena razatildeo entre corpo e consciecircncia encontram um instante de perfeiccedilatildeo

Que aconteceu comigo Escuta O tempo voou embora Natildeo estou caindo Natildeo caiacute ndash escuta ndash no poccedilo da eternidade Que acontece comigo Silecircncio Sinto uma pontada ndash ai ndash no coraccedilatildeo No coraccedilatildeo Oh despedaccedila-te despedaccedila-te coraccedilatildeo apoacutes essa felicidade apoacutes essa pontada ndash Como O mundo natildeo se tornou perfeito nesse instante (NIETZSCHE Assim Falou Zaratustra paacuteg 263)

E Zaratustra volta agrave sua caverna laacute encontrando os homens com quem cruzou durante o dia Seriam homens superiores Sim superiores no desespero no grito de socorro que ecoa entre uacuteltimos homens Esperava por seus filhos mas malogrados e homens pathos-loacutegicos subiram agrave caverna Ainda natildeo se configuravam as forccedilas que fariam Zaratustra descer uma uacuteltima vez para junto dos homens Quis as aacutervores de vida das suas forccedilas e mais altos desejos Encontrou poeira e miseacuteria ndash encontrou desertos e seu mortal inimigo o espiacuterito de gravidade Precisaria criar aquilo que deseja Entatildeo crie Zaratustra e conclame o homem superior a desejar Crie canccedilotildees para seus hoacutespedes durante a ceia que oferece em sua caverna E deixe que o transformem em asno e celebrem uma festa O fazem em sua homenagem

E noacutes o que temos feito para superar o homem O que temos criado acima de noacutes Temos pelo menos as matildeos livres para criar Trancafiados em ilhas empoeiradas nos embrenhamos e nos perdemos em tensotildees inuacuteteis e disputas ideoloacutegicas disputas por um tipo de poder que sequer toca o mais elevado acontecer na dinacircmica global de superaccedilotildees e exerciacutecio de potecircncias Abrimos matildeo de nossas funccedilotildees mais nobres abrimos matildeo de noacutes mesmos Jaacute natildeo nos fazemos ouvir Em nossa esterilidade viramos motivo de piada para especialistas que deveriam estar submetidos agrave nossa vontade mais profunda que eacute vontade de superaccedilatildeo e vir-a-ser do Uumlbermensch ndash Temos ainda sauacutede para realccedilar nossas forccedilas e transbordaacute-las em mensuraccedilotildees de vontades de potecircncia De impocirc-las aos muitos demais e uacuteltimos homens Ou de arriscar a vida e jogar o jogo mesmo que ruim

O cientista segue seu fluxo sem superaccedilatildeo lucro e armas no mais do mesmo Deixamos a ciecircncia dominada por aacutevidos investidores poliacuteticos e militares mercenaacuterios Os piores comandam sociedades e destinos O que nos restou Retribuir desprezo com desprezo Temos deixado asnos interferirem na potecircncia de leotildees Para onde teraacute voado nossa altivez Para onde rastejado nossa prudecircncia Ah caros filoacutesofos de ontem hoje e amanhatilde o homem precisa ser superado e a noacutes cabe tomar as reacutedeas desse destino e impor as dinacircmicas tensionais desse movimento E como iniciar o processo Primeiramente abandonando disputas ideoloacutegicas abandonado a proacutepria ideologia para que poliacuteticos e muitos demais se imiscuam sozinhos na lama ateacute que por fim se afoguem em suas sujeiras O mundo natildeo possui nem precisa de ideologia tambeacutem natildeo existe moral na natureza apenas forccedilas que precisam vir a ser hierarquizadas para que transbordem e se configurem em vontades cada vez mais profundas e potentes E uma expressatildeo se faz necessaacuteria 10 Afinal natildeo foi Zaratustra quem disse o eterno retorno do mesmo mas seus animais em moda de realejo Leia-se

O convalescente em Assim Falou Zaratustra Para Zaratustra o mesmo e o diferente caminham juntos ora um ora outro se efetivando de acordo com as hierarquias de forccedilas configuradas Pois se somente houvesse o eterno retorno do mesmo natildeo haveria superaccedilatildeo ou criaccedilatildeo e se soacute houvesse o diferente natildeo haveria retorno

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

112

que natildeo existe igualdade de forccedilas nem de vontades apenas hierarquias transitoacuterias Eacute pela valorizaccedilatildeo e estiacutemulo das diferenccedilas que poderaacute o homem vir a se superar Ou que pereccedilamos na igualdade de direitos e em disputas ou combates entre convicccedilotildees o estado simiesco nos aguarda se apresenta como nunca em possibilidade

Poreacutem se lutarmos pela superaccedilatildeo permanente poderemos criar expressotildees artiacutesticas a intermediar tensotildees entre filosofia histoacuterica e ciecircncias filosoacuteficas perspectivando interpretaccedilotildees transitoacuterias do conhecimento e suspeitando de qualquer expressatildeo efetivada Arte vivida como promessa do sublime mestra no rir de si e do mundo e intermediadora da cultura E noacutes filoacutesofos entre artistas e cientistas entre filoacutesofos que decidimos nos expressar enquanto preluacutedio e necessidade do Uumlbermensch natildeo apenas queremos mas devemos iluminar as primeiras efetivaccedilotildees dessa arte Precisamos cantar agraves futuras geraccedilotildees o valor da superaccedilatildeo permanente Como transmutados quase a habitar naves espaciais elencar e comandar os esforccedilos que levem agrave conquista do cosmos Basta de convicccedilotildees e ateacute mesmo de verdades Entramos na era da leveza e o corpo se faz imanecircncia tensatildeo e pluralidades transitoacuterias de hierarquizaccedilotildees de forccedilas

Uma uacuteltima afirmaccedilatildeo para decifrar eacute necessaacuterio tambeacutem ultrapassar superar Ou nas palavras do Zaratustra ldquoldquoretribuiacutemos mal a um professor se continuamos sempre alunordquordquo (NIETZSCHE Assim Falou Zaratustra paacuteg 75) Que tal pois comeccedilarmos a olhar para os seacuteculos XX e XXI e buscar nas obras dos grandes fiacutesicos e matemaacuteticos elementos do pensamento nietzschiano Como o tempo proacuteprio einsteiniano ou o princiacutepio da complementaridade de Niels Bohr

Guilherme Freire da Costa

113

Referecircncias bibliograacuteficas

FilosofiaNIETZSCHE F W Sobre a Verdade e a Mentira em Sentido Extramoral Traduccedilatildeo de Fernando de Moraes Barros Satildeo Paulo Editora Hedra 2012_____ Humano Demasiado Humano Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2017_____ Humano Demasiado Humano II Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008_____ Aurora Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2016_____ A Gaia Ciecircncia Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2012_____ A Gaia Ciecircncia Traduccedilatildeo de Jean Melville Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2010_____ Assim Falou Zaratustra Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2017_____ Aleacutem do Bem e do Mal Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003_____ Beyond Good and Evil Traduccedilatildeo de Judith Norman Nova Iorque Cambridge University Press 2002_____ Genealogia da Moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2017_____ Crepuacutesculo dos Iacutedolos Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006_____ Ecce Homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995BARRENECHEA M A Nietzsche e o Corpo Rio de Janeiro Editora 7 Letras 2017BERGMANN Peter Nietzsche The ldquoLast Anti-Political Germanrdquo Bloomington Indiana University Press 1987BLONDEL Eacuteric ldquoIntroductionrdquo IN NIETZSCHE F LrsquoAnteacutechrist Paris GF-Flammarion 1994CONILL Jesuacutes El poder de la mentira Nietzsche y la poliacutetica de la transvaloracioacuten Madrid Tecnos 1997 DELEUZE G Nietzsche and Philosophy Traduccedilatildeo de Hugh Tomlinson Nova Iorque Columbia University Press 2006FOUCAULT M Nietzsche Freud e Marx Traduccedilatildeo de Jorge Lima Barreto Satildeo Paulo Princiacutepio Editora 1997_____ Nietzsche a Genealogia e a Histoacuteria in A Microfiacutesica do Poder Traduccedilatildeo de Roberto Machado Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1999GENTILI Carlo Nietzsche Madri Biblioteca Nueva 2004HEIDEGGER M Nietzsche Vol I e II Traduccedilatildeo de David Farrell Krell San Francisco Harper amp Row 1991MARTON S Das Forccedilas Coacutesmicas aos Valores Humanos Satildeo Paulo Editora Brasiliense 1990

Fiacutesica e Matemaacutetica BORN M Einsteinrsquos Theory of Relativity New York Dover Publications 1965

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

114

EINSTEIN A Relativity The Special and General Theory Toronto Ancient Wisdom Publications 2010GAUSS K F Theory of the Motion of the Heavenly Bodies New York Dover Publications 1973HAWKING S The Theory of Everything The Origin and Fate of the Universe California Phoenix Books 2005HEISENBERG W The Physical Principles of the Quantum Theory Traduccedilatildeo de Carl Eckart e F C Hoyt Nova Iorque Dover Publications 1949KAUFMANN W J III Black Holes and Warped Spacetime Toronto Bantam Books 1980LOBACHEVSKY N Geometrical Researches on the Theory of Parallels New York Cosimo Inc 2007MAXWELL J C A Dynamical Theory of the Electromagnetic Field Oregon Wipf and Stock Publishers 1996RIEMANN B On the Hypotheses Which Lie at the Bases of Geometry Traduccedilatildeo de William Clifford Suiacuteccedila Editora Birkhaumluser 2016SCHROumlDINGER E Space-Time Structure Nova Iorque Cambridge University Press 1985

Hailton Felipe Guiomarino

115

Para que sofrer Acerca do problema do sentido do sofrimento

Hailton Felipe Guiomarino1

Este trabalho eacute uma versatildeo sinteacutetica de anaacutelises realizadas na pesquisa de mestrado a respeito da temaacutetica do sentido do sofrimento em Nietzsche Na tentativa de identificar um horizonte teoacuterico que perpassaria as reflexotildees de Nietzsche sobre sofrimento este trabalho avalia criticamente a posiccedilatildeo de trecircs inteacuterpretes que tentam determinar um conceito de sofrimento em Nietzsche Philip Kain (Nietzsche eternal recurrence and the horror of existence) cuja interpretaccedilatildeo se assenta na noccedilatildeo de ldquoterror e horror da existecircnciardquo retirada de O nascimento da trageacutedia Christopher Janaway (On the very idea of justifying suffering e Attitudes to suffering Parfit and Nietzsche) o qual centra-se no acircmbito das consideraccedilotildees psicoloacutegicas nietzschianas e Bernard Reginster (The Affirmation of Life Nietzsche on overcoming niilism) quem parte do conceito de vontade de poder para abordar o sofrimento Apesar de reconhecer os ganhos teoacutericos que cada inteacuterprete oferece para a compreensatildeo da filosofia de Nietzsche seraacute mostrado os impasses incontornaacuteveis no empreendimento de conceituar o sofrimento O motivo ndash e aqui o trabalho propotildee sua interpretaccedilatildeo alternativa ndash reside justamente no fato de que Nietzsche natildeo esteve preocupado com a conceituaccedilatildeo do sofrimento mas sim em pensar o seu sentido

1 A interpretaccedilatildeo de Philip KainEm seu artigo Nietzsche eternal recurrence and the horror of existence Kain reflete

sobre a noccedilatildeo de ldquoterror e horror da existecircnciardquo apresentada no capiacutetulo 3 de O nascimento da trageacutedia Essa noccedilatildeo se refere agrave sabedoria do Sileno segundo a qual seria melhor aos seres humanos nunca terem nascido ou jaacute o tendo morrerem o mais raacutepido possiacutevel A razatildeo eacute que entre mundo e ser humano natildeo haveria congruecircncia pois um natildeo se conformaria ao outro Tendo uma vez nascido o ser humano estaria fadado ao acaso e ao tormento de uma existecircncia passageira repleta de sofrimento sem sentido Essa seria a visatildeo horrorosa da existecircncia a qual instauraria uma tensatildeo conflituosa entre ser humano e mundo O primeiro eacute impelido sempre novamente pelo segundo a ter que inventar uma razatildeo para suportar a indiferenccedila cruel e riacutespida com que o movimento do vir-a-ser destroacutei tudo aquilo que existe

De acordo com o capiacutetulo 7 drsquoO nascimento da trageacutedia quem contempla a visatildeo terriacutefica de que o curso do vir-a-ser destroacutei tudo sem nenhum sentido redentor eacute levado a um instado de inaniccedilatildeo similar a Hamlet A este algueacutem enojaria a accedilatildeo pois entenderia que o ser humano eacute incapaz de modificar a eterna natureza padecente das coisas Restaria

1 Doutorando Instituiccedilatildeo Universidade federal do Paranaacute (UFPR)

Para que sofrer Acerca do problema do

116

entatildeo apenas mascarar esse conhecimento com alguma ilusatildeo mediante a qual se possa viver num mundo de tormentos irreparaacuteveis Para Kain no entanto Nietzsche estaria preocupado em romper com esse modus operandi ao buscar a possibilidade de afirmar o sofrimento sem sentido Eacute na noccedilatildeo de ldquoterror e horror da existecircnciardquo que estaria o marco fundamental da empreitada filosoacutefica nietzschiana Por isso o inteacuterprete sustenta que aquela noccedilatildeo possui ldquoum profundo efeito no seu [de Nietzsche] pensamento aliaacutes que ele natildeo pode ser adequadamente entendido sem olhar a centralidade desse conceitordquo (KAIN 2007 p50) O autor passa entatildeo a desdobrar suas consequecircncias filosoacuteficas para o pensamento do eterno retorno e do amor fati com foco para suas formulaccedilotildees nrsquoA gaia ciecircncia e em Ecce Homo

O que eacute importante destacar na interpretaccedilatildeo de Philip Kain eacute a presenccedila drsquoO Nascimento da Trageacutedia como referencial teoacuterico basilar da sua argumentaccedilatildeo Nesta obra Nietzsche trabalha de fato com uma noccedilatildeo de sofrimento entendido como ocorrecircncia destituiacuteda de sentido Trata-se de uma noccedilatildeo de sofrimento bastante peculiar que natildeo o define mas ao contraacuterio justamente lhe retira todo conteuacutedo Kain se aproveita dessa vagueza semacircntica para se deslocar indiscriminadamente pelas obras e conceitos de Nietzsche Isso que pareceria uma vantagem eacute na verdade o que prejudica sua interpretaccedilatildeo Os pressupostos teoacutericos da obra de 1872 pelos quais Nietzsche estabelece a ideia de um sofrimento sem sentido inerente ao vir-a-ser estatildeo embebidos de elementos metafiacutesicos que o filoacutesofo rejeitaraacute jaacute a partir de Humano demasiado humano uma noccedilatildeo schopenhauriana de efetividade mesclada a um modelo hegeliano de uma dialeacutetica constitutiva do mundo nos impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco (EH O nascimento da trageacutedia 1) Se Nietzsche ainda fala de sofrimento sem sentido por exemplo na terceira dissertaccedilatildeo da Genealogia da Moral natildeo eacute mais fundamentado num substrato metafiacutesico O filoacutesofo tem em 1887 no seu arcabouccedilo teoacuterico uma conjuntura natildeo metafiacutesica de pensamento a fisio-psicologia de seu tempo a morte de Deus e o meacutetodo genealoacutegico Aqui o sem-sentido natildeo adveacutem mais do fundo metafiacutesico de um suposto Uno-primordial mas do proacuteprio esvaziamento e descreacutedito do pensamento metafiacutesico A insistecircncia de Philip Kain em definir o sofrimento como ocorrecircncia sem sentido a partir irrestritamente dos pressupostos teoacutericos drsquoO nascimento da trageacutedia fica por isso bastante comprometida

2 A interpretaccedilatildeo de Christopher JanawayChristopher Janaway por sua vez se propotildee a discutir se Nietzsche estaacute de algum

modo engajado com um empreendimento teoacuterico de teodiceia que visa justificar a ocorrecircncia do sofrimento no mundo Em seu artigo On the very idea of justifying suffering (2017) o inteacuterprete sustenta que a reflexatildeo nietzschiana sobre o sofrimento se situa fora de uma tradiccedilatildeo que procurou justificar o sofrimento no mundo seja enquanto teodiceia seja como teleologia laica Considerando as consequecircncias da morte de Deus e conduzindo sua filosofia com um declarado pendor anti-moral Nietzsche abandonaria a questatildeo da significaccedilatildeo uacuteltima do sofrimento ndash ainda presente na ideia de uma justificaccedilatildeo esteacutetica da existecircncia ndash em favor da adoccedilatildeo de uma abordagem psicoloacutegica que particulariza a ocorrecircncia do sofrimento Assim Nietzsche passaria a indagar pelo valor do sofrimento relativamente agraves vivecircncias de um indiviacuteduo e natildeo mais por um valor em-si

Apoacutes delinear a reflexatildeo nietzschiana no acircmbito psicoloacutegico Janaway em Attitudes to suffering Parfit and Nietzsche (2016) apresenta um Nietzsche que recusa concepccedilotildees

Hailton Felipe Guiomarino

117

normativas e objetivas destinadas a definir um valor em si para o sofrimento2 Tomando por base o aforismo 338 drsquoA gaia ciecircncia o inteacuterprete entende que isoladamente o sofrimento natildeo eacute objeto das reflexotildees de Nietzsche Natildeo haveria algo que isoladamente fosse intrinsecamente produtor de sofrimento nem que fosse mal Apenas dentro da interconexatildeo orgacircnica das vivecircncias de um indiviacuteduo o sofrimento poderia ser devidamente apreciado Na economia subjetiva das vivecircncias algo pode vir a valer como sofrimento e assumir um valor positivo ou negativo conforme puder ser assimilado pelo indiviacuteduo No interior da narrativa de uma vida pessoal o sofrimento poderia ensejar o a potencializaccedilatildeo das forccedilas de um indiviacuteduo pela superaccedilatildeo de adversidades Janaway (2016 p13-18) cunha a expressatildeo ldquocrescimento atraveacutes do sofrimentordquo (growth throught suffering) para mostrar como o sofrimento pode reconfigurar as atitudes e o entendimento de um indiviacuteduo de um modo que seja significativo para este Janaway tem em vista fenocircmenos como desenvolvimento da autonomia do aprendizado a obtenccedilatildeo de profundidade teoacuterica o aprimoramento de capacidades pessoais aleacutem do desenvolvimento de um senso de autodisciplina para estabelecer metas pessoais de vida (idem p 15)

Natildeo obstante sua criatividade e agudeza conceitual o perigo da argumentaccedilatildeo de Janaway consiste em transparecer a ideia de que ao rejeitar uma normatividade moral ou metafiacutesica Nietzsche se situaria imediatamente e tatildeo somente no restrito acircmbito de consideraccedilotildees psicoloacutegicas sobre o sofrimento Ao entender as muacuteltiplas ocorrecircncias do sofrimento (dor fiacutesica sentimentos de culpa desgosto perda solidatildeo desapontamento doenccedila revezes catastroacuteficos etc) somente na medida em que podem ser traduzidas para uma semacircntica psicoloacutegica Janaway perde de vista que Nietzsche tambeacutem desenvolveu 1) consideraccedilotildees histoacutericas sobre o sofrimento Por exemplo no aforismo 18 de Aurora ao mostrar que na eacutepoca da ldquomoralidade do costumerdquo o sofrimento era indispensaacutevel para agradar aos deuses e com isso conseguir a prosperidade da comunidade Aqui natildeo havia qualquer preocupaccedilatildeo em buscar um sentido para o sofrimento nas vivecircncias de um indiviacuteduo 2) consideraccedilotildees fisioloacutegicas como aquelas encontradas nos prefaacutecios de 1886 no aforismo 370 drsquoA gaia ciecircncia e na anaacutelise do sacerdote asceacutetico 3) por fim tambeacutem consideraccedilotildees esteacuteticas e artiacutesticas como aquelas ligadas ao tema da criaccedilatildeo em Assim falou Zaratustra ou agrave estilizaccedilatildeo da narrativa de si feita em Ecce Homo na qual Nietzsche confere um sentido para o seu sofrimento enquanto destino da humanidade

3 A interpretaccedilatildeo e Bernard ReginsterJaacute Bernard Reginster em seu livro The Affirmation of Life Nietzsche on overcoming

niilismo (2008) nas seccedilotildees dedicadas a expor o que entende por ldquoeacutetica do poderrdquo (p 176-196) elabora uma definiccedilatildeo de sofrimento em Nietzsche com base na noccedilatildeo de vontade de poder e em remissatildeo ao projeto de transvaloraccedilatildeo de todos os valores O inteacuterprete sustenta que identificar o valor positivo do sofrimento constitui o foco do projeto nietzschiano da transvaloraccedilatildeo Pois tomando como base em BM 225 e GC 338 e HH I 235 o caraacuteter distintivo da moral que Nietzsche critica seria a condenaccedilatildeo intransigente do sofrimento ao valoraacute-lo como necessariamente mal como ldquoobjeccedilatildeo agrave existecircnciardquo Desse modo mostrar que Nietzsche ressignifica o sofrimento e o reveste com um valor positivo seria na interpretaccedilatildeo de Reginster o preacute-requisito para realizar a transvaloraccedilatildeo (idem p 229-235)

2 O ponto de vista de Christopher Janaway apresentado neste paraacutegrafo tambeacutem eacute apresentado no seu artigo citado anteriormente Todavia optou-se por considera-lo tal qual aparece no artigo de 2016 haja vista estar mais exten-samente desenvolvido neste uacuteltimo Natildeo obstante o outro artigo tambeacutem foi utilizado para sopesar alteraccedilotildees na argumentaccedilatildeo e efetuar comparaccedilotildees em vista de explicitar melhor a interpretaccedilatildeo de Janaway

Para que sofrer Acerca do problema do

118

A base teoacuterica desta ressignificaccedilatildeo estaria na hipoacutetese da vontade de poder Nesta uma forccedila busca sempre superpotencializar o seu grau de poder Para tal ela requer outra forccedila que lhe oponha resistecircncia O aumento do poder viria da superaccedilatildeo dessa resistecircncia na dominaccedilatildeo da forccedila opositora Reginster define o sofrimento como sendo precisamente esta resistecircncia que uma forccedila encontra na sua busca por ampliaccedilatildeo de poder (idem p 177) Outras variantes dessa definiccedilatildeo trazem as seguintes formulaccedilotildees sofrimento como ldquoa experiecircncia de resistecircncia agrave satisfaccedilatildeo dos desejosrdquo (idem p 233) e sofrimento como se referindo ldquoao desprazer que resulta da resistecircncia agrave satisfaccedilatildeo de nossos desejosrdquo (idem p 234)

A interpretaccedilatildeo do sofrimento como resistecircncia teria implicaccedilotildees eacuteticas que para Reginster estatildeo sinteticamente esboccediladas em AC sect2 ldquoO que eacute bomrdquo pergunta Nietzsche neste paraacutegrafo ldquotudo o que eleva o sentimento de poder a vontade de poder o proacuteprio poder no homemrdquo Em seguida continua ldquoO que eacute mau mdash Tudo o que vem da fraqueza O que eacute felicidade mdash O sentimento de que o poder cresce de que uma resistecircncia eacute superadardquo Para o inteacuterprete Nietzsche apresentaria aqui uma ldquoeacutetica do poderrdquo na qual o valor ldquobomrdquo eacute definido pela superaccedilatildeo da resistecircncia Assim se a elevaccedilatildeo de poder eacute valorada como boa entatildeo a resistecircncia tambeacutem precisa secirc-lo pois esta eacute condiccedilatildeo daquela Disso se segue que se resistecircncia eacute sofrimento entatildeo no registro teoacuterico da vontade de poder o sofrimento eacute valorado como bom Nesse registro teoacuterico jaacute ocorreria uma transvaloraccedilatildeo dos valores no tocante ao sofrimento Agora este natildeo eacute mais um mero complemento acidental ou condiccedilatildeo instrumental para a felicidade mesmo que concebida nos termos de uma eacutetica do poder Nas palavras de Reginster ldquoDo ponto de vista da eacutetica do poder o sofrimento natildeo eacute algo pelo qual sob as circunstacircncias deste mundo os indiviacuteduos tem que passar em vista de serem felizes mas ao contraacuterio eacute parte do que compotildee sua proacutepria felicidaderdquo (idem p 231)

O que eacute criticaacutevel na interpretaccedilatildeo de Reginster eacute o protagonismo teoacuterico que ele confere agrave sua definiccedilatildeo de sofrimento a fim de tornar possiacutevel a transvaloraccedilatildeo de todos os valores Natildeo parece ser assim que o proacuteprio Nietzsche pensou seu projeto No final de BM 225 o filoacutesofo diz que existem problemas mais elevados que prazer sofrimento e compaixatildeo Isso natildeo quer dizer que estes temas natildeo necessitem de consideraccedilotildees filosoacuteficas Quer dizer antes que coloca-los em primeiro plano eacute uma ingenuidade pois eles pressupotildeem questotildees mais substanciais O projeto da transvaloraccedilatildeo se voltaria entatildeo para o desmonte daqueles valores pelos quais foi imposto ao vir-a-ser algum tipo de teleologia a fim de denunciar sua proveniecircncia numa constituiccedilatildeo fisio-psicoloacutegica doentia que culpabiliza a existecircncia pela ocorrecircncia do sofrimento A criacutetica aos valores negadores da vida natildeo parece necessitar de uma re-conceituaccedilatildeo do sofrimento Pois o problema natildeo estaacute no sofrimento inerente ao vir-a-ser mas nos valores que o interpretam Isso mostra que Nietzsche natildeo estaacute preocupado com a conceituaccedilatildeo do sofrimento mas sim com o sentido que ele recebe numa dada interpretaccedilatildeo Eacute mais importante mostrar a falecircncia de um padratildeo interpretativo que necessitava buscar fora do mundo uma razatildeo metafiacutesica para redimir o sofrimento terreno Desfeita essa ilusatildeo soacute resta aprender a afirmar o sofrimento inerente ao mundo Se isto se faz por uma nova conceituaccedilatildeo do sofrimento essa eacute uma questatildeo secundaacuteria e que depende primeiramente do desmonte de antigos e perniciosos sentidos ideais para a existecircncia

No mais ao centrar sua definiccedilatildeo de sofrimento no conceito de vontade de poder a interpretaccedilatildeo de Bernard Reginster seria quando muito uma interpretaccedilatildeo sustentaacutevel

Hailton Felipe Guiomarino

119

apenas para o periacuteodo teoacuterico no qual Nietzsche reconfigura suas teses a partir do seu conceito interpretativo de todo acontecer Ler com essas lentes os pensamentos de Nietzsche sobre sofrimento anteriores ao periacuteodo do surgimento do conceito de vontade de poder e do projeto de transvaloraccedilatildeo se torna portanto insustentaacutevel e ilegiacutetimo

4 Da questatildeo do conceito para a preocupaccedilatildeo com o sentido do sofrimentoDiante das criacuteticas agraves interpretaccedilotildees acima apresentadas propotildee-se a interpretaccedilatildeo

segundo a qual os impasses de uma definiccedilatildeo conceitual de sofrimento em Nietzsche se devem a uma preocupaccedilatildeo filosoacutefica mais fundamental de seu pensamento a questatildeo do sentido do sofrimento a qual dificulta a conceituaccedilatildeo por razotildees de ordem fisio-psicoloacutegica3

Em uma anotaccedilatildeo pessoal o fragmento poacutestumo 14 [89] da primavera de 1888 Nietzsche apresenta aquilo que chamou de problema do sentido do sofrimento O pano de fundo da formulaccedilatildeo do problema eacute a contraposiccedilatildeo entre os simbolismos do deus Dioniso e do Crucificado A cada um satildeo imputadas valoraccedilotildees antagocircnicas da vida na medida em que respondem diferentemente ao sofrimento inerente ao movimento de vir-a-ser da proacutepria vida Nos termos do fragmento

Dioniso contra o ldquoCrucificadordquo aqui vocecircs tecircm a oposiccedilatildeo Natildeo eacute uma diferenccedila em termos de martiacuterio - eacute soacute que o mesmo tem um sentido diferente A vida mesma sua eterna fertilidade e retorno implica o tormento a destruiccedilatildeo a vontade de aniquilaccedilatildeo No outro caso o sofrimento o ldquocrucificado como inocenterdquo vale como uma objeccedilatildeo a essa vida como foacutermula de sua condenaccedilatildeo Decifra-se o problema eacute o do sentido do sofrimento ou um sentido cristatildeo ou um sentido traacutegico No primeiro caso ele deve ser o caminho para uma existecircncia bem-aventurada (selig) no uacuteltimo a existecircncia vale como suficientemente bem-aventurada (selig) para justificar uma imensa quantidade de sofrimentoO ser humano traacutegico afirma inclusive o sofrimento mais aacutespero eacute bastante forte pleno deificante para fazecirc-loO cristatildeo nega inclusive o mais feliz dos destinos sobre a Terra eacute bastante fraco pobre deserdado para sofrer ainda em toda forma de vidaldquoO Deus na cruzrdquo eacute uma maldiccedilatildeo contra a vida uma indicaccedilatildeo para libertar-se delaO Dioniso cortado em pedaccedilos eacute uma promessa de vida esta eternamente renasceraacute e da destruiccedilatildeo retornaraacute (eKGWB FP 1888 14 [89] traduccedilatildeo nossa)

Assim apresentados Dioniso e o Crucificado satildeo duas formas opostas de valoraccedilatildeo da vida a partir da interpretaccedilatildeo do sofrimento O deus grego ao simbolizar o movimento ciacuteclico de destruiccedilatildeo e criaccedilatildeo da vida seria o siacutembolo maior de afirmaccedilatildeo desta porque expressaria em maacuteximo grau o incessante movimento de renovaccedilatildeo da proacutepria vida Para que seja possiacutevel este movimento natildeo soacute eacute necessaacuterio mas desejaacutevel o sofrimento implicado na destruiccedilatildeo de tudo o que eacute O que equivale a dizer para que haja mudanccedila deve haver o 3 A temaacutetica do sentido do sofrimento enquanto horizonte teoacuterico comum das reflexotildees nietzschianas sobre sofrimen-

to foi abordada na dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada ldquoO problema do sentido do sofrimento em Nietzscherdquo Aqui limita-se a explicitar a temaacutetica tal como aparece no periacuteodo de 1886-1888 por julgar-se que aiacute Nietzsche apresenta as razotildees pelas quais natildeo um ou outro sentido do sofrimento eacute problemaacutetico mas o ato mesmo de dar sentido ao so-frimento eacute em si problemaacutetico Com isso o tema do sentido se destacaria como a preocupaccedilatildeo geral de suas reflexotildees sobre o sofrimento

Para que sofrer Acerca do problema do

120

perecimento de um estado estaacutevel sendo o sofrimento o colapso dessa estabilidade Desse modo no siacutembolo do Dioniso o sofrimento jaacute estaria justificado na e pela proacutepria vida

Na contramatildeo o Crucificado simbolizaria a incapacidade de afirmar o sofrimento inerente ao movimento de vir-a-ser acabando por avaliaacute-lo como objeccedilatildeo agrave vida Em decorrecircncia desse movimento interpretativo construir-se-iam ideais que buscariam ocultar ou corrigir o vir-a-ser O ldquoDeus na cruzrdquo seria seu exemplo por excelecircncia na medida em que supotildee a ficccedilatildeo de um aleacutem-mundo considerado perfeito eterno estaacutevel e indolor Medindo a vida a partir desse ideal o sofrimento ganha um sentido Ele deve ser um instrumento para alcanccedilar aquela existecircncia num aleacutem-mundo Isto eacute o sofrimento rdquodeve ser o caminho para uma existecircncia bem-aventurada (selig)rdquo Somente assim ele justifica a existecircncia O sentido do sofrimento apontado pelo ideal torna a vida suportaacutevel porque ela seraacute compensada numa existecircncia no aleacutem Desse modo a vida natildeo eacute afirmada mas meramente aceita

Em ambos os casos o sofrimento eacute colocado como instacircncia decisiva para avaliaccedilatildeo da vida A resposta que se daacute ao sofrimento inerente ao movimento do vir-a-ser seraacute ou um sentido cristatildeo ou um sentido traacutegico No aforismo 370 drsquoA gaia ciecircncia Nietzsche jaacute havia trabalhado com a noccedilatildeo de que toda filosofia e toda arte pressupotildee sofredores e satildeo efetivamente a resposta idiossincraacutetica destes em relaccedilatildeo ao sofrimento inerente agrave vida Esse tipo de consideraccedilatildeo eacute no entanto introduzida fundamentalmente um ano antes nos prefaacutecios de 1886 Neste conjunto de textos em particular nos paraacutegrafos 2 e 3 do prefaacutecio a A gaia ciecircncia Nietzsche trata de filosofias que manifestam em suas proposiccedilotildees ou sauacutede ou doenccedila Ele passa a indagar natildeo mais pela verdade ou falsidade de um pensamento mas pela sua sauacutede ou doenccedila Interessa ao filoacutesofo saber sob que condiccedilotildees vitais uma dada interpretaccedilatildeo foi engendrada e que anseios ela visa responder Em 1887 Nietzsche prossegue esse modo de questionamento Ele o transforma numa ldquoheuriacutestica da necessidaderdquo e esquematiza expressotildees filosoacuteficas e artiacutesticas que nascem da superabundacircncia ou do empobrecimento de vida (GC 370) e o utiliza tambeacutem como parte do meacutetodo genealoacutegico para sondar as condiccedilotildees de emergecircncia da interpretaccedilatildeo asceacutetico-sacerdotal do sofrimento (GM III)

Esses textos de 1886-87 testemunham a preocupaccedilatildeo de Nietzsche em buscar no sofrimento a necessidade que comanda por traacutes de uma resposta saudaacutevel ou doente A terceira dissertaccedilatildeo da Genealogia da moral eacute decisiva a esse respeito Ela explicita a gecircnese de uma interpretaccedilatildeo asceacutetica do sentido De posse dela Nietzsche conhece as condiccedilotildees fisioloacutegicas pelas quais um sentido ideal eacute produzido Ela eacute obrigada a se posicionar ante a incontornaacutevel realidade do sofrimento sem sentido Eacute para domaacute-lo de alguma maneira que o ser humano eacute levado a instaurar um sentido A falta de sentido por sua vez eacute um problema imperioso que surge a partir do marco existencial da morte de Deus Quando as instacircncias suprassensiacuteveis natildeo mais podem ser consideradas paracircmetros de valor para auferir o sentido da existecircncia resta apenas a proacutepria vida terrena Na totalidade desta eacute o sofrimento o ponto crucial que decidiraacute o valor da vida e o sentido da existecircncia pois eacute ele que decidiraacute em uacuteltima instacircncia a continuidade de um indiviacuteduo na vida pela afirmaccedilatildeo dionisiacuteaca desta ou sua fuga dela num ideal

Preocupado com as condiccedilotildees fisio-psicoloacutegicas de surgimento das interpretaccedilotildees natildeo interessa tanto a Nietzsche saber como um pensador conceitua algo nem a verdade do conceito mas porque e para que ele precisa conceituar do modo como o faz Esta

Hailton Felipe Guiomarino

121

preocupaccedilatildeo com o ldquopara querdquo com a meta e a proveniecircncia eacute a preocupaccedilatildeo com o sentido Desse modo o sentido natildeo eacute uma questatildeo secundaacuteria que dependeria da conceituaccedilatildeo mas o contraacuterio O conceito dependeraacute das necessidades oriundas de constituiccedilotildees fisio-psicoloacutegicas especiacuteficas A necessidade (Beduumlrfnis) seraacute decisiva para determinar tanto a forma do sentido do sofrimento ideal ou fluido como para determinar o proacuteprio conteuacutedo desse sentido E isto justamente porque a necessidade seraacute entendida por Nietzsche como sendo ou um sintoma de fraqueza ou de forccedila fisio-psicoloacutegica Isso incide diretamente na questatildeo se o sofrimento eacute por exemplo algo a ser evitado ou apropriado como estimulante se eacute um aspecto horroroso a ser abolido ou obstaacuteculo que a vontade de poder busca para sua auto-superaccedilatildeo se seraacute moralizado como puniccedilatildeo asceacutetica ou se seraacute inocentado e estetizado Com esse olhar Nietzsche eacute mais um diagnosticador que um conceituador Eacute mais fundamental para ele responder a perguntas como que condiccedilotildees vitais impelem que o sofrimento seja interpretado a partir de uma instacircncia suprassensiacutevel E consequentemente que tipo de vida se constitui a partir dessa necessidade

Diante disso sustenta-se que a disparidade interpretativa encontrada nos inteacuterpretes analisados se deve ao fato de que Nietzsche natildeo estaacute preocupado com a conceituaccedilatildeo do sofrimento mas sim com o problema do seu sentido Natildeo se afirma com isso que natildeo haja um conceito de sofrimento em Nietzsche ou que seja impossiacutevel elaborar um Defende-se isto sim que essa empreitada precisa passar pela temaacutetica do sentido do sofrimento pois ela aponta para um perspectivismo interpretativo ligado agraves condiccedilotildees fisiopsicoloacutegicas de resposta ao sofrimento o que impossibilita uma definiccedilatildeo uacuteltima

Para que sofrer Acerca do problema do

122

Referecircncias bibliograacuteficasJANAWAY Christohper Attitudes to suffering Parfit and Nietzsche In Inquiry Na Interdisciplinary Journal of Philosophy v 60 n1-2 p 66-95 2016_____ On the very ideia of ldquojustifying sufferingrdquo In Journal of Nietzsche Studies v 48 n 2 p 152-170 2017KAIN Philip Nietzsche the eternal recurrence and the horror of existence In The Journal of Nietzsche Studies n 33 p49-63 2007NIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2012_____ Aleacutem do bem e do mal Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2005_____ Aurora Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2016_____ Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB) Disponiacutevel em lt httpwwwnietzschesourceorgeKGWB gt_____ Humano demasiado humano Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2006_____ Ecce homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995_____ Fragmentos poacutestumos volumen IV (1885-1889) Traduccedilatildeo de Juan Luis Vermal e Joan B LLinares Madrid Tecnos 2008_____ Genealogia da moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ O anticristo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007_____ O nascimento da trageacutedia Traduccedilatildeo de J Guinsburg Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992REGINSTER Bernard The affirmation of life Nietzsche on overcoming niilism Estados Unidos Harvard University Press 2008

Isabella Vivianny Santana Heinen

123

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche O uacuteltimo homem e o aleacutem-do-homem

Isabella Vivianny Santana Heinen1

Este ensaio pretende desenvolver uma possibilidade de interpretaccedilatildeo do uacuteltimo homem e do aleacutem-do-homem atraveacutes da perspectiva criacutetica das constituiccedilotildees morais estabelecidas por Nietzsche na sua fase madura especificamente na obra Assim Falou Zaratustra Em tal obra Nietzsche faz uso de uma nova forma de escrita Inovadora ateacute mesmo no que se refere ao estilo aforismaacutetico adotado a partir de Humano demasiado humano Todavia eacute importante atentar para o fato de haver certo caacutelculo temaacutetico no que se refere a estes escritos com respeito agrave Assim Falou Zaratustra Eacute no final do quarto livro ndash e inicialmente uacuteltimo ndash de A Gaia Ciecircncia que o filoacutesofo apresenta primeiramente o personagem Zaratustra De acordo com a compreensatildeo da estrutura da obra Assim Falou Zaratustra empreendida por Andreacutes Sanchez Pascual o personagem Zaratustra viveu no seacuteculo VI ac Destaca-se que Nietzsche ao usar essa figura persa procura se afastar tal qual no iniacutecio das raiacutezes da filosofia grega da tradiccedilatildeo racionalista socraacutetico-platocircnica Haacute uma conhecida menccedilatildeo de Nietzsche a esse tema em Ecce homo elucidando que Assim Falou Zaratustra eacute o primeiro a estabelecer a dicotomia entre Bem e Mal e por isso deve ser aquele que pode superar esta separaccedilatildeo Conforme observa-se

Natildeo se indagou de mim como se deveria indagar qual eacute justamente na minha boca na boca do primeiro imoralista o significado do nome Zaratustra de facto o que constitui a unicidade tremenda daquele persa na histoacuteria eacute precisamente o contraacuterio em relaccedilatildeo a mim Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal o mecanismo genuiacuteno na engrenagem das coisas ndash a translaccedilatildeo da moral em metafiacutesica da moral como forccedila causa fim em si eacute a sua obra Mas esta pergunta seria no fundo jaacute a resposta Zaratustra criou este erro pejado de consequecircncias fatais a moral por conseguinte deve tambeacutem ser o primeiro a reconhececirc-lo (NIETZSCHE 2003 p 27)

Com Zaratustra2 o filoacutesofo teria a intenccedilatildeo de explorar uma forma diferenciada de filosofia destacando atraveacutes deste singular personagem uma maneira de transgressatildeo a ideia moral e metafiacutesica de entendimento do mundo pois o proacuteprio arranjo deste livro indica sua construccedilatildeo por imagens narrativas progressotildees histoacutericas e inclusive por um fazer

1 Universidade do Estado do Paraacute2 Segundo Viesenteiner (2013) Nietzsche apresenta seus pensamentos filosoacuteficos sem valer-se de um modo sistemaacuteti-

co e padronizado por isso mesmo natildeo deve-se ler a obra ZaZA como uma doutrina ou ainda um modelo universal de determinaccedilatildeo moral do homem A obra precisa ser interpretada segundo sua proacutepria forma musical em que cada leitor encontra para si um caminho

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche o

124

poeacutetico Mais uma vez evidenciando o distanciamento de uma escrita ou um pensamento dogmaacutetico regados por uma loacutegica obstinada a atingir a verdade

Os argumentos impressos nessa obra refletem uma linguagem que natildeo tem como fundamento dizer a verdade ou revelar uma compreensatildeo conceitual do mundo mas proporcionar uma maneira de expressatildeo diferente do posicionamento do homem ocidental

Roberto Machado (1999) salienta que Nietzsche propunha uma nova forma de filosofar a partir de moldes antagocircnicos ao dos estabelecidos desde o racionalismo socraacutetico ou seja o filoacutesofo em questatildeo tratou de questotildees filosoacuteficas com uma nova forma de seriedade decorrente de sua discordacircncia com referecircncia a expressatildeo de um modo impositivo do racionalismo e da metafiacutesica A concepccedilatildeo da alegre ciecircncia expressa precisamente este aspecto ela se propotildee a associar o rigor cientiacutefico com a possibilidade experimental de formas e interpretaccedilotildees proacuteprias da arte tendo em vista a formulaccedilatildeo de novas possibilidades de interpretaccedilatildeo da efetividade

Em vista disso no Proacutelogo de Assim Falou Zaratustra Nietzsche por intermeacutedio do discurso empreendido pelo profeta assinala

Todos os seres ateacute agora criaram algo acima de si proacuteprios e voacutes quereis ser a vazante dessa grande mareacute e antes retroceder ao animal do que superar o homem Que eacute o macaco para o homem Uma risada ou dolorosa vergonha Exatamente isso deve o homem ser para o super-homem uma risada ou dolorosa vergonha Fizestes o caminho do verme ao homem e muito em voacutes ainda eacute verme Outrora fostes macacos e ainda agora o homem eacute mais macaco do que qualquer macaco (NIETZSCHE 2011 p 12)

O filoacutesofo nessa passagem nos permite fazer uma analogia entre o animal e o uacuteltimo homem no sentido de os entender como uma vazante que se intitula inferior que necessita criar algo sobre-humano por ser incapaz de superar a si mesmo

Deste modo o homem se comporta como um verdadeiro animal pois apesar de sua racionalidade age com toda a animalidade pois usa sua razatildeo como instrumento de destruiccedilatildeo de consumaccedilatildeo de uma mentalidade que visa o desenvolvimento normatizado de suas forccedilas naturais A exemplificaccedilatildeo dessa compreensatildeo de homem eacute explorada por Nietzsche em sua obra posterior Aleacutem do bem e do mal

No homem se encontram reunidos a criatura e o criador no homem estaacute a mateacuteria isto eacute o incompleto o supeacuterfluo isto eacute a argila o lodo o absurdo o caos mas no homem tambeacutem estaacute o sopro que cria que plasma isto eacute a dureza do martelo quer dizer o espectador a divina contemplaccedilatildeo do seacutetimo dia observai o contraste entre vossa compaixatildeo que eacute a revolta da ldquocriatura que haacute no homemrdquo isto eacute aquilo que deve ser plasmado estampado batido como o ferro afinado passado pelo fogo e purificado mdash aquilo que deve e eacute constrangido a sofrer e a nossa compaixatildeo (NIETZSCHE 1992 p 98)

Segundo esse ponto de vista o homem eacute caracterizado por Nietzsche como aquele capaz de criar de reinventar de organizar e tambeacutem provocar o caos isto eacute o homem natildeo possui uma definiccedilatildeo estaacutetica ele estaacute inserido em um campo interpretativo em que ora eacute um ora eacute outro ou ainda os dois ao mesmo tempo Seus atributos constituem um sistema de forccedilas que se rompem e se ligam afirmando assim seu movimento sua possibilidade de alteraccedilatildeo

Isabella Vivianny Santana Heinen

125

Este conflito no entanto antes de estabelecer uma contraposiccedilatildeo de cunho negativo instituir-se-ia como um estaacutegio de realizaccedilatildeo do homem E que para Nietzsche em Assim Falou Zaratustra a noccedilatildeo de homem jaacute expressava essas nuances conforme observa ldquoeacute uma corda atada entre o animal e o super-homem ndash uma corda sobre um abismo [] Grande no homem eacute ser ele uma ponte e natildeo um objetivo o que pode ser amado no homem eacute ser ele uma passagem e um decliacuteniordquo (NIETZSCHE 2011 p 13) Neste acircmbito o homem natildeo eacute definido ou conceituado tatildeo pouco eacute somente um estado limiacutetrofe Ele perpassa inuacutemeras variaccedilotildees entre sua constituiccedilatildeo humana cujo decliacutenio eacute compreendido como transiccedilatildeo tracircnsito pois Nietzsche sugere uma outra conotaccedilatildeo para essa proposiccedilatildeo ldquoAmo aquele que trabalha e inventa para construir a casa para o super-homem e lhe preparar terra bicho e planta pois assim quer o seu decliacutenio Amo aquele que ama a sua virtude pois virtude eacute vontade de decliacutenio e uma flecha de anseiordquo (NIETZSCHE 2011 p 13) Ou seja o processo do homem de maleabilidade eacute sua forccedila seu impulso de virtude seu decliacutenio eacute a chance de mostrar toda a sua grandeza

Em tal medida eacute exposto por Zaratustra um modo de rebaixamento indicado pela figura do uacuteltimo homem conforme podemos verificar nas seguintes passagens ldquo[] aproxima-se o tempo em que o homem jaacute natildeo daraacute agrave luz nenhuma estrela [] Aproxima-se o tempo do homem mais despreziacutevel que jaacute natildeo sabe desprezar a si mesmordquo (NIETZSCHE 2011 p 14) reitera em seguida ldquoa terra se tornou pequena entatildeo e nela saltita o uacuteltimo homem que tudo apequena Sua espeacutecie eacute inextinguiacutevel como o pulgatildeo o uacuteltimo homem eacute o que tem vida mais longardquo (NIETZSCHE 2011 p 14) Essas consideraccedilotildees acerca do uacuteltimo homem corroboram para a inferecircncia de que essa tipologia humana reverbera a espeacutecie mais nociva do homem pois impotildee sua existecircncia tanto na incapacidade de criaccedilatildeo quanto na incapacidade de reconhecer suas proacuteprias limitaccedilotildees por orgulhar-se de sua vida confortavelmente segura

Nietzsche destaca ainda que ldquoldquoNoacutes inventamos a felicidaderdquo ndash dizem os uacuteltimos homens e piscam o olho Eles deixaram as regiotildees onde era duro viver pois necessita-se de calor Cada qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega pois necessita-se de calorrdquo (NIETZSCHE 2011 p 14) Este homem manteacutem sua existecircncia nos pequenos prazeres na ideia de felicidade pautada em um ideal mediacuteocre de fixidez e ausecircncia de infortuacutenios Com isso o homem quer garantir sua proacutepria vida ao relacionar-se com outros de sua espeacutecie preservar sua existecircncia ao comunicar-se e essa relaccedilatildeo muacutetua eacute a mais simples e comum na vida em sociedade cujo cerne eacute a vida gregaacuteria habituando-se aos conceitos e valores jaacute instaurados

Felizmente o mundo natildeo se edifica sobre instintos em que o animal de rebanho apenas bonacheiratildeo encontra a sua estreita felicidade exigir que todo laquoo homem bomraquo um animal gregaacuterio tenha olhos azuis seja beneacutevolo tenha uma laquobela almaraquo ndash ou como deseja o Sr Herbert Spencer que se torne altruiacutesta seria tirar agrave existecircncia a sua caracteriacutestica maior significaria castrar a humanidade e fazecirc-la descer a uma miseraacutevel chinesice ndash E foi o que se tentou Eis o que justamente se denominou moral Nesse sentido Zaratustra chama aos bons ora laquoos uacuteltimos homensraquo ora o laquocomeccedilo do fimraquo acima de tudo considera-os como a mais prejudicial espeacutecie de homens porque levam avante a sua existecircncia tanto agrave custa da verdade como do futuro (NIETZSCHE 2000 p 17)

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche o

126

Essa figura nietzschiana expressa um homem sem anseios proacuteprios sem vontade de criaccedilatildeo uma figura rebaixada que para se desenvolver precisa sempre de uma constituiccedilatildeo democraacutetica capaz de determinar suas accedilotildees ou seja uma tipologia que encontra no estudo genealoacutegico de Nietzsche forma cabal no tipo escravo engendrado pela moral do escravo Este tipo toma fundamentaccedilatildeo praacutetica no homem gregaacuterio moderno pois em conformidade com Giacoia ldquoeacute nessa imbricaccedilatildeo entre a ideologia do igualitarismo uniforme e sua fundamentaccedilatildeo poliacutetico-religiosa pela moral cristatilde que se esclarece o significado da figura nietzschiana do ldquouacuteltimo-homemrdquordquo (GIACOIA 2002 p 18)

Este tipo nivela-se por depender do instinto gregaacuterio se auto-afirmando somente como integrante de uma coletividade a sua altivez soacute se estabelece em bando transferindo a causa de sua solidatildeo e anguacutestia a outros Este tipo amplamente criticado pelo filoacutesofo sente o pesar da vida moderna a frustraccedilatildeo da incapacidade que acredita ser provocada pelo sistema social em que eacute constituinte simplesmente natildeo se responsabiliza conforma-se Para ele a vida eacute isso mesmo

Neste sentido a perspectiva de interpretaccedilatildeo adotada no que tange a caracterizaccedilatildeo do uacuteltimo homem diz respeito a uma postura contraacuteria a afirmaccedilatildeo da vida proveniente do conflito com seu tempo que tem a moralidade e a razatildeo como forma de esgotamento Essa tipologia se desloca como defensora dos costumes e valores constituiacutedos pois alegra-se com as pequenas realizaccedilotildees do cotidiano se deixa subordinar pelas tarefas exigidas em sociedade pela aprendizagem fornecida e por sua vez natildeo consegue se distanciar das amarras da tradiccedilatildeo Age como se essa significasse a uacutenica forma possiacutevel de vida seu modo de manifestaccedilatildeo ocorre por conveniecircncia jaacute que natildeo consegue se organizar sem as determinaccedilotildees estabelecidas

O uacuteltimo homem por conseguinte reflete exatamente o homem da modernidade porque ele natildeo eacute capaz de rebaixar a si mesmo e verificar o que eacute baixo em sua proacutepria natureza Sendo justamente em funccedilatildeo disso que Nietzsche propotildee uma superaccedilatildeo deste homem e nos sugere o aleacutem-do-homem

Por isso conforme destaca-se Nietzsche indica o aleacutem-do-homem ldquoVede eu vos ensino o super-homem ele eacute este oceano nele pode afundar o vosso grande desprezordquo (NIETZSCHE 2011 p 12) Com isso avisa que o aleacutem-do-homem diferente do uacuteltimo homem natildeo depende de um consentimento ou auxiacutelio de uma figura suprema e sobrenatural que regule sua conduta e forma de manifestaccedilatildeo diante do mundo jaacute que toma a razatildeo como uma das variadas expressotildees da capacidade humana e natildeo como a absoluta dirigente do homem O ensinamento do aleacutem-do-homem evidencia sua grandiosidade por ensinar aos homens que natildeo precisam se basear em princiacutepios externos mas a partir de suas proacuteprias criaccedilotildees configuraccedilotildees e intervenccedilotildees

Zaratustra ao trazer variadas discussotildees agrave tona natildeo procura disciacutepulos no sentido tradicional do termo pois natildeo professa por impossibilidade efetiva nenhuma doutrina Ao fazer uso de expressotildees anaacutelogas a biacuteblia ele demonstra a sua forma de parodiaacute-la ldquoCompanheiros eacute o que busca o criador e aqueles que saibam afiar suas foices Destruidores seratildeo eles chamados e desprezadores de bem e malrdquo (NIETZSCHE 2011 p 18) Os disciacutepulos a quem ele se refere diferente da versatildeo biacuteblica natildeo precisam seguir um mestre poreacutem construiacuterem outras possibilidades interpretativas isto eacute ldquoaqueles que tambeacutem criem busca Zaratustrardquo (NIETZSCHE 2011 p 19) Por conseguinte superar a filosofia que prega a necessidade de um homem capaz meramente de reproduzir as suas leis e doutrinas eacute o primeiro vieacutes para a confirmaccedilatildeo do aleacutem-do-homem

Isabella Vivianny Santana Heinen

127

Nessa medida pode-se dizer que Nietzsche no Proacutelogo de Assim Falou Zaratustra interpreta a modernidade atraveacutes da configuraccedilatildeo do uacuteltimo homem como o periacuteodo crucial de decisotildees concernente ao propoacutesito da civilizaccedilatildeo pois com o aviso do decaimento moral e dos ensinamentos cristatildeos oferece margem para outras constituiccedilotildees valorativas circundantes a dois extremos o uacuteltimo homem que natildeo passa de um apequenado ou melhor em consonacircncia com o pensamento de Machado ldquoos que natildeo sabem o que eacute amor o que eacute criaccedilatildeo e o que eacute anseio ndash isto eacute tudo o que pode servir de ponte para o super-homem -rdquo (MACHADO 1999 p 54) E como reiteraccedilatildeo a essa tipologia nietzschiana cito Stegmaier

O ldquouacuteltimo homemrdquo de quem fala Zaratustra em sua terceira tentativa de aproximar o aleacutem-do-homem ao ldquopovordquo O ldquouacuteltimo homemrdquo eacute aquele que considera a destinaccedilatildeo uacuteltima do homem a de seu tempo portanto como a destinaccedilatildeo do homem em si e deste modo potildee termo agrave destinaccedilatildeo do homem em si mesmo em suas expectativas de uma ordenaccedilatildeo da vida Tratar-se-ia para Zaratustra (com foco nas expectativas vigentes no final do seacuteculo XIX) de uma ordenaccedilatildeo em que natildeo deveria haver nenhum sofrimento ndash nenhuma frieza nenhuma dureza nenhuma doenccedila nenhuma desconfianccedila nenhuma contradiccedilatildeo social nenhum domiacutenio ndash mas somente felicidade e diversatildeo (STEGMAIER 2009 p 32-33)

Ou seja o uacuteltimo homem eacute compreendido enquanto figuraccedilatildeo de um tipo proacuteprio da modernidade que se acalenta no seio de uma vida programada cuja vida eacute regada pelas pequenas felicidades por natildeo se considerar o sofrimento ou qualquer transposiccedilatildeo social que leve a uma desorganizaccedilatildeo pois este homem precisa ser enquadrado a uma rotina que lhe conceda ao final do dia a recompensa em forma de pequenas felicidades por ter cumprido todas as tarefas necessaacuterias para a regulaccedilatildeo da vida gregaacuteria

Enquanto que o outro extremo se configura na tipologia do aleacutem-do-homem Nos discursos de Zaratustra ldquoo super-homem eacute o sentido da Terra Que a vossa vontade diga o super-homem seja o sentido da Terrardquo (NIETZSCHE 2011 p 12) pretendendo que os homens obtivessem desejo de superaccedilatildeo que criassem algo superior a eles proacuteprios e se mantivessem fieacuteis a Terra De acordo com Nietzsche ldquona verdade um rio imundo eacute o homem Eacute preciso ser um oceano para acolher um rio imundo sem se tornar impurordquo (NIETZSCHE 2011 p 12) Salienta-se portanto que o aleacutem-do-homem natildeo eacute uma ideia redentora do mundo ele eacute um ensinamento para aqueles que natildeo se satisfazem com a pequenez do homem moderno

Nesse acircmbito Nietzsche anuncia o ensinamento do aleacutem-do-homem em oposiccedilatildeo ao uacuteltimo homem mas natildeo como figura do redentor ou como representaccedilatildeo divinizada tampouco como doutrinadora e sim como aquele detentor de uma assimilaccedilatildeo dionisiacuteaca do mundo apropriado para afirmar a vida a existecircncia apto a efetuar uma nova consideraccedilatildeo de cultura Destarte a ideia de aleacutem-do-homem condiz com a possibilidade de criar e superar a si proacuteprio pois se refere ao homem adequado para enfrentar a vida sem confortos metafiacutesicos estabelecidos com a finalidade de recusa das experiecircncias de tempo e tambeacutem de impulsos corpoacutereos

O aleacutem-do-homem assim eacute compreendido enquanto o renunciador do mundo supra-sensiacutevel e o afirmador da terra e da vida exatamente como elas se apresentam Ele concerne na vontade de criar de construir de transvalorar e afirmar a vida conquistando um modo diferente de interpretaccedilatildeo Por esse motivo compreende-se que o aleacutem-do-

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche o

128

homem delineia o ldquosentido da terrardquo como uma criacutetica impetuosa agraves concepccedilotildees metafiacutesicas e dogmaacuteticas do homem

Nesse acircmbito sua oposiccedilatildeo eacute contra uma configuraccedilatildeo moral que dita que qualquer outra configuraccedilatildeo moral que o homem eventualmente deseje para si natildeo eacute possiacutevel ou seja natildeo eacute possiacutevel criar alguma coisa eacute preciso que a moral crie regule determine uma possibilidade nova Vale salientar que Zaratustra natildeo apresenta o aleacutem-do-homem como uma configuraccedilatildeo capaz de governar o uacuteltimo homem jaacute que estes satildeo empreendidos enquanto tipologias

Portanto no proacutelogo de Assim Falou Zaratustra Nietzsche salienta dois aspectos importantiacutessimos o ensinamento do aleacutem-do-homem e a tipologia criacutetica do uacuteltimo homem O ensinamento do aleacutem-do-homem significa uma condiccedilatildeo ainda irrealizaacutevel poreacutem que engendra a possibilidade de refletir acerca de uma perspectiva distinta relacionada a autossuperaccedilatildeo a dinacircmica de ldquotornar-se o que se eacuterdquo atraveacutes de uma valorizaccedilatildeo da existecircncia A sua importacircncia estaacute em sublinhar o desafio da vida e ainda assim vivecirc-la com toda a forccedila necessaacuteria Por outro lado a figura do uacuteltimo homem eacute uma advertecircncia para a cultura moderna em que Nietzsche identificava um homem domesticado nivelado e impossibilitado de pensar acerca de si e de seu tempo por consequecircncia decadente

Tal anaacutelise eacute possiacutevel a partir da interpretaccedilatildeo nietzschiana da figura do uacuteltimo homem que elucida um tipo disciplinado e incrivelmente conformado com a crenccedila em uma tal felicidade Com efeito Nietzsche verifica a desqualificaccedilatildeo e deterioraccedilatildeo da vida por meio da moralizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo dos instintos que acarreta na precariedade formativa mas sua perspectiva criacutetica permite a indicaccedilatildeo de outras formas de vida para aleacutem da degenerescecircncia constituiacuteda

Segundo essas argumentaccedilotildees observa-se que Zaratustra na primeira parte da obra inicia um processo de ensinamento da superaccedilatildeo em contraposiccedilatildeo aos valores morais a Deus aos iacutedolos e a alma Indica de tal modo como possibilidade de oposiccedilatildeo a esses aspectos o sentido da terra como o elogio do corpo e de suas manifestaccedilotildees criadoras

Para confirmar esse posicionamento Nietzsche reforccedila

Que o vosso espiacuterito e a vossa virtude sirvam ao sentido da terra irmatildeos e que o valor de todas as coisas seja novamente colocado por voacutes Por isso deveis ser combatentes Para isso deveis ser criadores Sabendo purifica-se o corpo tentando com saber ele se eleva para o homem do conhecimento todos os instintos se tornam sagrados para o elevado a alma a alma se torna alegre (NIETZSCHE 2011 p 74)

Desse modo o sentido da terra indicado pelo filoacutesofo estaacute relacionado a possibilidade inerente do homem de criar valores de desenvolver mecanismos que digam respeito a sua proacutepria singularidade Isto eacute que os valores constituiacutedos sejam empregados por agentes criadores com posicionamentos que levem em consideraccedilatildeo a configuraccedilatildeo corpoacuterea capacitados a natildeo se submeter a uma medida universal embasada em uma racionalidade que serve de paracircmetro para todas as coisas

Nesse sentido Nietzsche mostra que a vida tem uma dinacircmica ininterrupta de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo prazer e desprazer bem e mal etc e esse movimento apenas eacute possiacutevel no sentido da terra no acircmbito de suas transformaccedilotildees De acordo com Nietzsche em Ecce homo Zaratustra

Isabella Vivianny Santana Heinen

129

[] diz natildeo actua por negaccedilatildeo perante tudo aquilo a que ateacute agora se disse sim e apesar de tudo pode ser o contraacuterio de um espiacuterito que diz natildeo do mesmo modo que o espiacuterito que aguenta o maior peso do destino uma fatalidade da missatildeo pode todavia ser o mais aacutegil e para aleacutem de tudo ndash Zaratustra eacute um danccedilarino ndash como o que tem a mais implacaacutevel a mais temiacutevel visatildeo da realidade que excogitou o laquopensamento mais abissalraquo natildeo encontra apesar de tudo objecccedilatildeo alguma contra a existecircncia nem se- quer contra o seu eterno retorno ndash pelo contraacuterio depara com mais um fundamento para ele proacuteprio ser o eterno sim a todas as coisas para ser o ingente e ilimitado sim e aacutemenraquo laquoA todos os abismos levo ainda o meu dizer sim fonte de becircnccedilatildeosraquo Eis poreacutem mais urna vez ainda a noccedilatildeo de Dioniso (NIETZSCHE 2003 p 28)

Zaratustra apresenta a possibilidade do dizer sim dionisiacuteaco tanto por destruir quanto por dar existecircncia desvincula-se portanto da dual concepccedilatildeo de mundo aparente e mundo verdadeiro ou ainda da oposiccedilatildeo entre corpo e alma

Eacute necessaacuterio perceber por conseguinte que na segunda parte de Assim Falou Zaratustra Nietzsche segue com o tema da autossuperaccedilatildeo compreendendo-a como desafio sugerindo a promoccedilatildeo da vontade criadora que apresenta a superaccedilatildeo como instrumento dinacircmico de sua accedilatildeo

A partir desses aspectos Nietzsche na seccedilatildeo Do homem superior acena

Os mais preocupados perguntam hoje ldquoComo conservar o homem rdquo Mas Zaratustra eacute o primeiro e uacutenico a perguntar ldquoComo superar o homem rdquo O super-homem me estaacute no coraccedilatildeo ele eacute o primeiro e uacutenico para mim ndash e natildeo o homem natildeo o proacuteximo natildeo o mais pobre natildeo o mais sofredor natildeo o melhor (NIETZSCHE 2011 p 272)

Pode-se dizer portanto que o ensinamento de superaccedilatildeo de Zaratustra natildeo tem a finalidade da conservaccedilatildeo e promoccedilatildeo do homem ao contraacuterio possibilita o aprendizado de como superar o homem e usar as adversidades concernentes a existecircncia como mecanismo de autossuperaccedilatildeo Zaratustra natildeo estaacute desconsiderando assim a dor e o sofrimento mas estaacute analisando-as como caraacuteter afirmativo da vida como possibilidade de aperfeiccediloamento e criaccedilatildeo

Por isso em continuidade a esta seccedilatildeo Nietzsche escreve

ldquoO homem tem de se tornar melhor e piorrdquo ndash assim ensino eu O pior eacute necessaacuterio para o melhor do super-homem Para aquele pregador da gente pequena pode ter sido bom que sofresse e carregasse o pecado do homem Eu poreacutem alegro-me do grande pecado como de meu grande consolo [] Oacute homens superiores julgais que estou aqui para reparar o que fizestes mal Ou que quero preparar leitos mais cocircmodos para voacutes que sofreis Ou mostrar veredas novas e mais faacuteceis a voacutes instaacuteveis perdidos e extraviados na montanha Natildeo Natildeo Trecircs vezes natildeo Cada vez mais e melhores homens de vossa espeacutecie deveratildeo perecer - pois as coisas deveratildeo ser cada vez mais duras e difiacuteceis para voacutes Somente assim cresce o homem ateacute as alturas em que o raio o atinge e despedaccedila alto o bastante para o raio (NIETZSCHE 2011 p 273-274)

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche o

130

Segundo esta anaacutelise para Nietzsche o homem precisa experimentar tanto as caracteriacutesticas que lhe satildeo mais vergonhosas quanto aquelas que lhe parecem mais virtuosas Ainda sobre isso Nietzsche acrescenta em Aleacutem do bem e do mal

Acreditamos que a insensibilidade o perigo a escravidatildeo que se encontram sempre na rua e nos coraccedilotildees a clandestinidade a austeridade toda classe de bruxarias tudo o que eacute mau terriacutevel tiracircnica tudo que existe no homem de animal predador ou de reacuteptil eacute da mesma forma que seu oposto uacutetil para elevar o niacutevel da espeacutecie humana (NIETZSCHE 1992 p 45)

Delineia-se por conseguinte que mais uma vez o filoacutesofo faz referecircncia a um tipo-homem natildeo idealizado imperfeito sujeito as mudanccedilas naturais de seu organismo e relaccedilatildeo entre os homens Os homens superiores satildeo interpretados por Nietzsche como aqueles que natildeo produzem que natildeo criam nada natildeo criam nenhuma possibilidade do novo estando absolutamente presos no dogmatismo da humanidade Zaratustra atraveacutes do grito de socorro encontra os homens superiores da modernidade que para ele esses homens satildeo na verdade esteacutereis

Isto posto considera-se que Nietzsche salienta uma forma incomum de percepccedilatildeo do homem natildeo tenta corrigi-lo ou alcanccedilar uma verdade universal sobre ele Ele indica a importacircncia de um processo de autossuperaccedilatildeo do homem em que valoriza tambeacutem os estaacutegios de existecircncia mais baixo Do mesmo modo fala aos homens superiores que seu anseio natildeo eacute trazer consolo nem evitar o sofrimento e muito menos corrigir aquilo que se concebe como erro Zaratustra salienta que eacute por meio da superaccedilatildeo de sua proacutepria enfermidade de sua proacutepria afliccedilatildeo e desventura que o homem consegue alcanccedilar o que se eacute

Isabella Vivianny Santana Heinen

131

Referecircncias bibliograacuteficasGIACOIA Oswaldo J Criacutetica da moral como poliacutetica em Nietzsche Disponiacutevel em lthttp httpwwwrubedopscbrartigosbcrimornthtmgt Acesso em 09 de Nov de 2012_____ O uacuteltimo homem e a teacutecnica moderna Revista Natureza Humana v1 n1 Satildeo Paulo jun 1999 _____ Nietzsche amp Para aleacutem de bem e mal Rio de Janeiro Jorge Zahar 2002MACHADO Roberto Nietzsche e a verdade 2ed Rio de Janeiro Rocco 1999_____ Zaratustra ndash trageacutedia nietzscheana Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001NIETZSCHE FW Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011_____ A genealogia da moral Petroacutepolis Trad Mario Ferreira dos Santos Rio de Janeiro Vozes 2009_____ A gaia ciecircncia 6 ed Lisboa Guimaratildees Editores 2000_____ Aleacutem do bem e do mal preluacutedio a uma filosofia do futuro Trad Paulo Cezar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992_____ Ecce homo Como algueacutem se torna o que eacute Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003STEGMAIER Werner Antidoutrinas Cena e doutrina em Assim falava Zaratustra de Nietzsche In Cadernos Nietzsche nordm 25 Satildeo Paulo 2009VIESENTEINER J L Nietzsche e a vivecircncia de tornar-se o que se eacute Campinas Satildeo Paulo Editora PHI 2013

O Poder do Riso em Nietzsche

132

O Poder do Riso em Nietzsche

Ivan Risafi de Pontes1

Vivo em minha proacutepria casaalgo de algueacutem jamais imitei e ndash de cada mestre debochei que de si mesmo natildeo debocha

(Inscrito sobre a minha porta Gaia Ciecircncia)

Ich wohne in meinem eignen HausHab Niemandem nie nichts nachgemachtUnd ndash lachte noch jeden Meister ausder nicht sich selber ausgelacht

(Uumlber meiner Haustuumlr Die froumlhliche Wissenschaft)

Na obra e pensamento filosoacutefico de Friedrich Nietzsche haacute um poder do riso que nos faz crer que a sua ausecircncia implica uma impotecircncia para viver Eacute possiacutevel afirmar que o riso em Nietzsche conteacutem em si um valor afirmativo da natureza humana Sob este ponto de vista o ato de rir eacute manifestaccedilatildeo dessa proacutepria natureza de suas forccedilas imaginativas de seus incontrolaacuteveis impulsos e de seus mais profundos instintos Rir de si e dos outros eacute portanto expressatildeo de poder Um poder cuja capacidade inerente eacute de preservaccedilatildeo e construccedilatildeo da vida e do mundo

Considere-se por outro lado que devemos ter em conta ao analisar essa capacidade particular do humano no contexto do pensamento de Nietzsche o impulso destrutivo contido em cada riso Pois tambeacutem nele o caraacuteter cultural de um povo encontra aleacutem da expressatildeo para sua identidade aquilo que eacute afastado como ridiacuteculo por meio de escaacuternio e da pilheacuteria da mesma forma que o indiviacuteduo o faz ao demonstrar sua particularidade na maneira e no objeto de seu riso Nestes termos emergem algumas questotildees seria possiacutevel estabelecer limites para o riso ou para a escolha de seu objeto Seria ateacute mesmo necessaacuterio determinar uma norma eacutetica e poliacutetica para a accedilatildeo dessa idiossincrasia do ser humano Quais seriam os elementos esteacuteticos e poliacuteticos que o riso manipula

Podemos afirmar indubitavelmente que o horizonte dessas questotildees nos eacute apresentado por Nietzsche em toda amplitude de sua obra Dos textos de sua juventude ateacute a maturidade de sua obra o riso de Nietzsche ecoa numa atmosfera de libertaccedilatildeo e

1 Universidade Federal do Paraacute

Ivan Risafi de Pontes

133

destruiccedilatildeo na qual as mais diversas tensotildees da vida se enfrentam para dar testemunho do caraacuteter afirmativo do viver Como quer que seja conceitos como Amor fati o dionisiacuteaco e o espiacuterito-livre incorporam em suas accedilotildees toda a gama da alegria da dor e da vontade de viver que o riso conteacutem em si

Com efeito a filosofia como reflexatildeo seacuteria que busca um distanciamento do senso comum reconheceu no riso uma fonte de conhecimento reveladora natildeo apenas de um caraacuteter moral determinante para a formaccedilatildeo do homem mas tambeacutem de um componente antropoloacutegico e filosoacutefico que se impotildee na reflexatildeo sobre o valor da vida e a capacidade humana de reconhecer o misteacuterio o invisiacutevel a vida e a morte Agrave luz das consideraccedilotildees precedentes podemos da mesma forma indagar ateacute que ponto eacute possiacutevel refletir sobre a existecircncia de um riso proacuteprio da filosofia em oposiccedilatildeo agravequele do senso comum um riso capaz de revelar tambeacutem o dom e a natureza proacutepria da filosofia Poderia portanto o riso estabelecer-se como um elemento de distinccedilatildeo filosoacutefica em contraposiccedilatildeo ao riso das multidotildees

Isto posto vejamos rapidamente um dos exemplos que a tradiccedilatildeo nos apresenta para contextualizarmos a dinacircmica do riso seu caraacuteter pilheacuterico e de ridicularizaccedilatildeo que em alguns casos pode alcanccedilar ateacute mesmo a hostilidade Tomemos com efeito a perspectiva da multidatildeo em relaccedilatildeo agrave vida contemplativa do filoacutesofo para num segundo momento nos concentramos no poder do riso filosoacutefico O caso de Tales nos eacute conhecido Ao cair num poccedilo por ter seu olhar voltado para a infinitude do universo e natildeo para as limitaccedilotildees do mundo que o cercava o filoacutesofo astroacutelogo eacute observado por uma camponesa traacutecia Vejamos como seu comentaacuterio zombeteiro sobre a situaccedilatildeo do filoacutesofo eacute fundamentado na sabedoria popular sobre o destino do filoacutesofo escutemo-lo ldquoeis aqui um homem que estuda as estrelas e natildeo pode ver o que estaacute aos seus peacutesrdquo O proacuteprio Platatildeo em Teeteto 147a testemunha a opiniatildeo da massa sobre o modo de vida do filoacutesofo e o riso pilheacuterico que a expressa lsquoQualquer pessoa que dedique sua vida agrave filosofia estaacute vulneraacutevel a esse tipo de escaacuterniohellip Toda a raleacute se juntaraacute agrave camponesa rindo dele hellip pois em seu desamparo ele parece um tolordquo

Na figura do Zaratustra de Nietzsche por outro lado podemos analisar como o filoacutesofo apropria-se do riso como um instrumento ndash sem necessidade de normatizaacute-lo ndash para fazer dele um produtor de valores que por sua vez datildeo suporte agrave criaccedilatildeo esteacutetica e agrave (des)construccedilatildeo poliacutetica de uma sociedade e de seu tempo O abandono daquele que foi objeto do riso da multidatildeo ndash que o vecirc como encarnaccedilatildeo da tolice e da ineacutepcia para viverndash ao ser transvalorado transforma-se num instrumento de afirmaccedilatildeo dos erros proacuteprios do filoacutesofo que natildeo acredita naquilo que se encontra sob seus peacutes ou agrave sua frente Apenas o filoacutesofo que enclausurado na solidatildeo de seu poccedilo eacute capaz de rir de sua queda ndash tendo consciecircncia que ser motivo de pilheacuteria para o vulgo eacute tambeacutem motivo de riso para si consegue apoderar-se do riso como um poder de transvaloraccedilatildeo O riso do filoacutesofo sobre aquilo que foi reconhecido como ridiacuteculo pela multidatildeo transforma o risiacutevel fonte de escaacuternio e zombaria em riso prazeroso diante da liberdade de viver e andar pelo mundo segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees Eacute nesse contexto que o descer de Zaratustra de sua montanha nos mostra o mesmo destino que tem Tales apoacutes sua queda em seu poccedilo A escuridatildeo de sua casa e a solidatildeo de seu isolamento satildeo o oposto da visatildeo de um universo infinito Rir de si mesmo eacute como visto apoderar-se do ridiacuteculo daquilo que a crueldade da maioria qualifica como despreziacutevel como erro em poucas palavras eacute apontar e reconhecer em sua fraqueza a maior de suas conquistas O inscrito que Nietzsche apresenta no umbral

O Poder do Riso em Nietzsche

134

de sua morada ao visitante de sua Gaia Ciecircncia nos ensina tambeacutem que aquele que natildeo ri de seu mestre nunca aprenderaacute a rir de si mesmo Ele nunca encontraraacute em suas fraquezas em seus erros e em sua debilidade ou seja na vulnerabilidade do seu ser perante a vida no seu perecer seu proacuteprio retiro uma morada E tambeacutem natildeo teraacute o poder de sobre ela colocar sua marca seu proacuteprio inscrito

Como sabemos a criaccedilatildeo de personagens-conceituais capazes de transvalorar eacute para Nietzsche absolutamente necessaacuteria agrave luta contra o enrijecimento de valores proacuteprios da estagnaccedilatildeo da vida Como valor estabelecido eacute proacuteprio da natureza moral a luta pela sua manutenccedilatildeo e natildeo um embate a fim de alcanccedilar sua expansatildeo visto que o desencadeamento de um conflito pode ocasionar sua destruiccedilatildeo Assim de forma peremptoacuteria Nietzsche nos mostra que a cultura e a moral de uma eacutepoca negam a accedilatildeo da vontade de potecircncia como expressatildeo da proacutepria vida junto ao seu intriacutenseco sentido a saber a afirmaccedilatildeo da proacutepria vida nas suas mais diversas facetas ou seja natildeo apenas no prazer na dor no sofrimento e na luta mas tambeacutem em uma de suas mais envolventes e intrigantes formas o riso

Em uma nota da primavera de 1884 sobre uma passagem da biacuteblia encontramos uma frase reveladora sobre o poder do riso em Nietzsche principalmente quando a tomamos como antiacutepoda de sua sagraccedilatildeo esteacutetica e poliacutetica do riso ldquomaldiccedilatildeo sobre aqueles que riemrdquo anota Nietzsche sobre Luc 6 25

Eacute no contexto dessas questotildees que intentaremos traccedilar algumas reflexotildees sobre o riso no pensamento e na obra de Friedrich Nietzsche De fato levado agraves suas uacuteltimas consequecircncias como hodierno diagnoacutestico e como superaccedilatildeo do niilismo a filosofia Nietzsche busca uma afirmaccedilatildeo incondicional de todas potencialidades proacuteprias do humano e de sua natureza Acreditamos que o conhecimento traacutegico da vida do qual o jovem Nietzsche nos daacute liccedilotildees em sua primeira obra publicada O Nascimento da Trageacutedia alcanccedila o seu pendant mais natural ou seja seu irrestrito complemento artiacutestico e filosoacutefico tanto na obra intitulada Gaia Ciecircncia Die Froumlhliche Wissenschaft como na criaccedilatildeo do personagem-conceitual Zaratustra

Eis que Gaia Ciecircncia o termo e tiacutetulo criado por Nietzsche revela natildeo apenas a natureza do conhecimento e da ciecircncia como fonte de alegria ndash um dos objetos de expressatildeo do riso ndash mas um jogo de significados que a palavra gaya permite revelar qual seja a ciecircncia da alegria fundamentalmente como ciecircncia do mundo e da terra ndash Gaia na mitologia grega eacute a personificaccedilatildeo da terra Por tal motivo A Teogonia de Hesiacuteodo nos apresenta o caos como sua origem e Gaia como uma das primeiras deusas sobre a Terra O estado de Gaia eacute de gravidez o que nos remete a origem indo-germacircnica da palavra Gaia a gestante

Jaacute Zaratustra a maacutescara filosoacutefica de Nietzsche impotildeem-se no acircmbito do questionamento sobre a decadecircncia proacutepria do niilismo como primeiro e uacutenico homem que riu ao vislumbrar as luzes do mundo De origem persa o nome Zaratustra significa ldquoo proprietaacuterio de valiosos camelosrdquo Os estudiosos da cultura oriental o descrevem como ldquoo poliacuteticordquo e o ldquoxamatilderdquo a fonte de sua origem eacute encontrada no Avesta uma coletacircnea de textos sagrados na qual Zaratustra eacute apresentado como fundador de uma religiatildeo monoteiacutesta fundamentada na luta entre o bem e o mal Em um fragmento do outono de 1883 podemos ler o seguinte sobre Zaratustra e sua origem ndash tambeacutem nele Nietzsche desvendaraacute a natureza do riso agrave qual Zaratustra pertence ldquoDe onde vem Zaratustra para noacutes Quem satildeo seu pai e sua matildee O destino e o riso satildeo o pai e a matildee de Zaratustra o terriacutevel destino e o doce riso geraram tal broto Alegria como o benefiacutecio secreto da

Ivan Risafi de Pontes

135

morte lsquoEstou procurando Zaratustra Zaratustra foi perdido para mimrsquordquo (NIETZSCHE 1999 vol X p 546)2 Ou ainda numa estrofe do poema Da pobreza do riquiacutessimo no livro Nietzsche contra Wagner (NIETZSCHE 2016 p 75)

Como quer que seja uma coisa contudo eacute particularmente notaacutevel ao refletirmos sobre ambos os nomes os quais Nietzsche forjou tambeacutem como insiacutegnia para a particularidade de seu pensamento sobre o poder do riso Tanto a Gaia Ciecircncia como Zaratustra carregam em si a marca e a potecircncia do nascimento e o destino mortal da natureza humana Afinal em sua dolorosa luta de libertaccedilatildeo das trevas e do caos o nascimento nos traz ao contraacuterio do que poderiacuteamos imaginar o riso como expressatildeo da vida ateacute mesmo diante da inexoraacutevel morte Sua obra eacute trazer o mais profundo valor das profundezas da terra da mesma forma como o homem busca o ouro em suas entranhas o metal mais precioso e de maior durabilidade para a construccedilatildeo de valores No capiacutetulo ldquoDos grandes acontecimentosrdquo de Zaratustra haacute uma importante menccedilatildeo sobre a natureza auriacutefera do riso ldquomas o ouro e o riso ndash ele os tira do coraccedilatildeo da terra pois que o saibas ndash o coraccedilatildeo da terra eacute de ouro [hellip] (NIETZSCHE 2011 p 126)

Se a origem do riso encontra-se para Nietzsche no acircmago e nas entranhas auriacuteferas mais profundas da terra ao contraacuterio o que se refere agrave sua condiccedilatildeo apoacutes o nascimento ou seja agrave sua vinda agrave superfiacutecie da terra seu impulso mais natural satildeo as alturas Contrariamente ao espiacuterito da gravidade que leva tudo a baixo ndash cujas criaccedilotildees satildeo como podemos ler em Zaratustra ldquocoaccedilatildeo estatuto necessidade consequecircncia finalidade vontade bem e malrdquo (NIETZSCHE 2011 p 188) ndash rir representa um ganho de perspectiva para a afirmaccedilatildeo da vida e com ela o movimento de inversatildeo de sentidos proacuteprios da transvaloraccedilatildeo de todos os valores ldquoOlhais para cima quando buscais a elevaccedilatildeo Eu olho para baixo porque estou elevado Quem entre voacutes pode ao mesmo tempo rir e sentir-se elevado Quem sobe aos montes mais altos ri das trageacutedias do palco e da vidardquo (NIETZSCHE 2011 p 40) Nesse capiacutetulo de Zaratustra intitulado ldquoLer e escreverrdquo Nietzsche segue ainda com descriccedilotildees que revelam como a risada de Zaratustra constitui-se como um iacutendice da natureza e da filosofia natildeo somente de Zaratustra mas certamente do proacuteprio filoacutesofo O ambiente no qual esses pensamentos e a vida contraacuteria ao espiacuterito de gravidade desenvolvem-se eacute o do encantamento pela danccedila da leveza e do equiliacutebrio que permitem o voo a grandes alturas Em oposiccedilatildeo a esse meio criou-se o inferno cristatildeo e uma seriedade demoniacuteaca Para que possamos melhor entender essa caracterizaccedilatildeo do espiacuterito da gravidade por Nietzsche eacute mister reproduzi-la na iacutentegra

Eu acreditaria somente num deus que soubesse danccedilarQuando vi meu diabo achei-o seacuterio meticuloso profundo e solene era o espiacuterito da gravidade ndash ele faz todas as coisas caiacuterem Natildeo com a ira mas com o riso eacute que se mata Eia vamos matar o espiacuterito da gravidade

[hellip] Agora sou leve agora voo agora me vejo abaixo de mim agora danccedila um deus atraveacutes de mimrdquo (NIETZSCHE 2011 p 40)

A partir do que foi tematizado torna-se possiacutevel agora notar um ponto absolutamente central para o esclarecimento da particularidade do riso poliacutetico e esteacutetico de Nietzsche a saber o caraacuteter cruel do riso e essa crueldade eacute santificada segundo Nietzsche pela

2 A traduccedilatildeo de todos fragmentos-poacutestumos aqui citados eacute de responsabilidade do autor

O Poder do Riso em Nietzsche

136

proacutepria natureza do riso por sua origem e genealogia por ele ser proacuteprio do coraccedilatildeo de ouro da terra Por tais motivos o riso eacute santificado Eis que o riso eacute complementar agrave virtude do homem e do espiacuterito livre que encontram na arte a expressatildeo do seu ser e na destruiccedilatildeo de taacutebuas morais sua accedilatildeo poliacutetica

ldquoSe minha virtude eacute a virtude de um danccedilarino e muitas vezes saltei com os dois peacutes para um enlevo ouro-esmeraldaSe minha maldade eacute uma maldade sorridente que se sente em casa entre roseiras e sebes de liacuterios ndash pois no riso tudo que eacute mau se acha concentrado mas santificado e absolvido por sua proacutepria bem-aventuranccedila ndashEsse eacute meu alfa e ocircmega que tudo pesado se torne leve todo corpo danccedilarino e todo espiacuterito paacutessaro e em verdade esse eacute meu alfa e ocircmegardquo (NIETZSCHE 2011 p 221)

Sob este ponto de vista eacute importante notar que o riso em Nietzsche expressa natildeo apenas a intenccedilatildeo e natureza destrutivas do rir mas tambeacutem como jaacute dito uma crueldade ldquo[hellip] O riso eacute originalmente a expressatildeo da crueldaderdquo (NIETZSCHE 1999 vol 10 p 329) escreve Nietzsche num fragmento poacutestumo do veratildeo de 1883 No foco dessa accedilatildeo cruel age um caraacuteter poliacutetico e esteacutetico que demonstra uma aversatildeo a todo tipo de fixaccedilatildeo do ser e da vida e que busca o fortalecimento espiritual para a mudanccedila Essa risada encontra seu alvo no homem cristatildeo e decadente naquele que se guia pela virtude que apequena e pelas velhas taacutebuas morais as quais impedem o florescer de novos valores

Em outras palavras o riso cruel encontra aqui no homem que crecirc na existecircncia do livre-arbiacutetrio naquele que acredita que a posse da virtude o faraacute reconhecer a justa causa para decisotildees tomadas com base no princiacutepio de causa e efeito o motivo de sua accedilatildeo destrutiva um componente proacuteprio do niilismo o qual abre espaccedilo para a ocupaccedilatildeo do nada por meio tambeacutem da accedilatildeo da natureza esteacutetica do riso ldquoMas a voz da beleza fala suavemente insinua-se apenas nas almas mais alertas Suavemente estremeceu hoje meu escudo e sorriu para mim este eacute o sagrado riso e tremor da beleza De voacutes virtuosos riu hoje minha belezardquo (NIETZSCHE 2011 p 89) A esse homem misericordioso de natureza compassiva Nietzsche direciona a crueldade letal de sua risada E assim com base no princiacutepio exposto no aforismo 200 da Gaia Ciecircncia ldquoRir ndash Rir significa ter alegria com o mal dos outros ndash ser malicioso mas com boa consciecircnciardquo (NIETZSCHE 2001 p 156) Nietzsche imporaacute o seu riso mortiacutefero contra agravequeles que amaldiccediloaram essa forccedila primaveril da vida criando o pecado ldquoQual foi ateacute agora o maior pecado aqui na terra Natildeo foi a palavra daquele que disse lsquoAi daqueles que agora riemrsquo Ele proacuteprio natildeo achou na terra motivos para rir Entatildeo procurou mal Ateacute mesmo uma crianccedila encontra motivosrdquo (NIETZSCHE 2011 p 279) Essa passagem Do homem superior de Zaratustra eacute como vemos uma clara oposiccedilatildeo a Lucas 625 ldquomaldiccedilatildeo sobre aqueles que riemrdquo

Com efeito esse riso que destroacutei ndash como um raio que emerge na escuridatildeo demostrando sua potecircncia nas alturas e seu caraacuteter mortiacutefero ao alcanccedilar a terra ndash eacute tambeacutem mateacuteria de conhecimento para o homem superior (NIETZSCHE 1999 vol 11 p 279) Esse sentimento de prazer que o riso cruel proporciona aproxima para Nietzsche o homem da natureza dos deuses do Olimpo bem como do ganho de uma nova perspectiva proacutepria das alturas ldquoObservar as naturezas traacutegicas perecerem e ainda poder rir desprezar o mais profundo entender sentir e compaixatildeo ndash eacute divinordquo (NIETZSCHE 1999 vol 10 p 63)

Ivan Risafi de Pontes

137

Aprender a rir apresenta-se nesse contexto como uma arte que eacute proacutepria do homem superior e que vive nas alturas Para o homem que desaprendeu a rir eacute necessaacuterio a pressatildeo a luta os conflitos que fazem nascer novos pensamentos e o impele a novas conquistas

Natildeo desanimeis Que importa Quanta coisa eacute ainda possiacutevel Aprendei a rir de voacutes mesmos tal como se deve rir [hellip] O que no homem eacute mais distante mais profundo alto como as estrelas sua tremenda forccedila tudo isso natildeo ferve e se embate vossa panela [hellip] Aprendei a rir de voacutes tal como se deve rir Oacute homens superiores quanta coisa eacute ainda possiacutevel (NIETZSCHE 2011 p 278)

Da maacutecula do pecado o riso eacute libertado tornando-se sagrado no processo de transvaloraccedilatildeo daquilo que o homem tem de mais sublime em si Essa condiccedilatildeo amaldiccediloada ndash a qual natildeo se tem notiacutecias nas escrituras que Jesus filho de Deus estivesse uma uacutenica vez sujeito ndash eacute transformada por Nietzsche num agente catalisador de potecircncias essenciais agrave vida agrave produccedilatildeo poliacutetica e esteacutetica O riso transforma-se num iacutendice de poder para o desvelamento daquilo que eacute decadente no homem e nos deuses impotentes diante do riso e da danccedila A capacidade de rir como podemos ver uma arte em si no pensamento nietzschiano exige um aprendizado que busca no isolamento da natureza humana o conhecimento sobre o caraacuteter artiacutestico da criaccedilatildeo da moral Assim a incapacidade do riso de Jesus expressa para Nietzsche seu niilismo e sua impotecircncia em reconhecer o valor da vida e do riso

Essa visatildeo traacutegica da vida do filho de Deus eacute contraposta ao conhecimento traacutegico dos gregos revelado no Nascimento da Trageacutedia e agrave explosatildeo do riso sagrado que se escuta e ecoa por toda Gaia Ciecircncia bem como em Zaratustra

ldquoAinda conhecia apenas laacutegrimas e a melancolia do hebreu juntamente com o oacutedio dos bons e justos ndash o hebreu Jesus entatildeo foi acometido pelo anseio da morte Tivesse ele permanecido no deserto longe dos bons e justos Talvez tivesse aprendido a viver e aprendido a amar a terra ndash e tambeacutem o risordquo (NIETZSCHE 2011 p 71)

No destino decadente desse homem seacuterio e pesado que se une a um Deus que natildeo ri Nietzsche diagnostica o mais imperdoaacutevel em sua natureza o homem que tem o poder e natildeo quer dominar como nos relata o capiacutetulo ldquoA hora mais quietardquo de Zaratustra Ao contraacuterio do peso gigantesco que esse homem exerce sobre a vida levando-a para baixo o riso sagrado de Nietzsche provoca o impulso de poderes que flexibilizam e articulam dinamicamente o fluxo de vida necessaacuterio para a ampliaccedilatildeo de poder e com ele consequentemente as conquistas de novas perspectivas Assim nos relata um outro fragmento poacutestumo de 1888 muito semelhante agrave seccedilatildeo 6 do capiacutetulo Os sete selos de Zaratustra ldquono riso todos os maus impulsos tornam-se sagrados e ainda todas as coisas pesadas se tornam levesrdquo (NIETZSCHE 1999 vol 10 p 584)

Natildeo devemos mais nos surpreender portanto como o riso assume um papel determinante para constatarmos natildeo soacute o que eacute verdadeiro filosofar ndash o bem viver e natildeo o preparar-se para a morte socraacutetica do Feacutedon de Platatildeo ndash mas tambeacutem para diferenciar o homem que faz uso de todo o poder de sua natureza para criar valores proacuteprios e afirmativos da vida daquele que perdeu a capacidade e o poder do riso ou ainda daquele outro que ri da filosofia personagem comum em todos os tempos da histoacuteria que despreza a solidatildeo

O Poder do Riso em Nietzsche

138

a dor e a alegria que o conhecimento filosoacutefico traz para a afirmaccedilatildeo da potecircncia da vida No aforismo 183 do livro Humano demasiado Humano I Nietzsche descreve atraveacutes da metaacutefora de uma chave o comportamento de escaacuternio desses desconhecedores do riso e do poder criador de valores que os pensamentos novos satildeo capazes de criar ldquoA chave ndash Aquele pensamento ao qual sob o riso e escaacuternio dos mediacuteocres um homem eminente daacute grande valor eacute para ele uma chave de tesouros secretos e para aqueles apenas um pedaccedilo de ferro velhordquo (NIETZSCHE 2002 p 123)

No contexto desse diagnoacutestico do cristianismo como religiatildeo triste que amaldiccediloa o riso no lugar de sacralizaacute-lo Nietzsche natildeo deixa de lado uma criacutetica agrave educaccedilatildeo que deveria valorizar a natureza do riso e poder provindo dela O aforismo 177 da Gaia Ciecircncia revela no acircmbito de sua criacutetica agrave cultura superior alematilde o componente educacional a ser ganho pelo riso ldquoContribuiccedilatildeo ao lsquosistema educacionalrsquo ndash Na Alemanha falta aos homens superiores um grande meio de educaccedilatildeo a risadas dos homens superiores estes natildeo riem na Alemanhardquo (NIETZSCHE 2001 p 153)

Dito assim rir assume na filosofia de Nietzsche traccedilos e caracteriacutesticas do verdadeiro filosofar Reconhecer na dor a condiccedilatildeo fundamental da existecircncia humana e no riso a sua redenccedilatildeo torna-se o ato de potecircncia e poder proacuteprio da filosofia que se coloca diante de perspectivas que ganham das alturas a visatildeo dos abismos da natureza humana

ldquoEsqueci-me de dizer que tais filoacutesofos satildeo alegres e que gostam de sentar-se no abismo de um ceacuteu perfeitamente brilhante mdash a eles satildeo necessaacuterios outros meios para suportar a vida do que a outros homens porque eles sofrem de maneira diferente (a saber com a mesma intensidade no fundo de seu desprezo humano que no amor por ele mdash O animal mais sofredor da terra inventou para si mdash o riso (NIETZSCHE 1999 vol XI p 576)

Ao contraacuterio de Zaratustra que nasceu do ventre do riso e da Gaia que libera suas forccedilas mais profundas para o mundo o filoacutesofo necessita criar o riso por meio da invenccedilatildeo Essa forccedila esteacutetica e poliacutetica que movimenta o mundo e o liberta de suas dores e de suas amarras degenerativas dando agrave filosofia o caraacuteter libertador do riso eacute contemplada por Nietzsche como uma contrapartida diante da ameaccedila do niilismo que a cultura decadente do cristianismo inculcou no espiacuterito cansado e pesado do homem moderno Numa outra passagem dos mesmos fragmentos poacutestumos de junho-julho de 1885 encontramos um depoimento sobre como Nietzsche reconhece em si mesmo esse filoacutesofo do riso o seu proacuteprio inventor

Mas para suportar esse extremo pessimismo (como soa aqui e ali em meu lsquoNascimento da Trageacutediarsquo) lsquoviver sozinho sem Deus e moralidadersquo tive que inventar uma contrapartida Talvez eu saiba melhor por que o homem ri sozinho soacute ele sofre tatildeo profundamente que teve que inventar o riso O animal desafortunado e melancoacutelico eacute como de costume o mais alegrerdquo (NIETZSCHE 1999 vol XI p 571)

Se em Ecce Homo Nietzsche afirma ldquoestimo o valor dos homens e da raccedila pelo quatildeo necessariamente concebem o deus como inseparaacutevel do saacutetirordquo (NIETZSCHE 2001 p 40) sua filosofia do riso reconhece como uma de suas tarefas diagnosticar por meio do riso onipresente na face do saacutetiro a qualidade de um pensamento seu peso ou impulso para o fluxo ininterrupto da vida Em uma palavra eacute possiacutevel agravequele que conhece a natureza aacuteurea do riso classificar a proximidade dos filoacutesofos dos deuses do Olimpo e a autenticidade de seus conhecimentos diante da tarefa humana de viver submerso no reino da dor da existecircncia

Ivan Risafi de Pontes

139

Em Aleacutem do bem e do Mal Nietzsche nos faz saber que a seriedade imposta agrave filosofia pelo riso eacute o crivo determinante de toda filosofia demonstrando que a razatildeo filosoacutefica deve se submeter ao riso seacuterio

O viacutecio oliacutempico ndash Natildeo obstante aquele filoacutesofo que como autecircntico inglecircs tentou difamar o riso entre as cabeccedilas pensantes ndash lsquoo riso eacute uma grave enfermidade da natureza humana que toda cabeccedila pensante se empenharia em superarrsquo (Hobbes) ndash eu chegaria mesmo a fazer uma hierarquia dos filoacutesofos conforme a qualidade do seu riso ndash colocando no topo aqueles capazes da risada de ouro E supondo que tambeacutem os deuses filosofem como algumas deduccedilotildees jaacute me fizeram crer natildeo duvido que eles tambeacutem saibam rir de maneira nova e sobre-humana ndash e agrave custa de todas as coisas seacuterias Os deuses gostam de gracejos parece que mesmo em cerimonias religiosas natildeo deixam de rir (NIETZSCHE 2017 p 177)

No acircmbito de accedilatildeo do riso seacuterio Nietzsche constata um tema em relaccedilatildeo ao qual o riso natildeo deve ocorrer Trata-se da crenccedila nos dogmas impostos agrave vida pelo cristianismo e de sua maleacutefica negaccedilatildeo da natureza humana ldquoNatildeo eacute risiacutevel que algueacutem ainda acredite em uma lei santa e imutaacutevel lsquoNatildeo mentiraacutesrsquo lsquoNatildeo mataraacutesrsquo ndash em uma existecircncia cujo caraacuteter eacute a constante mentira o constante assassinatordquo (NIETZSCHE 1999 vol IX p 649)

A arte do riso a ser aprendida pelos homens de natureza superior eacute revestida da mesma leveza necessaacuteria ao bom danccedilarino Sua arte eacute aquela da superaccedilatildeo da gravidade que leva e impele tudo agrave superfiacutecie da terra Criar pensamentos leves demonstra uma posiccedilatildeo no mundo semelhante agravequela do danccedilarino que coloca em accedilatildeo o sonho de conquista daquilo que os paacutessaros alcanccedilam ao desfrutar de sua natureza quando ele se desloca do chatildeo em busca da superaccedilatildeo dos limites dos movimentos

Oacute homens superiores o pior que haacute em voacutes eacute natildeo aprendestes a danccedilar como se deve danccedilar ndash indo aleacutem de voacutes mesmo Que importa se malograstes Quanta coisa eacute ainda possiacutevel Entatildeo aprendei a rir indo aleacutem de voacutes mesmos Erguei vossos coraccedilotildees oacute bons danccedilarinos Mais alto E natildeo esqueccedilais o bom riso tampoucoEsta coroa do homem que ri esta coroa de rosas a voacutes irmatildeos arremesso esta coroa Declarei santo o riso oacute homens superiores aprendei a ndash rir (NIETZSCHE 2011 p 281)

A risada dos deuses do Olimpo a de constrangimento ou causada pelas coacutecegas do bom-humor a risada puacuteblica sobre si mesmo uma outra que soa como um relinchar ou ainda aquela que o solitaacuterio ri num monoacutelogo consigo mesmo e em sua solidatildeo No pensamento e filosofia de Friedrich Nietzsche a capacidade e o poder de rir representam em suas mais diversas formas um elemento definidor e multiplicador da desmedida vontade de viver tatildeo cara ao artista nietzschiano

Como traccedilo caracteriacutestico do homem encontrado na obra de Aristoacuteteles o riso passa a exercer em Nietzsche uma funccedilatildeo esteacutetica-filosoacutefica ateacute entatildeo nunca vista na filosofia do ocidente A accedilatildeo que se porta por traacutes do riso determina essencialmente as caracteriacutesticas e os atos dos personagens conceituais que ocupam a obra nietzschiana Natildeo apenas em Zaratustra a forccedila do riso de natureza satiacuterica abre o caminho e determina a accedilatildeo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores e sua ruptura com o pessimismo bem como com

O Poder do Riso em Nietzsche

140

o niilismo Por toda obra nietzschiana o riso desvenda o caraacuteter de transvaloraccedilatildeo o qual o mundo e a vida exigem do humano Assim constituiacutedo o riso eacute siacutembolo e expressatildeo maior da vida como vontade de potecircncia

Para Nietzsche o riso determina e acompanha portanto natildeo apenas a destruiccedilatildeo de todos os valores mas tambeacutem o fundamento de uma nova moral e o estabelecimento de valores mundanos Partindo de seu aspecto esteacutetico centrado na figura do artista cujo maior representante eacute o saacutetiro primeiro ator do ocidente e da trageacutedia grega o riso alcanccedila seu acircmbito poliacutetico e moral

A accedilatildeo do riso provoca ainda a ressonacircncia que atingiraacute os ouvidos daqueles que Nietzsche acredita ser os verdadeiros artistas A esses irmatildeos de Zaratustra Nietzsche escreve na quarta parte de seu livro dedicado a todos e a ningueacutem ldquoEsta coroa do ridente esta coroa grinalda-de-rosas a voacutes meus irmatildeos eu vos atiro esta coroa O riso eu declarei santo voacutes homens superiores aprendei ndash a rirrdquo (NIETZSCHE 2011 p 281)

O riso em Nietzsche assume assim um patamar esteacutetico-filosoacutefico no qual eacute possiacutevel vislumbrar o verdadeiro filoacutesofo e livre pensador nietzschiano ndash poeta e ator muacutesico e artista personagem conceitual e danccedilarino em uma uacutenica pessoa Com o riso santificado mas natildeo apenas com seu papel filosoacutefico e poliacutetico redefinido diante da tradiccedilatildeo da cultura ocidental Nietzsche afirmaraacute em Ecce Homo ldquoEu sou um disciacutepulo do filoacutesofo Dioniacutesio eu preferiria ser um saacutetiro do que um santordquo (NIETZSCHE 2015 p 13) O caraacuteter santificado do riso de Nietzsche constitui-se portanto como um evangelho ndash um sistema filosoacutefico coeso que busca a redefiniccedilatildeo e a revalorizaccedilatildeo do que haacute de mais humano em noacutes ndash para o filoacutesofo do futuro e livre pensador o qual encontraraacute tambeacutem no final do livro I de Humano demasiado humano a reveladora dimensatildeo do riso diante da vida

ENTRE AMIGOSUm epiloacutego1Eacute belo guardar silecircncio juntosAinda mais belo sorrir juntos ndash Sob a atenda do ceacuteu de sedaEncostado ao musgo da faiaDar boas risadas com os amigosOs dentes brancos mostrando

Se fiz bem vamos manter silecircncioSe fiz mal ndash vamos rir entatildeoE fazer sempre piorFazendo pior rindo mais altoAteacute descermos agrave cova

Amigos Assim deve ser ndash Ameacutem E ateacute mais ver (NIETZSCHE 2002 p 275)

Ivan Risafi de Pontes

141

Referecircncias bibliograacuteficasNIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia 3deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2001 _____ Friedrich Aleacutem do bem e do Mal 17deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2017 _____ Friedrich Assim falou Zaratustra 3deg ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011 _____ Friedrich Ecce Homo 4deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2015 _____ Friedrich Kristiche Studienausgabe in 15 Banden 4 deged Berlim Nova Iorque Walter de Gruyter GmbH amp Co KG 1999_____ Friedrich Humano Demasiado Humano 3deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2002_____ Friedrich Nietzsche contra Wagner 1deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2016

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

142

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo Uma reflexatildeo sobre a intoleracircncia religiosa radical a partir da Genealogia da Moral

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas1

A presenccedila marcante da palavra ldquofundamentalismordquo nos noticiaacuterios nacionais e internacionais mdash sempre associada a escacircndalos de violecircncia ou a discursos sectaacuterios de oacutedio que marcam o cotidiano de inuacutemeros paiacuteses incluindo o Brasil mdash eacute um lembrete de que estes fenocircmenos situam-se entre os grandes desafios enfrentados por governos sociedades e instituiccedilotildees democraacuteticas na atualidade

Tendo surgido na virada do seacuteculo XIX para o seacuteculo XX num contexto de disputas entre grupos de protestantes nos EUA o fundamentalismo cristatildeo sofreu um baque significativo com a repercussatildeo negativa gerada pelo julgamento do professor John Scopes em 1925 por ter desafiado a lei que proibia o ensino do evolucionismo nas escolas puacuteblicas do Tennessee

Rotulado a partir de entatildeo como um movimento retroacutegrado de minorias supersticiosas ele parecia relegado ao esquecimento ateacute seu assustador ressurgimento nas deacutecadas de 1970-1980 o qual marcou o retorno de fundamentalismos dos mais diversos matizes aos palcos da geopoliacutetica global como forccedilas impossiacuteveis de serem negligenciadas condiccedilatildeo que permanece vigente ateacute os dias atuais

Considerando-se a sua natureza complexa e multifaacuteria mdash fato amplamente reconhecido e enfatizado por estudiosos do assunto2 mdash eacute seguro afirmar que o desenvolvimento de abordagens teoacutericas diferenciadas sobre os fundamentalismos tem o potencial de contribuir de maneira decisiva para a ampliaccedilatildeo das suas possibilidades de entendimento sendo este precisamente o objetivo do presente artigo

Nossa proposta de interpretar o fundamentalismo a partir de Nietzsche insere-se num conjunto de iniciativas inauguradas em 2003 com a publicaccedilatildeo de Fundamentalismus mdash maskierter nihilismus por Christoph Tuumlrcke Anos depois esta proposta foi retomada por Oswaldo Giacoia Junior em 2006 com Terrorismos e em 2013 com Nietzsche O humano como memoacuteria e como promessa Estes trabalhos juntamente com nossa pesquisa de doutorado e os textos dela derivados constituem toda a bibliografia sobre o tema o que indica o quanto ele ainda foi pouco explorado

1 Universidade Federal do Tocantins ndash UFT2 A coletacircnea organizada por Martin E Marty e R Scott Appleby comprova a complexidade caracteriacutestica dos

fundamentalismos natildeo apenas pelo seu grande volume e diversidade (mais de 100 capiacutetulos redigidos por autores diferentes totalizando cerca de 3500 paacuteginas) mas tambeacutem pela preocupaccedilatildeo expliacutecita dos organizadores em jus-tificar o emprego do termo ldquofundamentalismordquo como um denominador comum para se referir a fenocircmenos com caracteriacutesticas significativamente diferentes entre si Cf MARTY amp APPLEBY 1991 Introduccedilatildeo

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

143

O nuacutecleo argumentativo desses trabalhos gira em torno da tese de que o surgimento e o fortalecimento dos fundamentalismos satildeo reaccedilotildees tardias contra o niilismo isto eacute contra a acentuada crise dos ideais verdades e valores de natureza metafiacutesica eou transcendente bem como do ethos religioso tradicional a qual foi acompanhada pela crescente racionalizaccedilatildeo e secularizaccedilatildeo das sociedades e de suas principais instituiccedilotildees

Se por um lado o niilismo contribui para esclarecer as dimensotildees psicoloacutegica e existencial dos fundamentalismos por outro lado pretendemos mostrar aqui como o ressentimento se relaciona diretamente com a agressividade e o segregacionismo dos fundamentalistas em relaccedilatildeo agraves sociedades secularizadas e tambeacutem aos seguidores de outras religiotildees

Independentemente das especificidades de cada crenccedila eacute certo que todos os fundamentalismos satildeo intrinsecamente marcados por uma postura combativa (MARTY amp APPLEBY 1991 p 820-826) O enfrentamento dos valores do Anticristo ou da jahiliyyah3 (feminismo poliacutetica e ciecircncia laicas toleracircncia religiosa democracia igualdade de direitos para os grupos LGBT liberdade de expressatildeo etc) exige obediecircncia inquestionaacutevel disciplina rigorosa e disposiccedilatildeo para qualquer sacrifiacutecio A paradoxal criminalidade destes defensores ferrenhos da ldquomoral e dos bons costumesrdquo ― que recorrem sem qualquer escruacutepulo agrave violecircncia brutal agrave sabotagem da poliacutetica agrave discriminaccedilatildeo e assassinato de dissidentes e opositores bem como agrave destruiccedilatildeo de siacutembolos eou templos religiosos alheios ― encontra justificativa na crenccedila de que a perfeiccedilatildeo e a justeza da causa pela qual lutam automaticamente redimiria suas transgressotildees

Diante disso nossa hipoacutetese eacute a de que a disposiccedilatildeo para a violecircncia entre os fundamentalistas eacute fruto de uma condiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica doentia marcada por um profundo grau de debilidade e inseguranccedila perante si e tambeacutem perante a alteridade

() A funccedilatildeo mais importante desse absolutismo imanente [isto eacute do fundamentalismo ndash JPSVB] eacute entretanto proteger a gente das proacuteprias duacutevidas na medida em que se imuniza o novo-velho fundamento ldquoabsolutamenterdquo contra duacutevidas de fora Mas com isso jaacute se afirma tambeacutem que o fundamentalismo eacute― de forma aparentemente paradoxal ―um filho da duacutevida justamente diante do que ele anuncia O fundamentalismo eacute cego diante de si mesmo enquanto tentativa hermeticamente fechada contra toda e qualquer criacutetica de combater e curar com ajuda da droga ldquoabsolutismordquo a deficiecircncia imunoloacutegica aniacutemico-espiritual que pertence agrave constituiccedilatildeo do homem e que o abandonaria natildeo fosse a droga sem proteccedilatildeo ao viacuterus da duacutevida ― da duacutevida diante de ldquoDeusrdquo da igreja da naccedilatildeo da identidade proacutepria ou coletiva do sentido da vida Essa duacutevida eacute sentida pelas pessoas abaladas na sua seguranccedila como uma espeacutecie de AIDS espiritual que a gente contraiu no contato demasiado iacutentimo com a modernidade Sente-se que isso pode ser letal para a feacute a igreja a naccedilatildeo o ego Por isso a difusatildeo e a intensidade do fundamentalismo satildeo indicadores do grau da duacutevida e do desespero daqueles que lhe vendem a sua alma Quem tem certeza da sua feacute do seu ldquodeusrdquo e natildeo precisa por conseguinte temer muito pode demonstrar toleracircncia compreensatildeo e mesmo amor aos que seguem outro credo que pensam diferentemente

3 Em aacuterabe ldquoera da ignoracircnciardquo No Alcoratildeo esse termo refere-se agrave condiccedilatildeo primitiva das tribos aacuterabes no periacuteodo preacute-islacircmico Sayyid Qutb (1906-1966) professor teoacutelogo e literato egiacutepcio cuja obra foi a base para o surgimento e organizaccedilatildeo de grupos fundamentalistas sunitas (tais como Boko Haram Talibatilde HAMAS Al-Qaeda e Estado Islacircmico) retira-o de seu contexto original equiparando a condiccedilatildeo corrompida de todo o mundo natildeo-islacircmico e das sociedades aacuterabes da sua eacutepoca com a jahiliyyah

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

144

Na sua autocompreensatildeo esses outros natildeo ameaccedilam a sua feacute por que ele haveria entatildeo de ameaccedilaacute-los constrangecirc-los A seguranccedila que a sua feacute lhe daacute confere-lhe uma soberania aniacutemico-espiritual que natildeo necessita de nenhuma agressividade e de nenhuma violecircncia para afirmar-se Ele natildeo sofre de nenhum grave problema de identidade que pudesse forccedilaacute-lo a partir do temor da perda da identidade a delimitar-se contra instacircncias exteriores assim por exemplo com ajuda de imagens do inimigo Ele certamente tambeacutem natildeo estaacute imune contra duacutevidas mas a sua feacute eacute suficientemente forte para mantecirc-las em xeque Por isso ele tambeacutem natildeo tem necessidade de defender o seu ldquodeusrdquo ou a sua naccedilatildeo ou os seus valores atraveacutes da construccedilatildeo de um sistema de poder institucional que precisa por sua parte ser imunizado contra influecircncias dissolventes de fora se necessaacuterio com violecircncia (KUumlNZLI 1995 p 66-67) Grifo nosso

Embora Arnold Kuumlnzli natildeo tenha se referido ao arcabouccedilo teoacuterico nietzschiano para pensar sobre o fundamentalismo suas ideias apontam justamente para nossa hipoacutetese de que as razotildees da belicosidade caracteriacutestica dos fundamentalistas residem numa profunda incapacidade desses indiviacuteduos em lidarem com o novo com o diferente com o incontrolaacutevel o que por sua vez faz com que a experiecircncia da alteridade lhes seja algo extremamente desconfortaacutevel e ameaccedilador

Quando se considera o papel desempenhado pela agressividade no modus operandi fundamentalista pode-se afirmar que o emprego da violecircncia eacute tido como um meio para a consecuccedilatildeo de um entre dois principais objetivos combater as outras religiotildees para homogeneizar uma populaccedilatildeo ou entatildeo garantir a segregaccedilatildeo dos fundamentalistas em relaccedilatildeo ao restante do mundo4 No caso de enclaves fundamentalistas em sociedades onde o isolamento total natildeo eacute possiacutevel os esforccedilos de segregaccedilatildeo se concentram em controlar o mais rigorosamente possiacutevel a influecircncia de costumes praacuteticas ou de instituiccedilotildees julgadas como desvirtuadoras tais como os meios de comunicaccedilatildeo agremiaccedilotildees sociais e instituiccedilotildees educacionais

Apesar de parecerem distintos agrave primeira vista ambos os objetivos derivam de um mesmo impulso homogeneizador Conforme as condiccedilotildees histoacutericas poliacuteticas e sociais os fundamentalistas podem se dedicar agrave eliminaccedilatildeo da alteridade que existe fora do grupo ou agrave prevenccedilatildeo do surgimento da alteridade no interior do proacuteprio grupo

O histoacuterico de atuaccedilatildeo de grupos fundamentalistas em vaacuterios paiacuteses mostra que eles procuram se isolar do restante da sociedade a partir do momento em que a eliminaccedilatildeo ou a domesticaccedilatildeo da alteridade se revela como um objetivo impossiacutevel Como exemplos pode-se mencionar o lobby fundamentalista cristatildeo protestante nos EUA em favor da educaccedilatildeo domiciliar surgido apoacutes a aprovaccedilatildeo em 1958 do National Defense Education Act o qual revogou as leis que proibiam o ensino do evolucionismo nas escolas puacuteblicas de alguns estados Diante da impossibilidade de banirem o ensino do evolucionismo para todas as crianccedilas os fundamentalistas buscaram impedir que suas proacuteprias famiacutelias tivessem contato com a ciecircncia secularizada

No acircmbito do islamismo sunita apoacutes constatar que a corrupccedilatildeo generalizada havia rebaixado o mundo islacircmico agrave condiccedilatildeo de jahiliyyah Sayyid Qutb propocircs que os verdadeiros fieis formassem comunidades isoladas

4 Este anseio segregacionista dos fundamentalistas eacute semelhante agrave distopia cinematograacutefica do filme A Vila (2004) onde um grupo de pessoas profundamente traumatizadas decide se afastar do mundo para construiacuterem o sonho de uma sociedade perfeita Cf GALLO amp VEIGA-NETO 2009

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

145

Os muccedilulmanos do presente dizia Qutb precisavam igualmente rejeitar a jahiliyyah contemporacircnea e construir um enclave islacircmico puro Podiam e de fato deviam ser gentis com os descrentes e os apoacutestatas de sua sociedade mas tinham de restringir os contatos a um miacutenimo e adotar uma poliacutetica de natildeo-cooperaccedilatildeo em assuntos vitais como a educaccedilatildeo (HADDAD apud ARMSTRONG 2001 p 275)

Jaacute os judeus haredi por sua vez em face da impossibilidade de lograrem a destruiccedilatildeo do Estado de Israel para que a regiatildeo da ldquoterra santardquo permanecesse livre de instituiccedilotildees humanas como um enorme santuaacuterio eternamente consagrado ao estudo da Toraacute e agrave praacutetica da oraccedilatildeo buscaram isolar-se do restante da sociedade israelense formando comunidades centradas em torno de suas escolas religiosas tradicionais as yeshivot

Esse impulso homogeneizador que eacute incapaz de lidar com a alteridade de uma forma que natildeo seja conflituosa origina-se a partir da constataccedilatildeo dos proacuteprios fundamentalistas de que as sociedades secularizadas exerceriam uma espeacutecie de apelo sedutor e desencaminhador irresistiacutevel para eles Daiacute o acerto da descriccedilatildeo de Kuumlnzli quando emprega um linguajar meacutedico para descrever o modo como os fundamentalistas encaram o mundo corrupto e profano que os cerca um ambiente contaminado que tem o potencial de inocular um ldquoviacuterus espiritualrdquo naqueles que com ele mantiverem um contato demasiado prolongado Prova disso eacute a intensidade e a frequecircncia com que os discursos fundamentalistas representam o mundo secular como um local simultaneamente ameaccedilador e sedutor caracterizado por viacutecios depravaccedilotildees e apostasia

A esse respeito vale destacar a importacircncia da figura do Anticristo nos discursos apocaliacutepticos dos fundamentalistas cristatildeos protestantes a qual eacute associada a uma personalidade inteligente ardilosa e de grande carisma que ldquopela dupla via da perseguiccedilatildeo temporal e da seduccedilatildeo religiosa tenta provocar o fracasso do plano divino de salvaccedilatildeordquo (SEMERARO 2003 p 30)

No acircmbito judaico os haredi acreditam que a fundaccedilatildeo do Estado de Israel seria uma desobediecircncia agraves leis divinas Da mesma forma como ocorreu com o episoacutedio biacuteblico da Torre de Babel todos aqueles que satildeo favoraacuteveis agrave existecircncia de Israel teriam sucumbido agrave tentaccedilatildeo da vaidade e do poder mundanos e portanto cometeram pecado mortal Por fim entre os muccedilulmanos xiitas as expressotildees ldquoocidentoxicaccedilatildeordquo e ldquoocidentoserdquo (ARMSTRONG 2001 p 279) cunhadas por dois intelectuais iranianos entre os anos de 1960 e 1970 natildeo deixam duacutevidas sobre onde se localizaria a fonte da corrupccedilatildeo e do desencaminhamento do povo iraniano

Eacute justamente na identificaccedilatildeo das raiacutezes da belicosidade fundamentalista numa profunda inseguranccedila e incocircmodo perante o outro que se encontra a base para o estabelecimento de uma relaccedilatildeo teoacuterica destes fenocircmenos com o ressentimento Quando considerada agrave luz do ressentimento a incapacidade dos fundamentalistas em lidar com a alteridade de uma forma que natildeo seja agressiva revela-se como o resultado de uma profunda suscetibilidade fisiopsicoloacutegica associada a um princiacutepio moral que defende a eliminaccedilatildeo das diferenccedilas em favor da absolutizaccedilatildeo de uma uacutenica perspectiva de sentido verdade e valor

Na Genealogia da Moral Nietzsche subsume sob a rubrica ldquoressentimentordquo um amplo conjunto de reflexotildees que podem ser didaticamente divididas em quatro sentidos principais todos eles presentes na primeira dissertaccedilatildeo Em primeiro lugar o termo se relaciona com a caracterizaccedilatildeo de um tipo de constituiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica na qual o

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

146

ressentido eacute apresentado como um indiviacuteduo fraco e decadente em contraposiccedilatildeo a outros mais saudaacuteveis e felizes

(hellip) Os ldquobem-nascidosrdquo se sentiam mesmo como os ldquofelizesrdquo eles natildeo tinham de construir artificialmente a sua felicidade de persuadir-se dela menti-la para si por meio de um olhar aos seus inimigos (como costumam fazer os homens do ressentimento) e do mesmo modo sendo homens plenos repletos de forccedila e portanto necessariamente ativos natildeo sabiam separar a felicidade da accedilatildeo mdash para eles ser ativo eacute parte necessaacuteria da felicidade (nisso tem origem εὖ πράττειν [fazer bem estar bem]) mdash tudo isso o oposto da felicidade no niacutevel dos impotentes opressos achacados por sentimentos hostis e venenosos nos quais ela aparece essencialmente como narcose entorpecimento sossego paz ldquosabbatrdquo distensatildeo do acircnimo e relaxamento dos membros ou numa palavra passivamente (NIETZSCHE 2004 p 30)

O segundo sentido com que Nietzsche emprega o ressentimento eacute de longe o mais conhecido devido agrave estreita associaccedilatildeo com as caracteriacutesticas do protagonista do romance Memoacuterias do Subsolo de Dostoieacutevski Aqui o filoacutesofo se refere ao modo de reagir agraves contrariedades infortuacutenios e reveses inevitaacuteveis da vida enquanto que nos indiviacuteduos bem constituiacutedos as respostas se dariam por meio de uma accedilatildeo imediata os ressentidos teriam um ldquosentimento de obstruccedilatildeo fisioloacutegicardquo (NIETZSCHE 2004 p 120) Perante uma situaccedilatildeo ou um estiacutemulo externo que provoca uma determinada reaccedilatildeo o indiviacuteduo ressentido eacute total ou parcialmente incapaz de fazecirc-la devido a esta inibiccedilatildeo de forma que a carga pulsional ao inveacutes de se descarregar para fora descarrega-se para dentro Como consequecircncia os ressentidos seriam obrigados a se contentar com uma resposta meramente imaginaacuteria ldquoA rebeliatildeo escrava na moral comeccedila quando o proacuteprio ressentimento se torna criador e gera valores o ressentimento dos seres aos quais eacute negada a verdadeira reaccedilatildeo a dos atos e que apenas por uma vinganccedila imaginaacuteria obtecircm reparaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 2004 p 28-29)

A impossibilidade de eliminaccedilatildeo eou assimilaccedilatildeo dos afetos negativos somada agrave excessiva vulnerabilidade fazem com que os ressentidos continuem sentindo e sofrendo as consequecircncias de perturbaccedilotildees passadas haacute muito tempo Como resultado previsiacutevel tem-se uma profunda ldquodesordem psiacutequicardquo (PASCHOAL 2014 p 33) caracterizada por um oacutedio e rancor crescentes acompanhados de um anseio doentio por vinganccedila por fazer sofrer aqueles considerados responsaacuteveis pela miseacuteria dos ressentidos No entanto a proacutepria natureza debilitada e inibida desses indiviacuteduos faz com que este anelo vingativo permaneccedila na praacutetica irrealizaacutevel (Idem p 33-34)

Se o termo ressentimento tivesse sido empregado por Nietzsche apenas nos dois sentidos anteriormente mencionados mdash ambos situados no acircmbito de uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas psiacutequicas fisioloacutegicas e pulsionais de um determinado tipo humano mdash eacute certo que nossa proposta de empregaacute-lo como chave de leitura do modus operandi fundamentalista natildeo seria capaz de abarcar a amplitude e as peculiaridades deste fenocircmeno

Conquanto a suscetibilidade doentia dos ressentidos possa servir como recurso para pensar tanto a origem da enorme dificuldade dos fundamentalistas em aceitar a alteridade como tambeacutem a facilidade com que eles se sentem profundamente ofendidos com provocaccedilotildees de qualquer natureza5 ainda assim os fundamentalistas natildeo se enquadrariam 5 Tomando como exemplo o ataque ao escritoacuterio da revista francesa Charlie Hebdo em janeiro de 2015 que teve como

saldo 11 mortos e 11 feridos eacute possiacutevel constatar que se um grupo de indiviacuteduos considera que a ofensa causada por algumas poucas caricaturas ordinaacuterias eacute digna de morte e de fato leva esta ameaccedila agraves vias de fato entatildeo natildeo pode haver

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

147

nem de longe na categoria nietzschiana de indiviacuteduos inibidos na sua capacidade de reagir agraves ofensas Pelo contraacuterio o que se pode observar entre eles eacute o cultivo de uma postura permanente de militacircncia ativa e de agressividade expliacutecita cuja temeridade alcanccedila as raias do autossacrifiacutecio sem se deter ante qualquer perigo ou ameaccedila

Eacute preciso ressaltar todavia que os sentidos do ressentimento que melhor se prestam a um esclarecimento sobre os fundamentalismos satildeo distintos Para aleacutem de realizar uma caracterizaccedilatildeo fisiopsicoloacutegica Nietzsche tambeacutem emprega esse termo em suas reflexotildees sobre a moral Contudo para que se consiga compreender de que forma uma constituiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica doentia e inibida se relaciona com o desenvolvimento de valores morais que sustentam um discurso radicalmente intolerante e segregacionista eacute preciso refletir sobre o modo como os fundamentalistas se relacionam com a alteridade

Toda alteridade eacute um obstaacuteculo e isso vale para todos os seres vivos Desde a infacircncia somos confrontados com indiviacuteduos e situaccedilotildees que limitam a satisfaccedilatildeo de nossos desejos e a realizaccedilatildeo plena de nossas vontades Aleacutem disso eacute de amplo conhecimento que o enfrentamento dos obstaacuteculos representados pela alteridade eacute parte fundamental do processo de desenvolvimento psicoloacutegico e emocional de todo ser humano

No entender de Nietzsche o fato dos ressentidos natildeo terem condiccedilotildees de reagir agrave altura das perturbaccedilotildees sofridas priva-os da possibilidade de descarregarem para fora de si seus impulsos negativos e frustraccedilotildees Essa condiccedilatildeo quando somada agrave incapacidade deles em assimilar as energias psiacutequicas deleteacuterias desses eventos digerindo-as (incapacidade esta que por sua vez eacute uma consequecircncia da sua fragilidade fisiopsicoloacutegica referida no primeiro sentido do ressentimento) gera como resultado uma excessiva suscetibilidade visto que o delicado equiliacutebrio desses indiviacuteduos moacuterbidos acaba sendo perturbado ateacute mesmo por ocorrecircncias insignificantes

Os ressentidos sofrem grandes dificuldades ao se confrontarem com o outro com o diferente com o imprevisiacutevel de uma forma isenta de problemas porque sua debilidade fisiopsicoloacutegica faz com que o seu fraacutegil equiliacutebrio venha a ser facilmente perturbado sempre que eles se chocam com uma alteridade que lhes eacute incontrolaacutevel e da qual natildeo conseguem se desvencilhar por meio de uma reaccedilatildeo adequada Soma-se a isso o fato de que eles satildeo incapazes de compreender (ou se compreendem relutam em aceitar) que a causa de seus malogros frustraccedilotildees e experiecircncias negativas reside primordialmente na sua proacutepria fraqueza e debilidade o que os leva a impingir a culpa das suas miseacuterias agrave existecircncia eou agrave accedilatildeo dos diferentes

A consequecircncia previsiacutevel da repeticcedilatildeo de ocorrecircncias deste tipo eacute o surgimento de um oacutedio profundo perante a alteridade acompanhado pelo anseio por desvalorizaacute-la enfraquececirc-la controlaacute-la eou destruiacute-la

A partir deste ponto podemos entatildeo falar de um terceiro sentido do ressentimento o qual se constitui numa diferenciaccedilatildeo entre dois modos possiacuteveis pelos quais os indiviacuteduos seriam levados a afirmar proacutepria individualidade e por conseguinte estruturar seus juiacutezos morais enquanto que nos fortes e saudaacuteveis o ponto de partida eacute a autoafirmaccedilatildeo (constituindo uma moral que surge a partir de um olhar que se volta para o proacuteprio indiviacuteduo) nos ressentidos a criaccedilatildeo de juiacutezos morais se daacute de forma secundaacuteria reativa derivada pois eles tecircm necessidade de olhar primeiramente para fora de si negando a alteridade para soacute entatildeo afirmarem a si proacuteprios

qualquer duacutevida quanto agrave profunda vulnerabilidade da condiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica dessas pessoas Eacute inegaacutevel a diferenccedila entre sentir-se incomodado com uma provocaccedilatildeo de gosto duvidoso e responder a ela com um ataque armado

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

148

() Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma jaacute de iniacutecio a moral escrava diz Natildeo a um ldquoforardquo um ldquooutrordquo um ldquonatildeo-eurdquo mdash e este Natildeo eacute seu ato criador Esta inversatildeo do olhar que estabelece valores mdash este necessaacuterio dirigir-se para fora em vez de voltar-se para si mdash eacute algo proacuteprio do ressentimento a moral escrava sempre requer para nascer um mundo oposto e exterior para poder agir em absoluto mdash sua accedilatildeo eacute no fundo reaccedilatildeo O contraacuterio sucede no modo de valoraccedilatildeo nobre ele age e cresce espontaneamente busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior juacutebilo e gratidatildeo mdash seu conceito negativo o ldquobaixordquo ldquocomumrdquo ldquoruimrdquo eacute apenas uma imagem de contraste paacutelida e posterior em relaccedilatildeo ao conceito baacutesico positivo inteiramente perpassado de vida e paixatildeo ldquonoacutes os nobres noacutes os bons os belos os felizesrdquo (NIETZSCHE 2004 p 29)

Eacute de se esperar que em comunidades ou grupos sociais formados majoritariamente por indiviacuteduos ressentidos essa perspectiva de mundo acabe por assumir o papel de um conjunto de valores coletivamente compartilhados de forma que os diferentes venham gradualmente a ser discriminados com intensidade cada vez maior

Como se pode facilmente prever o compartilhamento social da visatildeo de mundo e dos valores dos ressentidos acaba com o passar do tempo por servir de base para um tipo de cultura profundamente marcada pela intoleracircncia pela exclusatildeo e discriminaccedilatildeo social e nos piores casos pelo extermiacutenio dos diferentes sendo que estas formas de violecircncia satildeo justificadas pela rotulaccedilatildeo da alteridade como subversiva criminosa depravada degenerada pecaminosa maacute etc

Por fim o quarto sentido do ressentimento diz respeito a um fenocircmeno social criador de valores o qual emerge como resultado das condiccedilotildees fisiopsicoloacutegicas doentias anteriormente mencionadas6 No livro Nietzsche e o ressentimento Antonio Edmilson Paschoal avanccedila no desenvolvimento deste sentido que foi primeiramente destacado por Max Scheler afirmando que o ressentimento corresponde aiacute ldquoa uma moral a uma concepccedilatildeo de justiccedila e a um modo de intervenccedilatildeo socialrdquo (PASCHOAL 2014 p 42)

Na denominada ldquomoral de animal de rebanhordquo (ABM 202) expressatildeo que Nietzsche utiliza para sintetizar aquela forma de valoraccedilatildeo tiacutepica do ressentimento a sede de vinganccedila assume contornos de uma tentativa de domiacutenio de impor uma determinada forma de organizaccedilatildeo visando desestabilizar possiacuteveis concorrentes e intensificar o proacuteprio poder Porquanto ela natildeo se volta apenas para pretensos detratores ou para aqueles que satildeo considerados culpados pelo sofrimento do fraco mas contra todos aqueles que natildeo sofrem como ele e que portanto natildeo satildeo seus iguais

Universalizada dessa maneira a sede de vinganccedila recebe o nome de ldquojusticcedilardquo institucionalizando aquele princiacutepio de igualdade que de resto conflui numa massificaccedilatildeo disforme espalhando-se por todo o corpo social como o veneno de uma taracircntula que invade sua viacutetima Em relaccedilatildeo ao fraco tal veneno funciona como um anesteacutesico que permite a ele suportar seu sofrimento sem sucumbir a ele e em relaccedilatildeo ao forte como um entorpecimento que visa enfraquececirc-lo Em ambos os casos o propoacutesito eacute um nivelamento 6 Embora de forma menos expliacutecita que os outros trecircs sentidos mencionados ainda assim a presenccedila deste quarto

sentido do ressentimento pode ser observada nos aforismos 6 a 9 da primeira dissertaccedilatildeo onde o filoacutesofo aborda o surgimento da moral sacerdotal e o posterior conflito dela com a moral dos guerreiros o qual eacute referido como a primeira transvaloraccedilatildeo de todos os valores

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

149

do homem a produccedilatildeo do rebanho universal e impedir o aparecimento de tipos diferentes de homem (PASCHOAL 2014 p 71-72)

A hipoacutetese de que o ressentimento daria ensejo ao surgimento de um anseio pelo domiacutenio absoluto de uma perspectiva unilateral de valores a qual almeja em uacuteltima instacircncia a homogeneizaccedilatildeo da humanidade e dos discursos sob uma uacutenica bandeira natildeo apenas se coaduna com uma condiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica de excessiva fraqueza como tambeacutem parece corresponder ao modus operandi dos fundamentalismos

Considerando-se que os fundamentalistas encaram a vida nas sociedades secularizadas com seus princiacutepios democraacuteticos de igualdade Estado laico liberdade de expressatildeo etc como uma experiecircncia ofensiva e ultrajante de sofrimento e desestabilizaccedilatildeo existencial e ainda considerando-se que tanto os ateus como os religiosos liberais satildeo vistos como cuacutemplices desta sociedade corrupta entatildeo eacute certo que o desejo deles pela eliminaccedilatildeo da alteridade pode perfeitamente ser considerado como um anseio doentio por vinganccedila que rotula como culpados todos aqueles que natildeo sofrem como os fundamentalistas anseio este sintetizado por Nietzsche na conhecida sentenccedila ldquoEu sofro disso algueacutem deve ser culpadordquo (NIETZSCHE 2004 p 117)

Agrave luz da presente reflexatildeo os esforccedilos dos fundamentalistas para se afastarem do mundo natildeo se contradizem com o ideal expansivo e homogeneizador da moral do ressentimento visto que este ideal acaba por transparecer nos seus contiacutenuos esforccedilos para conquistar novos proseacutelitos Por meio do amplo emprego de teacutecnicas avanccediladas de comunicaccedilatildeo de propaganda e de psicologia de massas os fundamentalistas vecircm conseguindo engrossar suas fileiras veiculando discursos simplistas que ao mesmo tempo em que apregoam a existecircncia de uma crise religiosa e moral tambeacutem apontam quais os culpados a serem enfrentados e qual a recompensa que aguarda agravequeles que seguirem fielmente o caminho redentor

Esta surpreendente semelhanccedila entre de um lado o anseio doentio dos sacerdotes asceacuteticos ressentidos por espalharem sua cura venenosa a todos buscando deliberadamente adoecer os sadios e bem logrados com o objetivo uacuteltimo de transformar a humanidade num gigantesco rebanho de animais mansos e domesticados e de outro lado o repuacutedio escancarado de todos os discursos fundamentalistas pelo pluralismo poliacutetico e religioso pelo agonismo democraacutetico e pela liberdade de expressatildeo evidencia o significativo potencial do ressentimento para esclarecer aspectos importantes do fundamentalismo

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

150

Referecircncias bibliograacuteficasARMSTRONG Karen Em nome de Deus O fundamentalismo no judaiacutesmo cristianismo e islamismo Trad Hildegard Feist Satildeo Paulo Cia das Letras 2001DE BONI Luis A (Org) Fundamentalismo Porto Alegre EDIPUCRS 1995GALLO Silvio VEIGA-NETO Alfredo (Orgs) Fundamentalismo amp Educaccedilatildeo ― A Vila Belo Horizonte Autecircntica 2009GIACOIA Junior Oswaldo Nietzsche O humano como memoacuteria e como promessa Petroacutepolis Vozes 2013MARTY Martin E amp APPLEBY R Scott (Orgs) Fundamentalisms Observed ChicagoLondres The University of Chicago Press 1991NIETZSCHE Friedrich Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB) Org Paolo DrsquoLorio Disponiacutevel em lt httpwwwnietzschesourceorg gtAcesso em 09 nov 2018_____ Genealogia da Moral Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Cia das Letras 2004PACOMIO Luciano (Org) LEXICON ndash Dicionaacuterio Teoloacutegico Enciclopeacutedico Satildeo Paulo Loyola 2003PASCHOAL Antonio Edmilson Nietzsche e o ressentimento Satildeo Paulo Humanitas 2014PASSETI Edson OLIVEIRA Salete (Orgs) Terrorismos Satildeo Paulo EDUC 2006TUumlRCKE Christoph Fundamentalismus mdash maskierter Nihilismus Springe zu Klampen Verlag 2003VILAS BOcircAS Joatildeo Paulo S Niilismo fanatismo e terror uma leitura do fundamentalismo a partir de Friedrich Nietzsche 2016 Tese (Doutorado) ― Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas Universidade Estadual de Campinas Campinas

Joseacute Nicolao Juliatildeo

151

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

Joseacute Nicolao Juliatildeo1

IntroduccedilatildeoNa uacuteltima fase da sua filosofia de forma mais geral Nietzsche quis dar uma unidade

agrave sua obra como um todo isto pode ser constatado tanto nas diversas anotaccedilotildees no espoacutelio quanto no vasto epistolaacuterio2 da eacutepoca mas tambeacutem na forma organizada como reprefaciou as obras anteriores apoacutes o teacutermino de PBM No entanto do ponto de vista teoacuterico para realizar tal tarefa ele foi buscar focirclego na fecundidade do distanciamento da moral (Distanzierung von der Moral)3 Nietzsche fez do tema do distanciamento embora natildeo fosse algo novo4 uma das tarefas fundamentais da sua filosofia madura acentuando isto nos tiacutetulos dos seus tratados PBM e GM Ele procurou portanto compreender o pensamento europeu em sua totalidade a partir da sua proacutepria posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave moral contudo tinha consciecircncia que por mais que quisesse se distanciar da moral ele natildeo poderia sair totalmente do seu domiacutenio Por isso propocircs uma transvaloraccedilatildeo dos valores (Umwerthung aller Werthe) apropriando-se da historicizaccedilatildeo oferecida pelo seacuteculo XIX para fazer tal distanciamento pois uma vez que se escreve a histoacuteria de algo distanciando-se desse algo pode-se usando na medida exata a memoacuteria e o esquecimento - que o afastamento propicia - melhor avaliar esse algo tendo desta maneira a histoacuteria em geral a seu serviccedilo A moral historicizada em oposiccedilatildeo ao seu caraacuteter metafiacutesico atemporal que Nietzsche pensa desde HH I5 eacute retomada e considerada como um fato contingente que emergiu sob determinadas condiccedilotildees de existecircncia e que consequentemente pode se remodelar ou mesmo se dissolver sob outras condiccedilotildees de existecircncia e a genealogia serve exatamente para avaliar este processo

Na uacuteltima fase da sua filosofia nomeadamente fase da transvaloraccedilatildeo dos valores Nietzsche ao tratar do sentido histoacuterico a partir da histoacuteria da emergecircncia dos sentimentos morais ele o faraacute agora6 marcado essencialmente em sua relaccedilatildeo com a atividade

1 Doutor em filosofia pela UNICAMP Prof Titular da UFRRJ2 Por exemplo Cf carta para Franz Overbeck de 24 de marccedilo de 1887 (KSB 848s) carta para Meta von Salis de 14

de setembro de 1887 (KSB 8151)3 Esta eacute uma tese de Werner Stegmaier que noacutes adotamos em nossa interpretaccedilatildeo da uacuteltima fase do pensamento de

Nietzsche Cf Stegmaier 1994 p 404 Em GC 15 Nietzsche trata da questatildeo do ldquoafastamentordquo da ldquodistacircnciardquo do ldquolongerdquo que ele agraves vezes usa como Dis-

tanz ou Ferne contudo relacionando mais com questotildees esteacuteticas5 Cf HH I segunda parte ldquoContribuiccedilatildeo agrave histoacuteria dos sentimentos moraisrdquo6 Nietzsche remissivamente no prefaacutecio agrave GM diz o seguinte sobre HH ldquo[] foi agrave primeira vez que eu apresentei

a proveniecircncia daquelas hipoacuteteses as quais estas dissertaccedilotildees satildeo dedicadas com torpeza que eu seria o uacuteltimo a querer ocultar-me ainda sem liberdade sem dispor de uma linguagem proacutepria (eigne Sprache) para dizer estas coisas proacuteprias e com muacuteltiplas recaiacutedas e flutuaccedilotildees(GM prefaacutecio 4) Em nossa interpretaccedilatildeo quando Nietzsche fala de

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

152

fundamental da vontade de poder que passa a ganhar evidecircncia capital em sua obra a partir de Aurora tornando-se a sua Grundwort desde o Zaratustra e de maneira muito especial nas obras genealoacutegicas PBM e GM7 Nesse periacuteodo de modo geral tomando as obras desde PBM ateacute EH ele teraacute em relaccedilatildeo ao sentido histoacuterico uma posiccedilatildeo ora incisivamente criacutetica ora efusivamente festiva vendo-o de forma positiva dependendo do texto e contexto da sua inserccedilatildeo Deste modo em o CI vemos Nietzsche fazer um elogio ao tema muito anaacutelogo ao jaacute apresentado em HH II 17 contrapondo-o ao ldquoegipcismordquo filosoacutefico ou seja agrave falta de sentido histoacuterico dos filoacutesofos devido ao enrijecimento atemporal de suas ideias com pretensatildeo de eternidade definidas por conceitos como modo de reaccedilatildeo ao caraacuteter mutaacutevel do devir diz ele

Quereis que vos diga tudo que eacute peculiar aos filoacutesofos Por exemplo sua falta de sentido histoacuterico seu oacutedio agrave ideia do devir seu egipcismo Creem honrar uma coisa despojando-a de seu aspecto histoacuterico sub specie aeterni quando fazem dela uma muacutemia Tudo com que os filoacutesofos se ocupam haacute milhares de anos satildeo ideias mdash muacutemias nada real saiu vivo de suas matildeos Esses senhores idoacutelatras das ideias quando adoram matam e empalham tudo eacute posto em perigo de morte quando eles adoram A morte a evoluccedilatildeo a idade tanto quanto o nascimento e o crescimento satildeo para eles natildeo soacute objeccedilotildees como ateacute refutaccedilotildees O que eacute natildeo se torna natildeo se faz e o que se torna ou se faz natildeo eacute Todos acreditam desesperadamente no ser (CI ldquoA razatildeo na filosofiardquo 1)

Nas primeiras paacuteginas da mesma obra entretanto constatamos uma caricata metaacutefora para descrever o historiador que se prende ao passado acarretando assim uma grande ineacutercia para o presente ldquoA forccedila de buscar o comeccedilo se converte em um caranguejo O historiador olha para traacutes e acaba por fim tambeacutem crendo (glaubt) para traacutesrdquo (CI ldquoMaacuteximas e saacutetirasrdquo 24) Jaacute em PBM 224 KSA XI 34(229) GM I 2 e II 12 e ainda EH ldquoAs Extemporacircneasrdquo 1 notamos uma aguda criacutetica majoritariamente ao sentido histoacuterico e ao historicismo poreacutem apontando mesmo que de forma menos expressiva para certas vantagens Assim em KSA XI 34(229) do espoacutelio de 1885 vemos um tom reprovativo no que concerne ldquoao erro baacutesico de todo historiadorrdquo ao qual ele natildeo se submete - pois natildeo admite que ldquoos fatos (die facta) sejam todos bem menores do que parecem serrdquo E na referida passagem de EH remissiva agrave Ext II Nietzsche manteacutem o mesmo diagnoacutestico de doenccedila e decadecircncia do seu seacuteculo em consequecircncia do orgulho depositado no sentido histoacuterico diz ele ldquoNeste ensaio o lsquosentido histoacutericorsquo de que o presente histoacuterico tanto se orgulha eacute pela primeira vez reconhecido como doenccedila como tiacutepico sinal de decadecircnciardquo (EH ldquoAs Extemporacircneasrdquo 1) Ainda satildeo dignas de destaque no uacuteltimo periacuteodo as criacuteticas remetidas agrave fecundidade do meacutetodo evolutivo progressivo disseminado natildeo soacute na histoacuteria mas nas ciecircncias em geral ldquoprogresso eacute simplesmente uma ideia moderna ou seja uma ideia falsa O europeu de hoje vale bem menos do que o europeu do Renascimento desenvolvimento contiacutenuo natildeo eacute forccedilosamente elevar-se aperfeiccediloar-se fortalecer-serdquo (AC 4)8 Todavia o que se torna mais relevante - segundo a nossa hipoacutetese hermenecircutica - na

uma ldquolinguagem proacutepria (eigne Sprache)rdquo ele estaacute se referindo aos conceitos chaves da sua filosofia especialmente agrave vontade de poder

7 Incluindo entre essas os prefaacutecios tardios do ano de 18868 Cf tambeacutem KSA XIII 15 (8) da mesma eacutepoca com conteuacutedo parecido ldquonatildeo devemo-nos deixar enganar O

tempo caminha a diante gostariacuteamos de acreditar que tudo que estaacute nele caminhasse tambeacutem para frente ndash que o desenvolvimento eacute o que se move para adiante E quanto ao correlato do progresso a ideia de humanidade ele diz a humanidade natildeo avanccedila nem sequer existerdquo

Joseacute Nicolao Juliatildeo

153

uacuteltima fase do processo de desenvolvimento intelectual de Nietzsche em seu tratamento filosoacutefico da histoacuteria eacute a sua concepccedilatildeo de genealogia9 apresentada implicitamente em PBM e de forma muito especial em a GM Nessas obras a moral eacute historicizada a partir de novas bases contrapondo-a a visatildeo metafiacutesica-moral do mundo sendo considerada como um fato contingente que emergiu de determinadas condiccedilotildees de existecircncia e que se pode transvalorar ou mesmo se dissolver sob outras condiccedilotildees de existecircncia e por isso eacute pensada como indefiniacutevel tal como reza a exigecircncia do ldquomeacutetodordquo ldquoDefiniacutevel eacute apenas aquilo que natildeo tem nenhuma histoacuteriardquo (GM II 13)

O sentido histoacuterico e a genealogia na Genealogia da MoralA GM e a Ext II satildeo as duas obras nas quais o seu autor de forma mais ldquosistemaacuteticardquo

ndash embora repugne sistemas10 - discorre sobre a problemaacutetica da histoacuteria em sua filosofia sem contudo ligar os dois tratados natildeo haacute nenhuma referecircncia remissiva agrave obra de juventude na madura embora alguns temas sejam comuns A primeira eacute desenvolvida ainda muito influenciada pelas teses que Nietzsche apresentou em o NT que repercutiram fortemente sobre ela Jaacute a segunda eacute marcada a partir de novos paradigmas essencialmente pela atividade fundamental da vontade de poder que comeccedilou a ser delineada a partir das reflexotildees sobre o ldquosentido da potecircnciardquo em Aurora e em alguns fragmentos poacutestumos contemporacircneos mas tambeacutem por sua tentativa de oferecer uma unidade como um todo a sua obra focada na questatildeo da moral e ainda por seu distanciamento metodoloacutegico estabelecendo certo equiliacutebrio no uso da memoacuteria e do esquecimento ndash equiliacutebrio este que jaacute havia sido proposto em a Ext II - para apreender o passado Portanto em nossa hipoacutetese interpretativa depois que a GM foi apresentada como um esclarecimento (Erlaumluterung) agrave PBM ela se tornou independente se constituindo por assim dizer como o mais completo trabalho filosoacutefico de Nietzsche nela estatildeo reunidos todos os grandes temas de sua filosofia e de forma muito especial as suas consideraccedilotildees sobre a histoacuteria ndash sentido histoacuterico e niilismo - sob a insiacutegnia da genealogia

O tema do niilismo comeccedila aparecer no final da fase intermediaacuteria na filosofia de Nietzsche ganha evidecircncia precisamente em obra publicada entre o teacutermino de PBM e o iniacutecio da GM aparecendo mais destacadamente nos aforismos iniciais do quinto livro de a GC ndash os que vatildeo de 343 a 347 ndash e no conjunto poacutestumo de sentenccedilas de Lenzer-Heide ldquoO niilismo europeurdquo Em a GM11 ainda que a escrita da palavra tenha uma presenccedila tiacutemida o tema eacute recorrente ao longo dos trecircs ensaios sendo abordado tambeacutem em outros domiacutenios que natildeo o histoacuterico pois aparece ainda como sintoma de decrepitude tanto fisioloacutegico quanto psicoloacutegico A questatildeo ocorre desde o proacutelogo 4 quando confronta Schopenhauer por ter dourado e divinizado a compaixatildeo a abnegaccedilatildeo e o sacrifiacutecio transformando-os em valores em-si a partir dos quais disse um natildeo agrave vida perpassando o paraacutegrafo 12 do primeiro ensaio definindo-o como o cansaccedilo do homem por si mesmo no qual pergunta e responde ldquoo que eacute o niilismo hoje se natildeo isto Estamos cansados do homemrdquo na variada forma do niilismo compreendido como nada no paraacutegrafo 11 do segundo ensaio no qual condena como um sinal de cansaccedilo e uma hostilidade contra a vida que lanccedilaria

9 A primeira vez Nietzsche se refere a genealogia como seu pensamento filosoacutefico eacute em um fragmento do veratildeo-ou-tono de 1884 KSA XI 26 (432) no qual eacute dito ldquoQuando eu penso em minha genealogia filosoacutefica entatildeo me sinto em um contexto antiteleoloacutegico isto eacute o movimento espinosista de nosso tempo mas com uma diferenccedila que eu tambeacutem sustento que a ldquofinalidaderdquo e a ldquovontaderdquo em noacutes isto eacute um enganordquo O termo jaacute havia aparecido antes no entanto sem se referir a sua filosofia

10 Cf CI ldquoSentenccedilas e flechasrdquo 2611 Para um estudo mais apurado da relaccedilatildeo niilismo e histoacuteria em a GM cf BORN (2010)

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

154

consequentemente a humanidade futura rumo ao nada apoiado na ideia de direito de Eugen Duumlhring12 segundo a qual ldquotoda vontade deve considerar toda outra vontade como igualrdquo (GM II 11) e ganhando destaque de quem passa de coadjuvante para protagonista tambeacutem em sua variante como nada na uacuteltima linha da obra com a seguinte formulaccedilatildeo ldquoo homem ainda prefere querer o nada do que nada quererrdquo (GM III 28) Contudo em a GM a exortaccedilatildeo maior do niilismo em seu tratamento histoacuterico fica expressa na ideia de que os valores a partir dos quais a humanidade se edificou satildeo desprovidos de valor

Quanto ao termo sentido histoacuterico ele natildeo aparece cunhado sequer uma vez no tratado entretanto surge o seu similar espiacuterito histoacuterico (historischer Geist) -que o filoacutesofo jaacute havia formulado no supracitado paraacutegrafo 223 de PBM - no segundo paraacutegrafo do primeiro ensaio ldquoTodo o respeito portanto aos bons espiacuteritos que acaso habitem esses historiadores da moral Mas infelizmente eacute certo que lhes falta o proacuteprio espiacuterito histoacuterico que foram abandonados precisamente pelos bons espiacuteritos da histoacuteriardquo (GM I 2) Natildeo obstante apesar de Nietzsche natildeo falar literalmente de sentido histoacuterico em GM II 12 articulando somente a noccedilatildeo de ldquosentidordquo (ldquoSinnrdquo) de forma geneacuterica seraacute nessa seccedilatildeo que ele seraacute mais condizente lsquometodologicamentersquo com a sua ideia apresentada imediatamente logo apoacutes terminar PBM de que ldquoA filosofia tal como eu a considero como a forma mais geral da histoacuteria a tentativa de descrever e abreviar alguns sinais do vir-a-ser (Werden) heracliacutetico (traduzir e mumificar por assim dizer uma espeacutecie de ser aparente)rdquo (KSA XI 36 (27))

A exortaccedilatildeo para que a filosofia se torne histoacuterica Nietzsche algumas vezes jaacute havia se esforccedilado para mostrar isto quando por exemplo tentou descrever uma ldquohistoacuteria dos sentimentos moraisrdquo no segundo capiacutetulo de HH I ou uma ldquohistoacuteria natural da moralrdquo no quinto capiacutetulo de PBM Todavia a sua mais bem sucedida tentativa de historicizar a moral foi apresentada em a GM um livro cuja missatildeo eacute derivada a partir de uma convicccedilatildeo profunda historicista que ldquopretende conhecer sob quais condiccedilotildees e circunstacircncias que os valores morais nasceram se desenvolveram e se transformaramrdquo (GM proacutelogo 6) Com efeito a prima facie Nietzsche parece exigir um conjunto de premissas histoacutericas demonstraacuteveis tais como que realmente houve um tempo durante o qual um conjunto de valores aristocraacuteticos dominou e um momento posterior em que se tornou obsoleto devido agrave inversatildeo promovida desses valores pela moral dos escravos E chega a reivindicar a busca da ldquomoralidade como ela realmente existiu e foi realmente vividardquo ldquoa histoacuteria real da moralidaderdquo que pode ldquorealmente ser confirmada e tenha realmente existidordquo13 Isso no entanto envolveria a genealogia de Nietzsche em problemas consideraacuteveis sobre meta-histoacuteria14 e teoria da histoacuteria alguns dos quais ele mesmo apresenta Por isso para noacutes a genealogia eacute antes de tudo uma tentativa do seu autor articular a histoacuteria do desenvolvimento dos valores morais de uma forma que mine a crenccedila dos seus contemporacircneos no valor absoluto dos seus proacuteprios valores e ele faz isso em dois niacuteveis

Em primeiro lugar oferecendo uma explicaccedilatildeo histoacuterica que revela o caraacuteter intrinsecamente histoacuterico e natildeo absoluto (metafiacutesico atemporal) dos valores morais E sobre este artigo Nietzsche tinha aliados respeitaacuteveis como Paul Reacutee e a ldquoEscola Inglesardquo 12 Cf Der Wert des Lebens (1865) sobre a relaccedilatildeo de Nietzsche e Eugen Duumlhring Venturelli (2003) pp 203-23713 Cf GM proacutelogo 714 Tomamos aqui como meta-histoacuteria a investigaccedilatildeo que se propotildee a estabelecer um conjunto de regras ou leis que

regem os fatos histoacutericos e o lugar destes fatos numa visatildeo explicativa do mundo neste sentido Nietzsche teria uma antimeta-histoacuteria uma vez que em sua visatildeo histoacuterica do mundo natildeo haacute leis e regras que rejam fatos pois os fatos nem existem satildeo produtos da interpretaccedilatildeo Cf sobre uma visatildeo acerca da meta-histoacuteria na discussatildeo na teoria da histoacuteria White H (1992)

Joseacute Nicolao Juliatildeo

155

de psicologia-moral representada principalmente por Herbert Spencer15 - que seguiu a alusatildeo de Charles Darwin que mesmo a moralidade deve ser vista como um fenocircmeno evolutivo16 Mas enquanto a sua interpretaccedilatildeo de que a evoluccedilatildeo parecia garantir o status progressivo dos valores fundamentalmente cristatildeos como altruiacutesmo honestidade cooperaccedilatildeo e compaixatildeo a proacutepria ldquopsicologizaccedilatildeo-historicizadardquo de Nietzsche descobriu um lado mais obscuro da moralidade Na verdade em virtude do texto em si representar algo como um novo-darwinismo17 ou entatildeo um anti-darwinismo18 na medida em que rejeita o progresso evolutivo substituindo-o por uma visatildeo de ldquocompeticcedilatildeo entre forccedilasrdquo como um mecanismo para explicar as mudanccedilas histoacutericas Nietzsche rejeita as estimativas darwinistas refutando as suas presunccedilotildees sobre a origem do valor que repousariam no beneficiaacuterio em vez de no agente de ldquoboasrdquo ou ldquomaacutesrdquo accedilotildees acerca da natureza com a finalidade de conservaccedilatildeo19 ao inveacutes de superaraccedilatildeo sobre a passividade e o caraacuteter acidental do sucesso evolutivo e sobre a possibilidade e o valor do altruiacutesmo dentro das estruturas sociais O sucesso dessa refutaccedilatildeo reside no fato que sendo a narrativa de Nietzsche histoacuterica de alguma forma ela eacute ldquomelhorrdquo do que a alternativa soacutecio-darwinista pois eacute mais precisa e abrangente Entretanto a genealogia de Nietzsche oferece dados histoacutericos insuficientes que justifiquem a sua proacutepria interpretaccedilatildeo dos eventos e oferece poucas fontes que dificilmente comprovem muito da sua narrativa como uma histoacuteria objetiva da moralidade ela falha em grande parte para demonstrar as hipoacuteteses de Nietzsche Pelos padrotildees atuais de pesquisa em filosofia e histoacuteria das ideias as consideraccedilotildees de Nietzsche sobre o assunto seriam avaliadas como um fracassado trabalho intelectual o que ele provavelmente tomaria como elogio

Eacute no segundo niacutevel que podemos nomear de meta-histoacuterico que a genealogia nietzschiana revela a sua originalidade duradoura O filoacutesofo argumenta que a proacutepria tentativa de reconstruir a histoacuteria do desenvolvimento da moralidade tal ldquocomo ela aconteceu propriamenterdquo (wie es eigentlich gewesen ist) eacute obstruiacuteda pois o proacuteprio narrador de acontecimentos estaacute intriacutenseco na histoacuteria ou seja o proacuteprio historiador natildeo eacute sem inclinaccedilatildeo objetivamente ponto estaacutetico de observaccedilatildeo mas ele mesmo foi se tornando temporalmente carregado de valor e subjetividade Portanto ele eacute tatildeo histoacuterico e dirigidamente constituiacutedo como os valores que ele tentava explicar Ao contraacuterio dos darwinistas Nietzsche reconheceu que a histoacuteria natildeo eacute sobre como lhe dar com os fatos ldquocomo eles propriamente satildeordquo mas de interpretaacute-los de acordo com a perspectiva informada na qual o historiador foi incorporado Considerando que os darwinistas interpretaram a evoluccedilatildeo histoacuterica da moralidade como se eles proacuteprios estivessem fora dela por isso que para Nietzsche ldquocontar - apoacutes o fato - todas as doze badaladas do reloacutegio de nossa experiecircncia da nossa vida nosso ser - ah e contamos errado Pois continuamos necessariamente estranhos a noacutes mesmos noacutes natildeo nos entendemos temos que nos mal-entenderrdquo (GM proacutelogo 1) Os valores e tambeacutem a concepccedilatildeo de que noacutes mesmos como criadores de valores afetamos dinamicamente o caminho pelo qual se interpreta estes 15 Cf GM I 3 e II 1216 Spencer foi fortemente influenciado por Darwin em 1864 ele forjou em seu livro Principles of Biology a expressatildeo

a ldquosobrevivecircncia do mais aptordquo Deste modo ele procurou aplicar em sua obra as leis da evoluccedilatildeo a todos os niacuteveis da atividade humana O filoacutesofo aplicou agrave sociologia ideias que retirou das ciecircncias naturais criando um sistema de pensamento muito influente em seu tempo Segundo ele a natureza eacute fonte da verdade incluindo a verdade moral Cf sobre Spencer Francis Mark (2007)

17 Sobre o darwinismo de Nietzsche cf Richardson (2004)18 Sobre o antidarwinismo de Nietzsche cf Johnson (2010)19 Cf KSA XII 7 (25) Comparar com GC 352 PBM 253 GM Prefaacutecio 7 CI lsquoIncursotildeesrsquo 14 KSA XI 442 KSA XIII

14 (123)

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

156

valores de modo que a tentativa de re-apresentar o ldquoprimeiro sinal (signo)rdquo que o valor original livre das distorccedilotildees de geraccedilotildees para substituir a reformulaccedilatildeo e sobretudo a transvaloraccedilatildeo desses valores torna-se impossiacutevel Consequentemente diz Nietzsche

Como procederam neste caso ateacute agora os genealogistas morais Ingenuamente como sempre - eles descobrem no castigo uma lsquofinalidade (Zwerck)rsquo qualquer por exemplo a vinganccedila ou a intimidaccedilatildeo entatildeo despreocupadamente colocam essa finalidade no comeccedilo como causa fiendi (causa da origem) do castigo e ndash eacute tudo Mas lsquofinalidade no direitorsquo eacute a uacuteltima coisa a se aplicar na histoacuteria da emergecircncia do direito pois natildeo haacute proposiccedilatildeo mais importante para toda historiografia do que esta que com grande esforccedilo se conquistou mas que tambeacutem deveria ser realmente conquistada ndash o de que a causa da emergecircncia de uma coisa e a sua utilidade final a sua efetiva utilizaccedilatildeo e inserccedilatildeo em um sistema de finalidades diferem toto coelo (totalmente) de que algo existente que de alguma forma chegou a se efetivar eacute sempre reinterpretado para novo fins requisitado de modo novo transformado e redirecionado para uma nova utilidade por um poder que lhe eacute superior de que todo acontecimento do mundo orgacircnico eacute um subjugar e assenhorear-se e todo subjugar e assenhorear-se eacute uma nova interpretaccedilatildeo um ajuste no qual o ldquosentidordquo e a ldquofinalidaderdquo anteriores satildeo necessariamente obscurecidos ou completamente obliterados [] Mas todos os fins e utilidades satildeo apenas um sinal de que a vontade de poder assenhoreou-se sobre algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma funccedilatildeo e toda a histoacuteria de uma lsquocoisarsquo um oacutergatildeo um uso pode ser desse modo uma ininterrupta cadeia contiacutenua de sinais de sempre novas interpretaccedilotildees e ajustes cujas causas nem precisam estar relacionadas entre si antes podendo se suceder e substituir de maneira meramente aleatoacuteria (GM II 12)

Esta talvez seja a mais importante passagem senatildeo de toda filosofia de Nietzsche pelo menos da obra madura nela o filoacutesofo apresenta toda forccedila do seu ldquomeacutetodordquo genealoacutegico combatendo a ideia de finalidade em teoria e consequentemente a sucessatildeo causal progressiva apresentando como alternativa a doutrina da vontade de poder compreendida como disputa entre forccedilas na determinaccedilatildeo do sentido de algo Portanto natildeo haacute fato histoacuterico antes do estabelecimento da conjugaccedilatildeo do embate entre forccedilas Nessa magistral passagem Nietzsche oferece a explicaccedilatildeo mais penetrante entre as suas consideraccedilotildees sobre a histoacuteria no periacuteodo de maturidade vale a pena por isso uma investigaccedilatildeo mais cuidadosa Parece haver trecircs teses inter-relacionadas Primeiro a histoacuteria praticada corretamente deve estar coadunada com a natureza verdadeira da realidade Para Nietzsche os outros ldquogenealogistasrdquo - que neste contexto satildeo representados principalmente por Paul Reacutee e os moralistas de inspiraccedilatildeo darwinista como Herbert Spencer - estatildeo em uma posiccedilatildeo de vantagem em relaccedilatildeo aos filoacutesofos metafiacutesicos como Platatildeo Spinoza e Kant por exemplo na medida em que acertadamente reconhecem a fluidez dos conceitos morais No entanto onde os ldquogenealogistasrdquo realistas ingenuamente erram eacute na irrefletida presunccedilatildeo de que as suas proacuteprias interpretaccedilotildees dos conceitos morais satildeo de alguma forma verdadeiras por todos os tempos e para todas as pessoas em outras palavras que as suas interpretaccedilotildees do fluxo da histoacuteria de alguma forma ficam fora do fluxo da histoacuteria20 Em segundo lugar a genealogia de Nietzsche se adapta ao que poderia ser chamado de uma teoria antirrealista da explicaccedilatildeo e descriccedilatildeo histoacuterica Termos como ldquocausardquo ldquoefeitordquo 20 Cf sobre a posiccedilatildeo dos outros ldquogenealogistasrdquo e tradiccedilatildeo metafiacutesica e entre eles e a genealogia nietzschiana Johnson

(2010 p 116-148) ver tambeacutem Born (2010 p 202-52)

Joseacute Nicolao Juliatildeo

157

e ldquofinalidaderdquo natildeo satildeo elementos de um mundo ldquorealrdquo senatildeo signos que se tornaram uacuteteis para comunicar sentidos (significados) intersubjetivamente a partir de um embate entre forccedilas Em terceiro lugar e como consequecircncia das duas primeiras teses natildeo pode haver nenhuma interpretaccedilatildeo uacutenica e ldquoabsolutardquo do passado as interpretaccedilotildees satildeo funccedilotildees do mundo histoacuterico Como todos os fenocircmenos elas mudam e se transformam ao longo do tempo de acordo com as exigecircncias profundas e muitas vezes inconscientes dos agentes que inventam aceitar ou rejeitar essas interpretaccedilotildees O exemplo do castigo na passagem supracitada ilustra particularmente bem como o significado de uma uacutenica palavra se desloca em determinadas eacutepocas e culturas O que explica essa mudanccedila eacute a dinacircmica do poder fluiacutedo devido o embate de forccedilas tanto em historiadores quanto na esfera mais ampla do que uma cultura considera um ldquofato histoacutericordquo ao longo do tempo Por isso que soacute eacute definiacutevel aquilo que natildeo tem histoacuteria (GM II 13) ou seja o que eacute estagnado

Apesar da sua convicccedilatildeo de que a filosofia deva ser histoacuterica Nietzsche compreendeu simultaneamente que a escrita filosoficamente histoacuterica tem um esforccedilo profundamente problemaacutetico Qualquer tentativa de descrever ou explicar um evento histoacuterico equivale a uma descontextualizaccedilatildeo eacute ilegiacutetima a tentativa de fixar o invariaacutevel com conceitos supostamente estaacuteticos E este impasse Nietzsche descreveu em carta ao seu amigo o teoacutelogo historiador Franz Overbeck em 23 de fevereiro de 1887 ldquoenfim minha desconfianccedila agora se volta para a questatildeo de saber se a histoacuteria eacute realmente possiacutevel O que entatildeo queremos verificar (feststellen) - algo que em um momento do acontecimento natildeo eacute ldquopermanenterdquo (ldquofeststandrdquo)rdquo (KSB 8 28) A situaccedilatildeo piora ao reconhecer que natildeo soacute a realidade eacute descrita em um estado de fluxo mas aquele que a reconhece estaacute em um estado de fluxo semelhante

Por todos esses problemas por noacutes aqui levantados sobre a relaccedilatildeo precisa do histoacuterico com o filosoacutefico na genealogia necessitam ainda ser feito muitos esclarecimentos Pretendemos no final desse estudo ter uma noccedilatildeo de conjunto das consideraccedilotildees de Nietzsche sobre a histoacuteria dentro de uma abordagem que preserve a continuidade a unidade e o sentindo do processo de ressignificaccedilotildees apresentando o seu desfecho em sua noccedilatildeo de genealogia A genealogia por sua vez natildeo pode ser identificada nem com a teoria da histoacuteria nem com filosofia da histoacuteria ou seja nem como ciecircncia estrita nem como metafiacutesica Neste sentido acompanhamos Martin Saar21 argumentando que o genealoacutegico natildeo eacute o tribunal do todo histoacuterico mas que natildeo eacute algo totalmente diferente tampouco como algo totalmente restrito agrave filosofia da histoacuteria Considerando que alguns dos melhores inteacuterpretes de Nietzsche lhe atribuem agrave visatildeo de que ldquoa genealogia eacute histoacuteria corretamente praticadardquo22 Saar defende a tese de que a genealogia eacute a histoacuteria de forma diferentemente praticada ou seja a histoacuteria com uma diferenccedila que soacute pode ser explicada filosoficamente ndash acrescentamos - uma histoacuteria criativa

21 Cf Saar (2008 p 297) Cf tb Saar (2007) e (2002 p 231ndash245)22 Saar se refere explicitamente a Nehamas (1985 p 46) e a Geuss (1999 p 3 ss)

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

158

Referecircncias bibliograacuteficasNIETZSCHE Friedrich Kritische Studienausgabe (KSA) In 15 B Herausgegeben von G Colli und M Montinari BerlinNY dtvde Gruyter 1988_____ Saumlmtliche Briefe-Kritische Studienausgabe (KGB) In 7 B dtv Walter Gruyter BerlinNY dtvde Gruyter 1986BORN Marcus Andreas Nihilistisches Geschichtsdenken Nietzsches perspektivische Genealogie Muumlnchen Wilhelm Fink 2010FRANCIS Mark Herbert Spencer and the Invention of Modern Life Stocksfield Acumen 2007GEUSS R ldquoNietzsche and Genealogyrdquo in Morality Culture and History Essays on German Philosophy 17 Cambridge Cambridge University Press 1999JOHNSON Dirk R Nietzschersquos Anti-Darwinism Cambridge Cambridge University Press 2010NEHAMAS A ldquoThe Genealogy of Genealogy Interpretation in Nietzschersquos Second Untimely Meditationand in On the Genealogy of Moralsrdquo in Nietzsche Genealogy and Morality edited by Richard Schacht Berkeley University of California Press 1994 269ndash83RICHARDSON John Nietzschersquos New Darwinism OxfordNova York Oxford University Press 2004SAAR M ldquoGenealogy and Subjectivityrdquo In European Journal of Philosophy Blackwell Publishers Ltd 2002 p 231ndash245_____ Genealogie als Kritik Geschichte und Theorie des Subjekts nach Nietzsche und Foucault (Theorie und Gesellschaft) FrankfurtNew York Campus Verlag 2007_____ ldquoUnderstanding genealogy history power and the selfrdquo In Journal of the Philosophy of History 2 295ndash314 2008 STEGMAIER W Nietzsches `Genealogie der Moral` Darmstatt Wissenschaftliche Buchgellschaft 1994VENTURELLI A Kunst Wissenschaft und Geschichte bei Nietzsche BerlinNew York Walter de Gruyter 2003WHITE Hayden A Meta-Histoacuteria ndash a Imaginaccedilatildeo Histoacuterica no seacuteculo XIX Satildeo Paulo EDUSP 1992

Laura Elizia Haubert

159

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre a consciecircncia [Bewuszligtsein]

Laura Elizia Haubert1

IntroduccedilatildeoO interesse em compreender a consciecircncia bem como as estruturas da mente

ocupa um nuacutemero consideraacutevel de filoacutesofos contemporacircneos Apoacutes anos de predomiacutenio da linguagem e anaacutelise loacutegica devido agrave ldquovirada linguiacutesticardquo em especial entre os analiacuteticos nas uacuteltimas deacutecadas voltou-se a atenccedilatildeo para o problema da consciecircncia A consciecircncia se tornou novamente um toacutepico central na filosofia

Entre os temas principais destaca-se a triangulaccedilatildeo entre consciecircncia linguagem e natureza Estes trecircs toacutepicos foram o centro nas uacuteltimas deacutecadas de intensos debates e controveacutersias que abrangeram filoacutesofos neurocientistas psicoacutelogos e linguistas As diferentes aacutereas de pesquisa buscam solucionar o enigma da consciecircncia sobretudo o curioso fato de que seres bioloacutegicos foram capazes de desenvolvecirc-la

Natildeo surpreende que os olhares se voltem justamente para Nietzsche ao tratar do assunto Com efeito em suas obras e fragmentos poacutestumos o filoacutesofo oferece inuacutemeras reflexotildees sobre os temas da linguagem consciecircncia e natureza bem como sobre suas conexotildees Nietzsche discutiu a gecircnese da consciecircncia seu alcance sua supervaloraccedilatildeo as realizaccedilotildees epistecircmicas e o surgimento do ego e da linguagem Aleacutem disso o filoacutesofo ainda escreveu interessantes passagens a respeito do inconsciente e de processos da percepccedilatildeo

Apesar das numerosas passagens a respeito o tema da consciecircncia em Nietzsche foi interpretado de modo divergente por seus comentadores sendo muitas destas anaacutelises contraditoacuterias e paradoxais o que gerou a impressatildeo de que sua teoria sobre a consciecircncia seria inconsistente confusa e obscura Poreacutem essa eacute uma imagem errocircnea gerada por interpretaccedilotildees descuidadas ldquoNietzsche na verdade tem um relato coerente e novo da consciecircnciardquo (KATSAFANAS 2005 p 1)

Nietzsche parece querer demarcar os limites da consciecircncia e da linguagem na medida em que os associa a uma forma de perigo e hipostatizaccedilatildeo da consciecircncia Ele associa impulsos e consciecircncia bem como orgacircnico e psicoloacutegico Contudo suas posiccedilotildees estatildeo longe de poderem ser interpretadas de modo reducionista materialista Vale recordar que o filoacutesofo estava a par dos debates cientiacuteficos do idealismo tardio e sobre este preferiu assumir uma posiccedilatildeo de impossibilidade tanto sobre o conhecimento do mundo quanto sobre uma reduccedilatildeo ao material

1 Mestranda em Filosofia Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica-PUCSP Bolsista do CNPq

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre

160

Natildeo obstante de fato haacute em Nietzsche um destaque para o caraacuteter orgacircnico da consciecircncia em clara oposiccedilatildeo agrave noccedilatildeo de consciecircncia transcendental da tradiccedilatildeo filosoacutefica desenvolvida a partir de Descartes O filoacutesofo apresenta uma teoria da consciecircncia voltada para uma compreensatildeo a partir da fisiologia e da zoologia conforme seraacute tratado a seguir

Os aportes de Nietzsche a respeito da consciecircncia se estendem pelo periacuteodo de 1880 ateacute 1888 Os mais importantes e detalhados remontam a notas poacutestumas dos anos de 1884 e 1885 Contudo apesar do nuacutemero consideraacutevel de fragmentos apenas uma parcela diminuta de suas ideias a respeito foram tema nas obras destinadas a publicaccedilatildeo Dentre estas concentrou-se os esforccedilos de anaacutelise nos aforismos de ldquoA Gaia Ciecircnciardquo

Nesta obra haacute dois aforismos que tratam diretamente da consciecircncia o aforismo sect11 e o sect354 O aforismo sect11 remonta ao periacuteodo de escrita original da obra entre 18811882 e eacute particularmente importante Nele o filoacutesofo especifica pela primeira vez em obras publicadas a natureza pulsional e bioloacutegica da consciecircncia Jaacute o aforismo sect354 pertence ao livro V que fez parte de um acreacutescimo agrave ediccedilatildeo original em sua republicaccedilatildeo supervisionada por Nietzsche tendo sido composto no ano de 1886 (LUPO 2006)

Nas paacuteginas a seguir buscou-se sem a pretensatildeo de esgotar o rico assunto e os complexos aforismos apresentar de modo sinteacutetico o que parece ser as caracteriacutesticas essenciais da consciecircncia a saber (i) ela natildeo eacute uma propriedade essencial da mente (ii) existe uma relaccedilatildeo entre linguagem e consciecircncia e (iii) essa relaccedilatildeo depende de um caraacuteter social que auxilia a falsificar a proacutepria consciecircncia

Aforismo sect11O aforismo sect11 eacute essencial para o primeiro ponto da argumentaccedilatildeo qual seja a

consciecircncia natildeo eacute uma propriedade essencial da mente Essa caracteriacutestica parece estar embasada por ao menos duas ideias que estatildeo desenvolvidas no aforismo Satildeo elas (i) a consciecircncia eacute um desenvolvimento orgacircnico e tardio e (ii) haacute estados mentais inconscientes

Nietzsche inicia o aforismo intitulado ldquoA consciecircnciardquo (Bewuszligtsein) esclarecendo que ldquoa consciecircncia [Bewuszligheit] eacute o uacuteltimo e derradeiro desenvolvimento do orgacircnico e por conseguinte tambeacutem o que nele eacute mais inacabado e menos forterdquo (NIETZSCHE 2012 sect11) Eacute preciso analisar melhor as informaccedilotildees contidas nesta breve passagem

Em primeiro lugar porque o filoacutesofo realiza uma mudanccedila de termos Ele transforma a consciecircncia substacircncia [Bewuszligtsein] em uma consciecircncia processo [Bewuszligheit] Em segundo lugar porque com isso ele destaca que natildeo estaacute narrando a histoacuteria da consciecircncia tradicional transcendente mas sim uma histoacuteria de um sistema evolutivo que pode ser observado a partir de uma perspectiva natural e bioloacutegica A consciecircncia passa a ser algo no corpo perdendo seu privileacutegio trata-se dela como se trataria de qualquer outro oacutergatildeo (BERTINO 2012))

Esse iniacutecio do aforismo revela ainda uma outra caracteriacutestica essencial da consciecircncia O fato de que ela eacute apenas um desenvolvimento orgacircnico implica que haacute uma passagem contiacutenua para o pensador entre o fisioloacutegico e o psiacutequico Esse processo de continuidade permite que Nietzsche se afaste de qualquer compreensatildeo dualiacutestica Essa passagem junto das caracteriacutesticas aprofundadas no aforismo seguinte deu margem ao que inteacuterpretes nomearam como o princiacutepio do continuum (ABEL 2001) Isto eacute em Nietzsche do extremo inorgacircnico ateacute o orgacircnico do corpo agrave consciecircncia e aos estados mentais haacute uma contiacutenua relaccedilatildeo de desenvolvimento

Laura Elizia Haubert

161

Justamente a criacutetica de Nietzsche no aforismo visa despertar o leitor para o fato de que natildeo se pode perder de vista a ideia de que a consciecircncia eacute apenas um dos extremos de uma longa cadeia de elos onde haacute inuacutemeras relaccedilotildees entre impulsos a cada momento que estatildeo sendo passados por alto e ignorados (CONSTAcircNCIO 2011) Esta criacutetica fica ainda mais clara no decorrer do aforismo

[] Pensam que nela estaacute o acircmago do ser humano o que nele eacute duradouro derradeiro eterno primordial Tomam a consciecircncia por uma firme grandeza dada Negam seu crescimento suas intermitecircncias Veem-na como lsquounidade do organismorsquo - Essa ridiacutecula superestimaccedilatildeo e maacute-compreensatildeo da consciecircncia tem por corolaacuterio a grande vantagem de que assim foi impedido o seu desenvolvimento muito raacutepido [] (NIETZSCHE 2012 sect11)

Para Nietzsche os homens compreenderam errado a consciecircncia e a superestimaram - em especial os filoacutesofos Ela natildeo passa de algo no corpo e estaacute longe de ser o centro ou o acircmago do humano Nela natildeo haacute nada de duradouro eterno ou primordial Ela eacute pelo contraacuterio orgacircnica inacabada o que implica numa certa fraqueza de sua parte A consciecircncia natildeo eacute de todo necessaacuteria ao homem e ele poderia passar bem sem este uacuteltimo desenvolvimento tardio do corpo

Outra caracteriacutestica que parece apontar para a mesma conclusatildeo eacute o fato de que se ignorou o caraacuteter intermitente [Intermittenzen] da consciecircncia Ser intermitente significa que haacute impulsos que se desenvolvem em estados mentais conscientes e outros que natildeo Isto eacute quando se trata de estados psiacutequicos natildeo existe um ldquotudo ou nadardquo um ldquoon-offrdquo mas sim um cenaacuterio onde estados conscientes se relacionam com um nuacutemero ainda maior de estados inconscientes (CONSTAcircNCIO 2011)

Os estados conscientes teriam origem a partir de uma multiplicidade de estados inconscientes sendo a consciecircncia nada mais que uma aglutinaccedilatildeo de determinados estados conscientes que emergem em uma forma de produto final que nada tem a ver com os estados inconscientes dos quais deriva (KATSAFANAS 2016)

O proacuteprio filoacutesofo mais tarde reformulou claramente estas ideias no aforismo sect357 afirmando que ldquo[] a consciecircncia eacute tatildeo soacute um accidens [acidente] da representaccedilatildeo natildeo seu atributo necessaacuterio e essencial []rdquo porque ela constitui um desenvolvimento tardio onde ldquoapenas um estado de nosso mundo espiritual e psiacutequico (talvez um estado doentio) e de modo algum ele proacutepriordquo (NIETZSCHE 2012 sect357)

Essa mesma ideia de que a consciecircncia eacute um desenvolvimento tardio fraco inacabado e de modo algum eacute uma propriedade essencial da mente aparece melhor desenvolvida no aforismo seguinte onde o filoacutesofo apresenta sua formulaccedilatildeo mais famosa a respeito da consciecircncia

Aforismo 354Nietzsche logo na abertura do aforismo destacou novamente o caraacuteter desnecessaacuterio

da consciecircncia uma vez que ldquoo problema da consciecircncia [] soacute nos aparece quando comeccedilamos a entender em que medida poderiacuteamos passar sem elardquo Isto eacute seria possiacutevel para o homem ldquopensar sentir querer recordar poderiacuteamos igualmente lsquoagirrsquo em todo sentido da palavra e [] nada disso precisaria nos lsquoentrar na consciecircnciarsquordquo (NIETZSCHE 2012 sect354)

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre

162

Com efeito o fato de que seria possiacutevel que o homem passasse sem consciecircncia isto eacute de que ela natildeo constitui uma propriedade essencial da mente levanta quase de imediato uma questatildeo importante a saber ldquopara que entatildeo consciecircncia quando no essencial eacute supeacuterfluardquo (NIETZSCHE 2012 sect354)

A resposta do filoacutesofo eacute a de que ldquoa sutileza e a forccedila da consciecircncia estatildeo sempre relacionadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por sua vez agrave necessidade de comunicaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 2012 sect354) Isto parece implicar para inteacuterpretes que haacute formas de sentir querer pensar e agir que tornam o homem consciente de si poreacutem a efetiva consciecircncia soacute ocorre quando ela eacute formulada na comunicaccedilatildeo entre os homens (CONSTAcircNCIO 2012)

A afirmaccedilatildeo de Nietzsche eacute assim bastante radical porque implica que ldquoa reflexatildeo eacute imanente agrave comunicaccedilatildeo ou em outras palavras que haacute uma dimensatildeo inescapavelmente puacuteblica na lsquointencionalidadersquo humanardquo (CONSTAcircNCIO 2012 p 206) Isto significa que natildeo importa o quanto algueacutem possa se sentir isolado o pensamento consciente - qualquer pensamento consciente - eacute sempre embasado em uma esfera de necessidade de comunicaccedilatildeo em contexto puacuteblico

A necessidade de comunicaccedilatildeo nasceu do fato de que os homens precisaram durante geraccedilotildees sob pressatildeo fazer-se entender pelos demais de modo raacutepido e efetivo quase em uma espeacutecie de cadeia de comando e obediecircncia numa comunicaccedilatildeo de ordens que visava a sobrevivecircncia

Consciecircncia eacute na realidade apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre pessoas - apenas como tal ela teve que se desenvolver um ser solitaacuterio e predatoacuterio natildeo necessitaria dela O fato de nossas accedilotildees pensamentos sentimentos mesmo movimentos nos chegarem agrave consciecircncia - ao menos parte deles - eacute consequecircncia de uma terriacutevel obrigaccedilatildeo que por longuiacutessimo tempo governou o ser humano ele precisava sendo o animal mais ameaccedilado de ajuda proteccedilatildeo precisava de seus iguais tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensiacutevel - e para isso tudo ele necessitava antes de lsquoconsciecircnciarsquo isto eacute lsquosaberrsquo o que lhe faltava lsquosaberrsquo como se sentia lsquosaberrsquo o que pensava Pois dizendo-o mais uma vez o ser humano como toda criatura viva pensa continuamente mas natildeo o sabe o pensar que se torna consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia Em suma o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciecircncia (natildeo da razatildeo mas apenas do tomar-consciecircncia-de-si da razatildeo) andam lado a lado (NIETZSCHE 2012 sect354)

O excerto acima reitera a segunda caracteriacutestica a ser ressaltada haacute uma relaccedilatildeo profunda entre linguagem e consciecircncia De fato haacute um triacircngulo de relaccedilotildees entre linguagem consciecircncia e sociabilidade de modo que Nietzsche define a consciecircncia como uma conexatildeo [Verbindungsnetz] uma rede entre pessoas Ou seja a consciecircncia natildeo seria possiacutevel para um indiviacuteduo em completo isolamento

Isto porque aleacutem de ser um elo o desenvolvimento da consciecircncia estaacute atrelado ao desenvolvimento da linguagem Com efeito ldquoa alegaccedilatildeo central desta passagem eacute que o pensamento consciente e apenas o pensamento consciente ocorre em palavrasrdquo (KATSAFANAS 2005 p 3) Essa conexatildeo parece extremamente importante

Laura Elizia Haubert

163

Na concepccedilatildeo de Nietzsche esta relaccedilatildeo significa que natildeo apenas consciecircncia e linguagem satildeo contiacutenuas mas que satildeo mutuamente dependentes Isto eacute todo o pensamento consciente necessariamente deve ocorrer dentro da linguagem ou em suas margens e o niacutevel de clareza depende da verbalizaccedilatildeo Mas natildeo eacute possiacutevel pensar sem linguagem - ao menos uma forma consciente de pensamento (CONSTAcircNCIO 2009)

O esforccedilo empreendido por Nietzsche parece ser o de recolocar natildeo apenas a consciecircncia - coisa que ele jaacute havia feito no aforismo sect11 ndash mas tambeacutem a linguagem de volta em um domiacutenio orgacircnico e instintivo Nisto natildeo haacute nenhuma reduccedilatildeo materialista seu naturalismo eacute apenas uma forma de traduzir o homem de volta agrave sua histoacuteria isto eacute de volta agrave cultura e agrave sociedade

Por isso natildeo se pode deixar de observar a relevante afirmaccedilatildeo de Nietzsche que coloca a consciecircncia e a cultura em uma esfera natildeo meramente bioloacutegica mas em uma dependecircncia social e cultural A linguagem tal como a consciecircncia desenvolve-se a partir de uma sede histoacuterica real

A conexatildeo interna entre consciecircncia e linguagem eacute extremamente importante em vaacuterios aspectos Ao direcionar a atenccedilatildeo para o viacutenculo entre consciecircncia e linguagem surgem diferentes aspectos da consciecircncia que tecircm um status ontoloacutegico diferente dos componentes jaacute discutidos nas rubricas do lsquocontinuumrsquo lsquodesenvolvimento emergentersquo lsquoprocessorsquo e lsquoorganizaccedilatildeo funcionalrsquo O uso da linguagem e dos signos satildeo componentes que tecircm sua sede no mundo social histoacuterico e cultural Eles natildeo podem simplesmente ser reduzidos a processos orgacircnicos ou neurobioloacutegicos Isso eacute particularmente verdadeiro nos aspectos de ordem mais elevada da consciecircncia como a autoconsciecircncia a experiecircncia da sua proacutepria individualidade e as auto interpretaccedilotildees - por exemplo de um agente de accedilatildeo livre Quando se trata de tais aspectos ateacute mesmo nos presente os pesquisadores do ceacuterebro reconhecem que lsquoparecem exigir implicaccedilotildees que transcendem o reducionismo puramente neurobioloacutegicorsquo (Singer 1998 1830) O ponto decisivo eacute que a consciecircncia e a mente agora se tornaram tematizadas na interseccedilatildeo entre os desenvolvimentos na esfera natural e orgacircnica e nos domiacutenios social histoacuterico e cultural (ABEL 2015 p 48)

Assim a consciecircncia depende da comunicaccedilatildeo porque os homens satildeo animais fracos natildeo possuem garras nem forccedila nem satildeo velozes Eles precisaram desenvolver uma ferramenta que pudesse suprimir essas deficiecircncias e esta eacute justamente a linguagem e a consciecircncia Ao se comunicarem os homens estabeleceram uma rede de significados que satildeo transmitidos e permitem o agir em comum

O foco de Nietzsche eacute o problema da vulgarizaccedilatildeo ou da generalizaccedilatildeo Se a consciecircncia de um indiviacuteduo se desenvolve ao mesmo tempo que sua habilidade de se comunicar pela linguagem e se a linguagem depende de uma certa comunidade e de seus usos entatildeo o homem estaacute permanentemente condicionado por este social devido agrave linguagem mesmo naquilo que lhe parece mais iacutentimo e privado como sua consciecircncia

O que fica subentendido eacute que ldquoquando se acessa a introspecccedilatildeo e conscientemente o mundo interior individual o que se encontra laacute natildeo eacute de forma alguma individual mas sim linguiacutestico e portanto puacuteblicordquo (CONSTAcircNCIO 2015 p 307) A consciecircncia embora pareccedila interior e particular eacute jaacute um ambiente puacuteblico inserido em uma determinada comunidade que estabelece suas diretrizes Isto significa que o indiviacuteduo soacute se opotildee agrave comunidade na aparecircncia ele eacute prioritariamente um ldquoanimal de rebanhordquo

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre

164

De fato as vivecircncias individuais das quais os homens tomam consciecircncia portanto satildeo apenas aquelas que podem ser organizadas pelas palavras isto eacute que obedecem ao pressuposto esquema linguiacutestico De outra forma as impressotildees e impulsos permanecem no inconsciente onde natildeo podem ser acessadas (GIACOIA JUNIOR 2001)

Meu pensamento como se vecirc eacute que a consciecircncia natildeo faz parte realmente da existecircncia individual do ser humano mas antes daquilo que nele eacute natureza comunitaacuteria e gregaacuteria que em consequecircncia apenas em ligaccedilatildeo com a utilidade comunitaacuteria e gregaacuteria ela se desenvolveu sutilmente e que portanto cada um de noacutes com toda a vontade que tenha de entender a si proacuteprio de maneira mais individual possiacutevel de lsquoconhecer a si mesmorsquo sempre traz agrave consciecircncia justamente o que natildeo possui de individual o que nele eacute lsquomeacutediorsquo - que nosso pensamento mesmo eacute continuamente suplantado digamos pelo caraacuteter da consciecircncia - pelo lsquogecircnio da espeacuteciersquo que nele domina - e traduzido de volta para a perspectiva gregaacuteria Todas as nossas accedilotildees no fundo satildeo pessoais de maneira incomparaacutevel uacutenicas ilimitadamente individuais natildeo haacute duacutevida mas tatildeo logo as traduzimos para a consciecircncia natildeo parecem mais secirc-lo [] Este eacute o verdadeiro fenomenalismo e perspectivismo como eu o entendo a natureza da consciecircncia animal ocasiona que o mundo de que podemos nos tornar conscientes seja soacute um mundo generalizado vulgarizado - que tudo o que se torna consciente por isso mesmo torna-se raso ralo relativamente tolo geral signo marca de rebanho que a todo tornar-se consciente estaacute relacionada uma grande radical corrupccedilatildeo falsificaccedilatildeo superficializaccedilatildeo e generalizaccedilatildeo Afinal a consciecircncia crescente eacute um perigo e quem vive entre os mais conscientes europeus sabe ateacute que eacute uma doenccedila (NIETZSCHE 2012 sect354)

Desponta por fim a terceira caracteriacutestica que se buscou ressaltar a respeito da consciecircncia como em Nietzsche ela depende de um ambiente puacuteblico social que acaba por influenciar seu desenvolvimento e assim condicionaacute-lo Isto significa que embora se possa ter estados mentais privados inconscientes natildeo se pode ter estados mentais conscientes sem que eles sejam diretamente afetados pela sociabilidade

O aforismo apresenta uma inversatildeo paroacutedica da noccedilatildeo socraacutetica de conhecer a si mesmo jaacute que conhecer a si mesmo - ou qualquer forma de conhecimento - depende da consciecircncia e da linguagem que por sua vez eacute dependente do aspecto mais comum e ordinaacuterio da convivecircncia Assim o conhecer a si mesmo implica tambeacutem em uma forma de perder-se de si proacuteprio (GIACOIA JUNIOR 2001)

Essa passagem conta ainda com um jogo de palavras em alematildeo que serve para ressaltar essa condiccedilatildeo Nietzsche utiliza o termo Gemeinde (comunidade) e gemein (comum mediacuteocre) para expressar que o que estaacute na esfera da consciecircncia eacute somente o que eacute gemein porque ela se desenvolve sob a pressatildeo dos valores da Gemeinde (GIACOIA JUNIOR 2001)

De fato haacute que se observar que ldquoao empregar os mesmos signos para as mesmas experiecircncias intensifica-se a Gemeinheitrdquo (VIESENTEINER 2009 p 249) Ou seja a passagem pela linguagem ateacute a consciecircncia implica uma transformaccedilatildeo para diferentes esferas do particular interior para o comum acessiacutevel por todos Trata-se de um processo de abandono das proacuteprias singularidades em detrimento da possibilidade de sobrevivecircncia que soacute ocorre em comunidade

Laura Elizia Haubert

165

Com efeito isto significa que a linguagem - e portanto tambeacutem a consciecircncia - pressupotildee e lida jaacute com um certo ethos na medida em que eacute experimentada pelos sujeitos natildeo sendo uma criaccedilatildeo puramente epistemoloacutegica que lida com fatos racionais A linguagem e a consciecircncia satildeo responsaacuteveis por aplainar as diferentes perspectivas e impulsos pessoais por meio de um modo de falsificaccedilatildeo

O perspectivismo e o fenomenalismo da consciecircncia significam justamente que os conteuacutedos psiacutequicos inconscientes - estes podem ser verdadeiramente individuais - natildeo podem ser conceituados de uma uacutenica maneira mas sim de diversos modos desde que os homens ainda sejam capazes de compreenderem uns aos outros (KATSAFANAS 2016)

Nietzsche novamente utiliza uma seacuterie de adjetivos negativos ao tratar da consciecircncia Ela eacute uma simplificaccedilatildeo uma falsificaccedilatildeo bem como uma generalizaccedilatildeo Essas caracteriacutesticas em conjunto analisadas desvelam o fato de que a consciecircncia natildeo pode para o filoacutesofo garantir nenhuma objetividade do conhecimento natildeo fornece nenhum acesso agrave estrutura ontoloacutegica da realidade pelo contraacuterio ela eacute apenas uma forma de reduccedilatildeo da riqueza e diversidade do mundo (GIACOIA JUNIOR 2001)

Consideraccedilotildees finais Nietzsche elabora o aforismo a partir de diferentes extratos de argumentaccedilatildeo que

vatildeo ao longo do texto se intercalando Isto eacute haacute diferentes conceitos mais ou menos desenvolvidos com os quais se estaacute trabalhando constantemente - vide a consciecircncia a inconsciecircncia a linguagem e o orgacircnico para citar apenas alguns Embora ocasionalmente possam parecerem confusos o filoacutesofo sem duacutevida pretende tranccedilaacute-los em uma amaacutelgama

Consciecircncia linguagem corpo e sociedade tornam-se assim um mesmo problema observado e analisado a partir de diferentes perspectivas Pode-se falar de uma consciecircncia epistemoloacutegica racional mas ela eacute antes disso jaacute uma forma de consciecircncia eacutetica porque ela eacute linguagem e esta depende da sociedade A consciecircncia depende da linguagem e de sua forccedila violenta para poder ser expressada

Expressar-se para e com os demais faz parte das necessidades mais baacutesicas do ser humano Desta depende a proacutepria sobrevivecircncia O homem eacute colocado sob suas ordens de forma semelhante agrave situaccedilatildeo do gecircnio da espeacutecie de Schopenhauer onde o impulso sexual da espeacutecie vence qualquer forma de individualidade

Isto parece significar que em uacuteltima instacircncia a consciecircncia eacute o caminho por meio do qual o homem se perde de si mesmo porque fala porque conceitua e assim se torna cada vez mais alheio de si sem perceber as teias da linguagem que o envolvem e afastam dos instintos e impulsos pessoais e inconscientes

Por fim observa-se que a consciecircncia eacute o uacuteltimo desenvolvimento corporal algo natildeo necessaacuterio aos estados mentais algo supeacuterfluo falso e que constantemente permite enredar-se e perder-se por meio da linguagem em um mundo externo e social Em suma ao inveacutes de um voltar-se para si a consciecircncia eacute a dissoluccedilatildeo do indiviacuteduo na sociedade

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre

166

Referecircncias bibliograacuteficasABEL Gunter Bewusstsein - Sprache - Natur Nietzsche Philosophie des Geistes Nietzsche-Studien 30 2001ABEL Gunter Consciousness language and nature Nietzsche philosophy of mind and nature In DRIES Manuel KAIL PJE (ed) Nietzsche on mind and nature Oxford Oxford University Press 2015BERTINO Andrea Discovering moral aspects of the philosophical discourse about language and consciousness with Nietzsche Humboldt and Levinas In CONSTANCIO Joatildeo BRANCO Maria Joatildeo M As the Spider Spins essays on Nietzschersquos critique and use of language Berlin Walter de Gruyter 2012CONSTAcircNCIO Joatildeo Consciousness communication and self-expression Towards an interpretation of aphorism 354 of Nietzschersaquos The Gay Science In CONSTAcircNCIO Joatildeo BRANCO Maria Joatildeo Mayer As the spider spins essays on Nietzschersquos critique and use of language BerlinBoston De Gruyter 2012_____ Instinct and language in Nietzschersquos beyond good and evil In CONSTAcircNCIO Joatildeo BRANCO Maria Joatildeo Mayer Nietzsche on Instinct and Language BerlinBoston De Gruyter 2009_____ Nietzsche on decentered subjectivity or the existential crisis of the modern subject In CONSTAcircNCIO Joatildeo BRANCO Maria Joatildeo Mayer RYAN Bartholomew Nietzsche and the problem of subjectivity BerlinBoston de Gruyter 2015_____ On Consciousness Nietzschersquos departure from Schopenhauer Nietzsche-Studien n 40 p 1-42 2011GIACOIA JUNIOR Oswaldo Nietzsche como psicoacutelogo Satildeo Leopoldo Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos 2001 [Coleccedilatildeo Focus]KATSAFANAS Paul Nietzschersquos theory of mind consciousness and conceptualization European Journal of Philosophy v 13 n 1 p 1-31 2005_____ The Nietzschean self moral psychology agency and the unconscious Oxford Oxford University Press 2016LUPO Luca Le colombe dello scettico riflessioni di Nietzsche sulla coscienza negli anni 1880-1888 Pisa Edizioni ETS 2006NIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2012VIESENTEINER Jorge Luiz Experimento e vivecircncia a dimensatildeo da vida como Pathos [Tese de Doutorado apresentada a Universidade Estadual de Campinas] Campinas SP 2009

Leonardo Arauacutejo Oliveira

167

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida em Nietzsche e Rosset

Leonardo Arauacutejo Oliveira1

Clement Rosset em seu livro ldquoA forccedila maiorrdquo realiza uma leitura afirmativa de Nietzsche tendo como ponto de reflexatildeo principal a alegria aquilo que se configura como a forccedila maior referida no tiacutetulo O autor ressalta o caraacuteter paradoxal da alegria Ela pode aparecer sem qualquer motivo dispensando qualquer razatildeo de existir chegando a aparecer inclusive em sua forma mais intensa nas situaccedilotildees mais adversas possiacuteveis nos estados de penuacuteria infortuacutenio privaccedilatildeo (Cf ROSSET 1983 p11) Por seu caraacuteter paradoxal estaria situada no exterior da razatildeo A alegria tambeacutem eacute paradoxal por se constituir como uma aprovaccedilatildeo traacutegica da existecircncia Ela existe em consonacircncia com os aspectos terrificantes da vida e ela existe apenas diante dessa contrariedade e comportando uma contradiccedilatildeo interna (Cf ROSSET 1983 p25)

Sem razatildeo de ser a alegria aparece sem espera como um acreacutescimo de vida Ela se constitui como essa forccedila maior que sem uma causa determinada e especiacutefica natildeo deriva de um ponto central mas ao contraacuterio faz com que tudo mais se derive dela Que ela seja causada natildeo se dispensa que ela ignore suas causas de modo que seja permitido falar em um efeito superior agrave causa em um processo que sendo o efeito preexistente agrave proacutepria causa ele se manifesta nela de modo que o papel da causa de uma alegria seja meramente o de ceder o meio para que o efeito se expresse Rosset invoca Spinoza para ressaltar essa primazia da alegria Em sua leitura do filoacutesofo judeu ldquoo uacutenico afeto eacute a alegria (e seu contraacuterio a tristeza) todo outro afeto natildeo eacute mais do que uma modificaccedilatildeo desse afeto primeiro visto que ele estaacute sujeito aos caprichos do acaso e da sorterdquo (ROSSET 1983 p12) Eacute desse modo que o autor vecirc a afirmaccedilatildeo da vida em Nietzsche como uma forccedila primeira que guia e se manifesta nas outras esferas de sua filosofia Zaratustra busca que a alegria seja criteacuterio ateacute mesmo para o conhecimento ldquoconsideremos falsa toda verdade em que natildeo houve ao menos uma risadardquo (NIETZSCHE 2011 p 202 Z III Das velhas e novas taacutebuas 23) na medida em que enquanto manifestaccedilatildeo da vida em ascensatildeo de potecircncia o riso se autojustifica ldquopois no riso tudo que eacute mau se acha concentrado mas santificado e absolvido por sua proacutepria bem-aventuranccedilardquo (NIETZSCHE 2011 p 221 Z III Os sete selos 6)

Rosset constata que na histoacuteria da filosofia predomina a ideia de que a alegria soacute eacute legiacutetima se situada para aleacutem da simples alegrias dos encontros durante a passagem da vida O autor busca uma concepccedilatildeo de alegria que se situe precisamente na contingecircncia naquilo que eacute pereciacutevel mutaacutevel inacabado impermanente efecircmero o juacutebilo terreno que se daacute

1 Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida

168

nos encontros habituais com a fruiccedilatildeo da vida a simples alegria de viver (Cf ROSSET 1983 p19-20) Essa ideia parece ganhar muito espaccedilo no pensamento de Nietzsche Renegar a alegria pueril da vida em sua ingenuidade em nome da esperanccedila em uma alegria permanente por vir consiste naquela confianccedila no supraterreno a qual Zaratustra se contrapotildee logo no iniacutecio de sua jornada Essa accedilatildeo eacute proacutepria daqueles que Zaratustra denomina de ldquotransmundanosrdquo homens esgotados paralisados cansados da vida Contra todo tipo de permanecircncia Zaratustra eacute partidaacuterio do movimento e da oscilaccedilatildeo ldquoEu sou um andarilho e um escalador de montanhas disse para seu coraccedilatildeo eu natildeo gosto de planiacutecies e ao que parece natildeo posso ficar muito tempo paradordquo (NIETZCHE 2011 p145 Z III O andarilho) Ao abandonar toda transcendecircncia Zaratustra se volta para terra e encontra regozijo nos encontros que realiza com travessias homens animais montanhas alimentos e consigo mesmo ndash visto que a variaccedilatildeo contiacutenua a impermanecircncia a transformaccedilatildeo se realizam desde o corpo proacuteprio

Mas Zaratustra tambeacutem se entristece Talvez seja essa a resistecircncia que seria possiacutevel encontrar na histoacuteria da filosofia a respeito da alegria natildeo suportar a exigecircncia de variaccedilatildeo desse afeto que pode por muitas vezes ser vertido em seu contraacuterio das maneiras mais avassaladoramente inesperadas Essa exigecircncia tambeacutem contempla o aspecto paradoxal da alegria como enfatiza Rosset Quando o sofrimento subtrai a alegria e invade o espiacuterito alegre ele ainda eacute considerado pela sabedoria alegre ndash enquanto conhecimento traacutegico ndash como um estimulante um ldquoacreacutescimo de gaacuteudio [gaieteacute] que prevalece sobre o sofrimentordquo (ROSSET 1983 p43) O sofrimento aparece como uma prova para a alegria Nas palavras de Zaratustra ldquoDissestes uma vez Sim a um soacute prazer Oh meus amigos entatildeo dissestes tambeacutem Sim a todo sofrimentordquo (NIETZSCHE 2011 p307 Z IV O canto eacutebrio 10 grifo do autor)

Rosset inicia seu capiacutetulo sobre Nietzsche e a moral enfatizando as intenccedilotildees criacuteticas de Nietzsche mormente nos uacuteltimos anos de sua produccedilatildeo em que estaria concentrado seu projeto de transvaloraccedilatildeo dos valores mas potildee em cheque a interpretaccedilatildeo ndash segundo ele dominante entre comentadores ndash que faz de Nietzsche um filoacutesofo que pauta sua filosofia sob uma inclinaccedilatildeo fundamentalmente criacutetica pois a preocupaccedilatildeo criacutetica natildeo poderia estar em primeiro lugar em uma filosofia da afirmaccedilatildeo da vida A criacutetica seria secundaacuteria e proveniente da afirmaccedilatildeo Nietzsche natildeo estaria fundamentalmente engajado na luta contra a moral contra o cristianismo contra o platonismo etc Assim Rosset declara abertamente que esse ponto da leitura de Deleuze eacute contestaacutevel O autor de Nietzsche e a filosofia centra o peso da filosofia de Nietzsche na postura criacutetica valorizando a desmistificaccedilatildeo como o ponto mais positivo da filosofia e chegando a encontrar a afirmaccedilatildeo naquilo que Rosset denomina de ldquonegaccedilatildeo dialeacutetica da negaccedilatildeordquo (ROSSET 1983 p 74-75)

Rosset reconhece a discussatildeo entre o negativo e o positivo como possivelmente o principal problema interno da filosofia nietzschiana mas eacute categoacuterico em sua posiccedilatildeo o poder criacutetico natildeo pode ser o mais positivo ele deve advir do poder afirmativo Seria faacutecil notar segundo o autor que a criacutetica enquanto derivada da afirmaccedilatildeo incidiria sobre elementos julgados como natildeo-afirmativos Entretanto Rosset se pergunta como essa ldquocriacutetica dialeacuteticardquo se sustenta a partir da recusa de Nietzsche em alguns momentos agrave luta e a acusaccedilatildeo como no 276 da Gaia ciecircncia em que eacute apresentado o amor fati Segundo o autor o caminho da resoluccedilatildeo da questatildeo consiste em uma delimitaccedilatildeo do conceito nietzschiano de criacutetica

Leonardo Arauacutejo Oliveira

169

Em um procedimento negativo Rosset inicia pela explicitaccedilatildeo do sentido de criacutetica que Nietzsche natildeo faz uso ldquopocircr em duacutevida contestar atacar acusarrdquo Esse seria o uso mais cotidiano do termo Assim seria preciso ir ateacute a etimologia do mesmo onde se poderia encontrar o sentido do uso nietzschiano da criacutetica ldquocriticar significa tambeacutem e primeiramente segundo a etimologia grega e latina do termo (Krinocirc kritikos cernere) observar discernir distinguirrdquo(ROSSET 1983 p 76) Esse segundo sentido natildeo contempla a ideia de combate luta conflito Essa eacute a razatildeo para Rosset valorizaacute-lo Aos olhos do autor a criacutetica de Nietzsche natildeo visa o ataque mas a compreensatildeo natildeo intenta uma interferecircncia na realidade natildeo busca remeacutedios soluccedilotildees mudanccedilas mas consiste em ver e fazer ver natildeo tem como fito diminuir a tolice e a baixeza do pensamento (como diz Deleuze) mas se efetua como uma espeacutecie de observaccedilatildeo impiedosa embora sem qualquer ldquomaacute intenccedilatildeordquo ldquoEacute por isso que os comentadores atuais que atribuem a Nietzsche uma preocupaccedilatildeo qualquer com a luta contra os valores estabelecidos ou contra qualquer outra coisa me parecem ter feito o caminho erradordquo (ROSSET 1983 p 74-77)

Pensando no aspecto positivo Rosset acredita haver uma moral em Nietzsche mas diz que ela eacute secundaacuteria estabelece sua constituiccedilatildeo em suma enquanto uma moral do gozo de todas as coisas O homem virtuoso seria aquele capaz de gozar o mundo Em contrapartida aquilo que Nietzsche criticaria aquele que ele condenaria moralmente seria o homem do sofrimento e do ressentimento Rosset concorda com Deleuze na caracterizaccedilatildeo psicoloacutegica desse tipo de homem ele eacute impossibilitado de reagir Ele absorve a dor o sofrimento a ofensa mas natildeo expressa seu rancor ao inveacutes disso paralisa Assim o homem do ressentimento impossibilitado de afirmar natildeo consegue nem mesmo negar Ele se contenta em emitir falsos ldquosinsrdquo (Cf ROSSET 1983 p 78-79) Eacute ele a quem Nietzsche representa com a figura do asno de Zaratustra

Em um primeiro momento pensar que a criacutetica entra em conflito com a afirmaccedilatildeo da vida pode nos levar a seguinte linha de leitura que encontra eco em textos de Nietzsche se a principal preocupaccedilatildeo do autor do Anticristo fosse uma criacutetica total levada ateacute o fim de sua potecircncia ateacute mesmo a vida natildeo escaparia dela o que desembocaria em um conflito com a insiacutegnia nietzschiana de que a vida natildeo pode ser avaliada que ao contraacuterio ela eacute o criteacuterio de toda avaliaccedilatildeo Assim a criacutetica soacute poderia ser secundaacuteria em relaccedilatildeo agrave vida e sua afirmaccedilatildeo uma vez que a avaliaccedilatildeo deve partir dela ateacute mesmo a avaliaccedilatildeo daqueles que se potildeem a avaliar a vida ndash nos termos de Zaratustra ldquoEsses acusadores da vida a vida os supera com um piscar de olhosrdquo (NIETZSCHE 2011 p209 Z III O convalescente)

A passagem do Crepuacutesculo dos iacutedolos em que se baseia o argumento acima parece sugerir que a vida seria um elemento extra-filosoacutefico e por isso estaria fora do acircmbito da avaliaccedilatildeo Rosset ressalta como o tema da afirmaccedilatildeo da vida natildeo tem justificaccedilatildeo teoacuterica Ele o coloca sempre em termos necessitaristas e afetivos como que separados de qualquer teoria Contudo gostariacuteamos de lembrar que mesmo se a vida eacute uma tema difuso e de difiacutecil articulaccedilatildeo conceitual em Nietzsche o autor se preocupa em ligaacute-la agrave vontade de poder conceito sobre o qual ele teoriza fecundamente Sobre a afirmaccedilatildeo da vida em especiacutefico ela se encontra atrelada a doutrina do eterno retorno Esses dois conceitos que se apresentam na trama de Zaratustra estabelecem a vida e sua afirmaccedilatildeo como um problema filosoacutefico debatido filosoficamente ainda que com ferramentas pouco aceitaacuteveis em alguns ciacuterculos como a narrativa a linguagem metafoacuterica o uso deliberadamente retoacuterico da escrita a dramatizaccedilatildeo a movimentaccedilatildeo e transformaccedilatildeo de ideias em funccedilatildeo de seus contextos de aplicaccedilatildeo em suma mecanismos que supotildeem uma noccedilatildeo mais ampliada de argumentaccedilatildeo

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida

170

Do mesmo modo Nietzsche natildeo visa simplesmente negar ou se opor agrave razatildeo mas pensar uma noccedilatildeo mais ampliada de racionalidade culminando naquilo que Zaratustra denomina de ldquogrande razatildeordquo

Mas essa natildeo parece ser a preocupaccedilatildeo de Rosset Ele se concentra em explicitar a recusa de Nietzsche ao combate ao ataque agrave condenaccedilatildeo Pois bem de fato em alguns momentos de sua produccedilatildeo Nietzsche se coloca numa posiccedilatildeo de recusa ao embate em que se considera demasiadamente nobre para lutar Por exemplo em Ecce homo quando comenta que sua campanha contra a moral em Aurora natildeo tinha relaccedilatildeo com negaccedilatildeo ou ataque (Cf NIETZSCHE 2008 p75 EH A 1) e na Gaia ciecircncia em que ao declarar o amor fati se recusa a ser um acusador (Cf NIETZSCHE 2001 p 166 GC 276) Contudo em vaacuterias outras passagens de Nietzsche (muitas citadas aqui) o conflito eacute natildeo soacute elogiado (filosofia praacutetica) como tambeacutem eacute necessaacuterio (ontologia) Para quem atribui creacutedito a uma ideia de filosofia primeira tem-se o conflito de forccedilas desde sua cosmologia ou ontologia da vontade de poder

Assim falou Zaratustra eacute uma obra providencial para ser tomada como contra-exemplo agrave recusa de conflito e negaccedilatildeo em Nietzsche O ldquodizer natildeordquo eacute de fundamental importacircncia para o percurso de Zaratustra Esse dito soa inclusive tatildeo necessaacuterio quanto o ldquodizer simrdquo O natildeo do leatildeo o guerreiro amado pela sabedoria a paz como mero meio para a guerra o momento certo de dizer natildeo o retorno de Zaratustra possibilitado por sua negaccedilatildeo o desejo apreccedilo e amor pelos inimigos negar como a tempestade destruir como o raio a tripla negaccedilatildeo tripla contra o adivinho contra os homens do fastio e contra a reparaccedilatildeo dos males acomodaccedilotildees e caminhos faacuteceis Essas ideias e imagens constituem alguns dos momentos de negaccedilatildeo e conflito pelos quais passa e aos quais chega Zaratustra

Do mesmo modo eacute possiacutevel contrapor o texto do Zaratustra a ideia de Rosset de que Nietzsche natildeo visava criticar os valores estabelecidos Ora o ldquonatildeordquo do leatildeo se direciona precisamente a eles O problema do valor eacute tatildeo importante ao ponto de se declarar o estreito viacutenculo entre vida e avaliaccedilatildeo Eacute veemente a necessidade da destruiccedilatildeo de valores que seratildeo substituiacutedos reposicionados criados precisamente por aqueles que satildeo a um soacute tempo criadores e combatentes O texto clama pelo destroccedilamento das velhas taacutebuas de valores

Portanto o sentido predominante da criacutetica em Nietzsche natildeo eacute aquele que tem como eixo principal a observaccedilatildeo e o discernimento A maneira com que Rosset a enuncia dando relevo a falta de acusaccedilatildeo agrave compreensatildeo ao fazer ver lembra um trecho da Gaia ciecircncia em que Nietzsche critica Spinoza por esse uacuteltimo segundo o filoacutesofo alematildeo ignorar que a compreensatildeo natildeo existe de forma independente a certos afetos uma vez que inversamente natildeo existe o puro entendimento A compreensatildeo se envolve com uma complexidade de afetos da qual ela resulta Nietzsche se opotildee a tal pretensatildeo ao purismo no campo do conhecimento

A questatildeo natildeo pode ser separada da problemaacutetica da vontade e poder e do perspectivismo Ateacute mesmo no que diz respeito agraves ciecircncias da natureza em sua relaccedilatildeo com o conhecimento puro somente o que comportaria de pureza seria sua pretensatildeo a esse ideal de conhecimento que natildeo ultrapassaria a condiccedilatildeo de pura pretensatildeo pois o perspectivismo implicado ao conceito de vontade de poder tambeacutem atua no saber cientiacutefico fazendo com que esse tipo de conhecimento esteja embasado natildeo em fatos mas em interpretaccedilotildees vinculadas a manifestaccedilotildees de vontades de poder

Leonardo Arauacutejo Oliveira

171

Ainda que fosse possiacutevel conceber um ser humano que anulasse seus afetos e sua proacutepria vontade ao adentrar no processo gnosioloacutegico natildeo se poderia estabelecer uma separaccedilatildeo entre ciecircncia e vontade uma vez que esse homem estaria a serviccedilo de interesses de outro(s) Esse tipo de ser humano eacute configurado por Nietzsche com a imagem do erudito Se Nietzsche aderisse a essa espeacutecie de ldquoobservaccedilatildeo imaculadardquo pela qual Rosset concebe a criacutetica ele se aproximaria dos eruditos que tanto critica tendo dedicado uma seccedilatildeo de Assim falou Zaratustra para essa criacutetica Sobre eles nos diz Zaratustra ldquose acham frequentemente sentados na fria sombra querem ser apenas espectadores em tudo e evitam sentar-se ali onde o sol queima os degrausrdquo (NIETZSCHE 2011 p119 Z II Dos eruditos) Essa observaccedilatildeo somente pela observaccedilatildeo oblitera o envolvimento afetivo ligado a toda compreensatildeo natildeo passando de uma armadilha moral

Eacute certo que a noccedilatildeo de criacutetica em Nietzsche comporta o sentido do afastamento para um bom discernimento Mas como procuramos mostrar ateacute aqui esse sentido natildeo eacute uacutenico e nem primeiro em relaccedilatildeo aos outros Aleacutem disso esse proacuteprio afastamento natildeo eacute unitaacuterio mas muacuteltiplo O conhecimento eacute tanto mais preciso quanto mais observaccedilotildees diversas forem realizadas (Cf NIETZSCHE 2009 p110 GM III 13) Em alguns momentos essa distacircncia tomada natildeo visa somente a constataccedilatildeo mais apurada mas tambeacutem algo como uma tomada de impulso com o fito de acertar um golpe mais forte

Essa concepccedilatildeo de criacutetica como pura observaccedilatildeo sem interferecircncia ou qualquer tipo de intenccedilatildeo transformadora se adeacutequa bem a concepccedilatildeo que Rosset faz da afirmaccedilatildeo da vida um gozo irrestrito e irracional de todas as coisas Residiria aiacute a ldquoaprovaccedilatildeo jubilatoacuteria da existecircncia sob todas suas formasrdquo (ROSSET 1983 p74) Contudo ambas as concepccedilotildees bem como seu casamento natildeo se aliam ao reconhecimento da criacutetica de Nietzsche ao ldquofalso simrdquo Eacute certo que a figura do asno pode representar adequadamente o homem ressentido aquele que natildeo sabe negar e que toma a pura resignaccedilatildeo como afirmaccedilatildeo Mas eacute certo tambeacutem que essa figura pode representar aqueles que Zaratustra denomina de ldquocontentes com tudordquo Contra esses Zaratustra aponta a necessidade da negaccedilatildeo a capacidade de selecionar a necessidade de se diferenciar daqueles que se alimentam de tudo sem qualquer criteacuterio

O ldquonatildeordquo eacute importante para a afirmaccedilatildeo na medida em que a afirmaccedilatildeo nietzschiana natildeo ldquoafirmardquo tudo de modo indiferente isto eacute natildeo aceita tudo A afirmaccedilatildeo se liga a uma seleccedilatildeo e portanto um percurso afirmativo natildeo dispensa a negaccedilatildeo Em Ecce homo Nietzsche diz que o homem dotado de uma iacutendole bem lograda (Wohlgeratenheit) eacute ldquoum princiacutepio seletivordquo (NIETZSCHE 1999 p419 EH Por que sou tatildeo saacutebio 2) A aprovaccedilatildeo de tudo eacute uma afirmaccedilatildeo inadequada Nos termos do bestiaacuterio de Zaratustra trata-se da aceitaccedilatildeo de toda carga pelo camelo do falso e grotesco ldquosimrdquo do asno e da asquerosa alimentaccedilatildeo do porco

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida

172

Referecircncias bibliograacuteficasNIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011_____ Ecce homo como algueacutem se torna o que eacute Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008_____ Genealogia da moral uma polecircmica Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Obras incompletas Traduccedilatildeo de Rubens Rodrigues Torres Filho Satildeo Paulo Nova Cultural 1999 (Col Os pensadores)ROSSET Clement La force majeure Paris Les Eacuteditions de Minuit 1983

Luiza Fonseca Regattieri

173

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche e seus desdobramentos eacutetico-esteacuteticos

Luiza Fonseca Regattieri1

IntroduccedilatildeoA proposta desta apresentaccedilatildeo eacute abordar os pontos que eu acredito serem iniciais

para pensar um sentido de justiccedila proacuteprio agrave filosofia de Nietzsche Para nesse vieacutes de investigaccedilatildeo eu possa comeccedilar a delinear a hipoacutetese de que Nietzsche relacionaria justiccedila e gosto borrando os limites entre eacutetica e esteacutetica

Em Genealogia da Moral Nietzsche critica o esforccedilo filosoacutefico moderno em especial o de Eugen Duumlhring2 de colocar a justiccedila como um princiacutepio de accedilatildeo impulsionado pela vinganccedila e o ressentimento (Cf DUumlHRING 2011) Nesta tradiccedilatildeo moderna criticada por Nietzsche a justiccedila se implicaria moral e politicamente a partir desses afetos para superaacute-los atraveacutes de um complexo de poder imparcial com o fim de garantir igualdade universal e eliminar as injusticcedilas (NIETZSCHE 1998 p 64-65GM II sect11) Diferentemente para Nietzsche a justiccedila natildeo proveria de tais afetos e nem teria uma funccedilatildeo correcional da vida como defende Duumlhring Nietzsche propotildee algo diferente em GM que a justiccedila surge como ldquoboa vontade entre homens de poder aproximadamente igual [] de lsquoentender-sersquo mediante um compromissordquo (NIETZSCHE 1998 p 60GM II sect8) ldquocomo um meio na luta entre complexos de poderrdquo (NIETZSCHE 1998 p 65GM II sect11) ldquopara criar maiores unidades de poderrdquo (NIETZSCHE 1998 p65GM II sect11) Essa definiccedilatildeo pode nos lembrar tambeacutem um fragmento poacutestumo de 1884 em que ele escreve ldquoJusticcedila como funccedilatildeo de um poder de abrangecircncia da visatildeo que olha aleacutem das pequenas perspectivas de bem e mal portanto um horizonte mais amplo de vantagem ndash do que a intenccedilatildeo de obter algo que eacute mais do que isso ou essa pessoardquo (NIETZSCHE FP-1884 26[149])

Para entendermos essa definiccedilatildeo eu vou adentrar nos pontos que eu entendo como centrais desta investigaccedilatildeo a partir dos seguintes elementos conceituais a) a necessaacuteria injusticcedila (NIETZSCHE 2000 p 12-13 e 38-39HDHI Proacutelogo sect6 HDHI sect32) b) a boa vontade de entender-se (NIETZSCHE 1998 p 60GM II sect8) c) o mal-entendimento (NIETZSCHE 1998 p 7GM Proacutelogo sect1 BM sect27) d) a autosubsunccedilatildeo da justiccedila (NIETZSCHE 1998 p 62GM II sect10) e e) o gosto (NIETZSCHE 2001 p 169GC III sect184 HDHII sect219 HDHII sect170)

1 Doutoranda no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGFUFRJ) 2 (1833-1921) filoacutesofo e economista poliacutetico alematildeo

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche

174

Justiccedila e gosto borrando os limites entre eacutetica e esteacutetica Em Humano demasiado humano I na seccedilatildeo 32 Nietzsche escreve sobre a

necessidade de ser injusto a primeira informaccedilatildeo que Nietzsche nos apresenta nesse aforismo eacute de que os juiacutezos satildeo injustos porque iloacutegicos Ele define a injusticcedila como uma incontornaacutevel inexatidatildeo do juiacutezo no entanto aqui entra sua segunda informaccedilatildeo o juiacutezo natildeo pode ser freado i e ele se daacute necessariamente na vida em todo impulso em toda accedilatildeo Avaliar ou seja julgar a vida os valores os acontecimentos eacute irrenunciaacutevel embora seja uma operaccedilatildeo inevitavelmente iloacutegica Eacute impossiacutevel haver conhecimento absoluto ou exato de algo ou algueacutem pois ldquoo modo como se apresenta o material [eacute] muito incompletordquo (NIETZSCHE 2000 p 38-39 HDHI sect32) cada parte dele nos chega de maneira inexata e sua soma natildeo poderia ser atingida a partir dessa inexatidatildeo Aleacutem disso natildeo haacute algo estaacutevel que sirva de crivo ou medida para o julgamento natildeo haacute uma grandeza imutaacutevel natildeo existe um fundamento que justifique a avaliaccedilatildeo que faccedila jus ao julgamento

Nietzsche toma como necessaacuterio o movimento irrefreaacutevel de fundar apesar do sem fundamento proacuteprio da criaccedilatildeo de modos de vida Disso decorre a terceira ideia que ele apresenta ldquosomos [] capazes de reconhecerrdquo (NIETZSCHE 2000 p 39 HDHI sect32) esta insoluacutevel desarmonia da existecircncia conseguimos perceber o sem fundamento da vida e nosso movimento de fundamentaacute-la Parto da hipoacutetese que essa capacidade eacute a funccedilatildeo da justiccedila no sentido nietzschiano A justiccedila eacute o natildeo desviar do olhar para a produccedilatildeo de fundamentaccedilotildees e para o campo de batalha entre elas Ela se exercita como dever de

aprender a perceber o que haacute de perspectiva em cada valoraccedilatildeo [em disputa] ndash o deslocamento a distorccedilatildeo e a aparente teleologia dos horizontes e tudo o que se relaciona agrave perspectiva tambeacutem o quecirc de estupidez que haacute nas oposiccedilotildees de valores e a perda intelectual com que se paga todo proacute e todo contra Vocecirc deve apreender a injusticcedila necessaacuteria de todo proacute e contra a injusticcedila como indissociaacutevel da vida a proacutepria vida como condicionada pela perspectiva e sua injusticcedila (NIETZSCHE 2000 p 12-13HDH I Proacutelogo sect 6)

A justiccedila se daacute entatildeo neste incessante aprender a perceber perspectivas e perdas da avaliaccedilatildeo Esse sentido eacute retomado em Genealogia da Moral quando Nietzsche define a justiccedila como o empenho de entender ldquojusticcedila eacute a boa vontade entre humanos de poder aproximadamente igual [] de lsquoentender-sersquordquo (NIETZSCHE 1998 p 60GM II sect8) O entender-se foi destacado entre aspas no texto original Essa ecircnfase lembra singelamente ao leitor que se o entendimento pleno natildeo eacute possiacutevel o entender pressupotildee um ldquomal-entenderrdquo (NIETZSCHE 1998 p 7GM Proacutelogo sect1) como explica Nietzsche

Eacute difiacutecil ser entendido [] ndash faccedilo eu tudo para me tornar dificilmente entendido ndash e deve-se ser de coraccedilatildeo reconhecidamente grato soacute pela boa vontade em alguma sutileza de interpretaccedilatildeo Que [isso] poreacutem diz respeito ldquoaos bons amigosrdquo que estatildeo sempre em [situaccedilatildeo] cocircmoda e justamente por serem amigos acreditam ter direito a tal comodidade ora eacute bom que se conceda a eles de imediato uma margem de manobra e um espaccedilo de recreaccedilatildeo para o mal-entendimento - assim se haacute de rir ainda - ou absolutamente [haacute] de se repelir esses bons amigos e assim tambeacutem rir (NIETZSCHE 1992 p 32BM sect27)

Luiza Fonseca Regattieri

175

Nietzsche coloca nesse aforismo algo que deve haver ali no movimento para entender uma boa vontade em alguma sutileza de interpretaccedilatildeo ou seja um empenho de querer entender considerar natildeo ser indiferente Afinal ele afirma ldquoquem nada entendeu de mim negava que eu em geral fosse levado em consideraccedilatildeordquo (NIETZSCHE 1995 p 21-22EH Por que escrevo tatildeo bons livros sect1) Essa eacute a mesma boa vontade que Nietzsche coloca como condiccedilatildeo para ldquoQuando realmente acontece de o homem justo ser justo [] (e natildeo apenas frio comedido distante indiferente ser justo eacute sempre uma atitude positiva)rdquo (NIETZSCHE 1998 p 63GM II sect11)

O filoacutesofo ainda recomenda que agrave boa vontade seja concedida uma ldquomargem de manobra e um espaccedilo de recreaccedilatildeo para o mal-entendimentordquo (NIETZSCHE 1992 p 32BM sect27) Como bem aponta Werner Stegmaier no artigo traduzido como Signos de Nietzsche o mal-entender eacute acolher a incompreensatildeo como compreensatildeo ou seja ldquoesforccedilar-se por condescender a outros por meio de compreensibilidaderdquo (STEGMAIER 2013 p 143) e o acolhimento do incompreendido se daacute nessa margem de manobra e espaccedilo de recreaccedilatildeo apontado por Nietzsche3 Esse espaccedilo natildeo eacute algo necessaacuterio Nietzsche o recomenda ldquoeacute bom que se concedardquo (NIETZSCHE 1992 p 32BM sect27) Mas a concessatildeo de um espaccedilo para o acolhimento do incompreensiacutevel do estranho da diferenccedila soacute eacute possiacutevel quando se reconhece a estranheza Nesse sentido como observa Stegmaier conceder a margem de manobra para o mal-entendimento eacute uma soluccedilatildeo eacutetica fornecida por Nietzsche para o problema da dificuldade de ser entendido (STEGMAIER 2013 p139) Essa margem evidencia que o entendimento eacute a possibilidade de entendermos algo e nesse mesmo ato produzir e acolher um equiacutevoco

Proponho que a soluccedilatildeo eacutetica indicada por Nietzsche agrave dificuldade de ser entendido pode ser aplicada tambeacutem agrave justiccedila o acolhimento da ambivalecircncia A justiccedila em Nietzsche seria esse espaccedilo de recreaccedilatildeo essa margem de manobra Quando Nietzsche escreve ldquoVocecirc deve apreender a injusticcedila necessaacuteria de todo proacute e contra a injusticcedila como indissociaacutevel da vida []rdquo (NIETZSCHE 2000 p 12-13HDH I Proacutelogo sect 6) ele tambeacutem aqui recomenda ndash ldquovocecirc deverdquo ndash que se conceda a margem para o acolhimento da inexatidatildeo do juiacutezo Para esse acolhimento Nietzsche nos diz que eacute preciso boa vontade ou seja esforccedilo para perceber a injusticcedila que necessariamente resta na justiccedila esta eacute sua genialidade ser ldquouma adversaacuteria das convicccedilotildeesrdquo (NIETZSCHE 2000 p 305HDHI sect636)

Entretanto independentemente dessa ambivalecircncia ser acolhida a produccedilatildeo do sentido de justiccedila eacute marcada por ela Nietzsche em Genealogia da Moral descreve que a produccedilatildeo do justo em uma comunidade se daacute por um processo de suspenccedilatildeo do que se compreendia como justiccedila anteriormente O que outrora se compreendeu por justiccedila eacute visto por uma nova perspectiva como injusticcedila e a partir disso eacute produzido um novo sentido de justo Nietzsche denomina esse processo de autossubsunccedilatildeo da justiccedila

Aumentando o poder de uma comunidade ela natildeo mais atribui tanta importacircncia aos desvios do indiviacuteduo [] pelo contraacuterio [] as tentativas de achar equivalentes e acomodar a questatildeo (compositio) [] a vontade cada vez mais firme de considerar toda infraccedilatildeo resgataacutevel de algum modo de isolar [] o criminoso de seu ato ndash estes satildeo os traccedilos que marcam cada vez mais nitidamente a evoluccedilatildeo posterior do direito

3 Stegmaier descreve esse espaccedilo de manobra ldquocomo um espaccedilo no qual algueacutem ou alguma coisa pode se comportar de acordo com lsquoregras de atuaccedilatildeorsquo (Spielregen) proacuteprias espaccedilo que natildeo obstante eacute limitado por meio de regras ou dados de fato (Gegebenheiten) sobre os quais nem um nem outro nesse espaccedilo pode ldquorecreandordquo impor-serdquo (2013 p 143)

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche

176

penal [] A justiccedila que iniciou com ldquotudo eacute resgataacutevel tudo tem que ser pagordquo termina como toda coisa boa sobre a terra superando a si mesma [sich selbst aufheben] A autossubsunccedilatildeo [Selbstaufhebung] da justiccedila sabemos com que belo nome ela se apresenta ndash graccedila ela permanece como eacute oacutebvio privileacutegio do poderoso ou melhor o seu ldquoaleacutem do direitordquo (NIETZSCHE 1998 p 61-62GM II sect10)4

O aforismo nos mostra que uma forma de justiccedila (compensaccedilatildeo ldquotudo eacute resgataacutevel tudo tem que ser pagordquo) eacute negada por uma perspectiva que a vecirc como injusta assim para se superar essa injusticcedila se produz uma nova compreensatildeo de justiccedila (composiccedilatildeo) Nesse sentido a justiccedila se processa enquanto autossuspenccedilatildeo isto eacute superaccedilatildeo de injusticcedilas sem entretanto extinguir a injusticcedila que lhe eacute inerente natildeo podendo assim dar cabo agrave sua proacutepria produccedilatildeo

Nietzsche entende que esse movimento de superaccedilatildeo acontece irrefreavelmente ldquoSe crescem o poder e a consciecircncia de si de uma comunidade torna-se mais suave o direito penal se haacute enfraquecimento dessa comunidade [] formas mais duras desse direito voltam a se manifestarrdquo (NIETZSCHE 1998 p 61-62GM II sect10) No entanto para Nietzsche noacutes natildeo nos atentamos a esse processo de autossubsunccedilatildeo (NIETZSCHE 20001 p 220-221GC IV sect 333) e acreditamos que a justiccedila eacute uma avaliaccedilatildeo loacutegica e objetiva uma evoluccedilatildeo purificadora Mas essa crenccedila soacute eacute possiacutevel se negamos a vida como condicionada pela perspectiva e sua injusticcedila Assim eacute em razatildeo dessa denegaccedilatildeo que o processo de autossubsunccedilatildeo da justiccedila se apresenta com o nome de graccedila (NIETZSCHE 1998 p 61-62GM II sect10)

A autossubsunccedilatildeo da justiccedila natildeo eacute para Nietzsche uma graccedila O filosofo recusa a ideia de inspiraccedilatildeo (NIETZSCHE FP-187724[1]) ldquoToda atividade humana eacute assombrosamente complexa natildeo soacute a do gecircnio mas nenhuma eacute um lsquomilagrersquordquo (NIETZSCHE 2000 p 124HDHI sect162) Assim ldquocomo a ideia da obra de arte do poema o pensamento fundamental de uma filosofiardquo (NIETZSCHE 2000 p 119-120HDHI sect 155) natildeo caem ldquodo ceacuteu como um raio de graccedilardquo (Idem) mas longe disso satildeo produto de um ldquojulgamento (Urteilskraft) () [que] rejeita seleciona combinardquo(Idem) a autossubsunccedilatildeo da justiccedila eacute tambeacutem proacutepria dessa capacidade de julgar

Nos aforismos em que Nietzsche recusa a crenccedila na inspiraccedilatildeo e afirma o julgamento que escolhe (NIETZSCHE FP-187724[1] ) ele trata da arte da literatura e da filosofia (NIETZSCHE 2000 p 119-124HDHI sect155 e sect162) No entanto o que nos permite estender essa compreensatildeo agrave justiccedila eacute aleacutem do sect 10 jaacute citado de Genealogia da Moral a seccedilatildeo 184 de Gaia Ciecircncia Nele Nietzsche nos diz ldquoJusticcedila ndash Melhor se deixar roubar 4 Entendo Selbstaufhebung der Gerechtigkeit como autossubsunccedilatildeo da justiccedila e natildeo como auto-supressatildeo na versatildeo em

portuguecircs traduzida por Paulo Ceacutesar A palavra supressatildeo carrega o sentido de extinccedilatildeo o que pode levar agrave interpre-taccedilatildeo de que a Selbstaufhebung eacute o processo de extinccedilatildeo da justiccedila sentido esse que na minha interpretaccedilatildeo o aforismo natildeo possui No prefaacutecio tardio agrave Aurora no aforismo 4 apoacutes ter explanado sobre o pessimismo alematildeo e ter terminado o aforismo anterior exemplificando esse pessimismo em Hegel citando a frase ldquoa contradiccedilatildeo move o mundo todas as coisas contradizem a si mesmasrdquo Nietzsche se questiona se Aurora natildeo seria um livro pessimista pois ele representa uma contradiccedilatildeo e natildeo tem medo dela Nesse sentido Nietzsche escreve que essa contradiccedilatildeo eacute a de que o livro retira a confianccedila na moral mas por moralidade e que ele assim o faz atraveacutes de uma vontade que natildeo quer voltar atraacutes de tudo que jaacute se acredita superado uma vontade pessimista que se nega com prazer Enfim ele escreve que se for desejado uma ldquofoacutermulardquo para isso ela eacute a autossubsunccedilatildeo da moral (die Selbstaufhebung der Moral) Dessa forma natildeo soacute fica explicito o sentido de negar sem suprimir que Nietzsche enxerga em Aufhebung como esse sentido guarda uma relaccedilatildeo com o conceito de Aufhebung em Hegel Hegel como explica Vladimir Safatle em seu curso transcrito sobre a Fenomenologia do Espiacuterito ldquofornece pela primeira vez uma definiccedilatildeo operacional de Aufhebung lsquoO superar apresenta sua dupla significaccedilatildeo verdadeira que vimos no negativo eacute ao mesmo tempo um negar (Negieren) e um conservar (Aufbewahren)rsquo(HEGEL Fenomenologia par 113)rdquo Aufheben eacute como bem observou Georges Bataille inspirado pela filosofia de Hegel um verbo intraduziacutevel que tem o sentido de superar mantendo (BATAILLE 2014 p 59 nota 4) Para mais discussotildees sobre o verbo alematildeo aufheben e as relaccedilotildees entre o conceito em Hegel e Nietzsche conf KAUFMANN 1974 p 236-238

Luiza Fonseca Regattieri

177

do que ter espantalhos ao seu redor ndash eis o meu gosto E em todas as circunstacircncias isso eacute uma questatildeo de gosto ndash e nada maisrdquo (NIETZSCHE 2001 p 169GC sect184) ou seja justiccedila (Justiz5) eacute questatildeo de gosto ou seja uma forma determinada de justiccedila eacute uma produccedilatildeo do gosto Nesse pequeno aforismo Nietzsche propotildee o gosto como a medida do justo resta entatildeo em nos perguntarmos sobre o gosto em sua filosofia

Aproximando gosto e justiccedila Nietzsche se afasta mais uma vez da tradiccedilatildeo filosoacutefica moderna especialmente de Kant para quem o gosto eacute reservado agrave produccedilatildeo de juiacutezos esteacuteticos Quando Nietzsche considera que as atividades do artista do filoacutesofo e do cientista (NIETZSCHE 2000 p 124HDHI sect162) satildeo um julgamento que escolhe e as equipara como uma mesma atividade que parte da fantasia6 ele se afasta do empreendimento kantiano (Cf KANT 1995) pois Kant entende o gosto como um juiacutezo meramente esteacutetico atraveacutes do qual seria impossiacutevel a produccedilatildeo de conhecimento ou de justiccedila por ele natildeo ser um juiacutezo objetivo e universalizaacutevel e ainda divide gosto e julgamento (gosto como desinteressado e proacuteprio do acircnimo de quem julga e julgamento como a mediaccedilatildeo entre o entendimento ou a razatildeo e a imaginaccedilatildeo) Como aponta Katia Hanza em seu texto que discute o gosto na obra intermediaacuteria de Nietzsche

Diferentemente de Kant para quem a tarefa da faculdade de julgar consiste na mediaccedilatildeo entre o entendimento ou a razatildeo e a imaginaccedilatildeo Nietzsche soacute leva em conta dois termos desta constelaccedilatildeo a faculdade de julgar e a fantasia (ou imaginaccedilatildeo) O entendimento ou a razatildeo natildeo satildeo considerados em absoluto pois se ele menciona a ldquoideia da obra de arte da poesiardquo ou o ldquopensamento fundamental de uma filosofiardquo eacute para relacionaacute-los diretamente com a fantasia Eacute como se pensamentos ou ideias fossem produtos apenas da imaginaccedilatildeo e natildeo do entendimento ou da razatildeo Por este motivo as atividades do artista e do filoacutesofo satildeo compreendidas analogicamente Enquanto Kant procura especificar a tarefa da mediaccedilatildeo que a faculdade de julgar realiza entre a intuiccedilatildeo e o entendimento [] Nietzsche reconhece soacute uma faculdade de julgar a que ldquoescolherdquo (auswaumlhlende) [] Como vimos o gosto e a faculdade de julgar cumprem para Nietzsche a mesma funccedilatildeo (HANZA 2005 p 109)

Se pudermos corroborar essa hipoacutetese poderiacuteamos propor que pensando o gosto como medida da justiccedila Nietzsche borra os limites entre os campos eacutetico e esteacutetico Ele afirma que ldquojuiacutezos esteacuteticos e morais satildeo lsquotons sutiliacutessimosrsquo da physisrdquo (NIETZSCHE 2001 p 83GC I sect 39) pois ldquoseu julgamento lsquoIsso estaacute certorsquo tem uma preacute-histoacuteria nos seus impulsos inclinaccedilotildees aversotildees experiecircncias e inexperiecircnciasrdquo (NIETZSCHE 2001 p 222-225GC IV sect 335) Assim ele aproxima os juiacutezos de gosto a instintos e conclui que ldquoOs juiacutezos esteacuteticos (o gosto desagrado asco etc) constituem a base das taacutebuas de valor [Guumltertafel] Estas por sua vez satildeo a base dos juiacutezos moraisrdquo (NIETZSCHE FP-188111[78]) havendo assim um contiacutenuo esteacutetico eacutetico ou melhor Nietzsche coloca os valores morais como superfiacutecies sintomas de valores esteacuteticos Tudo isso me encaminha para a necessidade de investigar o sentido de gosto na filosofia de Nietzsche para comeccedilar a tentar compreender o que seria essa justiccedila como questatildeo de gosto e de nada mais5 O dicionaacuterio Wahrig Alematildeo define o verbete ldquoJustiz ltf - unzgt Rechtswesen Rechtspflegerdquo Rechtswesen tem

o sentido de aquilo que pertence ao Direito e Rechtspflege aquilo que cuida ou assiste ao Direito por isso aponto a diferenccedila entre Justiz e Gerechtigkeit

6 ldquoa fantasia do bom artista ou do pensador produz continuamente [] o seu julgamento altamente aguccedilado e exer-citado rejeita seleciona combinardquo (HDHI sect162)

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche

178

Referecircncias bibliograacuteficasBATAILLE G O Erotismo Belo Horizonte Autecircntica Editora 2014DUumlHRING E A satisfaccedilatildeo transcendente da vinganccedila Traduccedilatildeo de Edmilson Pascoal Estudos Nietzsche Curitiba v 2 n 1 p 123-138 janjun 2011 HANZA K Distinccedilotildees em torno da faculdade de distinguir o gosto na obra intermediaacuteria de Nietzsche Cadernos Nietzsche 19 p 101-122 2005 KANT Immanuel Criacutetica da faculdade do juiacutezo 2ordm ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1995KAUFMANN W Nietzsche philosopher psycologist antichrist 4ordm ed Princeton Pinceton University Press 1974NIETZSCHE F Aleacutem do bem e do mal Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992_____ Assim Falou Zaratustra Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011_____ Aurora [eBook] Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 _____ Digitale Kritische Gesamtausgabe ndash Digital version of the German critical edition of the complete works of Nietzsche edited by Giorgio Colli and Mazzino Montinari Disponiacutevel em lthttpwwwnietzschesourceorggt Acesso em 04092017_____ Ecce Homo Satildeo Paulo Companhia de Bolso 1995_____ A Gaia Ciecircncia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 _____ Genealogia da Moral Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ Humano demasiado humano I Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000_____ Humano demasiado humano II Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008SAFATLE V Curso integral ndash A Fenomenologia do Espiacuterito de Hegel 2007 Disponiacutevel em lt httpswwwacademiaedu5857053Curso_Integral_-_A_Fenomenologia_do_EspC3ADrito_de_Hegel_2007_gt Acesso em 04092017STEGMAIER W Signos de Nietzsche In VISENTEINER J GARCIA A (Org) As linhas fundamentais do pensamento de Nietzsche Petroacutepolis Vozes 2013 WAHRIG-BURFEIND R Wahrig dicionaacuterio semibiliacutengue para brasileiros alematildeo Traduccedilatildeo de Karina Janini amp Rita de Caacutessia Machado 4 ed Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2011

Maria Helena Lisboa da Cunha

179

A danccedila aleacutem do bem e do mal

Maria Helena Lisboa da Cunha1

A natureza do corpo eacute correlata agrave natureza do ambiente mudando-se o ambiente muda-se o corpo muda-se o cenaacuterio muda-se o contexto a exemplo do que acontece no Butocirc uma arte ldquoexplosivardquo onde danccedila e teatro se imbricam fazendo eclodir pulsotildees inconscientes danccedilada pelo danccedilarino japonecircs Kasuo Ohno em 1928 teve inspiraccedilatildeo no teatro japonecircs traacutegico Nocirc e na danccedilarina espanhola Antonia Mercecirc la Argentina Para Ohno La Argentina no depoimento de Mark Holborn incarnava a danccedila a literatura a muacutesica e a arte mas principalmente ela simbolizava o amor e a dor da vida real (MAUREY 2004 p97) No Butocirc termo que designa etimologicamente com BU saltar pular enquanto TO martelamento daiacute que Butocirc seja da ordem ldquoascendenterdquo como ascensatildeo vertical dos saltos de Nijinski ou como ldquofonte de luzrdquo para a qual tendia Isadora Duncan Butocirc eacute da ordem da ldquodescidardquo da terra do solo nele o corpo eacute um corpo morto o que lhe daacute vida eacute a relaccedilatildeo que se estabelece entre o corpo e o ambiente Essa espeacutecie de comunicaccedilatildeo do corpo com o mundo tem como premissa a afirmaccedilatildeo radical de Merleau-Ponty de que ldquonosso corpo natildeo estaacute no espaccedilo ele eacute o espaccedilordquo (PONTY 1966 p173) ele me constitui e se dilata ateacute onde vai a minha percepccedilatildeo a exemplo do quarto do vizinho de baixo onde ouccedilo ruiacutedos agrave noite

O Butocirc foi originalmente influenciado pela escrita do novelista japonecircs Yukio Mishima (1925-1970) dono de uma escrita densa e de protesto e dos textos de Artaud poeta e dramaturgo francecircs que acabou seus dias num asilo para doentes mentais agrave procura de sua identidade estrangulada pelo crescimento da ocidentalizaccedilatildeo do Japatildeo depois do fim da Segunda guerra mundial apoacutes a explosatildeo atocircmica em Hiroshima e Nagasaki pelos Aliados Segundo consta no relato de Inecircs Bogeacutea foi com a peccedila Kinjiki baseada na obra Cores Esquecidas do novelista japonecircs que o butocirc entrou em cena em 1959 danccedilada por Tatsumi Hijikata ao mesmo tempo em que o estilo danccedilado foi cognominado Ankoku Butoh ldquodanccedila das trevasrdquo mais tarde tendo se tornado simplesmente Butoh (de bu danccedila e toh descer para o chatildeo cfr supracitado) A estrateacutegia em Artaud visa criar um ldquocorpo sem oacutergatildeosrdquo para desestabilizar o discurso do poder negaccedilatildeo do corpo como organismo com seus suores feacutetidos seus hormocircnios seus odores inventar a danccedila para redescobrir o corpo ilusatildeo fazendo o corpo danccedilar pelo avesso o que natildeo estaacute nem dentro e nem fora do corpo mas ldquoentrerdquo ldquoNatildeo haacute transiccedilatildeo de um gesto para grito ou para um movimento todos os sentidos se interpenetram como se atraveacutes de estranhos canais escavados no proacuteprio espiacuteritordquo (ARTAUD sd p85)

1 Profa Titular de Filosofia da UERJ

A danccedila aleacutem do bem e do mal

180

Essa danccedila ldquoenvelopardquo o espectador as trevas sendo para ele o ldquoventre da matildeerdquo Kazuo Ohno precisa ldquoDe uma hora para a outra noacutes renascemos isto natildeo eacute tatildeo simples como ter nascido do ventre materno Muitos nascimentos satildeo necessaacuterios eacute necessaacuterio renascer sempre e em toda parterdquo (BOGEacuteA 2003 p35) Inecircs Bogeacutea assim o define Kazuo Ohno danccedila entre o mundo visiacutevel e o invisiacutevel Num movimento crepuscular que eacute difiacutecil descrever e mesmo difiacutecil definir o que eacute obscuro e o que eacute luminoso na nossa natureza ele cede para os sentidos sem perder sua ambiguidade e sem contradiccedilatildeo () Cada imagem cada instante eacute uma singularidaderdquo (IDEM p27) e mesmo o peso da morte ele consegue carregar nas suas costas em cada movimento em cada performance O ator precisa ldquoVida eacute movimento mover significa lsquoprocurar a vidarsquo Cada pequeno instante nas minhas performances pode ser modificado porque eacute a proacutepria vida que determina issordquo (IDEM IBIDEM) na sua percepccedilatildeo da realidade vida e morte se alternam num fluxo contiacutenuo completando-se daiacute que ter consciecircncia desse movimento deve monitorar o ritmo da danccedila

Ohno sinaliza que sua arte eacute improvisada ele anotava palavras de poemas e pinturas que no momento da danccedila se corporificam e vatildeo dando lugar a movimentos do corpo por outro lado segundo relata ele tenta carregar no seu corpo o peso e o misteacuterio da vida e da morte ldquoEu sigo todo o tempo minhas memoacuterias para traacutes para o ventre maternordquo (IDEM p 38) danccedila na qual ele se traveste em velho e jovem homem e mulher forte e fraco ao mesmo tempo trazendo agrave baila para reflexatildeo a indeterminaccedilatildeo das forccedilas inconscientes e primitivas em oposiccedilatildeo agraves conscientes focadas e unilaterais O corpo eacute um centro energeacutetico nele uma pluralidade de forccedilas estaacute em accedilatildeo e eacute por isso que a danccedila eacute tida como uma experiecircncia de vitalidade natildeo soacute porque ela requer um corpo viril mas tambeacutem porque ela daacute essa virilidade essa elasticidade ao corpo ldquoNatildeo eacute a gordura que um danccedilarino pretende obter de sua alimentaccedilatildeo mas o maacuteximo de elasticidade e forccedila e natildeo conheccedilo nada que um filoacutesofo goste mais do que ser um bom danccedilarino Porque a danccedila eacute o seu ideal sua arte tambeacutem sua uacutenica piedade seu lsquocultorsquordquo (NIETZSCHE 1982 sect 381)

Em Nietzsche a danccedila se transforma numa proposta anti-metafiacutesica porque eacute sedutora proteiforme dionisiacuteaca ldquoaleacutem do bem e do malrdquo ela manifesta a vida natildeo como um fardo que se carrega mas como uma alegria que se afirma primeiramente a danccedila da vida embriaguez dionisiacuteaca que se apresenta como criaccedilatildeodestruiccedilatildeo das formas na obra A origem da trageacutedia concebida como a relaccedilatildeo DionisoApolo em segundo lugar como a danccedila das forccedilas coacutesmicas que criam e se recriam na teoria das forccedilas a danccedila de Shiva Nataraja deus hindu da geraccedilatildeo e da transformaccedilatildeo coacutesmica e em terceiro lugar a danccedila dos conceitos que como a vida satildeo dinacircmicos fluidos natildeo estaacuteticos soacutelidos ldquoOs homens que se dizem superiores natildeo sabem danccedilar como eacute preciso ndash danccedilar com os conceitosrdquo (IDEM 1908 ldquoDo homem superiorrdquo sect 20)

A consequecircncia desse posicionamento estaacute no fato de que um pensamento que danccedila natildeo se subordina a sistemas nem a estruturas duraacuteveis de valores por isso segundo Nietzsche essa imagem do pensamento tem no danccedilarino sua mais alta expressatildeo ldquoPensar necessita uma teacutecnica um programa uma vontade de mestria o pensamento tem que ser aprendido como se aprende a danccedilar como uma espeacutecie de danccedila () saber danccedilar com os peacutes com as ideias com as palavras com a penardquo (IDEM 1974 sect 7) O conceito nietzschiano de aleacutem-do-homem concebido em algumas traduccedilotildees como super-homem tem por objetivo o surgimento de uma poliacutetica traacutegica que tem na imagem do danccedilarino a sua mais alta expressatildeo ldquoEacute danccedilando que sei dizer os siacutembolos das coisas mais sublimesrdquo

Maria Helena Lisboa da Cunha

181

(IDEM 1908 ldquoO canto do tuacutemulordquo sect 159) isto porque a danccedila mediatiza o visiacutevel e o invisiacutevel reconciliando os instintos animais e espirituais duas vitais dimensotildees da existecircncia tornando-se traacutegica Poreacutem a proposta nietzschiana contra a metafiacutesica natildeo diviniza somente a danccedila como supramencionado na nota 2 ldquonatildeo conheccedilo nada de que um filoacutesofo goste mais do que ser um bom danccedilarinordquo (IDEM 1982 sect 381) mas tambeacutem o riso ldquoTodas as boas coisas riemrdquo (IDEM 1908 ldquoDo homem superiorrdquo sect 17) segundo o filoacutesofo eacute preciso saber inclusive rir de si mesmo ldquoMoro em minha proacutepria casa nada imitei de ningueacutem e ndash ainda rio de todo mestre que natildeo riu de si tambeacutemrdquo (IDEM 1982 p19)

Os antigos jaacute concebiam o universo como tendo nascido de uma enorme gargalhada uma gargalhada diaboacutelica como se deus de repente se desse conta do absurdo da existecircncia eacute de se morrer de rir (Autor anocircnimo do papiro alquiacutemico Papiro de Leyde do seacutec III) Ibsen em sua peccedila Esperando Godot coloca como protagonistas dois vagabundos Vladimir e Estragon monologando sobre o ldquonadardquo da existecircncia e o diaacutelogo termina com uma interrogaccedilatildeo de um dos protagonistas para o outro ―ldquoVocecirc acha que a vida tem um sentidordquo Ao que o outro responde com uma gargalhada e o pano cai sobre os dois Na poesia e na muacutesica a poliacutetica traacutegica articula-se por meio das maacutescaras o bufatildeo o poeta e o muacutesico dionisiacuteaco atores no palco da vida satildeo ilusionistas no mais alto grau a arte eacute ldquoa mais alta potecircncia do falsordquo (IDEM 1995 sect 107) daiacute que a questatildeo da existecircncia em Nietzsche tome essa feiccedilatildeo traacutegica o valor de um livro de uma muacutesica ou de um ser humano assenta na possibilidade ou na impossibilidade de serem leves como os paacutessaros danccedilarinos portanto ou pesados como a gravidade a carga que a humanidade carrega tendo o seu simbolismo na imagem do camelo e do asno animais de carga ldquoE isto eacute meu alfa e o meu ocircmega que tudo o que eacute pesado se torne leve que todo corpo se torne danccedilarino todo espiacuterito paacutessarordquo (IDEM 1908 ldquoOs sete selosrdquo sect 6) Vale observar que o bailarino conhece o mundo natildeo com a cabeccedila (a aranha da razatildeo) mas com os peacutes (onde se encontram a terminaccedilatildeo dos centros nervosos zona por isso mesmo extremamente sensiacutevel) daiacute a consideraccedilatildeo do filoacutesofo ldquoEstamos acostumados a pensar ao ar livre caminhando saltando subindo danccedilando e acima de tudo nas solitaacuterias montanhas ou na orla do mar onde estatildeo incluiacutedos os caminhos que se fazem meditativosrdquo (IDEM 1982 sect 366)

Em um texto sobre ldquoTeatro e Maacutescara no pensamento de Nietzscherdquo Franco Ferraz (2002 pp117-132) observa que a maacutescara tem como poliacutetica traacutegica a criacutetica ao modelo de identidade do platonismo posto que pura diferenccedila simulacro e natildeo coacutepia ela esconde e revela ao mesmo tempo pondo a ambiguidade em cena desqualificando a miacutemesis categoria precipuamente platocircnica para erigir no seu lugar o outro que natildeo ela mesma a Goacutergona medusa ou similar Parmecircnides e seu famoso princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo estariam para sempre sepultos por isso no aforismo 40 de Aleacutem do bem e do mal Nietzsche afirma ldquoTudo que eacute profundo ama a maacutescarardquo () ldquomais ainda ao redor de todo espiacuterito profundo cresce continuamente uma maacutescara graccedilas agrave interpretaccedilatildeo perpetuamente falsa ou seja rasa de cada palavra cada passo cada sinal de vida que ele daacuterdquo inaugurando o primado da aparecircncia da ilusatildeo e da ausecircncia de fundamento fruto do afundamento do terreno metafiacutesico propondo uma ponte agrave outras maacutescaras outras cavernas por detraacutes das cavernas ldquouma caverna ainda mais profunda por detraacutes de cada cavernardquo () posto que segundo o filoacutesofo ldquoToda filosofia tambeacutem esconde uma filosofia toda opiniatildeo eacute tambeacutem um esconderijo toda palavra tambeacutem uma maacutescarardquo (NIETZSCHE 1998 sect 289)

A danccedila aleacutem do bem e do mal

182

Joseacute Gil na obra Movimento total se refere ao fato de que a danccedila eacute o seu danccedilado ela eacute sempre o que eacute daiacute que sendo a danccedila contemporacircnea do seu devir ela sempre eacute ldquoEacute proacuteprio da danccedila que o seu movimento possa tender infinitamente para a energia pura a fim de atingir a maior liberdade () Este paradoxo implica como princiacutepio do movimento danccedilado a possibilidade teoacuterica de converter totalmente o peso em energiardquo (GIL 2005 p19) Esta caracteriacutestica eacute uma das que distinguem um gesto comum do gesto danccedilado o bailarino cria o espaccedilo com o seu movimento constituindo um ldquoespaccedilo do corpordquo espaccedilo paradoxal virtual diferente do objetivo posto que investido de forccedilas e afetos que o intensificam expandindo e prolongando os seus limites aleacutem de seus contornos visiacuteveis

A arte do bailarino consiste em construir um maacuteximo de instabilidade em desarticular as articulaccedilotildees em segmentar os movimentos em separar os membros e os oacutergatildeos a fim de poder reconstruir um sistema de equiliacutebrio infinitamente delicado ndash uma espeacutecie de caixa de ressonacircncia ou de amplificador dos movimentos microscoacutepicos do corpo (IDEM p 23)

Um exemplo do que estamos afirmando podemos ter na danccedila de possessatildeo transes danccedila de Satildeo Vito tarantela thiaso dionisiacuteaco danccedila dos coribantes adoradores de Cibele deusa-matildee da regiatildeo da Friacutegia na Aacutesia menor onde o proacuteprio corpo se torna a cena da danccedila como se outro corpo danccedilasse no interior do primeiro Na possessatildeo eacute o movimento que danccedila natildeo haacute um eu a danccedilar Na esteira de Spinoza Nietzsche eacute um filoacutesofo que vai fazer do corpo o seu conceito-chave e a partir dele eacute toda a filosofia francesa encabeccedilada por Deleuze Guattari Derrida Foucault Bataille Baudrillard e outros tantos que seguiraacute nessa direccedilatildeo

Instrumento de teu corpo eacute tambeacutem a tua pequena razatildeo meu irmatildeo a qual chamas ldquoespiacuteritordquo pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razatildeo ldquoEurdquo dizes e ufanas-te desta palavra Mas ainda maior no que natildeo queres acreditar ndash eacute o teu corpo e a tua grande razatildeo esta natildeo diz eu mas faz eu (NIETZSCHE 1908 ldquoDos desprezadores do corpordquo)

Adeus ceacuterebro flutuante adeus filoacutesofos de gabinete magros e esquaacutelidos hoje haacute ateacute uma filosofia que se intitula filosofia da mente que aposta na profunda interaccedilatildeo existente entre corpo ceacuterebro e emoccedilotildees como observa Antonio Damaacutesio em sua obra O erro de Descartes corroborando as intuiccedilotildees junguianas e nietzschianas ldquoO ceacuterebro e o corpo encontram-se indissociavelmente integrados por circuitos bioquiacutemicos e neurais dirigidos um para o outrordquo (2000 p113) por duas vias a primeira constituiacuteda por nervos motores e sensoriais perifeacutericos transportando sinais do corpo para o ceacuterebro e vice-versa e a segunda conhecida e decantada pelos antigos atraveacutes da corrente sanguiacutenea que cuida do transporte dos hormocircnios os neurotransmissores e os neuromoduladores O autor se estende sobre o tema afirmando que haacute tambeacutem uma interaccedilatildeo entre o corpo-ceacuterebro e o meio-ambiente seja ela comportamental ou imagiacutestica (visual auditiva ou somatosensorial) na esteira de Jung que jaacute apregoava no seacuteculo dezenove ldquoComo a psique e a mateacuteria estatildeo encerradas em um soacute e mesmo mundo e aleacutem disso se acham permanentemente em contato entre si () haacute natildeo soacute a possibilidade mas ateacute mesmo certa probabilidade de que a mateacuteria e a psique sejam dois aspectos diferentes de uma soacute e mesma coisardquo ( JUNG 1982 p152) Com Deleuze essa questatildeo desemboca num pensamento ousado

Maria Helena Lisboa da Cunha

183

O pensamento natildeo eacute arborescente e o ceacuterebro natildeo eacute uma mateacuteria enraizada nem ramificada O que se chama equivocadamente de lsquodendritosrsquo natildeo assegura uma conexatildeo dos neurocircnios num tecido contiacutenuo A descontinuidade das ceacutelulas o papel dos axocircnios o funcionamento das sinapses a existecircncia de microfendas sinaacutepticas o salto de cada mensagem por cima destas fendas fazem do ceacuterebro uma multiplicidade que no seu plano de consistecircncia ou em sua articulaccedilatildeo banha todo um sistema probabiliacutestico incerto um certain nervous system (DELEUZE 2004 p25)

Filosofia e danccedila portanto filosofia e muacutesica satildeo almas gecircmeas os primeiros filoacutesofos como Pitaacutegoras e seus disciacutepulos satildeo tanto matemaacuteticos como muacutesicos A muacutesica se constitui para eles num objeto de estudo privilegiado eles se espantam de ouvir certos intervalos produzirem um som particular e de constatar que esses intervalos compreendem as leis fiacutesicas e matemaacuteticas Esses pensadores assim como Platatildeo e o teoacuterico da muacutesica Aristoacutexeno de Tarento ou Plutarco depois os teoacutericos romanos como Aristides Quintiliano ou Claacuteudio Ptolomeu elaboram as leis matemaacuteticas e fiacutesicas da muacutesica que conhecem uma grande repercussatildeo na histoacuteria ocidental da teoria musical Essas teorias tecircm por base o princiacutepio matemaacutetico das ldquoconsonacircnciasrdquo (sumphonia em grego) atribuiacutedo a Pitaacutegoras que corresponde aos intervalos de oitava (escala do-do) de quinta (escala do-sol) e de quarta (escala do-faacute) e se traduzem matematicamente pela foacutermula (n + 1n) dita ldquosuperparcialrdquo Desse modo cada modo musical e cada gecircnero contem trecircs graus fixos que entreteacutem entre eles uma relaccedilatildeo de consonacircncia e correspondem respectivamente agrave nota fixa mais baixa do modo ou do gecircnero a mediana e a mais alta As leis matemaacuteticas de harmonia se desenvolvem nas civilizaccedilotildees gregas e romanas a partir desses princiacutepios Relevando da fiacutesica da matemaacutetica e da filosofia essas leis natildeo satildeo conhecidas dos muacutesicos daquela eacutepoca que natildeo recebiam formaccedilatildeo teoacuterica tatildeo aprofundada na antiguidade mas sim dos filoacutesofos

Dadas essas premissas compreendemos a estreita e imprescindiacutevel relaccedilatildeo existente desde a antiguidade claacutessica entre filosofia muacutesica e danccedila e natildeo se entende como e nem porque essa triacuteade se desfez ou melhor se entende como um desvio cultural perpetrado pelo crescente racionalismo que tomou conta do panorama filosoacutefico e cientiacutefico a partir de Soacutecrates Platatildeo e Aristoacuteteles e galopante ateacute nossos dias Mas esse galope estaacute com os seus dias contados inuacutemeros pensadores e poetas do passado e da atualidade se rebelaram com esse feito e denunciaram o engessamento da cultura bem como propalaram a articulaccedilatildeo da filosofia com as letras e as com artes Cito apenas trecircs para natildeo me estender demasiado o primeiro se encontra no diaacutelogo Feacutedon da maturidade de Platatildeo Soacutecrates traz agrave baila um sonho em que lhe cobram o fato de natildeo ter feito muacutesica na sua existecircncia ao que ele responde que na verdade jaacute faz ldquo() pois para mim a filosofia eacute a muacutesica suprema e eacute justamente isto que eu faccedilordquo (60-61a)

Platatildeo sabe que a alma possui movimentos e que estes satildeo suscetiacuteveis de se desorganizar por isso propotildee em As leis obra da velhice do filoacutesofo a muacutesica por sua afinidade com a dialeacutetica como potecircncia capaz de harmonizar os afetos e os desregramentos internos propiciando a temperanccedila (sophrosyacutene) virtude eacutetica maacutexima para os gregos que se consideravam aristoacutei isto eacute os melhores A teoria dos movimentos da alma atribui a esta os mesmos movimentos que os astros considerados de harmonia perfeita pela sua circularidade regularidade e beleza essa esteacutetica frequentemente tomou como referencial a proacutepria beleza inscrita no kosmos Haacute toda uma linhagem de filoacutesofos que propotildee que o homem se transforme eticamente na medida em que ele vai se tornando kosmios (ordenado)

A danccedila aleacutem do bem e do mal

184

ou seja na medida em que ele vai conquistando para a sua realidade pessoal a beleza e a ordenaccedilatildeo que estariam dadas exemplarmente na proacutepria organizaccedilatildeo do kosmos Em uma nota de rodapeacute o tradutor e comentador das Obras completas de Platatildeo na Bibliothegraveque de la Pleacuteiacircde Leacuteon Robin e seu colaborador Mndash J Moreau fazem a seguinte referecircncia ldquoBasta com efeito que uma esfera coincida pelo seu centro com seu proacuteprio centro para que ela coincida consigo mesma em todos os pontos propriedade que soacute ela possui entre todos os soacutelidos regularesrdquo

Nietzsche em vaacuterios aforismos diz que a vida eacute muacutesica e numa carta a Peter Gast seu amigo e bioacutegrafo datada de 15011888 na cidade de Nice ao sul da Franccedila declara ldquoA vida sem muacutesica eacute simplesmente um erro uma tarefa cansativa um exiacuteliordquo (CUNHA 2009 p98) Concluo com Deleuze para quem a muacutesica eacute ldquoatividaderdquo constitui o ldquoato da Razatildeo sensiacutevelrdquo o que equivale a dizer que a ldquorazatildeo natildeo tem por funccedilatildeo representar no sentido de generalizar abstraindo mas atualizar a potecircncia isto eacute instaurar relaccedilotildees humanas numa mateacuteria expressivardquo fazer movimento neste caso a mateacuteria sonora (DELEUZE 2003 p16) Para o pensador a muacutesica eacute movimento que agindo sobre todo o corpo o utiliza como seu proacuteprio palco por isso ela tambeacutem eacute uma poliacutetica uma guerrilha e uma resistecircncia ainda que sem imagens potecircncia de expressatildeo dramaticidade histrionismo dionisiacuteaco ldquoEacute como se a arte musical tivesse dois aspectos um como danccedila de moleacuteculas sonoras revelando a ldquomaterialidade dos movimentos que atribuiacutemos agrave almardquo () mas tambeacutem outro como instauraccedilatildeo de relaccedilotildees humanas nessa mateacuteria sonora que produz diretamente os afetos que costumam ser explicados pela psicologiardquo (IDEM pp52-3) Em Mateacuteria e memoacuteria Bergson diz coisa semelhante quando afianccedila que a consciecircncia natildeo representa mas conecta ou desconecta imagens como uma central telefocircnica

A muacutesica tem por funccedilatildeo produzir afetos ela atualiza as forccedilas que perpassam os corpos ldquotorna visiacutevel o invisiacutevelrdquo frase do pintor abstracionista alematildeo Paul Klee no seu ensaio Teoria da arte moderna Uma oacutepera natildeo eacute feita para que pensemos no que Mozart sentiu quando fez Don Giovanni mas para que vivenciemos o desejo de Elvira por Don Giovanni para que esse desejo se aposse de nossa alma e nos sufoque ou entatildeo que nos apossemos do desejo de Carmen por Don Joseacute quando ela o seduz danccedilando a Seguidilla ou cantando a famosa aacuteria da Habanera na taberna de Lillas Paacutestia ldquoO amor eacute um paacutessaro rebelde que ningueacutem pode aprisionar e eacute em vatildeo que o chamamos se lhe conveacutem recusar O amor o amor O amor eacute uma crianccedila boecircmia ele nunca conheceu leis se tu natildeo me amas eu te amo se eu te amo toma cuidadordquo corroborando as afirmaccedilotildees de Nietzsche-Zaratustra ldquoPor seus cantos e por suas danccedilas o homem mostra que ele eacute membro de uma comunidade superior ele esqueceu a marcha e a palavra ele estaacute a ponto de voar danccedilando pelos ares [] O homem natildeo eacute mais um artista se converteu numa obra de arterdquo (NIETZSCHE 1977 sect 1)

Maria Helena Lisboa da Cunha

185

Referecircncias bibliograacuteficasARTAUD Antonin O teatro e o seu duplo Trad Fiama Hasse Pais Brandatildeo Prefaacutecio de Urbano Tavares Rodrigues Lisboa Minotauro sd p 185BERGSON H Matiegravere et memoire Paris PUF 1965BOGEacuteA Inecircs Kazuo Ohno Satildeo Paulo Cosac Naify Photos Emidio Luisi 2003CUNHA M H Lisboa da Nietzsche ndash Espiacuterito artiacutestico Londrina CEFIL 2003 _____ Rhizoma Uma esteacutetica da existecircncia em Platatildeo Nietzsche e Jung Rio de Janeiro Verbete 2009 DAMAacuteSIO Antonio R O erro de descartes Trad Dora Vicente Georgina Segurado 5ordf ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000DELEUZE Gilles Mil platocircs Trad Aureacutelio Guerra Neto e Ceacutelia Pinto Costa 3ordf ed Rio de Janeiro Editora 34 2004_____ Peacutericles e Verdi A filosofia de Franccedilois Chacirctelet Trad Hortecircncia S Lencastre Rio de Janeiro Pazulin 2003 FRANCO FERRAZ Maria Cristina Nove variaccedilotildees sobre temas nietzschianos Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2002GIL Joseacute Movimento total Satildeo Paulo Iluminuras 2005JUNG Carl Gustav Obras completa v VIII2 A natureza da psique Trad Pe Dom Mateus Ramalho Rocha OSB 1 ed Petroacutepolis Vozes 1982MAUREY Catheacuterine laquo Danser la cruauteacute Correspondances entre les theacuteories theacuteacirctrales drsquo Antonin Artaud et le Buto raquo In Aesthetics looking at japanese culture nordm 11 (Special Issue) The Japanese Society for Aisthetics University of Tokyo 2004MERLEAU-PONTY Maurice Pheacutenomeacutenologie de la perception Paris Gallimard 1966NIETZSCHE Friedrich Whilelm Oeuvres philosophiques complegravetes Textes et variantes eacutetablis par Giorgio Colli et Mazzino Montinari tome V Le gai savoir laquo Gaya ciecircncia raquo Fragments posthumes (Eacuteteacute 1881 ndash eacuteteacute 1882) Trad Pierre Klossowski Paris Gallimard 1982_____ Oeuvres philosophiques complegravetes (automne 1869printemps 1872) Traduction de Michel Haar Philippe Lacoue-Labarthe et Jean-Luc Nancy Textes et variantes eacutetablis par Giorgio Colli et Mazzino Montinari tome I v 1 La naissance de la trageacutedie Fragments posthumes Paris Gallimard 1977_____ Oeuvres philosophiques complegravetes tome VIII v 1 Creacutepuscule des idoles trad Jean-Claude Heacutemery Textes et variantes eacutetablis par G Colli et M Montinari Paris Gallimard 1974_____ Ainsi parlait Zarathoustra (un livre pour tous et pour personne) Trad Henri Albert 17egraveme ed Paris Societeacute du Mercure de France 1908 _____ La volonteacute de puissance Trad Geneviegraveve Bianquis 2vs Paris Gallimard 1995_____ Aleacutem do bem e do mal Trad Paulo Ceacutezar de Souza1 ed Satildeo Paulo Companhia da Letras 1998PLATON Oeuvres complegravetes Traduction et notes de Leacuteon Robin avec la colaboration de MndashJ Moreau Paris Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard 1999 2vs

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

186

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees de sujeito transcendental e de coisa em si no primeiro capiacutetulo de Humano demasiado humano I

Marina Gomes de Oliveira1

A criacutetica nietzscheana ao sujeito transcendentalNietzsche abre o primeiro capiacutetulo de Humano demasiado humano com dois

aforismos programaacuteticos nos quais opotildee duas modalidades de filosofia a metafiacutesica e a histoacuterica Essa uacuteltima eacute descrita no primeiro aforismo como natildeo podendo mais ser concebida como ldquodistinta da ciecircncia natural o mais novo dos meacutetodos filosoacuteficosrdquo Jaacute a filosofia metafiacutesica possui como um de seus traccedilos fundamentais a ldquofalta de sentido histoacutericordquo o ldquodefeito hereditaacuterio dos filoacutesofosrdquo Esse diagnoacutestico eacute realizado no segundo aforismo que transcrevemos abaixo de forma parcial

Defeito hereditaacuterio dos filoacutesofos ndash Todos os filoacutesofos tecircm em comum o defeito de partir do homem atual e acreditar que analisando-o alcanccedilam seu objetivo Involuntariamente imaginam ldquoo homemrdquo como uma aeterna veritatis [verdade eterna] como uma constante em todo o redemoinho uma medida segura das coisas Mas tudo o que o filoacutesofo declara sobre o homem no fundo natildeo passa de testemunho sobre o homem de um espaccedilo de tempo bem limitado Falta de sentido histoacuterico eacute o defeito hereditaacuterio de todos os filoacutesofos (hellip) Natildeo querem aprender que o homem veio a ser e que mesmo a faculdade de cogniccedilatildeo veio a ser enquanto alguns deles querem inclusive que o mundo inteiro seja tecido e derivado desta faculdade de cogniccedilatildeo ndash Mas tudo o que eacute essencial na evoluccedilatildeo humana se realizou em tempos primitivos antes desses quatro mil anos que conhecemos aproximadamente nestes o homem jaacute natildeo deve ter se alterado muito O filoacutesofo poreacutem vecirc ldquoinstintosrdquo no homem atual e supotildee que estejam entre os fatos inalteraacuteveis do homem e que possam entatildeo fornecer uma chave para a compreensatildeo do mundo em geral () Mas tudo veio a ser natildeo existem fatos eternos assim como natildeo existem verdades absolutas ndash Portanto o filosofar histoacuterico eacute doravante necessaacuterio e com ele a virtude da modeacutestia (NIETZSCHE 2005 p16)

Embora Nietzsche natildeo faccedila aqui nenhuma referecircncia nominal fica claro qual eacute o alvo especiacutefico de sua criacutetica Kant com sua pretensatildeo de que o ldquomundo inteiro seja tecido e derivadordquo da humana ldquofaculdade de cogniccedilatildeordquo O argumento nietzschiano eacute o de que esta tese opera implicitamente com uma concepccedilatildeo do homem como um ser eterno as caracteriacutesticas que possui hoje e que o definem como sujeito cognoscente as possuiria

1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Marina Gomes de Oliveira

187

deste o momento do seu aparecimento na Terra Jaacute a teoria evolucionista a cujas linhas gerais Nietzsche adere afirma que estas caracteriacutesticas foram lentamente adquiridas ao longo do processo de evoluccedilatildeo sendo parcialmente compartilhadas pelos chamados animais superiores Essa concepccedilatildeo do homem difere da adotada pela tradiccedilatildeo filosoacutefica que segundo Nietzsche sempre o tomou como um ser dotado de uma natureza inalteraacutevel que o distingue fundamentalmente do restante dos animais Partindo dessa premissa os filoacutesofos da tradiccedilatildeo teriam buscado definir e fixar os traccedilos fundamentais dessa natureza na crenccedila de que isto lhes forneceria a chave para a compreensatildeo da essecircncia do mundo em geral

Ao lanccedilarmos um olhar retrospectivo sobre a histoacuteria da filosofia percebemos que o primeiro a realizar explicitamente este movimento foi Parmecircnides ao estabelecer o princiacutepio de identidade como a lei fundamental do pensamento estendeu automaticamente esta suposta necessidade loacutegica agrave esfera ontoloacutegica reduzindo o mundo acessiacutevel atraveacutes dos sentidos a mera aparecircncia ilusoacuteria A partir de entatildeo o grande desafio da filosofia grega foi o de conciliar a evidecircncia dos sentidos com as exigecircncias da razatildeo A esse respeito as tentativas de Platatildeo e Aristoacuteteles se tornaram paradigmaacuteticas tendo influenciado de forma direta ou indireta os empreendimentos de toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica posterior Como se sabe isso se deveu natildeo soacute aos seus indiscutiacuteveis meacuteritos filosoacuteficos mas tambeacutem a questotildees de ordem histoacuterica poliacutetica e religiosa

Na Modernidade Kant influenciado pelo empirismo de Hume se posiciona de forma ceacutetica em relaccedilatildeo agraves pretensotildees epistecircmicas dessa tradiccedilatildeo representada agrave eacutepoca na Alemanha pelo influente leibnizianismo da escola de Christian Wolff Em sua obra capital a Criacutetica da Razatildeo Pura cuja primeira ediccedilatildeo data de 1781 expotildee a conhecida doutrina de que as formas puras da sensibilidade e as categorias ou conceitos puros do entendimento fornecem as condiccedilotildees transcendentais de possibilidade do assim denominado mundo fenomecircnico na medida em que mantecircm uma relaccedilatildeo constitutiva com os objetos que o integram O mundo do fenocircmeno eacute assim segundo Kant o produto da conjunccedilatildeo das formas e categorias a priori com um ldquoXrdquo desconhecido (a coisa em si) que ao afetar a faculdade sensorial fornece a mateacuteria bruta das sensaccedilotildees o papel dos elementos transcendentais da sensibilidade e do entendimento eacute basicamente o de unificar e organizar a multiplicidade deste caos sensorial dando origem ao mundo tal como nos aparece atraveacutes da experiecircncia

O problema apontado por Nietzsche no aforismo supracitado reside poreacutem no seguinte se a subjetividade transcendental eacute condiccedilatildeo de possibilidade da existecircncia da proacutepria natureza (entendida como o conjunto de todos os fenocircmenos e de suas relaccedilotildees espaacutecio-temporais) entatildeo ela mesma natildeo pode estar submetida a essas determinaccedilotildees Em outras palavras aquilo que eacute condiccedilatildeo de possibilidade da proacutepria historicidade dos fenocircmenos na medida em que lhes impotildee a priori a forma necessaacuteria da sucessatildeo natildeo pode ele mesmo ser histoacuterico Isso traz agrave tona outros problemas tal como aquele que diz respeito agrave origem da espeacutecie humana A aporia que se instaura aqui pode ser formulada da seguinte maneira como o ser humano pode ter vindo a ser a partir de espeacutecies mais primitivas tal como afirma a teoria evolucionista se a proacutepria existecircncia do mundo natural eacute funccedilatildeo da vigecircncia das leis a priori da subjetividade transcendental Torna-se clara a partir de questionamentos deste tipo a existecircncia de uma incompatibilidade incontornaacutevel entre as premissas gerais do idealismo transcendental e os postulados baacutesicos da teoria da evoluccedilatildeo das espeacutecies eacute impossiacutevel afirmar simultaneamente e sem contradiccedilatildeo que as estruturas e elementos transcendentais satildeo por um lado condiccedilatildeo de possibilidade

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

188

da realidade empiacuterica e por outro que a existecircncia do ser humano como uma espeacutecie dotada de capacidades cognitivas especiacuteficas eacute o produto tardio e acidental de uma longa e complexa seacuterie de processos naturais que antecedem em muito o seu aparecimento na Terra

Eacute justamente nesta incompatibilidade que residem para Nietzsche as implicaccedilotildees metafiacutesicas da concepccedilatildeo kantiana do homem na medida em que este eacute identificado em sua qualidade de sujeito cognoscente com a subjetividade transcendental A seu ver o filoacutesofo de Koumlnigsberg ainda compartilharia com a tradiccedilatildeo metafiacutesica - a despeito dos esforccedilos que empreendeu para dela se afastar atraveacutes do estabelecimento dos limites intriacutensecos ao conhecimento humano que decorrem por sua vez do caraacuteter finito do nosso intelecto - a concepccedilatildeo do homem como um ser destacado da natureza que natildeo soacute escaparia agraves determinaccedilotildees processuais do mundo do fenocircmeno como estaria em sua proacutepria origem No aforismo 16 intitulado Fenocircmeno e coisa em si Nietzsche destaca um segundo traccedilo fundamental da ldquofilosofia metafiacutesicardquo jaacute entrevisto na exposiccedilatildeo que realizamos ateacute aqui Trata-se da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo ontoloacutegica da realidade em duas esferas distintas e separadas poreacutem natildeo estanques

Os filoacutesofos costumam se colocar diante da vida e da experiecircncia ndash daquilo que chamam de mundo do fenocircmeno ndash como diante de uma pintura que foi desenrolada de uma vez por todas e que mostra invariavelmente o mesmo evento esse evento acreditam eles deve ser interpretado de forma correta para que se tire uma conclusatildeo sobre o ser que produziu a pintura isto eacute sobre a coisa em si que sempre costuma ser vista como a razatildeo suficiente do mundo do fenocircmeno (NIETZSCHE 2005 p 25)

Nietzsche parte aqui da interpretaccedilatildeo da filosofia transcendental conhecida como ldquointerpretaccedilatildeo dos dois mundosrdquo2 de acordo com a qual a distinccedilatildeo kantiana entre fenocircmenos e coisas em si daacute origem a uma clivagem ontoloacutegica fundamental por meio da qual a realidade eacute dividida em dois domiacutenios distintos de objetos a saber os objetos empiacutericos e os objetos transcendentais sendo que estes uacuteltimos se identificariam ainda com o sentido negativo do conceito de nuacutemeno3 Este por sua vez ldquocorresponderia ao fenocircmeno como seu substrato como algo inteligiacutevel que soacute poderia ser conhecido como objeto por uma intuiccedilatildeo natildeo-sensiacutevelrdquo (BONACCINI 2003 P 323) Ora o que distingue essencialmente a filosofia criacutetica de Kant da tradiccedilatildeo metafiacutesica anterior eacute justamente a negaccedilatildeo categoacuterica por parte do filoacutesofo da possibilidade desse conhecimento negaccedilatildeo esta que deriva da premissa de que o homem eacute um ser dotado exclusivamente de intuiccedilotildees sensiacuteveis e por isso natildeo pode pretender conhecer as coisas tais como satildeo em si mesmas Isso natildeo elimina poreacutem a necessidade da postulaccedilatildeo da existecircncia de um domiacutenio incondicionado de objetos que atuam como a causa das afecccedilotildees as quais por sua vez datildeo origem aos fenocircmenos ao pocircr em accedilatildeo a faculdade representativa

Acontece no entanto que a tese fulcral do idealismo transcendental reside no princiacutepio de que soacute conhecemos representaccedilotildees ou seja de que nosso acesso agrave realidade eacute sempre e necessariamente mediado pelos elementos transcendentais que promovem a unidade sinteacutetica do muacuteltiplo segundo regras A primeira etapa da unificaccedilatildeo ocorre jaacute

2 A respeito da interpretaccedilatildeo alternativa conhecida como ldquoteoria dos dois aspectosrdquo advogada dentre outros por Alli-son conferir Bonaccini 2003 pp 226 ndash 257

3 A respeito da identificaccedilatildeo dos conceitos de coisa em si objeto transcendental e nuacutemeno em sentido negativo ver Bonaccini 2003 p 325

Marina Gomes de Oliveira

189

na esfera da sensibilidade na qual o material bruto das sensaccedilotildees ie das modificaccedilotildees sofridas pelos sentidos eacute organizado nas formas do espaccedilo e do tempo que posteriormente seratildeo referidas pelos conceitos do entendimento a objetos dando origem ao mundo tal como nos aparece atraveacutes da experiecircncia Os contemporacircneos de Kant natildeo demoraram a perceber a aporia implicada por este quadro se soacute conhecemos representaccedilotildees isto eacute se nossos conceitos tecircm seu domiacutenio de validade restrito agraves sensaccedilotildees que direito possuiacutemos a postular a existecircncia das coisas em si e ainda mais de lhes atribuir uma accedilatildeo causal sobre nossa sensibilidade Por outro lado se natildeo existem objetos externos agraves representaccedilotildees para fornecer-lhes o seu material como podemos falar em conceitos como os de representaccedilatildeo ou de fenocircmeno que perdem todo o seu sentido sem a referecircncia a algo que cumpra o papel de um objeto externo e existente por si mesmo ao qual se refiram como a seu substrato

O problema da coisa em si em Hegel Schopenhauer e SpirSegundo J A Bonaccini esta objeccedilatildeo jaacute aparece mesmo que forma impliacutecita na

famosa recensatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura atribuiacuteda a Feder e a Garve cuja publicaccedilatildeo data de 19 de janeiro de 1782 mas o iniciador propriamente dito daquela que ficou conhecida como a ldquopolecircmica da coisa em sirdquo teria sido Friedrich Heinrich Jacobi que apresentou o primeira criacutetica clara e precisa a este conceito no conhecido Apecircndice a seu livro David Hume Uumlber der Glauben oder Idealismus und Realismus Ein Gespraumlch intitulado Sobre o Idealismo Transcendental Estaria neste texto de Jacobi a origem do ldquoproblema da coisa em sirdquo tambeacutem conhecido como o ldquoproblema da afecccedilatildeordquo Ainda segundo Bonaccini trata-se na verdade natildeo de um uacutenico problema mas de uma ldquoproblemaacutetica que se desdobra numa seacuterie de objeccedilotildees () intimamente ligadas () que depois seratildeo retomadas na maior parte dos casos separadamenterdquo por autores como ldquoSchulze Maimon Fichte Schelling e Hegel () e pensadores posteriores como Schopenhauer e Nietzscherdquo (BONACCINI 2003 p 42) 4

No deacutecimo aforismo de Humano demasiado humano que transcrevemos abaixo na iacutentegra Nietzsche se refere a este problema de forma expliacutecita no contexto de uma alusatildeo criacutetica a Schopenhauer

Inocuidade da metafiacutesica no futuro ndash Logo que a religiatildeo a moral e a arte tiverem sua gecircnese descrita de maneira tal que possam ser inteiramente explicadas sem que se recorra agrave hipoacutetese de intervenccedilotildees metafiacutesicas no iniacutecio e no curso do trajeto acabaraacute o mais forte interesse no problema puramente teoacuterico da ldquocoisa em sirdquo e do ldquofenocircmenordquo Pois seja como for natildeo tocamos a ldquoessecircncia do mundo em sirdquo estamos no domiacutenio da representaccedilatildeo nenhuma ldquointuiccedilatildeordquo pode nos levar adiante Com tranquilidade deixaremos para a fisiologia e a histoacuteria dos organismos e dos conceitos a questatildeo de como pode a nossa imagem do mundo ser tatildeo distinta da essecircncia inferida do mundo (NIETZSCHE 2005 p 20)

Na continuaccedilatildeo do aforismo de nuacutemero 16 jaacute citado parcialmente acima Schopenhauer eacute novamente aludido indiretamente e de forma criacutetica na sequecircncia Hegel eacute tambeacutem alvo de uma criacutetica velada Antes dessas duas alusotildees Nietzsche faz ainda uma referecircncia impliacutecita a Afrikan Spir54 As objeccedilotildees de Jacobi podem ser resumidas segundo esse autor da seguinte forma 1- A tese central do idealismo

transcendental de que soacute conhecemos fenocircmenos ie representaccedilotildees conduziria ao solipcismo 2- Esse solipcismo eacute incompatiacutevel com a postulaccedilatildeo das coisas em si como os fundamentos externos dos fenocircmenos 3- A tese da incog-noscibilidade das coisas em si mesmas conduz ao ceticismo

5 Afrikan Spir (1837 ndash1900) eacute um filoacutesofo de origem russa que publicou suas obras em alematildeo com o qual Nietzsche manteve um diaacutelogo permanente ao longo de sua obra

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

190

Por outro lado loacutegicos mais rigorosos apoacutes terem claramente estabelecido o conceito do metafiacutesico como o do incondicionado e portanto tambeacutem incondicionante contestaram qualquer relaccedilatildeo entre o incondicionado (o mundo metafiacutesico) e o mundo por noacutes conhecido de modo que no fenocircmeno precisamente a coisa em si natildeo aparece e toda conclusatildeo sobre esta a partir daquele deve ser rejeitada Mas de ambos os lados se omite a possibilidade de que essa pintura ndash aquilo que para noacutes homens se chama vida e experiecircncia ndash gradualmente veio a ser estaacute em pleno vir a ser e por isso natildeo deve ser considerada como uma grandeza fixa a partir da qual se possa tirar ou rejeitar uma conclusatildeo acerca do criador (a razatildeo suficiente) () o intelecto humano fez aparecer o fenocircmeno e introduziu nas coisas suas errocircneas concepccedilotildees fundamentais Tarde bem tarde ndash ele cai em si agora o mundo da experiecircncia e a coisa em si lhe parecem tatildeo extraordinariamente distintos e separados que ele rejeita a conclusatildeo sobre esta a partir daquele ndash ou de maneira terrivelmente misteriosa exorta agrave renuacutencia do nosso intelecto de nossa vontade pessoal de modo a alcanccedilar o essencial tornando-se essencial Outros ainda recolheram todos os traccedilos caracteriacutesticos do nosso mundo do fenocircmeno - isto eacute da representaccedilatildeo do mundo tecida com erros intelectuais e por noacutes herdada ndash e em vez de apontar o intelecto como culpado responsabilizaram a essecircncia das coisas como causa desse inquietante caraacuteter efetivo do mundo e pregaram a libertaccedilatildeo do ser (NIETZSCHE 2005 p 25)

De acordo com Bonaccini Hegel reconduz a problemaacutetica legada por Jacobi ldquoagrave pressuposiccedilatildeo fundamental de Kant qual seja o dualismo ontoloacutegicordquo (BONACCINI 2003 p 143) que opotildee de um lado as esferas do sujeito da consciecircncia e do pensamento e do outro os domiacutenios do objeto da realidade e do ser Ultrapassa o escopo do presente trabalho a exposiccedilatildeo da forma como Hegel procurou descrever e fundamentar em seu complexo sistema a identidade dialeacutetica entre ser e pensar interessa-nos aqui apenas apontar para o modo como o filoacutesofo alematildeo buscou descontruir o conceito de coisa em si ao questionar o pressuposto kantiano da existecircncia de um abismo originaacuterio e intransponiacutevel entre as esferas do sujeito e do objeto Este esforccedilo pode ser percebido de acordo com Bonaccini jaacute em suas primeiras obras anteriores agraves grandes exposiccedilotildees da Fenomenologia do Espiacuterito e da Ciecircncia da Loacutegica

Como eacute sabido um ano depois da publicaccedilatildeo do Differenzschrift em 1802 Hegel publica Feacute e saber O intuito de Hegel continua sendo a criacutetica da filosofia da eacutepoca enquanto esta pressupotildee uma dualidade entre o sujeito e o objeto que impossibilita alcanccedilar a identidade que ela busca O esforccedilo de Hegel constitui ainda uma tentativa de alccedilar-se por cima das oposiccedilotildees para mostrar a identidade originaacuteria que reuacutene o ser e o pensar A criacutetica do conceito kantiano de coisa em si prende-se desse modo agrave criacutetica da filosofia da reflexatildeo - segundo a denominaccedilatildeo cunhada por Hegel em Feacute e saber ndash a qual oporia o pensamento agrave realidade empiacuterica afirmando a finitude das categorias do entendimento humano e a impossibilidade de conhecer o absoluto a natildeo ser pela feacute (BONACCINI 2003 p 133)

Hegel busca apontar dessa forma para o fato de que a defesa kantiana da tese do caraacuteter puramente formal das categorias do entendimento e da sua consequente aplicabilidade exclusiva ao conteuacutedo fornecido pela sensibilidade depende da pressuposiccedilatildeo de um dualismo de base entre o pensamento e a realidade Uma vez superado esse ponto

Marina Gomes de Oliveira

191

de vista o proacuteprio conceito de fenocircmeno ganharia novos contornos diferentemente do que afirmava Kant o caraacuteter relativo e condicionado do conhecimento empiacuterico natildeo teria origem na finitude constitutiva do entendimento a qual faria com que os objetos da experiecircncia nos apareccedilam sempre como fenocircmenos mas sim no fato de esses objetos serem em si mesmos fenocircmenos ie ldquoa manifestaccedilatildeo finita de um fundamento inteligiacutevel que eacute o proacuteprio absolutordquo (BONACCINI 2003 p 139)

Eacute importante apontar para o fato de que a identidade entre o ser e o pensar postulada por Hegel natildeo se apresenta como uma unidade imediata isto eacute como algo presente de forma efetiva desde o iniacutecio mas sim como uma identidade que soacute se concretiza e realiza ao teacutermino de um processo que tem lugar no tempo trata-se portanto de uma identidade dialeacutetica cujas etapas de constituiccedilatildeo o autor busca descrever nas paacuteginas da Ciecircncia da Loacutegica Nesta obra de 1816 Hegel traccedila um itineraacuterio loacutegico-ontoloacutegico que vai do ser ao conceito passando pela essecircncia Sem entrar nos detalhes da complexa exposiccedilatildeo hegeliana interessa-nos apenas apontar para o fato de que um dos pressupostos fundamentais da loacutegica dialeacutetica eacute o de que a realidade possui um caraacuteter fundamentalmente contraditoacuterio na medida em que a passagem da indeterminaccedilatildeo do ser em geral agrave determinaccedilatildeo plena do conceito na ideia absoluta se efetiva atraveacutes de sucessivas negaccedilotildees dos estaacutegios anteriores as quais simultaneamente os conservam e aprofundam

A esse respeito pode-se identificar em Schopenhauer a presenccedila de uma atitude baacutesica compartilhada com Hegel no que tange agraves suas respectivas relaccedilotildees com a heranccedila da filosofia criacutetica Trata-se de uma atitude marcada por ambiguidades e tensotildees e que pode ser expressa resumidamente atraveacutes da ideia de que Kant teria aberto ou indicado o caminho correto para a filosofia sem ter tido no entanto a coragem de segui-lo ateacute o final esta tarefa caberia agrave posteridade que teria como missatildeo a correccedilatildeo e desenvolvimento do precioso legado de que eacute herdeira O problema da coisa em si surge nesse contexto como o principal desafio que qualquer um que aspire agrave consecuccedilatildeo dessa tarefa deve enfrentar na medida em que se trata de uma questatildeo que desde sua formulaccedilatildeo original por Jacobi foi retomada de diferentes maneiras representando uma espeacutecie de ponto cego no sistema kantiano que o torna amplamente vulneraacutevel a ataques externos

Schopenhauer tomou contato durante seus anos de formaccedilatildeo atraveacutes das aulas de G E Schulze que frequentou na universidade de Goumlttingen com o aspecto mais emblemaacutetico da problemaacutetica levantada por Jacobi qual seja a criacutetica jaacute explicitada acima ao caraacuteter autorrefutatoacuterio do conceito de coisa-em-si como causa externa das sensaccedilotildees Isso o levou a formular em sua famosa obra O Mundo como Vontade e Representaccedilatildeo (1819) a tese que devemos buscar o acesso agrave realidade tal como eacute em si mesma natildeo atraveacutes de uma relaccedilatildeo que invoque o conceito de causalidade (cuja proacutepria definiccedilatildeo limita seu escopo de aplicaccedilatildeo ao domiacutenio fenomecircnico) mas sim atraveacutes da consciecircncia imediata do nosso proacuteprio corpo que obtemos por ocasiatildeo dos nossos atos voluntaacuterios Isso se deve ao fato de que o corpo eacute para Schopenhauer o uacutenico objeto que se manifesta para noacutes em um duplo aspecto simultacircneo qual seja por um lado o de um objeto empiacuterico dentre outros cujas condiccedilotildees de possibilidade remetem ao quadro da reelaboraccedilatildeo da deduccedilatildeo transcendental das categorias efetuada em sua tese de doutoramento intitulada A Quaacutedrupla Raiz do Princiacutepio de Razatildeo Suficiente (1813) e por outro o de uma percepccedilatildeo interna de um ato de vontade a qual forneceria um acesso imediato ao ldquolado de dentrordquo do proacuteprio indiviacuteduo Ao estender analogicamente essa duplicidade ontoloacutegica ao restante dos seres que integram o mundo o filoacutesofo concebe um sistema que partindo da aceitaccedilatildeo da dualidade kantiana

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

192

entre sujeito e objeto busca ao mesmo tempo superaacute-la atraveacutes de uma abordagem imanente cujo nuacutecleo consiste na tese metafiacutesica de que a Vontade (entendida natildeo em um sentido estritamente psicoloacutegico mas como um princiacutepio coacutesmico destituiacutedo de finalidade e sabedoria uma espeacutecie de impulso cego) e a representaccedilatildeo devem ser compreendidas como os dois lados de uma mesma e uacutenica moeda

Fiel neste ponto agrave inspiraccedilatildeo da filosofia transcendental Schopenhauer afirma que a origem do mundo como representaccedilatildeo localiza-se no intelecto humano Isso se deve ao fato de que a estrutura deste uacuteltimo corresponderia como mencionado acima ao princiacutepio da razatildeo suficiente o qual ao determinar que toda experiecircncia seja submetida agraves condiccedilotildees do tempo do espaccedilo e da causalidade produz a fragmentaccedilatildeo da unidade originaacuteria da Vontade em uma multiplicidade de indiviacuteduos que competem permanentemente pelos recursos necessaacuterios agrave proacutepria sobrevivecircncia criando assim um mundo de luta e violecircncia um cenaacuterio aterrador de autofagia da Vontade anaacutelogo a um pesadelo no interior do qual a consciecircncia se manteacutem aprisionada Isso faz com que caiba a cada um uma vez que se decirc conta dessa situaccedilatildeo a tarefa de purificar sua vontade atraveacutes de etapas sucessivas que correspondem agrave percepccedilatildeo esteacutetica agrave consciecircncia moral e finalmente agrave autossuperaccedilatildeo plena na atitude asceacutetica Essa uacuteltima conduziria a uma modalidade de consciecircncia livre de toda dor e de todo conflito um estado de contemplaccedilatildeo miacutestica no qual as fronteiras entre sujeito e objeto encontram-se agrave beira da dissoluccedilatildeo Eacute a esta uacuteltima etapa que Nietzsche se refere no aforismo 16 supracitado ldquo() ou de maneira terrivelmente misteriosa exorta agrave renuacutencia do nosso intelecto de nossa vontade pessoal de modo a alcanccedilar o essencial tornando-se essencialrdquo

Depreende-se facilmente deste mesmo aforismo a posiccedilatildeo de Nietzsche a respeito das soluccedilotildees encontradas por Hegel e Schopenhauer para o problema da coisa em si ele as rejeita igualmente encontrando aspectos problemaacuteticos em ambas Qual eacute poreacutem a sua atitude em relaccedilatildeo agrave soluccedilatildeo de Spir Para responder a esta pergunta empreenderemos primeiro uma breve reconstituiccedilatildeo das teses deste pensador que representa uma das principais fontes de diaacutelogo criacutetico para Nietzsche

Assim como Hegel e Schopenhauer Spir almeja fornecer com sua filosofia uma correccedilatildeo do kantismo ou seja uma saiacuteda para a aporia suscitada pelo problema da coisa em si tal como originalmente formulado por Jacobi Em sua tentativa de realizar esta tarefa chega poreacutem a conclusotildees opostas agraves alcanccediladas pelos filoacutesofos supracitados em que pesem as especificidades inerentes a seus respectivos sistemas tanto Hegel como Schopenhauer partem de uma mesma premissa qual seja a de que a relaccedilatildeo existente entre aquilo que Kant denominava as esferas do nuacutemeno e do fenocircmeno eacute de imanecircncia e natildeo de transcendecircncia Isso significa dizer que para esses pensadores o erro de Kant foi o de ter estabelecido uma distinccedilatildeo excessivamente riacutegida entre os domiacutenios da realidade empiacuterica e da realidade tal como eacute em si mesma Ora para Spir o problema com o sistema de Kant eacute exatamente o oposto em sua tentativa de estabelecer as fronteiras entre os domiacutenios do nuacutemeno e do fenocircmeno e assim circunscrever a esfera de validade das proposiccedilotildees sinteacuteticas a priori formuladas pelas ciecircncias em geral e pela fiacutesica newtoniana em particular Kant teria por assim dizer borrado a linha que divide os referidos domiacutenios no proacuteprio ato de traccedilaacute-la

Segundo Rogeacuterio Lopes existem para Spir cinco pontos centrais na filosofia de Kant que devem ser revistos para que seu sistema seja adequadamente reformulado Para os fins

Marina Gomes de Oliveira

193

da presente exposiccedilatildeo destacarei trecircs destes pontos quais sejam 1- rdquoa tese da idealidade transcendental do tempo deve ser abandonadardquo 2- rdquoos conceitos a priori do entendimento deduzidos por Kant carecem de um princiacutepio de unificaccedilatildeo Eacute preciso derivaacute-los de uma uacutenica lei a priori esta lei loacutegica fundamental eacute o princiacutepio de Identidaderdquo 3- rdquosegundo Spir Kant teria se contentado em provar a existecircncia de conceitos a priori e sua validade subjetiva Spir propotildee como tarefa da filosofia transcendental a) demonstrar a existecircncia do a priori b) provar sua validade objetivardquo (LOPES 2008 p 281)

A respeito do primeiro ponto sem entrar nos detalhes da argumentaccedilatildeo de Spir interessa-nos aqui apenas apontar para o modo como em uma passagem de Denken und Wirklichkeit citada por Nietzsche em sua obra de juventude A filosofia na era traacutegica dos gregos o filoacutesofo russo critica a tese kantiana da idealidade transcendental do tempo6 defendendo que este possui uma realidade objetiva Para tal faz uso de argumentos que recordam os utilizados por Nietzsche ao criticar a ldquofalta de sentido histoacutericordquo dos filoacutesofos no segundo aforismo de Humano demasiado humano

() a suposiccedilatildeo de Kant implica absurdidades tatildeo evidentes que algueacutem toma por milagre o fato de ele tecirc-las ignorado De acordo com tal suposiccedilatildeo Ceacutesar e Soacutecrates natildeo estatildeo efetivamente mortos mas vivem tatildeo bem como haacute dois mil anos e parecem estar simplesmente mortos em virtude de um arranjo do meu lsquosentido internorsquo Aqui cumpre indagar acima de tudo como pode o iniacutecio e o fim da vida consciente incluindo todos os sentidos internos e externos existirem simplesmente agrave maneira do sentido interno O fato eacute que natildeo se pode denegar em absoluto a realidade da mudanccedila (NIETZSCHE 2008 p 104)

No aforismo 18 de Humano demasiado humano intitulado Questotildees fundamentais da metafiacutesica Nietzsche se refere diretamente ao segundo ponto citando outro trecho da obra seminal de Spir

Quando algum dia se escrever a histoacuteria da gecircnese do pensamento nela tambeacutem se encontraraacute sob uma nova luz a seguinte frase de um loacutegico eminente ldquoA originaacuteria lei universal do sujeito cognoscente consiste na necessidade de reconhecer cada objeto em si em sua proacutepria essecircncia como um objeto idecircntico a si mesmo portanto existente por si mesmo e no fundo sempre igual e imutaacutevel em suma como uma substacircnciardquo (NIETZSCHE 2005 p 27)

Spir busca reduzir assim o conjunto das formas e conceitos a priori de Kant a um uacutenico princiacutepio qual seja o princiacutepio de Identidade Chegamos assim ao terceiro ponto destacado por Lopes qual seja o de que para Spir este princiacutepio possui uma validade que ultrapassa a esfera do a priori tal como definido por Kant Sua necessidade e universalidade natildeo dizem respeito somente agrave esfera da subjetividade transcendental e do domiacutenio dos fenocircmenos por ela condicionados mas possuem uma validade propriamente objetiva Quando confrontamos esta afirmaccedilatildeo com a tese da realidade igualmente objetiva da sucessatildeo temporal chegamos facilmente agrave conclusatildeo que Nietzsche enuncia no aforismo 16 de Humano demasiado humano

6 Trata-se da famosa passagem contida em uma nota de rodapeacute no sect 7 da Primeira Parte da Doutrina Transcendental dos Elementos da Criacutetica da Razatildeo Pura na qual Kant defende a tese de que a experiecircncia que possuiacutemos da sucessatildeo dos pensamentos em nossa mente corresponde somente agrave representaccedilatildeo desses mesmos pensamentos pelo sentido interno e natildeo a uma determinaccedilatildeo da realidade tal como eacute em si mesma

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

194

Por outro lado loacutegicos mais rigorosos apoacutes terem claramente estabelecido o conceito do metafiacutesico como o do incondicionado e portanto tambeacutem incondicionante contestaram qualquer relaccedilatildeo entre o incondicionado (o mundo metafiacutesico) e o mundo por noacutes conhecido de modo que no fenocircmeno precisamente a coisa em si natildeo aparece e toda conclusatildeo sobre esta a partir daquele deve ser rejeitada (NIETZSCHE 2005 p 25)

Para Spir existe portanto um abismo intransponiacutevel entre a ldquotemporalidade e particularidade da sensaccedilatildeordquo e a ldquoatemporalidade e simplicidade da apercepccedilatildeordquo (GREEN 2002 p 47) isto eacute entre as esferas da sucessatildeo temporal que rege o mundo empiacuterico por um lado e do princiacutepio de Identidade compreendido como lei originaacuteria do sujeito cognoscente e da proacutepria realidade tal como eacute em si mesma por outro Kant teria tentado ao ver de Spir sem sucesso superar essa contradiccedilatildeo atraveacutes do esquematismo transcendental que cumpriria a funccedilatildeo de conectar a passividade da sensibilidade com a espontaneidade do entendimento supostamente reduzindo a realidade da sucessatildeo temporal ao estatuto de uma representaccedilatildeo circunscrita na unidade de uma consciecircncia atemporal conferindo assim algo da unidade e estabilidade do ldquomundo metafiacutesicordquo agrave multiplicidade caoacutetica da realidade empiacuterica

Marina Gomes de Oliveira

195

Referecircncias bibliograacuteficasBONACCINI Juan Adolfo O problema da coisa em si no idealismo alematildeo 1ordf ed Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2003GREEN Michael Nietzsche and the Transcendental Tradition Champaign IL University of Illinois Press 2002LOPES Rogeacuterio Antocircnio Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche 573 f Tese (Doutorado em Filosofia) Minas Gerais Universidade Federal de Minas Gerais 2008NIETZSCHE Friedrich Humano demasiado humano um livro para espiacuteritos livres1ordf ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005_____ A filosofia na era traacutegica dos gregos 1ordf ed Satildeo Paulo Hedra 2008

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

196

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface entre Nietzsche e Freud

Michaella Carla Laurindo1

A funccedilatildeo do meacutedico da cultura na obra de NietzscheEste trabalho propotildee uma interface investigativa entre Nietzsche e Freud O objetivo

eacute identificar especificamente a funccedilatildeo do filoacutesofo como ldquomeacutedico da culturardquo e a funccedilatildeo do psicanalista como ldquomeacutedico das neurosesrdquo examinando suas aproximaccedilotildees e diferenccedilas Na obra de Nietszche e de Freud encontramos o termo impulso [Trieb2] mas empregado com conotaccedilotildees distintas Em Nietzsche temos sua doutrina de Vontade de Potecircncia eacute um conceito mais amplo que a Trieb freudiana e diretamente ligada agrave funccedilatildeo do filoacutesofo como ldquomeacutedico da culturardquo

O termo Trieb eacute utilizado para compreender a relaccedilatildeo entre o orgacircnico e o inorgacircnico no que tange agrave concepccedilatildeo de vontade de potecircncia ldquoCada movimento cada histoacuteria do mundo eacute sintoma de ajustamentos e subversotildees de relaccedilotildees de potecircncia vigentes entre as mais vigorosas correntes pulsionaisrdquo3 Os impulsos nessa perspectiva nietzschiana natildeo satildeo corpo e nem alma A vontade de potecircncia pode se manifestar na esfera do inorgacircnico como forccedila no orgacircnico na forma de impulsos fisioloacutegicos e tambeacutem na esfera cultural Na concepccedilatildeo do autor o mundo estaacute em constante mutaccedilatildeo que se efetiva como Vontade de Potecircncia (Wille zur Macht) atraveacutes de uma variedade de impulsos concorrentes ldquoo termo Wille entendido enquanto disposiccedilatildeo tendecircncia impulso e Macht associado ao verbo machen fazer produzir formar efetuar criarrdquo (MARTON 2016 p424) Em Para aleacutem de bem e mal sect36 ([1886] 2005) ele diz

Supondo finalmente que se conseguisse explicar toda nossa vida instintiva como elaboraccedilatildeo e ramificaccedilatildeo de uma forma baacutesica de vontade - vontade de potecircncia como eacute minha tese - supondo que se pudesse reconduzir todas as funccedilotildees orgacircnicas a essa vontade de potecircncia e nela se encontrasse tambeacutem a soluccedilatildeo para o problema da geraccedilatildeo e nutriccedilatildeo ndash eacute um soacute problema - entatildeo se obteria o direito de definir toda forccedila atuante inequivocamente como vontade de potecircncia O mundo visto de dentro o mundo definido e designado conforme o seu ldquocaraacuteter inteligiacutevelrdquo ndash seria justamente ldquovontade de potecircnciardquo e nada mais

1 UNIOESTE2 O termo alematildeo Trieb seraacute nesse artigo traduzido como ldquopulsatildeordquo quando utilizado no contexto freudiano e ldquoimpulsordquo

quando utilizado no contexto nietzschiano3 KSA XII Nachgelassene Fragmente 188587 p 654

Michaella Carla Laurindo

197

Dessa forma constata-se que na concepccedilatildeo nietzschiana ldquotoda forccedila atuante eacute vontade de potecircnciardquo sendo que tanto o organismo quanto as produccedilotildees culturais satildeo conjuntos de forccedila lutando entre si Essa noccedilatildeo dissolveria os limites entre o cultural e o bioloacutegico compreendidos nessa visatildeo como processos de hierarquizaccedilatildeo de impulsos (FREZZATTI Jr 2006 p 31) Trieb portanto eacute o quantum de potecircncia que tende ao crescimento

Mas Nietzsche nos adverte que a domesticaccedilatildeo e o amansamento dos impulsos humanos na tentativa de produzir um ldquohomem bom e uacutetil agrave sociedaderdquo conduz agrave decadecircncia por negar o mundo como um fluxo contiacutenuo de mudanccedilas e por negar a efetivaccedilatildeo do quanta de potecircncia Isso paralisa o movimento a mudanccedila da cultura Considerando esse aspecto torna-se fundamental explicitar o que eacute a fisiopsicologia ndash a forma como meacutedico filosoacutefico poderaacute investigar os sintomas culturais

A fisiopsicologia para Nietzsche seria uma forma de abordagem profunda dos problemas Na visatildeo do autor a psicologia permaneceu superficial em seu entendimento sobre o homem presa em concepccedilotildees de tradiccedilatildeo cientiacutefico-filosoacutefica uma psicologia resumida em fazer ciecircncia a partir dos atos de consciecircncia e tambeacutem impregnada pelas noccedilotildees morais de bem e mal Seria um modelo que limita a compreensatildeo que o homem pode ter de si mesmo pois eacute ldquoheranccedilardquo do pensamento metafiacutesico com seus juiacutezos de realidade e de valor um modelo a ser superado Nietzsche em Humano Demasiado Humano critica a psicologia como estudo dos fenocircmenos intelectuais e morais

que se impocircs graccedilas ao trabalho de Christian Wolff (1679-1754) Testemunha e cuacutemplice do processo geral de naturalizaccedilatildeo que se iniciava Wolff dedicou-se a mostrar que a psicologia estava mais distante das questotildees sobre a origem do universo que dos problemas acerca da interaccedilatildeo do homem com o que o rodeava Se teve o meacuterito de ser um dos primeiros a consideraacute-la uma disciplina especiacutefica natildeo abandonou os princiacutepios transcendentes Partindo da noccedilatildeo leibniziana de alma entendida como uma substacircncia simples e incorpoacuterea capaz de representar o mundo Wolff sustentou que suas representaccedilotildees podiam ser perfeitas se fossem plenamente adequadas ou imperfeitas se natildeo o fossem Sendo claramente conhecidas a ideias de perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo por sua vez engendravam as de bem e mal (MARTON 2016 p 348)

Para compreender a funccedilatildeo da psicologia eacute relevante citar o aforismo 23 de Aleacutem do bem e do mal

Toda psicologia ateacute o momento tem estado presa a preconceitos e temores morais natildeo ousou descer agraves profundezas Compreendecirc-la como morfologia e doutrina de desenvolvimento da vontade de potecircncia tal como faccedilo ndash isto eacute algo que ningueacutem tocou sequer em pensamento na medida em que eacute permitido ver no que foi ateacute agora escrito um sintoma do que foi ateacute aqui silenciado A forccedila dos preconceitos morais penetrou profundamente no mundo mais espiritual aparentemente mais frio e mais livre de pressupostos ndash de maneira inevitavelmente nociva inibidora ofuscante deturpadora (NIETZSCHE [1886] 2005 p 27 traduccedilatildeo modificada)

Cabe entatildeo ao fisiopsicoacutelogo ldquoousar descer agraves profundezasrdquo Trata-se de analisar a relaccedilatildeo das produccedilotildees culturais para aleacutem das noccedilotildees de bem e mal ou seja como uma

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

198

expressatildeo dos impulsos na acircnsia pelo aumento de potecircncia Mas eacute relevante considerar o uso especiacutefico da palavra ldquofisiologiardquo nesse contexto - os processos fisioloacutegicos natildeo equivalem a processos bioloacutegicos Nietzsche utiliza o termo de forma ampliada pois considera tanto corpos vivos quanto inorgacircnicos e produccedilotildees humanas ndash Estado religiatildeo filosofia etc - como conjunto de forccedilas ou impulsos (FREZZATTI Jr 2006 p 25)

Mas o quecirc significa compreender a fisiopsicologia como morfologia e doutrina do desenvolvimento da vontade de potecircncia

Morfologia porque investiga a hierarquia de impulsos Nietzsche em um fragmento poacutestumo intitulado ldquoVontade de Poder Morfologiardquo nos remete agrave questatildeo das modalizaccedilotildees da vontade de poder ldquoVontade de potecircncia como lsquonaturezarsquo como vida como sociedade como vontade de verdade como religiatildeo como arte como moral como humanidaderdquo4 A vontade de potecircncia assume diversas formas mas isso natildeo significa que devemos tomar uma dessas modalizaccedilotildees como sua essecircncia

Ela [vontade de potecircncia] natildeo eacute um fundamento do mundo que produz vida ou que se exterioriza como arte ou se efetiva como humanidade Muito ao contraacuterio as lsquoconfiguraccedilotildeesrsquo (Gestaltungen) apresentadas por Nietzsche satildeo segundo sua essecircncia vontade de poder Tornar visiacutevel essa essecircncia nos lsquoacircmbitosrsquo de espeacutecie diversa eacute a tarefa de uma lsquomorfologiarsquo da vontade de poder (MUumlLLER-LAUTER 1997 p 86-87 traduccedilatildeo modificada)

Teoria do desenvolvimento porque tenta entender a dinacircmica da variaccedilatildeo da quantidade de potecircncia e da formaccedilatildeo contiacutenua de hierarquias (FREZZATTI Jr 2008 p305)

Os novos filoacutesofos na concepccedilatildeo do autor deveriam ser ldquoespiacuteritos fortes e originais o bastante para estimular valorizaccedilotildees opostas e transvalorar e transtornar lsquovalores eternosrsquordquo Seriam os ldquohomens do futurordquo teriam que se achar sempre em contradiccedilatildeo com o ldquoideal de seu hojerdquo5 Eacute atraveacutes da fisiopsicologia que o meacutedico da cultura pode diagnosticar as produccedilotildees em termos de sauacutede ou doenccedila Seu papel natildeo eacute o do ldquomeacutedico de almasrdquo e se opotildee ao ideal civilizatoacuterio que preconiza o ldquoprogressordquo ldquoQue noacutes natildeo nos enganemos O tempo corre avante - noacutes gostariacuteamos de crer que tudo que estivesse no tempo tambeacutem corresse avante que o desenvolvimento [Entwicklung] fosse uma evoluccedilatildeo [Vorwaumlrts-Entwicklung] Isso eacute a aparecircncia enganosa que seduz os mais prudentes mas o seacuteculo XIX natildeo eacute um progresso em relaccedilatildeo ao XVIrdquo6 Neste ponto eacute pertinente considerar e ampliar as conjecturas e criacuteticas de Nietzsche sobre a civilizaccedilatildeo compreendida como ldquomelhoramento e progresso do homemrdquo A domesticaccedilatildeo e amansamento dos instintos na tentativa de tornar o ldquohomem bomrdquo o tornam apenas obediente e servil o que significa a desagregaccedilatildeo dos instintos de um indiviacuteduo ou de uma cultura Nietzsche aponta que a filosofia metafiacutesica o socratismo o platonismo o cristianismo a moral e a arte satildeo expressotildees de um mundo supostamente civilizado mas que na verdade evidenciam essa desagregaccedilatildeo Nesse sentido podemos considerar esses ldquoavanccedilos sociaisrdquo como os sintomas de uma doenccedila Em A gaia ciecircncia ele aponta

4 Cf Fragmento poacutestumo 14 [72] primavera 1888 v 4 p 5315 Cf Humano Demasiado Humano sect 203 e 2126 Cf Fragmento poacutestumo 15 [8] primavera 1888 v 4 p 626

Michaella Carla Laurindo

199

Eu espero ainda que um meacutedico filosoacutefico no sentido excepcional do termo ndash algueacutem que persiga o problema da sauacutede geral de um povo de uma eacutepoca de uma raccedila da humanidade - tenha futuramente a coragem de levar ao cuacutemulo a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmaccedilatildeo em todo o filosofar ateacute o momento a questatildeo natildeo foi absolutamente a ldquoverdaderdquo mas algo diferente como sauacutede futuro potecircncia crescimento vida (NIETZSCHE [1886] 2001 p10)

Estimar o erudito e o impulso de conhecimento cientiacutefico satildeo sinais de doenccedila assim como a pretensatildeo de determinar uma verdade absoluta ndash satildeo aspectos sob os quais incide o crivo do meacutedico filosoacutefico pois satildeo sinais de doenccedila ldquoQualquer alianccedila com o eruditos deve ser rejeitada Esse eacute o maior inimigo porque dificultam o trabalho dos meacutedicos e negam a existecircncia da doenccedilardquo7 Para o filoacutesofo alematildeo natildeo haacute imparcialidade nessa dedicaccedilatildeo agrave ciecircncia ndash o anseio por essa verdade a ser ldquodesveladardquo representa a luta entre os proacuteprios impulsos mas numa mescla muito variada

O meacutedico da cultura tambeacutem deve estar atento aos sintomas representados pela compaixatildeo culpa conceitos de pecado e castigo ndash jaacute que a maacute-consciecircncia eacute signo de doenccedila Segundo Nietzsche a religiatildeo cristatilde com sua moral de ressentimento inventou a ldquogrande estratagemardquo para aliviar a dor do homem ao responsabilizaacute-lo e culpabilizaacute-lo por seu sofrimento Foi a forma de dar-lhe um sentido pois o que o homem natildeo suporta natildeo eacute a dor mas sim sua falta de sentido ldquoo homem preferiraacute ainda querer o nada a nada quererrdquo (NIETZSCHE [1887] 2009 p 140)

A funccedilatildeo do meacutedico das neuroses na obra de FreudNa obra freudiana haacute duas teorias sobre as pulsotildees a primeira apresenta o dualismo

pulsotildees sexuais e pulsotildees de autoconservaccedilatildeo a segunda apresenta o dualismo pulsotildees de vida e pulsotildees de morte

A pulsatildeo eacute definida na primeira teoria como um ldquoconceito-limite entre o psiacutequico e o somaacutetico como o representante psiacutequico dos estiacutemulos que provecircm do interior do corpo e alcanccedilam a psique como uma medida da exigecircncia de trabalho imposta ao psiacutequico em consequecircncia de sua relaccedilatildeo com o corpordquo (FREUD [1915] 2006 p 148)

Parece evidente mas eacute preciso considerar atentamente o que o autor quer transmitir ao dizer ldquoum estiacutemulo que proveacutem de interior do corpo e atua no psiquismordquo Trata-se de uma fronteira portanto eacute preciso evitar o equiacutevoco de cindir o termo Trieb e trata-lo como referente ao bioloacutegico ou soacute ao que eacute humano e de inclinaccedilatildeo psiacutequica ndash natildeo haacute uma dicotomia mente-corpo No mesmo artigo intitulado A pulsatildeo e seus destinos8 Freud sublinha que a pulsatildeo tem uma forccedila constante tem sua origem em fontes de estimulaccedilatildeo internas do organismo e nenhuma accedilatildeo de fuga prevalece contra ela Dessa forma ele marca a distinccedilatildeo entre um estiacutemulo interno que atua no psiquismo e um estiacutemulo externo que tem origem fisioloacutegica Mas quantas pulsotildees nessa fase dos escritos Freud supotildee existir Ele propotildee a distinccedilatildeo de dois grupos de pulsotildees primordiais o das pulsotildees do Eu ou de autoconservaccedilatildeo9 e o das pulsotildees sexuais ndash distinccedilatildeo que se assenta nas duas grandes tendecircncias reconhecidas pela biologia da eacutepoca Encontram-se sob o predomiacutenio

7 Cf Fragmento poacutestumo 29 [222] veratildeo-outuno 1872-1873 Nietzsche v 2 p 5498 Texto de abertura do conjunto de artigos concebidos entre 1914 e 1915 para apresentar a Metapsicologia A teoria

psicanaliacutetica de Freud eacute composta por uma parte empiacuterica - a sua psicologia dos fatos cliacutenicos - e outra especulativa - a metapsicologia Podemos entender como uma perspectiva

9 Pulsatildeo do Eu e Pulsatildeo de autoconservaccedilatildeo seratildeo usados como sinocircnimos no texto

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

200

de diferentes princiacutepios de funcionamento Pulsotildees do Eu satildeo regidas pelo princiacutepio de realidade e soacute podem satisfazer-se com um objeto real Pulsotildees sexuais encontram-se sob o predomiacutenio do princiacutepio do prazer podendo satisfazer-se com objetos da fantasia As pulsotildees sexuais logo que surgem estatildeo ligadas agraves pulsotildees do Eu das quais soacute gradativamente se separam10 O movimento pulsional se origina numa fonte implica uma forccedilapressatildeo tem uma meta e essa meta se apoia em um objeto ldquoO objeto da pulsatildeo eacute aquilo em que ou por meio de que a pulsatildeo pode alcanccedilar sua meta [a satisfaccedilatildeo] Ele eacute o elemento mais variaacutevel da pulsatildeo e natildeo estaacute originariamente ligado agrave ela sendo-lhe apenas acrescentado em razatildeo de sua aptidatildeo para propiciar satisfaccedilatildeo [] o objeto poderaacute ser substituiacutedo por interminaacuteveis outros objetosrdquo (FREUD [1915] 2006 p 149)

Em 1920 Freud formula a oposiccedilatildeo entre Pulsatildeo de Vida e Pulsatildeo de Morte A pulsatildeo de vida eacute concebida como a tendecircncia agrave formaccedilatildeo de unidades maiores agrave aproximaccedilatildeo e agrave unificaccedilatildeo entre as partes dos seres vivos A pulsatildeo de morte ao contraacuterio eacute vista como a tendecircncia agrave separaccedilatildeo agrave destruiccedilatildeo e em uacuteltima anaacutelise agrave volta ao estado inorgacircnico O conceito de pulsatildeo aqui eacute muito mais amplo Em vez de uma exigecircncia de trabalho feita pelo soma ao aparelho psiacutequico tem-se duas tendecircncias gerais que se aplicam a toda mateacuteria viva No trabalho intitulado O problema econocircmico do masoquismo ([1924] 2007) o autor declara que os dois tipos de pulsatildeo sempre satildeo amplamente misturados em variadas proporccedilotildees Eacute digno da atenccedilatildeo do leitor que a segunda teoria natildeo substitui inteiramente a primeira mas a engloba com algumas alteraccedilotildees

Mas para o objetivo do presente trabalho conveacutem retomar o esclarecimento sobre o objeto pulsional pelo qual o homem busca satisfazer-se e que pode variar e se deslocar para outros objetos No texto Projeto de uma psicologia cientiacutefica Freud realiza uma decomposiccedilatildeo da primeira experiecircncia de satisfaccedilatildeo e descreve o objeto inicial supondo se tratar de outro ser humano como sendo o primeiro objeto de satisfaccedilatildeo Um outro ser humano seraacute responsaacutevel pela accedilatildeo especiacutefica de nutrir o receacutem nascido pois ldquoo organismo humano eacute a princiacutepio incapaz de promover essa accedilatildeo especiacutefica Ela se efetua por ajuda alheia [Nebenmensch] quando a atenccedilatildeo de uma pessoa experiente eacute voltada para um estado infantil por descarga atraveacutes da via de alteraccedilatildeo internardquo (FREUD [1895] 1996 p370) Mas o que seria apenas a satisfaccedilatildeo de uma necessidade [fome] no humano se mescla com uma satisfaccedilatildeo sexual - portanto pulsional

Quando a pessoa que executa o trabalho da accedilatildeo especiacutefica no mundo externo para o desamparado este uacuteltimo fica em posiccedilatildeo por meio de dispositivos reflexos de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessaacuteria para remover o estiacutemulo endoacutegeno A totalidade do evento constitui entatildeo a experiecircncia de satisfaccedilatildeo que tem as consequecircncias mais radicais no desenvolvimento das funccedilotildees do indiviacuteduo (FREUD [1895]1996 p370 grifo da autora)

Uma vez jaacute experienciada a satisfaccedilatildeo reaparecendo o ldquoestado de urgecircncia ou desejordquo (p371) haacute uma ativaccedilatildeo concomitante entre a representaccedilatildeo do objeto [lembranccedila] e a imagem reconstruindo a presenccedila do objeto a partir de uma alucinaccedilatildeo ldquoNatildeo tenho duacutevida de que na primeira instacircncia essa ativaccedilatildeo do desejo produz algo idecircntico a uma percepccedilatildeo ndash a saber uma alucinaccedilatildeo Quando uma accedilatildeo reflexa eacute introduzida em seguida a esta a consequecircncia inevitaacutevel eacute o desapontamentordquo (FREUD [1895] 1996 p372) Esse eacute

10 Um exemplo seria a boca e o ldquosugar com deleiterdquo a princiacutepio a serviccedilo da alimentaccedilatildeo e posteriormente a serviccedilo da sexualidade

Michaella Carla Laurindo

201

o argumento sobre a busca de objetossituaccedilotildees que satisfaccedilam a pulsatildeo Esse eacute o recalque primordial e que faraacute o ser humano buscar a satisfaccedilatildeo miacutetica ao longo da vida

Acompanhando Freud Quinet (2012) destaca que a satisfaccedilatildeo pulsional seraacute sempre parcial pois o objeto que supostamente traria a satisfaccedilatildeo completa estaacute perdido Assim as pulsotildees satildeo investidas em diversos objetos que trazem satisfaccedilatildeo momentacircnea mas nunca ininterrupta O ser humano procura constantemente este objeto que um dia trouxe uma suposta satisfaccedilatildeo sem igual uma plena satisfaccedilatildeo Isso ocasiona uma vida de procura e reencontros tatildeo somente com substitutos fugazes Assim ele [o objeto] natildeo estaacute de volta eacute somente uma sombra do que foi perdido sem nem mesmo ter existido11

A funccedilatildeo do psicanalista como meacutedico das neuroses eacute pautada nos sintomas de um corpo que eacute material mas tambeacutem pulsional ou seja estreitamente relacionado com o psiquismo e em consequecircncia com o inconsciente Eacute o corpo atravessado pela Trieb ndash natildeo eacute um corpo puramente anatocircmico mas simboacutelico Para Freud a neurose e suas formaccedilotildees sintomaacuteticas satildeo respostas agrave exigecircncia pulsional de satisfaccedilatildeo que se expressa em sofrimento e morbidez Eacute funccedilatildeo desse meacutedico estar atento ao fato de que o ser humano emprega defesas e estrateacutegias para interagir com o mundo externo em sua busca incessante de realizar suas pulsotildees mas que satildeo inconciliaacuteveis com a vida em civilizaccedilatildeo O processo de formaccedilatildeo das sociedades traz inerentemente consigo uma sensaccedilatildeo de mal-estar ocasionada pelos sacrifiacutecios impostos pela civilizaccedilatildeo ao homem Dentre eles pode-se citar os relacionados agrave sexualidade e agrave agressividade Isso diminui as probabilidades de o ser humano ser feliz em sociedade pois torna a vida ldquoaacuterdua demaisrdquo O homem civilizado a partir disso troca uma quantia de satisfaccedilatildeo por uma quantia de seguranccedila ou seja viver em sociedade provocou uma perda de liberdade em ganho de seguranccedila (FREUD [1930] 1996) O padecimento sempre estaacute relacionado justamente agrave tentativa de amansar ou tentar deixar latente a forccedila pulsional desconhecida pela consciecircncia

Uma das funccedilotildees do meacutedico das neuroses eacute escutar sem julgamentos preacutevios de base moral Essa postura tambeacutem eacute solicitada a quem o procura que deve associar livremente ldquo[] lhe ocorreratildeo vaacuterios pensamentos que vocecirc quer rechaccedilar com certas restriccedilotildees criacuteticas [] nunca ceda a essa criacutetica diga-o mesmo assim justamente porque vocecirc sente uma rejeiccedilatildeo diante dissordquo (FREUD [1913] 2017 p 136) Trata-se de uma escuta com atenccedilatildeo equiflutuante e neutralidade evitando o perigo de selecionar certos trechos do discurso em meio ao material apresentadoNatildeo eacute possiacutevel que o analista faccedila seleccedilatildeo com base em suas proacuteprias inclinaccedilotildees ou expectativas isso apenas falsificaria a percepccedilatildeo ldquoNatildeo nos esqueccedilamos que ouvimos coisas cuja importacircncia soacute se revelaratildeo a posteriori (FREUD [1912] 2017 p 94) O analista precisa ldquodirigir para o inconsciente emissor do paciente o seu proacuteprio inconsciente enquanto oacutergatildeo receptorrdquo (p99) e ldquocolocar de lado todos os seus afetos e ateacute a compaixatildeo humanardquo (p98) A frieza emocional do analista tem o objetivo de evitar a ambiccedilatildeo terapecircutica natildeo eacute possiacutevel que o tratamento busque o efeito de convencimento no paciente ldquoO meacutedico precisa ser opaco para o analisando e assim como uma superfiacutecie espelhada natildeo deve mostrar nada aleacutem daquilo que lhe eacute mostradordquo (p 102) Tambeacutem natildeo cabe ao praticante ter ambiccedilatildeo educativa pois a atividade intelectual natildeo alivia os efeitos da neurose pelo contraacuterio - refletir muito e frequentemente com muita erudiccedilatildeo eacute um sinal de resistecircncia

Os dois uacuteltimos artigos afirmam que natildeo haacute uma ldquoverdade absolutardquo de posse do analista ou um juiacutezo em termos de ldquobem e malrdquo O significado singular da vida do sujeito 11 A satisfaccedilatildeo miacutetica daraacute origem agrave noccedilatildeo freudiana de realidade psiacutequica isso significa que a verdade eacute uma ficccedilatildeo

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

202

soacute seraacute conhecido a posteriori12 com base no discurso do proacuteprio analisando Afirmam tambeacutem que a compaixatildeo a erudiccedilatildeo e o uso das capacidades conscientes em nada o auxiliam

Na visatildeo freudiana a internalizaccedilatildeo das imposiccedilotildees morais da cultura como pecado ndash castigo tambeacutem provocam o adoecimento do analisando na forma de um supereu muito severo Portanto outra funccedilatildeo do meacutedico das neuroses eacute abrandar a severidade do supereu pois o sentimento de culpa condena qualquer tentativa de satisfaccedilatildeo pulsional e ainda produz auto-recriminaccedilatildeo Freud explica que as exigecircncias culturais as criacuteticas dos pais e as censuras dos educadores satildeo os meios encontrados por essas proibiccedilotildees de fora que falam na terceira pessoa para se internalizarem como a voz da consciecircncia por efeito do recalcamento A religiatildeo busca aplacar a falta de sentido da vida e ldquoo homem comum soacute pode imaginar essa Providecircncia sob a figura de um pai ilimitadamente engrandecido Apenas um ser desse tipo pode compreender as necessidades dos filhos dos homens enternecer-se com suas preces e aplacar-se com os sinais de seu remorso Tudo eacute tatildeo patentemente infantilrdquo (FREUD [1930] 1996 p 82) Alega ainda redimir a humanidade do sentimento de culpa a que chamam de pecado utilizando a seu favor a severidade do supereu

3 O vazio de sentido ndash a reinvenccedilatildeo de si proacuteprioEacute necessaacuterio a princiacutepio demarcar aproximaccedilotildees e tambeacutem diferenccedilas entre as

abordagens de Nietzsche e Freud O primeiro faz uma construccedilatildeo cosmoloacutegica ao formular seu conceito de Forccedilas e Vontade de Potecircncia enquanto o segundo ocupa-se de uma terapecircutica Satildeo dois corpos teoacutericos distintos em que uma interlocuccedilatildeo eacute possiacutevel mas com certa cautela para evitar o reducionismo No momento cabe sintetizar alguns pontos que auxiliam na anaacutelise dessas aproximaccedilotildees e diferenccedilas

Nietzsche e Freud fizeram um diagnoacutestico e criacutetica da eacutepoca em que viveram ndash e tambeacutem do presente Separaram-se daquilo que era tido como verdadeiro natildeo foram dogmaacuteticos numa busca pela verdade ldquouacuteltimardquo Natildeo se limitaram a um mero diagnoacutestico cliacutenico das patologias da modernidade mas se arriscaram na emissatildeo de um prognoacutestico Seus respectivos pontos de vista satildeo uma criacutetica a concepccedilatildeo que o homem moderno fez de si ndash como um lsquosujeito racionalrsquo lsquoconscientersquo e apresentaram um contra ideal perante as exigecircncias da civilizaccedilatildeo Podemos encarar suas obras como perspectivas interpretaccedilatildeo sobre o mundo

O que eacute adoecedor decadente e qual o papel do psicanalista e do filoacutesofo O que eacute adoecedor na visatildeo de Freud satildeo os ideais e exigecircncias da civilizaccedilatildeo e que satildeo inconciliaacuteveis com as exigecircncias pulsionais Ele destaca que as pulsotildees devem ser conhecidas pelo sujeito e natildeo rechaccediladas A civilizaccedilatildeo inventou doutrinas e praacuteticas terapecircuticas para tratar no niacutevel coletivo as infelicidades inerentes agrave condiccedilatildeo humana A religiatildeo seria uma dessas ldquoideologias da promessardquo Freud afirma que o mal estar na civilizaccedilatildeo eacute um conflito indissoluacutevel sua uacutenica ldquopromessardquo eacute ldquotransformar um sofrimento neuroacutetico numa infelicidade comum [] estar mais bem armado contra essa infelicidaderdquo13(FREUD [1895] 1996 p316)

Jaacute em Nietzsche vemos que a humanidade natildeo evolui para o melhor para o mais forte ou para o superior O principal papel do meacutedico filosoacutefico seria deixar acontecer o 12 Freud aponta no capiacuteto II do Mal-estar na ciilizaccedilatildeo que a felicidade deve ser construiacuteda individualmente ldquoNatildeo haacute

aqui um conselho vaacutelido para todos cada um tem que descobrir a sua maneira particular de ser felizrdquo ([1930] 2010 p40-41)

13 Outra aproximaccedilatildeo entre os autores eacute o ldquosentimento inconsciente de culpardquo e ldquomaacute consciecircnciardquo - os dois principais sin-tomas que denunciam uma ldquodoenccedilardquo que se alastra da moral para outros domiacutenios da cultura e desta para o psiquismo

Michaella Carla Laurindo

203

ciclo vital14 e tambeacutem que suas fases sejam superadas Adoecedor seria negar a vida que na verdade deveria ser um processo incessante de autossuperaccedilatildeo Elevaccedilatildeo da cultura significa expressar os impulsos no intuito de autossuperaccedilatildeo propiciar a accedilatildeo criadora e de renovaccedilatildeo da cultura sem a ilusatildeo de uma felicidade suprema

Haacute nos dois autores uma articulaccedilatildeo entre sintoma individual cultural Mas Nietzche parece enfatizar o sintoma cultural quando escreve ldquoNos indiviacuteduos a loucura [Irrsinn] eacute rara - mas no grupos partidos povos eacutepocas eacute a regra e por isso os historiadores natildeo tecircm falado da loucura ateacute hoje Mas chegaraacute o tempo em que os meacutedicos escreveratildeo a histoacuteriardquo15 De qualquer forma tanto psicanalista quanto filoacutesofo tecircm que ldquolutar com resistecircncias inconscientes no proacuteprio coraccedilatildeo do investigador sem condicionamentos entre lsquobom e malrsquo se posicionar para aleacutem da moralrdquo (NIETZSCHE sect23 [1886] 2005 p27-28)

O vazio de sentido e a reinvenccedilatildeo construccedilatildeo de si proacuteprio tanto em Nietzsche quanto em Freud haacute uma interrogaccedilatildeo sobre o que vem a ser a verdade Em Freud por exemplo vimos que toda a busca de sentido ao longo da vida estaacute assentada em uma ficccedilatildeo ndash haacute uma total falta de sentido para a existecircncia Eacute que o objeto da pulsatildeo eacute uma experiecircncia de satisfaccedilatildeo em torno da qual estruturou-se o circuito da pulsatildeo Mas se trata de uma experiecircncia de satisfaccedilatildeo que carece de essecircncia ou melhor dizendo eacute um nada de substacircncia Eacute o encontro com esse nada que a neurose pretende evitar a todo preccedilo (GODINO-CABAS 2009) Em Genealogia da Moral vemos que ldquoalgo faltava que uma monstruosa lacuna circundava o homem ndash ele natildeo sabia justificar explicar afirmar a si mesmo ele sofria do problema do seu sentido []o ideal asceacutetico lhe ofereceu um sentidordquo (NIETZSCHE [1887] 2009 p 139) Os conceitos dos dois autores orbitam em torno de se permitir a experiecircncia da falta de sentido que as identificaccedilotildees e as idealizaccedilotildees declinem Trata-se de assumir a proacutepria vida sem as proacuteteses da ilusatildeo e tentar fazer dela uma obra de arte uma reinvenccedilatildeo permanente de si mesmo O conflito decorrente da vida em civilizaccedilatildeo pode ser produtivo Construir um mundo individual e comunitaacuterio menos sofrido Essa construccedilatildeo natildeo toma por base uma esperanccedila de natureza religiosa nem uma certeza ndash eacute uma aposta sem as garantias de um final feliz Trata-se portanto de fomentar a criatividade humana e a constante mudanccedila de valores e conceitos recusando-se agrave estagnaccedilatildeo

14 Fase de juventude fase de apogeu e fase debilitada da cultura15 Cf Fragmento poacutestumo 3[1] [159] veratildeo-outuno 1882 Nietzsche v 3 p 67

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

204

Referecircncias bibliograacuteficasFREUD S A psicoterapia da histeria [1895] In Ediccedilatildeo Standart Brasileira das Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud (Vol II) Rio de Janeiro Imago 1996_____ Projeto de uma psicologia cientiacutefica [1895] In Ediccedilatildeo Standart Brasileira das Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud (Vol I) Rio de Janeiro Imago 1996_____ Recomendaccedilotildees ao meacutedico para o tratamento psicanaliacutetico [1912] In Obras Incompletas de Sigmund Freud Autecircntica Editora 2017_____ Sobre o inicio do tratamento [1913] In Obras Incompletas de Sigmund Freud Autecircntica Editora 2017_____ A pulsatildeo e destinos da pulsatildeo [1915] In Obras Psicoloacutegicas de Sigmund Freud - Volume 1 ndash Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente Rio de Janeiro Imago 2004_____ Aleacutem do princiacutepio do prazer [1920] In Obras Psicoloacutegicas de Sigmund Freud - Volume 2 ndash Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente Rio de Janeiro Imago 2006_____ O problema econocircmico do masoquismo [1924] In Obras Psicoloacutegicas de Sigmund Freud - Volume 3 ndash Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente Rio de Janeiro Imago 2007_____ O mal-estar na civilizaccedilatildeo [1930] In Obras completas de Sigmund Freud (Vol XVIII) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 FREZZATTI Jr Wilson Anotnio A fisiologia de Nietzsche a superaccedilatildeo da dualidade culturabiologia Ijuiacute Ed Unijuiacute 2006_____ O problema de Soacutecrates um exemplo da fisiopsicologia de Nietzsche Rev Filos Aurora Curitiba v 20 n 27 p 303-320 juldez 2008GODINO-CABAS A O sujeito na psicanaacutelise de Freud a Lacan Da questatildeo do sujeito ao sujeito em questatildeo Rio de Janeiro Zahar 2009MARTON S Verbete Vontade de Potecircncia [Wille zur Macht] Psicologia [Psychologie] In GEN Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo Loyola 2016MUumlLLER-LAUTER W A doutrina da vontade de poder em Nietzsche Trad O Giacoacuteia Jr Satildeo Paulo Annablume 1997NIETZSCHE FW Humano demasiado humano [1878] Traduccedilatildeo P C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2005 _____ Aleacutem do bem e do mal [1886] Traduccedilatildeo P C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2005_____ A gaia ciecircncia [1886] Traduccedilatildeo P C de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____Genealogia da moral uma polecircmica [1887] Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ [1967] Nachgelassene Fragmente 1885-1887 Em G Colli amp M Montinari (Orgs) Kritische Studienausgegeben ndash KSA Vol 12 BerlinNew York Walter de Gruyter _____ Fragmentos Poacutestumos 1885-1889 (vol II) Madrid Editorial Tecnos 2016_____ Fragmentos Poacutestumos 1885-1889 (vol III) Madrid Editorial Tecnos 2016_____ Fragmentos Poacutestumos 1885-1889 (vol IV) Madrid Editorial Tecnos 2016QUINET A (2012) Os outros em Lacan Rio de Janeiro Zahar

Neomar Sandro Mignoni

205

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as influecircncias de Paul Reacutee 1

Neomar Sandro Mignoni2

Quando veio a puacuteblico em maio de 1878 Humano demasiado humano provocou inuacutemeras reaccedilotildees entre os amigos e leitores de Nietzsche Com exceccedilatildeo de Burckhardt que se refere agrave obra quase como a um ldquolivro soberanordquo3 e de Reacutee que entusiasmadamente o definiu como ldquoo livro dos livrosrdquo (cf KGB II6 850) as demais reaccedilotildees foram incocircmodas e ateacute explicitamente negativas Wagner se recusou a ler o livro Cosima o definiu como ldquoum livro tristerdquo ldquofruto da perversatildeordquo que ldquoprovoca grande constrangimento entre os amigosrdquo Rohde permaneceu consternado Malwida embaraccedilada e Marie Baumgartner afirmou ter ldquotremido de espantordquo4 Numa carta que enviou a Reacutee (12 de maio de 1878) Nietzsche confessou que apesar de sua obra ter causado ldquoirritaccedilatildeo mal-entendidos estranhamentosrdquo ele se sentia ldquorejuvenescido semelhante a um paacutessaro de montanha que estaacute laacute em cima no alto vizinho ao gelo a olhar o mundo laacute embaixordquo (Epistolario III 720) Foi tambeacutem nesse espiacuterito que ainda nos primeiros dias de 1878 num rascunho da carta destinada a Wagner o filoacutesofo escrevera ldquoEste livro eacute meu eu trouxe agrave luz minha mais iacutentima percepccedilatildeo sobre os homens e as coisas e pela primeira vez circulei a periferia de meu proacuteprio pensamentordquo (Epistolario III 676)

Mais do que ldquoo monumento de uma criserdquo (EH Humano demasiado humano sect1) Humano eacute tambeacutem o marco decisivo do retorno a si mesmo da retomada de uma via de pensamento que jamais seraacute abandonada Esta eacute a obra na qual o filoacutesofo se sente no direito de afirmar a proacutepria autonomia intelectual de buscar a proacutepria liberdade de espiacuterito No entanto nem todos assim o compreenderam Se por um lado congratulava-se com Reacutee pela consonacircncia de suas ideias (cf Epistolario III 743) por outro confrontava-se com Rohde em defesa da originalidade de suas proacuteprias conclusotildees frente a acusaccedilatildeo deste de que ele se despira da proacutepria alma para assumir a de Reacutee Em sua defesa Nietzsche escreveu

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - coacutedigo de Financiamento 001

2 Bolsista na Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Campus Toledo Paranaacute3 Essa opiniatildeo positiva do historiador e colega de profissatildeo de Nietzsche adveacutem de uma carta enviada a von Preen

em dezembro de 1878 (cf KGV IV4 p48) na qual afirmara ldquoNotaste que Nietzsche em seu livro faz uma meia conversatildeo em direccedilatildeo ao otimismo Eacute um homem extraordinaacuterio Para todas as coisas tem seu proacuteprio ponto de vista adquirido de maneira autocircnomardquo

4 Em relaccedilatildeo agraves reaccedilotildees dos leitores da obra veja-se Epistolario III 720s p 291s e suas respectivas notas aleacutem da KGB IIVI2 p850)

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as

206

Entre parecircntesis procure sempre a mim em meu livro e natildeo o amigo Reacutee Estou orgulhoso de ter descoberto as suas esplendidas qualidades e aspiraccedilotildees mas acerca da concepccedilatildeo da minha lsquophilosophia in nucersquo ele natildeo exerceu sequer a menor influecircncia esta estava pronta e em boa parte jaacute confiada ao papel quando o conheci de modo mais proacuteximo no outono de 1876 Nos encontramos colocados sobre um plano idecircntico o prazer dos nossos coloacutequios era sem limites e foi certamente de grande vantagem para ambos (Epistolario III 727)

A nosso modo de ver esta talvez seja a afirmaccedilatildeo que melhor ilustra seja o caraacuteter de Humano demasiado humano seja a influecircncia exercida por Reacutee no periacuteodo da elaboraccedilatildeo da obra Vejamos Nietzsche conheceu Reacutee na primavera de 18735 e em 1875 expressou grande apreccedilo agraves Observaccedilotildees psicoloacutegicas6 de Reacutee que fora publicada naquele mesmo ano No entanto eacute somente em 1876 que amizade entre os dois se consolida definitivamente apoacutes a visita de Reacutee agrave Basileacuteia em fevereiro deste mesmo ano Em agosto ambos se apresentaram em Bayreuth para a primeira ediccedilatildeo do festival wagneriano Depois que Nietzsche abandonou o Festival Reacutee o acompanhou agrave Basileacuteia onde iniciaram uma seacuterie de leituras e estudos em comum Eacute tambeacutem nesse periacuteodo que Nietzsche ditou a Gast o Die Plufgschar (O arado) (cf caderno M I 1 de 1876 grupo 18) Posteriormente dirigiram-se a Bex7 e mais tarde partiram em direccedilatildeo ao sul onde se encontraram com Malwida e Brenner para a estadia em Sorrento Seraacute pois em Sorrento que tanto a Origem dos sentimentos morais quanto Humano demasiado humano foram gestados pelo menos em sua maior parte

Uma anaacutelise mais acurada do espoacutelio de Nietzsche evidencia que justamente ao longo dos anos de 1875 e 1876 Nietzsche passou por uma profunda crise intelectual e emocional cujas consequecircncias transformaram seu modo de pensar e conceber o mundo8 No entanto essa crise natildeo eacute algo que veio agrave tona por forccedila do acaso tampouco de maneira suacutebita e inesperada Desde pelo menos 1872-73 eacute possiacutevel verificar alguns sinais desse evento A publicaccedilatildeo de O Nascimento da Trageacutedia (1872) jaacute evidenciara que a exuberante visatildeo do mundo que o filoacutesofo construiacutera ao longo da obra constituiacutea apenas uma bela ilusatildeo da qual nem mesmo ele acreditava muito (cf DrsquoIORIO 2014 p 11) Prova disso eacute a profunda cisatildeo existente entre aquilo que tornou puacuteblico atraveacutes da obra e aquilo que manteve no segredo de suas anotaccedilotildees privadas eou confiadas agraves liccedilotildees que proferiu a seus alunos Essa cisatildeo soacute alcanccedilaraacute seu fim no decorrer de sua estadia no Sul em Sorrento quando de fato toda aquela atividade de pensamento todo aquele fluxo que se manteve oculto ateacute entatildeo comeccedila a emergir dando vida a Humano demasiado humano5 Na ocasiatildeo Reacutee estivera na Basileacuteia para prestigiar a livre-docecircncia de seu amigo Romundt que tambeacutem era amigo

de Nietzsche Este em carta a Rohde descreveu Reacutee como um ldquoum homem muito reflexivo e talentosordquo (cf Episto-lario II 307) Reacutee permaneceu na Basileacuteia por todo o semestre de veratildeo onde juntamente com Gersdorff frequentou as aulas de Nietzsche sobre os preacute platocircnicos

6 Por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo Nietzsche cumprimentou o autor numa carta ldquoCaro senhor doutor as suas Observaccedilotildees psicoloacutegicas me fizeram muito prazer porque levastes a seacuterio o seu incoacutegnito poacutestumo (ldquodo legado literaacuteriordquo) [] Se vocecirc natildeo publicar mais anda aleacutem destas maacuteximas formadoras do ESPIacuteRITO se estaacute obra for e seraacute verdadeiramente o seu legado tudo bem tambeacutem quem vive em tanta independecircncia e segue adiante por sua proacutepria conta tem o direito de exigir que se lhe poupe elogios e esperanccedilasrdquo (Epistolaacuterio II 492) Reacutee agradeceu generosamente poucos dias depois

7 Um ano mais tarde Reacutee ainda lembraraacute desta estadia ldquoNestes tempos de agora meus pensamentos vagueiam por Bex e natildeo querem deixar-se expulsar de laacute De algum modo foi a lua de mel de nossa amizade e a pequena casa agrave parte a sacada de madeira os cachos de uva e o Saacutebio completam o quadro de uma situaccedilatildeo perfeitardquo (cf Triangolo di lettere Paul Reacutee a Nietzsche em 10 de outubro de 1877 p 28)

8 Alguns sintomas dessas mudanccedilas podem ser encontrados ateacute mesmo entre seus escritos de 1873 e 1874 especial-mente os escritos durante o veratildeo-outono de 1873 como por exemplo o caderno U II 2

Neomar Sandro Mignoni

207

As consequentes mudanccedilas provocadas por essa crise alteraram natildeo soacute o seu modo de pensar ou o seu modo de escrita mas influenciaram ateacute mesmo suas leituras Agrave medida em que se tornou evidente o real significado do renascimento cultural proposto por Wagner agrave medida que as ideias de Schopenhauer natildeo o convenciam mais Nietzsche ampliou seus horizontes de estudos Em 1875 adquiriu uma seacuterie de obras muitas delas de cunho puramente cientiacutefico como no caso das obras publicadas na Internationale wissenschaftliche Bibliothek o filoacutesofo passou a ocupar-se tambeacutem com muitas outras leituras ateacute entatildeo ineacuteditas como por exemplo os moralistas franceses9 Spencer Duumlhring e obviamente as Observaccedilotildees Psicoloacutegicas de Paul Reacutee entre outras

Nesse meio tempo enquanto Nietzsche se ocupava com seus estudos cientiacuteficos e com a quarta extemporacircnea Richard Wagner em Bayreuth Reacutee iniciava seus estudos para sua segunda obra a jaacute citada Origem dos sentimentos morais Interessante notar que tanto Reacutee quanto Nietzsche jaacute vinham se ocupando de suas respectivas obras desde 1875 e que tanto Origem dos sentimentos morais quanto Humano demasiado humano soacute foram publicadas apoacutes a intensa convivecircncia dos dois autores 1877 e 1878 respectivamente Sendo assim eacute bastante natural que tais obras incorporem elementos provenientes do intenso diaacutelogo entre seus autores Contudo delimitar tais influecircncias eacute algo bastante complexo senatildeo impossiacutevel razatildeo pela qual natildeo nos cabe aqui reconstruir esse diaacutelogo mas antes apontar alguns desses elementos que a nosso ver satildeo essenciais agrave compreensatildeo das mutuas influecircncias entre Nietzsche e Reacutee Aqui vale ressaltar que a amizade entre os dois autores se solidificou efetivamente apoacutes o rompimento de Nietzsche com Wagner Reacutee natildeo teve nenhuma influecircncia sobre o distanciamento de Nietzsche para com Wagner no entanto nos parece bastante razoaacutevel que em virtude desse afastamento a posterior influecircncia de Reacutee tenha contribuiacutedo positivamente com Nietzsche na sua busca pela proacutepria originalidade de pensamento

As razotildees pelas quais Nietzsche empreende novos estudos sobretudo no acircmbito cientiacutefico mais do que um retorno ao seu antigo e contiacutenuo interesse pela temaacutetica cientiacutefica representa tambeacutem a tomada de consciecircncia das questotildees essenciais de uma nova eacutepoca que agora despontava O homem moderno jaacute natildeo se satisfaz com as promessas metafiacutesicas ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da ciecircncia traz consigo questotildees cada vez mais complexas que o colocam em confronto com sua proacutepria existecircncia Dentre as grandes novidades do periacuteodo certamente natildeo passaram despercebidas ao filoacutesofo as vozes que traziam notiacutecias de Londres sobre o encontro de Darwin com Ruumltimeyer de 1877 por exemplo ou aquelas da Alemanha que debatiam o cientificismo positivista de Ernest Haeckel ou ainda as da Franccedila que faziam irromper o movimento antirromacircntico impulsionados pelo impressionismo de Manet e Rodin A muacutesica tambeacutem teve suas expressotildees quando por exemplo Brahms assumiu a corrente antiwagneriana salvando o prestiacutegio e a legitimaccedilatildeo da sinfonia O mesmo pode ser visto na literatura na medida em que ecoava o naturalismo em obras como Lrsquoassomoir de Emile Zola de 1876 (cf JANZ 1980 p 780) O clima era de intensa mudanccedila e Nietzsche com a sensibilidade de um sismoacutegrafo certamente natildeo soacute percebera a ebuliccedilatildeo dessa nova atmosfera como tambeacutem tratou de inserir-se nesse novo meio cultural

9 Entre eles La Rochefoucauld Vauvenargues Chamfort Montaigne e La Bruyegravere e os Filoacutesofos do Iluminismo principalmente Voltaire mas tambeacutem Diderot Helvetius e Fontenelle e provavelmente tambeacutem Rousseau em suas Confissotildees

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as

208

Paul Reacutee por sua vez mediante seus heterogecircneos interesses parecia incorporar esta nova efervescecircncia cientiacutefico-cultural Apaixonado por etnologia antropologia e direito comparado Reacutee representava praticamente uma antiacutetese daquilo que Nietzsche vivenciara ateacute entatildeo nos ciacuterculos wagnerianos e schopenhauerianos dos quais agora procurava afastar-se Ceacutetico em relaccedilatildeo aos confrontos com o idealismo metafiacutesico Reacutee manteve tambeacutem um vivo diaacutelogo com os moralistas franceses a ponto de alguns o considerarem como o responsaacutevel pela iniciaccedilatildeo de Nietzsche na escrita em forma de aforismos Influenciado pelo positivismo e consciente do papel que o instinto e a imaginaccedilatildeo desempenham na construccedilatildeo do pensamento afastara-se progressivamente de Schopenhauer para avizinhar-se do empirismo e das novas disciplinas cientiacuteficas10 (cf FORNARI 2006 p 34)

Em certa medida a amizade com Reacutee ocorreu em um momento crucial e decisivo para o filoacutesofo Diante de seus interesses a influecircncia de Reacutee contribuiu ainda mais para a ampliaccedilatildeo de seu horizonte de leituras Depois de aprofundar ainda mais seus interesses pelas ciecircncias naturais Nietzsche passou a adquirir e estudar uma seacuterie de obras de escritores britacircnicos e americanos que em grande parte se dedicavam agrave ciecircncia natural e agrave antropologia11 Aleacutem de sua preocupaccedilatildeo com cientistas ingleses que agora em muito expandiam a ciecircncia para aleacutem do continente Nietzsche tambeacutem se ocupou com os pensadores franceses em sua maioria moralistas aleacutem de outros importantes nomes da Alemanha

O momento eacute de transiccedilatildeo e ao mesmo tempo em que o filoacutesofo se dedica cada vez mais agraves temaacuteticas cientiacuteficas e filosoacuteficas a autores iluministas franceses e ingleses ele tambeacutem se ocupa ainda que por pouco tempo sobre algumas obras de autores com vieacutes schopenhaueriano como por exemplo E Duumlhring e P Mainlaumlnder O abandono de todas aquelas posiccedilotildees metafiacutesicas idealistas pessimistas ateacute entatildeo guiadas pela esteacutetica e pela arte o permitem lanccedilar-se agora em direccedilatildeo a posiccedilotildees mais ceacuteticas e ateacute mesmo agrave concessatildeo de elogios ao Iluminismo Aleacutem disso um outro fator importante senatildeo decisivo eacute o fato da ciecircncia adquirir a partir de agora predominacircncia sobre a arte garantindo sua soberania a partir de um livre pensar cuja expressatildeo mais niacutetida aparece agrave luz por vez primeira em Humano demasiado humano (cf EH Humano demasiado humano sect1-5) Provavelmente a maior parte desses elementos figuravam entre as principais motivaccedilotildees pelas quais aqueles que lhe eram proacuteximos quedarem-se perplexos diante daquilo que julgavam como uma suacutebita mudanccedila de perspectiva e que agora aparecia estampada em sua mais recente obra

Nesse sentido natildeo haacute duacutevidas que Humano demasiado humano seja o ldquomonumento de uma criserdquo mas de uma crise em vias de superaccedilatildeo Provavelmente Nietzsche natildeo pretendia fazer dele uma declaraccedilatildeo de guerra mas antes a definitiva constataccedilatildeo do crepuacutesculo dos ldquoideaisrdquo metafiacutesicos sintetizados sob a figura de Schopenhauer e dos miacuteticos mantidos sob a eacutegide de Wagner ldquoCom ele [Humano demasiado humano] me libertei do que natildeo pertencia agrave minha naturezardquo escreveu tambeacutem no Ecce Homo (EH Humano demasiado humano sect1) Em outro fragmento escreveu tambeacutem ldquoQuero expressamente explicar aos leitores dos meus escritos anteriores que desisti das visotildees metafiacutesicas e artiacutesticas que os dominam essencialmente elas satildeo agradaacuteveis poreacutem insustentaacuteveisrdquo E em seguidardquo numa espeacutecie de 10 ldquoDepois de ter estudado em Leipzig e Berlim com professores do calibre de Curtius Drobisch Gerber e Robert

Hartmann (foi tambeacutem um dos poucos que foram admitidos para seguir as liccedilotildees privadas do aluno de Liebig Au-gust Wilhelm von Hofmann) Reacutee participou antes de mais nada da atmosfera do laboratoacuterio que foi de Johannes Muumlller autecircntica central de energia intelectual da Europa da metade do seacuteculo que tomado de volta de Karl Reichert e Emile Du Bois-Reymond depois da morte do grande fisioacutelogo renano pretendia uma explicaccedilatildeo experimental do vivente confiada agraves ciecircncias quiacutemicas e fiacutesicasrdquo (FORNARI 2006 p 34)

11 Confira-se o caderno N I 3b da primavera de 1875 por exemplo

Neomar Sandro Mignoni

209

mea culpa acrescenta ldquoQualquer pessoa que se permita falar publicamente em uma idade precoce geralmente eacute obrigada a discordar publicamente logo depoisrdquo (FP 23[159] final de 1876-veratildeo de 1877)

Mais do que expressar em primeira matildeo todas essas mudanccedilas Humano demasiado humano incorpora tambeacutem de maneira ineacutedita a afirmaccedilatildeo ainda que tateante em alguns aspectos de uma filosofia que se reconhece como tal Nesse sentido vale recordar aqui da jaacute mencionada carta enviada a Wagner no princiacutepio de 1878 na qual Nietzsche afirma que Humano eacute um livro seu em que pela primeira vez traccedilou os contornos de seu proacuteprio pensamento Um livro sobre o qual diz natildeo conhecer ningueacutem que tenha os mesmos pontos de vista um livro do qual ldquome orgulho de ter pensado natildeo como indiviacuteduo mas como coletividade [] Um arauto que precedeu os demais com seu cavalo e natildeo sabe bem se a fila de cavaleiros o segue ou se existe aindardquo (cf Epistolario III 676) Esse eacute tambeacutem um dos motivos que o levaram a afirmar que ldquoHumano demasiado humano eacute o monumento de uma criserdquo (EH Humano demasiado humano sect1) Aliaacutes na proacutepria obra o filoacutesofo numa espeacutecie de retrospectiva da proacutepria vida tambeacutem reflete

As fases habituais da cultura espiritual que se atingiu ao longo da histoacuteria satildeo recobradas pelos indiviacuteduos cada vez mais raacutepido Atualmente eles comeccedilam a entrar na cultura como crianccedilas movidas pela religiatildeo e aos dez anos de idade atingem talvez a vivacidade maior desse sentimento depois passando a formas mais atenuadas (panteiacutesmo) enquanto se aproximam da ciecircncia deixam para traacutes a noccedilatildeo de Deus de imortalidade e coisas assim mas sucumbem ao encanto de uma filosofia metafiacutesica Esta lhes parece tambeacutem pouco digna de creacutedito afinal e a arte parece prometer cada vez mais de modo que por algum tempo a metafiacutesica soacute persiste e sobrevive transformada em arte ou como disposiccedilatildeo artisticamente transfiguradora Mas o sentido cientiacutefico torna-se cada vez mais imperioso e leva o homem adulto agrave ciecircncia natural e agrave histoacuteria sobretudo aos meacutetodos mais rigorosos do conhecimento enquanto a arte vai assumindo uma significaccedilatildeo mais branda e mais modesta Nos dias de hoje tudo isso costuma suceder nos primeiros trinta anos da vida de um homem (HDH sect272)

Em certo sentido esta parece ser a descriccedilatildeo do percurso daquelas ideias que ateacute entatildeo permaneciam em segredo e que foram se desenvolvendo ao longo dos uacuteltimos anos e que pouco a pouco foi ganharam forccedilas ateacute o filoacutesofo natildeo possuir mais razotildees para mantecirc-las ocultas Ainda pouco antes do festival de Bayreuth e dos manuscritos de Humano demasiado humano o filoacutesofo declara ldquoNatildeo deveraacute passar muito tempo e deverei manifestar opiniotildees que satildeo consideradas ignominiosas para aquele que as nutre Tambeacutem os amigos e conhecidos se tornaratildeo tiacutemidos e assustadosrdquo (FP 5 [190] do veratildeo de 1875) De fato a mudanccedila entre os escritos anteriores e o que agora se apresenta eacute bastante perceptiacutevel seja no estilo ou no conteuacutedo Entretanto apesar das inuacutemeras mudanccedilas Nietzsche natildeo abandona seu apreccedilo por Goethe pelos antigos gregos nem tampouco deixa de ocupar-se com a cultura ou com os valores o que muda agora eacute a perspectiva cuja proeminecircncia pertence agrave ciecircncia

Todos esses novos elementos que vieram agrave tona e revelaram um Nietzsche ateacute entatildeo desconhecido levaram Rohde sobretudo mas natildeo somente ele a desconfiar do alcance da influecircncia de Reacutee Mesmo depois do filoacutesofo ter defendido sua proacutepria filosofia a imagem

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as

210

da influecircncia de Reacutee no acircmbito do Humano demasiado humano continuaraacute assombrando-o por muitos anos Natildeo por acaso em vaacuterios outros momentos o filoacutesofo sentiraacute a necessidade de defender-se dessa filiaccedilatildeo indesejada ldquoNatildeo quero mais ser confundido com ningueacutemrdquo escreveu a Koumlselitz (carta de 17 de abril de 1883) ainda em referecircncia agrave Reacutee (cf Epistolario IV 402) Ou ainda quando no prefaacutecio (sect2 sect4 e sect7) da Genealogia da moral refuta a possibilidade de ter sido influenciado por Reacutee na eacutepoca do Humano defendendo que aquele ldquolivrinho claro limpo e sagaz ndash e marotordquo natildeo passa de uma antiacutetese de Humano assim como seu meacutetodo ingecircnuo e ldquoreconhecidamente inglecircsrdquo teria sido jaacute deixado de lado por ele12

Nesse embate haacute quem defenda que Reacutee foi apenas uma figura ao acaso na vida de Nietzsche de modo que poderia haver alguma relevacircncia de ordem afetiva e psicoloacutegica mas natildeo no acircmbito intelectual13 Por outro lado haacute tambeacutem aqueles que defendem uma muacutetua influecircncia muitas vezes ateacute em sentido exagerado14 Maria Cristina Fornari em sua obra intitulada La Morale evolutiva del gregge Nietzsche legge Spencer e Mill (2006) nos oferece uma terceira possibilidade de interpretaccedilatildeo Segundo a autora a relaccedilatildeo de Nietzsche com os autores que lecirc segue por algumas vias muito mais complexas que a simples apropriaccedilatildeo ou da simples refutaccedilatildeo (cf FORNARI 2006 p 47-48)

Assim sendo o caso de Reacutee eacute sem duacutevidas um caso bastante particular Isso porque eacute o uacutenico caso em que um texto (Origens dos sentimentos morais) eacute trazido pelo filoacutesofo agrave baila em trecircs momentos distintos de sua obra publicada15 Aleacutem disso a cada momento em que eacute citado ele passa assumir um significado diverso Por exemplo se a relaccedilatildeo de Nietzsche com Reacutee depende de uma consonacircncia concreta entre intenccedilotildees e aspiraccedilotildees as quais satildeo passiacuteveis de serem localizadas na efetiva familiaridade das duas obras posteriormente agrave medida em que Nietzsche amplia e aprofunda seu horizonte filosoacutefico ele passaraacute a citar o amigo sobretudo na Genealogia da moral como um exemplo de erros de perspectiva nos quais ele mesmo havia se enredado Isso jaacute configuraria o amadurecimento de Nietzsche em seu contraste com os ldquoinglesesrdquo dos quais Reacutee em muito dependia para entatildeo visualiza-los agora enquanto expoentes da ingenuidade histoacuterica e como maus genealogistas Mas isso evidenciaria tambeacutem que o filoacutesofo tem consciecircncia de que esteve muito proacuteximo de assumir ldquoas hipoacuteteses e o deacutebito intelectual contraiacutedo com as proacuteprias fontes agrave medida em que alcanccedila uma posiccedilatildeo mais profunda e que se sustente cientificamenterdquo (FORNARI 2006 p 48)

12 ldquoSe para isso [ao propoacutesito de procurar companheiros no questionamento dos valores morais] pensei no menciona-do dr Reacutee entre outros isso ocorreu por natildeo duvidar que a natureza mesma das suas questotildees o levaria a meacutetodos mais corretos para alcanccedilar as respostas Teria me enganado nisso Meu desejo em todo o caso era dar a um olhar tatildeo agudo e imparcial uma direccedilatildeo melhor a direccedilatildeo da efetiva histoacuteria da moral prevenindo-o a tempo contra essas hipoacuteteses inglesas que se perdem no azulrdquo (GM Prefaacutecio sect7)

13 Essa eacute por exemplo a visatildeo de K Jaspers (Nietzsche Einfuumlhrung in das Verstaumlndnis seines Philosophierens Berlin 1936) e D Haleacutevy (Nietzsche Paris 1944) Ambos consideram que a influecircncia entre os dois autores eacute puramente biograacute-fica e psicoloacutegica-sentimental Para Eugen Fink (Nietzsches Philosophie Stuttgart 1960) Reacutee seria o responsaacutevel por consentir a Nietzsche que este vivesse de modo livre sua fase iluminista Jaacute Andler (Nietzsche sa vie et sa penseacutee 1958) assume que Reacutee fora um pensador infinitamente modesto frente agrave Nietzsche o que natildeo impediria Nietzsche de ter sido influenciado por ele eacute verdade poreacutem segundo o autor uma comparaccedilatildeo entre as obras evidencia que a semel-hanccedila entre elas eacute iacutenfima (cf FORNARI 2006 p 47)

14 P L Ausson por exemplo considera Reacutee como um ldquoantiacutedoto a Wagnerrdquo e sua influecircncia teria o significado de um ldquopassaporte na direccedilatildeo de um novo mundo filosoacuteficordquo Desse modo a Origem dos sentimentos morais seria como que ldquoa dinamite que permitiu de escrever o lsquoLivro para espiacuteritos livresrsquordquo (cf AUSSON 1979 p 5-68) Outros autores que seguem nessa linha satildeo B Donnellan (Friedrich Nietzsche and Paul Reacutee cooperation and conflict in Journal of the Study of Ideas 1982 p 595-612) e L Battaglia (Due Genealogie della morale Nietzsche e Reacutee in Intinerati Nietzschiani ESI Napoli 1983 p 67-93)

15 Cf HDH sect37 GM Prefaacutecio sect4 EH Humano demasiado humano sect6

Neomar Sandro Mignoni

211

Em certa medida essa seria a razatildeo daquela espeacutecie de irritaccedilatildeo e o tom vagamente ressentido com o qual Nietzsche se afasta de Reacutee Nesse sentido eacute como se Nietzsche apelasse a uma espeacutecie de sobreposiccedilatildeo quase que uma superaccedilatildeo dialeacutetica daquele que um dia fora seu amigo Isso se torna ainda mais evidente no Ecce Homo quando o filoacutesofo ao retomar passagens do Humano demasiado humano (cf HDH I sect37) retoma juntamente com elas a proposiccedilatildeo de Reacutee de que ldquoo homem moral natildeo estaacute mais proacuteximo do mundo inteligiacutevel (metafiacutesico) que o homem fiacutesicordquo para em seguida atribuiacute-la natildeo mais a Reacutee mas a si mesmo ldquo(lizes [leia-se] Nietzsche o primeiro imoralista)rdquo e o faz no intuito de apresentar a sua ldquoTransvaloraccedilatildeo de todos os valoresrdquo (cf (EH Humano demasiado humano sect6)

Interessante perceber que esse inesperado retorno a Reacutee ocorre muitos anos depois da amizade entre os dois haver-se exaurido naquele embaraccedilante affaire que teve como protagonista a jovem Lou Salomeacute Mais curioso ainda eacute que mesmo apoacutes o fim da amizade Nietzsche manteacutem um vivo diaacutelogo com o texto de Reacutee Tanto eacute que a partir de 1883 Nietzsche natildeo soacute relecirc a obra de Reacutee como tambeacutem passa a ocupar-se com algumas de suas ideias como eacute o caso do conceito de culpa e de castigo que em certa medida daratildeo a tonalidade da retomada do autor da Origem dos sentimentos morais quase como um contraponto ao Nietzsche questionador da moral

Entretanto por mais que Nietzsche tenha mantido um diaacutelogo bastante profiacutecuo com a obra de Reacutee as possiacuteveis influecircncias advindas do autor se restringem a acircmbitos bastante especiacuteficos embora natildeo menos importantes do pensamento nietzschiano como eacute o caso da moral e natildeo propriamente agrave totalidade do conjunto dos elementos que compotildeem a obra Por mais que a influecircncia de Reacutee seja significativa ela natildeo eacute determinante A nosso ver o estranhamento dos que eram proacuteximo a Nietzsche com a receacutem-publicada obra eacute muito mais fruto de uma incompreensatildeo e desconhecimento e descreacutedito para com o que de fato o filoacutesofo pensava do que com uma possiacutevel justificativa acerca das influecircncias de Reacutee

Assim sendo por estes e outros elementos vale ressaltar que Humano demasiado humano natildeo eacute uma consequecircncia direta resultante do afastamento de Nietzsche em relaccedilatildeo a Wagner muito menos o resultado das inuacutemeras leituras levadas a cabo no periacuteodo de elaboraccedilatildeo da obra e tampouco pode ser resumida na siacutentese das reflexotildees e mutuas influecircncias mantidas com Reacutee Humano demasiado humano eacute antes de tudo o fruto de um longo e silencioso processo de amadurecimento intelectual gestado ao longo de vaacuterios anos mas que por razotildees obvias durante a fase wagneriana permaneceu confiado apenas ao material natildeo publicado dando origem agravequela cisatildeo entre os escritos publicados de cunho wagneriano e estes que satildeo mantidos no anonimato de suas liccedilotildees e anotaccedilotildees privadas

Nesse sentido se bem analisarmos os escritos anteriores ao Humano demasiado humano veremos guardadas as devidas proporccedilotildees uma intensa continuidade e coerecircncia entre os escritos juvenis marcados pelo elogio de Demoacutecrito o esboccedilo sobre e teleologia e a impiedosa criacutetica agrave metafiacutesica de Schopenhauer ainda na segunda metade da deacutecada de 1860 para com as aulas sobre os preacute-platocircnicos e o natildeo publicado escrito acerca de A filosofia na era traacutegica dos gregos da primeira metade da deacutecada de 1870 e por fim para com a filosofia do espiacuterito livre da segunda metade da deacutecada de 1870 Tatildeo evidente quanto as diferenccedilas entre Humano demasiado humano e as obras publicadas nos anos anteriores especialmente O Nascimento da Trageacutedia satildeo as tensotildees natildeo resolvidas entre a forccedila miacutetica

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as

212

coesiva da arte caracteriacutestico dos escritos de cunho wagneriano e o espiacuterito analiacutetico e desagregador da filosofia tatildeo evidente nas liccedilotildees sobre os preacute-platocircnicos

Humano demasiado humano resolve essas cisotildees agrave medida em que mantendo a coerecircncia com o desenvolvimento intelectual de Nietzsche iniciado antes mesmo de conhecer Wagner devolve a autonomia e a liberdade de pensamento ao seu autor Essas satildeo as razotildees pelas quais a obra figura enquanto o ldquomonumento de uma criserdquo com o qual foi possiacutevel dar um ldquobrusco fim a todo lsquoembuste superiorrsquo lsquoidealismorsquo lsquosentimento belorsquordquo com os quais fora contagiado E o papel de Reacutee em todo esse processo me parece ser justamente o de coadjuvante no proacuteprio processo de busca pela autonomia filosoacutefica que lhe garantisse a libertaccedilatildeo do espiacuterito Atraveacutes dele Nietsche logrou natildeo soacute discutir e esclarecer suas proacuteprias convicccedilotildees mas tambeacutem tomar conhecimento e entrar em contato com uma gama de autores que certamente em muito contribuiacuteram com sua filosofia

Portanto mais do que uma ponte atraveacutes da qual Nietzsche pode acessar uma seacuterie de outros autores a influecircncia de Reacutee foi sem duacutevidas fundamental para que aquele idecircntico plano de interesses e aspiraccedilotildees convergissem aos propoacutesitos que o filoacutesofo almejava com sua obra A influecircncia certamente foi muacutetua poreacutem nunca determinante razatildeo pela qual Nietzsche pode rebater a provocaccedilatildeo de Rohde solicitando que este buscasse no Humano demasiado humano natildeo Reacutee mas Nietzsche E por Nietzsche eu acrescentaria buscar natildeo apenas o que abandona Wagner e Schopenhauer mas sobretudo o Nietzsche interessado em Demoacutecrito que se ocupou com as questotildees da teleologia que fez duras criacuteticas agrave metafisica de Schopenhauer o Nietzsche filoacutelogo interessado nos neoplatocircnicos ou ainda aquele Nietzsche que dedicou grande parte de seu tempo ao estudo das ciecircncias naturais Talvez com isso o significado de ldquoum livro para espiacuteritos livresrdquo se torne ainda mais evidente

Neomar Sandro Mignoni

213

Referecircncias bibliograacuteficasAUSSON Paul-Laurent Nietzsche et le Reacuteealisme Eacutetude-Preface In REacuteE Paul De lrsquoorigine des sentiments moraux Paris Presses Universitaires de France 1982DrsquoIORIO Paolo Nietzsche na Itaacutelia A viagem que mudou os rumos da filosofia Trad Joana Angeacutelica drsquoAvila Melo Rio de Janeiro Zahar 2014FAZIO Domenico M Paul Reacutee un profilo filosofico Bari Palomar Alternative 2003FORNARI Maria Cristina La morale evolutiva del gregge Nietzsche legge Spencer e Mill Pisa Edizioni ETS 2006NIETZSCHE Friedrich Digitale Kritische Gesamtausgabe (eKGWB) ndash Digital version of the German critical edition of the complete works of Nietzsche edited by Giorgio Colli and Mazzino Montinari The eKGWB is edited by Paolo DrsquoIorio and published by Nietzsche Source httpwwwnietzschesourceorg_____ Briefwechsel Kritische Gesamtausgabe hrsg von G Colli und M Montinari de Gruyter Berlin 1975 ssg (KGB)_____ Epistolario Vol III 1875-1879 Edizione stabilita da Giorgio Colli e Mazzino Montinari Milano 1995_____ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007_____ Humano Demasiado Humano I um livro para espiacuteritos livres Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004_____ Genealogia da Moral uma polecircmica Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ Triangolo di Lettere Cartegio di Friedrich Nietzsche Lou von Salomeacute e Paul Reacutee A cura di M Carpitella Adelphi Milano 1999SMALL Robin Nietzsche and Reacutee a star friendship New York Oxford University Press Inc 2005

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)

214

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)1

Newton Pereira Amusquivar Junior2

A interpretaccedilatildeo de Nietzsche sobre o caraacuteter agoniacutestico de HeraacuteclitoPara Nietzsche a luta tem uma grande importacircncia na sua filosofia esse eacute um dos

motivos de admiraccedilatildeo a Heraacuteclito e o filoacutesofo alematildeo reconhece muito bem o caraacuteter agoniacutestico natildeo apenas em Heraacuteclito mas tambeacutem nos gregos em geral No texto A disputa de Homero presente em Cinco prefaacutecios para cinco livros natildeo escritos Nietzsche cita e traduz uma passagem de Trabalhos e dias de Hesiacuteodo em que identifica e diferencia duas deusas Eris (ἔρις)

Uma Eris deve ser tatildeo louvada quanto a outra deve ser censurada pois diferem totalmente no acircnimo essas duas deusas Pois uma delas conduz agrave guerra maacute e ao combate a cruel Nenhum mortal preza sofrecirc-la pelo contraacuterio sob o jugo da necessidade prestam-se as honras ao fardo pesado dessa Eris segundo os desiacutegnios dos imortais Ela nasceu como mais velha da noite negra a outra poreacutem foi posta por Zeus o regente altivo nas raiacutezes da Terra e entre os homens como algo bem melhor Ela conduz ateacute mesmo o homem sem capacidades para o trabalho e um que carece de posses observa o outro que eacute rico e entatildeo se apressa a semear e plantar do mesmo modo que este e a ordenar bem a casa o vizinho rivaliza com o vizinho que se esforccedila para seu bem-estar Boa eacute essa Eris para os homens Tambeacutem o oleiro guarda rancor do oleiro e o carpinteiro do carpinteiro o mendigo inveja o mendigo e o cantor inveja o cantor(NIETZSCHE 2007 p 69)

Nietzsche argumenta contra a interpretaccedilatildeo moderna que considera esses versos como natildeo autecircnticos por considerar a boa Eris com rancor e inveja pois Aristoacuteteles e os gregos em geral natildeo perceberam nenhuma contradiccedilatildeo na referecircncia a tais versos para a boa Eris dado que aponta para uma Eris como maacute e depois enaltece uma outra como boa ldquoaquela que como ciuacuteme rancor inveja estimula os homens para a accedilatildeo mas natildeo para a luta aniquiladora e sim para a accedilatildeo da disputardquo (NIETZSCHE 2007 p 70) Diferente do nosso tempo moderno o grego natildeo vecirc a inveja como defeito mas como qualidade O grego tem como caracteriacutestica a disputa e Nietzsche nota isso em Xenoacutefanes de Colofon em relaccedilatildeo a Homero em Platatildeo com sua disputa aos sofistas e artistas no ostracismo dos efeacutesios ao banir Hermodoro pois ldquoelimina-se aqueles que sobressaem para que o jogo da disputa desperte novamenterdquo (NIETZSCHE 2007 p 72) Haacute sempre vaacuterios gecircnios 1 Esse trabalho faz parte da minha tese de doutorado realizado na UNICAMP com o financiamento da bolsa CAPES 2 Doutorando em filosofia na UNICAMP

Newton Pereira Amusquivar Junior

215

que se estimulam na disputa Assim nas disputas os gregos buscavam honrar a sua cidade natal nos jogos oliacutempicos na educaccedilatildeo os jovens foram educados a disputarem entre si assim como seus educadores disputavam entre si como os sofistas e os artistas musicais e dramaturgo

Por conta disso em Os filoacutesofos preacute-platocircnicos quando Nietzsche interpreta Heraacuteclito ele coloca oπόλεμος como o seu terceiro conceito principal (NIETZSCHE 1995 p 272) E ao se referir ao fragmento DK3 B80 ele considera como uma das maiores ideias ldquo uma ideia que foi retirada do mais profundo fundamento da essecircncia grega Isso eacute a boa Eacuteris de Hesiacuteodo tornada o princiacutepio do mundordquo (NIETZSCHE 1995 p 272) A δίκη como ἔρις eacute essa ideia grega que parte da boa Eacuteris que foi analisada em A disputa de Homero ou seja que estimula a disputa e natildeo leva a completa aniquilaccedilatildeo Nietzsche nota tambeacutem em A filosofia na era traacutegica dos gregos que aqui ldquotrata-se da boa Eacuteris de Hesiacuteodo transfigurada em princiacutepio cosmoloacutegico ()rdquo(NIETZSCHE 2008 p 60) Assim Heraacuteclito transferiu a disputa da luta social dos gregos para o que haacute de mais universal a engrenagem do cosmo A vitoacuteria de um natildeo destroacutei completamente seu oponente jaacute que a destruiccedilatildeo tambeacutem faria cessar a luta dando ensejo ao predomiacutenio nefasto da maacute Eris

O πόλεμος como legalidade do devir aparece de maneira ainda mais niacutetida em A filosofia na era traacutegica dos gregos considerando todo o vir-a-ser como algo que surge da guerra entre opostos

Todo vir-a-ser surge da guerra dos opostos as qualidades determinadas que se nos aparecem como sendo duradouras exprimem tatildeo-soacute a prevalecircncia momentacircnea de um dos combatentes mas com isso a guerra natildeo chega a seu termo poreacutem a luta segue pela eternidade Tudo se daacute de acordo com esse conflito e eacute precisamente esse conflito que revela a justiccedila eterna(NIETZSCHE 2008 p 60)

Nessa passagem pode-se notar cinco aspectos importantes da interpretaccedilatildeo de Nietzsche sobre Heraacuteclito primeiramente o devir surge da guerra dos opostos entatildeo o devir natildeo eacute um simples fluxo sem nenhuma unidade ele tem sim sua unidade mas ela eacute formada pelo πόλεμος ou seja uma luta constante entre os opostos Em segundo lugar a determinaccedilatildeo e a unidade do devir exprime uma predominacircncia do combatente vitorioso logo natildeo eacute uma determinaccedilatildeo absoluta mas completamente relativa com a luta que ainda estaacute presente mesmo com o predomiacutenio de um dos opostos Em terceiro lugar a luta continua eternamente ela natildeo cessa pois o predomiacutenio de um dos opostos eacute temporaacuterio e mesmo com ele haacute ainda uma luta que impotildee resistecircncia Em quarto lugar Nietzsche faz referecircncia ao fragmento DK B80 em que considera que tudo se daacute segundo conflito logo πόλεμος eacute universal estaacute presente em tudo Por uacuteltimo eacute desse conflito que se tem a justiccedila eterna haacute uma clara referecircncia novamente ao DK B80 em que justiccedila (δίκη) eacute discoacuterdia (ἔρις) O que significa que a justiccedila eacute discoacuterdia Para Nietzsche isso parece significar que eacute na proacutepria luta entre os opostos que se forma a legalidade e justiccedila natildeo haacute um juiz neutro e fora do conflito para julgar mas os proacuteprios lutares satildeo os juiacutezes

Enquanto a imaginaccedilatildeo de Heraacuteclito mensurava o universo incansavelmente movido a ldquoefetividaderdquo com o olho do feliz espectador que vecirc inumeraacuteveis pares combaterem numa alegre competiccedilatildeo sob a

3 Indico a citaccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito por meio da sigla DK indicando a organizaccedilatildeo dos fragmentos dos preacute-socraacuteticos realizada por Hermann Diels e Walther Kranz

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)

216

eacutegide de riacutegidos aacuterbitros adveio-lhe um pressentimento mais elevado ele jaacute natildeo podia tomar os pares beligerantes e os juiacutezes como coisas separadas entre si haja vista que os proacuteprios juiacutezes pareciam lutar e os proacuteprios lutadores pareciam julgar a si mesmos ndash e jaacute que no fundo percebeu apenas uma justiccedila eternamente dominante ele ousou exclamar ldquoO proacuteprio conflito do muacuteltiplo eacute a uacutenica justiccedilardquo E em geral o um eacute o muacuteltiplo ()rdquo(NIETZSCHE 2008 p 62)

Natildeo haacute nenhum ser fora do devir para poder julgar a luta entre os opostos Por isso a justiccedila ocorre pelo proacuteprio conflito pela boa discoacuterdia (ἔρις) que estimula a disputa entre os opostos e manteacutem o devir continuamente numa alternacircncia de predomiacutenio de um com o outro pois ateacute mesmo num momento estaacutevel a luta estaacute presente de maneira latente

Para ilustrar como o πόλεμος estaacute eternamente presente no devir Nietzsche se utiliza de uma passagem de O mundo como vontade e representaccedilatildeo que trata da constante alteraccedilatildeo na natureza causada pela eterna disputa pela mateacuteria na qual se engajam todos os indiviacuteduos Esse combate inexoraacutevel reflete a discoacuterdia interna da vontade que ao objetivar-se na multiplicidade da realidade empiacuterica crava incessantemente os dentes na sua proacutepria carne

Cada grau de objetivaccedilatildeo da Vontade combate com outros por mateacuteria espaccedilo e tempo Constantemente a mateacuteria que subsiste tem de mudar de forma na medida em que pelo fio condutor da causalidade entra em cena e assim arrebatam uns aos outros a mateacuteria pois cada um quer manifestar a proacutepria Ideia Esse conflito pode ser observado em toda natureza () Tal conflito entretanto eacute apenas a manifestaccedilatildeo da discoacuterdia essencial da Vontade consigo mesma () Assim a Vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria carne () (SCHOPENHAUER 2005 p 211)

Notamos novamente como Nietzsche percebe em fragmentos de Heraacuteclito aspectos da filosofia schopenhaueriana da vontade natildeo soacute na concepccedilatildeo de devir como pura sucessatildeo de tempo mas tambeacutem no proacuteprio πόλεμος Entretanto aqui Nietzsche faz uma ressalva importante em Schopenhauer o conflito na natureza eacute um tanto diferente do πόλεμος de Heraacuteclito ldquona medida que para o primeiro a luta eacute uma prova da cisatildeo interna da vontade de vida um devorar-se-a-si-mesmo desse impulso opressivo e sombrio um fenocircmeno horriacutevel que de maneira alguma traz felicidaderdquo (NIETZSCHE 2008 p 61) Eacute justamente nesse ponto que a filosofia de Heraacuteclito se distancia de Schopenhauer para este a luta eacute resultado de uma dilaceraccedilatildeo inerente agrave natureza metafiacutesica da vontade para Heraacuteclito segundo a interpretaccedilatildeo de Nietzsche no lugar disso a proacutepria luta eacute a instacircncia geradora da unidade

Com isso nota-se que Nietzsche viu em Heraacuteclito uma fonte para afirmar ainda mais a luta dentro da efetividade logo a luta assim como a transitoriedade e o sofrimento natildeo constituem uma objeccedilatildeo contra a existecircncia tal como ocorre com Schopenhauer Essa interpretaccedilatildeo seraacute de suma importacircncia para poder formar uma concepccedilatildeo cosmoloacutegica em constante luta tambeacutem no conceito de vontade de poder Com a interpretaccedilatildeo de Nietzsche sobre Heraacuteclito podemos notar primeiramente que o πόλεμος eacute universal estaacute sempre presente e eacute comum o devir conteacutem a constante luta entre esses opostos e a justiccedila (δίκη) eacute discoacuterdia (ἔρις) natildeo haacute um juiz que julga os lutadores mas eacute a proacutepria

Newton Pereira Amusquivar Junior

217

luta que configura a justiccedila Tambeacutem natildeo haacute uma unidade totalizadora que resgate os combatentes natildeo haacute nada fora do fluxo do devir a partir e em referecircncia ao qual este possa ser julgado

O πόλεμος na funccedilatildeo do ser orgacircnico como vontade de poder Nietzsche deu grande importacircncia para a fisiologia medicina e ciecircncia natural e

isso se mostra no grande nuacutemero de escritos de ciecircncia natural adquirido ou emprestado por ele Por conta disso eacute bem notaacutevel nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche uma relaccedilatildeo entre vontade de poder e o ser orgacircnico Em trecircs fragmentos poacutestumos4 (26 [273] 1884 35 [15] 1885 e 1 [30] 1885-6) Nietzsche considera a vontade de poder como funccedilatildeo do ser orgacircnico deixando portanto claro a importacircncia do ser orgacircnico para compreender a vontade de poder Ateacute o momento a vontade de poder foi analisada com relaccedilatildeo ao ser e devir sendo pela explicaccedilatildeo de todos os acontecimentos mas agora notamos essa relaccedilatildeo da vontade de poder com o ser orgacircnico Isso eacute compreensiacutevel pelo fato de Nietzsche natildeo ter uma ontologia separada do ser orgacircnico pois dar uma estabilidade de algo no devir se relaciona com o ser orgacircnico Poreacutem o que significa a vontade de poder como funccedilatildeo do ser orgacircnico O iniacutecio da resposta a essa pergunta pode estar na frase ldquogovernar e obedecer como expressatildeo da vontade de poder no orgacircnicordquo (39 [13] 1885) Nietzsche vecirc na natureza orgacircnica uma relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo mas essa relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo natildeo ocorre com um puro mandar e obedecer como pode parecer nessa citaccedilatildeo mas eacute tambeacutem resistecircncia e luta Em outro fragmento poacutestumo isso fica mais niacutetido (14 [174] de 1888)

O ser humano natildeo busca o prazer e natildeo evita o desprazer se entende ao qual o famoso prejuiacutezo que me oponho com isso prazer e desprazer satildeo meras consequecircncias meros fenocircmenos concomitantes - o que o ser humano quer o que cada parte minuacutescula de um organismo quer eacute um plus de poder Ao se esforccedilar-se por consegui-lo se produzem tanto o prazer como o desprazer a partir dessa vontade o organismo busca resistecircncia necessita algo que se ponha contra O desprazer enquanto impedimento da vontade de poder eacute pois um faktum normal o ingrediente normal de todo acontecer orgacircnico o ser humano natildeo desvia dele pelo contraacuterio o necessita constantemente toda vitoacuteria todo sentimento de prazer todo acontecer pressupotildee uma resistecircncia superada

Ao considerar que o ser humano e o ser orgacircnico natildeo buscam prazer e nem evitam o desprazer Nietzsche coloca como princiacutepio cardial do organismo a vontade de poder ou seja busca mais poder mas essa busca conteacutem resistecircncia sendo por isso um fato normal da dinacircmica da vontade de poder Nesse mesmo fragmento (14 [174] 1888) Nietzsche toma como exemplo a nutriccedilatildeo primitiva do protoplasma que estende seus pseudoacutepodos para buscar algo que resiste natildeo por fome mas pela vontade de poder logo nutriccedilatildeo eacute um fenocircmeno posterior de se tornar mais forte e que encontra como consequecircncia uma resistecircncia que estabelece uma luta

A luta (ou o πόλεμος) tem uma grande importacircncia na dinacircmica da vontade de poder presente na relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e essa luta natildeo eacute espaccedilo ou alimento mas pela proacutepria luta como afirma o fragmento poacutestumo 26 [276] 1884

4 Os fragmentos poacutestumos foram consultados em Friedrich Nietzsche Digital critical edition of the complete works and letters based on the critical text by G Colli and M Montinari BerlinNew York de Gruyter 1967- edited by Paolo DrsquoIorio no site httpwwwnietzschesourceorgeKGWB Acesso em 18 Maio de 2018 Como natildeo haacute paacutegina eu irei me referir ao fragmento poacutestumo pelo nuacutemero catalogado e o ano

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)

218

Quando dois seres orgacircnicos colidem quando soacute haacute luta pela vida ou pela alimentaccedilatildeo como Eacute necessaacuterio que haja a luta pela luta e dominar eacute suportar o contrapeso da forccedila mais fraca portanto um modo de continuaccedilatildeo da luta Obedecer tambeacutem eacute uma luta enquanto ainda ficar forccedila para resistir

Nessa passagem fica ainda mais claro que a relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo (mando e obediecircncia) se estabelece por meio da luta e da resistecircncia como afirma Frezzatti ldquoA dominaccedilatildeo (e a submissatildeo) eacute um aspecto do impulso vital a relaccedilatildeo entre o dominador (o que comanda) e o dominado (o que resiste) eacute a proacutepria luta e portanto a busca por dominaccedilatildeo prevalece sobre a conservaccedilatildeordquo (FREZZATTI 2014 p73)

Natildeo podemos deixar de lado o fato dessa importacircncia da luta do ser orgacircnico ser natildeo apenas uma influecircncia de Heraacuteclito mas tambeacutem de bioacutelogos do seacuteculo XIX que Nietzsche entrou em contato entre 1881 e 1883 Entre esses bioacutelogos destaco Wilhelm Roux pois para ele a luta tambeacutem ocorre na proacutepria constituiccedilatildeo do organismo

Nietzsche adquiriu e leu o livro A luta das partes no organismo (Der Kampf der Theile im Organismus) de Roux e foi influenciado por ele mas tambeacutem tinha sua visatildeo criacutetica em relaccedilatildeo ao autor Focarei aqui mais a influecircncia pois o tema que mais me interessa no momento eacute mostrar o πόλεμος na vontade de poder e acredito que isso fica mais evidente notando a luta nos seres orgacircnicos como funccedilatildeo de mando e obediecircncia da vontade de poder

Para Roux o organismo eacute resultado da luta entre suas proacuteprias moleacuteculas ceacutelulas tecidos e oacutergatildeos Haacute trecircs momentos em que ocorre a luta entre as partes do organismo No primeiro momento a luta das moleacuteculas orgacircnicas pelo espaccedilo o liacutequido nutritivo exterior a ceacutelula favorece mais a assimilaccedilatildeo de determinadas moleacuteculas como o espaccedilo molecular eacute limitado entatildeo se produz entre as moleacuteculas uma competiccedilatildeo no qual a que tem maior nuacutemero definiraacute o tipo da ceacutelula Num segundo momento se tem a luta entre ceacutelulas no qual da mesma forma que as moleacuteculas ocorrem reaccedilotildees aos fatores externos e ocupa um espaccedilo limitado do organismo As ceacutelulas que se nutrem mais raacutepidos satildeo as que se tornam predominantes Pela reproduccedilatildeo das ceacutelulas a diferenciaccedilatildeo no niacutevel superior ou seja dos tecidos se acentua No terceiro momento a luta eacute entre os tecidos e os oacutergatildeos que segue a mesma loacutegica das ceacutelulas mas haacute limites colocados pelo organismo como um todo pois uma predominacircncia muito forte de certos tecidos ou oacutergatildeos podem ser nocivos ao organismo como um todo logo a luta soacute prossegue na medida em que contribui para o uso econocircmico do alimento e do espaccedilo

Assim diferente de Darwin que pressupotildee os organismos dados para a luta pela vida Roux explica a gecircnese do organismo pela luta de suas partes que o compotildee Soacute pode haver luta entre os seres vivos se cada um se conservar na sua luta interior por espaccedilo e nutriccedilatildeo presente nas ceacutelulas tecidos e os oacutergatildeos Essa explicaccedilatildeo da gecircnese do organismo pela luta tem convergecircncia com Heraacuteclito e o proacuteprio Roux sabe disso e cita o fragmento DK B53 ldquo lsquoA briga eacute o pai das coisasrsquo diz Heraacuteclito ()rdquo (ROUX 1881 p 65) destacando tambeacutem outros autores como Empeacutedocles Darwin e Wallace para os quais tambeacutem a luta eacute fundamental

Assim a concepccedilatildeo de que a formaccedilatildeo do organismo ocorre por meio da luta tem como precursor Heraacuteclito Nietzsche daacute uma grande importacircncia ao Roux justamente por poder atraveacutes dele comprovar o πόλεμος como funccedilatildeo do ser orgacircnico enquanto vontade

Newton Pereira Amusquivar Junior

219

de poder Muumlller-Lauter destaca que ldquoo entendimento de Nietzsche do organismo como uma multiplicidade de vontade de poder que luta uma com a outra foi preparado pela sua leitura de Rouxrdquo(MUumlLLER-LAUTER 1999 p 102)

Portanto o que predomina na natureza natildeo eacute uma legalidade mas sim uma constante luta que como jaacute destacamos conteacutem uma relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo de forccedilas da vontade de poder Isso fica bem niacutetido no fragmento poacutestumo 40 [55] de 1885

A legalidade da natureza eacute uma falsa interpretaccedilatildeo humanitaacuteria Trata-se de uma constataccedilatildeo absoluta da relaccedilatildeo de poder de toda brutalidade sem a suavizaccedilatildeo que a vida orgacircnica traz consigo a antecipaccedilatildeo do futuro cuidado astuacutecia e esperteza em resumo o espiacuterito A absoluta instantaneidade da vontade de poder governa no homem (e jaacute na ceacutelula) essa constataccedilatildeo eacute um processo que desloca-se continuamente com o crescimento de todos participantes ndash uma luta supondo que se entenda essa palavra um sentido amplo e profundo como para entender tambeacutem a relaccedilatildeo do que domina com o dominado como combate e da relaccedilatildeo do que obedece com o que domina como resistecircncia

Nesse sentido Nietzsche se afasta do mecanicismo de Roux pois natildeo eacute de uma relaccedilatildeo mecacircnica das partes do organismo de busca por alimento que se constitui a luta mas a luta por si mesmo se constitui como relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo de mando e obediecircncia da vontade de poder ldquoa progressatildeo do orgacircnico natildeo estaacute ligado agrave nutriccedilatildeo mas ao poder de comandar e controlar a nutriccedilatildeo eacute somente um resultadordquo (26 [272] 1884) De modo semelhante Nietzsche tambeacutem afirma ldquoA alimentaccedilatildeo soacute uma consequecircncia da apropriaccedilatildeo insaciaacutevel da vontade de poderrdquo (2[76] 1885-6) Assim a alimentaccedilatildeo tem sua importacircncia para fortalecer o ser orgacircnico e natildeo para o conservar como afirma Meca ldquoO impulso baacutesico da vida natildeo eacute conservar uma unidade ou uma identidade estaacutevel alguma vez conseguida mas sim nutrir-se crescer e exceder em cada momento o jaacute alcanccedilado esforccedilando-se para tornar-se cada vez mais forte e ser mais apropriando-se de tudo aquilo que lhe puder fazer crescerrdquo(MECA 2011 p20)

Nesse sentido a vontade de poder visa conservar a proacutepria luta e natildeo a constituiccedilatildeo do ser orgacircnico ldquoem virtude do ser orgacircnico natildeo se quer conservar o ser mas sim a proacutepria luta() O que chamamos de lsquoconsciecircnciarsquo e lsquoespiacuteritorsquo eacute apenas meio e instrumento mediante se quer conservar natildeo um sujeito mas sim uma lutardquo (1[124] 1886) Portanto a busca por se tornar mais forte da vontade de poder tem como pressuposto a luta natildeo por conservaccedilatildeo mas por mais poder por isso luta por si mesmo

No entanto a vontade de poder deve ser vista como uma multiplicidade ou seja natildeo eacute apenas uma luta por dominaccedilatildeo mas tambeacutem haacute uma resistecircncia contra a dominaccedilatildeo Nietzsche destaca isso em dois fragmentos poacutestumos um ele relaciona com a incorporaccedilatildeo do protoplasma e afirma logo no comeccedilo ldquoA vontade de poder soacute pode se manifesta diante de resistecircncia ela busca portanto por aquilo que resiste a elardquo (9 [151] 1887]) Em um outro fragmento poacutestumo (26[272] 1884) Nietzsche relaciona essa necessidade de resistecircncia com o desprazer

O desprazer eacute um sentimento com inibiccedilatildeo mas dado que o poder soacute pode ser consciente com inibiccedilotildees entatildeo o desprazer eacute um ingrediente necessaacuterio de toda atividade (toda atividade estaacute direcionada contra algo que deve ser superado) A vontade de poder portanto anseia por

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)

220

resistecircncias por desprazer No fundo haacute em todo organismo vivo uma vontade de sofrimento (contra ldquofelicidaderdquo como ldquometardquo)

Assim a vontade de poder busca o que lhe daacute desprazer o que faz resistecircncia contra sua forccedila Isso implica que o sofrimento natildeo pode ser uma objeccedilatildeo contra a existecircncia como pensou Schopenhauer A dor natildeo eacute motivo para a negaccedilatildeo da vida antes o contraacuterio eacute verdadeiro a afirmaccedilatildeo da vida inclui necessariamente a afirmaccedilatildeo da dor O que eacute poderoso ama ser desafiado e por sua forccedila contra uma resistecircncia jaacute o dominado sempre teraacute poder para pode resistir como jaacute citamos Zaratustra fala ldquoRebeliatildeo ndash esta eacute a nobreza do escravordquo (NIETZSCHE 2011 p 47) A vontade de poder natildeo eacute uma coisa uma res ou substacircncia mas eacute uma relaccedilatildeo de poder que visa acumular domiacutenio para ser mais forte e isso implica que haja resistecircncia por isso ela eacute muacuteltipla e natildeo una

E o desprazer natildeo torna o poder mais fraco pelo contraacuterio num fragmentos poacutestumo de anos depois (1887) Nietzsche retomaraacute esse tema do desprazer e resistecircncia da vontade de poder como o que a faz ela ser reforccedilada (11[77] 1887)

Conforme as resistecircncias que uma forccedila para se tornar senhor sobre elas assim precisa crescer a medida do fracasso e a fatalidade que com ele se provocam e na medida em que toda forccedila soacute pode descarregar diante de resistecircncia eacute necessaacuterio em toda accedilatildeo o ingrediente do desprazer Esse desprazer atua apenas como estiacutemulo da vida e fortalece a vontade de poder

Com isso notamos que a resistecircncia diante da vontade de poder fortalece e por isso faz parte da sua proacutepria dinacircmica logo a luta eacute central para a compreensatildeo da vontade de poder pois somente com conflito se tem a busca por mais poder Se a vontade de poder estaacute em tudo entatildeo tudo tambeacutem eacute luta tal como pensou Heraacuteclito E com isso se deve notar uma influecircncia do filoacutesofo grego em Nietzsche tal como observou Paul van Tongeren ldquoO fato de que tudo eacute vontade de poder traz consigo a noccedilatildeo de que nessa perspectiva tudo eacute compreendido a partir de tal combate No mesmo contexto desse tema do combate novamente se mostra a influecircncia de Heraacuteclitordquo (TONGEREN 2012 p225)

Mostramos aqui como a vontade de poder eacute funccedilatildeo do ser orgacircnico pela luta como jaacute destacamos a vontade de poder natildeo estaacute apenas no ser orgacircnico mas tambeacutem no inorgacircnico como mostramos isso no fragmento poacutestumo (34 [247] 1885) A vontade de poder estaacute no mundo em sua totalidade e numa dinacircmica de forccedila que o aproxima de Heraacuteclito por conta da luta Eacute o que pretendo demonstrar agora para depois de verificar essa aproximaccedilatildeo entre Nietzsche e Heraacuteclito notar aspectos ontoloacutegicos que o aproxima mais do pensador grego e se afasta da interpretaccedilatildeo de Heidegger sobre a vontade de poder como ser do ente

Newton Pereira Amusquivar Junior

221

Referecircncias bibliograacuteficas FREZZATTI Junior Wilson Antonio Nietzsche contra Darwin 2ordf ediccedilatildeo ampliada Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 HERAacuteCLITO Die Fragmente der Vorsokratiker Organizada por Hermann Diels e Walther Kranz Berlim Weidmann 1989MECA Diego Saacutenchez ldquoVontade de potecircncia e interpretaccedilatildeo como pressupostos de todo processo orgacircnicordquo in Cadernos Nietzsche no 28 p13-47 2011 MUumlLLER-LAUTER W Der Organismus als innerer Kampf Der Einfluss von Wilhem Roux auf Friedrich Nietzsche In Uumlber Werden und Wille zur Macht Nietzsche-Interpretationen I Walter de Gruyter Berlin e New York 1999NIETZSCHE F A filosofia na era traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Fernando R de Moraes Barros Satildeo Paulo Hedra 2008 _____ Assim falou Zaratustra Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011 _____ Die vorplatonischen Philosophen In Werke Gesamtausgabe Zweite Abteilung Vierter Band Hereausgegeben von Fritz Bormann Berlin New York Wlater de Guyter1995_____Digital critical edition of the complete works and letters based on the critical text by G Colli and M Montinari BerlinNew York de Gruyter 1967- edited by Paolo DrsquoIorio no site httpwwwnietzschesourceorgeKGWB Acesso em 18 Maio de 2018_____Cinco prefaacutecios para cincos livros natildeo escritos 7 Letras Rio de Janeiro 2007 ROUX Wilhelm Der Kampf der Theile im Organismus ein Beitrag zur Vervollstaumlndigung der Mechanischen Zweckmaumlssigkeitslehre Hanse Leipizg 1881 SCHOPENHAUER A O mundo como vontade e representaccedilatildeo 1ordm tomo Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 TONGEREN Paul van A moral da criacutetica de Nietzsche agrave moral estudo sobre Para aleacutem de bem e mal Traduccedilatildeo Jorge Luiz Viesenteiner Curitiba Champagnat 2012

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees

222

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees desinteressadas em Nietzsche

Rafael dos Santos Ramos1

Elementos para uma genealogia da razatildeo (praacutetica)A crenccedila em construir algum conhecimento (Erkenntniss) ou mesmo qualquer

ideia que se pretenda fixar eacute segundo Nietzsche um erro (Irrtum) necessaacuterio que desde os tempos mais primitivos permitiu agrave espeacutecie humana conservar-se e expandir-se no transcorrer histoacuterico do mundo O aspecto negativo destes erros se daacute em parte pelo modo com que os filoacutesofos da tradiccedilatildeo conceberam o homem natildeo como Nietzsche o descreve enquanto vontade de potecircncia2 (Wille zur Macht) mas sim como uma dualidade razatildeocorpo Segundo estes filoacutesofos a racionalidade caracterizaria certa distinccedilatildeo e primazia da espeacutecie em relaccedilatildeo agraves outras mas tambeacutem desempenharia um controle legiacutetimo sobre os instintos (o corpo) Para Nietzsche o corpo eacute prova do devir o absoluto fluxo das forccedilas esta afirmativa torna toda pretensatildeo humana de fixidez uma ilusatildeo (IIIusion Taumluschung)

O desenvolvimento da linguagem e da moral quando analisadas de perto expressariam minuciosamente algumas nuances de tais ilusotildees ou erros a proacutepria noccedilatildeo de consciecircncia (Bewuβtsein) eacute tambeacutem um exemplo disso Em A Gaia ciecircncia (livro I sect 10 e sect11) Nietzsche apresenta seu projeto de ldquoincorporaccedilatildeo do saberrdquo em que expliacutecita que durante a evoluccedilatildeo e a histoacuteria incorporamos erros fundamentais em nossa cogniccedilatildeo

Por acreditarem jaacute terem a consciecircncia os homens natildeo se empenharam em adquiri-la ndash e ainda hoje natildeo eacute diferente A tarefa de incorporar o saber e torna-lo instintivo eacute ainda inteiramente nova apenas comeccedila a despontar para o olho humano dificilmente perceptiacutevel ndash uma tarefa vista apenas por aqueles que entenderam que ateacute hoje foram incorporados somente os nossos erros e que toda nossa consciecircncia diz respeito a erros (NIETZSCHE 2001 pg 63)

A noccedilatildeo nietzschiana de erro designa aquilo que o autor entende por conhecimento No entanto por hora eacute importante destacar que as representaccedilotildees ldquoerrosrdquo (como exemplo do conteuacutedo de nossa consciecircncia descrito acima por Nietzsche) tiveram a utilidade de

1 Mestrando no PPGFIL pela Universidade Federal de Pelotas2 Esta expressatildeo natildeo pode ser concebida como mera unidade ou essecircncia mas enquanto multiplicidade de forccedilas que a

todo tempo se reconfiguram no fluxo do eterno vir a ser eacute forccedila que faz nas palavras de Marton ldquoQualidade de todo acontecer ela diz respeito ao efetivar-se das forccedilas Mais proacuteximo da archeacute dos preacute-socraacuteticos que daacute entelecheacuteia de Aristoacuteteles o conceito nietzschiano de vontade de potecircncia constitui um dos principais pontos de ruptura em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo filosoacuteficardquo (Marton 2016 pg 425)

Rafael dos Santos Ramos

223

conservaccedilatildeo e expansatildeo da vida Neste sentido podemos afirmar que tais erros acenam para uma perspectiva positiva dos axiomas que se pretendiam absolutos (a fixidez de uma ideia ndash a ldquoverdaderdquo por exemplo)

Mas por outro lado em uma perspectiva negativa o engendramento destas ideias fixas em certo momento histoacuterico teriam contribuiacutedo para que o humano negasse aquela afirmativa que o potildee no mesmo status de todos os outros seres vivos ou seja a confianccedila em certos axiomas (erros) construiacutedos pelos proacuteprios humanos no transcorrer histoacuterico do mundo teriam contribuiacutedo para a negaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo que faz Nietzsche a saber de que a uacutenica realidade do humano eacute o corpo com suas pulsotildees organizadas hierarquicamente obedecendo assim a dinacircmica da vontade da potecircncia ndash esta deve ser concebida nas dimensotildees tanto psicoloacutegica quanto fisioloacutegica (SALANSKIS 2016 p159)

Em Aleacutem do Bem e do mal sect 23 Nietzsche funde a psicologia e fisiologia em fisiopsicologia (Physio-Psychologie) e nesta acepccedilatildeo o corpo se comparado agrave mera introspecccedilatildeo ofereceria certo privileacutegio metodoloacutegico para uma anaacutelise filosoacutefica Segundo essa perspectiva (fisiopsicoloacutegica) o corpo eacute descrito enquanto uma multiplicidade de almas que em suas relaccedilotildees de mando e obediecircncia teriam como criteacuterio de organizaccedilatildeo as condiccedilotildees que permitissem a manutenccedilatildeo e expansatildeo da vida Estas novas nuances satildeo de extrema relevacircncia para genealogia nietzschiana e seu projeto de cultivo (SALANSKIS 2016 p 160) em que concebe certa noccedilatildeo de indiviacuteduo cujo o conceito de razatildeo dever-se-ia investigar frente agrave dinacircmica da vontade de potecircncia

Em seu Assim Falou Zaratustra (Dos desprezadores do corpo sect 5 sect 6) Nietzsche menciona duas dimensotildees em se tratando do conceito de razatildeo pois o corpo seria a grande razatildeo e a outra chamada de pequena razatildeo

O corpo eacute uma grande razatildeo uma multiplicidade com um soacute sentido uma guerra e uma paz um rebanho e um pastorInstrumento de teu corpo eacute tambeacutem tua pequena razatildeo que chamas de ldquoespiacuteritordquo meu irmatildeo um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razatildeoldquoEurdquo dizes tu e tens orgulho desta palavra A coisa maior poreacutem em que natildeo queres crer ndash eacute teu corpo e sua grande razatildeo essa natildeo diz Eu mas faz EuO que o sentido sente o que o espiacuterito conhece jamais tem fim em si mesmo Mas sentido e espiacuterito querem te convencer de que satildeo o fim de todas as coisas tatildeo vaidosos satildeo eles (NIETZSCHE 2011 pg 35)

Esta ldquopequena razatildeordquo forjada pela tradiccedilatildeo natildeo seria mais que um instrumento do corpo (LIMA 2016 p 352) Assim destaca-se que qualquer significaccedilatildeo atribuiacuteda ao corpo (Leib) eacute tambeacutem mera ilusatildeo metodoloacutegica Segundo Nietzsche a confusatildeo em tornar tal ilusatildeo numa certeza (Gewissheit) teve seu aacutepice na modernidade com filosofia cartesiana especialmente na concepccedilatildeo dogmaacutetica do ldquoeurdquo como uma unidade distinta e governante do corpo3

Na Genealogia da Moral (segunda dissertaccedilatildeo sect1 e sect2) Nietzsche remete agrave Aurora (livro I sect9) obra em que desenvolve o conceito de ldquoeticidade do costumerdquo (Sittlichkeit der

3 Marton comenta sobre o pensamento nietzschiano acerca do ldquoeurdquo em seu texto Do dilaceramento do sujeito agrave plenitude dionisiacuteaca ldquoAo contraacuterio do que se supotildee o eu natildeo comanda o corpo mas dele decorre natildeo executa as accedilotildees mas se constitui enquanto lsquoefeitorsquo delas Natildeo se trata pois de inverter a relaccedilatildeo tradicionalmente estabelecida entre corpo e alma mas de mostrar que o homem eacute lsquotodo corpo e nada aleacutem dissorsquo ()rdquo (MARTON 2009 pg 55)

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees

224

Sitte) supondo que desde os tempos mais primitivos as relaccedilotildees de mando e obediecircncia bem como o engendramento de valores e normas no transcorrer civilizatoacuterio fizeram o indiviacuteduo sofrer sacrificar-se e assim forjou-se suas capacidades cognitivas ou ainda o desenvolvimento de suas faculdades intelectuais Neste iacutenterim parece-nos necessaacuterio aprofundar e expor minimamente como Nietzsche concebe o conceito de razatildeo pois em se tratando de disputa teoacuterica este seja talvez o conceito mais caro da histoacuteria da filosofia

Dada a multiplicidade e certa disputa sobre o modo de conceber o conceito de razatildeo nas reflexotildees filosoacuteficas contemporacircneas eacute que julgamos demasiado pertinente o pensamento nietzschiano Seguindo nossa abordagem atentamos para a importacircncia de se interpretar a segunda dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral segunda dissertaccedilatildeo sect 3 na qual o autor destaca aspectos crueacuteis na construccedilatildeo dos valores humanos forjados a ferro e fogo Dentre eles a capacidade do homem de cumprir promessas de assenhorar-se diante de si mesmo sua responsabilidade Estes aspectos proviriam de uma necessidade primitiva pois segundo Nietzsche foi preciso superar o esquecimento (Vergessen) este uacuteltimo entendido como uma espeacutecie de forccedila orgacircnica oriunda da animalidade humana necessariamente teria de ser superado especialmente a partir da construccedilatildeo de uma memoacuteria Desta capacidade de memorizaccedilatildeo surge a responsabilidade como ldquoinstinto dominanterdquo ndash a isso o homem teria chamado de sua consciecircncia

Para demostrar parte do processo deste construto Nietzsche menciona a mais antiga e douradora psicologia da terra explicada a partir da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoGrava-se algo a fogo para que fique na memoacuteria apenas o que natildeo cessa de causar dor fica na memoacuteriardquo (NIETZSCHE 1998 pg 50) Ao argumentar sobre este diagnoacutestico destaca exemplos de puniccedilotildees que outrora eram tidas como normais (assim como castraccedilotildees esquartejamentos etc) Justamente nesta ilustraccedilatildeo sobre como formamos nossas capacidades cognitivas que percebemos certa perspectiva de Nietzsche a partir da qual podemos apontar para uma genealogia da razatildeo Notemos o que diz o autor ao refletir sobre as condiccedilotildees que permitiram a racionalidade destacando algumas imagens das puniccedilotildees (procedimentos de castigos e torturas em puacuteblico) no transcorrer histoacuterico

Com ajuda de tais imagens e procedimentos termina-se por reter na memoacuteria cinco ou seis ldquonatildeo querordquo com relaccedilatildeo aos quais se fez uma promessa a fim de viver os benefiacutecios da sociedade ndash e realmente Com ajuda dessa espeacutecie de memoacuteria chegou-se finalmente ldquoa razatildeordquo ndash Ah a razatildeo a seriedade o domiacutenio sobre os afetos toda essa coisa sombria que se chama reflexatildeo todos esses privileacutegios e adereccedilos do homem como foi alto seu preccedilo Quanto sangue e quanto horror haacute no fundo de todas as lsquocoisas boasrsquo (NIETZSCHE 1998 pg 52)

A mnemoteacutecnica como meacutetodo na ldquoincorporaccedilatildeordquo de axiomas se instituiria nas esferas juriacutedicas religiosas etc Ateacute um ponto em que nas relaccedilotildees humanas numa loacutegica credordevedor internalizar-se-ia a noccedilatildeo de ldquodiacutevidardquo Transmutando-a em sentimento de culpa (Schuld) tal sentimento (se pensado na dinacircmica da vontade de potecircncia) desembocaria numa espeacutecie de descarga interna promovendo assim a doenccedila da maacute consciecircncia (schlechtes Gewissen) Tal doenccedila explica Nietzsche (em sua primeira versatildeo) decorre do contexto das primeiras comunidades onde teriam se desdobrado inicialmente os elementos do conceito de eticidade do costume (como vimos podemos conferir em sect 9 de Aurora) mas ganha um contorno mais forte a partir das teorias de Parmecircnides e Platatildeo especialmente neste uacuteltimo buscava-se em um fora (no suprassensiacutevel) ideias fixas

Rafael dos Santos Ramos

225

(como os valores por exemplo) reivindicando assim um lugar para a verdade (Wahrheit) no acircmbito da loacutegica (Logik) esta tentativa de superar o saber miacutetico atraveacutes da filosofia destes racionalistas forjaram uma forma de conceber o mundo e se conciliariam posteriormente ao cristianismo disso surgiria uma nova apresentaccedilatildeo da ldquomaacute consciecircnciardquo na genealogia nietzschiana a saber aquela natildeo mais do homem em geral que nos primoacuterdios luta contra a sua animalidade construindo uma espeacutecie de segunda natureza4 mas sim a ldquomaacute consciecircnciardquo com a dimensatildeo do sofrimento eterno a noccedilatildeo de pecado operando em uma medida que tiraniza desagrega os impulsos (Trieb) Obviamente haacute outros caminhos a se percorrer nos textos de Nietzsche que nos permitiria concluir tambeacutem que a razatildeo estaacute intimamente ligada agrave construccedilatildeo da noccedilatildeo nietzschiana de segunda natureza e na medida em que a racionalidade eacute forjada ndash enquanto resultado de configuraccedilotildees que a proacutepria vida humana demandou diante das necessidades (manutenccedilatildeo e expansatildeo por mais potecircncia) no entanto o que apuramos ateacute aqui nos possibilita obter minimamente o estatuto da razatildeo na filosofia nietzschiana

Conhecimento enquanto o erro mais profundo Com intento de ampliar a reflexatildeo que o autor faz sobre o conceito de razatildeo

seguimos nossa abordagem na direccedilatildeo da concepccedilatildeo de conhecimento tomada por Nietzsche Pois uma vez que a razatildeo ao inveacutes de algo essencialmente dado (da categoria humana) foi construiacuteda ao longo de muito tempo ao passo em que o homem por necessidade incorporou-a ateacute um ponto em que se tornou um instinto uma espeacutecie de forccedila na multiplicidade da vontade de potecircncia que desempenha um papel instrumental muito importante (em especial sua utilidade de facilitar a vida por exemplo) a partir da noccedilatildeo de nossa capacidade em produzir ficccedilotildees regulativas

Neste sentido a razatildeo em sua gecircnese jaacute carregaria uma dimensatildeo praacutetica por necessidade e todo conhecimento teoacuterico em alguns casos chamado de puro para Nietzsche seria equivalente a ficccedilotildees regulativas (qualquer signo pretensatildeo de objetividade unidade etc) forjadas por necessidade e por isso estariam sempre passiacuteveis de novas configuraccedilotildees (a proacutepria troca de paradigma cientifico na histoacuteria do mundo seria prova desta afirmativa) Com o que vimos ateacute aqui podemos passar a desenvolver elementos que busquem corroborar a tese de que em Nietzsche o conhecimento tem sua gecircnese com base na moral uma vez que os seres humanos desenvolveram suas capacidades de conhecimento a partir das relaccedilotildees interpessoais sempre condicionados por lutas de forccedilas que buscam em sua singularidade manter e expandir o seu poder

Na tradiccedilatildeo filosoacutefica especialmente em Kant em sua obra Criacutetica da razatildeo pura a razatildeo operaria sob diferentes interesses e nisso eacute marcado o ponto de ruptura entre o uso da razatildeo pura e o uso da razatildeo praacutetica Na primeira com o interesse de estabelecer as condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento vaacutelido o que para Kant soacute eacute possiacutevel se dar na esfera dos fenocircmenos em que o conceito de causa eacute constitutivo do conhecimento Jaacute em seu uso praacutetico a razatildeo lidaria com princiacutepios regulativos dos quais ela natildeo seria

4 Haacute muitos autores que aprofundam uma importante discussatildeo acerca do naturalismo em Nietzsche podemos desta-car a leitura de cunho cientificista de B Leiter em seu O naturalismo de Nietzsche reconsiderado In Cadernos Niet-zsche USP Satildeo Paulo 29 (2011) pag 77-126 Bem como tambeacutem a leitura mais abrangente de R Schacht em seu O naturalismo de Nietzsche In Cadernos Nietzsche USP Satildeo Paulo v I n 29 (2011) pp 45) este uacuteltimo reivindica outras dimensotildees como a cultura a histoacuteria etc A nossa perspectiva de abordagem concorda de certa forma com as teses de Schacht mas chamamos atenccedilatildeo a noccedilatildeo de segunda natureza levando em conta as formas mais primitivas de conhecimento ou seja a construccedilatildeo da linguagem e posteriormente os efeitos de sua seduccedilatildeo (especialmente ao analisar a primeira forma de manifestaccedilatildeo da maacute consciecircncia exposta em Genealogia da moral)

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees

226

legitimada a conferir alguma intuiccedilatildeo via intelecto aos objetos que ela postula Ou seja pode-se interpretar nos escritos kantianos que o interesse (ou uso) praacutetico da razatildeo se daacute na dimensatildeo em que Kant suprime o conhecimento para dar espaccedilo aos erros (crenccedilas que natildeo podem ser verificadas via conhecimento) Neste acircmbito os postulados (ou as Ideias) da razatildeo enquanto princiacutepios regulativos tais como Deus a imortalidade da alma o mundo ou a liberdade seriam (se comparado ao que se pode conhecer) erros da razatildeo (entendidos como impossibilidade de conferir conhecimento a certos objetos) Isto Kant chamou de nocircumenos isto eacute objetos os quais natildeo podemos conhecer No entanto enquanto exercendo certa legitimidade que a razatildeo atribui aos erros estes postulados pela razatildeo podem ser pensados5 e por conseguinte funcionariam como princiacutepios regulativos

Esta marca kantiana que expressa a distinccedilatildeo daquilo que podemos conhecer daquilo que podemos pensar deve nos auxiliar se comparada agrave concepccedilatildeo nietzschiana sobre o que chamamos aqui de ficccedilotildees regulativas (ou ainda conhecimento enquanto ldquoo erro mais profundordquo) pois como jaacute afirmamos acima Nietzsche nega a possibilidade de algum tipo de conhecimento totalmente puro que seja isento das demandas e das valoraccedilotildees morais6

A criacutetica nietzschiana ao conhecimento eacute tambeacutem uma criacutetica agrave moral pois a forma segundo a qual o ser humano desenvolveu sua linguagem (construccedilatildeo dos signos crenccedilas baacutesicas dar unidade agrave multiplicidade dos sentidos atraveacutes de signos palavras etc) e a proacutepria justificaccedilatildeo e busca de fundamentaccedilatildeo da verdade derivariam do acircmbito da valoraccedilatildeo moral Assim a distinccedilatildeo entre interesses da razatildeo que se pode evidenciar na filosofia de Kant (enquanto uso praacutetico e uso puro) em Nietzsche natildeo procede pois ao operar sobre as regras da linguagem e concluir a partir de conceitos (e categorias) que visam estancar o fluxo do vir a ser (werden) dando unidade ao caos da multiplicidade obtida por nossos sentidos pode-se afirmar que a razatildeo apenas ofereceria adequaccedilatildeo discursiva a um interesse maior do que ela poderia desenvolver por conta proacutepria Ou seja enquanto uma forccedila na multiplicidade da vontade de potecircncia a razatildeo teria uma atuaccedilatildeo a partir de erros que estatildeo sempre passiacuteveis de novas configuraccedilotildees Assim a razatildeo mesmo quando estivesse operando o mais abstratamente estaria no fundo atuando sob um interesse praacutetico a saber aquele tendo em vista estar conforme os interesses de uma determinada perspectiva interpretativa que pode afirmar (tipo forte) ou negar (tipo fraco) certa dinacircmica no fluxo de forccedilas do proacuteprio corpo (vida)

Eacute importante mencionar o projeto de transvaloraccedilatildeo de todos os valores pois a moral e o conhecimento (em todo transcorrer histoacuterico do mundo) teriam sido para Nietzsche superestimados como soluccedilotildees dos problemas existenciais A ponto de seus valores enquanto ficccedilotildees que regulariam as diferentes perspectivas interpretativas de avaliaccedilotildees (e em contextos especiacuteficos) em algum momento tornaram-se ideias absolutas ldquoiacutedolosrdquo Ou seja metodologicamente o homem inventou uma mentira para poder obter

5 Maiores desdobramentos sobre a comparaccedilatildeo entre Kant e Nietzsche eacute possiacutevel explorar o comentaacuterio de LIMA Maacutercio Joseacute Silveira Em Funccedilotildees regulativas em Kant e Nietzsche

6 Atenuando a isso destacamos o comentaacuterio de Corbanezi ldquo() Nenhum conhecimento repousa em uma necessi-dade puramente teoacuterica e abstrata isolada de interesses praacuteticos revela-se antes funesta a pretensa distinccedilatildeo entre teoria e praacutetica conforme ressaltam anotaccedilotildees poacutestumas de 1888 () Impossiacutevel em um mundo que vem a ser o assim chamado conhecimento pressupotildee como sua condiccedilatildeo necessaacuteria um mundo fictiacutecio criado e arranjado de modo a nos aparecer como lsquocognosciacutevelrsquo Assim o conhecimento repousa na crenccedila em identidade permanecircncia igualdade e muitas outras noccedilotildees por noacutes inventadas as quais como esquemas reguladores forjam um mundo calcu-laacutevel e formulaacutevel para noacutes Da aplicaccedilatildeo dessas ficccedilotildees decorrem apenas simplificaccedilotildees e falsificaccedilotildees se satildeo muitas vezes consideradas verdades absolutas eacute porque possibilitam a conservaccedilatildeo de uma determinada espeacutecie de vida Eis contudo o maior erro tomar aquele mundo de ilusotildees como um mundo verdadeiro e atribuir-lhe valor supremordquo (CORBANEZI 2016 pag 152153)

Rafael dos Santos Ramos

227

uma verdade algo fixo absoluto universal tais invenccedilotildees (fictiacutecias) teriam a utilidade de trazer objetividade para a manutenccedilatildeo e constacircncia da vida Mas o conhecimento eacute um erro Nas palavras de Nietzsche ldquoViver eacute a condiccedilatildeo para conhecer Errar eacute a condiccedilatildeo para viver e na verdade errar profundamente Conhecer eacute o erro que natildeo elimina o erro Ele natildeo eacute nada de amargo Temos que amar e tomar conta do erro ele eacute a origem do conhecimentordquo (NIETZSCHE 1881 FP MIII1 11[162])

Ficccedilotildees regulativas e a dinacircmica das accedilotildees desinteressadas Depois de explorar minimamente a compreensatildeo que Nietzsche faz do conceito

de razatildeo e de porte de sua concepccedilatildeo de erro podemos dar um passo adiante e buscar circunscrever uma anaacutelise de cunho moral acerca do que o autor pensou das accedilotildees desinteressadas Assim podemos mostrar que a noccedilatildeo de altruiacutesmo pode ser entendida tambeacutem como ficccedilatildeo regulativa7

Ao refletir sobre as accedilotildees desinteressadas (o conceito de altruiacutesmo) Nietzsche se distancia de suas primeiras referecircncias (em especial Schopenhauer e Wagner) e passa analisar o tema junto a Paul Reacutee Este uacuteltimo propotildee uma explicaccedilatildeo naturalista sobre os sentimentos morais Em 1875 Reacutee publica sua obra Observaccedilotildees Psicoloacutegicas em 1877 lanccedila A origem dos sentimentos morais Aleacutem de toda parceria e certa influecircncia reciacuteproca que tiveram em suas obras durante esse periacuteodo se distinguiam especificamente em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de altruiacutesmo pois de modo resumido podemos dizer que para Reacutee o bom eacute o natildeo egoiacutesta enquanto o mau eacute o egoiacutesta Sentimentos e accedilotildees natildeo egoiacutestas satildeo o que conta nas relaccedilotildees Assim Reacutee defende que somente accedilotildees altruiacutestas satildeo boas e somente accedilotildees egoiacutestas satildeo maacutes

Se para Nietzsche todas as accedilotildees podem ser interpretadas a partir da dinacircmica da vontade de potecircncia nesta perspectiva natildeo haacute desinteresse dos indiviacuteduos em seus relacionamentos mesmo no acircmbito moral Em 1878 em HDH I (Capiacutetulo segundo seccedilatildeo 57 ndash A moral como auto divisatildeo do homem) jaacute se nota certa impossibilidade de algum agir desinteressado nas relaccedilotildees interpessoais Neste contexto Nietzsche passa a exemplificar alguns modos de como o humano se autodivide a partir do fenocircmeno moral demonstrando quatro exemplos em que podemos perceber o conceito de altruiacutesmo (ou as accedilotildees desinteressadas) nos dilemas da vida praacutetica (1) o autor que deseja ser superado (auto desinteresse) em relaccedilatildeo a tema em que desenvolve (2) a jovem apaixonada que pretende testar a fidelidade de seu companheiro (3) a entrega da vida do soldado (por ele mesmo) pela relevacircncia de pertencimento em sua ldquopaacutetriardquo e no uacuteltimo exemplo (a nosso entender o mais chocante) (4) a privaccedilatildeo de algumas necessidades da matildee em relaccedilatildeo a seu filho ou seja nem mesmo o interesse materno escaparia de um tipo de auto interesse ndash de egoiacutesmo Em cada um destes exemplos o autor nos remete diretamente a noccedilatildeo de altruiacutesmo e a seguir problematiza com as seguintes questotildees

() mdash Mas seratildeo todos esses estados altruiacutestas Seratildeo milagres esses atos da moral jaacute que na expressatildeo de Schopenhauer satildeo ldquoimpossiacuteveis e contudo reaisrdquo Natildeo estaacute claro que em todos esses casos o homem tem

7 Tais ficccedilotildees regulativas (altruiacutesmo compaixatildeo etc) tambeacutem satildeo caracterizadas por Nietzsche como sintoma da deacuteca-dence fisioloacutegica pois na perspectiva nietzschiana nossas accedilotildees desinteressadas em uacuteltima instacircncia se aportariam em uma justificativa que se caracterizaria em uma dimensatildeo esteacutetica se comparada a um embasamento eacutetico Ou seja tal justificaccedilatildeo das accedilotildees desinteressadas decorreria de uma espeacutecie de vaidade que dependendo da perspectiva in-terpretativa revelaria tambeacutem um tipo de egoiacutesmo especifico (como veremos adiante) Tratar do tema da deacutecadence fisioloacutegica demandaria outro trabalho ainda maior que este no entanto fica o registro da extensatildeo abrangente acerca do termo ficccedilatildeo regulativa

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees

228

mais amor a algo de si um pensamento um anseio um produto do que a algo diferente de si e que ele entatildeo divide seu ser sacrificando uma parte agrave outra Seraacute algo essencialmente distinto quando um homem cabeccedila-dura diz ldquoPrefiro ser morto com um tiro a me afastar um passo do caminho desse homemrdquo () (NIETZSCHE 2000 pag 3637)

Assim como conceber que o conhecimento enquanto crenccedilas verdadeira e justificada eacute mais uma das ficccedilotildees que estatildeo assentadas em erros e portanto precisam de certa desmistificaccedilatildeo requer-se tambeacutem ao conceito de egoiacutesmo certo desvelamento ou seja concebecirc-lo como ldquomaurdquo (como fazem as principais correntes teoacutericas em filosofia moral) Segundo Nietzsche iraacute depender de uma determinada perspectiva (forte ou fraca) que interpreta e avalia pois tal perspectiva pode ser do tipo que afirme a vontade de potecircncia criando certa harmonia na integridade dos impulsos ou aquela que ao contraacuterio desagregaria seus impulsos Ainda sem o escopo de sua teoria das forccedilas e no contexto de Humano demasiado humano I (Capiacutetulo segundo seccedilatildeo 101 ndash Natildeo julgueis) Nietzsche afirma

() ndash O egoiacutesmo natildeo eacute mau porque a ideia de ldquoproacuteximordquo ndash a palavra eacute de origem cristatilde e nem corresponde agrave verdade ndash eacute muito fraca em noacutes e nos sentimos em relaccedilatildeo a ele quase tatildeo livres e irresponsaacuteveis quanto em relaccedilatildeo a pedras e plantas Saber que o outro sofre eacute algo que se aprende e que nunca pode ser apreendido inteiramente (NIETZSCHE 2000 pg 77)

Notemos a impossibilidade de agarrar ou apreender (pelo menos inteiramente) algo no fluxo eterno do vir a ser

Se inicialmente constatamos essas mesmas condiccedilotildees humanas acerca do conhecimento (ao qual eacute possiacutevel questionar a objetividade de tudo que se pretenda como fixo) agora tambeacutem nos aparece o mesmo problema (ou seja se eacute possiacutevel apreender o sofrimento de outrem) expresso na esfera moral

Consideraccedilotildees finaisPor hora demonstramos que a razatildeo (ou a racionalidade) em Nietzsche se comparada

a perspectiva da filosofia moderna (especialmente com o criticismo kantiano) opera sempre em perspectiva praacutetica ou seja ateacute em nossas abstraccedilotildees mais complexas a racionalidade se daacute a partir de conflitos de forccedilas que com ela concorrem Ademais destacamos a impossibilidade de agarrar ou apreender (pelo menos inteiramente) algo no fluxo eterno do vir a ser pois se inicialmente constatemos essas condiccedilotildees humanas acerca do conhecimento (cuja eacute possiacutevel questionar a objetividade de tudo que se pretenda como fixo) por uacuteltimo buscamos demonstrar o mesmo problema expresso na esfera moral ou seja de que natildeo eacute possiacutevel aprender o sofrimento de outrem Com intento de desenvolver certa propedecircutica para pensar ndash como eacute uma norma na concepccedilatildeo de Nietzsche transitamos ateacute aqui por abordagens de cunho epistecircmico e moral Como resultado dentre outras constataccedilotildees demonstramos que para Nietzsche se natildeo podemos escapar de nossas ficccedilotildees regulativas que nada tem de puro tambeacutem estamos condicionados a certo egoiacutesmo (oriundo de certa tipificaccedilatildeo) e que pode afirmar ou negar a vida

Rafael dos Santos Ramos

229

Referecircncias bibliograacuteficasCORBANEZI Eder Verbetesconhecimento (BewuBtsein) IN Dicionaacuterio Nietzsche [editora responsaacutevel Scarlett Marton] ndash Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 ndash (Sendas amp Veredas) [154-156]KANT Emmanuel Criacutetica da razatildeo pura Traduccedilatildeo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujatildeo 5 Ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulberkian 2001 680p_____ Criacutetica da razatildeo praacutetica Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Valeacuterio Rohden Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 620 p LIMA Maacutercio Joseacute Silveira Funccedilotildees regulativas em Kant e Nietzsche Kriterion Belo Horizonte nordm 128 p 367-382 Dez2013_____ Verbetesrazatildeo (Vernunft) IN Dicionaacuterio Nietzsche [editora responsaacutevel Scarlett Marton] ndash Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 ndash (Sendas amp Veredas) [352-354]LEITER Brian O naturalismo de Nietzsche reconsiderado Traduccedilatildeo de Oscar Augusto Rocha Santos In Cadernos Nietzsche USP Satildeo Paulo 29 (2011) pag 77-126MARTON Scarlett Do dilaceramento do sujeito agrave plenitude dionisiacuteaca IN Cadernos Nietzsche v 25 p 53-81 2009_____ Verbetesvontade de potecircncia (Wille zur Macht) IN Dicionaacuterio Nietzsche [editora responsaacutevel Scarlett Marton] ndash Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 ndash (Sendas amp Veredas) [pag 423-425]NIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza Satildeo Paulo Cia das Letras 2001_____ Aleacutem do bem e do mal preluacutedio a uma filosofia do futuro Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza _ Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005_____ Assim Falou Zaratustra traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza Satildeo Paulo Cia das Letras 1998_____ Aurora traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza Satildeo Paulo Cia das Letras 2005_____ Fragmentos poacutestumos (1875-1882) (Vol II) Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego Saacutenches Meca Madrid Editorial Tecnos (Grupo Anaya S A) 2008 _____ Genealogia da moral uma polecircmica Friedrich Nietzsche traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Ceacutesar de Souza ndash Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ Humano demasiado humano um livro para espiacuteritos livres Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza ndash Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000REacuteE Paul Basic writings Urbana University of Illinois Press 2003_____ Ursprung der moralischenEmpfindungen Chemnitz Schmeitzner 1877 ROHDEN V Interesse da razatildeo e liberdade Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1981SALANSKIS Emmanuel VerbetesCorpo (Leib) IN Dicionaacuterio Nietzsche [editora responsaacutevel Scarlett Marton] ndash Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 ndash (Sendas amp Veredas) [pag 159-160]SCHACHT Richard O naturalismo de Nietzsche Traduccedilatildeo de Oliacutempio Pimenta In Cadernos Nietzsche USP Satildeo Paulo v I n 29 (2011) pp 45

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

230

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica de Nietzsche ao cristianismo

Rafael Gonccedilalves da Silveira1

1 IntroduccedilatildeoO escritor e pensador brasileiro Maacuterio Ferreira dos Santos publicou em menos de

quinze anos a coleccedilatildeo Enciclopeacutedia de Ciecircncias Filosoacuteficas e Sociais que abrange cerca de 45 volumes incluindo obras de caraacuteter teoacuterico e tiacutetulos de caraacuteter histoacuterico-criacutetico Seu modo particular de filosofar eacute apresentado na obra Filosofia Concreta publicada em 1957 Para o autor a filosofia possui um genuiacuteno valor epistemoloacutegico seja na investigaccedilatildeo e na sistematizaccedilatildeo seja na anaacutelise e na siacutentese de temas expositivos e polecircmicos Ele apresentou uma nova metodologia para guiar o estudante no campo do saber filosoacutefico e social na sua obra Meacutetodos Loacutegicos e Dialeacuteticos publicada em 1959

Aleacutem de filosofo e advogado Maacuterio Ferreira dos Santos dedicou-se a traduccedilatildeo traduzindo para o portuguecircs diversos filoacutesofos tais como Pitaacutegoras Aristoacuteteles Nietzsche Kant Pascal Tomaacutes de Aquino e Duns Scot De Nietzsche traduziu direto do alematildeo as obras Aurora Assim Falava Zaratustra Aleacutem do Bem e do Mal e Vontade de Potecircncia2

O presente artigo busca analisar as criacuteticas de Nietzsche ao cristianismo pela oacutetica de Maacuterio Ferreira em seu ensaio O homem que foi um campo de batalha publicado em 1945 como um prefaacutecio para sua traduccedilatildeo da obra Vontade de Potecircncia Apoacutes analisar a interpretaccedilatildeo de Maacuterio neste ensaio passamos a analisar as criacuteticas do filosofo alematildeo em suas obras criacuteticas principalmente O Anticristo livro em que o autor busca operar sua transvaloraccedilatildeo de todos os valores Destacamos a figura do sacerdote como central para estabelecer um viacutenculo entre a criacutetica de Nietzsche ao cristianismo e a interpretaccedilatildeo de Maacuterio Ferreira dos Santos

2 A interpretaccedilatildeo de Maacuterio Ferreira dos Santos Para Maacuterio Ferreira dos Santos o primeiro homem que encontrou uma norma geral

que definiu um determinado grupo de fenocircmenos sentiu-se como um Deus o primeiro Deus Para o autor a ldquoideia de Deusrdquo soacute nasce onde os poucos atingem um grau que permita estabelecer regras normativas leis gerais Para ele essas ideias jaacute seriam a tentativa

1 Mestrando em Ciecircncias Sociais pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel)2 A obra Vontade de Potecircncia na verdade natildeo pertence a Nietzsche pois o autor teria abandonado o projeto de es-

crever tal livro Contudo ela foi publicada com sendo do autor alematildeo devido a uma deturpaccedilatildeo feita por sua irmatilde Elisabeth Nietzsche que devido agrave sauacutede fraca do filosofo estava responsaacutevel pelos arquivos nietzschianos Somente com a ediccedilatildeo criacutetica das obras de Nietzsche feita por Giorgio Colli e Mazzino Montinari entre 1967-1978 eacute que foi possiacutevel ter acesso aos livros realmente escritos pelo autor

Rafael Gonccedilalves da Silveira

231

de estabelecer uma lei universal Ele ressalta no entanto que isto natildeo implica em uma refutaccedilatildeo de Deus Conforme ele diz

O que desconhecemos natildeo estaacute refutado pela ignoracircncia A humanidade ainda natildeo existe como totalidade ocircntica ( jaacute era o pensamento de Gothe de Nietzsche etc ) Conceber que na razatildeo estava o tiacutetulo o atributo das gloacuterias do homem foi uma ingenuidade uma longa e milenar ingenuidade de filoacutesofos (SANTOS 1945 p45)

Em parte isso contrasta com o que Nietzsche pensa sobre Deus e religiatildeo Em Nietzsche pessoa sinteacutetica e coletivamente alienada de cada povo todo Deus acumularia sob a perspectiva da vontade de potecircncia o inteiro processo de conformaccedilatildeo dos impulsos e forccedilas afetivas das quais se seguiram quais sintomas os valores religiosamente instituiacutedos e esposados por cada povo Segundo o filosofo alematildeo

Mesmo com um miacutenimo de religiosidade no peito um Deus que no instante certo cura um resfriado ou que nos faz subir na carruagem quando comeccedila uma tempestade deveria nos parecer tatildeo absurdo que teria de ser eliminado ainda que existisse um Deus como domeacutestico como carteiro como calendarista ndash no fundo uma palavra para designar o mais estuacutepido tipo de acaso ( NIETZSCHE 2016 p 63 )

Maacuterio Ferreira daacute um tom existencial sobre a relaccedilatildeo do homem com Deus Diz ele ldquoSe o homem tende para o infinito eacute porque precisamente eacute finito Aiacute estaacute um dos sentidos dos traacutegicos da vida Esse desejo de eternidade e da ldquoinfinituderdquo eacute um ldquopathosrdquo do desejo de Deus porque ele eacute o desejado absoluto (SANTOS 1945 p 45 ) Maacuterio fala entatildeo da finitude humana e do desejo do ldquoinfinitordquo Fala em tempo e eternidade Para o autor nesse ponto a ideia de Deus eacute irrefutaacutevel pois ldquonatildeo se refuta o ldquoinfinitamenterdquo grande com a alegaccedilatildeo do ldquoinfinitamenterdquo pequeno nem se mede a concepccedilatildeo de Deus por escalas racionalistasrdquo (SANTOS 1945 p 45)

Maacuterio chama a atenccedilatildeo para o modo como os homens e os filoacutesofos quiseram medir Deus por escolas racionalistas buscar racionalizar Deus quando na verdade Deus eacute um sentimento para ser vivido ndash sobre isso vemos o que diz Nietzsche na obra O Anticristo sobre um ldquocristianismo autecircntico ser possiacutevel ldquoo cristianismo autecircntico original sempre seraacute possiacutevel Natildeo uma feacute mas um fazer sobretudo um natildeo-fazer-muitas-coisas um ser de outro modordquo(NIETZSCHE 2016 p 44) Nesse ponto da interpretaccedilatildeo ferreriana ambos os autores estatildeo de acordo

Ainda sobre o aspecto da concepccedilatildeo racionalista de Deus para o autor brasileiro ldquoa mais satilde ideia coloca-o no inatingiacutevel para o homem como homem daiacute a interpretabilidade por que refuta eacute aplicar medidas humanas (SANTOS 1945 p45) Para Maacuterio chama-lo de absoluto eacute negaacute-lo Chamaacute-lo de incondicionado tambeacutem eacute negaacute-lo O absoluto natildeo condiciona porque soacute o condicionado condiciona Definiacute-lo eacute sempre negaacute-lo Assim ldquoa afirmaccedilatildeo de Deus pertence agrave feacute e somente a feacute Tudo o mais eacute tateamento ensaiordquo (SANTOS 1945 p 45-46 )

Entatildeo em Maacuterio eacute por isso que toda e qualquer ideia que de Deus faccedilamos se refutada natildeo o refuta mas sim agrave ideia Os homens natildeo podem ldquocompreender lsquocom palavrasrsquo o que transcende a tudo mas pode lsquovive-lorsquo Deus eacute assim um lsquosentimentorsquo para ser lsquovividorsquo natildeo uma ideia para ser pensada nem para ser medida (SANTOS 1945 p 46) O autor

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

232

aponta que para o crente a ldquoinfinituderdquo dos espaccedilos coacutesmicos eacute um ldquolimiterdquo agrave sua crenccedila e criar-lhe o ponto torturado de uma duacutevida Para o natildeo-crente essa mesma ldquoinfinituderdquo eacute uma fronteira de sua duacutevida na possibilidade de Deus Para Maacuterio Ferreira dos Santos eacute na concepccedilatildeo do ldquoinfinitordquo do cosmos que os limites se encontram tanto dos crentes como dos natildeo crentes Para ele ldquoos atributos humanos da ideia de Deus eacute que levaram os filoacutesofos a negaacute-lo (SANTOS 1945 p 46)

Para Maacuterio a arma de defesa dos crentes ndash a razatildeo ndash serviu afinal de arma de ataque E nessa anaacutelise de Maacuterio encontramos aquilo que Nietzsche chamou de vontade de verdade3 E sobre esta razatildeo fixamos isso ao analisar a obra nietzschiana pois nos encontramos em face de contradiccedilotildees que se excluem Para Maacuterio

Nietzsche proclama-se ora ateu ora teiacutesta Mas a conclusatildeo final eacute Nietzsche apenas refutara a ideia do Deus moral do Deus antropomoacuterfico ldquopreocupadordquo com as coisas humanas do Deus caprichoso para quem se construiu uma ciecircncia e para quem se estabeleceram limites de accedilatildeo criando-se-lhe racionalmente aprioriacutesticos atributos ldquoinfinitosrdquo (SANTOS 1945 p 46)

Para Maacuterio esse Deus tornou-se afinal o prisioneiro de seus sacerdotes que lhe negavam e restringiam direitos Propriamente aceitando um ldquoperspectivismo traacutegicordquo do mundo compreendendo os limites do homem negando a concepccedilatildeo ocircntica aparentemente teria negado a Deus Em Maacuterio Nietzsche no entanto desvestindo o mundo dos seus acidentes e atributos criava a divindade Seu ideal de super homem tem algo desse anelo Nietzsche natildeo era ateu no sentido vasto Negava o Deus que os homens haviam criado agrave imagem de um Deus falso refutado

Para Maacuterio Deus eacute uma resposta que o homem daacute a um ponto de interrogaccedilatildeo e aqui ele faz referecircncia a Nietzsche As perguntas irrespondiacuteveis da ciecircncia e da filosofia nele ficam postadas e ateacute o homem coloca a imagem projetada de si mesmo num grande ser que teria todas as qualidades e atributos humanos ampliados aleacutem dos seus limites Deus eacute assim um ideal de super- humanidade Um ideal grosseiro mas ingecircnuo sincero vindo dos seus anseios naturais considera o autor afirmando que para Nietzsche era digna de respeito tal projeccedilatildeo humana Deus para Nietzsche de acordo com a interpretaccedilatildeo de Maacuterio Ferreira era mais uma estratificaccedilatildeo da vontade humana de potecircncia Mas nem por isso o filosofo alematildeo o negava apenas deixava esse problema para depois Para Maacuterio Ferreira o homem sempre teraacute um problema ao qual chamaraacute Deus Deus seraacute sempre as perguntas natildeo respondidas Assim para o autor

o ateiacutesmo de Nietzsche ia agrave negaccedilatildeo do sentido vulgar do sentido sacerdotal de Deus essa concepccedilatildeo humana ldquoridiacuteculardquo que faz de Deus um monstro de sabedoria obra dos filoacutesofos que tem a pretensatildeo que filosofar eacute um atributo divino Nietzsche era contra o Deus todo bondade ou todo justiccedila ( SANTOS 1945 p47)

Estudando-lhe os atributos que predominavam em determinadas eacutepocas e que eram projeccedilotildees coagulaccedilotildees dos desejos maiores do homem A criacutetica nietzschiana ao 3 Nietzsche apesar de caracterizar a vontade de verdade de maneira negativa ele confere a essa noccedilatildeo um papel

fundamental na histoacuteria da mentalidade religiosa da civilizaccedilatildeo ocidental Isso porque o filoacutesofo defende a seguinte relaccedilatildeo loacutegica entre vontade de verdade e ateiacutesmo o ideal de praticidade intelectual que constitui a vontade conduzi-ria necessariamente agrave negaccedilatildeo da ldquomais longa mentirardquo do ocidente isto eacute a mesma mentira da existecircncia de Deusrdquo (NETO SET de Melo 2016p 427)

Rafael Gonccedilalves da Silveira

233

cristianismo fundamentava-se nos seguintes pontos durante dois mil anos o cristianismo havia explorado um sentimento de ausecircncia Para Maacuterio

O cristianismo ldquoprometera a felicidade que faltava agraves vastas massas sociais da eacutepoca mas a prometera para um futuro que sempre afirmou proacuteximo coletivo quando viesse o juiacutezo final momento alucinante da vinganccedila dos escravos sobre os seus opressores O cristianismo de iniacutecio fora isso Prometeu um mundo o ceacuteu ndash um lugar de felicidade perene eterna onde os justos apreciaram os requintes de torturas que os democircnios usariam para puniccedilatildeo dos pecadores os ricos os poderosos os opressores (SANTOS 1945 p 47)

Durante dois mil anos o cristianismo explorou essa acircnsia Quando percebeu que os tempos natildeo vinham e as profecias natildeo se realizavam prometeu um ceacuteu imediato a cada um apoacutes a morte depois de se processarem julgamento individual Desta forma o dia do julgamento final que seria coletivo ficava transferido para o fim dos seacuteculos Ideia do limbo ampliava-se natildeo mais no sentido primitivo anterior a Cristo como um lugar preacute-determinado onde permaneceriam as almas candidatas ao ceacuteu porque este soacute poderia ser aberto por um Deus Cristo o abriria e depois dele todos os que o seguissem e todos os que o esperaram no limbo teriam oportunidade de penetrar no ceacuteu Com essa promessa de felicidade eterna infinita na contemplaccedilatildeo de Deus felicidade inalcanccedilaacutevel na terra o cristianismo pregou o oacutedio agrave vida caluniando-a por seacuteculos Com os seacuteculos dezoito e dezenove o ateiacutesmo triunfante a destruiccedilatildeo das ideias religiosas a ldquomorte enfim das possibilidades do paraiacuteso no ceacuteurdquo o cristianismo alimentou os desejos de conquista do paraiacuteso na terra Para o brasileiro nesse sentido ldquoNietzsche vecirc as doutrinas libertaacuterias socialistas como avatares do cristianismo Os desejos de felicidade perduraram nos homens como um direito (SANTOS 1945 p) Ainda segundo Maacuterio

Entre os atuais cristatildeos haacute uma corrente que natildeo vecirc em Nietzsche um inimigo do cristianismo Realmente natildeo o foi Poucas vezes se ergueram vozes de tatildeo sincera exaltaccedilatildeo agrave obra de Cristo como a dele Nietzsche combatia mais a falta de feacute que a feacute Via os cristatildeos em regra geral falsos hipoacutecritas e embusteiros mas se admirava da feacute sincera de um homem como Pascal ou de um Satildeo Francisco de Assis Via no cristianismo virtudes profundas mas acusava os maus disciacutepulos de arrastarem-se numa forccedila de regressatildeo quando Cristo tivera um iacutempeto revolucionaacuterio Denunciava os maus cristatildeos os verdadeiro ldquo assassinos de Deusrdquo que o exploraram para em nome dele dar vazatildeo aos apetites e ambiccedilotildees (SANTOS 1945 p 49)

E se a critica de Nietzsche foi demasiadamente violenta era devido ao seu temperamento Era de sua personalidade atuar com energia quando polemizava Segundo o tradutor e filosofo ele mesmo dizia que esse estilo de accedilatildeo fazia parte de sua estrateacutegia Para o filoacutesofo

Nietzsche era ateiacutesta Mas ateiacutesta no sentido Nietzschiano Sua afirmaccedilatildeo contra a existecircncia de um Deus cingia-se agrave concepccedilatildeo estreita e imitativa antropomoacuterfica de Deus Ele dera em ldquoVontade de Potecircnciardquo uma definiccedilatildeo para os crentes Dizia ldquoAfastemos a grande bondade da ideia de Deus ndash ela eacute indigna de Deus Afastemo-nos outrossim a mais alta sabedoria ndash ela eacute a vaidade dos filoacutesofos que tem na consciecircncia a insacircnia desse monstro de sabedoria que seria Deusrdquo Pretendiam que Deus se lhes assemelhasse

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

234

tanto quanto possiacutevel Natildeo Deus a mais alta potecircncia ndash isto basta Dai resulta tudo o que resulta ndash ldquoo mundordquo (SANTOS 1945 p49)

Para o autor esse ateiacutesmo de Nietzsche ldquocombatia o Deus criado pelos racionalistas O Deus definido por atributos Nietzsche negava os atributos porque o atributo jaacute eacute um limiterdquo (SANTOS 1945 p 49) Haacute uma definiccedilatildeo dos primitivos nas paraacutefrases dos crentes respeitosos mais grandeza O ateiacutesmo nietzschiano ldquoeacute assim uma devoccedilatildeo respeitosardquo (SANTOS 1945 p 50) Maacuterio afirma que amar a vida era para Nietzsche uma forma de oraccedilatildeo ou prece Reconhece que sua criacutetica ao cristianismo tem momentos de exaltaccedilatildeo e que Nietzsche mesmo dizia que os cristatildeos chamaram Deus o que lhes contrariava e os prejudicava e tambeacutem que o cristianismo permitiu uma rebeliatildeo de escravos que entrou na histoacuteria como um dos movimentos mais profundos e mais castos Afirma que ldquoo cristianismo sofrera poreacutem do influxo dos entediados dos acovardados que se aproveitaram da vitoacuteria e que natildeo a construiacuteram (SANTOS 1945 p 50)

Aqui nota-se a clara defesa de Maacuterio do cristianismo e que busca tratar a inversatildeo dos valores dos cristatildeos como uma vitoacuteria O autor ainda diz que o homem criou em si o purgatoacuterio de sua vida Para ele ldquoo vale de laacutegrimas da vida natildeo fora Deus que criara Essa acusaccedilatildeo era outra infacircmia O homem-o verdadeiro satatilde ndash criara seu proacuteprio inferno porque se negava a si mesmordquo (SANTOS 1945 p51) Ainda segundo o filoacutesofo brasileiro

Cristo tambeacutem foi um transmutador de ideias e de princiacutepios Sua reforma representava para a Judeacuteia um movimento revolucionaacuterio de grande envergadura e para o romanismo uma transmutaccedilatildeo profunda que atingia os instintos das massas oprimidas da proviacutencia (SANTOS 1945 p 51)

Para Maacuterio Cristo ao pregar aos homens que fugissem agraves honrarias salopando o respeito devido aos poderosos o abandono do luxo e as riquezas pregava na verdade tudo que era condizente coa a situaccedilatildeo poliacutetica do povo judaico oprimido e dominado por Roma Segundo o autor

Tudo isso que era tatildeo necessaacuterio naquele instante histoacuterico apesar de sua prudecircncia em natildeo se jogar contra o poder romano realmente significava uma transmutaccedilatildeo da alma decadente de um povo preocupado com as lutas bizantinas dos fariseus Cristo buscava a uniatildeo do povo de Israel num rebanho com um soacute pastor (SANTOS 1945 p51)

Ainda sobre Cristo Maacuterio diz que sua doutrina combatia a decadecircncia judaica ldquo Segue-me e deixa os mortos sepultarem seus mortosrdquo Sua filosofia era uma filosofia de vida Todos os transmutadores da humanidade alccedilam a voz contra a decadecircncia E a decadecircncia eacute sempre a morte Para o brasileiro ldquoCristo via a morte no regime imperante em sua paacutetria Cristo nunca se enganou quanto ao sentido revolucionaacuterio de sua obrardquo( SANTOS 1945 p 52 ) Aqui parece que Maacuterio natildeo estaacute ciente do que Nietzsche tambeacutem considera Cristo um decadente4 Ele parece mais interessado em sua proacutepria filosofia e a interpretaccedilatildeo religiosa que vai desenvolver sobre o cristianismo e Cristo 4 Sobre este ponto Rubira (2016) aponta que que ldquoNietzsche busca compreender traccedilos psicoloacutegicos do interes-

santiacutessimo decadente um antirrealista e grande simbolistardquo (Rubira 2016 p 85) Aqui o autor faz uma anaacutelise da obra O Anticristo demonstrando como o filosofo alematildeo separa a figura de Cristo dos seus verdadeiros detratores principalmente o apoacutestolo Paulo Contudo ressalta-se que Cristo natildeo deixa de ser um decadente Analisando o tipo psicoloacutegico do ldquoRedentorrdquo sabemos que ele pode estar contido nos evangelhos apesar dos evangelhos ainda que mutilado ou carregado de traccedilos alheios como o de Francisco de Assis estaacute conservado em suas lendas apesar de suas lendas ldquoNatildeo a verdade quanto ao que fez o que disse como realmente morreu mas a questatildeo de o seu tipo ser concebiacutevel de haver sido lsquotransmitidorsquordquo (NIETZSCHE 2007 p35)

Rafael Gonccedilalves da Silveira

235

Sobre a dubiedade do cristianismo o autor considera a doutrina cristatildeo tatildeo duacutebia as demais doutrinas e filosofias Para ele ldquopouco difere poreacutem a interpretaccedilatildeo de Nietzsche E seu ataque ao cristianismo refere-se agrave dubiedade agrave fraqueza agrave concoacuterdia dos crentes Para ele Nietzsche via exceccedilotildees no cristianismo como Pascal5 e Satildeo Franscisco de Assis Trata poreacutem dos paradoxos da ldquomorte de Deusrdquo em Nietzsche Prossegue citando o filoacutesofo marxista e socioacutelogo francecircs Henri Lefeacutebvre

Lefeacutebvre tem estas palavras ldquoO assassino de Deus ndash singular paradoxo ndash natildeo eacute o ateu O ateu nietzschiano tem o sentido do divino O verdadeiro assassino de Deus eacute o Cristatildeo O cristianismo natildeo foi mais na aparecircncia que uma feacute em Deus uma vida humana no seio divino Na realidade foi ldquoo mais baixo niacutevel da evoluccedilatildeo descendente do topo divinordquo E Lefeacutebvre prossegue ldquoo criador do judeu-cristianismo como doutrina e como igreja foi Satildeo Paulo que se serviu da biografia de Cristo para espalhar a noccedilatildeo judaica do pecado do Deus mau O uacutenico e verdadeiro cristatildeo foi Cristo e morreu na cruz ndash morreu verdadeiramente Sua presenccedila seu espiacuterito se perderamrdquo (SANTOS 1945 p 53)

De fato podemos concordar que o Paulo foi o grande detrator do cristianismo No entender de Nietzsche Paulo de Tasso teria sido o maior responsaacutevel pela disseminaccedilatildeo do cristianismo tal como conhecemos O argumento paulino de aleacutem-mundo para Nietzsche teria contagiado todo o imaginaacuterio moral da civilizaccedilatildeo ocidental O cristianismo teria dominado a cultura pagatilde atraveacutes do medo e da esperanccedila ambos suscitados pelas noccedilotildees de ldquojuiacutezo finalrdquo e ldquovida eternardquo

Salvo alguns pontos de convergecircncia entre a concepccedilatildeo de Nietzsche e a interpretaccedilatildeo de Maacuterio Ferreira dos Santos podemos poreacutem encontrar muitos pontos que natildeo correspondem ao que conhecemos da obra nietzschiana na atualidade Reconhecemos que Maacuterio teve grande importacircncia por situar o filosofo alematildeo no contexto da filosofia como autor antimetafiacutesico6 de uma noccedilatildeo de vontade de potecircncia muito aleacutem da concepccedilatildeo errocircnea de metafiacutesica da violecircncia7 Poreacutem para prosseguir o objetivo deste trabalho passamos na proacutexima sessatildeo a analisar a interpretaccedilatildeo de Nietzsche sobre o cristianismo a partir das obras criacuteticas do autor

5 O filosofo de Sils-Maria ao analisar em sua obra Aurora o corpo como uma maacutequina pouco explorada e que fe-nocircmenos naturais fisioloacutegicos satildeo entatildeo interpretados como moral e religiosos faz entatildeo uma alusatildeo agrave corrupccedilatildeo de Pascal Nietzsche mostra que a corrupccedilatildeo do homem forte pelos fracos pela moral teria acometido Pascal cuja razatildeo foi corrompida pelo seu cristianismo Citando o filosofo alematildeo ldquoO que quer que provenha do estocircmago dos intestinos da batida do coraccedilatildeo dos nervos da biacutelis do secircmen ndash todas as indisposiccedilotildees fraquezas irritaccedilotildees todos os casos de uma maacutequina que conhecemos tatildeo pouco ndash tudo isso um cristatildeo como Pascal tem de considerar um fenocircmeno moral e religioso perguntando se ali se acha Deus ou o Diabo o bem ou o mal a salvaccedilatildeo ou danaccedilatildeo Oh inteacuterprete infeliz Como precisa revirar e torturar seu sistema Como ele proacuteprio necessita revirar-se e torturar-se para ter razatildeordquo(Nietzsche 2016 p62)

6 No decorrer de suas obras Nietzsche faz criacuteticas ao dualismo de Platatildeo e sua concepccedilatildeo dos mundos sensiacutevel e inteligiacutevel ndash O pensador alematildeo apresenta o corpo fiacutesico em contiacutenua mudanccedila com impulsos que determinam diferentes relaccedilotildees de poder No pensamento platocircnico o homem eacute definido como uma dualidade de uma alma e um corpo fiacutesico distintos entre si Nessa concepccedilatildeo a alma ao encarnar apoacutes abandonar o mundo das ideias ao unir-se com esse corpo presa agrave mateacuteria constituinte inferior e menos nobre em relaccedilatildeo agrave contraparte espiritual subjulga-se aos anseios menores da mateacuteria Dessa forma submete-se a ela e nessa posiccedilatildeo menos nobre sua postura moral se traduziraacute em uma forma menos elevada

7 Nesse sentido Maacuterio Ferreira dos Santos faz uma defesa de Nietzsche no ensaio O Homem que foi um campo de batalha de 1945 buscando afastar o filosofo alematildeo da acusaccedilatildeo de ser um teoacuterico do nazismo Nessa empreitada o tradutor e filosofo brasileiro busca compreender a Vontade de Potecircncia de Nietzsche em seu real sentido na filosofia de Nietzsche Conforme Maacuterio ldquoVontade de Potecircncia natildeo eacute somente a vontade de dominar O nietzschianismo natildeo eacute uma metafiacutesica da violecircncia O tiacutetulo da obra enganou muitos inteacuterpretes Vontade de potecircncia eacute somente o esforccedilo para triunfar do nada para vencer a fatalidade e o aniquilamento a cataacutestrofe traacutegica e a morte (Santos 1945 p 70)

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

236

3 A criacutetica de Nietzsche ao cristianismoEm Humano demasiado humano no capiacutetulo terceiro intitulado ldquoA vida religiosardquo

no aforismo 108 Nietzsche diz que quando um infortuacutenio nos atinge pode-se superaacute-lo de dois modos distintos ldquoeliminando a sua causa ou modificando o efeito que produz em nossa sensibilidade (NIETZSCHE 2005 p 79) ou seja reinterpretando o infortuacutenio como um bem ou utilidade para a nossa vida A religiatildeo e a arte (e tambeacutem a filosofia metafiacutesica) vai dizer Nietzsche se esforccedilou em produzir a mudanccedila da sensibilidade em parte alterando nosso juiacutezo sobre os acontecimentos (por exemplo com a ajuda da frase Deus castiga a quem amardquo) em parte despertando prazer na dor na emoccedilatildeo mesma (ponto de partida da arte traacutegica)

Para Nietzsche ldquoTanto mais diminuir o impeacuterio das religiotildees e de todas as artes da narcose tanto mais os homens se preocuparatildeo em realmente eliminar os malesrdquo ( Nietzsche 2005 p 75) No aforismo 113 (ldquoo cristianismo como antiguidaderdquo) Nietzsche diz

Quando numa manhatilde de domingo ouvimos repicarem os velhos sinos perguntamos a noacutes mesmos mas seraacute possiacutevel Isto se faz por um judeu crucificado haacute dois mil anos que se dizia filho de Deus Natildeo existe prova para tal afirmaccedilatildeo ndash Em nossos tempos a religiatildeo cristatilde eacute certamente uma antiguidade que irrompe de um passado remoto e o fato de crermos nessa afirmaccedilatildeo ndash quando normalmente somos tatildeo rigorosos no exame de qualquer pretensatildeo ndash e talvez a parte mais antiga dessa heranccedila (NIETZSCHE 2005 p 87)

Ainda ldquoJaacute o cristianismo esmagou e despedaccedilou o homem por completo e o mergulhou como um lodaccedilal profundo entatildeo nesse sentido de total objeccedilatildeo de repente fez brilhar o esplendor de uma misericoacuterdia divina rdquo(NIETZSCHE 2005 p 88) Sobre o cristatildeo comum (aforismo 116) ndash o filosofo diz que se e o cristianismo tivesse razatildeo em suas teses a cerca de um Deus vingador seria pouco provaacutevel um individuo natildeo aceitar de bom grado os preceitos divinos e dedicar sua vida para a praacutetica asceacutetica

Para Nietzsche o cristianismo representou um movimento de continuidade do ressentimento do oacutedio e da vinganccedila instaurados pela moral judaica Essa relaccedilatildeo de parentesco com o judaiacutesmo teria levado a doutrina cristatilde proceder moralmente da mesma maneira segunda a qual a moral judaica havia operado ateacute entatildeo Isto eacute a moral tambeacutem avaliaria o tipo ldquonobrerdquo atraveacutes de seu olhar bilioso e ressentido mantendo assim a mesma atitude de identificaacute-lo como sendo moralmente ldquomaurdquo Apesar de defender essa continuidade entre judaiacutesmo e cristianismo o filoacutesofo entende que a doutrina cristatilde foi ainda mais extrema no caraacuteter imaginativo de sua vinganccedila Impotentes para realizar uma reaccedilatildeo efetiva contra seus opressores os cristatildeos ldquoforjaramrdquo a existecircncia de um julgamento divino que promoveria uma revanche na vida do aleacutem Essa desforra imaginaacuteria teria por seu turno a funccedilatildeo de dar aos oprimidos cristatildeos a sensaccedilatildeo de forccedila felicidade e conforto No aleacutem os ldquobons cristatildeosrdquo receberiam como consolo pelas dores sofridas a recompensa da bem- aventuranccedila no Reino de Deus Laacute eles seriam finalmente felizes e assistiriam aos ldquomausrdquo ndash bem logrados na vida terrena ndash pagarem por suas ldquomaldadesrdquo Enfim o sofrimento a inviacutedia e a sensaccedilatildeo de impotecircncia seriam os elementos a partir dos quais teria sido engendrada a revanche fictiacutecia do cristianismo Aleacutem de promover a vinganccedila e o consolo as noccedilotildees de juiacutezo final e de vida eterna no aleacutem tambeacutem teriam a funccedilatildeo de legitimar um modo de vida proposto pela doutrina cristatilde

Rafael Gonccedilalves da Silveira

237

Para Nietzsche conforme analisamos na obra O Anticristo Maldiccedilatildeo ao cristianismo o cristianismo tambeacutem se acha em oposiccedilatildeo a toda boa constituiccedilatildeo intelectual Ele diz pode usar apenas a razatildeo doente como razatildeo cristatilde toma o partido de tudo idiota pronuncia a maldiccedilatildeo contra o ldquoespiacuteritordquo contra a soberbia (soberba) do intelecto satildeo (NIETZSCHE 2016 p 62) Para o filosofo alematildeo tal como a doenccedila eacute da essecircncia do cristianismo assim tambeacutem o tiacutepico estado cristatildeo a ldquofeacuterdquo tem de ser uma forma de doenccedila todos os caminhos retos honestos cientiacuteficos para o conhecimento tecircm de ser rejeitados como caminhos proibidos pela igreja A duacutevida assim eacute um pecado para o cristianismo

Na anaacutelise da figura sacerdotal Nietzsche mostra que a completa falta de asseio psicoloacutegico no sacerdote ndash que jaacute se revela no olhar ndash eacute uma consequecircncia da decadecircncia ( decadeacutence) ndash ele diz que ldquo feacute significa natildeo querer saber o que eacute verdadeiro O petista o sacerdote de ambos os sexos eacute falso porque eacute doente seu instinto exige que em nenhum ponto a verdade obtenha seu direito ldquo (NIETZSCHE 2016 p 62) Nietzsche aponta que o homem que se torna doente ou por natureza eacute doente eacute considerado bom8 Ao contraacuterio o que vem da plenitude da abundacircncia e do poder eacute considerado mau e tal modo de sentir as coisa eacute tiacutepico do crente Nietzsche aponta o absurdo da concepccedilatildeo supersticiosa de Deus conforme segue

Mesmo com um miacutenimo de religiosidade no peito um Deus que no instante certo cura um resfriado ou que nos faz subir na carruagem quando comeccedila uma tempestade deveria nos parecer tatildeo absurdo que teria de ser eliminado ainda que existisse Um Deus como domeacutestico como carteiro como calendarista ndash no fundo uma palavra para designar o mais estuacutepido tipo de acaso (NIETZSCHE 2016 p 63)

Na obra O Anticristo Maldiccedilatildeo ao cristianismo Nietzsche vai mostrar como os sacerdotes abusaram do nome de Deus para satisfazerem o seu fim alcanccedilar e manter o seu poder Utilizaram ldquoDeusrdquo para medir os povos e as eacutepocas segundo a forma de posiccedilatildeo sobre os sacerdotes sendo a vontade de Deus tudo que seja favoraacutevel a manutenccedilatildeo da existecircncia desse tipo parasitaacuterio ao passo que aquilo que contraria-se seu domiacutenio e existecircncia fosse contra Deus Citando Nietzsche

A realidade no lugar dessa deploraacutevel mentira eacute a seguinte uma espeacutecie parasitaacuteria de homem que prospera apenas agraves custas de todas as formas saudaacuteveis de vida os sacerdotes abusa do nome de Deus ao estado de coisas em que o sacerdote define o valor das coisas ele chama ldquoreino de Deusrdquo aos meios pelos quais um tal estado eacute alcanccedilado ou mantido ldquo a vontade de Deusrdquo com frio cinismo ele mede os povos as eacutepocas os indiviacuteduos conforme beneficiem ou contrariem a preponderacircncia dos sacerdotes (NIETZSCHE 2016 p 31)

8 Dando sequecircncia em sua investigaccedilatildeo da moral no aforismo 2 da Segunda dissertaccedilatildeo de sua Genealogia da moral Nietzsche vai destacar a origem do termo bom tendo os homens nobres como precursores aqueles que se chamaram ldquobonsrdquo em oposiccedilatildeo ao que eacute baixo e vulgar ao que eacute ruim Nietzsche ressalta que atraveacutes do pathos da distacircncia os nobres tomaram para si o direito de criar valores e cunhar nomes para estes valores No princiacutepio deste estabeleci-mento de valores a palavra bom natildeo estaacute ligada diretamente as accedilotildees natildeo-egoiacutestas pois na perspectiva nobre ainda natildeo haacute a oposiccedilatildeo de valores (egoiacutesta versus natildeo-egoiacutesta) No tipo nobre em Nietzsche podemos identificar o corpo saudaacutevel a fisiologia sadia e a afirmaccedilatildeo da vida Em oposiccedilatildeo a esse nobre haacute o fraco tipo decadente que busca apenas preservar e conservar a vida natildeo utiliza a potecircncia criadora e interioriza a sua vontade de potecircncia Eacute esse tipo fraco que vai elaborar uma moral de escravo uma moral negadora da vida e por consequecircncia do corpo Citando Nietzsche ldquoOs juiacutezos de valor cavalheiresco-aristocraacuteticos tecircm como pressuposto uma constituiccedilatildeo fiacutesica poderosa uma sauacutede florescente rica ateacute mesmo transbordante juntamente com aquilo que serve a sua conservaccedilatildeo guerra aventura caccedila danccedila torneios e tudo o que envolve uma atividade robusta livre contenterdquo (Nietzsche 2009 p22)

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

238

Nietzsche no Anticristo radicaliza sua posiccedilatildeo sobre o cristianismo e com relaccedilatildeo ao sacerdote De certo modo ele retoma muitas questotildees jaacute expostas na obra Genealogia da Moral em que o autor investiga o surgimento da moral e analisa a transvaloraccedilatildeo feita pelos sacerdotes e pelo rebanho de fracos Aqui nesta obra Nietzsche se propotildee a fazer uma nova Transvaloraccedilatildeo dos valores para retornar aos valores afirmativos da vida No Anticristo Nietzsche vai atacar fortemente os sacerdotes pois foram eles que foram responsaacuteveis pela inversatildeo dos valores nobres e pelo decliacutenio ou deacutecadence da humanidade Ele combate natildeo o nazareno a figura de Cristo que Nietzsche vai dedicar atenccedilatildeo especial mas os tipos sacerdotais Eacute preciso para o filosofo combater tais parasitas que se encontram em toda parte e em todos eventos naturais agindo de forma a desnaturaacute-los Somente nesse combate Nietzsche vislumbra a possibilidade de uma filosofia afirmativa que propotildee a incondicional afirmaccedilatildeo da vida Nietzsche apresenta-se assim como um destino por ter levantado o pano ldquoque tapava a corrupccedilatildeo do homemrdquo (NIETZSCHE 2016 p12) Conforme Rubira

Diferentemente dos sacerdotes judeus que queriam a crucificaccedilatildeo de Jesus o alvo de Nietzsche sobretudo em O anticristo natildeo eacute um ataque ao ceacutelebre homem da Galileacuteia (ldquoHouve apenas um cristatildeo e este morreu na cruzrdquo ACAC 39) mas a um tipo sacerdotal judeu que com a crucificaccedilatildeo de Jesus teria encontrado um caminho para chegar ateacute o poder um caminho para operar uma alteraccedilatildeo em todos os valores da antiguumlidade e nesta alteraccedilatildeo levar ao primeiro plano os proacuteprios valores com base no siacutembolo ldquoDeus na cruzrdquo ou ldquocristo na cruzrdquo ou ldquoo crucificadordquo tais sacerdotes teriam operado uma transvaloraccedilatildeo de todos os valores antigos - valores esses que eram a expressatildeo de uma vida afirmativa uma vida que natildeo desprezava o vir-a-ser (RUBIRA p 118 2005)

Nietzsche pretende entatildeo retomar esses valores que expressam uma vida afirmativa Nesse combate ao tipo sacerdotal e ao cristianismo o autor vai analisar como eles subvertem a realidade atraveacutes da mentira A mentira tem como finalidade no sacerdote apenas coisas ruins ldquoenvenenamento difamaccedilatildeo negaccedilatildeo da vida desprezo pelo corpo rebaixamento e autoviolaccedilatildeo do homem pelo conceito de pecadordquo (NIETZSCHE 2016 p 68) Mas para Nietzsche natildeo eacute apenas algo meramente judeu ou cristatildeo o dito direito de mentir A mentira juntamente com a ldquosagacidade da revelaccedilatildeordquo fazem parte do tipo sacerdote tanto os sacerdotes da deacutecadence como os sacerdotes do paganismo A mentira sagrada que se encontra em Confuacutecio e no coacutedigo de Manu encontra tambeacutem em Platatildeo Para Nietzsche ldquoLeirdquo a ldquovontade de Deusrdquo o ldquolivro Sagradordquo a ldquoinspiraccedilatildeordquo ndash tudo ldquoapenas palavras para as condiccedilotildees sob as quais os sacerdotes chegam ao poder com as quais ele sustenta seu poderrdquo (NIETZSCHE 2016 p67) O filosofo aqui salienta que tais conceitos satildeo encontrados nas bases de todas as organizaccedilotildees sacerdotais Como dissemos a ldquomentira sagradardquo vai de Confuacutecio ateacute Platatildeo e nas palavras de Nietzsche ldquolsquoA verdade em sirsquo isto significa onde quer que seja ouvido o sacerdote menterdquo (Nietzsche 2016 p67)

Admitimos essa conclusatildeo e radicalizaccedilatildeo da figura do sacerdote no Anticristo agrave medida que essa obra significa a proacutepria transvaloraccedilatildeo dos valores de Nietzsche operada de modo estrateacutegico Foi num terreno assim falso de valores falsos que cresceu e dominou o cristianismo como ldquouma forma de inimizade mortal agrave realidade que ateacute agora natildeo foi superadardquo (NIETZSCHE 2016 p 33) Para encerrar sua criacutetica no Anticristo natildeo eacute

Rafael Gonccedilalves da Silveira

239

por menos que Nietzsche vai propor toda negaccedilatildeo do tipo sacerdotal principalmente do sacerdote cristatildeo considerando o mesmo como aquele que ensina a antinatureza

Artigo primeiro ndash Viciosa eacute toda espeacutecie de antinatureza A mais viciosa espeacutecie de homem eacute o sacerdote ele ensina a antinatureza Contra o sacerdote natildeo haacute razotildees haacute o caacutercererdquo () Artigo quinto ndash Quem senta agrave mesa com um sacerdote eacute expulso excomunga a si mesmo da sociedade honesta O sacerdote eacute nosso chandala ndash deve ser banido esfomeado enxotado para toda espeacutecie de deserto (NIETZSCHE 2016 p 80)

4 Consideraccedilotildees finaisAo longo deste artigo buscamos apresentar a interpretaccedilatildeo feita por Maacuterio Ferreira

dos Santos sobre a criacutetica de Nietzsche ao cristianismo Focamos a exposiccedilatildeo do filosofo brasileiro principalmente em seu ensaio O homem que foi um campo de batalha publicado em 1945 Notamos que para aleacutem de um comentaacuterio fiel ao pensador do filosofo alematildeo Maacuterio escreveu uma interpretaccedilatildeo muito particular em que busca natildeo apenas descrever a criacutetica de Nietzsche mas como tambeacutem justifica-las

Tambeacutem opera uma defesa do cristianismo neste ensaio pois Maacuterio eacute um pensador cristatildeo que escreveu diversos trabalhos sobre o cristianismo principalmente sobre o anarquismo cristatildeo Percebemos que em certo ponto ele procurou estabelecer uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e a figura de Cristo mostrando a admiraccedilatildeo do filosofo alematildeo pelo ldquoRedentorrdquo principalmente atraveacutes da acusaccedilatildeo aos sacerdotes e a figura do apoacutestolo Paulo por deturpar o cristianismo autecircntico

Analisando algumas passagens das obras de Nietzsche percebemos que suas criacuteticas ao cristianismo satildeo bem mais fortes do que Maacuterio parece destacar em seu ensaio Contudo apesar das diferenccedilas latentes entre as passagens nietzschianas e o ensaio de Maacuterio prevalece o ataque ao cristianismo na figura do sacerdote como uma ponte entre os dois autores Destacamos que ao publicar seu ensaio Maacuterio ainda natildeo tinha conhecimento da revisatildeo e ediccedilatildeo criacutetica das obras de Nietzsche que seria realizada somente entre 1967-1978 atraveacutes do esforccedilo e competecircncia dos italianos Giorgio Colli e Mazzino Montinari Assim apesar do caraacuteter ameno ao analisar a criacutetica nietzschiana Maacuterio natildeo constitui ainda uma interpretaccedilatildeo cristianizada do filosofo de Assim falava Zaratustra mas tem seu meacuterito ao defender o filosofo numa eacutepoca em que Nietzsche era utilizado para justificar as mais diversas correntes tais como o socialismo o anarquismo e ateacute mesmo o movimento nazista ainda em voga na Europa da deacutecada de quarenta

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

240

Referecircncias bibliograacuteficasNETO SET de Melo Cristianismo 1ordm ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016NIETZSCHE Friedrich Humano demasiado humano Um livro para espiacuteritos livres 1ordm ed Satildeo Paulo Companhia das letras 2000_____ Aurora 1ordm ed Satildeo Paulo Companhia das letras 2016_____ Genealogia da Moral Uma polecircmica 1ordmed Satildeo Paulo Companhia das letras 2008 _____ Crepuacutesculos dos Iacutedolos Ou de como filosofar com o martelo 1ordm ed Satildeo Paulo Companhia das letras 2006_____ O Anticristo Maldiccedilatildeo ao cristianismo Ditirambos de Dioniacutesio 1ordm ed Satildeo Paulo Companhia das letras 2007RUBIRA Luiacutes Eduardo Uma introduccedilatildeo agrave transvaloraccedilatildeo de todos os valores na obra de Nietzsche1ordm ed Cascavel Revista Tempo da Ciecircncia 2005_____ Dicionaacuterio Nietzsche 1ordm ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016SANTOS Maacuterio Ferreira dos O homem que foi um campo de batalha 1ordm ed Porto Alegre O Globo 1945

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

241

Genealogia O chatildeo proacuteprio de Nietzsche

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia1

IntroduccedilatildeoHaacute em torno de quarenta registros do substantivo ldquogenealogiardquo e suas desinecircncias

em toda a obra de Nietzsche a maioria dos anos 1887 e 1888 ldquoGenealogia da moralrdquo em particular eacute uma expressatildeo que Nietzsche emprega exclusivamente no tiacutetulo de sua obra e em referecircncia a ela2 Nietzsche natildeo tem portanto como adverte Brusotti (2016 p 28) ldquoo menor interesse em designar apenas a si mesmo como lsquogenealogista da moralrsquo e qualificar apenas suas proacuteprias hipoacuteteses acerca da origem como lsquogenealoacutegicasrsquo Aleacutem disso ele nunca fala em um meacutetodo genealoacutegico mas apenas em um lsquomeacutetodo histoacutericorsquo (GM II 12 e GM II 13)rdquo Em que pese a escassez de ocorrecircncias e a ressalva do comentaacuterio Nietzsche natildeo se furta de considerar como lemos no proacutelogo da Genealogia da Moral (doravante GM) que com a genealogia ele finalmente alcanccedilou um modo proacuteprio de investigaccedilatildeo da moral

Para isso encontrei e arrisquei respostas diversas diferenciei eacutepocas povos hierarquias dos indiviacuteduos especializei meu problema das respostas nasceram novas perguntas indagaccedilotildees suposiccedilotildees probabilidades ateacute que finalmente eu possuiacutea um paiacutes meu um chatildeo proacuteprio um mundo silente proacutespero florescente como um jardim secreto do qual ningueacutem suspeitasserdquo (GM Proacutelogo 04)3

Insistindo nas imagens de Nietzsche afinal que ldquochatildeo proacutepriordquo eacute este da genealogia Quais satildeo as fronteiras de seu ldquopaiacutesrdquo os caminhos de seu ldquojardim secretordquo O que diferencia a genealogia de outros meacutetodos de investigaccedilatildeo da moral Aliaacutes a proacutepria definiccedilatildeo da genealogia como um ldquomeacutetodordquo eacute adequada Em suma o que eacute isto a genealogia O objetivo desta investigaccedilatildeo eacute demarcar algumas questotildees importantes agrave compreensatildeo da genealogia para Nietzsche a fim de contribuir para a definiccedilatildeo do objeto de anaacutelise mais amplo do receacutem-criado GT Genealogia e Criacutetica

Crise de identidadeEm German Philosophy (1760-1860) The Legacy of Idealism Terry Pinkard

reconstroacutei o ambiente histoacuterico-filosoacutefico da repentina e inesperada morte de Hegel em 1 Doutor em Filosofia pela UnicampEMA Greifswald Faculdade de Filosofia da UFG2 Binoche (2014 p 57) faz um mapeamento destas ocorrecircncias que enseja cinco conclusotildees a primeira de nosso pecu-

liar interesse nesta investigaccedilatildeo ldquoo termo genealogia sempre se remeteu sem duacutevida agrave mesma preocupaccedilatildeo a saber com uma historicidade original que supera as alternativas com as quais Nietzsche eacute confrontadordquo

3 As citaccedilotildees das obras publicadas de Nietzsche seguem a traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza da editora Companhia das Letras com exceccedilatildeo da segunda consideraccedilatildeo extemporacircnea com traduccedilatildeo de Andreacute Itaparica As citaccedilotildees do Nachlass seguem a notaccedilatildeo da KSA traduzidas por mim

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

242

novembro de 1831 e quatro meses depois a morte de Goethe Mesmo aos detratores a morte de Hegel representava o apagar de uma das maiores ldquoluzes intelectuaisrdquo da transiccedilatildeo do seacutec XVIII ao XIX e consequentemente o esfriamento das questotildees que ela iluminava Como reaccedilatildeo imediata seus alunos e amigos passaram a se mobilizar em torno de uma associaccedilatildeo dedicada a divulgar os trabalhos completos do filoacutesofo o que incluiacutea a famosa seacuterie de palestras sobre filosofia da religiatildeo filosofia da arte filosofia da histoacuteria e como marco teoacuterico desta investigaccedilatildeo a histoacuteria da filosofia

Frederick Beiser em Depois de Hegel a filosofia alematilde de 1840 a 1900 avalia a enorme influecircncia que a Geschichte der Philosophie (1833-1836) de Hegel exerceu sobre o que ele designa como as ldquonarrativas-padratildeordquo da historiografia filosoacutefica da segunda metade do seacutec XIX Grosso modo Beiser argumenta que a versatildeo do proacuteprio Hegel da filosofia que o circundava acabou por tornar-se a ldquodescriccedilatildeo padratildeordquo o ldquoparadigma predominanterdquo da filosofia do novecentos cujo principal evento o idealismo teria se iniciado em Kant passado por Reinhold Fichte e Schelling vindo a culminar no proacuteprio Hegel

Essa narrativa se consolidou em primeiro lugar dada a enorme influecircncia exercida pelo hegelianismo na primeira metade do seacutec XIX e em segundo lugar pela reafirmaccedilatildeo dessa histoacuteria por parte de outros importantes historiadores da filosofia daquele seacuteculo como Johann Erdmann e Kuno Fischer (referecircncia para Nietzsche nos estudos de filosofia moderna) sem mencionar seus desdobramentos no seacutec XX com as obras de Karl Loumlwith (1949) Richard Kroner (1921) e Frederick Copleston (1963)

O grande ocircnus dessa ldquonarrativa-padratildeordquo eacute que ela nos apresenta uma versatildeo restrita parcial da filosofia do novecentos jaacute que omite pelo menos trecircs tradiccedilotildees i) a tradiccedilatildeo idealista contemporacircnea a Hegel principalmente a sua adversaacuteria com J F Fries (1773-1843) J F Herbart (1776-1841) e F Beneke (1798-1854) ii) a tradiccedilatildeo idealista posterior a Hegel com pensadores que de algum modo reviveram o legado do idealismo como Adolf Trendelenburg (1802-1872) Hermann Lotze (1816-1881) e Eduard von Hartmann (1842-1906) iii) uma tradiccedilatildeo balizada por Schopenhauer (1788-1860) que natildeo recebe nenhuma menccedilatildeo na narrativa de Hegel mas que pauta a importante discussatildeo na segunda metade do seacutec XIX sobre o valor da vida

Contra estas narrativas-padratildeo (Hegel e Loumlwith em particular) Beiser (2017 p 25) propotildee que i) natildeo mais devemos falar sobre o fim da tradiccedilatildeo idealista em 1831 mas temos que a estender ateacute o fim do seacuteculo ii) natildeo mais devemos escrever sobre apenas uma tradiccedilatildeo idealista mas temos de considerar uma segunda e rival iii) natildeo mais devemos assumir que o marxismo e o existencialismo satildeo os principais movimentos teoacutericos da segunda metade do seacuteculo XIX iv) natildeo mais devemos tratar Schopenhauer como um dissidente Ao inveacutes disso conclui ele temos de incluir tambeacutem muitos outros movimentos tais como o idealismo tardio o historicismo o materialismo o neokantismo e o pessimismo

Cumpre mencionar por fim a grande ldquocrise de identidaderdquo que atingiu a filosofia alematilde na deacutecada de 1840 expressatildeo de Herbart Schnaumldelbach em sua Philosophie in Deutschland 1831-1933 Se antes sob o abrigo do meacutetodo a-priori e dedutivo da filosofia idealista pairava uma concepccedilatildeo mais ou menos clara e definida da filosofia de seus objetivos e meacutetodos e de suas relaccedilotildees com as ciecircncias empiacutericas com a emergecircncia do projeto fisicalista (Liebig Du Bois Reymond Helmholtz) dos primeiros neokantianos (Fries Herbart Beneke) e dos idealistas tardios (Lotze Trendelenburg Hartmann) ela se torna profundamente desacreditada A tarefa assumida pela filosofia de fornecer uma

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

243

fundamentaccedilatildeo para as ciecircncias que as abrigasse do ceticismo a partir do meacutetodo sistemaacutetico vai se esgotando na medida em que dentre outros os meacutetodos analiacuteticos de observaccedilatildeo e experimentaccedilatildeo dessas ciecircncias particularmente as ciecircncias empiacutericas como a fisiologia e a psicologia experimental em plena ascensatildeo na eacutepoca passam a alcanccedilar resultados vaacutelidos por si mesmos de maneira autocircnoma Com isso o papel central e institucionalmente estrateacutegico da filosofia como ldquoguardiatilde das ciecircnciasrdquo entra em colapso e ela passa a padecer da falta tanto de um objeto quanto de um meacutetodo proacuteprios

Meu interesse ao esquadrinhar brevemente este contexto eacute menos subscrever as descriccedilotildees propostas pelos inteacuterpretes e mais enfatizar trecircs pontos i) a profusatildeo de assuntos problemas pensadores e orientaccedilotildees que povoaram o seacuteculo XIX e em muitos casos o horizonte intelectual de Nietzsche (que conhecia direta ou indiretamente a maior parte dos pensadores e debates mencionados em especial Schopenhauer) ii) o vazio (de objetivos meacutetodos e mesmo institucional) deixado na filosofia da segunda metade do seacutec XIX com o esgotamento do idealismo especulativo iii) como consequumlecircncia disso as inuacutemeras tentativas de re-significar a filosofia na segunda metade do seacutec XIX

Isso porque num periacuteodo natildeo muito maior do que cinquenta anos o pensamento filosoacutefico na Alemanha almejou se reconstituir e redescobrir a partir de inuacutemeros projetos nenhum deles efetivamente capaz de preencher o vazio deixado pelo idealismo Tais projetos natildeo apenas pleitearam a pauta das discussotildees filosoacuteficas como disputaram a proacutepria redefiniccedilatildeo do que eacute a filosofia Mesmo considerando a dificuldade de compatibilizar uma noccedilatildeo standard de influecircncia da historiografia filosoacutefica a uma obra como a Nietzsche eacute inegaacutevel que a sua filosofia tenha sido engendrada precisamente no ambiente de crise identitaacuteria e reaccedilatildeo ao idealismo daquele meio seacuteculo Grande parte das tendecircncias e interlocutores que pleiteiam a agenda das discussotildees da segunda metade do seacutec XIX figuram no horizonte intelectual de Nietzsche e balizam a sua filosofia e particularmente a sua compreensatildeo da genealogia Sem querer com isso reduzi-la a uma soma de influecircncias espero aproximar a genealogia de Nietzsche a algumas dessas tendecircncias e interlocutores na tentativa de situaacute-la num debate mais amplo que nos permitiraacute uma primeira aproximaccedilatildeo

ReaccedilotildeesO colapso do programa fundacionista com a emergecircncia dos fisicalistas neo-

kantianos e idealistas tardios adensado pela ascensatildeo das ciecircncias empiacutericas e tornado urgente pela crise institucional na segunda metade do seacutec XIX produziu na filosofia um vazio mas tambeacutem gerou uma seacuterie de reaccedilotildees Trecircs delas inspiraram programaticamente a meu ver a genealogia Refiro-me agrave filosofia criacutetica ao historicismo e ao problema do valor da vida mais precisamente agrave postura da filosofia criacutetica o meacutetodo do historicismo e agrave pauta do valor da vida Na impossibilidade de apresentar cuidadosamente cada uma dessas reaccedilotildees tentarei alguns pontos que permitam conectaacute-las

A assim designada ldquofilosofia criacuteticardquo desenvolvida pelos intelectuais de Halle e Berlin conhecidos como os jovens ou a ldquoesquerda hegelianardquo dentre os quais menciono apenas os diretamente conhecidos por Nietzsche como Feuerbach (1804-1872) D F Strauss (1808-1874) F Vischer (1807-1887) e Bruno Bauer (1808-1892) aleacutem da origem hegeliana identificava-se por uma agenda poliacutetica radical A despeito de suas peculiaridades para esses pensadores a filosofia era entendida como uma praacutetica preponderantemente criacutetica no sentido de que ela deveria ser o escrutiacutenio das crenccedilas de diversas ordens metafiacutesicas

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

244

religiosas econocircmicas poliacuteticas Como sintetiza a famigerada afirmaccedilatildeo de Marx em carta a Arnold Ruge de setembro de 1843 a filosofia deveria se constituir como a ldquoCriacutetica implacaacutevel de qualquer coisa existenterdquo Essa criacutetica implacaacutevel operacionalizava-se no mais das vezes pela determinaccedilatildeo das origens e julgamento das pretensotildees de validade das crenccedilas numa postura tipicamente genealoacutegica aliaacutes Numa espeacutecie de iluminismo tardio pelo ldquofogo purificador da criticardquo como quer outra conhecida expressatildeo esta de Feuerbach nrsquoA essecircncia do cristianismo esses pensadores contrapunham-se agrave metafiacutesica especulativa e embora natildeo possuiacutessem nenhum compromisso com a tarefa para eles servil de fundamentaccedilatildeo das ciecircncias acreditavam poder salvaguardar a filosofia de sua crise de identidade pela tarefa fundamental e intransferiacutevel da criacutetica

Eacute importante esclarecer que o meacutetodo de investigaccedilatildeo da esquerda hegeliana deve muito de sua orientaccedilatildeo agrave teologia particularmente agrave assim designada ldquoEscola de Tuumlbingenrdquo ou ldquoEscola criacutetica da teologiardquo4 originada em meados de 1830 berccedilo intelectual de teoacutericos como B Bauer (1809-1882) e D Strauss (1808-1874) contra o qual Nietzsche insurgiu pessoalmente na primeira extemporacircnea Leitores de Spinoza eles passavam a tratar a Biacuteblia natildeo como a palavra inspirada de Deus a sagrada escritura mas como um documento histoacuterico o produto de seres humanos em um tempo e espaccedilo determinados Grosso modo portanto a filosofia criacutetica alarga o projeto da criacutetica teoloacutegica para os outros diversos acircmbitos da vida como a economia a poliacutetica a moral e a proacutepria filosofia com o objetivo de combater a alienaccedilatildeo em suas mais diferentes formas seja a crenccedila na procedecircncia divina dos priacutencipes a doutrina do espiacuterito absoluto a crenccedila em leis econocircmicas naturais ou a eacutetica baseada em mandamentos absolutos

Cumpre destacar e aqui vinculamos o historicismo agrave discussatildeo que um dos componentes fundamentais da teologia criacutetica conforme destaca Eduard Zeller (1814-1908) em seu Die Tuumlbinger historische Schule (1860) foi o meacutetodo polecircmico e inovador de tratar os textos (e temas) sagrados estritamente como documentos histoacutericos Esse meacutetodo por sua vez busca inspiraccedilatildeo no projeto da histoacuteria criacutetica engendrada no inicio dos anos 1800 por Barthold Niebuhr (1776-1831) e Leopold Ranke (1795-1886) Alcanccedilamos aqui a conexatildeo que nos permitiraacute avanccedilar aos bastidores mais proacuteximos da genealogia entre filosofia criacutetica escola de Tuumlbingen e escola criacutetica da histoacuteria De certo modo a filosofia criacutetica alarga o programa teoacuterico da escola de Tuumlbingen que por sua vez transpotildee o meacutetodo de Ranke e Niebuhr ao estudo da histoacuteria sacra

QuerelleA importante discussatildeo sobre a histoacuteria protagonizada ao longo de todo o seacutec XIX

adensa a meu ver um debate ainda mais amplo e caracteristicamente moderno que C Perrault (1628-1723) pautaraacute na Querelle des Anciens et des Modernes De modo sumaacuterio a Querelle foi uma polecircmica intelectual que agitou especialmente o mundo literaacuterio e artiacutestico francecircs do final do seacuteculo XVII ao seacuteculo XVIII e discutia a heranccedila relaccedilatildeo e superioridade dos autores da Antiguidade Claacutessica perante o pensamento moderno Em territoacuterio alematildeo ela ecoa nas discussotildees protagonizadas dentre outros por J C Gottsched (1700-1766) J J Bodmer (1698-1783) e J J Winckelmann (1717-11768) No fundo o que estaacute em jogo na Querelle eacute uma profunda investigaccedilatildeo uma auto-anaacutelise sobre o que significa ser moderno ali operacionalizada pelo contraste direto com os antigos5 4 Sobre a escola de Tuumlbingen cf WARTHMANN Stefan Die Katholische Tuumlbinger Schule Zur Geschichte ihrer

Wahrnehmung Stuttgart 2011 (Contubernium 75)5 Sobre a Querelle cf KYLOUSEK Petr Classicisme et Acircge des Lumiegraveres Masarykova univerzita Brno 2014

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

245

Esta discussatildeo comeccedila a se adensar na Alemanha com a Allgemeine Geschichtswissenschaft (1752) do pensador wolffiano Chladenius (1710-1759) em sua tentativa de estabelecer a histoacuteria como uma ciecircncia Do ponto de vista institucional por sua vez ela ganha corpo com a criaccedilatildeo das caacutetedras de histoacuteria nos cursos de teologia e direito que com a criaccedilatildeo da Universidade de Berlin em 1810 torna-se uma faculdade independente Surge neste momento justamente a escola criacutetica da histoacuteria protagonizada por Niebuhr e Ranke que tentaratildeo estabelecer definitivamente a cientificidade do conhecimento histoacuterico preconizando dentro outros que nenhuma fonte deve ser aceita simplesmente porque foi preservada e respeitada pela tradiccedilatildeo donde a necessidade de consultar os originais e avaliar sua autenticidade e que o conhecimento histoacuterico deve ser buscado por si independente da agenda do Estado e da Religiatildeo

Uma das mais fortes oposiccedilotildees que a escola criacutetica da histoacuteria encontrou foi justamente a filosofia sistemaacutetica do idealismo Fichte Schelling e Hegel como se sabe possuiacuteam uma filosofia da histoacuteria mundial formulada de acordo com meacutetodos a-priori Assim para eles a histoacuteria empiacuterica era vista como um mero objeto material para as histoacuterias especulativas Hegel aliaacutes considerava a histoacuteria criacutetica uma espeacutecie de conspiraccedilatildeo para esvaziar a histoacuteria de sentido reduzindo-a a fatos questionaacuteveis A histoacuteria assim deveria ser subordinada a um conceito um sistema filosoacutefico6

Particularmente Ranke em seu curso de 1831 insurgiraacute contra as filosofias da histoacuteria De acordo com ele a tarefa do historiador pelo meacutetodo analiacutetico natildeo eacute conhecer as leis gerais que governam uma coisa em particular mas o que haacute de uacutenico sobre ela Ranke assim contrasta os meacutetodos e aproximando o histoacuterico das ciecircncias naturais acusa a filosofia de estabelecer princiacutepios gerais que podem ser falsos e cuja legitimidade natildeo se pode estabelecer a natildeo ser atraveacutes de meios a-priori7 Antes mesmo de Marx e Kierkegaard portanto Ranke contribuiu fortemente para o descreacutedito do meacutetodo a-priori de Hegel na filosofia da histoacuteria

O historicismo de Ranke a par e passo com o positivismo cria contudo o mito da objetividade na historiografia contra o qual insurgiratildeo muitos dentre eles como aponta White (2001) J G Droysen (1808-1884) Croce (1866-1952) e Nietzsche Droysen em particular em seus cursos sobre o meacutetodo histoacuterico de 1857 contesta o ideal objetivo de Ranke pois segundo ele i) em histoacuteria natildeo eacute possiacutevel descrever fatos como nas ciecircncias naturais ii) natildeo haacute algo como fatos histoacutericos soacutelidos e seguros que independem do historiador (afinal o passado desapareceu e agora soacute existe na mente do historiador) iii) os fatos construiacutedos pelos historiadores dependem muito de seus interesses e valores e esses de seu tempoespaccedilo (cultura liacutengua etc) iv) o historiador tambeacutem eacute um fruto da histoacuteria logo o motivo e o modo dele fazer histoacuteria tambeacutem eacute histoacuterico Natildeo deve passar despercebido que um dos historiadores mais admirados por Nietzsche a quem ele endereccedilaraacute pessoalmente a sua extemporacircnea sobre a histoacuteria Jakob Burckhardt (1818-1897) estudou em Berlin entre 1839-1842 e frequentou os seminaacuterios de L Ranke Burckhardt poreacutem rejeitava tanto o historicismo quanto o positivismo e propunha com a sua historia cultural uma modalidade de literatura imaginativa proacutexima agrave poesia que natildeo pretendia a rigor contar uma histoacuteria mas pintar o retrato de uma eacutepoca ou como descreve 6 Nietzsche ataca esta postura em 5 [58] 1875 (KSA 8 56) ldquoA Alemanha se converteu na incubadora (Brutstaumltt) do

otimismo histoacuterico do qual Hegel eacute o culpado Sem embargo nenhum outro efeito da cultura alematilde resultou tatildeo perniciosordquo

7 Sobre isso cf BABEROWSKI Joumlrg Der Sinn der Geschichte Geschichtstheorien von Hegel bis Foucault Verlag C H Beck Muumlnchen 2005

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

246

Burke (2009) de apresentar uma perspectiva ou visatildeo (Anschauung) que resultasse em um retrato global (Gesamtschilderung)8

Situado o debate podemos avanccedilar agrave questatildeo que seraacute decisiva agrave compreensatildeo de Nietzsche da genealogia Refiro-me agrave compreensatildeo da histoacuteria discutida pelo filoacutesofo ao longo de toda a sua obra de modo mais concentrado numa obra publicada na segunda consideraccedilatildeo extemporacircnea

Das vantagens e desvantagens da histoacuteria para a vida (1874) condensa boa parte das posiccedilotildees de Nietzsche sobre a histoacuteria que tendo a ler concomitantemente agrave GM como uma espeacutecie de aporte metodoloacutegico Para alinhaacute-la agrave discussatildeo que vinha apresentando gostaria de destacar o triacuteplice modo de se relacionar com o passado ali descrito isto eacute o modo aistoacuterico histoacuterico e supra-histoacuterico que ensejam trecircs modalidades de historiografia a monumental a antiquaria e a criacutetica e trecircs espeacutecies de homem o de accedilatildeo o reverente e o negador A conclusatildeo de que Nietzsche ao colocar em perspectiva as vantagens e desvantagens de cada uma das histoacuterias estaria simplesmente se decidindo por uma delas parece-me apressada Isso aliaacutes ilustra bem a necessidade de se contextualizar o debate e as posiccedilotildees pois se Nietzsche simplesmente buscasse uma terceira via entre os dois modos de se relacionar com o passado e fazer histoacuteria o histoacuterico e o aistoacuterico o antiquaacuterio e o monumental sua posiccedilatildeo natildeo seria muito diferente daquela de J G Droysen por exemplo9 Nietzsche poreacutem pesa as vantagens e desvantagens de cada uma das espeacutecies de modo a promover uma anaacutelise complexa e perspectivistica do problema Assim a posiccedilatildeo da histoacuteria na segunda extemporacircnea natildeo se orienta apenas por dois pontos de referecircncia conta ou a favor mas por pelo menos seis pontos consideradas as vantagens e desvantagens de cada uma das trecircs modalidades com destaque agrave histoacuteria criacutetica por certo Eacute nesta complexidade e mesmo ambiguidade que devemos considerar a historiografia de Nietzsche e examinar suas posiccedilotildees

Ainda mais como o interesse de Nietzsche natildeo eacute reabastecer a proacutepria discussatildeo do historicismo mas colocaacute-lo tambeacutem em perspectiva ele estabelece um ponto de referecircncia balizador dos outros a vida Assim a reflexatildeo multifacetada sobre a histoacuteria tem em vista as consequecircncias que um tipo de relaccedilatildeo com o passado produz para a vida em uma eacutepoca determinada ou como podemos ler no prefaacutecio

Eacute certo que precisamos da histoacuteria mas de maneira diferente do que dela precisa o ocioso mimado no jardim do saber que pode nobremente olhar com desdeacutem para nossas toscas necessidades e nossas rudes carecircncias Isto eacute precisamos da histoacuteria para a vida e para a accedilatildeo e natildeo para uma cocircmoda renuacutencia da vida e da accedilatildeo ou ainda para a edulcoraccedilatildeo da vida egoiacutesta ou do ato covarde e vil (NIETZSCHE 2017 p 30)

Neste ponto a influecircncia de Schopenhauer transparece natildeo apenas pela contraposiccedilatildeo entre a faculdade da memoacuteria no homem e no animal que Nietzsche redige inspirado na seccedilatildeo ldquoDa histoacuteriardquo vol II do Mundo como vontade e como representaccedilatildeo mas sobretudo pelo registro em que ele se propotildee a examinar o problema da histoacuteria o da vida e seu

8 BURKE P Introduccedilatildeo In BURCKHARDT J A cultura do renascimento na Itaacutelia Traduccedilatildeo de Seacutergio Tellaroli Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009

9 Opondo-se agrave verdade e ao sentido do ponto de vista do valor certamente Nietzsche natildeo justifica apenas o uso instrumental que fez da filologia em 1872 ele encontra a ocasiatildeo para fazer um balanccedilo que retira a razatildeo de seus rivais ao mostrar que a histoacuteria positiva e a filosofia da histoacuteria satildeo igualmente patogecircnicas (BINOCHE 2014 p 39 Cadernos Nietzsche)

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

247

valor10 Com isso a triacuteplice conexatildeo que me propus a estabelecer no iniacutecio (entre filosofia criacutetica historicismo e o problema do valor da vida) estaacute caracterizada Tendo a reconhecer na genealogia ainda que em termos gerais e programaacuteticos uma inspiraccedilatildeo nestas trecircs problemaacuteticas que povoaram o seacutec XIX Eacute a partir desta demarcaccedilatildeo que proponho nos aproximarmos da GM particularmente considerando o objetivo mais amplo do GT Genealogia e Criacutetica de compreendecirc-la em e a partir de Nietzsche

GenealogiaDois apontamentos do ano de 1885 nos ajudam a compreender a dimensatildeo e a

importacircncia do problema da histoacuteria para Nietzsche que nos conduziratildeo ao centro da questatildeo que gostaria de problematizar No primeiro deles 38 [14] lemos

O que mais profundamente nos separa de qualquer modo de pensar platocircnico ou leibniziano eacute isto noacutes natildeo acreditamos em conceitos eternos valores eternos formas eternas almas eternas e a filosofia na medida em que eacute ciecircncia e natildeo legislaccedilatildeo soacute significa para noacutes a mais ampla extensatildeo do conceito de histoacuteria (KSA 11 613)

Jaacute no segundo apontamento 36 [27] Nietzsche pondera

A filosofia tal como a sigo reconhecendo isto eacute como a forma mais geral da histoacuteria [als die allgemeinste Form der Historie] como tentativa de descrever de algum modo o devir heraclitiano e reduzi-lo a signos (de traduzi-lo por assim dizer a uma espeacutecie de ser aparente e mumificaacute-lo) (KSA 11 562)

Como bem observa Jensen (2013 p 155) ldquoA historiografia eacute essencial para a filosofia de Nietzsche uma vez que seu proacuteprio assunto diz respeito a uma realidade que eacute histoacuterica por completo [] sua filosofia depende de sua versatildeo (account) do passado ndash sua capacidade de ldquodefinir aindardquo aquilo que natildeo ldquoestaacute assentadordquo11 Uma determinada versatildeo do passado eacute um paracircmetro decisivo para grande parte dos argumentos anaacutelises e personagens de Nietzsche Em sua filosofia o passado ou antes a possibilidade de retrataacute-lo de conhececirc-lo desempenha uma espeacutecie de funccedilatildeo reguladora de referencial analiacutetico sobre a qual se articulam os mais variados assuntos

No caso da moral em particular a consideraccedilatildeo da historicidade dos valores analisados e da proacutepria anaacutelise eacute uma condiccedilatildeo de probidade a qualquer anaacutelise Haacute que se empreender uma comparaccedilatildeo das diversas morais balizada pelo conhecimento acurado de povos eras e tempos como estabelece o aforismo 186 de Aleacutem do bem e do mal Por conseguinte como Nietzsche adverte pelo menos desde Humano demasiado Humano a falta de sentido histoacuterico revela-se como o ldquodefeito hereditaacuterio dos filoacutesofosrdquo que encantados pela Circe da moral soacute enxergam diante dela a possibilidade de justificaacute-la sem avanccedilar agrave consideraccedilatildeo do valor de seus valores

Esta nova perspectiva permite a Nietzsche operar uma grande revoluccedilatildeo nos estudos sobre a moral O problema que tenho em vista todavia natildeo eacute esgotado por ela O fato de 10 Eacute certo que Schopenhauer jaacute havia colocado a questatildeo do valor [Wert] da histoacuteria no capiacutetulo 38 dos suplementos

do Mundo mas era preciso entatildeo conferir ao termo seu sentido ordinaacuterio e perguntar-se qual interesse tinha o estudo da histoacuteria com que finalidade se consagrar a ela como por exemplo jaacute fazia Schiller em sua ceacutelebre aula inaugural de 1789 mesmo se fosse para responder de maneira totalmente diversa (BINOCHE 2014 p 38)

11 Neste trecho Jensen faz alusatildeo a uma carta de Nietzsche a Overbeck de 23 de fevereiro de 1887 onde lemos ldquoFi-nalmente minha desconfianccedila agora se volta para a questatildeo de saber se a histoacuteria eacute realmente possiacutevel O que entatildeo algueacutem quer definir (feststellen) Algo que em um momento de acontecimento natildeo ldquoestaacute assentadordquo (feststand)

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

248

Nietzsche empreender uma anaacutelise histoacuterica ou natural da moral natildeo legitima justifica ou valida a proacutepria possibilidade de fazecirc-lo Por isso a necessidade de reconstruir o ambiente da discussatildeo

Por que devemos confiar nas descriccedilotildees ou mesmo interpretaccedilotildees histoacutericas de Nietzsche Por exemplo nos modos de valorar do nobre e do escravo em GM ou mesmo nesta diferenciaccedilatildeo Se Nietzsche como lemos nos apontamentos acima natildeo quer pensar ao modo de um platocircnico ou leibniziano com suas figuras eternas mas ao modo heraclitiano pela descriccedilatildeo do devir qual eacute a garantia de que tal descriccedilatildeo possua o miacutenimo apelo agrave realidade e de que no limite uma obra como GM natildeo seja simplesmente uma ficccedilatildeo Objetivamente que garantia temos de que a versatildeo da histoacuteria de Nietzsche seja melhor do que as outras de que devemos levaacute-la e levaacute-lo a seacuterio

Estas satildeo verdadeiras questotildees de ordem quando nos dispomos a examinar as criacuteticas de Nietzsche particularmente se consideramos sua iniciativa de erigir uma genealogia da moral Para adensar esta questatildeo gostaria de recuperar dois trechos do proacutelogo de GM na seccedilatildeo 07

O objetivo eacute percorrer a imensa longiacutenqua e recocircndita regiatildeo da moral da moral que realmente houve que realmente se viveu [] Meu desejo em todo caso era dar um olhar tatildeo agudo e imparcial uma direccedilatildeo melhor a direccedilatildeo da efetiva histoacuteria da moral prevenindo-se a tempo contra essas hipoacuteteses inglesas que se perdem no azul

ldquoRealmenterdquo ldquoolhar agudordquo ldquoimparcialrdquo ldquodireccedilatildeo melhorrdquo ldquoefetiva histoacuteriardquo Ao escrever assim Nietzsche parece apostar na possibilidade de descrever como ele ainda designaraacute na sequecircncia do mesmo texto o ldquoefetivamente constataacutevelrdquo o ldquorealmente acontecidordquo da histoacuteria da moral Em poucas palavras Nietzsche parece acreditar que a sua versatildeo da histoacuteria da moral eacute de alguma forma melhor ou por que natildeo dizer mais verdadeira do que as outras Que o cinza de suas anaacutelises como ele sugere na diferenciaccedilatildeo da mesma seccedilatildeo (que chamaraacute a atenccedilatildeo de Foucault) eacute mais verdadeiro ou realista do que o azul das hipoacuteteses inglesas Mas como Nietzsche pode garantir isso E ademais isso natildeo comprometeria uma das diretivas baacutesicas de seu pensamento afinal de contas apenas para recordar um apontamento que se tornou proverbial ldquonatildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildeesrdquo 7 [60] (KSA 12 213)

Natildeo espero responder a estas questotildees Na verdade meu intuito ao suscitaacute-las eacute estimular o debate e apontar para questotildees elementares que deveremos enfrentar no GT Genealogia e Criacutetica Para direcionar a questatildeo neste momento gostaria de indicar algumas diretivas gerais

Tendo a pensar nestas questotildees pelo prisma de uma historiografia mais complexa como aquela preconizada desde a segunda extemporacircnea que pondera sob diversos pontos de referecircncia a partir da perspectiva da vida Neste sentido eacute preciso considerar que embora agrave primeira vista Nietzsche pareccedila apostar na possibilidade de uma descriccedilatildeo quase realista positiva do passado capaz de oferecer uma versatildeo mais verdadeira do que a de seus oponentes o procedimento genealoacutegico natildeo tem em vista a verdade mas o valor O que move a genealogia da moral natildeo eacute uma vontade de verdade mas uma vontade de poder

A genealogia de Nietzsche articula um novo modus cogitanti balizado pela vontade de poder e o perspectivismo logo o seu entendimento do que significa descrever e explicar o

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

249

passado natildeo pode ser resumido agrave oposiccedilatildeo miacuteope entre verdade e falsidade A representaccedilatildeo que produz a genealogia eacute ldquoverdadeirardquo no registro de uma historiografia peculiar que pesa vantagens e desvantagens uma historiografia criacutetica agocircnica que se constroacutei pelo contraste e escrutiacutenio de diferentes morais e tambeacutem dos diferentes modos de avaliaacute-la psicoloacutegico fisioloacutegico histoacuterico O apontamento 38 [4] de 1885 (KSA 11 613) eacute elucidativo neste sentido ldquolsquoVerdadersquo no meu modo de pensar natildeo significa necessariamente o contraacuterio do erro mas nos casos mais fundamentais tatildeo somente a posiccedilatildeo de diferentes erros entre sirdquo

Aleacutem disso a representaccedilatildeo das atuais consideraccedilotildees de valor eacute reconstruiacuteda a partir de um procedimento genealoacutegico que natildeo busca alcanccedilar algo como um principio originaacuterio mecacircnico e causal mas que tenta retratar reconstruir tipologizar os eventos e rupturas que foram mais decisivos para o seu atual estado de cristalizaccedilatildeo Trata-se de disputar pela representaccedilatildeo uma (re)interpretaccedilatildeo do passado privilegiando elementos e registros que natildeo foram privilegiados por outros justamente porque a versatildeo dos outros natildeo tem em mira a perspectivaccedilatildeo do valor mas a sua justificaccedilatildeo

Este grau esta nuance de verdade eacute o que se parece disputar na genealogia e com ela Nietzsche parece se reconciliar com o seu ofiacutecio de filoacutelogo ainda que seja como quer a famigerada expressatildeo de Willamowitz uma ldquofilologia do futurordquo

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

250

Referecircncias bibliograacuteficasBEISER Frederick C Depois de Hegel a filosofia alematilde de 1840 a 1900 Trad Gabriel Ferreira Satildeo Leopoldo Editora da Unisinos 2017BINOCHE B Do valor da histoacuteria agrave histoacuteria dos valores In Cadernos Nietzsche vol1 no34 Satildeo Paulo JanJun 2014BRUSOTTI Marco Descriccedilatildeo comparativa versus Fundamentaccedilatildeo o quinto capiacutetulo de Para Aleacutem de Bem e Mal ldquoContribuiccedilatildeo agrave histoacuteria natural da moralrdquo In Cadernos Nietzsche vol37 no1 Satildeo Paulo JanJune 2016BURCKHARDT J A cultura do Renascimento um ensaio Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009DENAT Celine A filosofia e o valor da histoacuteria em Nietzsche Uma apresentaccedilatildeo das Consideraccedilotildees extemporacircneas In Cadernos Nietzsche 26 2010 JENSEN K A Nietzschersquos Philosophy of History Cambridge Cambridge University 2013NIETZSCHE Friedrich Kritische Studienausgabe (KSA) Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari Muumlnchen Walter de Gruyter 1988_____ Das vantagens e desvantagens da histoacuteria para a vida Satildeo Paulo Hedra 2017 PINKARD Terry German Philosophy (1760-1860) The Legacy of Idealism Cambridge Cambridge University Press 2002 SCHNADELBACH H Philosophy in Germany 1831-1933 Cambridge Cambridge University Press 1984WHITE Hayden Troacutepicos do discurso Ensaios sobre a criacutetica da cultura Satildeo Paulo Ed USP 2001

Ricardo de Oliveira Toledo

251

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias no projeto cultural de Nietzsche durante a deacutecada de 1870

Ricardo de Oliveira Toledo1

1 Da necessidade de um projeto culturalDesde 1862 Nietzsche conviveu com o projeto do rei prussiano Guilherme I de

transformar os trinta e nove reinos germacircnicos num uacutenico Estado Nacional Otto von Bismarck tambeacutem conhecido como o Chanceler de Ferro liderou tal empreitada A unificaccedilatildeo se efetivou em 1871 quando a Pruacutessia venceu a Franccedila na Guerra Fanco-Prussiana Na ocasiatildeo os estados do sul foram anexados ao novo territoacuterio alematildeo Criava-se entatildeo o II Reich (ou II Impeacuterio Alematildeo) que passaria a experimentar um raacutepido desenvolvimento militar poliacutetico e econocircmico Poreacutem uma unidade permanecia natildeo concluiacuteda a identidade cultural dos cidadatildeos alematildees O problema da cultura europeia e especialmente alematilde ocupou boa parte das reflexotildees de Jacob Burckhardt e Friedrich Nietzsche

Numa carta para Friedrich von Preen do iniacutecio de 1870 Burckhardt (2003 p 275-277) demonstrou sua apreensatildeo quanto ao futuro cultural da Alemanha Ponderava que os dois povos de grande espiacuterito do continente europeu os franceses e os alematildees estavam passando por uma completa mudanccedila em sua cultura O preocupante natildeo seria a guerra travada mas o novo espiacuterito que viria a se configurar naquela eacutepoca de guerras Noutra carta ao mesmo destinataacuterio do dia 26 de abril de 1872 Burckhardt (2003 p 269) reflete sobre as recentes consequecircncias da vitoacuteria de Bismarck e de sua administraccedilatildeo militarizada que em pouco tempo empurraria os trabalhadores miseravelmente para as faacutebricas dando lugar a um Estado industrialista O desenvolvimento de uma soberania cultural duradoura ainda estava em sua infacircncia

Da parte de Nietzsche sua intensa reflexatildeo cultural nos anos 1870 pode ser observada desde sua obra O nascimento da trageacutedia Nesse livro encontra-se aquilo que poderia ser chamado de o projeto cultural juvenil de Nietzsche tendo a arte como um canal de maior calibre Aparecia em seu texto um desejo pelo alvorecer de uma cultura germacircnica forte Ao mesmo tempo havia uma preocupaccedilatildeo muito bem delineada sobre o indiviacuteduo e sua relaccedilatildeo com a cultura Nos escritos posteriores cresceria gradativamente uma veemente criacutetica agrave germanicidade artificial e decadente do poacutes-unificaccedilatildeo Um fator determinante embora natildeo exclusivo para que Nietzsche reavaliasse o seu projeto cultural de O nascimento da trageacutedia intensificando as suas criacuteticas sobre a cultura foi seu envolvimento intelectual com Jacob Burckhardt

1 Doutor em Filosofia pela UERJ

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias

252

2 A amizade e o interesse de Nietzsche pelo pensamento cultural de BurckhardtPara Andler (1958) a relaccedilatildeo entre Nietzsche e Burckhardt influenciou a ambos

A amizade entre o filoacutelogo ainda respirando os ares de sua prodigiosa juventude e o historiador uma notaacutevel figura em toda Basileia comeccedilou em 1869 quando Nietzsche decide se fixar definitivamente na cidade suiacuteccedila Escutava com admiraccedilatildeo cada liccedilatildeo sobre a histoacuteria ministrada por Burckhardt Em 7 de novembro de 1870 escreveu a Carl von Gersdorff

Ontem agrave noite tive um prazer que eu gostaria que o senhor e todas as pessoas compartilhassem Jacob Burckhardt fez uma leitura livre sobre a ldquoGrandeza Histoacutericardquo que esteve totalmente de acordo com nosso pensamento e sentimento Esse excelente e extraordinaacuterio homem embora natildeo entregue agrave distorccedilatildeo eacute ainda inclinado a abafar a verdade Mas em nossas caminhadas confidenciais ele chama Schopenhauer de ldquonosso filoacutesofordquo (NIETZSCHE 1975 v 3 p 154)

De acordo com Rossi (1987) a despeito da comum simpatia que os amigos nutriam por Schopenhauer o entusiasmo wagneriano de Nietzsche destoava do espiacuterito inteiramente emancipado que Burckhardt sempre buscou para si2 Seu amor e fidelidade agrave verdade o impediam de uma conversatildeo eufoacuterica a uma corrente intelectual vigente em seu tempo O distanciamento da cotidianidade atraveacutes de uma liberdade aristocraacutetica permitiria a Burckhardt contemplar com mais clareza a histoacuteria Assim havia feito com o otimismo hegeliano dos alematildees os positivistas de matrizes comteanas e diga-se de passagem as ondas proletaacuterias Ele era um mestre de seu tempo de seu povo apesar disso distante desse conservando sempre seu peculiar modo aristocraacutetico Mostrava repugnacircncia pelo novo conhecimento odiava os congressos a academia e a vida puacuteblica

Garner (1990) indica que aos olhos de Burckhardt as tendecircncias romacircnticas oitocentistas das quais Wagner fazia parte eram caracteriacutesticas de uma sociedade que se fundamentava em ideais revolucionaacuterios3 Em 1848 enquanto ocorria uma revoluccedilatildeo liberal e imprimia-se o Manifesto Comunista de Marx e Engels o historiador via naquelas ideias propostas de transformaccedilotildees sociais e consequentemente culturais alheias ao seu aristocratismo e conservadorismo Em seu conjunto formavam um todo confuso desembocando em muitos casos no nacionalismo exagerado com suas frentes poliacuteticas em quase todos os rincotildees europeus Correspondendo-se com Hermann Shauenburg em 23 de agosto de 1848 Burckhardt (2003 p 214) declara que tudo estava desconjuntado e que sentia a desorganizaccedilatildeo da vida privada na Alemanha e uma Europa arruinada Rechaccedilava as sublevaccedilotildees camponesas e proletaacuterias aleacutem de seus resultados Entendia que a formaccedilatildeo dos Estados nacionais esfacelava as esferas tradicionais de poder e impunha laccedilos sociais artificiais

Fernandes (2006) destaca que Burckhardt era um homem cansado de seu tempo natildeo mantendo boa relaccedilatildeo com qualquer coisa lembrasse a Modernidade A partir de uma carta para Schauenburg de fevereiro de 18464 o comentador relembra uma lista de homens dos quais o suiacuteccedilo queria se desvencilhar Eram eles os radicais comunistas industriais doutos ambiciosos reflexivos abstratos absolutos filoacutesofos sofistas fanaacuteticos do Estado e 2 Para mais informaccedilotildees sobre o assunto recomenda-se a leitura de Chaves 20003 Cf tambeacutem Kitch 20054 Cf Burckhardt 2003 p 198-199

Ricardo de Oliveira Toledo

253

idealistas Lista semelhante pode ser elaborada com base nos escritos de Nietzsche (1988 v 2) pois em vaacuterias passagens haacute criacuteticas a tais tipos de homens como se pode constatar nos aforismos 16 235 472 473 475 de Humano demasiado humano Isto demonstra o quanto ambos estavam de acordo no que tange a vaacuterios aspectos de sua cotidianidade Natildeo sabiam como lidar com as transformaccedilotildees em especial poliacuteticas pelas quais seu continente passava guardando delas um pessimismo constante

Dentre os grandiosos legados de Burckhardt algo que natildeo se pode deixar escapar eacute sua contribuiccedilatildeo a respeito da compreensatildeo da redescoberta do homem em sua singularidade na Renascenccedila italiana tese pela qual Nietzsche tinha grande apreccedilo5 Sobre ela Nietzsche (1988 v 7 p 327) comenta por exemplo em uma anotaccedilatildeo de 18716 No entendimento de Burckhardt (2009) teria havido durante o Renascimento um verdadeiro florescimento do indiviacuteduo e com este o alvorecer de uma nova humanidade que prepararia a Europa para o mundo moderno Neste ponto concorda-se com Kahan (1992) de que natildeo se deve confundir em Burckhardt Modernidade com moderno O primeiro termo se refere agrave era marcada pelo industrialismo pela agitaccedilatildeo do trabalho e pela difusatildeo de ideais poliacuteticos das massas O segundo aponta para a passagem da Idade Meacutedia para a Moderna periacuteodo no qual o homem estaacute desejoso pelo novo

Na visatildeo de Garner (1990) Burckhardt acreditava que a descoberta do ser humano o despertar da personalidade e o desenvolvimento do indiviacuteduo satildeo as marcas por excelecircncia do Renascimento como a aurora da eacutepoca moderna Surgia no periacuteodo uma nova consciecircncia do mundo do ser humano de seu impulso criativo e da cultura A individualidade passou a preceder ao sentimento imperioso do grupo do clatilde da coletividade Apoacutes a quase vigiacutelia medieval na qual o homem somente se reconhecia diluiacutedo numa coletividade foi na Itaacutelia em que pela primeira vez o homem tornou-se um indiviacuteduo espiritual reconhecendo-se como tal Todavia qualquer liberdade natildeo era gratuita pois o indiviacuteduo teria que lutar para preservar sua autonomia Uma personalidade livre enfrentaria uma vida nem sempre confortaacutevel com suacutebitas mudanccedilas assaz violentas num mundo em que a opiniotildees poderiam trazer terriacuteveis consequecircncias dentre as quais a morte e o exiacutelio A soberania poliacutetica dos principados italianos se apoiava sobre um solo recorrentemente movediccedilo As guerras e traiccedilotildees ndash algumas efetivadas entre parentes - ameaccedilavam o poder dos governantes e consequentemente a vida de seus suacuteditos e pupilos ao mesmo tempo em que geravam uma necessidade de aprimoramento beacutelico e artiacutestico tanto em acircmbito individual quanto poliacutetico Kahan (1992) salienta que a vida sem riscos almejada pela socialdemocracia europeia e levada a cabo na Alemanha por Bismarck contrastava com a atmosfera renascentista imolava e impedia a formaccedilatildeo completa do indiviacuteduo a partir de seus impulsos

Ao discutir sobre aperfeiccediloamento da personalidade nos paracircmetros renascentistas Burckhardt medita pontualmente sobre o conceito de homem universal um lugar-comum entre os historiadores do Renascimento e que natildeo foi negligenciado por Nietzsche (1988 v 2) como se lecirc no aforismo 237 de Humano demasiado humano No trecho satildeo elencadas as caracteriacutesticas da cultura do Renascimento movida por forccedilas positivas a saber a emancipaccedilatildeo do pensamento desprezo das autoridades triunfo da educaccedilatildeoformaccedilatildeo (Bildung) sobre a tradiccedilatildeo entusiasmo pela ciecircncia desgrilhoamento do indiviacuteduo e busca pela perfeiccedilatildeo em suas criaccedilotildees Huizinga (1970) explica a figura do uomo universale 5 Cf Campione et al 20036 NachlassFragmento poacutestumo (NFFP) 18719[143]

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias

254

isto eacute do grande gecircnio do Renascimento como aquele indiviacuteduo de personalidade livre que pairava sobre doutrinas e moral sendo tambeacutem arrogante friacutevolo e dado ao prazer Embora fosse curioso por tudo que o cercava orientava-se por suas proacuteprias regras Mais do que isso guardava uma paixatildeo pagatilde pela beleza pelo mundo e pela vida Tanto para Burckhardt quanto para Nietzsche essas forccedilas estavam diminuiacutedas na cultura europeia do final do seacuteculo XIX

O desenvolvimento do uomo universale aparece no texto de Burckhardt (2009) como Bildung isto eacute o aacuterduo processo para que algueacutem seja capaz de se construir e dar forma a si mesmo Numa perspectiva cultural um indiviacuteduo que reuacutene em si o maacuteximo em potecircncia histoacuterica de seu tempo eacute capaz de expressar em suas realizaccedilotildees uma gama indescritiacutevel de propriedades de sua cultura Por conseguinte transforma-se num elo necessaacuterio um momento iacutempar de sua cultura 7 Poreacutem a dominaccedilatildeo de todos os elementos da cultura natildeo eacute o mesmo que erudiccedilatildeo Mais importante que o simples saber era a utilizaccedilatildeo do conhecimento em prol da criaccedilatildeo Para o uomo universale a sua capacidade criativa era fruto de uma investigaccedilatildeo apurada do aprimoramento teacutecnico do domiacutenio do proacuteprio corpo e dos materiais ao seu redor Quanto mais rigorosa fosse a formaccedilatildeo imposta a si mesmo maior seria a tarefa para a qual se destinaria Dessa forma o Renascimento contou com aquele tipo de indiviacuteduos que Burckhardt chamou de plenamente desenvolvidos

4 Burckhardt no pensamento cultural sobre o indiviacuteduo de NietzscheSatildeo diversos os elementos nos escritos posteriores a O nascimento da trageacutedia que

demonstram que a amizade com Burckhardt e a leitura de seus textos contribuiacuteram para a que Nietzsche elaborasse uma forte criacutetica ao germanismo industrialista posterior agrave unificaccedilatildeo alematilde bem como uma avaliaccedilatildeo do tipo de indiviacuteduos de seu tempo Em Ecce Homo de 1888 Nietzsche (1988 v 6) reitera sua objeccedilatildeo agrave cultura alematilde apontando que isto o motivou a escrever as Extemporacircneas na deacutecada anterior Preocupado com o legado cultural do triunfo alematildeo na guerra contra a Franccedila iniciou sua Primeira Consideraccedilatildeo extemporacircnea David Strauss o devoto e o escritor de 1873 dizendo que uma grande vitoacuteria eacute um grande perigo Ameaccedilador se tornou o fato de a opiniatildeo puacuteblica e os pensadores alematildees acreditarem que uma conquista beacutelica desembocaria na vitoacuteria de sua cultura Natildeo era a cultura francesa que havia sido derrotada Longe disso os alematildees se mantinham dependentes dela Nas palavras do filoacutesofo ldquosoacute quando houvermos imposto a esses [os franceses] uma cultura alematilde original se poderaacute falar tambeacutem de um triunfo da cultura alematilderdquo (NIETZSCHE 1988 v 1 p 163-164) Enquanto o impeacuterio alematildeo se materializava o espiacuterito alematildeo era extirpado de seu solo O indiviacuteduo civilizado do II Reich era deacutebil e sem qualquer nobreza indiferente agraves origens de seu povo Neste ponto concorda-se com o significado do termo ldquoWolkrdquo explicitado por Mosse (1988) bastante adequado ao ponto de vista adotado por Nietzsche na Extemporacircnea em questatildeo ldquoWolkrdquo denotaria um conjunto de indiviacuteduos unidos por uma essecircncia transcendente um sentimento de comunidade que eacute igualmente fonte da criatividade de seus membros No novo Estado os alematildees se uniam por laccedilos artificiais ou seja pela exaltaccedilatildeo de valores poliacuteticos destoantes da natureza vigorosa e aristocraacutetica de seus antepassados eram meros cidadatildeos Tendo isto em conta Nietzsche exigia uma direccedilatildeo e uma unidade para a cultura alematilde ateacute entatildeo inexistente ou quando muito confundida

7 Cf Burckhardt 1959 capV

Ricardo de Oliveira Toledo

255

com os momentos culturais que nada mais eram do que horas de folga ou de digestatildeo Os alematildees se tornaram incapazes de criar um estilo proacuteprio na multiplicidade natildeo harmocircnica de uma miscelacircnea policrocircmica e desorientada de estilos emprestados O verdadeiro homem de cultura o artista criativo original e vigoroso sem o qual natildeo se pode pensar a cultura de um povo em certa eacutepoca era um tipo rariacutessimo O problema da cultura alematilde acabava passando pelo crivo do filisteu culto com sua natildeo-cultura (ou pseudocultura) filisteia ou melhor sua barbaacuterie sistemicamente estendida a todos os setores da sociedade Como reconhece Piazzesi (2003) aleacutem de natildeo haver durante os anos 1870 e 1880 uma cultura de identidade nacional inequiacutevoca natildeo havia um ser alematildeo encarnado uniacutevoco e coerente Existiam somente algumas manifestaccedilotildees isoladas sobre as quais se conseguiria construir a ideia de identidade nacional As produccedilotildees da cultura alematilde eram menos fruto de sua originalidade e mais da assimilaccedilatildeo de formas estilos estiacutemulos e de sugestotildees daquilo que lhe era estranho De algum modo os alematildees estariam sempre num certo atraso com relaccedilatildeo ao restante da civilizaccedilatildeo europeia A tarefa de dar direccedilatildeo e unidade para a cultura deveria ser para indiviacuteduos corajosos que enfrentassem a apatia cultural dos poliacuteticos pensadores artistas imprensa e instituiccedilotildees de ensino da Alemanha

A Segunda Consideraccedilatildeo extemporacircnea Das vantagens e desvantagens da Histoacuteria para vida de 1874 que conta com menccedilatildeo direta a Burckhardt8 eacute um dos momentos emblemaacuteticos que demonstram como o pensamento de Nietzsche (1988 v 1) estava contagiado por sua amizade com o suiacuteccedilo No texto na esteira de Burckhardt o filoacutesofo alematildeo aponta que um povo a quem se atribui uma cultura deve ser algo de uacutenico sem cisotildees entre o que nele eacute interno e externo forma ou conteuacutedo O restabelecimento da sauacutede de um povo passa pela promoccedilatildeo de sua unidade de estilo no reencontro de seus instintos e sua lealdade Adverte que os indiviacuteduos de seu tempo se colocavam diante de um palco como espectadores da festa de uma exposiccedilatildeo mundial organizada pelos seus artistas histoacutericos O indiviacuteduo titubeava desconfiando de seus instintos confuso pelo que ocorria agrave sua volta percebendo como caoacutetica a relaccedilatildeo entre sua interioridade e o que manifesta de si mesmo Para se preservar assumia uma maacutescara de pessoa culta douta poeacutetica e poliacutetica simulando seriedade No fundo sua personalidade deacutebil escondia as anguacutestias e as miseacuterias iacutentimas do homem da Modernidade introspectivamente rancoroso enquanto deveria ser corajoso e seguro Neste sentido este tipo de homem natildeo poderia se assemelhar aos indiviacuteduos fortes vigorosos e destemidos que numa eacutepoca qualquer construiacuteram uma verdadeira cultura A histoacuteria soacute seria suportada pelas personalidades fortes enquanto as debilitadas a cancelariam Em consonacircncia com Burckhardt Nietzsche entendia que seria o homem superior de vasta experiecircncia quem escreveria a histoacuteria Por conseguinte como um arquiteto do futuro poderia julgar o passado A melhor experiecircncia eacute retirada do presente Eacute a partir deste que se extrai o material para que artisticamente se consiga erigir uma cultura permeada pelo instinto criativo de seus indiviacuteduos Logo ldquo[] a arte se contrapotildee agrave histoacuteria e somente quando a histoacuteria suporta ser uma obra de arte pode talvez manter ou [] suscitar instintosrdquo (NIETZSCHE 1988 v 1 p 296) Natildeo era isso o que resultava da educaccedilatildeo histoacuterica dos jovens indiviacuteduos da eacutepoca de Nietzsche Sem jamais ter vivenciado aquilo que aprende o jovem pensava ser profundo conhecedor de tudo e por este motivo experiente Seu

8 Em correspondecircncia com Nietzsche em 25 de fevereiro de 1874 Burckhardt comenta a citaccedilatildeo de seu nome na obra sobre a qual se sentia pouco agrave vontade pois a imagem ali descrita natildeo era inteiramente a sua (BUR-CKHARDT 2003 p 295-297)

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias

256

aprendizado comeccedilava pelo fim do caminho uma vez que aquilo que assimilou eacute o que o filoacutesofo alematildeo chamava de ldquovelharias da humanidaderdquo Com premissas equivocadas a Modernidade tentava procriar um tipo especiacutefico de indiviacuteduos incapaz de alcanccedilar uma vitalidade que permitisse a realizaccedilatildeo de algo mais elevado do que aquilo que jaacute vivenciava em seu modelo de cultura A cultura histoacuterica oitocentista natildeo primava o grande indiviacuteduo mas dava voz a uma massa de indiviacuteduos indiscerniacuteveis A massa somente mereceria algum meacuterito por trecircs aspectos pela imitaccedilatildeo imperfeita dos grandes indiviacuteduos como obstaacuteculo para esses e enfim como seus instrumentos Por isso os instintos da massa natildeo seriam relevantes jaacute que natildeo conseguiriam fundar qualquer elemento historicamente relevante

Denat (2011) considera que a Modernidade para Nietzsche eacute uma eacutepoca de deacutecadance da vida e da cultura Sua cultura eacute uma foacutermula moacuterbida e seu homem um tipo humano fraco mediacuteocre sem personalidade e sem forccedila Ao viver uma crise pode descobrir condiccedilotildees para sua cura Embora possa cambalear entre a recuperaccedilatildeo ou a morte a Modernidade comporta as possibilidades para que o homem consiga se superar Satildeo quatro as grandes caracteriacutesticas de seu indiviacuteduo A primeira delas eacute seu desejo ilimitado de saber num apetite descomedido pela histoacuteria mas que atormenta a cultura por sua febre historiadora Nada eacute triado por essa espeacutecie de homem historicista-teoacuterico tudo eacute bom A perspectiva praacutetica ou vital eacute perdida A segunda caracteriacutestica eacute sua falta de gosto que tem como causa as ideias modernas e democraacuteticas que igualam o valor de todas as coisas impedindo que escolhas sejam operadas Natildeo se consegue mais valorizar ou desprezar reter ou rejeitar autonomamente Pior os instintos democraacuteticos levam a uma hostilidade ao que eacute mais elevado A terceira eacute a de ser difuso e caoacutetico O homem moderno eacute uma mistura de todos os estilos como aparece na Primeira Extemporacircnea ou uma acumulaccedilatildeo grotesca Sua diversidade eacute na verdade uma mistura caoacutetica e sem unidade A uacuteltima caracteriacutestica e de maior relevacircncia que pressupotildee o caos e a ausecircncia de disciplina eacute a inquietude a extrema agitaccedilatildeo que paradoxalmente pode desembocar numa paralisia conduzindo o desejo de saber ao ceticismo o otimismo teoacuterico ao pessimismo a esperanccedila do conhecimento e do domiacutenio absolutos ao sentimento de fim de desespero - niilismo Enquanto um filoacutesofo meacutedico Nietzsche especifica que sua tarefa seria a de mostrar um caminho para a superaccedilatildeo do homem moderno abrindo espaccedilo para uma grande sauacutede

A profilaxia de uma cultura fraca seria permeada por uma reflexatildeo sobre a nebulosa situaccedilatildeo do indiviacuteduo quanto aos paradigmas educacionais das instituiccedilotildees de ensino Em Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino de 1872 Nietzsche (1988 v 1) indica que o objetivo capital da educaccedilatildeo contra uma pseudocultura deveria ser a Bildung da juventude e simultaneamente o futuro da cultura e a purificaccedilatildeo do espiacuterito alematildeo Ao inveacutes de a educaccedilatildeo se comprometer com a especializaccedilatildeo erudiccedilatildeo e a formaccedilatildeo profissional com fins utilitaristas para que os alunos aprendessem a ganhar dinheiro para que se tornassem operaacuterios deveria passar por uma reforma tendo como principal objetivo o homem superior Em seu julgamento aquela cultura era inautecircntica e de mau gosto As instituiccedilotildees de ensino submetidas ao Estado reforccedilavam a tutela deste a partir de interesses utilitaristas e industrialistas Era necessaacuteria uma libertaccedilatildeo do Estado de suas universidades e do tipo de cultura que criavam9

9 Cf NFFP 187432[67]

Ricardo de Oliveira Toledo

257

Na Terceira Consideraccedilatildeo extemporacircnea Schopenhauer como educador de 1874 Nietzsche (1988 v 1) rejeita a tutela do Estado sobre a cultura atraveacutes de uma educaccedilatildeo adestradora Denuncia que os professores submetidos agraves vantagens sociais de suas profissotildees como a subsistecircncia estaacutevel propiciada por seus salaacuterios providos pelo Estado empreenderiam uma educaccedilatildeo artificializadora Dos jovens alunos restaria o indiviacuteduo cocircmodo complacente que evita o fastiacutegio sem autodomiacutenio criativo e mero repetidor da opiniatildeo puacuteblica Este seria o tipo vantajosovaloroso para o Estado que se fortalece na preguiccedila e na covardia de seus cidadatildeos mais obedientes Daiacute Nietzsche em Schopenhauer como educador apelar para que o mundo da cultura fosse independente do Estado e para que os indiviacuteduos reconhecessem outra finalidade para sua existecircncia que natildeo seja servi-lo Em seu projeto cultural entende que gecircnio deve ser o propoacutesito da cultura (Cultur) No entanto o primado educacional da erudiccedilatildeo continuava sendo um obstaacuteculo o ciacuterculo dos eruditos que se denominavam pessoas cultas bem como o tecnicismo natildeo favorecia mas impedia ldquoo desenvolvimento da cultura (Cultur) e a procriaccedilatildeo do gecircnio []rdquo (NIETZSCHE 1988 v 1 p 358)

Consideraccedilotildees finaisNietzsche foi um pensador da cultura Desde O nascimento da trageacutedia iniciou a

elaboraccedilatildeo de um projeto cultural para uma identidade do espiacuterito germacircnico O projeto sempre alterado pode ser lido com nuances proacuteprias nos escritos de 1870 dos quais foram destacados Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino e as trecircs primeiras Consideraccedilotildees extemporacircneas A expressatildeo ldquoprojeto culturalrdquo natildeo aparece nos textos do filoacutesofo alematildeo mas eacute cunhado nesta investigaccedilatildeo para expressar o que se entende como uma criacutetica cultural que possuiacutea expectativas a cura de uma cultura em crise atraveacutes do indiviacuteduo forte soberano de espiacuterito livre capaz de estender o processo criativo que deu forma a si mesmo agrave cultura tornando-se para ela um elo indispensaacutevel O pensamento de Nietzsche sobre o lugar e o papel do indiviacuteduo na cultura dialoga em vaacuterios aspectos com as reflexotildees que abordam a mesma temaacutetica em Burckhardt Para esse a cultura de seu tempo estava debilitada por estar alienada aos propoacutesitos do Estado industrialista Semelhante julgamento eacute visto em Nietzsche que atenta para os interesses econocircmicos e a tutela do Estado como prejudiciais para a cultura Burckhardt via com preocupaccedilatildeo o legado cultural da guerra entre a Franccedila e a Pruacutessia e a unificaccedilatildeo poliacutetica alematilde Este eacute outro ponto de congruecircncia com Nietzsche que natildeo percebia garantias de que a vitoacuteria alematilde seria a vitoacuteria do espiacuterito alematildeo Acreditava que a cultura germacircnica reduzida a uma cultura da naccedilatildeo alematilde estava apinhada de materiais estranhos e disformes sendo caoacutetica Para Burckhardt o Renascimento italiano foi um momento em que a instabilidade poliacutetica a competiccedilatildeo entre as cidades o entusiasmo pelo novo e o secularismo permitiram que ocorresse o desenvolvimento de indiviacuteduos soberanos e do uomo universale Isto contrastava com a realidade educacional de seu tempo muitas vezes subserviente ao Estado industrialista A formaccedilatildeo para o desenvolvimento de uma personalidade plena era colocada de lado para dar lugar agrave criaccedilatildeo de indiviacuteduos cultos ou operaacuterios das faacutebricas que buscavam sobretudo a organizaccedilatildeo o progresso a estabilidade e o bem-estar O grande indiviacuteduo indispensaacutevel para a cultura estava ameaccedilado A comparaccedilatildeo de Burckhardt entre a cultura do Renascimento italiano e a situaccedilatildeo da cultura na Alemanha na deacutecada de 1870 tambeacutem ocorre em Nietzsche A ideia de um Estado perfeito organizado e voltado para o bem-estar dos cidadatildeos poderia impedir o florescimento do grande indiviacuteduo Em contrapartida permitiria o sucesso da pseudocultura do filisteiacutesmo cultural e do indiviacuteduo vantajoso por proclamar os valores

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias

258

do Estado ou por ser um trabalhador Nietzsche desejava uma educaccedilatildeo que tivesse como grande finalidade a cultura livre das amarras do Estado que estimulasse o desenvolvimento de personalidades singulares e criativas Ao contraacuterio disso o ensino puacuteblico era nivelador massificador e portanto uniformizador O pensador alematildeo considerava necessaacuterio que o gecircnio fosse o propoacutesito da cultura pois quase todos os indiviacuteduos estavam debilitados Embora as reflexotildees de Burckhardt e de Nietzsche sejam atuais e bastante relevantes o esforccedilo desta pesquisa foi acima de tudo de fazer uma revisatildeo do pensamento de ambos para como consequecircncia obter maior compreensatildeo dos anseios do filoacutesofo alematildeo para a cultura

Ricardo de Oliveira Toledo

259

Referecircncias bibliograacuteficasANDLER C Nietzsche sa vie et sa penseacutee Les preacutecurseurs de Nietzsche La jeunesse de Nietzsche Paris Gallimard 1958BURCKHARDT J A Cultura do Renascimento na Itaacutelia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Cartas Trad Renato Rezende Rio de Janeiro Topbooks 2003_____ Meditazioni sulla storia universale Firenze Sansoni 1959CAMPIONE G et al Nietzsches persoumlnliche Bibliothek Berlin New York Walter de Gruyter 2003CHAVES E Cultura e poliacutetica O jovem Nietzsche e Jakob Burckhardt In Cadernos Nietzsche Satildeo Paulo n 9 p 41-66 2000CURT P Janz Vita di Nietzsche Bari Caterza 1982 Vol IIIDENAT Ceacuteline A concepccedilatildeo nietzschiana de homem moderno ou a modernidade como momento ldquocriacuteticordquo da histoacuteria In As ilusotildees do eu Spinoza e Nietzsche (Org MARTINS Andreacute SANTIAGO Homero OLIVA Luis Ceacutesar) Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2011FERNANDES C S Jacob Burckhardt e a preparaccedilatildeo para ldquoA Cultura do Renascimento na Itaacuteliardquo Fecircnix ndash Revista de Histoacuteria e Estudos Culturais v3 n 3 p1-18 2006GARNER R Jacob Burckhardt as a Theorist of Modernity Reading ldquoThe Civilization of the Renaissance in Italyrdquo Sociological Theory v 8 n 1 p 48-57 1990HUIZINGA J The problem of Renaissance In Men and ideas Essays on History the Middles Ages the Renaissance Trad J Holmes e H Marle New York Harper Torchbooks 1970KAHAN A S Aristocratic Liberalism The social thought of Jacob Burckhardt John Stuart Mill and Alexis de Tocqueville New York Oxford University Press 1992KITCH M Jacob Burckhardt Romanticism and cultural History In Historical Controversies and Historians W Lamont (org) London amp Pennsylvania Taylor amp Francis 2005MOSSE G The crisis of german idelology New York Grosset and Dunlap 1998NIETZSCHE F Saumlmtiliche Werke Kritische Studienausgabe ndash KSA (Herausgegeben von G Colli und M Montinari) Berlin New York Walter de Gruyter 1988 15 Baumlnden (15 volumes)_____ Brifwechsel Kritische Gesamtausgabe ndash KGB (Herausgegeben von G Colli und M Montinari) Berlin de Gruyter 1975 8 Baumlnden (8 volumes)PIAZZESI C Nietzsche Fisiologia dell rsquoarte e deacutecadence Lecce Conte Editore 2003ROSSI R Nietzsche e Burckhardt Genova Tilgher 1987

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno

260

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno retorno O resgate da inocecircncia do vir-a-ser

Roberta Franco Saavedra1

Uma das questotildees fundamentais da histoacuteria da filosofia ocidental eacute a anaacutelise das engrenagens dos pressupostos e das implicaccedilotildees das doutrinas morais Tradicionalmente os conceitos de ldquoculpardquo e ldquocastigordquo desempenham um importante papel na atribuiccedilatildeo de valores morais Tais conceitos fundamentam-se na crenccedila de que os indiviacuteduos satildeo dotados de uma suposta ldquovontade livrerdquo ou ldquolivre-arbiacutetriordquo o que em uacuteltima instacircncia permite a instituiccedilatildeo da imputabilidade ou responsabilidade moral Nietzsche como criacutetico ferrenho da tradiccedilatildeo de pensamento ocidental teria buscado desmistificar os pressupostos que garantem a sustentaccedilatildeo da chamada ldquoordem moral do mundordquo Uma das noccedilotildees centrais de sua filosofia consiste na concepccedilatildeo do eterno retorno e traz agrave tona uma interpretaccedilatildeo que reveste de necessidade o mundo e a existecircncia e destitui de sentido a oposiccedilatildeo metafiacutesica instaurada entre necessidade (mundo da natureza) e liberdade (mundo da vontade humana) A aposta no eterno retorno desestabiliza uma seacuterie de elementos cristalizados pela tradiccedilatildeo metafiacutesica mas aqui nos interessa especificamente a criacutetica agrave crenccedila no ldquolivre-arbiacutetriordquo humano Partindo disso este trabalho tem como objetivo principal investigar lanccedilando matildeo de uma perspectiva do eterno retorno a possiacutevel relaccedilatildeo de continuidade ou complementaridade e analisar os pontos convergentes entre dois textos nos quais Nietzsche trata do problema da imputabilidade moral Satildeo eles ldquoa faacutebula da liberdade inteligiacutevelrdquo (presente no corpo da obra Humano demasiado humano publicado em 1878) e o ldquoerro do livre-arbiacutetriordquo (compondo o capiacutetulo intitulado ldquoOs quatro grandes errosrdquo de Crepuacutesculo dos Iacutedolos publicado em 1888) Pretende-se diante disso investigar de que maneira a concepccedilatildeo do eterno retorno eacute uma forma de subversatildeo em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia ocidental no que concerne agrave questatildeo da imputabilidade moral ndash a partir da anaacutelise das duas possiacuteveis formas de abordagem do problema ndash e mapear os artifiacutecios dos quais Nietzsche se vale para investir no seu projeto de resgate da inocecircncia do vir-a-ser ndash inocecircncia que lhe foi despojada com a imposiccedilatildeo da crenccedila na imputabilidade ndash visando em uacuteltima instacircncia agrave inauguraccedilatildeo de um novo registro de pensamento e moralidade

O projeto da filosofia nietzschiana empenha-se sobretudo na criacutetica agrave metafiacutesica tradicional e na aposta em uma transvaloraccedilatildeo de todos os valores Em Assim falou Zaratustra por exemplo deparamo-nos com a radicalidade da criacutetica nietzschiana agrave fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da existecircncia o autor para simbolizar sua filosofia anti-metafiacutesica se vale da imagem do ldquomeio-diardquo ou seja o momento sem sombra de dicotomias suprimidas de afirmaccedilatildeo da existecircncia de uma uacutenica realidade Para marcar o ldquofim do longo errordquo 1 Doutoranda do PPGFUFRJ

Roberta Franco Saavedra

261

o filoacutesofo tambeacutem apresenta o personagem Zaratustra ldquoMeio-dia momento da sombra mais breve fim do longo erro apogeu da humanidade INCIPIT ZARATUSTRA [comeccedila Zaratustra])rdquo (Ibidem) Em sua obra autobiograacutefica Nietzsche refere-se a Assim falou Zaratustra como o auge da parte afirmativa de seu pensamento O autor presta cara homenagem a esta obra conferindo-lhe um valor superior em relaccedilatildeo aos outros escritos e cedendo a ela um lugar agrave parte (NIETZSCHE 2008 ldquoAssim Falou Zaratustrardquo sect 8 p 85) chegando ateacute mesmo a descrevecirc-la como o maior presente que ateacute agora fora ofertado agrave humanidade (Ibidem Proacutelogo sect 4 p 16) A razatildeo pela qual Nietzsche valoriza tatildeo enfaticamente Zaratustra deve-se agrave concepccedilatildeo fundamental da obra ldquoo pensamento do eterno retornordquo entendido como ldquoa mais elevada forma de afirmaccedilatildeo que se pode em absoluto alcanccedilarrdquo (Ibidem ldquoAssim Falou Zaratustrardquo sect 1 p 79) Em Assim falou Zaratustra o eterno retorno eacute trazido agrave tona atraveacutes de formas variadas e acompanhado de uma riqueza de siacutembolos a partir de uma linguagem poeacutetico-dramaacutetica mais ajustada com uma concepccedilatildeo artiacutestica existencial do que uma fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da existecircncia Partindo disso trabalharemos aqui com a hipoacutetese segundo a qual o pensamento do eterno retorno natildeo soacute confronta a tradiccedilatildeo metafiacutesica como tambeacutem cria outro registro de pensamento aliado com a arte operando para aleacutem das dualidades metafiacutesicas e efetivamente viabilizando o projeto nietzschiano de superaccedilatildeo da metafiacutesica

Apesar de compor o pensamento central de Assim falou Zaratustra o eterno retorno irrompe pela primeira vez em A gaia ciecircncia surgindo atraveacutes de uma forma de elaboraccedilatildeo que corrobora a tese de que se trata de uma ficccedilatildeo poeacutetica destituiacuteda de uma busca dogmaacutetica pela verdade (ou seja alheia a uma pretensatildeo ontoloacutegica) No livro IV de A gaia ciecircncia a anunciaccedilatildeo do eterno retorno se daacute nos seguintes termos ldquoE se um dia ou uma noite um democircnio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidatildeo e dissesse lsquoEsta vida como vocecirc a estaacute vivendo e jaacute viveu vocecirc teraacute de viver mais uma vez e por incontaacuteveis vezes ()rsquordquo (NIETZSCHE 2001 IV sect 341 p 230)

O gesto de apresentar o eterno retorno como hipoacutetese ficcional natildeo soacute ratifica e radicaliza a criacutetica agrave verdade ndash concebida como valor superior ndash como tambeacutem desmistifica uma seacuterie de conceitos cristalizados ao longo da tradiccedilatildeo de pensamento ocidental como as noccedilotildees de sujeito livre-arbiacutetrio temporalidade linear etc Conceber o eterno retorno tal como exposto por Nietzsche nos incita a pensar um novo modo de conceber a existecircncia que natildeo se ateacutem a nenhuma espeacutecie de fundamento metafiacutesico e que consiste na adoccedilatildeo de uma visatildeo traacutegica do mundo que afirma incondicionalmente a vida sem o objetivo de corrigi-la atraveacutes dos mecanismos da razatildeo

Para elucidar mais detidamente a ideia central do pensamento do eterno retorno podemos nos debruccedilar sobre uma passagem de Zaratustra na qual seus animais o reverenciam como ldquoo mestre do eterno retornordquo e com a imagem da ampulheta ndash tambeacutem presente no ldquomaior dos pesosrdquo de A gaia ciecircncia - elucidam essa outra concepccedilatildeo de temporalidade de histoacuteria de interpretaccedilatildeo da existecircncia

Pois teus animais bem sabem oacute Zaratustra quem tu eacutes e tens de tornar-te eis que eacutes o mestre do eterno retorno ndash eacute esse agora o teu destino[]Vecirc sabemos o que ensinas que todas as coisas eternamente retornam e noacutes mesmos com elas e que eternas vezes jaacute estivemos aqui juntamente com todas as coisas

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno

262

Ensinas que haacute um grande ano do vir-a-ser uma monstruosidade de grande ano tal como uma ampulheta ele tem de virar sempre de novo a fim de novamente escorrer e transcorrer -- de modo que todos esses anos satildeo iguais a si mesmos nas coisas maiores e tambeacutem nas menores ndash de modo que noacutes mesmos somos iguais a noacutes mesmos em cada grande ano nas coisas maiores e tambeacutem nas menores (NIETZSCHE 2011 ldquoO convalescenterdquo p 211 Grifos do autor)

O eterno retorno consiste portanto na repeticcedilatildeo ciacuteclica e eterna de todos os eventos a ampulheta eacute eternamente virada e tudo retorna incessantemente Nesse sentido podemos nos perguntar acerca das reverberaccedilotildees disso em um dos problemas claacutessicos da filosofia moderna como o problema da liberdade da vontade pois se o funcionamento do mundo ndash e dos sujeitos ndash opera sob o regime da necessidade como seria possiacutevel admitir ndash e demonstrar ndash a existecircncia do livre-arbiacutetrio humano Na afirmaccedilatildeo ilimitada e irrestrita do devir presente no pensamento do eterno retorno podemos dizer que natildeo existe ldquoliberdade da vontaderdquo ndash pelo menos natildeo de forma anaacuteloga agrave concepccedilatildeo tradicional do termo A partir dessa breve exposiccedilatildeo da perspectiva do eterno retorno estaremos em condiccedilotildees de melhor compreender o sentido da criacutetica que Nietzsche tece agrave ldquoliberdade inteligiacutevelrdquo e ao ldquoerro do livre-arbiacutetriordquo como modo de interpretar os desdobramentos do pensamento do eterno retorno no acircmbito do problema filosoacutefico que versa sobre as vicissitudes da dicotomia necessidadeliberdade

Um dos conceitos engendrados e enraizados pela tradiccedilatildeo metafiacutesica que o eterno retorno desestabiliza eacute a crenccedila no livre-arbiacutetrio ou na liberdade da vontade humana A concepccedilatildeo do eterno retorno traz agrave tona uma interpretaccedilatildeo que reveste de necessidade o mundo e a existecircncia e destitui de sentido a oposiccedilatildeo metafiacutesica instaurada entre necessidade (mundo da natureza) e liberdade (mundo da vontade humana) Eacute neste sentido que Nietzsche tece sua criacutetica agrave crenccedila no livre-arbiacutetrio em ldquoa faacutebula da liberdade inteligiacutevelrdquo o filoacutesofo descreve as fases principais da histoacuteria dos sentimentos em virtude dos quais os indiviacuteduos satildeo tornados responsaacuteveis por seus atos denominando esse processo como a histoacuteria dos sentimentos morais Nietzsche elenca a sequumlecircncia de ldquoerrosrdquo que por fim resulta na instituiccedilatildeo da imputabilidade moral

Primeiro chamamos as accedilotildees isoladas de boas ou maacutes sem qualquer consideraccedilatildeo por seus motivos apenas devido agraves consequumlecircncias uacuteteis ou prejudiciais que tenham Mas logo esquecemos a origem dessas designaccedilotildees e achamos que a qualidade de ldquobomrdquo ou ldquomaurdquo eacute inerente agraves accedilotildees sem consideraccedilatildeo por suas consequumlecircncias () Em seguida introduzimos a qualidade de ser bom ou mau nos motivos e olhamos os atos em si como moralmente ambiacuteguos Indo mais longe damos o predicado bom ou mau natildeo mais ao motivo isolado mas a todo o ser de um homem do qual o motivo brota como a planta do terreno (NIETZSCHE 2005 sect 39 p 45)

Os juiacutezos de valor moral ldquobomrdquo e ldquomaurdquo pressupotildeem e se sustentam na crenccedila na liberdade do sujeito que supostamente pratica a accedilatildeo pois se a accedilatildeo fosse considerada como executada de forma necessaacuteria (qual seja natildeo livre) tornar-se-ia inviaacutevel qualquer atribuiccedilatildeo de culpa qualquer espeacutecie de responsabilizaccedilatildeo Em sua abordagem Nietzsche procura demonstrar como os artifiacutecios de criaccedilatildeo do fundamento da imputabilidade foram articulados primeiramente os predicados ldquobomrdquo e ldquomaurdquo eram associados meramente

Roberta Franco Saavedra

263

agraves accedilotildees para posteriormente serem expandidos e atribuiacutedos ao ser humano isto eacute agrave totalidade do sujeito Em certo sentido podemos dizer que a condiccedilatildeo de possibilidade de todo julgamento moral eacute a crenccedila na liberdade da vontade isto eacute na liberdade do sujeito que pratica as accedilotildees ndash as quais em consonacircncia com esse sistema de raciociacutenio sustentado pelo edifiacutecio moral ndash seratildeo conformes agrave ldquonatureza moralrdquo do sujeito Como pontua Oswaldo Giacoacuteia em Nietzsche versus Kant

a teoria do caraacuteter inteligiacutevel tanto em Kant como em Schopenhauer eacute um recurso dos filoacutesofos para assegurar a legitimidade de conceitos fundamentais da moralidade tais como responsabilidade e imputaccedilatildeo e com isso justificar a atribuiccedilatildeo de culpa (GIACOacuteIA 2012 p 152)

Apoacutes elencar os erros oriundos da significaccedilatildeo moral da existecircncia Nietzsche anuncia o seu diagnoacutestico

E afinal descobrimos que tampouco este ser [o homem] pode ser responsaacutevel na medida em que eacute inteiramente uma consequumlecircncia necessaacuteria e se forma a partir dos elementos e influxos de coisas passadas e presentes portanto que natildeo se pode tornar o homem responsaacutevel por nada seja por seu ser por seus motivos por suas accedilotildees ou por seus efeitos Com isso chegamos ao conhecimento de que a histoacuteria dos sentimentos morais eacute a histoacuteria de um erro o erro da responsabilidade que se baseia no erro do livre-arbiacutetrio [] Logo porque o homem se considera livre natildeo porque eacute livre ele sofre arrependimento e remorso ndash (NIETZSCHE 2005 sect 39 p 45 ndash 46)

De acordo com o pensamento do eterno retorno o mundo eacute regido pela necessidade e o ldquoindiviacuteduordquo 2 natildeo pode ser considerado responsaacutevel por si mesmo porque estaacute inserido no ldquotodordquo

cada um eacute necessaacuterio eacute um pedaccedilo de destino pertence ao todo estaacute no todo ndash natildeo haacute nada que possa julgar medir comparar condenar nosso ser pois isto significaria julgar medir comparar condenar o todo Mas natildeo existe nada fora do todo (NIETZSCHE 2006 VI sect 8 p 46 Grifos do autor)

A responsabilidade natildeo deve ser atribuiacuteda a um suposto ldquosujeito livrerdquo porque toda vida opera conforme as leis de uma espeacutecie de ldquofatalidaderdquo Eacute neste sentido que ldquoNingueacutem eacute responsaacutevel pelo fato de existir por ser assim ou assado por se achar nessas circunstacircncias nesse ambienterdquo (Ibidem) Verificamos ainda uma nova concepccedilatildeo de tempo que parece inaugurar uma espeacutecie de temporalidade circular que unifica natildeo soacute ldquosujeitordquo e ldquomundordquo como tambeacutem passado presente e futuro ldquoA fatalidade do seu ser natildeo pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e seraacuterdquo (Ibidem) Se tudo eacute necessaacuterio entatildeo tudo estaacute contido no ldquofadordquo ndash ateacute mesmo as objeccedilotildees e resistecircncias a essa ideia afinal

cada ser humano eacute ele proacuteprio uma porccedilatildeo de fado quando ele pensa contrariar o fado [] justamente nisso se realiza tambeacutem o fado a luta eacute uma ilusatildeo mas igualmente a resignaccedilatildeo ao fado todas essas ilusotildees se acham incluiacutedas no fado (NIETZSCHE 2008 ldquoO andarilho e sua sombrardquo sect 61 p 199)

2 Entendido aqui como ficccedilatildeo pois a ideia de unidade natildeo comporta para Nietzsche as inuacutemeras relaccedilotildees entre forccedilas que compotildeem um indiviacuteduo

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno

264

Dessa forma Nietzsche desarticula e esvazia de sentido as engrenagens das dicotomias metafiacutesicas ao suprimir a oposiccedilatildeo entre ser humano e mundo assim como a oposiccedilatildeo entre sujeito e objeto ao contraacuterio ambos formam o ldquotodordquo e portanto encontram-se sob o mesmo regime de funcionamento Segundo Giacoacuteia

[] dissolve-se a oposiccedilatildeo comum a Platatildeo Kant e Schopenhauer entre necessidade mecacircnica vigente na natureza e liberdade (natildeo fenomecircnica pois o homem empiacuterico como parte da natureza encontra-se submetido agrave seacuterie necessaacuteria de causas invariaacuteveis liberdade portanto transcendental apreensiacutevel do ponto de vista natildeo fenomecircnico fora das coordenadas de tempo espaccedilo e causalidade natural ndash o uacuteltimo reduto metafiacutesico em que se abrigou na modernidade a faacutebula do livre-arbiacutetrio e com ele a possibilidade de justificaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo dos juiacutezos de valor moral e imputaccedilatildeo) (GIACOacuteIA 2012 p 153)

O termo ldquoliberdade inteligiacutevelrdquo eacute denunciado por Nietzsche como uma faacutebula porque essa concepccedilatildeo de liberdade baseia-se em princiacutepios metafiacutesicos ndash pois de acordo com a tradiccedilatildeo o mundo fenomecircnico (aparente) eacute regido pela necessidade mecacircnica ao passo que o mundo inteligiacutevel (isto eacute o mundo verdadeiro metafiacutesico) garantiria o fundamento da liberdade humana A histoacuteria dos sentimentos morais eacute interpretada como o desdobramento de uma seacuterie de equiacutevocos conceituais porque se sustenta em pressupostos forjados ndash ou seja em nenhuma medida ldquoaprioriacutesticosrdquo ndash como as noccedilotildees de sujeito liberdade inteligiacutevel imputabilidade moral etc

Na anaacutelise do ldquoerro do livre-arbiacutetriordquo a discussatildeo eacute desenvolvida em outros termos passando pelo crivo da criacutetica a partir de uma avaliaccedilatildeo mais declaradamente sintomatoloacutegica Se em Humano demasiado humano Nietzsche relata os rumos do percurso da histoacuteria dos sentimentos morais em Crepuacutesculo dos iacutedolos o filoacutesofo busca responder agraves questotildees de ordem mais psicoloacutegica afinal por que querer julgar E por que querer incutir culpa A origem da responsabilidade tem como pressuposto fisioloacutegico a fraqueza instintiva o objetivo do advento da responsabilidade (que viabilizou a criaccedilatildeo da culpa) consistiu na justificaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo da puniccedilatildeo Para Nietzsche os indiviacuteduos foram considerados livres com o intuito de permitir ou autorizar os mecanismos intriacutensecos ao ato do julgamento e sua consequumlente puniccedilatildeo A gecircnese da liberdade da vontade fora localizada no campo da consciecircncia ndash entendida como instacircncia produtora da vontade e governada pela contingecircncia ndash o que corresponde para o filoacutesofo alematildeo ldquoagrave mais fundamental falsificaccedilatildeo da moeda em questotildees psicoloacutegicasrdquo

Onde quer que responsabilidades sejam buscadas costuma ser o instinto de querer julgar e punir que aiacute busca O vir-a-ser eacute despojado de sua inocecircncia quando se faz remontar esse ou aquele modo de ser agrave vontade a intenccedilotildees a atos de responsabilidade a doutrina da vontade foi essencialmente inventada com o objetivo da puniccedilatildeo isto eacute de querer achar culpado () Os homens foram considerados lsquolivresrsquo para poderem ser julgados ser punidos ndash ser culpados em consequumlecircncia toda accedilatildeo teve de ser considerada como querida e a origem de toda accedilatildeo localizada na consciecircncia (ndash assim a mais fundamental falsificaccedilatildeo de moeda em questotildees psicoloacutegicas transformou-se em princiacutepio da psicologia mesma) (NIETZSCHE 2006 VI sect 7 p 45 ndash 46 Grifos do autor)

Roberta Franco Saavedra

265

O pensamento do eterno retorno instaura um caraacuteter de necessidade em cujo indiviacuteduo ndash concebido natildeo como sujeito mas como parte do todo como jogo instintivo de forccedilas ndash estaacute submetido O instinto de querer julgar e punir pulsa em um tipo de vida enfraquecido que se ressente contra o passado e eacute incapaz de afirmar a existecircncia tal como ela se apresenta procurando recalcar seus aspectos mais problemaacuteticos A puniccedilatildeo eacute um modo de consumaccedilatildeo da vinganccedila daqueles que natildeo possuem forccedila suficiente para afirmar o necessaacuterio para suportar o fado Eacute neste sentido que a repeticcedilatildeo eterna e circular de todos os eventos potildee em xeque uma significaccedilatildeo ontoloacutegica da existecircncia se absolutamente tudo eacute necessaacuterio e se natildeo haacute instacircncia ontoloacutegica para ldquosalvarrdquo a liberdade da vontade os juiacutezos morais de imputaccedilatildeo satildeo insustentaacuteveis

Para arrasar o edifiacutecio metafiacutesico e efetivamente viabilizar seu projeto Nietzsche inscreve-se em outro registro para reclamar o resgate da inocecircncia do vir-a-ser ndash inocecircncia que lhe foi despojada com a artimanha da responsabilidade

O fato de que ningueacutem mais eacute feito responsaacutevel de que o modo do ser natildeo pode ser remontado a uma causa prima () apenas isto eacute a grande libertaccedilatildeo ndash somente com isso eacute novamente estabelecida a inocecircncia do vir-a-ser (NIETZSCHE 2006 VI sect8 p 46 ndash 47 grifos do autor)

Importante ressaltar que o pensamento do eterno retorno natildeo incorre em uma concepccedilatildeo radicalmente determinista natildeo se trata da enunciaccedilatildeo de um fatalismo cego mas da incitaccedilatildeo de um pathos afirmativo em relaccedilatildeo agrave existecircncia A partir da compreensatildeo dessa nova forma de interpretaccedilatildeo abrem-se as possibilidades de ressignificaccedilatildeo de termos e conceitos exaustivamente utilizados pela tradiccedilatildeo como sinaliza Giacoacuteia

A paulatina compreensatildeo de que tudo eacute necessaacuterio conduz ao refinamento do sentimento e da ideia de justiccedila ndash mas de uma justiccedila que natildeo mais condena e pune senatildeo que absolve que faz compreender tambeacutem que tudo eacute inocecircncia pois tudo se encadeia numa mesma e uacutenica corrente do vir-a-ser (GIACOacuteIA 2012 p 153 Grifos do autor)

A noccedilatildeo de justiccedila adquire assim uma nova roupagem desvinculando-se de qualquer espeacutecie de vinganccedila Giorgio Agamben tambeacutem atenta agrave outra possiacutevel ressignificaccedilatildeo presente na filosofia de Nietzsche (AGAMBEN 2015 p 47) outro conceito ldquotransvaloradordquo eacute o de redenccedilatildeo ndash que historicamente eacute um termo apropriado pela doutrina cristatilde ndash ldquoZaratustra eacute aquele que ensina agrave vontade a lsquoquerer para traacutesrsquo a transformar todo lsquoassim foirsquo em um lsquoassim eu quisrsquo lsquoapenas isto se chama redenccedilatildeorsquordquo

O pensamento do eterno retorno para aleacutem de esvaziar o sentido das produccedilotildees metafiacutesicas cristalizadas na cultura ocidental estabelece uma nova interpretaccedilatildeo da existecircncia que consiste sobretudo na afirmaccedilatildeo da inocecircncia Inocecircncia entendida como constitutiva do pathos que diz respeito a todas as partes do todo ndash movimento que requer para ser plenamente compreendido o entendimento de que eacute absurdo separar a forccedila daquilo que ela pode e a vontade daquilo que lhe corresponde diretamente (DELEUZE 2018 p 36) pois a inocecircncia eacute o jogo da existecircncia da forccedila e da vontade e a primeira aproximaccedilatildeo da inocecircncia consiste na natildeo separaccedilatildeo da forccedila e no natildeo desdobramento da vontade

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno

266

Referecircncias bibliograacuteficasDELEUZE Gilles Nietzsche e a filosofia Trad de Mariana de Toledo Barbosa Oviacutedio de Abreu Filho Satildeo Paulo n-1 ediccedilotildees 2018GIACOIA JUNIOR Oswaldo Nietzsche x Kant uma disputa permanente a respeito de liberdade autonomia e dever Rio de Janeiro Casa da Palavra Satildeo Paulo Casa do Saber 2012NIETZSCHE Friedrich Humano demasiado humano Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005_____ Humano demasiado humano II Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008_____ Aurora reflexotildees sobre os preconceitos morais Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004_____ A gaia ciecircncia Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011_____ Genealogia da moral uma polecircmica Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos Trad de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006_____ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Wilson Luciano Onofri

267

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista de Nietzsche a partir do conceito de autossupressatildeo

Wilson Luciano Onofri1

Consideraccedilotildees iniciais Nos uacuteltimos anos da pesquisa Nietzsche presenciamos uma enxurrada de estudos

cujas orientaccedilotildees teoacutericas remontam abordagens naturalistas invadirem congressos e simpoacutesios dedicados ao filoacutesofo Isso natildeo deixou de causar espanto a muitos daqueles que se dedicam ao estudo o filoacutesofo natildeo porque tal abordagem natildeo encontre ressonacircncia nos textos de Nietzsche mas porque essas interpretaccedilotildees tendo seu lugar nas estrateacutegias filosoacuteficas do pensador alematildeo tem resultado em aporias interpretativas ainda mais radicais do que a exegeses estava acostumada

As contradiccedilotildees e ambiguidades sempre foram reconhecidas como presentes no pensamento do filoacutesofo sendo inclusive reconhecidas como parte de seu exerciacutecio filosoacutefico todavia os problemas comeccedilam quando se procura harmonizar as pretensotildees criacuteticas radicais presentes com sua instrumentalizaccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico e seus principais resultados no seu programa filosoacutefico O problema parece se manifestar basicamente de duas formas a saber o programa criacutetico de Nietzsche muitas vezes tem como alvo as proacuteprias ciecircncias e suas bases epistemoloacutegicas inviabilizando as pretensotildees de validade dessa perspectiva no interior de seu proacuteprio pensamento e de outro temos a presenccedila dessas abordagens de cunho naturalista inspirada nos meacutetodos e conquistas das ciecircncias apresentando-se para aleacutem de pretensotildees meramente criacuteticas mas pelo contraacuterio buscando seu lugar no tatildeo discutido vieacutes propositivo do pensamento do filoacutesofo

Como forma de se buscar transpor esse problema instaurado no interior da disputa exegeacutetica dos estudos do filoacutesofo uma epistemologia de ordem pragmaacutetica2 tem se mostrado como mais promissora na harmonizaccedilatildeo de perspectivas tatildeo contraditoacuterias no interior de um pensamento que natildeo se pretendeu sistemaacutetico mas que todavia eacute sempre intimado a prestar contas sobre suas pretensotildees e meacutetodos diante a comunidade filosoacutefica especializada

Nesse sentido buscaremos estabelecer aqui a relaccedilatildeo entre a consumaccedilatildeo da epistemologia pragmaacutetica nietzschiana e o conceito de autossupressatildeo Para tanto tomamos como ponto de partida o programa nietzschiano de criacutetica do pensamento metafiacutesico de

1 (UFES)2 Tendo em vista as dificuldades de se realizar mesmo que de forma sumaacuteria a reconstruccedilatildeo do pragmatismo niet-

zschiano adotamos um conceito frouxo referente determinaccedilatildeo de validade de uma teoria tendo em vista o ecircxito praacutetico em detrimento de correntes fundacionistas do conhecimento

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista

268

cunho socraacutetico-platocircnico como base da ontologia do ser na qual a moral ocidental se fundamenta mostrando como o desenvolvimento desse programa vai se consumando numa epistemologia pragmatista onde seus recursos de ordem naturalista estatildeo ancorados Assim aquilo que tem iniacutecio como uma criacutetica externa histoacuterico-naturalista de cunho empiacuterico evolui para uma criacutetica imanente a partir da noccedilatildeo de autossupressatildeo da veracidade

A ideia que motiva este trabalho eacute tentar demonstrar que agraves posiccedilotildees pragmaacuteticas encenadas na obra de Nietzsche que muitas vezes satildeo acusadas como parte do relativismo orgiaacutestico-dionisiacuteaco de cunho estetizante e raso subjazem um profundo zelo e rigor teacutecnico Assim conforme se tentaraacute mostrar a seguir as criacuteticas feitas por Nietzsche agrave ontologia do ser se desenvolve de uma postulaccedilatildeo empiacuterica problemaacutetica para fornecer elementos para ontologia da instabilidade do devir de onde proveacutem sua criacutetica a moralidade e evolui para uma criacutetica imanente por meio do conceito de autossupressatildeo de forma que por meio do desenvolvimento desse programa criacutetico podemos conceber uma conclusatildeo de uma epistemologia pragmatista

Da criacutetica histoacuterico-natural agrave autossupressatildeo Vemos em Humanos demasiado humano (doravante citada como HH) obra

compreendida como inaugural do periacuteodo intermediaacuterio de seu pensamento haacute um ataque por parte de Nietzsche agrave filosofia dogmaacutetico-metafiacutesica endossada entatildeo pela tradiccedilatildeo filosoacutefica Este ataque feito a partir da instrumentalizaccedilatildeo da histoacuteria natural como forma de criticar os fundamentos das quais foram construiacutedas a cultura em geral consiste em mostrar a inadequaccedilatildeo da proacutepria noccedilatildeo de estabilidade ligada agrave ontologia do ser por meio do apontamento das mudanccedilas ocorridas na histoacuteria compreendendo o proacuteprio ser humano como parte da natureza

Natildeo pode mais segundo Nietzsche a tradiccedilatildeo filosoacutefica conceber os problemas filosoacuteficos a partir da negaccedilatildeo da provisoriedade dos fenocircmenos e a partir disso a consequente postulaccedilatildeo de ldquouma origem miraculosardquo como que dois mil anos atraacutes tem feito a dogmaacutetica metafiacutesica Pelo contraacuterio deve a filosofia histoacuterica se unir enquanto ferramenta filosoacutefica agraves ciecircncias naturais a fim de que se possa superar o dualismo ontoloacutegico que contamina desde os fundamentos o pensamento filosoacutefico Natildeo mais a partir de equiacutevocos de pressuposiccedilotildees apressadas e natildeo averiguadas deve ser feita a reflexatildeo filosoacutefica mas a partir da perspectiva da anaacutelise empiacuterica do desenvolvimento dos fenocircmenos3

Dessa mesma forma tambeacutem eacute problemaacutetico a partir dessas consideraccedilotildees continuar considerando o proacuteprio homem sob as quais satildeo feitas as reflexotildees do presente nos termos de uma verdade eterna O ldquodefeito hereditaacuterio de todos os filoacutesofosrdquo eacute ldquotomar a configuraccedilatildeo mais recenterdquo como se ele tambeacutem natildeo tivesse vindo a ser 4 Dessa forma o ldquodefeito hereditaacuterio dos filoacutesofosrdquo eacute ignorar ldquosentido histoacutericordquo do objeto analisado A partir dessa constataccedilatildeo da temporalidade do tipo de homem que a filosofia trata como ldquoverdade eternardquo conclui o filoacutesofo que ldquotudo veio a ser natildeo existem fatos eternos assim como natildeo existem verdades absolutas ndash Portanto o filosofar histoacuterico eacute doravante necessaacuterio e com ele a virtude da modeacutestiardquo5

Vejamos a partir de consideraccedilotildees do proacuteprio Nietzsche que apesar de se referir ao meacutetodo histoacuterico naturalista para criticar a ontologia da estabilidade do ser quando afirma

3 HH 14 Ibidem 25 Ibidem

Wilson Luciano Onofri

269

que ldquotudo veio a ser natildeo existem fatos eternos assim como natildeo existem verdades absolutasrdquo6 ele mesmo enfatiza a necessidade ldquovirtude da modeacutestiardquo Natildeo parece difiacutecil constatar que Nietzsche tinha consciecircncia dos limites de sua ferramenta filosoacutefica e por isso exercitava ele mesmo a ldquovirtude da modeacutestiardquo em seu proacuteprio pensamento (pelo menos que se refere a tomada gradual de consciecircncia dos problemas oriundos de suas experimentaccedilotildees filosoacuteficas)

ldquoO espirito da ciecircncia eacute poderoso na parte natildeo no todordquo jaacute observava Nietzsche de forma que ldquoos campos distintos das ciecircncias satildeo tratados de modo puramente objetivordquo e jaacute as ldquograndes ciecircncias geraisrdquo como um todo em razatildeo da pouca objetividade estatildeo sempre sendo convocadas a justificar a sua utilidade7 O problema enfrentado como se pode ver eacute como a partir da perspectiva parcial das ciecircncias pode se fechar as portas de maneira definitiva agrave ontologia da estabilidade do ser A perspectiva empiacuterica das ciecircncias satildeo sempre parciais de modo que apesar de abrir para a possibilidade de criacutetica da ontologia do ser natildeo eacute forte o suficiente para estabelecer uma ontologia do devir E por isso ele eacute obrigado a confessar

Eacute verdade que poderia existir um mundo metafisico dificilmente podemos contestar a sua possibilidade absoluta Olhamos todas as coisas com a cabeccedila humana e eacute impossiacutevel cortar essa cabeccedila mas permanece a questatildeo de saber o que ainda existiria do mundo se ela fosse mesmo cortada8

Como se pode ver pela passagem Nietzsche sabia muito bem das limitaccedilotildees de sua ferramenta filosoacutefica em termos metodoloacutegicos especialmente no que se refere agrave capacidade dessa metodologia ser capaz e extirpar a metafiacutesica ligada agrave ontologia do ser9 O golpe fatal contra o pensamento metafiacutesico e suas pretensotildees de estabilidade na ontologia do ser natildeo poderia ser dado pelos recursos naturalistas oriundos da metodologia empiacuterica do pensamento cientiacutefico mas deveria ser buscado de outra maneira

Nesse mesmo aforismo Nietzsche jaacute esboccedilava os termos de seu pragmatismo ao afirmar que ainda que fosse possiacutevel conhecer o mundo metafiacutesico a sua utilidade para vida seria praticamente nula tal como para um ldquonaveganterdquo seria uacutetil o ldquoconhecimento da anaacutelise quiacutemica da aacuteguardquo Vemos aqui um tratamento privilegiado ao conhecimento uacutetil a vida no mundo em detrimento da forma meramente contemplativa Em verdade essa foacutermula natildeo eacute nova jaacute aparecendo em Verdade e mentira no sentido extra-moral uma vez que o homem era o mais indefeso de todos os animais natildeo possuindo ldquogarrasrdquo ou ldquopresasrdquo para se defender fora obrigado a se reportar ao intelecto enquanto teia linguiacutestica com que se cobriu o mundo e acabou se acreditando na ldquofaacutebula da invenccedilatildeo do conhecimentordquo10

Todavia tambeacutem nesse escrito a perspectiva da estabilidade da ontologia do ser eacute criticada de forma dogmaacutetica por meio de uma estilizaccedilatildeo da descriccedilatildeo feita por meio de elementos empiacutericos Ocorre que na medida em que sua criacutetica avanccedila penetrando nos mais profundos alicercemos morais da epistemologia os elementos desestabilizadores da metafiacutesica vatildeo ganhando novos contornos tornando cada vez mais clara a interdependecircncia 6 Embora natildeo explorado aqui pensamos que uma forma em que se pode compreender o desenvolvimento do pragma-

tismo nietzschiano eacute exatamente a evoluccedilatildeo dessa foacutermula ateacute suas configuraccedilotildees finais CI VII 17 Ibidem 68 Ibidem 99 De uma perspectiva acessoacuteria do aforismo eacute importante relatar que causa estranheza Nietzsche atribuir caraacuteter

cientiacutefico ao problema do que restaria do mundo caso essa cabeccedila fosse cortada especialmente quando pensamos no perspectivismo radical que seu pensamento iraacute encontrar

10 VM 1

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista

270

entre moralidade e racionalidade pois como observa Nietzsche ldquonatildeo existem vivecircncias que natildeo sejam morais mesmo no acircmbito da percepccedilatildeo sensiacutevelrdquo11

Tem se assim tambeacutem uma criacutetica a qualquer pretenso realismo ao qual uma abordagem empiacuterica com deacuteficit criacutetico fatalmente pode recair Pois os ldquohomens soacutebrios que se sentem defendidos contra a paixatildeo e as fantasiasrdquo e investidos em seu ldquoamor agrave realidaderdquo estatildeo igualmente atados a uma ldquofantasiardquo e portanto tambeacutem estatildeo imersos no ldquopreconceitordquo Nesse sentido ldquonatildeo haacute realidade para noacutes ndash e tampouco para vocecircs soacutebriosrdquo sendo interditada a crenccedila na ldquoincapacidade de embriaguezrdquo12 Assim teses realistas no acircmbito do pensamento de Nietzsche satildeo rechaccediladas pois tambeacutem elas estatildeo atreladas a ontologia da estabilidade do ser uma vez que ldquoajustamos para noacutes um mundo em que podemos viver - supondo linhas superfiacutecies causas e efeitos movimentos e repouso forma e conteuacutedordquo como ldquoartigos de feacuterdquo13

Eacute constataccedilatildeo a interconexatildeo entre moralidade e racionalidade diagnosticada pela primeira vez no processo de decadecircncia da Greacutecia claacutessica descrita no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche percebe estar lidando Todavia ao contraacuterio de Soacutecrates cuja criacutetica alcanccedilou apenas o acircmbito dos instintos e ao qual ldquoaquele impulso loacutegico estava inteiramente proibido de voltar-se contra si proacutepriordquo14 o filoacutesofo da Basileia pretende levar as ultimas consequecircncias uma vez que as vias alternativas estavam interditadas por forccedila de sua proacutepria argumentaccedilatildeo

A via para a consumaccedilatildeo do programa filosoacutefico de criacutetica a moral em especial no que se refere agraves pretensotildees de estabilidade ontoloacutegica natildeo poderia ser feita de forma externa nos termos de uma descriccedilatildeo empiacuterica da realidade mas de forma imanente Sendo o processo de racionalizaccedilatildeo uma dinacircmica em que natildeo haacute retornos diante a perda da inocecircncia resta a Nietzsche levar o processo ateacute as suas ultimas consequecircncias

[] ele eacute retirada a confianccedila na moral- e por que Por moralidade Ou como deveriacuteamos chamar o que nele em ndash em noacutes ndashsucede Pois conforme nosso gosto preferiacuteamos palavras mais modestas Mas natildeo haacute duacutevida tambeacutem a noacutes dirige se dirige um ldquotu devesrdquo tambeacutem noacutes obedecemos ainda a uma severa lei acima de noacutes ndash estaacute eacute a ultima moral que ainda se nos faz ouvir que tambeacutem noacutes ainda sabemos viver nisto se em alguma coisa ainda somos criaturas da consciecircncia15[]

Este movimento de criacutetica imanente empreendido por Nietzsche eacute o que a exegese chama de autossupressatildeo ou autosuperaccedilatildeo16 (selbstaufhebung) da moral Como explica Oswaldo Giacoia o movimento de autossupressatildeo consiste

[] como movimento de inflexatildeo no curso de um pensamento ou numa cadeia de eventos histoacutericos no mundo da cultura operando uma mudanccedila de sentido uma decisiva alteraccedilatildeo na direccedilatildeo seja da sequecircncia dos pensamentos seja desenrolar-se de um vir a ser dos fenocircmenos da cultura Essa inflexatildeo de sentido ou mudanccedila de direccedilatildeo caracteriza-se como uma volta contra si mesmo uma reflexatildeo e nesse sentido uma inversatildeo de rota um dobrar-se sobre si mesmo tornado possiacutevel por

11 GC 11412 Ibidem 5713 Ibidem 12114 NT 1315 A proacutelogo 416 GIACOIA 2013 p119

Wilson Luciano Onofri

271

problematizaccedilatildeo ou seja um voltar-se sobre si mesmo (e contra si mesmo) do proacuteprio sujeito ou de um processo histoacuterico no interior do qual o primeiro se encontra que de diferentes madeiras tomam a si proacuteprio como objeto o que caracteriza portanto o movimento de (auto) problematizaccedilatildeo17

Trata-se portanto de um movimento realizado a partir do reconhecimento da inexorabilidade das forccedilas desagregadoras da moralidade em que qualquer tentativa de bloqueio ou retorno estatildeo interditadas Nesse sentido resta apenas a conduccedilatildeo dessa loacutegica ateacute as suas ultimas consequecircncias de modo a essa criacutetica acabar se voltando contra si mesma como condiccedilatildeo para sua consumaccedilatildeo

Dada a forte relaccedilatildeo entre moralidade e racionalidade no pensamento de Nietzsche podemos concluir junto com Giacoia que dentre as vaacuterias modalidades de autossupressatildeo a autossupressatildeo da verdade eacute a fundamental E isso se deve ao fato de que esta ldquocomanda e determina a configuraccedilatildeo e o movimento dialeacutetico das problematizaccedilotildees em que consiste as outras figurasrdquo18 Nesse sentido o proacuteprio instrumento da criacutetica pode ser criticado a partir de si mesmo isto eacute se a racionalidade ao modo de proceder metafiacutesico de cunho socraacutetico-platocircnico eacute responsaacutevel pela estabilidade ontoloacutegica do ser essa mesma racionalidade pode ser criticada a partir de si mesma em seu ideal de veracidade e pureza

Na dinacircmica da autossupressatildeo a consciecircncia filosoacutefica imbuiacuteda pela vontade de verdade numa reflexatildeo sobre si mesma se descobre enquanto engajada moralmente em seus pressupostos Desse diagnoacutestico a incondicionalidade de sua perspectiva deve ceder ao niacutevel das demais perspectivas e se reconhecer como mais uma entre as variadas formas de racionalidade

Na ciecircncia as convicccedilotildees natildeo tem direito de cidadania eacute o que se diz com boas razotildees apenas quando elas decidem rebaixar-se agrave modeacutestia de uma hipoacutetese de um ponto de vista experimental e provisoacuterio de uma ficccedilatildeo reguladora pode lhes ser concedidas a entrada e ateacute mesmo um certo valor no reino do conhecimento ndash embora ainda com a restriccedilatildeo de que permaneccedilam sob vigilacircncia policial a vigilacircncia da suspeita ndash Mas isso natildeo quer dizer examinando mais precisamente que a convicccedilatildeo para pode obter admissatildeo na ciecircncia apenas quando deixar de ser uma convicccedilatildeo [] Eacute assim provavelmente resta a pergunta se para que possa comeccedilar esta disciplina natildeo eacute preciso haver uma convicccedilatildeo e alias tatildeo imperiosa e absoluta que sacrifica a si mesma todas as demais convicccedilotildees Vecirc-se que tambeacutem a ciecircncia repousa numa crenccedila que natildeo existe ciecircncia ldquosem pressupostosrdquo []19

Se as ciecircncias serviu de meio de criacutetica ao pensamento metafiacutesico sob a qual retroalimentava a moralidade com avanccedilo de suas investigaccedilotildees esta passou a ser percebida como um dos substratos maacuteximos da racionalidade moderna alicerccedilada sobre os mesmos fundamentos da estabilidade da ontologia do ser de cunho socraacutetico ndashplatocircnico Podemos assim concluir com Nietzsche que tambeacutem as ciecircncias enquanto expressatildeo maacutexima dessa vontade de verdade tem como base a ldquoignoracircnciardquo sobre ldquoa vontade de natildeo saberrdquo sobre o ldquoerrordquo20

17 Ibidem p12118 Idem19 GC 34420 ABM 24

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista

272

Nessa mesma toada podemos ver como Nietzsche tal como em HH 11 vai deslocando os constructos metafiacutesicos para o acircmbito do uso da linguagem pois a ldquoimportacircncia da linguagem para o desenvolvimento da cultura estaacute em que nela o homem estabeleceu um mundo proacuteprio ao lado do outro um lugar que ele considerou firme o bastante para a partir dele tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhorrdquo Todavia em ABM vemos Nietzsche ainda admitir um resiacuteduo de metafiacutesica desde que compreendida pragmaticamente nos termos de ficccedilotildees linguiacutesticas naturalisticamente constatadas a partir de nossas praacuteticas comunicativas

Tal eacute a forccedila da tese da inevitabilidade de recorrecircncia aos constructos de metafiacutesicos da ontologia do ser que natildeo podemos deixar de notar a afirmaccedilatildeo de Nietzsche no sentido de a ldquoarraigada tartufice moral pertence de modo insuperaacutevel ldquonossa carne e nosso sanguerdquo chegue a nos distorcer as palavras na bocardquo21 E isso assim o eacute dada ao caraacuteter pragmaacutetico das praacuteticas comunicativas em que exprimimos nossas ldquonecessidadesrdquo tal como ldquoponte entre os homensrdquo e natildeo porque o conhecimento tem como funccedilatildeo estritamente teoacuterico-contemplativa mas porque se reporta as praacuteticas soacutecias de comunicaccedilatildeo22

Consideraccedilotildees finaisConforme exposto no iniacutecio deste trabalho a intenccedilatildeo da presente investigaccedilatildeo foi

analisar a relaccedilatildeo entre a o movimento de autossupressatildeo da verdade com a epistemologia pragmatista nietzschiana Nesse sentido tomamos como ponto de partida o programa nietzschiano de criacutetica do pensamento metafiacutesico de cunho socraacutetico-platocircnico como base da ontologia do ser do qual a moral ocidental se fundamenta mostrando como o desenvolvimento desse programa vai se consumando numa epistemologia pragmatista onde seus recursos de ordem naturalista estatildeo ancorados Assim aquilo que teve iniacutecio como uma criacutetica externa histoacuterico-naturalista de cunho empiacuterico acabou por evoluir para uma criacutetica imanente a partir da noccedilatildeo de autossupressatildeo da veracidade para a uma epistemologia naturalista

Tal se deve em razatildeo da radicalidade do projeto filosoacutefico empreendido por Nietzsche de criacutetica a filosofia dogmaacutetico-metafiacutesica de cunho socraacutetico-platocircnico ao qual o recurso histoacuterico-natural de cunho empiacuterico se mostrou insuficiente metodologicamente diante o adversaacuterio de posiccedilatildeo ontoloacutegica Dessa forma a radicalidade do projeto criacutetico soacute alcanccedila seu aacutepice a partir de uma criacutetica imanente levada a cabo pelo conceito de autossupressatildeo estabelecendo assim uma posiccedilatildeo proba no estabelecimento de sua epistemologia pragmaacutetica

21 Idem22 GC 354

Wilson Luciano Onofri

273

Referecircncias bibliograacuteficasGIACOIA O NITZSCHE o humano como memoacuteria e como promessa Rio de Janeiro Editora Vozes 2013NIETZSCHE F Aurora Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004_____ A gaia ciecircncia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Aleacutem de Bem e mal Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992_____ Humano demasiado humano Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000_____ O nascimento da trageacutedia Satildeo Paulo Companhia de Bolso 1992_____ Verdade e mentira no sentido extra-moral Satildeo Paulo Ed Hedra 2007

Page 3: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian

Diretoria 2013-2014Marcelo Carvalho (UNIFESP)Adriano N Brito (UNISINOS)Ethel Rocha (UFRJ)Gabriel Pancera (UFMG)Heacutelder Carvalho (UFPI)Lia Levy (UFRGS)Eacuterico Andrade (UFPE)Delamar V Dutra (UFSC)

Diretoria 2011-2012Vinicius de Figueiredo (UFPR)Edgar da Rocha Marques (UFRJ)Telma de Souza Birchal (UFMG)Bento Prado de Almeida Neto (UFSCAR)Maria Aparecida de Paiva Montenegro (UFC)Darlei DallrsquoAgnol (UFSC)Daniel Omar Perez (PUCPR)Marcelo de Carvalho (UNIFESP)

Produccedilatildeo Antonio Florentino Neto

Editor da coleccedilatildeo ANPOF XVIII EncontroJorge Luiz Viesenteiner

Diagramaccedilatildeo e produccedilatildeo graacuteficaEditora Phi

Capa Adriano de Andrade

Comitecirc Cientiacutefico Coordenadoras e Coordenadores de GTs e de Programas de Poacutes-graduaccedilatildeo

Admar Almeida da Costa (UFRRJ)Adriano Correia Silva (UFG)Affonso Henrique V da Costa (UFRRJ)Agemir Bavaresco (PUCRS)Aldo Dinucci (UFS)Alessandro B Duarte (UFRRJ)Alessandro Rodrigues Pimenta (UFT)Alfredo Storck (UFRGS)Amaro de Oliveira Fleck (UFMG)Ana Rieger Schmidt (UFRGS)Andreacute Cressoni (UFG)Andreacute Leclerc (UnB)Antonio Carlos dos Santos (UFS)Antonio Edmilson Paschoal (UFPR)Antonio Glaudenir Brasil Maia (UVA)Araceli Rosich Soares Velloso (UFG)Arthur Arauacutejo (UFES)Bartolomeu Leite da Silva (UFPB)Bento Prado Neto (UFSCAR)Breno Ricardo (UFMT)Cecilia Cintra C de Macedo (UNIFESP)Celso Braida (UFSC)Cesar Augusto Battisti (UNIOESE)Christian Hamm (UFSM)Christian Lindberg (UFS)Cicero Cunha Bezerra (UFS)Clademir Luis Araldi (UFPEL)Claudemir Roque Tossato (UNIFESP)Claudinei Freitas da Silva (UNIOESTE)Claacuteudio R C Leivas (UFPEL)Cloacutevis Brondani (UFFS)Cristiane N Abbud Ayoub (UFABC)Cristiano Perius (UEM)Cristina Foroni (UFPR)Cristina Viana Meireles (UFAL)Daniel Omar Perez (UNICAMP)Daniel Pansarelli (UFABC)Daniel Peres Coutinho (UFBA)

Dirce Eleonora Nigro Solis (UERJ)Eder Soares Santos (UEL)Eduardo Aniacutebal Pellejero (UFRN)Emanuel Acirc da Rocha Fragoso (UECE)Enoque Feitosa Sobreira Filho (UFPB)Ester M Dreher Heuser (UNIOESTE)Evaldo Becker (UFS)Evaldo Sampaio (UnBMetafiacutesica)Faacutetima Eacutevora (UNICAMP)Fernando Meireles M Henriques (UFAL)Filipe Campello (UFPE)Flamarion Caldeira Ramos (UFABC)Floriano Jonas Cesar (USJT)Franciele Bete Petry (UFSC)Francisco Valdeacuterio (UEMA)Georgia Amitrano (UFU)Gisele Amaral (UFRN)Guido Imaguire (UFRJ)Gustavo Silvano Batista (UFPI)Helder Buenos A de Carvalho (UFPI)Henrique Cairus (UFRJ)Hugo F de Arauacutejo (UFC)Jacira de Freitas (UNIFESP)Jadir Antunes (UNIOESTE)Jelson Oliveira (PUCPR)Joatildeo Carlos Salles (UFBA)Jorge Alberto Molina (UERGS)Joseacute Lourenccedilo (UFSM)Juacutelia Sichieri Moura (UFSC)Juvenal Savian Filho (UNIFESP)Leonardo Alves Vieira (UFMG)Liacutevia Guimaratildees (UFMG)Luciano Carlos Utteiche (UNIOESTE)Luciano Donizetti (UFJF)Ludovic Soutif (PUCRJ)Luiacutes Ceacutesar G Oliva (USP)Luiz Carlos Bombassaro (UFRGS)Luiz Rohden (UNISINOS)Manoel Vasconcellos (UFPEL)Marcela F de Oliveira (PUCRJ)Marcelo Esteban Coniglio (UNICAMP)

Maacutercia Zebina Arauacutejo da Silva (UFG)Maacutercio Custoacutedio (UNICAMP)Marco Antonio Azevedo (UNISINOS)Marcos H da Silva Rosa (UERJ)Maria Ceciacutelia Pedreira de Almeida (UnB)Maria Cristina de Taacutevora Sparano (UFPI)Maria Cristina Muumlller (UEL)Marina Velasco (UFRJPPGLM)Mariana Claacuteudia Broens (UNESP)Mariana de Toledo Barbosa (UFF)Maacuterio Nogueira de Oliveira (UFOP)Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA)Max R Vicentini (UEM)Michela Bordignon (UFABC)Milton Meira do Nascimento (USP)Nathalie Bressiani (UFABC)Nilo Ceacutesar B Silva (UFCA)Nilo Ribeiro (FAJE)Patriacutecia Coradim Sita (UEM)Patriacutecia Kauark (UFMG)Patrick Pessoa (UFF)Paulo Afonso de Arauacutejo (UFJF)Pedro Duarte de Andrade (PUCRJ)Pedro Leatildeo da Costa Neto (UTP)Pedro Paulo da Costa Corocirca (UFPA)Peter Paacutel Peacutelbart (PUCSP)Rafael de Almeida Padial (UNICAMP)Renato Moscateli (UFG)Ricardo Bazilio Dalla Vecchia (UFG)Ricardo Pereira de Melo (UFMS)Roberto Horaacutecio de Saacute Pereira (UFRJ)Roberto Wu (UFSC)Rodrigo Guimaratildees Nunes (PUCRJ)Rodrigo Ribeiro Alves Neto (UNIRIO)Samir Haddad (UNIRIO)Sandro M Moura de Sena (UFPE)Sertoacuterio de A Silva Neto (UFU)Silvana de Souza Ramos (USP)Sofia Inecircs A Stein (UNISINOS)Socircnia Campaner (PUCSP)Tadeu Verza (UFMG)

Tiegue Vieira Rodrigues (UFSM)Viviane M Pereira (UECE)Vivianne de Castilho Moreira (UFPR)Waldomiro Joseacute da Silva Filho (UFBA)

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)Bibliotecaacuteria Juliana Farias Motta CRB75880

N677 Nietzsche Organizaccedilatildeo Clademir Luis Araldi Jorge L Viesenteiner

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia -- Satildeo Paulo ANPOF 2019

273 p ISBN 978-85-88072-87-9 Nietzsche Friedrich Wilhelm 1844-19002Filosofia alematildeI

Viesenteriner JLIIII Vecchia RDIII Tiacutetulo

CDD 193 Iacutendice para cataacutelogo sistemaacutetico

1 Nietzsche Friedrich Wilhelm 1844-19002 Filosofia alematilde

Apresentaccedilatildeo da Coleccedilatildeo do XVIII Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF

O XVIII Encontro Nacional da ANPOF foi realizado em outubro de 2018 na Universidade Federal do Espiacuterito Santo (UFES) em VitoacuteriaES e contou com mais de 2 mil participantes com suas respectivas apresentaccedilotildees de pesquisa tanto nos Grupos de Trabalho da ANPOF quanto em Sessotildees Temaacuteticas Em acreacutescimo o evento tambeacutem incluiu conjuntamente o IV Encontro Nacional ANPOF Ensino Meacutedio sob coordenaccedilatildeo do Prof Dr Christian Lindberg (UFS) cujos esforccedilos natildeo apenas amplia mas tambeacutem inclui os debates e pesquisas vinculados agrave aacuterea do Ensino de Filosofia tanto de professores vinculados ao Ensino de Filosofia quanto tambeacutem de professores e estudantes do Mestrado Profissional em Filosofia o PROF-FILO

A ANPOF publica desde 2013 os trabalhos apresentados sob a forma de livro com o intuito natildeo apenas de tornar puacuteblicas as pesquisas de estudantes e professores mas tambeacutem de fomentar o debate filosoacutefico da aacuterea especialmente por ser uma ocasiatildeo de congregar uma significativa presenccedila de colegas do Brasil inteiro interconectando pesquisas e regiotildees que nem sempre estatildeo em contato Assim a Coleccedilatildeo ANPOF sintetiza o estado da pesquisa filosoacutefica naquele determinado momento reunindo pesquisas apresentadas em Grupos de Trabalho e Sessotildees Temaacuteticas O total de textos submetidos avaliados e aprovados agrave publicaccedilatildeo na atual Coleccedilatildeo ANPOF do XVIII Encontro conta com mais de 650 artigos da comunidade em geral

Eacute importante registrar nesta ldquoApresentaccedilatildeordquo a dinacircmica utilizada no processo de organizaccedilatildeo dos 22 volumes que satildeo agora publicados cuja concepccedilatildeo geral consistiu em estruturar o processo da maneira mais amplamente colegiada possiacutevel envolvendo no processo de avaliaccedilatildeo dos textos submetidos todas as coordenaccedilotildees dos Grupos de Trabalho e dos Programas de Poacutes-graduaccedilatildeo (PPGs) em Filosofia bem como uma comissatildeo de avaliaccedilatildeo especiacutefica para os trabalhos que natildeo foram avaliados por algumas coordenaccedilotildees de PPGs Em termos praacuteticos o processo seguiu trecircs etapas 1 cada pesquisador(a) teve um periacuteodo para submissatildeo dos seus trabalhos 2 Periacuteodo de avaliaccedilatildeo adequaccedilatildeo e reavaliaccedilatildeo dos textos por parte das coordenaccedilotildees de GTs e PPGs 3 Editoraccedilatildeo dos textos aprovados pelas coordenaccedilotildees de GT e PPGs

Nessa atual ediccedilatildeo da Coleccedilatildeo ANPOF figuraram na co-organizaccedilatildeo dos volumes natildeo apenas as coordenaccedilotildees de GTs mas tambeacutem de PPGs que estiveram diretamente envolvidos no processo na medida em que ambas as coordenaccedilotildees realizaram as atividades de avaliaccedilatildeo e seleccedilatildeo dos textos desde as inscriccedilotildees ao evento ateacute avaliaccedilatildeo final dos textos submetidos agrave publicaccedilatildeo exercendo os mesmos papeacuteis na estruturaccedilatildeo da atividades Nessa medida a Coleccedilatildeo ANPOF conta com o envolvimento quase integral das coordenaccedilotildees exprimindo justamente a concepccedilatildeo colegiada na organizaccedilatildeo ndash seja diretamente na organizaccedilatildeo dos volumes seja sob a forma de comitecirc cientiacutefico ndash de modo que os envolvidos figuram igualmente como co-organizadores(as) da Coleccedilatildeo cujo ganho eacute sem duacutevida em transparecircncia e em engajamento com as atividades O trabalho de organizaccedilatildeo da Coleccedilatildeo portanto seria impossiacutevel sem o envolvimento das coordenaccedilotildees

Reiteramos nossos os agradecimentos pelos esforccedilos da comunidade acadecircmica tanto no sentido da publicaccedilatildeo das pesquisas em filosofia que satildeo realizadas atualmente no Brasil quanto pela conjugaccedilatildeo de esforccedilos para que apesar do gigantesco trabalho realizarmos da maneira mais colegiada possiacutevel nossas atividades

Boa leituraDiretoria ANPOF

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo do GT Nietzsche 14

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como efeito da depauperaccedilatildeo da cultura moderna 15

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave accedilatildeo mediante a consciecircncia Bewusstsein e a consciecircncia moral Gewissen 21

Adilson Felicio Feiler

O cristianismo face agrave criacutetica nietzschiana Pressupostos para um diaacutelogo filosoacutefico 31Adriano Geraldo da Silva

Da genealogia da teoria do crime no direito penal brasileiro Uma criacutetica ao livre - arbiacutetrio a partir de Nietzsche e a neurociecircncia 37

Alianna Caroline Sousa Cardoso

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem a partir do paradigma imunitaacuterio 57

Angela Couto Machado FonsecaDhyego Cacircmara Arauacutejo

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche 67Caius Brandatildeo

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche 75Ceacutelia Machado Benvenho

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3 83Eder David de Freitas Melo

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent 89Estevatildeo Bocalon

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise sobre a criacutetica de Nietzsche em humano demasiado humano 96

Gracy Kelly Bourscheid

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch ndash Arte Filosofia e Ciecircncia na obra nietzschiana 105

Guilherme Freire da Costa

Para que sofrer Acerca do problema do sentido do sofrimento 115Hailton Felipe Guiomarino

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche O uacuteltimo homem e o aleacutem-do-homem 123

Isabella Vivianny Santana Heinen

O Poder do Riso em Nietzsche 132Ivan Risafi de Pontes

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo Uma reflexatildeo sobre a intoleracircncia religiosa radical a partir da Genealogia da Moral 142

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche 151Joseacute Nicolao Juliatildeo

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre a consciecircncia [Bewuszligtsein] 159Laura Elizia Haubert

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida em Nietzsche e Rosset 167Leonardo Arauacutejo Oliveira

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche e seus desdobramentos eacutetico-esteacuteticos 173

Luiza Fonseca Regattieri

A danccedila aleacutem do bem e do mal 179Maria Helena Lisboa da Cunha

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees de sujeito transcendental e de coisa em si no primeiro capiacutetulo de Humano demasiado humano I 186

Marina Gomes de Oliveira

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface entre Nietzsche e Freud 196

Michaella Carla Laurindo

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as influecircncias de Paul Reacutee 205

Neomar Sandro Mignoni

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος) 214Newton Pereira Amusquivar Junior

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees desinteressadas em Nietzsche 222Rafael dos Santos Ramos

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica de Nietzsche ao cristianismo 230Rafael Gonccedilalves da Silveira

Genealogia O chatildeo proacuteprio de Nietzsche 241Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias no projeto cultural de Nietzsche durante a deacutecada de 1870 251

Ricardo de Oliveira Toledo

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno retorno O resgate da inocecircncia do vir-a-ser 260

Roberta Franco Saavedra

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista de Nietzsche a partir do conceito de autossupressatildeo 267

Wilson Luciano Onofri

14

Apresentaccedilatildeo do GT Nietzsche

Fundado em 1998 o GT Nietzsche tem como objetivo geral reunir pesquisadores de diversos estados e diferentes instituiccedilotildees para promover um maior intercacircmbio filosoacutefico e discussotildees contiacutenuas e sistemaacuteticas acerca das pesquisas de seus membros Assim o GT Nietzsche cria um espaccedilo para que os pesquisadores de Nietzsche possam discutir suas linhas de pesquisa da criacutetica corrosiva dos valores agrave filosofia positiva da trama conceitual agrave inserccedilatildeo na histoacuteria da filosofia da pesquisa de suas fontes e influecircncias agrave investigaccedilatildeo de sua contribuiccedilatildeo e articulaccedilatildeo com questotildees da atualidade os membros do GT Nietzsche a partir de diversas perspectivas tecircm a oportunidade de por agrave prova suas hipoacuteteses de trabalho

O GT Nietzsche edita semestralmente desde 2010 a revista Estudos Nietzsche (ISSN 2179-3441) Qualis B1 Estudos Nietzsche eacute uma publicaccedilatildeo semestral do GT Nietzsche da ANPOF em parceria com a Universidade Federal do Espiacuterito Santo (UFES) Os editores satildeo Prof Dr Ernani Chaves e Antocircnio Edmilson Paschoal membros do GT Nietzsche A proposta da revista estaacute articulada agraves metas que levaram a criaccedilatildeo do GT Nietzsche a saber incentivar a investigaccedilatildeo e o debate sobre os temas relevantes do pensamento de Nietzsche em ligaccedilatildeo com questotildees da atualidade

Desde 2007 o GT Nietzsche realiza reuniotildees regulares nos anos de interluacutedio dos Encontros da ANPOF Foram organizadas ediccedilotildees dos Encontros do GT Nietzsche nos anos iacutempares na UNIOESTE (ToledoPR) na PUCPR (CuritibaPR) na PUCCamp (CampinasSP) na UFOP (Ouro PretoMG) na UNIFESP (GuarulhosSP) e na UFPel (PelotasRS)

As principais atividades do GT Nietzsche ocorrem nas Reuniotildees Cientiacuteficas dos Encontros Nacionais da ANPOF nos anos pares A uacuteltima Reuniatildeo ocorreu em 2018 no XVIII Encontro Nacional da ANPOF em VitoacuteriaES Nos dias 23 24 e 25 de outubro de 2018 ocorreram apresentaccedilotildees de membros do GT Nietzsche e de doutorandos e doutores brasileiros com pesquisas atuais sobre o pensamento de Nietzsche

O GT Nietzsche eacute constituiacutedo por dois nuacutecleos i) Nuacutecleo de Sustentaccedilatildeo (atualmente com 21 membros) e ii) Nuacutecleo de Apoio (atualmente com 7 membros) agregando participantes dos Programas de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia das cinco regiotildees brasileiras As informaccedilotildees sobre a estrutura e atividades do GT podem ser encontradas no site da ANPOF no link httpanpoforgportalindexphppt-BRgt-nietzsche

Clademir L Araldi (UFPel)

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa

15

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como efeito da depauperaccedilatildeo da cultura moderna

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa1

As conferecircncias de Nietzsche realizadas entre janeiro e marccedilo de 1872 no ldquoAkademisches Kunstmuseumrdquo da Basileacuteia demonstraram a conciliaccedilatildeo pelo filoacutesofo da beleza esteacutetica do seu pensamento com a sua habilidade pedagoacutegica o que tambeacutem lhe rendera admiradores durante o tempo em que ali lecionara Desta feita o presente trabalho pretende analisar as conferecircncias nietzschianas Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino a fim de constatar as principais consideraccedilotildees no tocante ao desenvolvimento do pensamento e da cultura Nietzsche no decorrer das cinco partes na qual se encontra dividida a obra ocupa-se da investigaccedilatildeo aos estabelecimentos de ensino o primaacuterio as escolas teacutecnicas o ginaacutesio e o ensino superior Sua tese parte do entendimento de que a cultura eacute uma determinaccedilatildeo da natureza e sendo assim jamais poderaacute ser compreendida como estando fora dela Eacute dentro dessa perspectiva que exporemos suas principais criacuteticas concernentes aos meacutetodos de ensino alematildees evidenciando no surgimento da vida moderna a condenaccedilatildeo dos princiacutepios dos mecanismos e dos resultados criados pelo processo de modernizaccedilatildeo pedagoacutegica realizado nas escolas alematildes do seacuteculo XIX Veremos ainda que de acordo com Nietzsche a decadecircncia da cultura e da educaccedilatildeo estaria justificada com base no aparecimento de duas correntes segundo ele (EE 2003 p 53) de graves consequecircncias pedagoacutegicas uma que defendia o alargamento da cultura e a outra que a reduziria a uma mera funccedilatildeo a serviccedilo do Estado

De iniacutecio vemos que a base das criacuteticas feitas pelo filoacutesofo alematildeo direcionadas agrave educaccedilatildeo e agrave cultura do seu tempo se devem agraves consideraccedilotildees sobre o mundo moderno Houve da parte dele fortes interpelos a um periacuteodo em que segundo ele estava tomado pelo otimismo vulgar gerado pela modernidade que levava a cultura e seus estabelecimentos de ensino ao empobrecimento e agrave depauperaccedilatildeo Como modo de cotejar o estilo de vida moderno Nietzsche chamou atenccedilatildeo para o sentido traacutegico da cultura grega enquanto modelo de vida capaz de reavivar a cultura alematilde uma vez que os antigos gregos possuiacuteam a forccedila [Kraft] suficiente para desempenhar uma necessaacuteria revitalizaccedilatildeo Aleacutem disso vale ressaltar a mediocridade e a barbaacuterie tiacutepicas dos valores modernos causando seacuterios efeitos na educaccedilatildeo pois tendia a manter nos estudantes a ignoracircncia dos temas filosoacuteficos relacionados ao sentido da existecircncia por nutrir somente valores da integraccedilatildeo e da conformidade Afinal o que mais se podia esperar da figura de eruditos ou seja de especialistas presos a um padratildeo de ensino voltado agrave submissatildeo O que esperar de homens adestrados a pensarem de acordo com as formas acadecircmicas que estimulavam apenas o oportunismo profissional

1 UNIOESTE

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como

16

A cultura moderna estava agrave mercecirc dos interesses da produccedilatildeo industrial logo tambeacutem se via presa a criteacuterios determinados pela economia e pelo Estado A divisatildeo do trabalho vista nas empresas tambeacutem refletia na divisatildeo do trabalho das ciecircncias (EE 2003 p 76) e por efeito na distribuiccedilatildeo das disciplinas acadecircmicas nos estabelecimentos de ensino da eacutepoca

Hoje em dia vemos a compartimentaccedilatildeo do saber as ciecircncias divididas em diferentes disciplinas ministradas com abordagens especiacuteficas Desta maneira a estreiteza vista na erudiccedilatildeo dos acadecircmicos inviabilizando uma compreensatildeo filosoacutefica capaz de analisar os diferentes acircngulos de um problema simplesmente reproduz um processo pedagoacutegico viacutetima da degradaccedilatildeo e da mediocrizaccedilatildeo do pensamento causada pela disseminaccedilatildeo da cultura jornaliacutestica nas instituiccedilotildees acadecircmicas quer dizer uma cultura que despreza a reflexatildeo filosoacutefica em favorecimento dos interesses do Estado e da economia

Sobre a cultura jornaliacutestica eacute importante destacar que aleacutem de Nietzsche outros pensadores tambeacutem estiveram empenhados a tecerem duras acusaccedilotildees por conta do seu alastramento Eacute o caso de Johann Wolfgang Von Goethe que em janeiro de 1824 escreveu uma carta ao secretaacuterio JP Eckermann lamentando os recursos da imprensa e como esta costumava disseminar a semicultura entre a massa levando-a ao embrutecimento das palavras e a mais completa ignoracircncia Nietzsche na intenccedilatildeo de combater o crescimento dessa mediocrizaccedilatildeo buscava ensinar a seus alunos a importacircncia da antiguidade claacutessica fazendo-os pensar a respeito dos dilemas da existecircncia humana e dessa forma apresentando a significativa contribuiccedilatildeo do saber filosoacutefico Assim as Conferecircncias sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino nos mostram a valorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo a serviccedilo dos jovens como forma de desenvolvimento e a correlaccedilatildeo entre a educaccedilatildeo [Erziehung] a formaccedilatildeo [Bildung] e a cultura [Kultur]

Nietzsche teve como foco a investigaccedilatildeo dos estabelecimentos de ensino primaacuterio teacutecnico ginasial e universitaacuterio na Alemanha do seacuteculo XIX Vemos que a denuacutencia feita pelo filoacutesofo alematildeo parte das consequecircncias de um amplo processo histoacuterico dentre inuacutemeros fatores destacamos a unificaccedilatildeo das proviacutencias ao Estado prussiano juntamente com a revoluccedilatildeo industrial tardia ocorrida naquele paiacutes Certamente a modernizaccedilatildeo do Estado trazendo expressivas mudanccedilas de cunho poliacutetico e econocircmico implicou por efeito na educaccedilatildeo e na cultura Isso passou a significar a prioridade de um tipo de ensino em que os jovens pudessem obter uma raacutepida formaccedilatildeo e tambeacutem o ganho mais raacutepido de dinheiro Logo concebeu-se uma educaccedilatildeo de interesse utilitaacuterio subserviente aos desiacutegnios do Estado moderno

A exploraccedilatildeo quase sistemaacutetica que o Estado fez destes anos na medida em que quis o mais cedo possiacutevel atrair para si funcionaacuterios utilizaacuteveis e se assegurar atraveacutes de exames excessivamente rigorosos da sua docilidade incondicional tudo isso estava muito distante da nossa formaccedilatildeo natildeo eacuteramos determinados por qualquer espiacuterito utilitaacuterio qualquer desejo de progredir rapidamente e rapidamente fazer uma carreira percebemos todos um fato que agora nos parece consolador naquele momento nenhum de noacutes sabia no que nos tornariacuteamos e inclusive isto natildeo nos preocupava (EE 2003 p 69)

Diferente dessa euforia o filoacutesofo alematildeo partiu da tese de que a cultura [Kultur] tratar-se-ia de uma determinaccedilatildeo da natureza por isso jamais poderia ser entendida como

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa

17

algo que estivesse fora dela Sendo assim as escolas nada mais faziam senatildeo comprometer todos os princiacutepios que deviam aflorar de maneira espontacircnea pois os mecanismos de inibiccedilatildeo criados pela pedagogia moderna em detrimento da potencialidade dos jovens estudantes fatalmente comprometia todo desenvolvimento humano e integral

Conforme dissemos a pedagogia moderna segundo Nietzsche obteve apoio em duas correntes Para ele complementares e ainda antinaturais responsaacuteveis por trazerem efeitos nocivos agrave sua eacutepoca por um lado a defesa da extensatildeo da cultura e por outro a reduccedilatildeo e o enfraquecimento da mesma Opondo-se veementemente a essas correntes o filoacutesofo declara a necessidade da concentraccedilatildeo da cultura e natildeo o seu alargamento e servidatildeo ao Estado Sua defesa tem como justificativa a certeza de que a educaccedilatildeo natildeo seria um assunto burocraacutetico como o mundo moderno levava a acreditar quando incutia a preocupaccedilatildeo com a inserccedilatildeo de regras a exemplo de grades horaacuterias e dos regulamentos institucionais Nietzsche ainda alega que a extensatildeo da cultura eacute resultado da esperanccedila da modernidade numa crenccedila econocircmica e poliacutetica de interesse voltado agrave geraccedilatildeo de homens comuns apenas preocupados com o ganho de dinheiro e felicidade imediata ndash enfim homens voltados para o serviccedilo da propriedade e do lucro Ora diante disso natildeo haveria outro diagnoacutestico senatildeo o de condenar a visatildeo progressista e universalizante da cultura que acompanhada do anseio das massas e do clamor da sociedade permitiu ao Estado intervir ainda mais na educaccedilatildeo - combinaccedilotildees fatais para alcanccedilar aquilo que o pensador denominava como ldquobarbaacuterie cultivadardquo

Duas correntes aparentemente opostas ambas nefastas nos seus efeitos e finalmente unidas nos seus resultados dominam hoje nossos estabelecimentos de ensino originariamente fundados em bases totalmente diferentes por um lado a tendecircncia de estender tanto quanto possiacutevel a cultura por outro lado a tendecircncia reduzi-la e enfraquececirc-la (EE 2003 p 53)

Mas entatildeo como definirmos uma cultura superior [Kultur] Sabemos que a cultura elevada eacute atribuiccedilatildeo restrita de um pequeno e seleto nuacutemero de pessoas tornando-se portanto incompatiacutevel com o imenso aparelho pedagoacutegico defendido pelo Estado Logo em linhas gerais a cultura jamais conseguiraacute aumentar a sua forccedila enquanto a educaccedilatildeo estiver voltada para formar homens e mulheres somente para o mercado de trabalho Portanto eacute necessaacuteria uma educaccedilatildeo que seja capaz de atrair as forccedilas naturais para que o jovem entatildeo possa captaacute-las a fim de atender os desiacutegnios do vir a ser ou seja de cumprir os interesses que estejam em consonacircncia com a vida

De acordo com o diagnoacutestico nietzschiano os estabelecimentos de ensino davam provas da pobreza espiritual vistas em seus planos pedagoacutegicos por meio das teacutecnicas de formaccedilatildeo e da forma como encaminhavam os jovens para vida Tais instituiccedilotildees continham no bojo de suas transmissotildees o apreccedilo agrave uniformizaccedilatildeo agrave mediocridade e agrave utilidade sempre pautados numa livre personalidade na intenccedilatildeo de preservar os estudantes numa postura de indiferenccedila e de ignoracircncia O bom exemplo desta pobreza espiritual estaria no ginaacutesio uma vez que se tratando de uma modalidade de ensino estrateacutegica que em verdade deveria funcionar como iniacutecio da formaccedilatildeo dos jovens natildeo mostrava entretanto suficiecircncia para realizar esta tarefa e tampouco sedimentar as bases para construccedilatildeo de uma cultura superior [Kultur] O incentivo a autonomia desses estudantes anunciava a grave consequecircncia dessa maturaccedilatildeo precoce por serem obrigados a tomar decisotildees para as

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como

18

quais ainda natildeo estavam preparados Como o proacuteprio pensador afirma ldquobasta apenas entrar em contato com a literatura pedagoacutegica desta eacutepoca eacute preciso estar muito corrompido para natildeo ficar assustado quando se estuda este tema com a suprema pobreza do espiacuterito e com esta verdadeira brincadeira de roda infantilrdquo (EE 2003 p 79)

A alternativa para dar fim a esta situaccedilatildeo desoladora da educaccedilatildeo alematilde no seacuteculo XIX pareceu estar na criaccedilatildeo de outra concepccedilatildeo de educaccedilatildeo e uma nova orientaccedilatildeo pedagoacutegica em condiccedilotildees de oferecer objetivos e meacutetodos inovadores do ensino Para Nietzsche os paracircmetros curriculares e as diretrizes educacionais que deveriam predominar nas instituiccedilotildees de ensino jamais deveriam estar sob a orientaccedilatildeo de estruturas burocraacuteticas ou de interesses poliacuteticos mas sim comandadas por homens superiores dotados de profunda maturidade experiecircncia e riqueza cultural Dessa maneira a primeira accedilatildeo desses verdadeiros homens da cultura seria oporem-se agrave poliacutetica dos filisteus da cultura isto eacute a servidores puacuteblicos sem nenhuma preparaccedilatildeo responsaacuteveis pela depauperaccedilatildeo da cultura e da educaccedilatildeo das instituiccedilotildees de ensino alematildes

Nietzsche (EE 2003 p 87) entende que os curriacuteculos escolares devem ser elaborados tomando por modelo a cultura claacutessica jaacute que se propotildee a corroborar a importacircncia da filosofia e da arte Para tanto haacute a necessidade de articular experiecircncia e cultura embora se reconheccedila o quanto esta tarefa se mostra difiacutecil requerendo grande disposiccedilatildeo de tempo e de acircnimo ao longo de todo processo pedagoacutegico A tarefa da educaccedilatildeo eacute entatildeo fazer entender por meio da experiecircncia pessoal dos alunos e dos estiacutemulos recebidos dos mestres os grandes pensadores do passado uma vez que neles encontra-se o conhecimento e a maturidade que puderam elevar a cultura Dessa forma a cultura superior jamais deveraacute ser confundida com a cultura jornaliacutestica tiacutepica do estilo de vida moderna jaacute que a mesma enquanto disciplina especializada tende agrave pequenez de uma linguagem baacuterbara

Consequentemente caso a cultura natildeo venha corresponder agraves exigecircncias superiores que a enaltecem e lhe atribuem agrave honrosa heranccedila histoacuterica caso ela tenha apenas uma funcionalidade uacutetil e rentaacutevel por conta de sua servidatildeo aos assuntos de interesse do Estado e da economia caso esta cultura esteja conformada com a realidade poliacutetica da sua eacutepoca sem apresentar nenhuma oposiccedilatildeo frente agrave sua realidade caso enfim esteja absorvida e ludibriada pelo excesso de sentido histoacuterico diante disso sob tais situaccedilotildees qualquer fortalecimento da cultura pela via das instituiccedilotildees de ensino segundo a filosofia do jovem Nietzsche torna-se algo demasiadamente improvaacutevel jaacute que para ele

Eacute somente sobre o fundo de uma aprendizagem de um bom uso da liacutengua estrito artiacutestico cuidadoso que se afirma o verdadeiro sentimento da grandeza dos nossos claacutessicos que ateacute agora natildeo se aprendeu a estimar no ginaacutesio senatildeo graccedilas ao amadorismo estetizante e suspeito de alguns mestres isolados ou pelo efeito de um uacutenico conteuacutedo de algumas trageacutedias e de alguns romances mas eacute preciso saber por experiecircncia proacutepria como a liacutengua eacute difiacutecil eacute preciso ao preccedilo de longas pesquisas e de longas lutas alcanccedilar a via por onde marcharam os nossos grandes poetas para perceber com que leveza e beleza eles marcharam e com que inaptidatildeo e grandiloquecircncia os outros os seguiram (EE 2003 p 89)

A educaccedilatildeo aprendida nas escolas e nas universidades deveria se tornar um poderoso arsenal em combate agrave barbaacuterie moderna Nietzsche (EE p 103) declara que a cultura de tipo superior [Kultur] eacute um privileacutegio reservado apenas para um seleto nuacutemero de indiviacuteduos talentosos Assim sendo natildeo se pode pretender que a massa seja capaz de adquiri-la pois

Abraatildeo Lincoln Ferreira Costa

19

o espiacuterito da cultura autecircntica possui uma natureza aristocraacutetica O desejo muitas vezes de estender a cultura a niacuteveis cada vez mais amplos peca pela ingenuidade de ignorar a hierarquia natural existente no intelecto Cabe agrave natureza e somente a ela determinar os dons e as aptidotildees e a quem possa ser distribuiacutedo Assim a aristocracia de tipo espiritual defendida por Nietzsche se enseja por aqueles em condiccedilotildees de seguir os feitos dos grandes homens do passado e ao mesmo tempo ter a capacidade de realizar as grandes obras que ficaratildeo marcadas no selo da eternidade Essa eacute a razatildeo pela qual uma aristocracia do espiacuterito jamais poderaacute limitar-se agrave mera funccedilatildeo poliacutetica de interesse mercantil mas sim preservar a total independecircncia da sua posiccedilatildeo de formador de novas ideias

Concluiacutemos que a cultura autecircntica seraacute sempre inalcanccedilaacutevel caso se mantenha presa agrave formaccedilatildeo de profissionais que concorrem a vagas no mercado de trabalho Vemos dessa maneira que surge na proposta de Nietzsche o implemento de uma cultura aristocraacutetica para aleacutem dos interesses estadistas da poliacutetica e do dinheiro e por conseguinte uma cultura que pretende fazer o homem libertar-se da ldquomaldiccedilatildeo da modernidaderdquo Uma cultura capaz de aproximar os jovens estudantes dos homens raros do passado exibindo seus grandes feitos e o quanto servem de inspiraccedilatildeo para as accedilotildees do presente Mas para chegar-se agrave concretizaccedilatildeo deste projeto de elevaccedilatildeo da cultura seraacute necessaacuterio urgentemente os estudantes se transformarem em verdadeiros combatentes de um mundo inoacutespito que parece natildeo medir esforccedilos em tentar a todo custo esmorececirc-los

Nietzsche e a crise dos estabelecimentos de ensino como

20

Referecircncias bibliograacuteficasDROZ Jacques Histoire de l rsquoAllemagne Paris Ed PUF 2003FREZZATTI JR Wilson Antonio Educaccedilatildeo e cultura em Nietzsche o duro caminho para ldquotornar-se o que se eacuterdquo In Nietzsche Filosofia e Educaccedilatildeo AZEREDO Vacircnia Dutra de (Org) Ijuiacute ndash RSUnijuiacute 2008 p 39-65GOETHE Johan Wolfgan Von Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister Trad Nicolino Simone Neto Satildeo Paulo Editora 34 2009MARTON Scarlet Claustros vatildeo se fazer outra vez necessaacuterios In Nietzsche Filosofia e Educaccedilatildeo AZEREDO Vacircnia Dutra de (Org) Ijuiacute ndash RSUnijuiacute 2008 p 17-38NIETZSCHE F W A Filosofia na eacutepoca traacutegica dos gregos Trad Rubens Rodrigues Torres Filho Os preacute-socraacuteticos fragmentos doxografia e comentaacuterios Satildeo Paulo Nova Cultural 2005 _____ Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino NIETZSCHE F W Escritos sobre educaccedilatildeo Trad Noeacuteli C M Sobrinho Rio de JaneiroSatildeo Paulo PUC-Rio Loyola 2003c p 41-137_____ Schopenhauer como Educador In Nietzsche FW Escritos sobre educaccedilatildeo Trad Noeacuteli C M Sobrinho Rio de JaneiroSatildeo Paulo PUC-Rio Loyola 2003b p138-222

Adilson Felicio Feiler

21

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave accedilatildeo mediante a consciecircncia Bewusstsein e a consciecircncia moral Gewissen

Adilson Felicio Feiler1

1 IntroduccedilatildeoA consciecircncia considerada como baluarte do reconhecimento mais pleno da

dimensatildeo humana tem sido uma das dimensotildees humanas colocadas sob suspeita por Nietzsche Toda estabilidade generalizaacutevel que inspira o estado de consciecircncia eacute irredutiacutevel aos fenocircmenos internos responsaacuteveis pela manutenccedilatildeo e pelo crescimento da vida humana Neste sentido se a consciecircncia natildeo acompanha a dimensatildeo orgacircnica proacutepria da vida entatildeo representa rebaixamento e apequenamento

Por um lado a consciecircncia Bewusstsein eacute o estado de consciecircncia o ser consciente de algo na concepccedilatildeo de Nietzsche corresponde ao desenvolvimento mais inacabado da fisiologia humana pela necessidade de se comunicar estados interiores Ao traduzir tais estados na consciecircncia estes perdem a sua originalidade revelando por isso accedilotildees que natildeo correspondem agrave singularidade humana As accedilotildees humanas expressas na consciecircncia revelam nada senatildeo a superfiacutecie rasa e temeraacuteria daquilo que corresponde ao mundo e agrave riqueza humana Por outro lado o movimento de interiorizaccedilatildeo proacuteprio da consciecircncia Gewissen pela sua carateriacutestica conciliadora e apaziguadora conduz ao interdito da descarga instintual Ao inveacutes de agir reage pelo recolhimento para dentro natildeo sente mas ressente Dada esta dimensatildeo internalizadora passiva a consciecircncia Bewusstsein se aproxima de acepccedilatildeo moral da consciecircncia compreendida como maacute consciecircncia schlechte Gewissen Pois somente enquanto movimento em direccedilatildeo ao externo se torna a accedilatildeo produtiva criativa O movimento do criar eacute eminentemente um movimento para fora quando os instintos tornam-se potencializadores da criaccedilatildeo e natildeo recolhimento dos instintos para dentro repercutindo em inaniccedilatildeo Seja a consciecircncia Bewusstsein como desencadeadora de accedilotildees que falseiam os estados interiores seja a consciecircncia Gewissen como accedilotildees colocadas para dentro contra si mesmo em ambos casos estamos diante de ameaccedilas agrave accedilatildeo enquanto expressatildeo de estados interiores do mundo e do ser humano

Na Gaia Ciecircncia a consciecircncia Bewusstsein estaacute intimamente associada agrave pressatildeo da necessidade de se comunicar externar aquilo que passa por dentro ou seja tornar inteligiacutevel o que se sente e se pensa Para fazecirc-lo utiliza-se de expedientes que ao se padronizarem perdem a sua riqueza singular conformando-se ao rebanho

Na Segunda Dissertaccedilatildeo de Para a genealogia da moral Nietzsche desenvolve uma psicologia da consciecircncia Gewissen Este desenho psicoloacutegico natildeo consiste numa explicaccedilatildeo

1 Professor no PPG em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

22

metoacutedica da consciecircncia mas um caraacuteter de apelo a ela de busca da mesma Com isso torna-se patente a perversatildeo dos instintos como interioridade em que os instintos reduzidos agrave inibiccedilatildeo constituem em um campo de accedilatildeo A consciecircncia eacute o instinto de crueldade interiorizada e impedimento de se exteriorizar o que repercute em uma consciecircncia bestial que se aflige a si proacutepria Por essa razatildeo eacute uma consciecircncia maacute que torna a forccedila a disposiccedilatildeo a liberdade e a accedilatildeo latentes reprimidos recuados e mesmo afogados em si mesmos

Nossa proposta eacute a de mostrar como esse mecanismo perverso da maacute consciecircncia eacute capaz de reduzir o ser humano agrave condiccedilatildeo de inoperatividade de natildeo accedilatildeo portanto despida daquilo que o caracteriza como humano sem eacutetica Resta portanto apenas o peso de um fator poderoso externo a moral a esmagar toda a disposiccedilatildeo e propensatildeo para agir Assim como na consciecircncia moral tambeacutem a consciecircncia judicativa compromete a accedilatildeo pela necessidade de comunicaccedilatildeo em seu afatilde de tornar inteligiacutevel o interior e singular

Principiamos em estabelecer pelo meacutetodo genealoacutegico as origens da consciecircncia tanto como consciecircncia em sentido bioloacutegico Bewusstsein como consciecircncia moral Gewissen atraveacutes do processo de exteriorizaccedilatildeo comunicativa e interiorizaccedilatildeo instintual Da exteriorizaccedilatildeo da consciecircncia Bewusstsein e da interiorizaccedilatildeo da consciecircncia Gewissen quando os instintos estatildeo falsificados e encarcerados passamos a refletir sobre os fatores externos que promovem sua manutenccedilatildeo o rebanho e a moral Para enfim apontarmos a disposiccedilatildeo para a accedilatildeo a forccedila plena como remeacutedio agrave falsificaccedilatildeo dos estados interiores e agrave doenccedila conhecida como maacute consciecircncia

2 A gecircnese da consciecircncia como exteriorizaccedilatildeo comunicativa e como interiorizaccedilatildeo instintual

No aforismo 11 da Gaia Ciecircncia encontra-se a primeira reflexatildeo de Nietzsche sobre a consciecircncia Bewusstsein Ela eacute considerada pelo filoacutesofo como o desenvolvimento uacuteltimo e mais inacabado do corpo orgacircnico Pois ao inveacutes da consciecircncia servir-se dos instintos ela serve-se de juiacutezos na maioria apressados e temeraacuterios pois pretendem-se eternos e duradouros ldquoEssa ridiacutecula superestimaccedilatildeo e maacute-compreensatildeo da consciecircncia [] que ateacute hoje foram incorporados somente os nossos erros e que toda a nossa consciecircncia diz respeito a errosrdquo (NIETZSCHE 1999 p 383) A consciecircncia para Nietzsche natildeo pode constituir o ser humano eacute apenas um dos oacutergatildeos que facilitam a sua sobrevivecircncia o oacutergatildeo mais inacabado e por isso inadequado para direcionar-se ao mundo exterior A consciecircncia eacute um movimento imortalizador do nada como acompanhamos numa carta de Nietzsche a Franz Overbeck ldquoEsta humilhaccedilatildeo por trecircs anos este golpe na face este natildeo inexoraacutevel complica com a obrigaccedilatildeo para ganhar a vida [] por outro lado a consciecircncia disso um trabalho imortal que apresenta-se ao lado do nada atualrdquo (NIETZSCHE 1982 p 295) A consciecircncia tende a aguccedilar a forccedila do natildeo e por isso agravando o niilismo Logo tudo o que passa pela consciecircncia acaba falsificado como recorda Scarlett Marton ldquoSe aponta seu caraacuteter falsificador eacute para advertir que aquilo que passa por ela acaba falsificadordquo (MARTON 2016 p 155) Tal falsificaccedilatildeo impregna o proacuteprio corpo que no dizer de Werner Stegmaier ldquo[] carrega a consciecircncia e daacute a ela o que pensar estaacute por sua vez bem distante de ser um fundamento originaacuterio e incondicionadordquo (STEGMAIER 2013 p 43)

A consciecircncia nasce no mesmo solo da linguagem portanto ambos consciecircncia e linguagem estatildeo contaminados pela gregariedade ldquoPara o nascimento da consciecircncia humana poderia se utilizar a consciecircncia do rebanhordquo (NIETZSCHE 1999 p 190)

Adilson Felicio Feiler

23

Tudo o que o homem pensa jaacute estaacute impregnado pela linguagem pelas palavras se toma consciecircncia do pensamento Vacircnia Dutra de Azeredo ao comentar o fenocircmeno da consciecircncia em Nietzsche acentua que para que o homem possa fazer parte da sociedade necessita cultivar a capacidade de se comunicar e a consciecircncia ldquo[] a sua inserccedilatildeo na sociedade requer a comunicaccedilatildeo e portanto a consciecircnciardquo (AZEREDO 2003 p 155) O homem eacute pressionado a manifestar seu pensamento em palavras e quando isso acontece o pensamento torna-se descaracterizado daquilo que lhe eacute mais iacutentimo pessoal e singular Em outras palavras o pensamento pelo filtro da consciecircncia e da linguagem torna-se presa de falsificaccedilotildees A falsificaccedilatildeo promovida pela consciecircncia opera divisotildees e oposiccedilotildees entre o homem e o animal o que de per si natildeo haveria segundo Nietzsche diferenccedila alguma A dimensatildeo gregaacuteria da qual faz nascer a consciecircncia em sentido bioloacutegico ou judicativo2 temeraacuterio nivelador embora guarde suas particularidades natildeo estaacute desligada da acepccedilatildeo de consciecircncia Gewissen no sentido moral

A gecircnese fundamental do fenocircmeno da maacute consciecircncia situa-se na acepccedilatildeo da consciecircncia Gewissen moral para aleacutem da segunda dissertaccedilatildeo de Para a Genealogia da moral Nietzsche antecipa este tema em seu escrito Aleacutem do bem e do mal Preluacutedio a uma filosofia do futuro no aforismo 12 quando mostra como foi estabelecida a psique humana envolta no conceito de alma mediante a sua compreensatildeo atomiacutestica A esse respeito Nietzsche se expressa ldquo[] o atomismo da alma Permita-se designar com esse termo a crenccedila que vecirc a alma como algo indestrutiacutevel eterno indestrutiacutevel como uma mocircnada um aacutetomo essa crenccedila deve ser eliminada da ciecircnciardquo (NIETZSCHE 1999 p 27)

Ora se o corpo eacute compreendido como um campo de forccedilas entatildeo soacute haacute espaccedilo tanto para a dissoluccedilatildeo do princiacutepio claacutessico de individuaccedilatildeo como para a desintegraccedilatildeo do ldquoeurdquo Remeacutedios Aacutevila ao referir-se sobre o ldquoeurdquo desintegrado em Nietzsche recorda que este reflete a pluralidade do corpo composta por tensotildees que compotildeem um campo de batalha (AacuteVILA 1999 p 195) Neste sentido aquela estrutura social dos impulsos e afetos eacute encerrado para dentro de si mesmo Alberto Carlos Onate sobre este processo de interiorizaccedilatildeo da consciecircncia alega ldquoA lsquointeriorizaccedilatildeorsquo eacute fruto de um imenso esforccedilo conciliador apaziguador que arrefece e acaba por interditar a descarga dos instintos favoraacuteveis agrave violecircnciardquo (ONATE 2000 p 35) Este fenocircmeno de interiorizaccedilatildeo equivale a um vulcatildeo que ao inveacutes de expelir cinzas lava e fogo desde o topo de sua cratera os engole para dentro de si mesmo

A consciecircncia moral consiste como recorda Andreacute Luiz Mota Itaparica na ldquo[] introjeccedilatildeo de impulsos agressivosrdquo (ITAPARICA 2016 p 156) Este impulsos internalizados opressivamente como puniccedilatildeo aos que resistem agraves regras do rebanho convertem-se em consciecircncia moral Embora este tema seja abertamente desenvolvido na segunda dissertaccedilatildeo da Genealogia da Moral o tema da consciecircncia remonta agrave obediecircncia aos costumes morais que se depreende de Aurora como segue ldquo[] tambeacutem nossos juiacutezos e valores morais satildeo apenas imagens e fantasias sobre um processo fisioloacutegico de noacutes conhecido [] para designar certos estiacutemulos nervosos Que tudo isso que chamamos de consciecircncia eacute um comentaacuterio mais ou menos fantaacutesticordquo (NIETZSCHE 1999 p 113) Pela imposiccedilatildeo de juiacutezos e valores morais e o consequente castigo agravequeles que natildeo o cumprem tem origem a consciecircncia moral Do campo da consciecircncia permeado pelo natural e o normativo

2 Convencionamos denominar a Consciecircncia Bewusstsein aleacutem de bioloacutegica por ser um produto mais inacabado da fisiologia tambeacutem com uma acepccedilatildeo judicativa Por esta acepccedilatildeo o ser humano pela pressatildeo da necessidade de co-municar estados interiores o faz em forma de juiacutezos apressados que natildeo correspondem a sua legitimidade singular

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

24

se depreende como recorda Christopher Janawy ( JANAWAY 2012 p 04) ldquo() espaccedilo suficiente para a concepccedilatildeo de valorrdquo No campo proacuteprio do valorar que se foi moldando a consciecircncia moral desde um tempo longiacutenquo pela modalidade mais rudimentar entre credor e devedor

Este mesmo sentimento de estar nas matildeos daquele a quem natildeo se eacute capaz de saldar a diacutevida atua como doenccedila que infecta e envenena Marcelo Giglio Barbosa recorda que a ldquo[] consciecircncia aparece nesse contexto como fator de adoecimento de degenerescecircnciardquo (BARBOSA 2000 p 35) Este sintoma que permeia as mentes daqueles aacutevidos por a todo o momento trazerem agrave memoacuteria situaccedilotildees como a escravidatildeo como uma diacutevida impagaacutevel estariam trazendo agrave memoacuteria a necessidade de fazer justiccedila como movimento salutar para a exteriorizaccedilatildeo daquela carga instintual reprimida ou pelo contraacuterio estariam movidos por uma maacute consciecircncia Portanto satildeo incapazes de externar aquela carga instintual singular genuiacutena que se volta contra si mesmo Procuramos responder agrave esta questatildeo ou pelo menos problematiza-la mediante as consideraccedilotildees decorrentes sobre o rebanho e a moral no segundo capiacutetulo

3 O rebanho e a moral como obstaacuteculos agrave accedilatildeo singular e exteriorizadaA consciecircncia Bewsstsein eacute algo do qual se pode prescindir Nas palavras de Oswaldo

Giacoacuteia Juacutenior ldquo[] natildeo existe melhor forma de se inteirar dessa prescindibilidade da consciecircncia do que atraveacutes da fisiologia e da zoologiardquo (GIACOacuteIA 2002 p 31) Pois de todos estes processos fundamentais da vida humana como pensar querer sentir a consciecircncia estaacute ausente De onde vem portanto esta necessidade do refinamento da consciecircncia Natildeo eacute outro senatildeo ldquo[] aquela que inscreve a consciecircncia como funccedilatildeo da capacidade de comunicaccedilatildeordquo (GIACOacuteIA 2002 p 33)

Esta necessidade de comunicaccedilatildeo eacute avaliada em termos natildeo apenas individuais mas em termos de uma raccedila eou naccedilatildeo Por isso ldquo[] a consciecircncia em geral soacute se desenvolveu sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 1999 p 591) Eacute justamente em nome da sobrevivecircncia de grupos sociedades espeacutecies que a comunicaccedilatildeo foi sendo desenvolvida Mais uma vez a marca do rebanho acompanha o DNA da consciecircncia atraveacutes da necessidade de comunicaccedilatildeo Pois antes de se comunicar se sente a necessidade de se refletir o conteuacutedo daquilo que vai ser expressado

Eacute em funccedilatildeo daquilo que eacute comum igualitaacuterio uniformizador que a consciecircncia via linguagem elimina aquilo que eacute diferente e singular Pela eliminaccedilatildeo daqueles caracteres pessoais individuais que delineiam o ser humano se abdica daquilo que o constitui a sua capacidade de agir E justamente sobre este aspecto da accedilatildeo Nietzsche eacute enfaacutetico ldquoNossas accedilotildees satildeo no fundo todas elas pessoais de uma maneira incomparaacutevel uacutenicas ilimitadamente individuais sem duacutevida nenhuma mas tatildeo logo noacutes as traduzimos na consciecircncia elas natildeo parecem mais secirc-lordquo (NIETZSCHE 1999 p592-3) A consciecircncia atua como um filtro uniformizador sobre os caracteres pessoais eliminando as suas diferenccedilas e precisamente aquelas diferenccedilas que satildeo fundamentais para a constituiccedilatildeo da accedilatildeo Mediante o que eacute uacutenico e individual o homem em sua docilidade ao mundo permite que este em seu vir a ser constante como vontade de potecircncia perpasse os seus poros ldquoA vontade de potecircncia exerce-se nos numerosos seres vivos microscoacutepicos que formam o organismo em que cada um quer prevalecer na relaccedilatildeo com os demaisrdquo (MARTON 2000 p 140) O produto deste incessante perpassar da potecircncia nos seres eacute a criaccedilatildeo de sempre novas formas e perspectivas

Adilson Felicio Feiler

25

Ora pela consciecircncia a docilidade agrave terra que eacute abertura ao criar portanto ao agir eacute bloqueada pela imposiccedilatildeo de modelos igualitaacuterios e padronizadores ditados por aquela necessidade de reflexatildeo dos conteuacutedos a serem expressos linguisticamente para ldquo[] tornar inteligiacuteveis suas necessidades (NIETZSCHE 1999 p593) Ao inveacutes do homem ser uma expressatildeo singular e criativa da riqueza do vir a ser do mundo pelo filtro da consciecircncia passa a ser nada senatildeo um receptaacuteculo daquilo que no mundo eacute mais superficial ldquo[] o mundo de que podemos tomar consciecircncia eacute apenas um mundo de superfiacutecies e de signosrdquo (NIETZSCHE 1999 p 593) Anna Hartmann Cavalcanti em seu estudo sobre a gecircnese da concepccedilatildeo da linguagem em Nietzsche se expressa ldquo[] que o instinto assim compreendido natildeo eacute o resultado de uma determinada organizaccedilatildeo corporal ou de um mecanismo espiritual previamente disposto pela natureza mas uma atividade inconsciente do espiacuteritordquo (CAVALCANTI 2005 p 43)

A linguagem consiste num processo de trazer agrave consciecircncia toda aquela estrutura aniacutemica inconsciente que subjaz ao pensamento A abstraccedilatildeo da linguagem contribui para o desenvolvimento intensificaccedilatildeo e manutenccedilatildeo do pensamento consciente O que representa um abalo frontal a carga aniacutemica inconsciente resultando em cristalizaccedilatildeo da accedilatildeo enquanto forccedilas criativas Forccedilas estas que segundo Nietzsche desfazem a ilusatildeo dos conceitos ilusoacuterios como o de alma unidade e sujeito cognoscente De acordo com Marco Parmeggiani ldquo[] Nietzsche submete a criacutetica dos pressupostos gerais do coacutegito o eu-autoconsciente como causa do pensar e a imagem do pensamentordquo (PARMEGGIANI 2002 p 125) A simplificaccedilatildeo pela qual eacute reduzida a consciecircncia Bewusstsein em sua acepccedilatildeo bioloacutegica eacute abdicaccedilatildeo da accedilatildeo pois aqueles modelos padronizadores e igualitaacuterios impedem as relaccedilotildees de forccedila a pluralidade e originalidade da riqueza das diferenccedilas interiores responsaacuteveis pelo movimento do criar Esta caracteriacutestica eacute tambeacutem partilhada pela consciecircncia Gewissen em sua acepccedilatildeo moral Natildeo por impedir a accedilatildeo pelo nivelamento do desigual mas por impedir a externaccedilatildeo da accedilatildeo Logo em ambas acepccedilotildees da consciecircncia a accedilatildeo eacute bloqueada

Dado que os mecanismos e dispositivos da moral tendem a enfraquecer e debilitar pela cristalizaccedilatildeo e engessamentos a padrotildees preacute-determinados o antiacutedoto para tal situaccedilatildeo seria o de desobstruir tais padronizaccedilotildees que permitem realizar o movimento para fora Ora se a maacute consciecircncia eacute uma consideraccedilatildeo das suas propensotildees naturais com um olhar ruim hostil agrave vida e difamador do mundo entatildeo a saiacuteda para reverter esta situaccedilatildeo estaacute na conversatildeo do olhar um olhar bom e afeito agrave vida e que acolha o mundo A moral inibe impede agrave accedilatildeo e tolhe o comportamento desencadeando a maacute consciecircncia Por essa razatildeo o antiacutedoto contra a doenccedila da maacute consciecircncia estaacute na disposiccedilatildeo para a accedilatildeo Como a accedilatildeo repercute internamente enquanto dispositivo para refrear os efeitos maleacuteficos da falsificaccedilatildeo instintual e da maacute consciecircncia

4 A accedilatildeo como dispositivo para a superaccedilatildeo da falsificaccedilatildeo instintual e da maacute consciecircnciaAo falsificar os instintos singulares interiores a consciecircncia Bewusstsein impede

a accedilatildeo no sentido de por ela traduzir estados interiores genuiacutenos senatildeo produtos convencionados pelo rebanho Um traccedilo caracteriacutestico da consciecircncia e o seu caraacuteter falsificador ldquo[] aquilo que por ela passa acaba falsificadordquo (MARTON 2000 p 142) Este nivelamento falsificador promovido pela consciecircncia em forma de linguagem tem na accedilatildeo uma quebra desta generalizaccedilatildeo apressada As accedilotildees humanas por serem uacutenicas individuais e singulares natildeo se rendem ao padratildeo ao comum generalizado e ao vulgarizado

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

26

Elas em sua dinamicidade renovam constantemente tudo aquilo que se pretende fixo e redutiacutevel para tornar fluido Esta necessidade de fluidez esbarra na dimensatildeo do fundamento responsaacutevel por inverter a relaccedilatildeo causa efeito ldquo[] a causa ganha a consciecircncia mais tarde do que o efeito [] a causa eacute imaginada depois que o efeito aconteceurdquo (NIETZSCHE 1999 p 458-9) A centralidade da causa como fundamento de todas as accedilotildees liga-se agrave memoacuteria com base nas experiecircncias passadas e agraves ficccedilotildees com base em falsificaccedilotildees Pela interposiccedilatildeo de um fundamento anterior agrave accedilatildeo a consciecircncia mediante a linguagem pressupotildee juiacutezos destroccediladores da fluidez da experiecircncia interna Assim como a fluidez promovida pela accedilatildeo na consciecircncia Bewusstsein torna os estados interiores expressos em sua singularidade a fluidez promovida pela accedilatildeo na consciecircncia Gewissen promove a sua exteriorizaccedilatildeo

A accedilatildeo eacute um todo instintual que eacute a vida marcada pela luta entre as manifestaccedilotildees pulsionais apoliacutenea e dionisiacuteaca as quais permeiam todo o filosofar nietzschiano Na esteira dessa visatildeo traacutegica da vida Nietzsche de acordo com a leitura de David Hoy procura ldquo[] um caminho estabelecido de vida ndash que foi jaacute colapsadordquo (HOY 1986 p 74) Ora se o traacutegico marca todo o filosofar de Nietzsche entatildeo a criacutetica agrave proacutepria concepccedilatildeo de consciecircncia revela-se como um verdadeiro empreendimento desconstrutivo frente agrave metafiacutesica dogmaacutetica e agrave moral judaico-cristatilde Com isso a proacutepria noccedilatildeo de sujeito passa a perder todo o sentido de que ateacute entatildeo era provida Dada toda a natureza desconstrutiva deste pensamento o mesmo soacute se justifica mediante a afirmaccedilatildeo criadora razatildeo pela qual as teorias das forccedilas e da vontade de potecircncia satildeo de capital importacircncia

Nietzsche apresenta a essecircncia da forccedila natildeo pela fiacutesica que a explica pelos seus efeitos portanto pela crenccedila de que existem coisas Mas caracteriza a forccedila como ldquo[] quanta dinacircmicos em uma relaccedilatildeo de tensatildeo com todos os outros quanta dinacircmicosrdquo (NIETZSCHE 1999 p 373) A forccedila eacute um quanta dinacircmico em que a relaccedilatildeo causal eacute extrapolada pois se caracteriza como simples atuar em direccedilatildeo agrave uma unidade provisional Cada uma destas unidades surge mediante a luta com outros corpos que ao adquirir uma certa firmeza se ajusta com o intuito de ldquo[] expandir a sua forccedila ( - a sua vontade de potecircncia) e a repelir tudo aquilo que resiste agrave sua expansatildeordquo (NIETZSCHE 1999 p 373) Logo todo ser vivo possui uma inclinaccedilatildeo natural natildeo de auto conservaccedilatildeo mas de acreacutescimo de forccedilas3 O viver nesta dinacircmica da vontade de potecircncia natildeo eacute uma tendecircncia para a conservaccedilatildeo nem a duraccedilatildeo mas sim a superaccedilatildeo E como enfatiza Robert Pippin eacute proacuteprio do viver o enfrentamento de todo tipo de forccedilas e resistecircncias por isso a necessidade ldquo[] de reconhecimento e resistecircncia que Nietzsche elogia quando ele discute a auto-superaccedilatildeordquo (PIPPIN 2006 p 114) Diante da realidade das forccedilas a vida eacute accedilatildeo da qual demanda a verdade que eacute interpretar a avaliar E a cada interpretaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo novas e muacuteltiplas interpretaccedilotildees e avaliaccedilotildees se depreendem num movimento que se renova a cada instante que se plenifica

A instauraccedilatildeo de um instante de plenitude conduz a um fazer memoacuteria que natildeo bloqueie a accedilatildeo mas pelo contraacuterio que a potencialize para gerar ainda mais accedilatildeo A terapia que o psicoacutelogo Nietzsche oferece segundo Oswaldo Giacoacuteia eacute a de narcotizar a consciecircncia sofredora pela auto superaccedilatildeo que ldquo[] se faz pela vivecircncia do ressentimento sob o acircngulo da potecircnciardquo (GIACOacuteIA 2013 p 191)

3 ldquoOs fisioacutelogos deveriam refletir antes de estabelecer o impulso de auto conservaccedilatildeo como impulso cardinal de um ser orgacircnico Uma criatura viva quer antes de tudo dar vasatildeo a sua forccedila ndash a proacutepria vida eacute vontade de poderrdquo (NIET-ZSCHE 1999 p 27)

Adilson Felicio Feiler

27

Pelo excedente de forccedila se promove a sauacutede para aleacutem de uma prostraccedilatildeo inerte e incuraacutevel Este acuacutemulo de forccedilas natildeo admite estagnaccedilatildeo ou metas a alcanccedilar compreendidas como estaacutegio final mas como recorda Walter Kaufmann ldquo[] a meta da humanidade natildeo pode situar-se no fim mas apenas nos mais altos espeacutecimesrdquo (KAUFMANN 1968 p 319) Por isso esquecer natildeo eacute o mesmo que natildeo fazer memoacuteria mas impedir com que as marcas desta interfira na capacidade de agir e por essa razatildeo de criar pois caso contraacuterio a vida estaria seriamente comprometida Por essa razatildeo eacute preciso superar ldquo[] estados gerais de prazer e desprazer interpretados segundo a loacutegica da causalidade num processo comandado pela imaginaccedilatildeo que atribui ao mesmo tempo eficaacutecia causal e significaccedilatildeo moral a entidades ou seres fictiacutecios espiacuteritos deuses vontades substanciais consciecircncia sobretudo a consciecircncia moral (Gewissen)rdquo (GIACOacuteIA 2014 p 289)

Pois eacute no jogo instintual e aniacutemico de forccedilas que os limites causais se desconstroem e a vida vai atingindo a sua plenitude em instantes transvalorados E nestes cuja a accedilatildeo eacute tudo o que existe o sujeito natildeo passa de ficccedilatildeo gregaacuteria ditada pela consciecircncia Bewusstsein superfiacutecie signo preconceito moral e maacute consciecircncia Gewissen

5 Consideraccedilotildees finaisAs consideraccedilotildees acima nas ajudaram a perceber como a consciecircncia Bewusstsein e

a consciecircncia Gewissen constituem obstaacuteculos para a manifestaccedilatildeo da accedilatildeo Embora cada acepccedilatildeo de consciecircncia tenha a sua especificidade seja pelo acircmbito judicativo linguiacutestico da consciecircncia que perde toda a singularidade interna seja pelo acircmbito moral que impotildee obstaacuteculos aacute exteriorizaccedilatildeo da accedilatildeo ambas se encontram num ponto comum o do comprometimento da accedilatildeo Pela consciecircncia em ambas acepccedilotildees a accedilatildeo sofre obstaacuteculos agrave sua manifestaccedilatildeo

A consciecircncia Bewusstsein se manifesta pela necessidade de comunicaccedilatildeo e com isso seu conteuacutedo se externa como nivelamento aos padrotildees estabelecidos pelo rebanho A accedilatildeo que daiacute resulta natildeo corresponde aos instintos singulares interiores portanto eacute nada senatildeo juiacutezos falsificados A consciecircncia Gewissen reduz tudo ao acircmbito da desestiacutemulo do desacircnimo e de paz Desse modo ao inveacutes da carga intelectual se projetar para fora se recolhe para dentro interiorizando-se num ataque frontal contra si mesmo uma auto-conspiraccedilatildeo

A satisfaccedilatildeo das necessidades do rebanho atua no sentido de fazer da accedilatildeo massa de manobra o que implica em perda do que caracteriza fundamentalmente a accedilatildeo sua carga plural singular e instintiva A accedilatildeo que deriva deste fenocircmeno da consciecircncia eacute ficccedilatildeo o que natildeo reflete o mundo e o ser humano em sua singularidade A consciecircncia moral tem seu comprometimento da accedilatildeo no recolhimento das forccedilas instintivas ao acircmbito do interno apaacutetico e passivo A moral representa o peso da culpa que retorna a remorder a todo instante impedindo-se com que as forccedilas instintuais se exteriorizem

Logo eacute somente pela potencializaccedilatildeo da accedilatildeo que se poderaacute realizar o movimento inverso o de fazer com que toda aquela carga instintual se mostre em sua originalidade singular e se direcione para fora num processo caracterizado pelo criar No entanto faz-se necessaacuterio para que o dispositivo da accedilatildeo se expresse a ativaccedilatildeo da faculdade do esquecimento Esta longe de ser a anulaccedilatildeo da memoacuteria eacute caracterizada como o natildeo deixar-se determinar pelas feridas contagiantes do passado Eacute nesse niacutevel que o esquecimento poderaacute facilitar o desencadeamento da accedilatildeo que ao criar plenifica cada instante da vida

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

28

Este instante eacute composto por uma multiplicidade de forccedilas em combate cuja accedilatildeo e reaccedilatildeo vatildeo estabelecendo hierarquias como modos de atuaccedilatildeo das forccedilas Dessa pluralidade de forccedilas em tensatildeo origina-se o corpo vital No entanto para que o processo expansionista da criaccedilatildeo se mantenha faz-se necessaacuterio que as forccedilas ativas dominem sobre as forccedilas reativas Ao atuarem fortuitivamente tais forccedilas dissolvem aquelas unidades conceituais ldquoeurdquo ldquosujeitordquo jaacute que a accedilatildeo ocorre destituiacuteda de intencionalidade simplesmente age atua no sentido de lutar impor transvalorar O campo instintual que caracteriza a filosofia de Nietzsche cujas forccedilas manteacutem e promovem a vida necessariamente estaacute orientado para a accedilatildeo

Adilson Felicio Feiler

29

Referecircncias bibliograacuteficasAacuteVILA Remeacutedios Identidad y trageacutedia Nietzsche y la fragmentacioacuten del sujeto Barcelona Editorial Criacutetica 1999AZEREDO Vacircnia Dutra de Nietzsche e a dissoluccedilatildeo da moral Ijuiacute Editora Unijuiacute 2003BARBOSA Marcelo Giglio Criacutetica ao conceito de consciecircncia no pensamento de Nietzsche Satildeo Paulo Editora Beca Produccedilotildees Culturais 2000CAVALCANTI Anna Hartmann Siacutembolo e alegoria A gecircnese da concepccedilatildeo de linguagem em Nietzsche Satildeo Paulo Editora Annablume 2005GIACOacuteIA Oswaldo Jr Nietzsche como psicoacutelogo Satildeo Leopoldo Editora Unisinos 2002_____ Nietzsche O humano como memoacuteria e como promessa 2a ed Petroacutepolis Editoras Vozes 2014HOY David Couzens Nietzsche Hume and the genealogical method In YOVEL Y Nietzsche as affirmative thinker Dordrecht Martinus Nijhoff Publischers 1986 p 69-89ITAPARICA Andreacute Luiacutes Mota Consciecircncia Moral (Gewissen) In Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 p 156-8JANAWAY Chistopher SIMON Robertson (Ed) Introduction In Nietzsche naturalism and normativity Oxford Oxford University Press 2012 p 01-19 KAUFMANN Walter Nietzsche philosopher psychologist antichrist Princeton Princeton University Press 1968 NIETZSCHE F W Die froumlliche Wissenschaft In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Herausgegeben) Kritische Studienausgabe Berlin Verlag de Gruyter 1999 Bd 3 _____ Genealogie zur Moral In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Herausgegeben) Kritische Studienausgabe Berlin Verlag de Gruyter 1999 Bd 5 _____ Nachgelassene fragmente Herbst 1880 bis Maumlrz 1882 In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Herausgegeben) Achte Abteilung Berlin Walter de Gruyter 1999 Bd 9 _____ Nachgelassene fragmente Herbst 1887 bis Maumlrz 1888 In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Herausgegeben) Achte Abteilung Berlin Walter de Gruyter 1999 Bd 13 _____ Nietzsche Briefwechsel Januar 1885 ndash Dezenber 1886 In COLLI von Giorgio MONTINARI Mazzino (Harausgegeben) Dritte Abteilung Berlin Walter de Gruyter 1981 Bd 3_____ A gaia ciecircncia Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Genealogia da Moral Uma polecircmica Traduzido por Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001MARTON Scarlett Extravagacircncias Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche Satildeo Paulo Discurso Editorial 2000_____ Consciecircncia (Bewusstsein) In Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 p 154-6ONATE Alberto Marcos O crepuacutesculo do sujeito em Nietzsche ou como abrir-se ao filosofar sem metafiacutesica Ijuiacute Editora Unijuiacute 2003PARMEGGIANI Marco Perspectivismo y subjetividade em Nietzsche Maacutelaga Universidad de Maacutelaga 2002PIPPIN Robert B Nietzsche psychology and first philosophy Chicago The University of

Consideraccedilotildees nietzschianas sobre os obstaacuteculos agrave

30

Chicago Press 2006 STEGMAIER Werner As linhas fundamentais do pensamento de Nietzsche Petroacutepolis Editora Vozes 2013

Adriano Geraldo da Silva

31

O cristianismo face agrave criacutetica nietzschiana Pressupostos para um diaacutelogo filosoacutefico

Adriano Geraldo da Silva1

A filosofia nietzschiana eacute marcada natildeo raramente pelo tom riacutespido contra algumas instituiccedilotildees que compotildeem a cena do seacuteculo XIX destacando-se sobretudo sua criacutetica ao Cristianismo cujas caracteriacutesticas satildeo amplamente expostas em diversas de suas obras e de modo mais contundente em O Anticristo As reaccedilotildees por parte dos intelectuais cristatildeos por sua vez foram as mais diversas possiacuteveis desde uma recusa categoacuterica a qualquer tipo de diaacutelogo ateacute aqueles que se abriram para tal possibilidade No presente trabalho apresentam-se alguns pressupostos considerados necessaacuterios para o estabelecimento de um possiacutevel diaacutelogo em chave filosoacutefica entre a filosofia cristatilde e Nietzsche Sabe-se contudo que este diaacutelogo tem seus limites Por um lado temos a criacutetica contundente nietzschiana a qual natildeo permite qualquer forma de ldquocristianizaccedilatildeordquo o que seria trair a originalidade de suas intenccedilotildees Por outro lado natildeo seria possiacutevel aqui definir uma ldquoessecircncia cristatilderdquo uma vez que o fenocircmeno cristianismo possui uma seacuterie de vertentes cujas facetas se modificaram ao longo dos seacuteculos que compotildee a sua histoacuteria Ainda observando o cristianismo natildeo se trata tambeacutem de repensaacute-lo ao modo nietzschiano mas de lhe propor sem nenhuma pretensatildeo um exame de consciecircncia sobre a autenticidade de seu discurso

O diaacutelogo que aqui se pretende fundamenta-se em dois eixos distintos primeiramente eacute preciso considerar o modo pelo qual o cristianismo foi interpelado pelos textos de Nietzsche bem como o teor de suas criacuteticas e sobretudo qual cristianismo foi alvo de sua censura Em segundo lugar eacute preciso considerar o que eacute especiacutefico do cristianismo ndash sem a pretensatildeo de apresentar aqui uma ldquoessecircncia do cristianismordquo ndash bem como as formas diversas que o cristianismo tomou ao longo de sua histoacuteria apesar de sua especificidade o que permite observar de modo preciso em quais dessas formas predominam as caracteriacutesticas denunciadas por Nietzsche A partir destes eixos apresentados desenvolve-se o presente trabalho

Em primeiro lugar cabe uma anaacutelise do texto nietzschiano o que torna perceptiacutevel ao leitor que o cristianismo eacute tomado primeiramente como uma forma moral na qual se cria um mundo ilusoacuterio distante da realidade

Nem a moral e nem a religiatildeo tem no cristianismo contato com algum ponto da realidade Causas puramente imaginaacuterias (lsquoDeusrsquo lsquoalmarsquo lsquoeursquo lsquoespiacuteritorsquo lsquoa vontade livrersquo e tambeacutem a natildeo livre) efeitos puramente imaginaacuterios (lsquopecadorsquo lsquoredenccedilatildeorsquo lsquograccedilarsquo lsquocastigorsquo lsquoremissatildeo dos pecadosrsquo)

1 Faculdade Catoacutelica de Pouso Alegre

O cristianismo face agrave criacutetica

32

[] Este puro mundo de ficccedilotildees se distingue muito a seu desfavor do mundo dos sonhos pelo fato de que este reflete a realidade enquanto aquele a falsifica desvaloriza em suma nega a realidaderdquo (AC 15)

Natildeo obstante aleacutem de cindir a realidade em dois mundos2 o cristianismo cria uma oposiccedilatildeo de valor entre ambos Diraacute Nietzsche

Uma vez inventado o conceito de lsquonaturezarsquo como antiacutetese ao conceito rsquoDeusrsquo a palavra para expressar lsquoreprovaacutevelrsquo teve que ser lsquonaturalrsquo ndash todo aquele mundo de ficccedilotildees tem sua raiz no oacutedio ao natural (a realidade) eacute expressatildeo de um profundo descontentamento com o real poreacutem com esta afirmaccedilatildeo tudo se aclara (AC 15)

Neste sentido a experiecircncia cristatilde seria restrita agrave negaccedilatildeo da natureza humana baseada numa forma de ascese como modo de aproximaccedilatildeo do niacutevel espiritual Desta constataccedilatildeo Nietzsche tira quatro conclusotildees as quais traccedilam um fio condutor desde o sentimento de sofrimento com a efetividade da vida ateacute o infortuacutenio da deacutecadence a) quem nega a efetividade eacute justamente quem sofre com ela [ldquoQuem eacute o uacutenico a possuir razotildees para esquivar-se atraveacutes de uma mentira da realidade Aquele que sofre com elardquo (AC15)] b) quem sofre com a efetividade eacute na verdade uma efetividade malograda fracassada c) esta efetividade malograda cria por sua vez a moral e a religiatildeo cuja causa eacute a preponderacircncia dos sentidos de desprazer sobre os sentidos de prazer d) esta eacute a foacutermula para a decadecircncia ldquoEm Deus [tido sobretudo como fundamento da realidade natildeo efetiva ou ilusoacuteria] declarada a hostilidade agrave vida agrave natureza agrave vontade de vida [] Em Deus divinizado o nada santificada a vontade de nadardquo (AC 18) Do que fora exposto pode-se estabelecer a seguinte equaccedilatildeo Fraqueza ndash Antinatureza ndash Ficccedilatildeo religiosa (estabelecimento de noccedilotildees como pecado e vida eterna) ndash Moral (que tem por causa e finalidade as ficccedilotildees religiosas) ndash Decadecircncia

Este primeiro eixo sintetiza enfim o que seriam as caracteriacutesticas na anaacutelise de Nietzsche sustentadoras da moral cristatilde a noccedilatildeo de pecado e de consciecircncia (como possibilidade de avaliar moralmente os proacuteprios atos autoconsciecircncia maacute consciecircncia ou sentido de culpa) Natildeo se trata aqui de fazer uma longa e aprofundada explanaccedilatildeo das ideias de pecado e consciecircncia mas apenas de indicar seu lugar dentro da criacutetica nietzschiana ao cristianismo Sobretudo eacute preciso dizer que ambas as noccedilotildees estatildeo intrinsecamente ligadas de tal modo que em Genealogia da moral Nietsche associa no acircmbito preacute-histoacuterico quando da formaccedilatildeo da memoacuteria no animal homem a ideia de culpa e maacute consciecircncia como fundamentais para o desenvolvimento da religiatildeo a partir da ideia de sacrifiacutecio e ascese Ou seja da inibiccedilatildeo de sua descarga de vontade o homem interioriza-se encontra-se como um animal consciente de si e de sua culpa (da culpa natural das pulsotildees volitivas)

[] Os velhos instintos natildeo cessaram repentinamente de fazer suas exigecircncias Mas era difiacutecil raramente possiacutevel lhes dar satisfaccedilatildeo [] Todos os instintos que natildeo se descarregam para fora voltam-se para dentro ndash isto eacute o que chamo de interiorizaccedilatildeo do homem eacute assim que no homem cresce o que depois se denomina sua lsquoalmarsquo (GM II 16)

2 Eacute preciso ressaltar que o cristianismo natildeo cria especificamente esta cisatildeo entre dois mundos Aqui Nietzsche tem em mente a filosofia socraacutetico-platocircnica e a distinccedilatildeo entre real e ideal Todavia esta distinccedilatildeo eacute assimilada pela teologia cristatilde e legitimada pela filosofia moderna

Adriano Geraldo da Silva

33

Na consciecircncia moral reside o que haacute de mais elaborado pelo cristianismo segundo Nietzsche Justamente nesta consciecircncia moral se defenestram os instintos e a vontade de vida agrave medida em que o homem se torna doente a partir de sua fraqueza Natildeo lhes resta outra saiacuteda a natildeo ser formular dispositivos que lhe permitam ainda que ilusoriamente superar seu estado de fraqueza e doenccedila Em outras palavras esta construccedilatildeo teoacuterica se configura como verdadeiro ato de rebeliatildeo e de vinganccedila A moral cristatilde em suma nasce da fraqueza e do oacutedio oriundo desta fraqueza impossibilitado de realizar qualquer tipo de vinganccedila senatildeo ilusoacuteria Portanto o que move o cristianismo como instituiccedilatildeo racional e moral seria a sede de vinganccedila do tipo psicoloacutegico fraco e doente em vista de sua dominaccedilatildeo sobre aqueles que verdadeiramente satildeo nobres As doutrinas cristatildes se convertem em verdadeiro narcoacutetico para a cultura dos miseraacuteveis Reduzido agrave moral o cristianismo teria como motivaccedilatildeo a vinganccedila e o oacutedio

A partir deste primeiro eixo e sem pretender nenhum tipo de sistematizaccedilatildeo artificial nem nenhum achatamento das variaccedilotildees lexicais e conceituais presentes na obra nietzschiana propotildee-se aqui a identificaccedilatildeo das teses mais recorrentes de Nietzsche em sua anaacutelise do cristianismo Mais do que um retrato exaustivo elas pretendem apenas facilitar uma visatildeo de conjunto que seraacute uacutetil para a continuaccedilatildeo da reflexatildeo

1- O cristianismo eacute uma religiatildeo que perdeu sua essecircncia religiosa (perdeu o sentimento dos mitos) pondo no lugar dela a pretensatildeo de historicidade e racionalidade no que se distancia da Antiguidade grega

2- O cristianismo opotildee-se agrave postura esteacutetica diante do mundo3- O cristianismo eacute oposiccedilatildeo agrave vida efetiva4- O cristianismo eacute sinocircnimo de fraqueza5- As proacuteprias formulaccedilotildees cristatildes satildeo incoerentes agrave medida em que se desvirtua ateacute

mesmo a Sagrada escritura com o intuito de fundamentar suas tesesSe a interpretaccedilatildeo nietzschiana vecirc no cristianismo a consequecircncia da rebeliatildeo

fraca na moral (de tal modo que os fracos sedentos de vinganccedila mas impotentes para realizaacute-la elaboram a moral como forma de imposiccedilatildeo sobre o modo de valorar nobre) parece legiacutetimo perguntar para aleacutem do trabalho teoacuterico de interpretaccedilatildeo do cristianismo feito por Nietzsche pelas formas cristatildes histoacutericas com as quais ele teve contato e que o levaram a tal trabalho teoacuterico Natildeo se trata de buscar algo como ldquocausas histoacutericasrdquo de seu pensamento mas as vivecircncias efetivas e de caraacuteter cristatildeo que representavam para Nietzsche a manifestaccedilatildeo do que ele denominava a ldquoessecircnciardquo do cristianismo Em outras palavras trata-se de procurar identificar nos textos do proacuteprio Nietzsche referecircncias a vivecircncias cristatildes histoacutericas do ressentimento

Ao proceder a esse tipo de leitura nota-se que as referecircncias fundamentais de Nietzsche podem ser associadas ao cristianismo tal como concebido em continuidade com a Reforma Protestante iniciada por Lutero especialmente na forma do pietismo Certamente a ldquovivecircncia protestante e pietistardquo podia ser encontrada tambeacutem em formas histoacutericas do catolicismo mas isso natildeo vem ao caso aqui porque o que interessa eacute destacar vivecircncias cristatildes modeladas pelo ressentimento (independentemente de serem de matriz protestante ou catoacutelica) Historicamente o cristianismo reformado e pietista seriam as duas formas fundamentais com as quais Nietzsche deparou na Alemanha do seacuteculo XIX A caracteriacutestica central dessas formas estaria sem duacutevida na identificaccedilatildeo exacerbada da

O cristianismo face agrave criacutetica

34

experiecircncia cristatilde com uma moralidade a ponto de oferecer a Nietzsche a possibilidade de distinguir entre o cristianismo de Paulo (moralista e inautecircntico) e o cristianismo de Jesus (autecircntico mas terminado na cruz)

A contraposiccedilatildeo com o Renascimento permite entender o sentido identificado por Nietzsche na Reforma Protestante Com efeito Renascimento e Reforma constituem o conjunto de eventos que marcaram profundamente a eacutepoca moderna na medida em que estabeleceram uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre si (cf Valadier 1982 p 107)

Ateacute agora houve apenas esta grande guerra e nada mais decisivo que o questionamento da Renascenccedila [] Tambeacutem nunca houve uma forma de ataque mais radical mais direta mais severa em todo o fronte contra o centro Atacar no lugar decisivo na proacutepria sede do cristianismo colocar aiacute no trono os valores nobres quer dizer introduzi-los nos instintos necessidades apetites mais baacutesicos [] O que ocorreu Um monge alematildeo Lutero esteve em Roma Esse monge que levava em seu corpo todos os instintos vingativos de um sacerdote fracassado se indignou em Roma contra o Renascimento (AC 61)

Quanto ao segundo eixo eacute preciso definir o que seria o especiacutefico cristatildeo bem como suas formas histoacutericas e qual a predominacircncia em sentido de ideologia persiste na denominaccedilatildeo cristatilde Neste momento do trabalho satildeo articulados alguns textos de Max Scheller e Joseph Ratzinger no que diz respeito agrave especificidade do cristianismo e uma posiccedilatildeo com relaccedilatildeo agraves criacuteticas nietzschianas O cristianismo eacute tomado por estes autores natildeo a partir do estabelecimento de uma doutrina moral mas sobretudo a partir de um caraacuteter precisamente existencial o que por sua vez mostra como vaacutelidas as criacuteticas de Nietzsche como fora dito anteriormente que faz ao cristianismo realizar um verdadeiro exame de consciecircncia sobre suas escolhas teoacutericas e praacuteticas desde que se considere algumas formas histoacutericas especiacuteficas e natildeo o cristianismo como um todo Em linhas gerais tal diaacutelogo o qual eacute almejado requer como dado inegociaacutevel a clara consciecircncia de que o cristianismo natildeo eacute em primeiro lugar uma moral assim como a feacute cristatilde natildeo nasce de uma decisatildeo moral

Max Scheler por exemplo se encarregaraacute de mostrar que a criacutetica nietzschiana do cristianismo natildeo pressupotildee o cristianismo em sua ldquopureza essencialrdquo3 livre das mutaccedilotildees ocorridas ao longo da Histoacuteria Assim a distinccedilatildeo entre um cristianismo essencial e autecircntico de um lado e um cristianismo histoacuterico e eventualmente inautecircntico de outro permite entrever que a posiccedilatildeo de Nietzsche eacute correta ao apontar para riscos efetivos no seio do cristianismo como o ressentimento o excessivo espiritualismo como fuga do mundo etc Dessa perspectiva uma consideraccedilatildeo da criacutetica nietzschiana pode ser de grande importacircncia para a autoanaacutelise cristatilde ldquoO que Nietzsche nos ensina mediante essa criacutetica a lsquomarteladasrsquo eacute a necessidade de submeter a uma criacutetica vigorosa o desejo que lhe confere seu valor aos olhos do proacuteprio crente antes de aderir a uma convicccedilatildeordquo (cf Granier 1981 p 128)

Parece-nos vaacutelido entatildeo fazer uma distinccedilatildeo natildeo apenas na interpretaccedilatildeo nietzschiana do cristianismo mas dentro do proacuteprio desenvolvimento histoacuterico do mesmo entre formas autecircnticas cujo frescor resguarda os lampejos da experiecircncia original e formas inautecircnticas sobretudo corrompidas de acordo com interesses nascidos no desenrolar histoacuterico Eacute justamente nesta distinccedilatildeo que encontra-se guardadas as devidas proporccedilotildees a chave para um diaacutelogo a niacutevel filosoacutefico entre o cristianismo e Nietzsche

3 O vocabulaacuterio da ldquopurezardquo deve ser entendido aqui em continuidade com o vocabulaacuterio fenomenoloacutegico (proacuteximo agrave forma vazia por exemplo) e natildeo com um vocabulaacuterio eacutetico

Adriano Geraldo da Silva

35

Como se percebe em seus escritos especialmente em O Anticristo Nietzsche distingue entre a figura de Jesus e o movimento cristatildeo posterior de tal modo que o cristianismo jaacute natildeo possuiria nada da existecircncia de seu pretenso fundador que aliaacutes teria sido o uacutenico cristatildeo que existiu de fato (cf Nietzsche 2007 p 77) mas que tambeacutem teria sido desfigurado em sua imagem quando da introduccedilatildeo do fanaacutetico em seu tipo psicoloacutegico (cf Nietzsche 2007 p 68) Entre Jesus e o cristianismo haveria um ato da mais pura sede de vinganccedila (cf Nietzsche 2007 p 80) realizado por Paulo na sistematizaccedilatildeo doutrinaacuteria e moral do cristianismo que seriam a seu ver produtos mais imediatos do ressentimento (cf Nietzsche 2007 p 80)

Natildeo deixa de ser curioso notar certa admiraccedilatildeo nutrida por Nietzsche para com a figura de Jesus No paraacutegrafo 36 de O Anticristo esta admiraccedilatildeo eacute expressa a modo de comparaccedilatildeo quando Nietzsche se diz tambeacutem um espiacuterito que chegou agrave liberdade assim como Jesus eacute dito um espiacuterito livre4 e somente por esta caracteriacutestica eacute que se poderia realizar entatildeo uma verdadeira compreensatildeo daquele evento distante quase vinte seacuteculos de si (cf Nietzsche 2008 p 73) O fato de Nietzsche comparar-se a Jesus indica para aleacutem da admiraccedilatildeo natildeo apenas o desejo de igualaacute-lo mas principalmente de superaacute-lo (cf Biser 1981 p 75) na medida em que propotildee um novo modo de conceber a vida e o mundo

As principais caracteriacutesticas pertencentes agrave figura de Jesus e elencadas por Nietzsche traccedilam um tipo completamente oposto a qualquer fixidez moral ou doutrinal que possa ser encontrada na tradiccedilatildeo eclesiaacutestica ou nos proacuteprios evangelhos Trata-se no dizer de Nietzsche de recompor a figura de Jesus contida nos evangelhos apesar de os evangelhos conterem todas as possiacuteveis desfiguraccedilotildees feitas pelas primeiras comunidades cristatildes que os transformaram em um modo de promover a autoafirmaccedilatildeo de sua doutrina e moral (cf Nietzsche 2007 p 64) Para Nietzsche Jesus eacute este espiacuterito livre (cf Nietzsche 2007 p 69) cujo discurso natildeo possui nenhuma foacutermula tampouco condiccedilotildees rituais para se comunicar com Deus (cf Nietzsche 2007 p 71) A praacutetica de Jesus para Nietzsche jaacute natildeo se situa em um aleacutem-vida e aleacutem-homem trata-se ao contraacuterio de uma praacutetica que assume a condiccedilatildeo humana sem rechaccedilaacute-la ( Jaspers 1978 p 30)

O proacuteprio reino anunciado por Jesus natildeo se confunde com qualquer estrutura poliacutetica mas trata-se de um estado do coraccedilatildeo que aliaacutes natildeo eacute reservado para uma vida aleacutem mas acontece agora (cf Nietzsche 2007 p 72) Nietzsche viu no reino anunciado por Jesus o oposto do que se via no cristianismo principalmente em formulaccedilotildees nas quais prevalecia o aspecto excessivamente moral

No entanto eacute tambeacutem verdade que em suas formas histoacutericas o cristianismo e as praacuteticas cristatildes individuais tornaram e ainda tornam opaca a autenticidade da experiecircncia cristatilde Vista sob esse aspecto a criacutetica nietzschiana parece acertada e vaacutelida

4 Eugen Biser alude a esta admiraccedilatildeo de Nietzsche para com a figura de Jesus de modo que o proacuteprio modo como Nietzsche realiza sua leitura do evento cristatildeo e ateacute mesmo da filosofia demonstra por sua vez certa semelhanccedila com o nazareno ldquoComo Jesus se considerava a luz que brilha nas trevas tambeacutem Nietzsche se sentiu como uma superabundacircncia de luz Como se narra que Jesus falava com plena autoridade tambeacutem Nietzsche tendia a mandar em vez de argumentar como Jesus chamava agrave conversatildeo tambeacutem Nietzsche exige a revalorizaccedilatildeo de todos os valores Como Jesus viveu na consciecircncia de que com ele chegara a plenitude dos tempos tambeacutem Nietzsche se sentiu como o acontecimento importante que faz eacutepoca que redetermina a histoacuteria da humanidaderdquo (Biser 1981 p 75)

O cristianismo face agrave criacutetica

36

Referecircncias bibliograacuteficas

Obras de NietzscheNIETZSCHE Friedrich El Anticristo Trad Andreacutes Sancheacutes Pascual Madrid Alianza Editorial 2007_____ Genealogia da Moral Uma polecircmica Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ La genealogia de la moral Trad Andreacutes Sancheacutes Pascual Madrid Alianza Editorial 2005_____ Obras Incompletas Trad Rubens Rodrigues Torres Filho Satildeo Paulo Abril Cultural 1999

Obras sobre Nietzsche e o cristianismoBENTO XVI A ldquoconversatildeordquo de Satildeo Paulo Audiecircncia Geral Disponiacutevel em httpsw2vaticanvacontentbenedictxviptaudiences2008documentshf_ben-xvi_aud_20080903html 3 de setembro de 2008BISER Eugen Relaccedilatildeo de Nietzsche com Jesus um confronto psico-literaacuterio Concilium Nietzsche e o Cristianismo Petroacutepolis Editora Vozes vol 165 n 5 paacuteg 74 ndash 82 1981CONCILIUM Nietzsche e o Cristianismo (Revista) Petroacutepolis Editora Vozes vol 165 n 5 1981FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Trad Joaquim Lourenccedilo Duarte Peixoto Lisboa Editorial Presenccedila 1988GRANIER Jean Pensar com e contra Nietzsche Concilium Nietzsche e o Cristianismo Petroacutepolis Editora Vozes vol 165 n 5 paacuteg 124 ndash 130 1981JASPERS Karl Nietzsche ndash Introduction agrave sa philosophie Trad Henri Niel Paris Gallimard 1950 _____ Nietzsche e il cristianesimo Trad Maria Dello Preite Bari Ecumenica Editrice 1978MUumlLLER-LAUTER Wolfgang A doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche Trad Oswaldo Giacoia Juacutenior Satildeo Paulo ANNABLUME 1997 _____ Nietzsche sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia Trad Claudemir Araudi Satildeo Paulo Editora Unifesp 2009SCHELER Max Da reviravolta dos valores Trad Marco Antocircnio dos Santos Casanova Petroacutepolis Editora Vozes Braganccedila Paulista Editora Universitaacuteria 2012SLOTERDJIK Peter Il quinto ldquoVangelordquo di Nietzsche Sulla correzione delle buone noticie Trad Eleonora Florio Milano Mimesis Edizioni 2015VALADIER Paul A condiccedilatildeo cristatilde Estar no mundo sem ser do mundo Trad Benocircni Lemos Aparecida Editora Santuaacuterio 2006 _____ Nietzsche y la critica del Cristianismo Trad Eloy Rodriguez Navarro Madrid Ediciones Cristandad 1982WOTLING Patrick Nietzsche e o problema da civilizaccedilatildeo Trad Vinicius de Andrade Satildeo Paulo Editora Barcarolla 2013

Alianna Caroline Sousa Cardoso

37

Da genealogia da teoria do crime no direito penal brasileiro Uma criacutetica ao livre - arbiacutetrio a partir de Nietzsche e a neurociecircncia

Alianna Caroline Sousa Cardoso1

IntroduccedilatildeoO direito penal brasileiro atua em consonacircncia com a perspectiva da imputabilidade

enquanto a possibilidade de se atribuir a autoria ou responsabilidade por fato criminoso a algueacutem Diante dessa oacutetica parte-se do pressuposto de que o indiviacuteduo criminoso eacute responsaacutevel pela conduta a ele atribuiacuteda e por ela deve ser punido Toda a teoria do crime encontra-se pois vinculada a uma ideia de que mencionado indiviacuteduo seria livre para a execuccedilatildeo da accedilatildeo criminosa e por ela teria optado por isto por ela deve ser responsabilizado A hipoacutetese sustentada nesse trabalho2 pressupotildee por outro lado ser possiacutevel conceber em Nietzsche que o problema da liberdade que se apresenta dentro do direito penal brasileiro como mecanismo de estrutura do segmento da punibilidade encontra-se vinculado agrave bases fundacionais de uma moralidade cristatilde arraigada numa perspectiva contratual utilitaacuteria cuja concepccedilatildeo tem eacutegide no modo como concebemos a ideia de livre-arbiacutetrio desde Santo Agostinho Mencionado livre-arbiacutetrio eacute levado a cabo na construccedilatildeo da ideia de escolha consciente

O problema da consciecircncia eacute abordado pela filosofia desde muito A partir de Descartes o que se tem eacute a separaccedilatildeo mente-corpo e toda a filosofia se desmembra a partir desta classificaccedilatildeo Em que pese possa-se afirmar que amplos debates ainda se mostram possiacuteveis natildeo houve ainda nenhum consenso acerca do papel da consciecircncia e de qual seria sua importacircncia na constituiccedilatildeo das accedilotildees humanas Sabe-se no entanto que existe uma ideia formada e que eacute pano de fundo para afirmaccedilotildees do senso comum de que a consciecircncia eacute palco da razatildeo e esta atua de modo moral a partir de uma ideia de vontade ou seja atua conscientemente aquele que afirma eu quero

Destarte Nietzsche noutro norte propotildee numa oacutetica perspectivista outro vieacutes a partir da concepccedilatildeo de uma fisiologia bioloacutegica sustentada por ele ainda no Seacuteculo XIX e que segue

1 Universidade Federal de Pelotas ndash UFPel2 O presente artigo eacute um recorte da Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Banca Examinadora do Programa de PoacutesGraduaccedilatildeo

strictu sensu em filosofia pela Universidade Federal de Mato Grosso como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre sob a orientaccedilatildeo do Professor Doutor Tiegue Vieira Rodrigues intitulada ldquoUma anaacutelise Genealoacutegica do Direito e da Pena de Prisatildeo a partir da filosofia de Friedrich Nietzscherdquo defendida em 09 de Novembro de 2016 podendo ser encontrada em httpwwwufmtbrufmtunidadeuserfilespublicacoesc7bc6613a109d9dc7084da-d742c66246pdf tambeacutem faz parte dos estudos desenvolvidos em sede de doutoramento para a construccedilatildeo da tese denominada ldquoO PROBLEMA DA LIBERDADE EM NIETZSCHE E NA NEUROCIEcircNCIA Contribuiccedilotildees para a Criacutetica ao Livre-Arbiacutetrio no Direito Penal Brasileirordquo sob a orientaccedilatildeo do Professor Dr Clademir Araldi na Universidade Federal de Pelotas- UFPel

Da genealogia da teoria do crime no direito

38

sendo alvo de debates tambeacutem dentro de outras ciecircncias como a psicologia a neurociecircncia bem como outros eixos da filosofia como a epistemologia moral a filosofia analiacutetica e a filosofia da mente O principal foco de discussatildeo eacute a influecircncia ou natildeo de circunstacircncias bioloacutegicas que possam condicionar o comportamento humano enquanto necessaacuterio e de que modo eacute possiacutevel pensar o indiviacuteduo e o problema da consciecircncia a partir de perspectivas fisio(psico)loacutegicas Sustentamos pois que a par da moralidade insculpida no comportamento humano a partir de traccedilos de uma tradiccedilatildeo cultural subsiste no homem uma moralidade compartilhada biologicamente por meio de processos inconscientes que podem contribuir para pensarmos numa tradiccedilatildeo geneacutetica donde a moralidade perpassa o caraacuteter bioloacutegico

Atraveacutes do perspectivismo Nietzschiano sustentamos ser possiacutevel analisar algumas ideias desenvolvidas pelas ciecircncias naturais para a determinaccedilatildeo da personalidade e os problemas disso resultantes sob uma anaacutelise dos estudos de Nietzsche acerca da junccedilatildeo que faz de conceitos cientiacuteficos e filosoacuteficos para a construccedilatildeo de sua ideia de liberdade a partir de sua ldquoteoria das forccedilasrdquo e a consequente tomada de sua filosofia a partir da ideia de inconsciente e sua correlaccedilatildeo com as funccedilotildees fisioloacutegicas do corpo

O principal foco de discussatildeo eacute a noccedilatildeo de consciente sob a oacutetica da fisiologia do corpo orgacircnico como guia para verificar a origem dos sentimentos e valores morais bem como como fio condutor da teoria nietzschiana da interpretaccedilatildeo sobretudo de sua psicologia da cultura moderna Retratamos pois o acircmbito ldquopsicoloacutegicordquo da existecircncia humana assimilado pela compreensatildeo do valor da vida pelo vieacutes fisioloacutegico tornando-se possiacutevel falarmos de uma ldquopsicofisiologiardquo ou de uma ldquofisiopsicologiardquo em Nietzsche (FREZZATTI 2006)

Objetivamos pois avaliar a reflexatildeo de Nietzsche acerca da suposta projeccedilatildeo de causas das impressotildees sensiacuteveis no mundo externo ou seja a ideia do filoacutesofo acerca da causa interna de uma accedilatildeo correlacionando a criacutetica Nietzschiana agrave ideia de liberdade da vontade e as accedilotildees (in)conscientes a partir de sua fisiologia e recentes estudos da neurociecircncia Para analisar se eacute possiacutevel afirmar a existecircncia de uma liberdade da vontade nas accedilotildees humanas ou se esta estaacute inserida no campo do inconsciente

A filosofia contemporacircnea ainda se debruccedila no tema da consciecircncia sem de fato chegar a uma conclusatildeo especiacutefica acerca da subjetividade existente nas experiecircncias Por natildeo haver um entendimento paciacutefico algumas subdivisotildees terminaram por emergir Citemos por exemplo os eliminativistas que eliminam qualquer caraacuteter qualitativo da experiecircncia Aleacutem destes tambeacutem precisamos considerar aqueles que negam a ideia da manifestaccedilatildeo da consciecircncia unicamente sob a oacutetica neurofisioloacutegica e ainda os que a consideram sob uma oacutetica naturalista

Acerca da divisatildeo corpo-mente GUIMARAtildeES (2010 p 215-216) nos apresenta um apanhado dos debates existentes

David Chalmers em ldquoFacing Up to The Problem of Consciousnessrdquo (1995) coloca que o problema filosoacutefico ldquodurordquo acerca da consciecircncia (the hard philosophical problem) eacute abordaacute-la a partir do problema da identidade entre o fiacutesico e o mental Para Thomas Nagel (1992) por exemplo haveria uma espeacutecie de lacuna (gap) entre a consciecircncia fenomenal e as explicaccedilotildees fisicalistas de descriccedilotildees da experiecircncia fenomenoloacutegica Segundo Nagel identificar o fenocircmeno mental com o fiacutesico reduziria a consciecircncia a meros processos neuroquiacutemicos e com isso natildeo haveria a necessidade

Alianna Caroline Sousa Cardoso

39

da qualidade da experiecircncia subjetiva os qualia fazendo com que sua concepccedilatildeo juntamente com a de Chalmers encaixe-se no segundo grupo referido anteriormente Apesar de natildeo defender a existecircncia dos fenocircmenos da consciecircncia sem o suporte fiacutesico do ceacuterebro e de suas funccedilotildees neuroquiacutemicas e fisioloacutegicas os proponentes desta concepccedilatildeo crecircem que a consciecircncia e os qualia possuam um domiacutenio privado da perspectiva do sujeito na primeira pessoa que natildeo pode ser inteiramente naturalizado nem compreendido O fisicalismo poderia predizer da perspectiva da terceira pessoa as correlaccedilotildees entre os qualia e as condiccedilotildees objetivas do ceacuterebro mas natildeo pode explicaacute-las satisfatoriamente Daniel Dennett (2003) e Fred Dretske (1997) defendem a tese de que nenhum fato consciente pode ser acessiacutevel apenas a um sujeito sob um uacutenico ponto de vista Dennett tem a sua teoria da heterofenomenologia em que a consciecircncia eacute descrita da perspectiva da terceira pessoa em uma abordagem que permite uma espeacutecie de organizaccedilatildeo e catalogaccedilatildeo dos dados primaacuterios que esta recebe Jaacute os naturalistas da mente procuram oferecer uma explicaccedilatildeo dos fatos mentais a partir de uma descriccedilatildeo dos estados e processos mentais como aspectos relativos ao ceacuterebro e ao sistema nervoso central Dentre estes estaacute Dretske que propotildee uma naturalizaccedilatildeo da consciecircncia segundo uma abordagem representacionalista () O que Dretske procura fazer grosso modo eacute a preservaccedilatildeo do caraacuteter subjetivo e privado dos qualia compatibilizando isto com a ideacuteia dos mesmos poderem ser determinados objetivamente atraveacutes de uma relaccedilatildeo representacional

De fato o debate no entorno da epistemologia moral estaacute intimamente ligado agrave ideia de como se daacute a relaccedilatildeo entre a mente (ou psique) e o corpo a partir dos escritos de Descartes No entanto independentemente de qual posiccedilatildeo adotarmos perante a ideia que se coloca frente ao dilema da existecircncia ou natildeo de uma separaccedilatildeo eacute impossiacutevel ignorarmos que dentro da proacutepria histoacuteria da filosofia alguns nomes como Hipoacutecrates com sua teoria dos humores e Galeno que a ela aperfeiccediloou estabeleciam relaccedilotildees no miacutenimo coerentes entre um elemento e outro3

Tambeacutem natildeo se pode ignorar a presenccedila dos questionamentos acerca de tais elementos e suas configuraccedilotildees jaacute em Aristoacuteteles por exemplo que indagou sobre como e porquecirc a mente capaz de sentir ldquobem como perceber ou captar impressotildees interage com objetos que aparentemente natildeo apresentam tais propriedades ou seja que ldquopresumivelmenterdquo natildeo satildeo sensitivos ou capazes de apreender impressotildeesrdquo (FARIA 2006 p10)

Desde entatildeo inuacutemeras satildeo as teorias que se desenharam no entorno desse incompreensiacutevel campo e mesmo as ciecircncias que utilizam como objeto de estudo especiacutefico o campo do inconsciente como a psicologia a psicanaacutelise (derivada de Freud e suas incursotildees) ateacute a proacutepria neurociecircncia ainda natildeo foram capazes de chegar a um consenso sobre o assunto

Contemporaneamente ao se arquitetar a ideia de consciecircncia atraveacutes da relaccedilatildeo mente-corpo e a consequente interligaccedilatildeo com processos qualitativos da experiecircncia problemas de ordem ontoloacutegicos e epistemoloacutegicos surgem e a complexidade em superaacute-los fica ainda mais evidente Certo ainda eacute que ao se mencionar a ideia de consciente trecircs outros elementos se insurgem como pontos de reflexatildeo necessaacuterios quais sejam a razatildeo (em especial com a absorccedilatildeo pela filosofia da ideia de racionalidade a partir de Descartes) o livre-arbiacutetrio e sua relaccedilatildeo com a perspectiva da ideia de liberdade da vontade consciente

3 Cf FARIA 2006 p 9

Da genealogia da teoria do crime no direito

40

e a moralidade que se insurge como ponto fulcral na forma como os aspectos qualitativos das experiecircncias se correlacionam com a percepccedilatildeo da consciecircncia

Note-se no entanto que a neurociecircncia segue comprovando-nos experimentalmente que uma ligaccedilatildeo ainda natildeo decifrada cria uma ponte entre o que se conhece da mente e o modo como o ceacuterebro atua diante das experiecircncias ajudando-nos a corroborar o entendimento de Nietzsche acerca dos processos bioloacutegicos inerentes ao corpo fiacutesico e que se relacionam com a ideia de consciente

Nietzsche concebe o homem a partir de uma teoria das forccedilas e confere ao homem o que ele viraacute chamar de vontade de potecircncia natildeo admitindo que sua identidade ou subjetividade possa ser compreendida a partir de uma ideia de consciecircncia Para ele inexiste uma identidade fixa hermeacutetica mas sim mutaacutevel a partir de forccedilas e interpretaccedilotildees Nesse sentido ideias como responsabilidade foram articuladas como atributos para respostas morais e a consciecircncia ganhou uma compreensatildeo delimitada a partir da culpa como meacutetodo de orientaccedilatildeo moral para o funcionamento de uma sociedade propositadamente condicionada

Para Nietzsche a linguagem tem grande potencial no condicionamento das respostas morais que segundo o filoacutesofo satildeo desenvolvidas no inconsciente MATTIOLI (2017) indica que Nietzsche pretende demonstrar uma cadeia condicional de pensamento a partir de funccedilotildees gramaticais inconscientes A reflexatildeo do autor diz respeito ao aforismo 20 de Aleacutem do bem e do mal onde segundo Nietzsche os filoacutesofos descrevem ldquoagrave mercecirc de um encanto invisiacutevelrdquo e ldquograccedilas ao domiacutenio e direccedilatildeo inconsciente das mesmas funccedilotildees gramaticaisrdquo sempre a mesma oacuterbita ldquoDessa forma eles preenchem sempre um certo esquema baacutesico de filosofias possiacuteveis o que significa que seu pensamento apesar do seu sentimento de independecircncia e de sua vontade criacutetica ou sistemaacutetica eacute sempre condicionado inconscientemente pelas estruturas da linguagemrdquo4

Deste modo todas as lsquoverdadesrsquo para o filoacutesofo satildeo apenas interpretaccedilotildees feitas pelo homem acerca dos fenocircmenos do mundo para a elaboraccedilatildeo de um sentido para as coisas Sua oacutetica nos revela ainda que a par das interpretaccedilotildees metafiacutesicas a proacutepria ciecircncia eacute por ela mesma uma abertura perspectivista

Matemaacutetica ndash Vamos introduzir o refinamento e o rigor da matemaacutetica em todas as ciecircncias ateacute onde seja possiacutevel natildeo na crenccedila de que por essa via conheceremos as coisas mas para assim constatar nossa relaccedilatildeo humana com as coisas A matemaacutetica eacute apenas o meio para o conhecimento geral e derradeiro do homem5

O que temos entatildeo eacute um filoacutesofo comprometido com os questionamentos que produzem uma filosofia moral proacutepria caracterizada por uma ideia de um perspectivismo que consiste em nada mais que uma foacutermula diversa de se pensar a teoria do conhecimento que vinha sendo enraizada na tradiccedilatildeo filosoacutefica Com a afirmaccedilatildeo ldquonatildeo existem fatos mas somente interpretaccedilotildeesrdquo Nietzsche coloca em cheque a possibilidade de conhecimento e de verdade no mundo e tambeacutem promove uma reflexatildeo para aleacutem do que eacute conhecimento e verdade Como consequecircncia temos uma criacutetica agrave epistemologia e sua busca por respostas Para Nietzsche inexiste uma verdade propriamente dita mas tatildeo somente interpretaccedilotildees desta

4 MATTIOLI William Cadernos de Filosofia Alematilde | jan-jun 2017 p 775 Gaia Ciecircncia 246

Alianna Caroline Sousa Cardoso

41

Ateacute que a palavra ldquoconhecimentordquo tenha sentido o mundo eacute cognosciacutevel mas este eacute interpretaacutevel de modos diversos e natildeo existe nele um sentido mas inumeraacuteveis sentidos ldquoPerspectivismordquo Satildeo os nossos desejos que interpretam o mundo os nossos instintos com seus pros e contras Cada instinto eacute uma espeacutecie de sede de domiacutenio cada um deles possui a sua perspectiva que sempre deseja impor como norma a todos os outros instintos (NachlassFP 1886-1887 7[60] KSA 12315)

Aqui natildeo equivocamos em afirmar que a filosofia da mente tambeacutem defende esse pressuposto a partir de Searle (1997) sob a ideia de que a proacutepria filosofia da linguagem atribui uma intencionalidade intriacutenseca numa correlaccedilatildeo menteceacuterebro em termos bioloacutegicos6 O que corrobora nossa assertiva de que a ideia de responsabilidade como modo de interpretaccedilatildeo natildeo estaria na certificaccedilatildeo verdadeira das condutas que implicam uma liberdade Ou ainda que a proacutepria ideia de liberdade da vontade perpassa pela invocaccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo e nesse sentido a ideia de um consciente separado do corpo estaria tambeacutem sob a oacutetica de uma representaccedilatildeo interpretativa

Nietzsche enquanto criacutetico da moral recusou a ideia de uma moralidade cujas bases sob sua oacutetica encontravam-se vinculadas agrave obediecircncia agrave autoridade de um legislador divino Diante dessa perspectiva refletiu acerca da influecircncia de tais pressupostos para o indiviacuteduo e para a cultura partindo da ideia de que as morais baacutesicas do cristianismo levariam o homem agrave debilidade uma vez que impediria-o de reconhecer as proacuteprias habilidades em nome de uma regra de convivecircncia inibidora de seus instintos e impulsos ignorando suas competecircncias e capacidades de criaccedilatildeo Para Lopes7

Isso o levou a propor experimentos de pensamento e a esboccedilar formas de vida no interior das quais natildeo apenas crenccedilas mas sentimentos morais deixam de comparecer como componentes essenciais Nietzsche foi um dos poucos filoacutesofos a insistir na tese de que a perspectiva do imoralismo deve ser levada a seacuterio ressaltando que haacute bons argumentos a favor de uma reforma de nossas praacuteticas de atribuiccedilatildeo de responsabilidade moral

De fato do que se viu depreende-se que o perspectivismo de Nietzsche estaacute diretamente ligado ao seu ldquofalsificacionismordquo que relaciona organismo e razatildeo na compreensatildeo de mundo nos remetendo ao debate jaacute abordado no presente ensaio em que mente e corpo satildeo colocados como separados e que coloca toda a ideia do consciente como problema supostamente epistemoloacutegico a partir de um vieacutes separatista

Segundo Pietro Gori e Paolo Stellino8

O perspectivismo estaacute particularmente ligado ao chamado ldquofalsificacionismordquo de Nietzsche isto eacute agrave tese de que a relaccedilatildeo do homem com o mundo seja mediada tanto pelo organismo quanto pela razatildeo por meio de um processo de elaboraccedilatildeo do dado sensiacutevel que simplifica a sua complexidade e o reduz a um esquema gerenciaacutevel De tal posiccedilatildeo decorre a ideia de que o conteuacutedo cognoscitivo que o nosso intelecto nos oferece natildeo possui os traccedilos de uma perfeita correspondecircncia com o estado de coisas mas apenas os traccedilos de uma ldquoverdaderdquo pragmaacutetica A posiccedilatildeo pela qual se pode falar de verdade apenas em termos de funcionalidade

6 SEARLE John R A redescoberta da mente Traduccedilatildeo de Eduardo Pereira e Ferreira Martins Fonted 2006 p 2 7 LOPES Cad Nietzsche Satildeo Paulo n 33 p 89-134 2013 P 938 GORI Pietro STELLINO Paolo Cad Nietzsche Satildeo Paulo n 34 - vol I p 101-129 2014 O perspectivismo

moral nietzschianoP 104

Da genealogia da teoria do crime no direito

42

de comunicaccedilatildeo e de accedilatildeo obriga Nietzsche a reconsiderar a proacutepria dicotomia verdade- -erro que ele redefine justamente em termos de utilidade praacutetica (cf FWGC 121) A determinaccedilatildeo do caraacuteter ldquoerrocircneordquo do conhecimento como traccedilo distintivo da nossa espeacutecie eacute um dos aspectos que satildeo abordados nos cadernos preparatoacuterios de FWGC em conexatildeo com o qual Nietzsche introduz pela primeira vez de maneira expliacutecita o tema do perspectivismo

Essa entrada em muito nos interessa uma vez que sua relaccedilatildeo com os elementos fisioloacutegicos eacute o que nos demonstra a inserccedilatildeo de Nietzsche numa interpretaccedilatildeo bioloacutegica que daacute a noacutes a margem para a realizaccedilatildeo de uma ponte dentre o filoacutesofo e os atuais estudos da neurociecircncia Onde pretendemos chegar

Nos parece pois que Nietzsche no percurso de sua obra agrave medida que fundamenta uma oposiccedilatildeo entre a representaccedilatildeo de mundo e a ideia de verdade configura seu pensamento acreditando haver uma distinccedilatildeo entre o que seria discursivamente imposto e a resposta do corpo presente em sua percepccedilatildeo acerca das leis da natureza

O contraste entre essa autecircntica verdade da natureza e a mentira da civilizaccedilatildeo a portar-se como a uacutenica realidade eacute parecido ao que existe entre o eterno cerne das coisas a coisa em si e o conjunto do mundo fenomenal (GT 8 KSA1 p58-9)

Se Nietzsche argumenta sua criacutetica agrave moral com ideias constituiacutedas a partir da oacutetica do corpo natildeo nos equivocariacuteamos em alargar seu perspectivismo e pensar na ideia de que ele mesmo trouxe agrave baila alguns dos resultados mais significativos da pesquisa neurocientiacutefica das uacuteltimas deacutecadas Aqui apresentamos algumas descobertas empiristas a par de recaiacuterem na contradiccedilatildeo existente diante da criacutetica do filoacutesofo agrave ideia de causalidade que podem nos mostrar que atualmente alguns resultados da neurociecircncia podem nos ajudar a pensar a relaccedilatildeo entre crenccedilas morais e fisiologia

Pretendemos apresentar a concepccedilatildeo de que o consciente a razatildeo a liberdade da vontade e a moralidade podem ter fundamentos fisioloacutegicos ignorados pela dicotomia mente-corpo e que embora tratado como um problema epistemoloacutegico a consciecircncia pode de fato ser um problema que mereccedila atenccedilatildeo pelas ideias de uma biologia do corpo e suas accedilotildees inconscientes

Apresentamos pois um exemplo dado pelo fisioacutelogo americano Bejamin Libet de que nossas accedilotildees satildeo iniciadas de modo inconsciente ou seja aquilo que efetivamente daacute origem agrave nossos atos voluntaacuterios natildeo satildeo elementos que podem ser explicados atraveacutes de nossa consciecircncia mas sim processos inconscientes do ceacuterebro ou seja do corpo

A partir desta ideia o fisioacutelogo aduz que o ldquolivre-arbiacutetriordquo natildeo estaacute diretamente ou ainda causalmente relacionado a accedilatildeo propriamente dita Essa conclusatildeo eacute extraiacuteda de uma seacuterie de experimentos relativos ao tempo necessaacuterio para que um determinado conteuacutedo seja representado na consciecircncia

O que encontramos em suma foi que o ceacuterebro exibiu um processo de iniciaccedilatildeo comeccedilando 550 msec antes do ato livremente voluntaacuterio mas a consciecircncia da vontade consciente de executar o ato apareceu apenas de 150 a 200 ms antes do ato O processo voluntaacuterio eacute portanto iniciado inconscientemente cerca de 400 ms antes que o sujeito tome consciecircncia de sua vontade ou intenccedilatildeo de realizar o ato (Libet 2004 p 123s)

Alianna Caroline Sousa Cardoso

43

Dentro de uma oacutetica fisioloacutegica a ideia de que os atos antecedem a uma interpretaccedilatildeo dos acontecimentos encontra-se vinculada a ideia de representaccedilatildeo que em muito condiz com a perspectiva Nietzschiana de processos fisioloacutegicos que manifestam-se para aleacutem de uma moralidade latente constituiacuteda culturalmente

Conforme MATIOLLI (2014)9 Segundo Nietzsche

este atraso se deve ao fato de que o mecanismo interpretativo que estaacute na base da consciecircncia precisa encontrar uma causa determinada para um certo estado fisioloacutegico antes que este estado seja de alguma forma representado na consciecircncia Nietzsche denomina esse mecanismo ldquoimpulso causalrdquo Um exemplo deste processo nos eacute dado pela experiecircncia do sonho

ldquoPartindo do sonho a uma determinada sensaccedilatildeo devida a um longiacutenquo tiro de canhatildeo por exemplo eacute atribuiacuteda posteriormente uma causa [hellip] A sensaccedilatildeo perdura enquanto isso numa espeacutecie de ressonacircncia ela como que aguarda ateacute que o impulso causal lhe permita passar a primeiro plano ndash natildeo mais como acaso mas como ldquosentidordquo O tiro de canhatildeo aparece de modo causal numa aparente inversatildeo do tempo O ulterior a motivaccedilatildeo eacute vivenciado primeiramente [hellip] e o tiro vem depois Que aconteceu As representaccedilotildees produzidas por uma certa condiccedilatildeo foram mal-entendidas como causas delardquo (CI Os quatro 4)

Eacute como dizer em outras palavras que a partir de uma oacutetica fisioloacutegica o organismo se apodera de determinados pressupostos e atua a partir destes de modo inconsciente o que significaria dizer que tais elementos natildeo poderiam constituir senatildeo uma crenccedila moral arraigada que exerce papel de conhecimento de base e atua de maneira que o sujeito natildeo tenha liberdade da vontade para a determinaccedilatildeo de suas accedilotildees

Um fragmento poacutestumo de 1888

toda verdadeira accedilatildeo do mundo externo sucede de modo inconsciente A parcela de mundo externo da qual nos tornamos conscientes surge ulteriormente apoacutes o efeito que eacute exercido sobre noacutes a partir do exterior eacute posteriormente projetada como sua lsquocausarsquo (FP 1888 15[90])

Outro experimento pode contribuir para a concepccedilatildeo da ideia de uma formaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo geneacutetica ou seja uma oacutetica fisioloacutegica para a constituiccedilatildeo de crenccedilas morais para aleacutem de uma tradiccedilatildeo cultural

Uma publicaccedilatildeo meacutedica da Revista US National Library of MedicineNational Institutes of Health da Publimedgov da NCBI10 traz artigo publicado acerca da conexatildeo entre stress poacutes-traumaacutetico e a relaccedilatildeo com DNA Segundo o artigo em questatildeo de autoria de Yehuda R Bierer LM o transtorno de estresse poacutes-traumaacutetico parental (PTSD) tem uma relaccedilatildeo intriacutenseca com os recentes estudos neuroendoacutecrinos na prole de pais com o transtorno

De acordo com o estudo os descendentes de sobreviventes de trauma com PTSD mostram niacuteveis excessivos de excreccedilatildeo urinaacuteria de cortisol de 24 h e niacuteveis de cortisol salivares bem como supressatildeo plasmaacutetica de cortisol aumentada em resposta agrave baixa dose de administraccedilatildeo de dexametasona do que descendentes de sobreviventes sem PTSD Em 9 Estudos Nietzsche Curitiba v 5 n 2 p 305-344 juldez 201410 Disponiacutevel em httpswwwncbinlmnihgovpubmed18037011 Acessado em 04112017

Da genealogia da teoria do crime no direito

44

todos os casos as medidas neuroendoacutecrinas foram correlacionadas negativamente com a gravidade dos sintomas de PTSD parental mesmo apoacutes o controle de PTSD e ateacute mesmo outros sintomas na prole Embora a maioria do trabalho tenha se concentrado em descendentes adultos de sobreviventes do Holocausto observaccedilotildees recentes em bebecircs nascidos de matildees graacutevidas no 11 de setembro demonstram que o baixo cortisol em relaccedilatildeo ao PTSD parental parece estar presente no iniacutecio do desenvolvimento e pode ser influenciado por fatores in utero como a programaccedilatildeo de glicocorticoacuteides Uma vez que os baixos niacuteveis de cortisol estatildeo particularmente associados agrave presenccedila de PTSD materno os achados sugerem o envolvimento de mecanismos epigeneacuteticos

O que a linguagem meacutedica nos traz eacute basicamente que apoacutes analisar dados geneacuteticos colhidos de homens e mulheres que haviam sido prisioneiros nos campos de concentraccedilatildeo nazistas que testemunharam e sofreram torturas ou permaneceram escondidos durante a Segunda Guerra Mundial concluiu que ldquoMudanccedilas geneacuteticas derivadas de traumas sofridos por sobreviventes do Holocausto podem ser transmitidas aos filhos destes no mais claro sinal ateacute o momento de que as experiecircncias de vida de uma pessoa podem afetar as geraccedilotildees subsequentesrdquo

Os pesquisadores tambeacutem analisaram os genes dos filhos dos participantes e encontraram as mesmas mutaccedilotildees que foram constatadas no DNA dos pais O trabalho da equipe de Yehuda vem demonstrar que os traumas satildeo passados dos pais para os filhos atraveacutes da ldquoheranccedila epigeneacuteticardquo que considera mutaccedilotildees geneacuteticas adquiridas por meio de haacutebitos alimentares fumo estresse e agora inclui tambeacutem os traumas emocionais que passando de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo poderatildeo afetar os netos e ainda outras geraccedilotildees 11

Significa dizer em outras palavras que os efeitos intergeracionais natildeo satildeo transmitidos apenas pelas influecircncias sociais dos pais ou pela heranccedila geneacutetica regular mas tambeacutem pelos traumas emocionais Nesse artigo tambeacutem foi citado o estudo sobre a transmissatildeo do medo que nos animais jaacute foi constatado A estas heranccedilas descritas pelo artigo podemos ainda acrescentar a memoacuteria cultural como observada por Menezes (2007 p 28)12 ldquoQuando observamos o corpo como miacutedia primaacuteria natildeo estamos apenas nos referindo agraves suas funccedilotildees bioloacutegicas Percebemos que o corpo aleacutem de ser um organismo vivo uma expressatildeo da natureza tambeacutem tem sua memoacuteria culturalrdquo

Da reflexatildeo apresentada depreende-se ser possiacutevel pensar em Nietzsche como um precursor da ideia de uma criacutetica agrave moral a partir de uma oacuterbita fisioloacutegica De fato os recortes de sua obra apresentados datildeo uma introduccedilatildeo a uma possiacutevel exegese que nos levariam a afirmaccedilatildeo de Nietzsche como um filoacutesofo da moral Nietzsche valoriza a projeccedilatildeo de causas das impressotildees sensiacuteveis no mundo externo atraveacutes de um tipo de etiologia do erro deduzida de nossa vivecircncia do tempo13

Conforme MATTIOLLI

Luca Lupo (2006 p 42) se refere nesse contexto a uma fenomenologia do erro uma vez que a investigaccedilatildeo da origem desse erro cognitivo se daacute no acircmbito da anaacutelise acerca da consciecircncia e de seus processos

11 Reportagem divulgada na Revista GGN na coluna Cidadania em 26082015 por Joatildeo Paulo Caldeira Dispo-niacutevel Em httpsdirectjornalggncombrnoticiatraumas-podem-afetar-genes-de-filhos-de-vitimas Acessado em 10112017

12 MENEZES Joseacute Eugecircnio de Radio e cidade viacutenculos sonoros Satildeo Paulo Annablume 200713 Cf MATTIOLLI William A Temporalidade da consciecircncia e o problema da eficaacutecia causal da vontade em Niet-

zsche Estudos Nietzsche Curitiba v 5 n 2 p 305-344 juldez 2014

Alianna Caroline Sousa Cardoso

45

Nietzsche daacute a esse erro o nome de ldquoerro das causas imaginaacuteriasrdquo Mas a tese que eacute derivada dessa fenomenologia serve ainda como suporte para uma perspicaz criacutetica agrave assim chamada ldquomoral das intenccedilotildeesrdquo Assim como a representaccedilatildeo consciente de uma causa a agir sobre noacutes a partir do exterior a representaccedilatildeo consciente da causa interna de uma accedilatildeo isto eacute a representaccedilatildeo do motivo deve ser vista como um construto a posteriori que eacute imaginado apoacutes a iniciaccedilatildeo do ato No aforismo anterior de Crepuacutesculo dos iacutedolos que trata do erro da falsa causalidade Nietzsche considera o motivo como um mero ldquofenocircmeno superficial da consciecircncia um acessoacuterio do atordquo (CI Os quatro 3) Aqui ocorre igualmente uma inversatildeo do tempo Analisemos o problema mais de perto Num outro fragmento poacutestumo de 1885 intitulado ldquoa ordem temporal invertidardquo Nietzsche esclarece o modus operandi deste mecanismo na constituiccedilatildeo do mundo externo da seguinte forma ldquoO lsquomundo externorsquo age sobre noacutes o efeito eacute telegrafado no ceacuterebro eacute ali ajustado modelado e reconduzido agrave sua causa apoacutes isso a causa eacute projetada e somente entatildeo o fato vecircm agrave consciecircncia Isto eacute o lsquomundo fenomecircnicorsquo aparece a noacutes enquanto causa somente depois que lsquoelersquo agiu e o efeito foi elaborado Isto eacute noacutes invertemos constantemente a ordem daquilo que ocorre ndash Enquanto lsquoeursquo vejo isto jaacute vecirc outra coisa (waumlhrend lsquoichrsquo sehe sieht es bereits etwas Anderes) Ocorre aqui o mesmo que ocorre no caso da dorrdquo (FP 1885 34[54])

O aforismo 354 de ldquoA Gaia Ciecircnciardquo demonstra dois elementos de fundamental importacircncia para compreendermos como funciona o consciente dentro da filosifia de Nietzsche primeiro ele se insurge como aquele que valoriza os processos vitais e segundo assimila os processos do corpo atribuindo-lhes as mesmas configuraccedilotildees psicofisioloacutegicas Vejamos

ldquoDo ldquogecircnio da espeacutecierdquo mdash O problema da consciecircncia (ou mais precisamente do tornar-se consciente) soacute nos aparece quando comeccedilamos a entender em que medida poderiacuteamos passar sem ela e agora a fisiologia e o estudo dos animais nos colocam neste comeccedilo de entendimento (necessitaram de dois seacuteculos portanto para alcanccedilar a premonitoacuteria suspeita de Leibniz) Pois noacutes poderiacuteamos pensar sentir querer recordar poderiacuteamos igualmente ldquoagirrdquo em todo sentido da palavra e natildeo obstante nada disso precisaria nos ldquoentrar na consciecircnciardquo (como se diz figuradamente) A vida inteira seria possiacutevel sem que por assim dizer ela se olhasse no espelho tal como de fato ainda hoje a parte preponderante da vida nos ocorrem sem esse espelhamento (GC 354)

Significa dizer em suma que Nietzsche acredita que a maioria dos processos vitais ocorre sem a necessidade de uma consciecircncia Ou seja tanto processos vegetativos e fisioloacutegicos como comer e digerir para o filoacutesofo funcionam no ser humano como o querer e o pensar sem a necessidade de uma referecircncia de uma consciecircncia para realizar-se No mesmo aforismo Nietzsche prossegue

Para que entatildeo consciecircncia quando no essencial eacute supeacuterflua Bem se querem dar ouvidos agrave minha resposta a essa pergunta e agrave sua conjectura talvez extravagante parece-me que a sutileza e a forccedila da consciecircncia estatildeo sempre relacionadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por sua vez agrave necessidade de comunicaccedilatildeo mas natildeo entenda-se que precisamente o indiviacuteduo mesmo que eacute mestre

Da genealogia da teoria do crime no direito

46

justamente em comunicar e tornar compreensiacuteveis suas necessidades tambeacutem seja aquele que em suas necessidades mais tivesse de recorrer aos outros Parece-me que eacute assim no tocante a raccedilas e correntes de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem a compreenderem uns aos outros de forma raacutepida e sutil () Supondo que esta observaccedilatildeo seja correta posso apresentar a conjectura de que a consciecircncia desenvolveu-se apenas sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeomdash de que desde o iniacutecio foi necessaacuteria e uacutetil apenas entre uma pessoa e outra (entre a que comanda e a que obedece em especial) e tambeacutem se desenvolveu apenas em proporccedilatildeo ao grau dessa utilidade Consciecircncia eacute na realidade apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre as pessoas mdash apenas como tal ela teve que se desenvolver um ser solitaacuterio e predatoacuterio natildeo necessitaria dela O fato de nossas accedilotildees pensamentos sentimentos mesmo movimentos nos chegarem agrave consciecircncia mdash ao menos parte deles mdash eacute consequumlecircncia de uma terriacutevel obrigaccedilatildeo que por longuiacutessimo tempo governou o ser humano ele precisava sendo o animal mais ameaccedilado de ajuda proteccedilatildeo precisava de seus iguais tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensiacutevel mdash e para isso tudo ele necessitava antes de ldquoconsciecircnciardquo isto eacute ldquosaberrdquo o que lhe faltava ldquosaberrdquo como se sentia ldquosaberrdquo o que pensava Pois dizendo-o mais uma vez o ser humano como toda criatura viva pensa continuamente mas natildeo o sabe o pensar que se torna consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos mdash pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia Em suma o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciecircncia (natildeo da razatildeo mas apenas do tomar-consciecircncia-de-si da razatildeo) andam lado a lado

Nesse sentido fico claro que para Nietzsche a consciecircncia tambeacutem eacute fruto de uma invenccedilatildeo catalogada a partir da necessidade de comunicaccedilatildeo Destarte no Proacutelogo da mesma obra Nietzsche menciona sua imensa frustraccedilatildeo com o modo com que a filosofia ateacute entatildeo ignorava as necessidades do corpo e suas manifestaccedilotildees priorizando numa oacutetica cartesiana a ideia de uma racionalidade apoliacutenea tanto refutada por Nietzsche

() frequumlentemente me perguntei se ateacute hoje a filosofia de modo geral natildeo teria sido apenas uma interpretaccedilatildeo do corpo e uma maacute-compreensatildeo do corpo Por traacutes dos supremos juiacutezos de valor que ateacute hoje guiaram a histoacuteria do pensamento se escondem maacutes-compreensotildees da constituiccedilatildeo fiacutesica seja de indiviacuteduos seja de classes ou raccedilas inteiras Podemos ver todas as ousadas insacircnias da metafiacutesica em particular suas respostas agrave questatildeo do valoraacuteagrave existecircncia antes de tudo como sintomas de determinados corpos e se tais afirmaccedilotildees ou negaccedilotildees do mundo em peso tomadas cientificamente natildeo tecircm o menor gratildeo de importacircncia fornecem indicaccedilotildees tanto mais preciosas para o historiador e psicoacutelogo enquanto sintomas do corpo como afirmei do seu ecircxito ou fracasso de sua plenitude potecircncia soberania na histoacuteria ou entatildeo de suas inibiccedilotildees fadigas pobrezas de seu pressentimento do fim sua vontade de fim Eu espero ainda que um meacutedico filosoacutefico no sentido excepcional do termo mdash algueacutem que persiga o problema da sauacutede geral de um povo uma eacutepoca de uma raccedila da humanidade mdash tenha futuramente a coragem de levar ao cuacutemulo a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmaccedilatildeo em todo o filosofar ateacute o momento a questatildeo natildeo foi absolutamente a ldquoverdaderdquo mas algo diferente como sauacutede futuro poder crescimento vida

Alianna Caroline Sousa Cardoso

47

Disto podemos afirmar que o debate mente-corpo configurado sob uma orientaccedilatildeo cartesiana e ainda hoje pano de fundo de diversas consideraccedilotildees acerca da existecircncia dos processos conscientes e o modo como a epistemologia moral agrega a ideia do inconsciente a par das correntes que subsistem e degladiam entre si defendemos a possibilidade do uso da transdisciplinaridade para a tentativa de uma compreensatildeo dos estados imanentes a partir de uma oacutetica fisioloacutegica considerando a consciecircncia tambeacutem como modo de apreensatildeo do conhecimento sem ignorar outrossim tratar-se ambos conceitos de interpretaccedilotildees

Isto quer dizer em suma que acreditamos que o problema filosoacutefico da liberdade da vontade tem relaccedilatildeo intriacutenseca com a ideia de consciente e que pode ser questionado a partir da transdisciplinaridade vinculando-se agraves contribuiccedilotildees da psicologia e da neurociecircncia para se conceber um novo modo de pensar se as accedilotildees humanas satildeo conscientes ou se antes disto encontra razotildees no emaranhado das cadeias neuropsicoloacutegicas a partir de uma fisiologia do corpo

Acreditamos pois que atraveacutes de uma anaacutelise historiograacutefica e a desconstruccedilatildeo de alguns dogmas a filosofia de Nietzsche poderia auxiliar para reatualizar o Direito Penal jaacute que por tratar-se de normatividades juriacutedicas estas denotam-se unilaterais e consequentemente especiacuteficas Sendo assim a memoacuteria da construccedilatildeo do Direito Penal brasileiro seria ferramenta a ser observada atraveacutes de Friedrich Nietzsche nos possibilitando a compreensatildeo dos mecanismos de puniccedilatildeo ampliando as perspectivas para uma nova constituiccedilatildeo do direito penaliacutestico e da proacutepria pena de prisatildeo

Da genealogia da teoria do crime no direito

48

Referecircncias bibliograacuteficas

Referecircncias Primaacuterias

Obras de NietzscheNIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 _____ Aleacutem do bem e do mal Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2007 _____ Aurora reflexotildees sobre os preconceitos morais Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2004 _____ Cinco prefaacutecios para cinco livros natildeo escritos Trad de Pedro Suumlssekind Rio de janeiro 7 Letras 2000 _____ Crepuacutesculo dos iacutedolos ou como se filosofa com o martelo Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2010 _____ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2008 _____ Fragmentos poacutestumos (1875-1882) (Vol II) Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego Saacutenches Meca Madrid Editorial Tecnos (Grupo Anaya S A) 2008 _____ Fragmentos poacutestumos (1882-1885) (Vol III) Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego Saacutenches Meca Madrid Editorial Tecnos (Grupo Anaya S A) 2010 _____ Fragmentos poacutestumos (1885-1888) (Vol IV) Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego Saacutenches Meca Madrid Editorial Tecnos (Grupo Anaya S A) 2008 _____ Genealogia da moral uma polecircmica Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2009 _____ Humano Demasiado Humano Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2008 _____ O Anticristo Maldiccedilatildeo ao cristianismo Ditirambos de Dioniso Trad de Paulo C de Souza Satildeo Paulo Companhia das letras 2007

Obras sobre Nietzsche ALMEIDA Rogeacuterio Miranda de Nietzsche e os impasses do princiacutepio de prazer uma leitura a partir do primeiro periacuteodo Estudos Nietzsche Curitiba v 2 n 2 p 163-184 juldez 2011 ALMEIDA Viniacutecius Andrade de A QUESTAtildeO DA MORAL A PARTIR DE HUMANO DEMASIADO HUMANO UM LIVRO PARA ESPIacuteRITOS LIVRES p88 ARALDI Clademir Luiacutes A vontade de potecircncia e a naturalizaccedilatildeo da moral Cadernos Nietzsche V 30 2012 p 101-120 _____ Niilismo Criaccedilatildeo e Aniquilamento Nietzsche a e filosofia dos extremos Satildeo Paulo Editora Unijuiacute 2004 _____ A espiritualizaccedilatildeo da paixatildeo Sobre a moralizaccedilatildeo dos impulsos em Nietzsche Nat hum Satildeo Paulo v 12 n 2 p 1-17 2010 Disponiacutevel em lthttppepsicbvsaludorgscielophpscript=sci_arttextamppid=S1517-24302010000200005amplng=ptampnrm=isogt acessos em 13 nov 2016_____ Nietzsche e Paul Reacutee Acerca da existecircncia de impulsos altruiacutestas Dossiecirc ldquoNietzsche e as Tradiccedilotildees moraisrdquo Cad Nietzsche vol37 no1 Satildeo Paulo JanJune 2016

Alianna Caroline Sousa Cardoso

49

_____ Para uma caracterizaccedilatildeo do niilismo na obra tardia de Nietzsche Cadernos Nietzsche Satildeo Paulo v5 1998 p76AZEREDO Vacircnia Dutra de Nietzsche e a Interpretaccedilatildeo do mundo ao texto In AZEREDO Vacircnia Dutra de SILVA JUacuteNIOR Ivo (Org) Nietzsche e a Interpretaccedilatildeo Curitiba Editora CRV 2012 p 143-155 _____ Nietzsche e a autora de uma nova eacutetica Satildeo Paulo Editora Unijuiacute 2008 _____ CASTRO Fabio Guimaratildees de A RELACcedilAtildeO CREDOR-DEVEDOR Como passagem da noccedilatildeo de responsabilidade-diacutevida agrave noccedilatildeo de justiccedila e ao sentido do direito no pensamento de Nietzsche REVISTA LAMPEJO Nordm 3- 062013 _____ OS JUIacuteZOS DE VALOR EM NIETZSCHE E SEUS REFLEXOS SOBRE A EDUCACcedilAtildeO II SEMANA NACIONAL DE FILOSOFIA Universidade Federal de Santa Maria ndash UFSM Cultura e Alteridade Amarildo Luiz Trevisan e Elizette M Tomazetti (orgs) Confluecircncias Ed Uniajaiacute 2006 p 01-10_____ Nietzsche e a dissoluccedilatildeo da moral Satildeo Paulo Discurso Editorial 2000_____ Nietzsche e a modernidade ponto de virada Cadernos Nietzsche n 27 2010BALKE From a Biopolitical Point of View Nietzschersquos Philosophy of Crime MAY Simon Nietzsche on Freedom and Autonomy Edited by Ken Gemes and Simon May Oxford University Press 2009 New York United StatesBAPTISTA Marlon Tomazella O que significa ser livre e responsaacutevel O indiviacuteduo soberano como ideal moral de Nietzsche Estudos Nietzsche Espiacuterito Santo v 6 n 1 p 42-65 JanJun 2015BENOIT Blaise NIETZSCHE DA CRIacuteTICA DA LOacuteGICA DO DIREITO PENAL AO PROBLEMA DA CONCEPCcedilAtildeO DE UM NOVO DIREITO PENAL Revista de Filosofia Dissertatio Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Instituto de Filosofia Sociologia e Poliacutetica Universidade Federal de Pelotas Traduccedilatildeo Bruna de Oliveira Revisatildeo Teacutecnica Luiacutes Rubira Dissertatio 36 Veratildeo de 2013 p 11-36_____ O problema da Justiccedila Cadernos Nietzsche n 26 2010BITTAR Eduardo Carlos Bianca NIETZSCHE NIILISMO E GENEALOGIA MORAL Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Satildeo Paulo v 98 (2003) p 477 ndash 501_____ Direito e Justiccedila em Revista da Faculdade de Direito Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo v 93 p 339-359 jan 1998 ISSN 2318-8235BORNEDAL Peter ON THE INSTITUTION OF THE MORAL SUBJECT ON THE COMMANDER AND THE COMMANDED IN NIETZSCHErsquoS DISCUSSION OF LAW kriterion Belo Horizonte nordm 128 Dez2013 p 439-457CAMPIONI Giuliano Friedrich Nietzsche Histoacuteria da Filosofia Organizador Jean-Franccedilois Pradeau Texto Original francecircs Histoire de la Philosophie Petroacutepolis Vozes Rio de Janeiro PUC-Rio 2011 p 387 CARNIO Henrique Garbellini A Gecircnese Do Direito Entre Kelsen E Nietzsche Repositoacuterio NOMOS Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC 2009 Volume 292 Fortaleza p- 39-57CARVALHO Amilton Bueno de Direito Penal a Marteladas (Algo sobre Nietzsche e o Direito) Ed LumenJuris Direito Rio de Janeiro2013CARVALHO Salo de AntiManual de Criminologia 6ordf Ediccedilatildeo Revista e Ampliada 2ordf tiragem 2015 - Satildeo Paulo Saraiva 2015DrsquoAMBROS Bruno Da possibilidade de uma criacutetica nietzscheana agrave democracia moderna

Da genealogia da teoria do crime no direito

50

Anais do Seminaacuterio Direito e Ditadura Eixo 2 Democracia e Cultura Universidade Federal de Santa Catarina ndash UFSC Direito e Democracia p 78 DELBOacute Adriana Nietzsche sobre alguns problemas morais da democracia moderna Cadernos Nietzsche Disponiacutevel em httpwwwcadernosnietzscheunifespbrhomeitem233-nietzsche-sobre-alguns-problemas-morais-da-democracia-moderna Acessado em 08062016FERNANDES Rodrigo Rosas Nietzsche e o Direito Tese de Doutorado apresentado para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia na Pontiacuteficia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo ndash PUC 2005FREZZATTI JR Wilson Antonio Haeckel e Nietzsche aspectos da criacutetica ao mecanicismo no seacuteculo XIX scientiaeligzudia Vol 1 No 4 2003 p 435-61 p 437_____ ldquoTraduccedilatildeo dos poacutestumos de Nietzsche sobre Darwinrdquo In Estudos Nietzsche v1 n2 juldez 2010 Curitiba p 403-419 BROBJER Thomas Nietzschersquos philosophical context an intellectual biography Illinois University of Illinois Press 2008 p 170 16 ldquoOs sinais lt gt indicam que a palavra foi escrita abreviada ou foi suprimida por Nietzsche As letras entre os sinais foram acrescentadas pelos editores da KSArdquo (FREZZATTI JUacuteNIOR Wilson Antocircnio ldquoTraduccedilatildeo dos poacutestumos de Nietzsche sobre Darwinrdquo In Estudos Nietzsche v1 n2 juldez 2010 Curitiba p 403-419) GEMES Ken JANAWAY Christopher Nietzsche on free will autonomy and the Sovereign Individual Proceedings of the Aristotelian Society V 80 2006 p 321-357 GIACOIA JUNIOR Oswaldo Nietzsche x Kant uma disputa permanente a respeito da liberdade autonomia e dever Satildeo Paulo Editora Casa do Saber 2012 _____ Nietzsche o humano como memoacuteria e como promessa Petroacutepolis Editora Vozes 2013 _____O GRANDE EXPERIMENTO SOBRE A OPOSICcedilAtildeO ENTRE ETICIDADE (SITTLlCHKEIT) E AUTONOMIA EM NIETZSCHE TransFormlAccedilatildeo Satildeo Paulo 12 97- 132 1989 Departamento de Filosofia - Faculdade de Filosofia e Ciecircncias - UNESP - 17S00 - Man1ia-SP p 101 _____ ldquoTeses Sobre a Gecircnese do Direito em Nietzscherdquo In Pommer A Fraga P (Org) Filosofia e Criacutetica Lijui-RS Unijuiacute 2007 2007 p 399 _____ Livre-arbiacutetrio e Responsabilidade Filosofia Unisinos 8(1)22-32 janabr 2007GONCcedilALVES Ricardo Juozepavicius JUSTICcedilA DIREITO E VINGANCcedilA NA FILOSOFIA MORAL DE FRIEDRICH NIETZSCHE Rev Fac Direito Satildeo Bernardo do Campo n20 | 2014 p 1-18HIGGINS Kethleen M MAGNUS Bernd The Cambridge Companion to Nietzsche The Cambridge Companion to Nietzsche (Cambridge Companions to Philosophy) Paperback ndash March 7 1996 ISHIKAWA Iacutetalo Kiyomi A METAacuteFORA DO MEIO-DIA EM NIETZSCHE Dissertaccedilatildeo apresentada ao Curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal do Paranaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Filosofia Universidade Federal do Paranaacute ndash UFPR 2015 156 pJANAWAY Christopher Naturalism and Genealogy A companion to Nietzsche Edited by Keith Ansell Pearson Blackwell Companions to Philosophy First published 2006 by Blackwell Publishing Ltd Australia P 337-352LEITER Brian Nietzschersquos Moral and Political Philosophy First published Thu Aug 26 2004 substantive revision Wed Oct 7 2015 Stanford Encyclopedia of Philosophy

Alianna Caroline Sousa Cardoso

51

Disponiacutevel em httpplatostanfordeduentriesnietzsche-moral-political Acessado em 02102016_____Christopher Janaway Beyond Selflessness Reading Nietzschersquos Genealogy Christopher Janaway Beyond Selflessness Reading Nietzschersquos Genealogy Oxford University Press 2007 284pp $4900 (hbk) ISBN 9780199279692 Reviewed by Brian Leiter University of Texas Austin Notre Dame Philosophycal Reviews na eletronical Jornal 20080603 Disponiacutevel em httpndprndedunews23543-beyond-selflessness-reading-nietzsche-s-genealogy Acesso em 14112016LOBOSQUE Ana Marta A vontade livre em Nietzsche Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade de Minas Gerais como parte dos requisitos para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia Belo Horizonte - FAFICHUFMG 2010 Orientador Oswaldo Giacoia Jr Tese (doutorado) ndash Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas 306 fMARTON Scarlett Nietzsche Das forccedilas coacutesmicas aos valores humanos Editora Brasiliense 1ordf Ediccedilatildeo Preparaccedilatildeo de originais Luacutecia Jahn Revisatildeo Ana Maria Mendes Barbosa e Rosemary C Machado Satildeo Paulo 1990 MATA-MACHADO Edgar de Godoi Elementos de teoria geral do direito Belo Horizonte Editora Liacuteder 2005 p 137MELO SOBRINHO Noeacuteli Correia de Escritos sobre Direito Friedrich Nietzsche Rio de Janeiro PUC ndash Rio Satildeo Paulo Ed Loyola 2009MELO NETO Joatildeo Evangelista Tude de NIETZSCHE O ETERNO RETORNO DO MESMO A TRANSVALORACcedilAtildeO DOS VALORES E A NOCcedilAtildeO DE TRAacuteGICO Tese Apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo - USP - 2013 OLIVEIRA Eacuterico Andrade M de A criacutetica de Nietzsche agrave Moral Kantiana por uma moral miacutenima Cadernos Nietzsche 27 2010 p 169-189OLIVEIRA Leonardo Camacho de Uma genealogia do direito penal contribuiccedilotildees nietzschianas para se pensar uma justiccedila punitiva para aleacutem da moral do ressentimento A Genealogy of Criminal Law Nietzschersquos contributions to think a Punitive Justice beyond resentment morality Estudos Nietzsche Espiacuterito Santo v 6 n 2 p 281-298 jul dez 2015_____ O suposto antagonismo entre liberdade e determinismo em Nietzsche o traccedilo estoico do compatibilismo nietzschiano Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em filosofia da Universidade Federal de Pelotas como requisito agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em Filosofia Orientador professor Dr Clademir Araldi Pelotas 2014 131fPASCHOAL Antonio Edmilson Nossas Virtudes Indicaccedilotildees para uma Moral do Futuro Cadernos Nietzsche 12 2002 p 53-69_____AS FORMAS DO RESSENTIMENTO NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE PHILOacuteSOPHOS 13 (1) 11 -33 janjun 2008 p 13PAULA Wander Andrade de GIACOIA JUacuteNIOR O Nietzsche o humano como memoacuteria e como promessa Petroacutepolis Vozes 2013 Estudos Nietzsche Curitiba v 5 n 2 p 349-363 juldez 2014p 354PRINZ Jesse J The Emotional Construction of Morals Oxford University Press Published in the United States by Oxford University Press Inc New York 2007 REacuteE P Basic writings Translated and edited by Robin Small Urbana Chicago University

Da genealogia da teoria do crime no direito

52

of Illinois Press 2003SAMPAIO Wilson Maranhatildeo SANTOS Leandro Carvalho Considerations on western civilization Freud and Nietzsche as a benchmark Fractal Revista de Psicologia v 24 ndash n 1 p 59-80 JanAbr 2012SANTOS Vani Letiacutecia Fonseca dos A criacutetica da moral e a transvaloraccedilatildeo dos valores em Nietzsche Uma possibilidade para a formaccedilatildeo de um indiviacuteduo aleacutem-da-moral Dissertaccedilatildeo apresentada ao programa de poacutes-graduaccedilatildeo em filosofia da Universidade Federal de Pelotas 2010 SILVA Alexandre Antocircnio Bruno da Nietzsche Justiccedila e Direito Lumen Juris Rio de Janeiro 2015TEIXEIRA Joaquim de Souza A filosofia Moral de Satildeo Tomaacutes de Aquino Faculdade de Ciecircncias Humanas (UPC) didaskalia xxxvii (2007)1 345-361 LisboaTELLES Leonardo Dias da Silva A metodologia da Pesquisa em Direito e o Pensamento de Nietzsche Metodologia de Pesquisa em Direito e a Filosofia Coordenadores Rodolfo Pamplona Filho e Nelson Cerqueira Editora Saraiva Satildeo Paulo 2011 p 201-215WARREN Mark Nietzsche and political thought Massachusetts The MIT Press 1988 [trad Noeacuteli Correia de Melo Sobrinho] WOODWARD Ashley Nietzscheanismo Traduccedilatildeo de Diego Kosbiau Trevisan ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2016 ndash (seacuterie Pensamento Moderno) tiacutetulo original Understanding NietzscheanismWOTLING Patrick When power gives proof of spirit origins and logic of justice according to Nietzsche Quando a potecircncia daacute prova de espiacuterito origem e loacutegica da justiccedila segundo Nietzsche Quand la puissance fait preuve drsquoesprit Origine et logique de la justice selon Nietzscherdquo In WOTLING P (org) Paris Vrin 2007 p 113-140 copyLibrairie Philosophique J Vrin Traduccedilatildeo de Ivo da Silva Juacutenior1 Trad de Karina Jannini Cad Nietzsche no32 Satildeo Paulo 2013

Bibliografia PrincipalACAMPORA Christa Davis ACAMPORA Ralph r A Nietzschean Bestiary Becoming Animal Beyond Docile and Brutal ROWMAN amp LITILEFIELD PUBLISHERS INC Lanhambull Boulderbull New Yorkbull Torontobull Oxford 2004 1019 fGOODRICH Peter VALVERDE Mariana Nietzsche and Legal Theory Half-Written Laws Routledge Taylor and Francis Group Nietzsche and legal theory half-written laws edited by Peter Goodrich and Mariana Valverde New York 2005 219 fJANAWAY Christopher Beyond Selflessness Reading Nietzschersquos Genealogy Oxford University Press 2007 284ppMAY Simon Nietzsche on Freedom and Autonomy Edited by Ken Gemes and Simon May Oxford University Press 2009 New York United States 293 p

Referecircncias SecundaacuteriasAGUIAR Roberto A R de Direito poder e opressatildeo Editora Alfa-Omega 3ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo 1990BARATTA Alessandro Criminologia Criacutetica e Criacutetica do Direito Penal Introduccedilatildeo agrave Sociologia do Direito Penal Editora Revan Coleccedilatildeo Pensamento Criminoloacutegico Instituto Carioca de Criminologia 6ordf Ediccedilatildeo outubro de 2011 2ordf reimpressatildeo Agosto de 2014BRAGA Ana Gabriela Mendes Criminologia e prisatildeo caminhos e desafios da pesquisa empiacuterica no acircmbito prisional Revista de Estudos Empiacutericos em Direito Brazilian Journal

Alianna Caroline Sousa Cardoso

53

of Empirical Legal Studies vol 1 n1 Jan 2014 p 46-62BITENCOURT Caroline Muller SILVA Carla Luana da POSITIVISMO JURIacuteDICO E SUAS CLASSIFICACcedilOtildeES COMPREENDENDO SUA IMPORTAcircNCIA PARA A TEORIA DO DIREITO XXI SEMINAacuteRIO INTERNACIONAL DE DEMANDAS SOCIAIS E POLIacuteTICAS PUacuteBLICAS NA SOCIEDADE CONTEMPORAcircNEA VIII MOSTRA DE TRABALHOS JURIacuteDICOS CIENTIacuteFICOS 2015 Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito Departamento de Ciecircncias Juriacutedicas ndash CEPEJUR Universidade de Santa Cruz do Sul ndash UNISC anais p 1-22 Disponiacutevel em httpsonlineuniscbracadnetanaisindexphpsidspparticleviewFile130782219 Acessado em 08102016BITTENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal 17ordf Ediccedilatildeo Editora Saraiva Satildeo Paulo 2012 838pBOBBIO Norberto O positivismo juriacutedico liccedilotildees de filosofia do direito Satildeo Paulo Iacutecone 1999 _____ Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant Brasiacutelia UnB 1997BONAVIDES Paulo Ciecircncia Poliacutetica 22ordf Ediccedilatildeo Malheiros Editores Satildeo Paul 2015BOZZA Faacutebio da Silva FINALIDADES E FUNDAMENTOS DO DIREITO DE PUNIR DO DISCURSO JURIacuteDICO Agrave CRIacuteTICA CRIMINOLOacuteGICA Dissertaccedilatildeo (mestrado) - Universidade Federal do Paranaacute Setor de Ciecircncias Juriacutedicas Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito Defesa Curitiba 2005BRANDAtildeO Claacuteudio Curso de Direito Penal Parte geral Rio de Janeiro Forense 2008_____ Introduccedilatildeo ao Direito Penal Rio de Janeiro Forense 2005_____ Teoria Juriacutedica do Crime 2ordf ed Rio de Janeiro Forense 2007BRUNO Aniacutebal Direito Penal Parte geral Rio de Janeiro Forense 1967CARNELUTTI Francesco Teoria Geral do Direito Satildeo PauloLejus 1999CERQUEIRA Nelson PAMPLONA FILHO Rodolfo - Coordenadores Metodologia da Pesquisa em Direito e a Filosofia Satildeo Paulo Saraiva 2011CHIAVERINI Tatiane Origem da Pena de Prisatildeo Dissertaccedilatildeo de Mestrado Mestrado em Filosofia do Direito PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DE SAtildeO PAULO - PUCSP 2009 132 p p 09 CUNHA Paulo Ferreira da Universidade do Porto Other universities From the SelectedWorks of Paulo Ferreira da Cunha November 16 2011 Available at httpworksbepresscompfc124DARMON Pierre Meacutedicos e assassinos na ldquoBelle Eacutepoquerdquo a medicalizaccedilatildeo do crime Rio de Janeiro Paz e Terra 1991DIAS Camila Caldeira Nunes PCC ndash Hegemonia nas Prisotildees e Monopoacutelio da Violecircncia Coleccedilatildeo Saberes Monograacuteficos Editora Saraiva 2013DIAS Jorge de Figueiredo Direito penal parte geral t I Questotildees Fundamentais ndash A doutrina geral do crime Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2007FAUSTINO Eliana Ribeiro PIRES Sandra Regina Abreu A ressocializaccedilatildeo como finalidade da prisatildeo algumas consideraccedilotildees sobre seu significado Sociedade em Debate Universidade Catoacutelica de Pelotas v 15 n 2 (2009)FELDENS Luciano APROXIMACcedilOtildeES TEOacuteRICOS SOBRE O GARANTISMO JURIacuteDICO Criminologia e sistemas juriacutedico-penais contemporacircneos II [recurso eletrocircnico] Ruth Maria Chittoacute Gauer (Org) Aury Lopes Jr [et al] ndash Dados eletrocircnicos ndash Porto Alegre EDIPUCRS 2010351P P 258-272

Da genealogia da teoria do crime no direito

54

FEUERBACH Anselm V Tratado de derecho penal Buenos Aires Eitorial Hammurabi SRL 1989FOUCAULT Michel A verdade e as formas juriacutedicas Editora NAU PUC Rio Departamento de Letras 3ordf Ediccedilatildeo 1ordf Reimpressatildeo Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro_____ Vigiar e Punir Histoacuteria da Violecircncia nas Prisotildees Nascimento da prisatildeo 3ordf Ediccedilatildeo Traduccedilatildeo de Liacutegia M Pondeacute Vassallo Petroacutepolis 1984Freud S(1913) Totem e Tabu In Obras psicoloacutegicas completas Ediccedilatildeo Standard Brasileira Rio de Janeiro Imago 1996GORDON Richard A Assustadora Histoacuteria da Medicina Traduccedilatildeo Aulyde Soares Rodrigues 9ordf Ediccedilatildeo Rio de Janeiro Ediouro 1997GRECO Luiacutes Introduccedilatildeo agrave dogmaacutetica funcionalista do delito Em comemoraccedilatildeo aos trinta anos de ldquoPoliacutetica criminal e sistema juriacutedico-penalrdquo de Roxin Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo v 8 n 32 p 120-163 outdez 2000_____ Tem futuro o conceito de accedilatildeo Em GRECO Luis e LOBATO Danilo Temas de Direito penal ndash Parte geral Rio de Janeiro Renovar 2008JAKOBS Guumlnther Derecho Penal parte general Fundamentos y teoria de la imputacioacuten Madrid Marcial Pons Ediciones juridicas 1997_____ A imputaccedilatildeo objetiva no Direito Penal Traduccedilatildeo de Andreacute Luiacutez Callegari Editora Revista dos Tibunais Satildeo Paulo 2000_____ A imputaccedilatildeo penal da accedilatildeo e da omissatildeo Estudos de Direito Penal v7 Satildeo Paulo Manole 2003_____ Accedilatildeo e omissatildeo no Direito Penal Estudos de Direito Penal v 2 Satildeo Paulo Manole 2003_____Tratado de Direito Penal Teoria do Injusto Penal e Culpabilidade Belo Horizonte Del Rey 2008KANT Emmanuel Introduccioacuten a la teoriacutea del derecho MadridInstituto de Estudios Poliacuteticos 1954 LIMA Joatildeo Francisco Lopes de A CRIacuteTICA AO HUMANISMO EM EDUCACcedilAtildeO E AS REPERCUSSOtildeES SOBRE O DISCURSO PEDAGOacuteGICO NO CENAacuteRIO CONTEMPORAcircNEO IX CONGRESSO NACIONAL DE EDUCACcedilAtildeO ndash EDUCERE 26 a 29 de outubro de 2009 PUC-PR Aacuterea Temaacutetica Cultura Curriacuteculo e SaberesLISZT Franz von Tratado de Direito Penal allematildeo v I Trad Joseacute Hygino Duarte Pereira Brasiacutelia Senado Federal 2006_____ Capiacutetulos de Direito Penal Parte geral Satildeo Paulo Saraiva 1985LUMIA Giuseppe Elementos de Teoria e Ideologia do Direito Traduccedilatildeo Denise Agostinetti Editora Martins Fontes Satildeo Paulo 2003MACHADO NETO A L Introduccedilatildeo agrave Ciecircncia do Direito (Sociologia Juriacutedica) Satildeo Paulo Saraiva 1963 v2 p204-5MACHADO Marta Rodriguez de Assis Socioedade do Risco e Direito Penal Uma avaliaccedilatildeo de novas tendecircncias poliacutetico-criminais Instituto Brasileiro de Ciecircncias Criminais ndash IBCCRIM Satildeo Paulo 2005MANTOVANI Ferrando Diritto penale Parte generale 6ordf ed Itaacutelia Cedam 2009MATOS Andityas Soares De Moura Costa A CONCEPCcedilAtildeO DE JUSTICcedilA DE HANS

Alianna Caroline Sousa Cardoso

55

KELSEN EM FACE DO POSITIVISMO RELATIVISTA E DO JUSNATURALISMO ABSOLUTISTA Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade Federal de Minas Gerais ndash UFMG 2004 Disponiacutevel em httpwwwbibliotecadigitalufmgbrdspacebitstreamhandle1843BUOS-967PD6direito_andityassoaresmouracostamatos_disserta__opdfsequence=1 P 13 MONTEIRO Washington de Barros Curso de Direito Civil ndash Parte Geral 37 Ed Satildeo Paulo Saraiva 2000 v1MORAES Pedro Rodolfo Bodecirc de Puniccedilatildeo Encarceramento e Construccedilatildeo de identidade profissional entre agentes penitenciaacuterios IBBCRIM Satildeo Paulo 2005NUCCI Guilherme de Souza Manual de Direito Penal 10ordf Ediccedilatildeo Grupo Editorial Nacional Editora Forense Rio de Janeiro 2014RIBEIRO Renato Janine Democracia e Direitos Humanos Universidade de Satildeo Paulo Faculdade de Educaccedilatildeo Curso de Difusatildeo Cultural ldquoEducaccedilatildeo Democracia e Direitos Humanosrdquo Direitos Humanos nas Escolas Programa de Formaccedilatildeo Docente 2008ROXIN Claus Cuestiones sobre la moderna teoriacutea de la imputacioacuten penal Lima ARA 2009RUDAacute Antoacutenio Soloacuten Breve histoacuteria do direito penal e da criminologia do primitivismo criminal agrave era das escolas penais Jus Navigandi Disponiacutevel em httpsjuscombrartigos25959brevehistoriadodireitopenaledacriminologia Acessado em 11052016SANTOS Juarez Cirino Direito Penal Parte Geral 3ordf ed rev e atual Curitiba ICPC LumenJuris 2008SANTOS Robinson dos A CONCEPCcedilAtildeO DE JUSTICcedilA PENAL NA DOUTRINA DO DIREITO DE KANT ethic-Florianoacutepolis v 10 n 3 p 103 - 114 Dez 2011 SCHMIDT Andrei Zenkner O meacutetodo do direito penal sob uma perspectiva interdisciplinar Rio de Janeiro Lumen Juris 2007SILVA Pablo Rodrigo Alflen Culpabilidade e livre-arbiacutetrio novamente em questatildeo Os influxos da neurociecircncia sobre o Direito Penal (httpsjuscombrartigos13089culpabilidade-e-livre-arbitrio-novamente-em-questao) Revista Jus Navigandi ISSN 1518-4862 Teresina ano 14SILVA Andreacute Adriano do Nascimento BREVES LINHAS SOBRE OS AVANCcedilOS DAS NEUROCIEcircNCIAS E O DIREITO PENAL Interfaces Cientiacuteficas - Direito bull Aracaju bull V2 bull N3 bull p 45 - 52 bull Jun 2014SILVA SANCHEacuteZ Jesuacutes Maria La expansioacuten del derecho penal Aspectos de la poliacutetica criminal em las sociedades postindustriales 2ordf ed Madrid Civitas 2001_____ Aproximacioacuten al Derecho penal contemporaacuteneo 2 ed Buenos Aires Montevideo B de F 2010TORRES Ana Paula Repolecircs UMA ANAacuteLISE EPISTEMOLOacuteGICA DA TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN Revista CEJ Brasiacutelia n 33 p 72-77 abrjun 2006 P 74VALLS Alvaro L M O que eacute eacutetica Editora Brasiliense Coleccedilatildeo Primeiros Passos - Nordm 177 ISBN 85-11-01177-3 -Ano 1994 p 20 WARAT Luis Alberto Introduccedilatildeo geral ao direito II a epistemologia juriacutedica da modernidade Traduccedilatildeo de Joseacute Luiz Bolzan de Morais Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1995WEBER Thadeu Direito e justiccedila em Kant Revista de Estudos Constitucionais Hermenecircutica e Teoria do Direito (RECHTD) 5(1) 38-47 janeiro-junho 2013 p 39

Da genealogia da teoria do crime no direito

56

WELZEL Hans Derecho Penal Alemaacuten 2ordf ed Castellana Santiago Editorial Juridica de Chile 1976_____ Derecho Penal Alemaacuten 11ordf Ed Editorial juriacutedica de Chile Chile 1997_____ O novo Sistema Juriacutedico-Penal Uma Introduccedilatildeo agrave doutrina da accedilatildeo finalista 2ordf ed traduzida Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2009ZAFFARONI Eugenio Rauacutel Tratado de Derecho Penal Parte general III Buenos Aires EDIAR 1981_____ Poliacutetica y dogmaacutetica juriacutedico-penal In En torno de la cuestioacuten penal Buenos Aires B de F 2005_____ Direito Penal brasileiro t II Teoria do delito ndash introduccedilatildeo histoacuterica e metodoloacutegica accedilatildeo e tipicidade Rio de Janeiro Revan 2010_____ PIERANGELI Joseacute Henrique Manual de Direito Penal Brasileiro Parte geral Volume I 6ordf ed rev e atual Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2006

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

57

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem a partir do paradigma imunitaacuterio

Angela Couto Machado Fonseca1

Dhyego Cacircmara Arauacutejo2

IntroduccedilatildeoEm que pese a pertinecircncia dos debates especiacuteficos sobre o valor da vida e da pessoa

humana que alimentam a anaacutelise juriacutedica de natildeo legitimaccedilatildeo do poder soberano para matar por meio de uma sentenccedila penal condenatoacuteria entendemos que existem outras perspectivas de anaacutelise sobre as condiccedilotildees da morte para aleacutem da sua (i)legitimidade na figura pontual da pena de morte

A proposta de pensar a ocorrecircncia da morte fora do plano restrito de sua legitimidade soberana - registro que trata da possibilidade ou natildeo da condenaccedilatildeo e o cometimento de assassinatos - se justifica pela percepccedilatildeo de que na realidade social ocorrem continuados eventos nos quais a vida eacute exterminada ou exposta agrave morte sem que tais eventos possam na sua totalidade ou de modo faacutecil encaixar-se naqueles paracircmetros da legitimidade

Se por um lado eacute viaacutevel balizar a produccedilatildeo da morte questionando se ela cabe ou natildeo ao Estado e diante dos casos concretos de sua ocorrecircncia fazer pesar sua condiccedilatildeo de ilicitude por outro lado escapa a esse modelo interpretativo o alcance compreensivo de que certos modos de existecircncia satildeo mais vulneraacuteveis agrave morte Mais que isso tal vulnerabilidade ligada ao risco e agrave concretizaccedilatildeo da morte natildeo se explica pelos paracircmetros de morte pensados no ordenamento juriacutedico Para enunciar tais vidas expostas agrave morte basta aqui de modo breve atentarmos para a condiccedilatildeo de maior precariedade (BUTLER 2015) da populaccedilatildeo negra LGBTI de mulheres das pessoas em situaccedilatildeo de rua das prostitutas daqueles que vivem em favelas e etc Sugerimos assim que o evento da morte para ser devidamente pensado requer a agregaccedilatildeo de outros referenciais analiacuteticos

O terreno teoacuterico-filosoacutefico que nas uacuteltimas deacutecadas mais precisamente desde meados da deacutecada de 1970 tecircm se ocupado de pensar as relaccedilotildees entre vidamorte e poder eacute aquele que Michel Foucault veio a denominar por biopoliacutetica Trata-se de explicitar as teacutecnicas e as praacuteticas que fizeram da vida bioloacutegica o alvo privilegiado do poder na poliacutetica ocidental bem como seus inuacutemeros desdobramentos no campo social

1 UFPR2 UEPG

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

58

Essa tomada da vida pelo poder como pensada pela biopoliacutetica problematiza que o objeto das relaccedilotildees de poder natildeo eacute o sujeito de direitos mas sim a populaccedilatildeo como coleccedilatildeo de processos bioloacutegicos O horizonte biopoliacutetico trata da gestatildeo da vida o que admite pensar que essa administraccedilatildeo organize em diferentes niacuteveis as vidas e possa privilegiar ou barrar caracteriacutesticas bioloacutegicas elaboradas como beneacuteficas ou prejudiciais

Por tal vieacutes de anaacutelise permite-se vislumbrar a construccedilatildeo em torno do que se entende por vida de uma teia capaz de capturaacute-la naquilo que se considera como da ordem do orgacircnico e natural possibilitando o surgimento de saberes estatiacutesticos a respeito de taxas de natalidade mortalidade e morbidade a implementaccedilatildeo de programas de previdecircncia e poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede a organizaccedilatildeo do espaccedilo urbano para melhor circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e doenccedilas etc

Com a identificaccedilatildeo do surgimento da biopoliacutetica no seacuteculo XVIII feita por Michel Foucault as relaccedilotildees entre poder e vida bem como entre poder e morte ganharam novos matizes Natildeo mais um poder soberano de ldquofazer morrer e deixar viverrdquo mas a partir de entatildeo um poder que se manifesta de modo diverso e sob uma nova alcunha denominado biopoder caracteriza-se pelo ldquofazer viver e deixar morrerrdquo (FOUCAULT 2011) Ora se de acordo com o diagnoacutestico foucaultiano haacute a partir do seacuteculo XVIII um predomiacutenio de um tipo de poder que se dirige agrave promoccedilatildeo da vida como explicar as diversas situaccedilotildees em que natildeo se verifica o seu estiacutemulo e proliferaccedilatildeo mas exatamente o contraacuterio a sua exposiccedilatildeo agrave morte ou mesmo o seu extermiacutenio Algumas vidas tornam-se nessa complexa relaccedilatildeo entre poder e biacuteos passiacuteveis de morte

O ponto que tanto Foucault quanto Esposito perceberam mesmo que tenham desenvolvimentos diversos e por vezes Esposito conteste e critique Foucault eacute o de que a biopoliacutetica revela um circuito de proteccedilatildeo e risco no que se refere agrave vida Para proceder uma real e seacuteria discussatildeo dos processos de incitaccedilatildeo e proteccedilatildeo da vida eacute preciso colher o caraacuteter biopoliacutetico dos mecanismos que realizam tais processos assim como perceber que pertence aos seus proacuteprios movimentos na defesa da vida tambeacutem a produccedilatildeo da morte Para produzir e gerir vidas defensaacuteveis tambeacutem satildeo produzidas vidas descartaacuteveis Esse eacute um reverso circular do funcionamento das poliacuteticas sobre a vida

Se eacute assim no particular e no cenaacuterio brasileiro podemos pensar num primeiro momento a partir do recorte de gecircnero a situaccedilatildeo vivida pela comunidade LGBTI Tais vidas posicionadas como menos vaacutelidas pelo padratildeo heternormativo vigente satildeo cotidianamente abaladas por violecircncias continuadas e produccedilatildeo de mortes Ainda que se possa argumentar que tais mortes satildeo efeitos indesejados de uma sociedade injusta eacute preciso tambeacutem lembrar do cenaacuterio aqui delineado onde praacuteticas de poder voltadas para a vida desenham os corpos e os desenham tambeacutem em seu valor e utilidade Resulta de uma hieraacuterquica disposiccedilatildeo das vidas e suas condiccedilotildees de validade no cenaacuterio poliacutetico a vizibilizaccedilatildeo ldquodesviadardquo e ldquoanormalrdquo dos corpos LGBT A vida dos LGBT construiacuteda como ldquoabjetardquo eacute permissatildeo para investidas negativas sobre tais vidas ndash eacute permissatildeo para exposiccedilatildeo agrave morte

Levando em consideraccedilatildeo a hierarquizaccedilatildeo social promovida pelo biopoder Foucault vislumbra a existecircncia de um paradoxo no quadro desenhado pela tecnologia biopoliacutetica ou seja a contradiccedilatildeo levada a cabo por um tipo de poder cuja promoccedilatildeo da vida eacute o seu objetivo mas que resulta na produccedilatildeo da morte Tal situaccedilatildeo apresenta a transmutaccedilatildeo da biopoliacutetica em tanatopoliacutetica quer dizer remete a essa conversatildeo do fazer viver no fazer morrer

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

59

Se na deacutecada de 70 foi possiacutevel a Foucault identificar o formato paradoxal dessa relaccedilatildeo entre poder e vidamorte os seus trabalhos posteriores natildeo enfrentaram exaustivamente a problemaacutetica levantada pela dicotomia biopoliacuteticatanatopoliacutetica Para o filoacutesofo a emergecircncia do biopoder trouxe consigo para o interior do Estado a figura do racismo3 a qual permite nesse domiacutenio da vida instaurar um corte capaz de determinar quem deve viver e quem deve morrer (FOUCAULT 2010 p 214)

No arcabouccedilo filosoacutefico foucaultiano o desdobramento da biopoliacutetica em tanatopoliacutetica4 foi pensado em termos de um paradoxo Sua reflexatildeo nos eacute necessaacuteria para localizar a biopoliacutetica e com ela as relaccedilotildees de pertinecircncia de um poder que ao ter como objeto o fazer viver tambeacutem exercita o fazer morrer Continua-se o debate com Roberto Esposito precisamente porque seu pensamento quer apontar para uma possiacutevel resposta ao paradoxo concedendo lugar privilegiado para os desdobramentos tanatopoliacuteticos nos exerciacutecios de poder contemporacircneos Esposito provoca seu leitor a considerar que os eventos poliacuteticos atuais somente podem ser devidamente compreendidos quando usamos o quadro categorial da biopoliacutetica e com ele as condiccedilotildees de vida e morte

A esse respeito podemos retornar agraves paacuteginas que abrem a introduccedilatildeo do livro Biacuteos Biopoliacutetica e Filosofia do filoacutesofo italiano onde satildeo mencionadas vaacuterias situaccedilotildees ocorridas em diferentes lugares do mundo ndash como por exemplo a Guerra lsquohumanitaacuteriarsquo no Afeganistatildeo em 2001 o resgate de refeacutens presos pelo comando checheno em Moscou em 2002 que matou tanto civis quanto terroristas e o relatoacuterio da ONU em 2004 informando que em Ruanda cerca de 10000 crianccedilas resultam de violaccedilotildees eacutetnicas ocorridas mediante um estupro coletivo no confronto dos Hutus com os Tutsis ndash para expor que o fio invisiacutevel que amarra e permite ler eventos tatildeo distintos e distantes eacute o fio da biopoliacutetica Em suas palavras ldquoNo seu centro estaacute a noccedilatildeo de biopoliacutetica Soacute a partir dela eacute que acontecimentos que escapam de uma interpretaccedilatildeo mais tradicional como aqueles que acabamos de evocar encontram um sentido de conjunto que vaacute aleacutem da sua simples manifestaccedilatildeordquo (ESPOSITO 2010 p 22)

A identificaccedilatildeo de um tipo de poder que muito embora natildeo parta do Estado em direccedilatildeo agrave vidamorte dos sujeitos mas que o atravessa lhe reconfigurando dentro de um quadro distinto da anaacutelise restrita da (i)legalidade sobre a produccedilatildeo da morte revela a pertinecircncia da anaacutelise que ora se propotildee

3 Natildeo se trata o racismo como uma figura nova ou inventada nas tramas da biopoliacutetica Em sua genealogia do racis-

mo Foucault demonstra o seu surgimento como um discurso histoacuterico-poliacutetico de enfrentamento em relaccedilatildeo a um discurso juriacutedico-filosoacutefico ndash proeminente desde a Idade Meacutedia ndash que buscava deslegitimaacute-lo reivindicando a luta das raccedilas como seu mote de embate Raccedilas vistas como dois grupos distintos marcados pela origem local liacutengua ou religiatildeo Posteriormente a histoacuteria da luta das raccedilas tornou-se de um lado a luta de classes e de outro o racismo nesse momento lido a partir de uma matriz bioloacutegica e que seraacute tomado pelo biopoder para servir de justificativa e operacionalizaccedilatildeo do seu exerciacutecio de morte Para uma anaacutelise detalhada sobre esse movimento genealoacutegico da figura do racismo bioloacutegico de Estado consultar a Aula de 28 de janeiro de 1976 do curso Em defesa da Sociedade (FOUCAULT 2010)

4 Ao falarmos de tanatopoliacutetica o que aparece eacute a conversatildeo da biopoliacutetica ndash do fazer viver ndash no seu contrario fazer morrer Tanto Michel Foucault quanto Roberto Esposito (autores aqui trabalhados) perceberam que a proacutepria biopoliacutetica opera como tanatopoliacutetica ela mesma se converte no seu contraacuterio em suas praacuteticas de regulaccedilatildeo da vida Embora esses autores tenham pensado essa conversatildeo em diferentes bases ndash Foucault como um paradoxo e Esposito pelo paradigma imunitaacuterio ndash ambos a diagnosticam e a percebem como um problema inescapaacutevel Assim vida e morte no cenaacuterio politico contemporacircneo satildeo pensados por esses dois autores a partir do vieacutes da biopoliacutetica Eacute a biopoliacutetica que permite compreender as praacuteticas de poder que atuam sobre a vida seja no seu incremento ou na sua invalidaccedilatildeo e morte

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

60

2 Esposito e o paradigma imunitaacuterio a proteccedilatildeo negativa da vidaSobre a fenda aberta por Michel Foucault outras satildeo as reflexotildees apresentadas

por Roberto Esposito a respeito do ldquoenigma da biopoliacuteticardquo Em sua obra eacute elaborado um verdadeiro percurso de desconstruccedilatildeo acerca da capacidade analiacutetica das categorias poliacuteticas moderna5 em seu alcance compreensivo dos eventos poliacuteticos contemporacircneos Sua obra fornece um quadro criacutetico que acusa a permanecircncia de uma semacircntica poliacutetica ndash dos direitos do contrato da liberdade e da democracia ndash incapaz de responder agrave realidade mais presente

Mas esse movimento desconstrutivo de desmontagem conceitual que procura visibilizar a inefetividade do leacutexico poliacutetico moderno estaacute associado a um movimento de redirecionamento O sentido interno da denuacutencia estaacute associado agrave intenccedilatildeo de propor novos conceitos que emergem de sua leitura da biopoliacutetica Eacute na direccedilatildeo ou melhor na nova direccedilatildeo assumidamente biopoliacutetica que seus dispositivos conceituais como comunidade imunidade e impessoal se localizam e pretendem contribuir no alcance dos acontecimentos poliacuteticos

Suas anaacutelises partem de Foucault e polemizam com Foucault uma vez que o italiano ao pretender elaborar as condiccedilotildees de uma biopoliacutetica afirmativa enfrenta o circuito proteccedilatildeo da vida e risco de vida inerente agrave biopoliacutetica Esposito pretende superar essa relaccedilatildeo em sua face de paradoxo elaborando o paradgima imunitaacuterio elemento que em sua leitura foi a ldquochave interpretativardquo (ESPOSITO 2010 p 73) que faltou a Foucault

O enigma segundo o qual a biopoliacutetica esse conjunto consistente de accedilotildees e praacuteticas voltadas para a produccedilatildeo e proteccedilatildeo da vida se reverte ou decai numa tanatopoliacutetica se resolve para este autor pela foacutermula da imunizaccedilatildeo O acesso agrave biopoliacutetica pela noccedilatildeo de imunizaccedilatildeo eacute fundamental pois pensa a proacutepria poliacutetica moderna como imunitaacuteria e a biopoliacutetica como sua expressatildeo

A proposiccedilatildeo conceitual precisa da imunidade eacute apresentada como ldquoproteccedilatildeo negativa da vidardquo (ESPOSITO 2010 p 21) mas natildeo haacute como alcanccedilar o significado dessa proteccedilatildeo negativa sem relacionar imunidade e comunidade Numa retomada etimoloacutegica natildeo usual Esposito expotildee que comunidade (communitas) deriva de cum e munus O primeiro termo remete a uma relaccedilatildeo - a um lsquocomrsquo- que eacute a um soacute tempo irresistiacutevel e impossiacutevel ao passo que o munus - que recebe maior atenccedilatildeo e importacircncia ndash indica por um lado tarefa obrigaccedilatildeo ofiacutecio e por outro dom Trata-se de um dom que exige ldquoo dom que se daacute natildeo o que receberdquo (CAMPBELL 2010 p 18)

A partir dessa localizaccedilatildeo etimoloacutegica a comunidade eacute dissociada da noccedilatildeo de propriedade6 A comunidade natildeo eacute o que integra os sujeitos a partir da apropriaccedilatildeo de um proacuteprio que lhes seja dado por natureza Nem mesmo seria possiacutevel pensar em sujeitos jaacute que natildeo haacute sequer contrato inaugurado na base da apropriaccedilatildeo de elementos inerentes do homem e que os redefina como sujeitos O desenho do homem da comunitas que aparece eacute de um homem improacuteprio e ligado pela pura exterioridade do munus ndash do dever e do dom de dar (ESPOSITO 2006)

A comunidade baseada no munus se configura como exposiccedilatildeo e abertura apresenta nesse fazer e natildeo receber a contiacutenua situaccedilatildeo de risco e de perigo extremo de morte ao homem Eacute dentro desse quadro que a imunidade se coloca Ela aparece como forma de 5 Categorias poliacuteticas como liberdade democracia direitos individuais e direitos coletivos por exemplo 6 A esse respeito ldquoil munus che la communitas condivide non egrave una proprietagrave o unrsquoappartenenza Non egrave un avere ma

al contrario un debito un pegno un dono-da-dare (hellip) il commune non egrave caraterizzato dal proprio ma dallrsquoimpro-priordquo(ESPOSITO 2006 p XIII-XIV)

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

61

remediar os excessos de exposiccedilao do dom e se desenha como emblema da filosofia poliacutetica moderna

Em Termos da Poliacutetica Esposito diz que a ldquosalvaguarda da vida humana diante dos perigos da extinccedilatildeo violenta que a ameaccedilamrdquo (ESPOSITO 2017 p 154) explicita a condiccedilatildeo biopoliacutetica da modernidade de modo que ldquopoderia chegar-se a dizer que natildeo foi a modernidade a colocar o problema da autoconservaccedilatildeo da vida mas esta uacuteltima a pocircr em existecircncia por assim dizer a lsquoinventarrsquo a modernidade como um complexo de categorias em condiccedilotildees de resolver tal problemardquo (ESPOSITO 2017 p 154) Essas passagens satildeo profundamente eloquentes para relacionar a comunidade como a exposiccedilatildeo que pode chegar a ser letal (problema biopoliacutetico) e a imunidade como o desdobramento imanente da comunidade para barrar esse seu efeito danoso Nesse ponto ignorando todos os importantes desdobramentos da poliacutetica moderna como imunitaacuteria a definiccedilatildeo do paradigma imunitaacuterio como proteccedilatildeo negativa encontra a possibilidade de sua compreensatildeo

Tal como na fisiologia7 do corpo humano o funcionamento da imunizaccedilatildeo se caracteriza pela proteccedilatildeo da comunidade a partir de sua articulaccedilatildeo com elementos negativos mas que a partir de tal operaccedilatildeo acarretam a criaccedilatildeo de uma rede de proteccedilatildeo Protege na medida em que evita os excessos do dom comunitaacuterio mas eacute negativa porque nega a comunidade ndash revela a passagem do comum ao individual Diante da possibilidade iminente de intensificaccedilatildeo daqueles elementos danosos tal rede protetiva eacute ativada evitando assim fatores de riscos produzidos pela proacutepria comunidade Esses fatores de risco seriam sua desagregaccedilatildeo generalizada a dessubjetivaccedilatildeo de seus membros e no limite sua morte (ESPOSITO 2002 2010 NALI 2012 2013) ldquoo sistema imunitaacuterio eacute assim um complexo estrateacutegico de proteccedilatildeo da vida de seu equiliacutebrio a partir do desequiliacutebrio incitado extremamente dinacircmico e homeostaacuteticordquo (NALI 2013 p 92)

Conforme exposto por Nali (NALI 2013 p 86) com a demonstraccedilatildeo e descriccedilatildeo pela ciecircncia do funcionamento do sistema imunoloacutegico dos organismos implantou-se no acircmbito da accedilatildeo poliacutetica tais ideias com vistas a produzir mecanismos imunitaacuterios e de proteccedilatildeo agrave comunidade Junto agrave descoberta e isolamento dos agentes etioloacutegicos e em especial de como se valer de culturas enfraquecidas de tais agentes para induzir um processo de imunizaccedilatildeo do corpo transplantou-se tais saberes para a comunidade Pressupotildee-se que haacute um mal a afligiacute-la requisitando portanto meios de reproduzir ldquode forma controlada o mal do qual deve protegerrdquo (ESPOSITO 2009 p 17)

O paradigma imunitaacuterio segundo Esposito seria representante do uacutenico modo interpretativo capaz de restaurar o elo existente entre a biopoliacutetica e a modernidade uma vez que entende que ldquosoacute a modernidade faz da autopreservaccedilatildeo individual o pressuposto de todas as outras categorias poliacuteticas da soberania agrave liberdaderdquo (ESPOSITO 2010 p 21)

Nesse cenaacuterio a leitura que ora se propotildee a partir da imunizaccedilatildeo aponta que se encare o paradoxal sentido da sedimentaccedilatildeo de uma comunidade ligado aos processos de imunizaccedilatildeo efetivados enquanto resultado da perigosa exposiccedilatildeo da vida dessa mesma

7 Interessante notar que Esposito ao identificar essa interaccedilatildeo discursiva entre os saberes poliacuteticos e biomeacutedicos e em-preendendo numa anaacutelise etimoloacutegica dos termos communitas e immunitas prontamente identifica que natildeo se trata de um discurso bioloacutegico que afeta o campo da poliacutetica e da defesa da comunidade mas antes de uma construccedilatildeo discursiva no campo da biologia que procura explicar o funcionamento de um organismo a partir de metaacuteforas beacutelicas e de defesa O que se consolida em uma leitura analiacutetica corrente na biologia a imunologia para em seguida retornar ao campo das defesas poliacuteticas de uma comunidade de um territoacuterio de uma sociedade de um Estado Tal retorno entretanto marcado neste momento natildeo apenas por constituir-se como um discurso de guerra e de defesa beacutelica mas com ares cientiacuteficos e epistemoloacutegicos

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

62

comunidade Isto eacute o paradigma imunitaacuterio como ldquoproteccedilatildeo negativa da vidardquo (ESPOSITO 2010 p 21) A immunitas natildeo se refere a uma leitura de poder que o considere como uma forccedila externa atuando sobre a vida a partir do fora (ESPOSITO 2002) mas que propotildee por outro lado que ldquoo proacuteprio modo de atuaccedilatildeo da vida eacute conflitual e portanto natildeo pode ocorrer agrave revelia das relaccedilotildees de poder A imunidade eacute inteiramente colocada como as formas de proteccedilatildeo da vida em sua inerente relaccedilatildeo com o poderrdquo (FONSECA 2016 p 70)

Desse modo vida e morte passam natildeo mais a integrar aquela aparente relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo muacutetua Dissolvem-se as fronteiras estanques entre tais termos bem como entre subjetivaccedilatildeo e dessubjetivaccedilatildeo substituindo-se a oposiccedilatildeo anterior por uma relaccedilatildeo de imanecircncia e inclusatildeo em que a morte natildeo eacute mais pensada como o limite externo situado no polo contraacuterio agrave vida mas como fenocircmeno vital (NALI 2013 p 90)

A compreensatildeo da biopoliacutetica a partir do paradigma imunitaacuterio nos leva a consideraacute-la como uma exposiccedilatildeo controlada da comunidade aos riscos e fatores que a negam e a ameaccedilam Nesse sentido tanto a vida como a subjetividade devem sofrer os infortuacutenios e vicissitudes de sua proacutepria negaccedilatildeo ainda que de maneira calculadamente controlada de modo que resulte num fortalecimento da comunidade contra futuras ameaccedilas antagocircnicas mais fortes provenientes contudo de seu proacuteprio seio O sistema imunitaacuterio destarte eacute tomado pelo filoacutesofo em estreita correlaccedilatildeo com a comunidade vez que a compreende como o proacuteprio motor da imunizaccedilatildeo (ESPOSITO 2010)

Essa traduccedilatildeo imediata da vida em poliacutetica tal qual sugerida pelo filoacutesofo ou ainda essa formulaccedilatildeo da poliacutetica caracterizada como intrinsecamente bioloacutegica (ESPOSITO 2010 p 21) faz com que natildeo mais se perceba tais relaccedilotildees como uma biopoliacutetica sobre a vida mas como uma poliacutetica da vida A imunizaccedilatildeo portanto sugere uma concepccedilatildeo de imanecircncia entre poliacutetica e vida poreacutem no limite a imunizaccedilatildeo necessaacuteria agrave conservaccedilatildeo da comunidade pode vir a superar os limites de sua proteccedilatildeo e sobrevivecircncia e se perverter em uma espeacutecie de doenccedila autoimune como o que se pocircde verificar nas atrocidades cometidas pelo nazismo (ESPOSITO 2010 p 26)

Segundo Esposito na experiecircncia nazista a instrumentalizaccedilatildeo da morte natildeo vinha apenas como efeito de uma proteccedilatildeo negativa da vida mas o proacuteprio condicionamento e potenciamento da vida se dava sob uma crescente dialeacutetica destinada a produccedilatildeo estendida de morte (ESPOSITO 2010 p 24)

Em sua leitura o regime nazista levou agraves uacuteltimas consequecircncias a biologizaccedilatildeo da poliacutetica ponto que outrora jamais fora alcanccedilado vez que considerou o povo alematildeo como uma totalidade orgacircnica um corpo doente necessitado de uma cura radical e cuja recomendaccedilatildeo era a extraccedilatildeo e expurgaccedilatildeo de seus agentes etioloacutegicos que consistia ao fim e ao cabo ldquona ablaccedilatildeo violenta da parte espiritualmente jaacute mortardquo (ESPOSITO 2010 p 25) bastando lembrar como prova disso das ordens finais de autodestruiccedilatildeo proferidas por Hitler contra todo o povo alematildeo

No capiacutetulo dedicado agrave tanatopoliacutetica (o ciclo do ghenos) em Biacuteos biopoliacutetica e filosofia assim como no capiacutetulo O Nazismo e Noacutes do Termos da Poliacutetica comunidade imunidade biopoliacutetica Esposito verticaliza a leitura das ligaccedilotildees proacuteprias e natildeo improacuteprias ou paradoxais da poliacutetica da vida como igualmente poliacutetica da morte Deixa clara outra distinccedilatildeo sua em relaccedilatildeo a Foucault Se para Foucault eacute somente com o nazismo e o racismo de Estado que aparece a circularidade entre fazer viver e fazer morrer entre soberania e biopoliacutetica

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

63

para o filosofo italiano o paradigma imunitaacuterio como emblema da modernidade opera tanto no regime da soberania com a presenccedila dos direitos quanto na loacutegica biopoliacutetca No limiar extremo do nazismo aparece de modo mais claro a pertinecircncia entre os pontos que pareciam antinocircmicos revelando ldquouma singular forma de indistinccedilatildeo que faz de um ao mesmo tempo o reverso e o complemento do outrordquo (ESPOSITO 2010 p 159)

Nessa percepccedilatildeo tornada possiacutevel pelo extremo do nazismo acerca da lsquosobreposiccedilatildeorsquo da loacutegica soberana e biopoliacutetica da vida e da morte costuradas pela praacutetica imunitaacuteria percebe-se uma separaccedilatildeo bioloacutegica entre os que devem viver e aqueles que devem morrer A terapecircutica meacutedica presente no nazismo eacute a indicaccedilatildeo de um cuidado da vida de alguns que exige a morte de outros ndash exige a imunizaccedilatildeo de alguns a respeito de outros E tal elaboraccedilatildeo revela que ldquoo genociacutedio foi o resultado natildeo da ausecircncia mas sim da presenccedila de um eacutetica meacutedica pervertida no seu contrariordquo (ESPOSITO 2010 p 166) A sauacutede do povo alematildeo ou seja a sua imunizaccedilatildeo em face ao risco da doenccedila judaica precisou requerer o extermiacutenio do inimigo Somente a catgoria imunitaacuteria ldquopotildee claramente a nu o noacute mortiacutefero que junta a proteccedilatildeo da vida agrave sua potencial negaccedilatildeordquo (ESPOSITO 2010 p 159)

Ainda que se desvie dos movimentos hiperboacutelicos do nazismo esse noacute mortiacutefero natildeo desaparece ndash foi ali apenas elevado ao seu aacutepice e evidecircncia plena ndash uma vez que tal noacute alimenta o proacuteprio paradigma imunitaacuterio da modernidade Sobre isso Esposito diz que

Da guerra do e contra o terrorismo agraves migraccedilotildees em massa das poliacuteticas de sauacutede agraves demograacuteficas das medidas de seguranccedila preventiva agrave extensatildeo ilimitada das legislaccedilotildees de emergecircncia natildeo haacute fenocircmeno de relevo internacional que seja estranho agrave dupla tendecircncia que situa as histoacuterias a que se faz referecircncia numa uacutenica linha de significado por um lado uma crescente sobreposiccedilatildeo entre o acircmbito da poliacutetica ou do direito e o da vida por outro uma implicaccedilatildeo igualmente estreita que parece derivar daquela em relaccedilatildeo agrave morte (ESPOSITO 2010 p 22)

O problema da degeneraccedilatildeo por exemplo questatildeo iacutentima agrave biopoliacutetica tambeacutem evidencia o incocircmodo e o perigo que representam certas formas de vida ou certas condiccedilotildees bioloacutegicas perante as formas de vida consideradas saudaacuteveis Toda uma gama de diferentes discursos desde os mais claros e assumidos a outros suavizados pronunciam e fabricam o medo do contaacutegio da degenerescecircncia que certos comportamentos ou modos de vida parecem carregar Drogados viciados vadios imorais e desviados constituem perigos que justificam a defesa da sociedade em face de sua presenccedila Torna-se preciso delimitar comportamentos ou traccedilos degenerados dar-lhes uma causa bioloacutegica eacutetnica ou socialcultural inquebrantaacutevel para poder segregar e higienizar Eacute preciso imunizar a sociedade da presenccedila problemaacutetica desses grupos e nesse movimento excluiacute-los da imunizaccedilatildeo Fazer dessas formas de vida vidas precaacuterias que natildeo satildeo originariamente precaacuterias mas que satildeo assim posicionadas nas relaccedilotildees ndash na exposiccedilatildeo do munus alguns precisam ser protegidos e isso leva a fragilizaccedilatildeo de outros Na imunizaccedilatildeo que eacute salvaguarda da vida lhe eacute inerente e tambeacutem sua contrapartida o enviar para a morte Imunizar alguns em face dos outros eacute sempre imunizar alguns e natildeo outros - esse eacute o proacuteprio movimento imunitaacuterio em seu ciclo de defesa e ataque da vida

Assim pensar a exposiccedilatildeo para a morte exige nesse quadro de referecircncias expor os movimentos que ordenam em diferentes posiccedilotildees as vidas Pensar a produccedilatildeo da morte nesse

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

64

contexto retira o olhar do agente ou do ato isolados que pensam em termos de (i)legitimidade para requerer a anaacutelise das distribuiccedilotildees hieraacuterquicas das vidas e os mecanismos de poder que se articulam e contribuem nas suas disposiccedilotildees Discursos meacutedicos poliacutetico-partidaacuterios de movimentos sociais poliacuteticas puacuteblicas produccedilatildeo de pacircnicos morais todos esses diferentes lugares passam a contar para uma efetiva compreensatildeo dos processos imunitaacuterios

Eacute nesse sentido que Esposito afirma de maneira categoacuterica o fato de que nunca como atualmente ldquoos conflitos as feridas os medos que o dilaceram [o mundo] parecem pocircr em causa nada menos do que a sua proacutepria vidardquo movimento que opera uma inversatildeo no claacutessico motivo filosoacutefico sobre o ldquomundo da vidardquo para considerar a partir de entatildeo a ldquovida do mundordquo (ESPOSITO 2010 p 26) Essa modificaccedilatildeo da bios levada a cabo por uma poliacutetica tomada enquanto teacutecnica e a sua leitura imunitaacuteria requer seu entendimento natildeo por uma perspectiva de mera reaccedilatildeo uma forccedila reativa aos processos desagregadores proacuteprios da comunidade mas como accedilatildeo calculada da geraccedilatildeo e controle do conflito poreacutem cujo caacutelculo pode lhe exacerbar e se reverter em autoimunizaccedilatildeo

Tal qual o corpo atua junto ao antiacutegeno o sistema imunitaacuterio de uma comunidade parece operar de maneira similar (ESPOSITO 2002 p 59) Em um primeiro momento assimila aqueles que natildeo se encaixam aos padrotildees de equiliacutebrio estabelecidos ao bom funcionamento do organismo social forccedilando-os a se adequar aos seus modos de operaccedilatildeo regular e saudaacutevel mas para isso obriga a se revelarem constantemente a fim de que sejam reconhecidos Essa revelaccedilatildeo permanente da subjetividade para posterior assimilaccedilatildeo e constrangimento agrave regra eacute uma das teacutecnicas dos procedimentos imunitaacuterios (NALI 2013 p 98-99)

A gestaccedilatildeo e a proteccedilatildeo poliacutetica da vida pelos seus proacuteprios meios requer e aciona procedimentos de imunizaccedilatildeo consistentes na promoccedilatildeo de um equiliacutebrio vital da comunidade mas que apenas se realiza na medida em que equaciona em seus caacutelculos a eliminaccedilatildeo via ataques imunitaacuterios de elementos e fatores ndash indiviacuteduos ndash compreendidos como risco de desagregaccedilatildeo da proacutepria comunidade8

Nesses jogos procedimentais de demarcaccedilatildeo de alvos de imunizaccedilatildeo o caacutelculo operado no modelo de proteccedilatildeo negativa da vida leva em consideraccedilatildeo um agregado de vidas a ser salvo em razatildeo de suas qualidades verificadas in locu e em virtude de sua proacutepria ldquohumanidaderdquo criteacuterio este utilizado tambeacutem para se determinar aqueles que seratildeo expostos agrave morte vez que representam um perigo agrave proacutepria comunidade tomada enquanto corpo bioloacutegico A ideia de humanidade subjacente a todos esses processos de imunizaccedilatildeo e compreendida como fator de diferenciaccedilatildeo dos humanos dispostos numa hierarquia superior em relaccedilatildeo a todas as outras espeacutecies viventes paradoxalmente aderiu agrave proacutepria mateacuteria bioloacutegica agora carregada de valores poliacuteticos Nesse contexto afirma Esposito ldquoconfundida com a sua pura substacircncia vital e assim subtraiacuteda a qualquer forma juriacutedico-poliacutetica a humanidade do homem fica necessariamente exposta agravequilo que pode simultaneamente salvaacute-la e aniquilaacute-lardquo (ESPOSITO 2010 p 19)

A leitura pelo vieacutes da imunizaccedilatildeo nos coloca diante das produccedilotildees de morte que ocorrem agrave revelia da permissatildeo juriacutedica na medida em que representam a proteccedilatildeo do proacuteprio organismo social Essa proteccedilatildeo do social depende da expulsatildeo da igualdade generalizada Eacute soacute imunizando e portanto diferenciando e acobertando uns em detrimento

8 De acordo com Esposito ldquoCiograve che ne risulta egrave un movimento bilanciato di neutralizzazione ndash chiaramente ricon-ducibile alla logica immunitariardquo(ESPOSITO 2002 p 69)

Angela Couto Machado Fonseca Dhyego Cacircmara Arauacutejo

65

de outros que a vida cabe na poliacutetica moderna A moderna poliacutetica da vida assim se movimenta aplicando e desaplicando proteccedilotildees imunitaacuterias Eacute deste modo num contexto mais abrangente que a produccedilatildeo da morte deve ser pensada Natildeo se trata de balizar sua permissatildeo ou negaccedilatildeo legal mas de analisar como a proacutepria tessitura poliacutetica moderna opera de modo antinocircmico abrindo fendas na suposta igualdade e valor da vida em abstrato

Ciclo de vida e morte pela biopoliacutetica Uma abordagem

66

Referecircncias bibliograacuteficasBUTLER Judiht Quadros de guerra quando a vida eacute passiacutevel de luto Traduccedilatildeo de Seacutergio Tadeu de Niemeyer Lamaratildeo Arnaldo Marques da Cunha Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2015CAMPBELL Timothy Poliacutetica Imunidade Vida O pensamento de Roberto Esposito no debate contemporacircneo In ESPOSITO Roberto Termos da Poliacutetica comunidade imunidade biopoliacutetica Traduccedilatildeo de Angela C Machado Fonseca Joatildeo Paulo Arrosi Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca Curitiba Ed UFPR 2017 CORTE IDH Caso Favela Nova Brasiacutelia Vs Brasil Sentenccedila de 16 de fevereiro de 2017 Seacuterie C Nordm 333 Disponiacutevel em httpwwwcorteidhorcrdocscasosarticulosseriec_333_porpdf Acesso em 16 de setembro de 2017DIOacuteGENES Francisco Bruno Pereira Racismo de Estado e Tanatopoliacutetica sobre o paradoxo do Nazismo em Michel Foucault e Giorgio Agamben Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea Brasiacutelia n 2 ano 1 p 156-193 2013DUARTE Andreacute Macedo De Michel Foucault a Giorgio Agamben a trajetoacuteria do conceito de biopoliacutetica In Fenomenologia Hoje III ndash Bioeacutetica biotecnologia biopoliacutetica Editora Edipucrs 2008 Texto em versatildeo digital p 1-22 Disponiacutevel em httpsworksbepresscomandre_duarte17 Acesso em 06 de ago de 2016ESPOSITO Roberto Bios biopoliacutetica e filosofia Traduccedilatildeo de M Freitas da Costa Lisboa Ediccedilotildees 70 2010_____ Termos da Poliacutetica comunidade imunidade biopoliacutetica Traduccedilatildeo de Angela C Machado Fonseca Joatildeo Paulo Arrosi Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca Curitiba Ed UFPR 2017 _____ Communitas Origine e destino della comunitagrave Torino Einaudi 2006 _____ Immunitas Protezione e negazione della vita Torino Einaudi 2002 FONSECA Angela Couto Machado Biopoliacutetica e Direito fabricaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo do corpo moderno Belo Horizonte Arraes Editores 2016FONSECA Ricardo Marcelo O poder entre o direito e a lsquonormarsquo Foucault e Deleuze na Teoria do Estado In FONSECA Ricardo Marcelo (org) Repensando a teoria do Estado Belo Horizonte 2004 p 259-281_____ Modernidade e contrato de trabalho do sujeito de direito agrave sujeiccedilatildeo juriacutedica Satildeo Paulo LTr 2002FOUCAULT Michel Histoacuteria da sexualidade 1 A vontade de saber (Traduccedilatildeo de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque) Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 2011_____ Em defesa da sociedade Curso no Collegravege de France (1975-1976) (Traduccedilatildeo de Maria Emantina Galvatildeo) ndash 2ordf ed ndash Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2010_____ Vigiar e Punir nascimento da prisatildeo (Traduccedilatildeo de Raquel Ramalhete) 39 ed Petroacutepolis Rio de Janeiro Vozes 2011NALI Marcos CommunitasImmunitas a releitura de Roberto Esposito da biopoliacutetica Revista Filosofia Aurora Curitiba v 25 n 37 p 79-105 2013_____ A abordagem imunitaacuteria de Roberto Esposito biopoliacutetica e medicalizaccedilatildeo Revista INTERthesis Florianoacutepolis v 9 n 2 p 39-50 2012

Caius Brandatildeo

67

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

Caius Brandatildeo1

As posiccedilotildees paradoxais assumidas por Nietzsche acerca do livre-arbiacutetrio eacute uma questatildeo bastante espinhosa provocando ainda hoje tensotildees entre os seus estudiosos que manteacutem candente o debate afinal em relaccedilatildeo ao problema da liberdade da vontade Nietzsche deve ser considerado um compatibilista ou um fatalista Na Genealogia da moral o filoacutesofo argumenta que a doutrina do livre-arbiacutetrio nada mais eacute do que uma invenccedilatildeo da moralidade escrava para atender agrave sua necessidade de crenccedila no ldquolsquosujeitorsquo indiferente e livre para escolherrdquo (GM I sect13) Com essa crenccedila na liberdade da vontade surge a ideia de responsabilidade e portanto de imputaccedilatildeo moral Assim as noccedilotildees de culpa e merecimento seriam um desenvolvimento tardio da moralidade humana quando a doutrina do livre-arbiacutetrio foi finamente criada pela revolta escrava da moral Em suas palavras ldquodurante o mais largo periacuteodo da histoacuteria humana natildeo se castigou porque se responsabilizava o delinquente por seu ato ou seja natildeo pelo pressuposto de que apenas o culpado devia ser castigadordquo (GM II sect4) Ainda de acordo com Nietzsche

natildeo eacute de espantar que os afetos entranhados que ardem ocultos oacutedio e vinganccedila tirem proveito dessa crenccedila e no fundo natildeo sustentem com fervor maior outra crenccedila senatildeo a de que o forte eacute livre para ser fraco e a ave de rapina livre para ser ovelha ndash assim adquirem o direito de imputar agrave ave de rapina o fato de ser o que eacute (GM I sect13)

Com base nessas passagens da Genealogia da moral jaacute eacute possiacutevel observar pelo menos duas categorias de livre-arbiacutetrio postas em questatildeo pelo filoacutesofo a liberdade de escolha para agir moralmente e a liberdade para ser o que se eacute Natildeo obstante em seguida na mesma obra Nietzsche apresenta a figura enigmaacutetica do indiviacuteduo soberano ldquosenhor do livre-arbiacutetriordquo que deteacutem o ldquoprivileacutegio extraordinaacuterio da responsabilidaderdquo (GM II sect2) O problema contudo toma proporccedilotildees ainda mais amplas e complexas quando se coteja passagens de diferentes obras do filoacutesofo onde por vezes ele parece afirmar uma noccedilatildeo positiva da liberdade da vontade enquanto que em outros trechos rejeita categoricamente o livre-arbiacutetrio e consequentemente a responsabilidade do agente moral da mesma forma como a responsabilidade da pessoa por ser o que eacute

Neste texto propomos apresentar as interpretaccedilotildees parcialmente conflitantes sobre este tema de dois importantes representantes da recepccedilatildeo anglo-saxocircnica contemporacircnea da filosofia de Nietzsche Ken Gemes professor do Instituto Berkbeck da Universidade

1 Doutorando Mestre e Bacharel em Filosofia Universidade Federal de Goiaacutes (UFG)

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

68

de Londres e Brian Leiter diretor e professor do Centro de Direito Filosofia e Valores Humanos da Universidade de Chicago

Ken GemesNo capiacutetulo intitulado ldquoNietzsche on Free Will Autonomy and the Sovereign

Individualrdquo de sua obra Nietzsche on Freedom and Autonomy publicada em 2009 pela Oxford University Press Ken Gemes propotildee tratar o problema da liberdade a partir de duas categorias A primeira delas faz referecircncia ao livre-arbiacutetrio de meacuterito (deserts free will) o qual autoriza a noccedilatildeo de quem eacute merecedor de puniccedilatildeo ou recompensa A segunda categoria proposta por Gemes se refere ao livre-arbiacutetrio de agecircncia (agency free will) o qual autoriza as noccedilotildees de autonomia e de agecircncia genuiacutena e que estaria relacionado agrave ideia de accedilatildeo ao inveacutes de um mero fazer (GEMES 2009 p 322) De antematildeo o professor da Universidade de Londres deixa claro que o objetivo do seu texto eacute defender a sua compreensatildeo de que Nietzsche rejeita o livre-arbiacutetrio de meacuterito e afirma o livre-arbiacutetrio de agecircncia a despeito de que somente pessoas muito raras seriam capazes de alcanccedilar real autonomia e responsabilidade a exemplo do indiviacuteduo soberano da Genealogia da moral

Gemes observa que jaacute haacute muito tempo as noccedilotildees de livre-arbiacutetrio e responsabilidade caminham juntas e que a tradiccedilatildeo filosoacutefica reconhece a liberdade da vontade como condiccedilatildeo para a responsabilidade moral Para o professor de Birkbeck uma ambiguidade existente no termo ldquoresponsabilidaderdquo faz com que as pessoas cometam o erro de natildeo separar o livre-arbiacutetrio de meacuterito do livre-arbiacutetrio de agecircncia Quando afirmamos que algueacutem eacute responsaacutevel por algo pode ser que o que queremos dizer eacute que esta pessoa merece uma puniccedilatildeo ou uma recompensa por ter feito o que fez Por outro lado pode ser tambeacutem que queremos dizer simplesmente que foi esta pessoa quem fez o que fez Em suma o primeiro significado de responsabilidade estaacute associado agrave noccedilatildeo de merecimento enquanto o segundo agrave noccedilatildeo de agecircncia Gemes entatildeo passa a separar categoricamente esses dois tipos de significado para o termo ldquoresponsabilidaderdquo para concluir que Nietzsche rejeita a responsabilidade de meacuterito mas deixa algum espaccedilo para se afirmar a responsabilidade de agecircncia Vejamos em suas proacuteprias palavras como o professor de Birkbeck chega a essa conclusatildeo

Ora algueacutem pode levantar uma objeccedilatildeo e dizer que Nietzsche estaacute constantemente culpando as pessoas (Soacutecrates Jesus Satildeo Paulo Wagner) e muitas vezes louvando os outros (Napoleatildeo Beethoven Goethe Wagner Nietzsche) portanto isto significa que seria difiacutecil aceitar que ele natildeo estaria interessado em questotildees de meacuteritos Eacute importante aqui separar os conceitos de puniccedilatildeo e recompensa dos conceitos de culpa e elogio [] A fim de separar esses pares conceituais seria uacutetil trazer o foco para a nossa atitude em relaccedilatildeo a figuras que haacute muito desapareceram Por exemplo aqueles de noacutes que admiram Soacutecrates podem elogiaacute-lo mas esse elogio dificilmente constitui uma recompensa ndash em certo sentido os mortos estatildeo fora do alcance das recompensas embora naturalmente possam ser honrados Aqueles que assim como Nietzsche consideram que Soacutecrates eacute uma influecircncia em grande parte maleacutefica podem ateacute culpaacute-lo mas natildeo devemos entender essa culpa como sendo qualquer tipo de puniccedilatildeo Ordinariamente punir e recompensar eacute algo que fazemos com os seres vivos natildeo agravequeles que jaacute morreram Nietzsche de fato fez vaacuterios elogios e atribuiu culpa a

Caius Brandatildeo

69

figuras que eram seus contemporacircneos e figuras que haviam morrido antes dele A minha opiniatildeo eacute que para Nietzsche tais elogios e culpas significam que ele os considera responsaacuteveis por vaacuterios efeitos mas apenas no que se refere agrave agecircncia e natildeo aos meacuteritos Que Nietzsche culpe e louve natildeo demonstra que ele esteja comprometido com uma explicaccedilatildeo positiva da responsabilidade ou do livre-arbiacutetrio de meacuterito Nietzsche rejeita as noccedilotildees de puniccedilatildeo e recompensa em parte porque elas satildeo em certo sentido dirigidas ao passado uma questatildeo de dar o que foi merecido ao passo que para Nietzsche as atitudes de elogiar e culpar satildeo fundamentalmente direcionadas ao futuro [] Ele culpa figuras tais como Soacutecrates Jesus Paulo e agraves vezes Wagner natildeo porque ele queira meramente atribuir a eles seus meacuteritos mas antes porque ele quer diminuir suas influecircncias atuais e futuras Da mesma forma ele elogia Beethoven Goethe Nietzsche e agraves vezes Wagner porque ele deseja aumentar suas influecircncias sobre noacutes e sobre o futuro mesmo que agraves vezes eles sejam apresentados somente como exemplares (GEMES 2009 pp 323 e 324)

Temos entatildeo que em sua cadeia argumentativa Ken Gemes contrapotildee dois grupos de pares conceituais de um lado o livre-arbiacutetrio e a responsabilidade de meacuterito e do outro lado o livre-arbiacutetrio e a responsabilidade de agecircncia Para sustentar a sua interpretaccedilatildeo de que Nietzsche rejeita o livre-arbiacutetrio e a responsabilidade de meacuterito Gemes cita a seguinte passagem do aforismo 39 de Humano demasiado humano

E afinal descobrimos que tampouco este ser pode ser responsaacutevel na medida em que eacute inteiramente uma consequecircncia necessaacuteria e se forma a partir dos elementos e influxos de coisas passadas e presentes portanto que natildeo se pode tornar o homem responsaacutevel por nada seja por seu ser por seus motivos por suas accedilotildees ou por seus efeitos Com isso chegamos ao conhecimento de que a histoacuteria dos sentimentos morais eacute a histoacuteria de um erro o erro da responsabilidade que se baseia no erro do livre-arbiacutetrio (HH I sect39)

Ao nos reportarmos ao trecho final desse mesmo aforismo encontramos uma reiteraccedilatildeo da mesma afirmaccedilatildeo

mdash Ningueacutem eacute responsaacutevel por suas accedilotildees ningueacutem responde por seu ser julgar significa ser injusto Isso tambeacutem vale para quando o indiviacuteduo julga a si mesmo Essa tese eacute clara como a luz do sol no entanto todos preferem retornar agrave sombra e agrave inverdade por medo das consequecircncias (HH I sect 39)

De fato aqui Nietzsche rejeita a responsabilidade do homem ldquopor suas accedilotildees ou por seus efeitosrdquo Todavia Gemes parece natildeo perceber que esse mesmo aforismo compromete a sua interpretaccedilatildeo de que o filoacutesofo teria deixado espaccedilo para se afirmar a responsabilidade de agecircncia afinal ele diz categoricamente que natildeo se pode tornar o homem responsaacutevel por nada inclusive pelo seu proacuteprio ser Parece-nos razoaacutevel afirmar que somente podem assumir responsabilidade por sua proacutepria agecircncia aqueles que agem livre e autonomamente Gemes tambeacutem reconhece essa relaccedilatildeo de necessidade entre livre-arbiacutetrio de agecircncia e autonomia Conforme ele expotildee

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

70

Algueacutem pode por exemplo negar que haacute livre-arbiacutetrio no sentido tradicionalmente visto como necessaacuterio para fundamentar questotildees de meacuterito e ao mesmo tempo afirmar que haacute livre-arbiacutetrio no sentido tradicionalmente visto como necessaacuterio para fundamentar a noccedilatildeo de agecircncia e de autonomia (GEMES 2009 p 322)

Ora se Gemes reconhece que a autonomia eacute tributaacuteria do livre-arbiacutetrio de agecircncia entatildeo seria razoaacutevel esperar que um indiviacuteduo autocircnomo fosse livre e capaz de responder por seu proacuteprio ser Mas convenhamos esta natildeo parece ser a conclusatildeo que podemos defender pelo menos com base nesse aforismo de Humano demasiado humano onde Nietzsche eacute categoacuterico ao dizer que ldquoningueacutem responde por seu serrdquo

Para Gemes uma das evidecircncias de que Nietzsche seja um compatibilista pode ser encontrada na passagem da Segunda Dissertaccedilatildeo da Genealogia da moral onde o filoacutesofo introduz a figura do indiviacuteduo soberano o senhor do livre-arbiacutetrio Para Gemes o tipo de liberdade que Nietzsche estaria invocando aiacute natildeo envolve a liberdade da ordem causal nem se liga a questotildees de meacuterito Para o professor da Universidade de Londres a noccedilatildeo de liberdade atribuiacuteda ao indiviacuteduo soberano estaria claramente ligada agrave questatildeo da autonomia e do que ele chama de ldquoagecircncia genuiacutenardquo Mas a bem da verdade e como veremos a seguir essa passagem sobre o indiviacuteduo soberano ainda suscita diferentes interpretaccedilotildees

Brian Leiter Passemos agora agrave apresentaccedilatildeo do texto Who is the lsquosovereign individualrsquo Nietzsche

on freedom de Brian Leiter que foi originalmente publicado em 2011 pela Cambridge University Press como um capiacutetulo do livro Nietzschersquos On the Genealogy of Morality A Critical Guide organizado por Simon May

Primeiramente Leiter critica o consenso entre os inteacuterpretes contemporacircneos de Nietzsche de acordo com o qual o trecho sobre o indiviacuteduo soberano serviria para confirmar uma suposta teoria positiva da liberdade na filosofia do pensador alematildeo Leiter cita nominalmente alguns desses inteacuterpretes entre eles Keith Ansell-Pearson John Richardson Peter Poellner e Ken Gemes Em nota de rodapeacute Leiter faz a seguinte anaacutelise do texto ldquoNietzsche on Free Will Autonomy and the Sovereign Individualrdquo de Ken Gemes

A terminologia e a discussatildeo de Gemes nos parecem um tanto confusas Ele faz a comparaccedilatildeo entre o que chama de ldquolivre-arbiacutetrio de meacuteritordquo [deserts free will] e ldquolivre-arbiacutetrio de agecircnciardquo [agency free will] De acordo com este uacuteltimo ldquoo debate sobre livre-arbiacutetrio estaacute intrinsecamente ligado agrave questatildeo da agecircncia o que constitui a accedilatildeo ao contraacuterio do mero fazerrdquo (2009 33) Na verdade ningueacutem pensa que possa existir livre-arbiacutetrio ou livre-agecircncia se natildeo haacute diferenccedila entre accedilotildees e ldquomeros fazeresrdquo por exemplo meros movimentos corporais Mas existem vaacuterias formas de salientar a distinccedilatildeo que natildeo guarde relaccedilatildeo com qualquer questatildeo que algueacutem na filosofia agora ou no passado identifique com a questatildeo do ldquolivre-arbiacutetriordquo Talvez as accedilotildees exijam intenccedilotildees para agir enquanto que ldquomeros fazeresrdquo ndash tais como os movimentos reflexivos do corpo ndash carecem delas Isto ainda deixaria totalmente em aberto o conhecido problema acerca da liberdade da vontade Gemes emprega outras formulaccedilotildees para a sua idiossincraacutetica categoria de ldquolivre-arbiacutetrio de agecircnciardquo Ele diz estar preocupado com a questatildeo sobre ldquoo que permite a autonomiardquo (33) e depois afirma que o ldquolivre-arbiacutetrio de agecircnciardquo estaacute ligado ldquoagrave questatildeo

Caius Brandatildeo

71

ainda mais profunda de lsquoo que significa agir em primeiro lugar o que eacute ser um eu capaz de agirrdquo (39) Infelizmente natildeo haacute evidecircncia textual de que estas sejam preocupaccedilotildees de Nietzsche Gemes tambeacutem afirma mais uma vez sem apresentar evidecircncias ou citaccedilatildeo que aqueles interessados no ldquolivre-arbiacutetrio de meacuteritordquo ldquotendem a escrever como se noacutes jaacute tiveacutessemos uma noccedilatildeo sobre o eu e sobre a accedilatildeo mais ou menos estabelecida e que estariacuteamos somente levantando a questatildeo de se tais lsquoeusrsquo deveriam ser considerados moralmente responsaacuteveis por suas accedilotildeesrdquo (LEITER 2011 p 111)

Para contrapor o que parece ser consensual entre seus colegas da recepccedilatildeo anglo-saxocircnica ou seja que Nietzsche teria criado o indiviacuteduo soberano para afirmar um tipo de liberdade o professor da Universidade de Chicago se propotildee a analisar duas alternativas que ajudam a deflacionar as interprestaccedilotildees correntes desta figura controversa a qual aparece somente uma vez na Genealogia da moral A primeira leitura possiacutevel seria a de compreender este trecho da obra sob a chave da ironia ndash neste caso

a figura do ldquoindiviacuteduo soberanordquo seria completamente irocircnica ndash uma zombaria sobre o pequeno burguecircs preocupado com seu insignificante empreendimento comercial ndash suas habilidades de fazer promessas e de se lembrar de suas diacutevidas seriam o fruto mais elevado da criaccedilatildeo (LEITER 2011 p 103)

Apesar de Leiter propor enxergar o indiviacuteduo soberano como um pequeno burguecircs preocupado com suas diacutevidas talvez seja verdade que Nietzsche natildeo estaria interessado em classes sociais na sua Genealogia da moral Quiccedilaacute a zombaria sob a provaacutevel oacutetica irocircnica de Nietzsche tenha como alvo o ideal kantiano de homem autocircnomo e supramoral No sect2 da Segunda Dissertaccedilatildeo Nietzsche apresenta a consciecircncia moral do indiviacuteduo soberano e no paraacutegrafo seguinte o genealogista indaga o que haacute por traacutes desse conceito de consciecircncia ldquoJaacute se percebe que o conceito de ldquoconsciecircnciardquo com que deparamos aqui em sua manifestaccedilatildeo mais alta quase desconcertante tem uma longa histoacuteria e variedade de formas atraacutes de sirdquo (GM II sect3) A histoacuteria e variedade de formas da consciecircncia moral do indiviacuteduo soberano satildeo marcadas pelo ldquosangue martiacuterio e sacrifiacuteciordquo (GM II sect3) impostos pela mnemoteacutecnica da moralidade dos costumes Eacute por pavor ao castigo que o homem inaugura em si a capacidade da memoacuteria e com ela de acordo com Nietzsche finalmente a razatildeo

ndash Ah a razatildeo a seriedade o domiacutenio sobre os afetos toda essa coisa sombria que se chama reflexatildeo todos esses privileacutegios e adereccedilos do homem como foi alto o seu preccedilo Quanto sangue e quanto horror haacute no fundo de todas as ldquocoisas boasrdquo (GM II sect 3)

Temos portanto que a consciecircncia moral do indiviacuteduo soberano compreende essa razatildeo que exerce domiacutenio sobre os afetos Isso nos leva a crer que aqui na verdade Nietzsche tem em mente a sua criacutetica a uma tradiccedilatildeo de pensamento particularmente agrave filosofia moral de Kant

A segunda leitura deflacionaacuteria proposta por Leiter considera que o indiviacuteduo soberano representa o ideal do self moderno capaz de ldquoautodomiacuteniordquo o qual

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

72

seria estranho aos ldquoeusrdquo menos coerentes (cujos impulsos momentacircneos os puxam de um lado ou de outro) Mas este eu e o seu autodomiacutenio satildeo em termos nietzschianos um artefato natural fortuito (um pouco de ldquodestinordquo) natildeo uma conquista autocircnoma pela qual ningueacutem poderia ser responsaacutevel Associar esse ideal do eu com a linguagem de ldquoliberdaderdquo e ldquolivre-arbiacutetriordquo significa um exerciacutecio de ldquodefiniccedilatildeo persuasivardquo de Nietzsche uma habilidade retoacuterica na qual ele amiuacutede era o mestre (LEITER 2011 p 103)

Leiter sugere que a segunda leitura eacute provavelmente a mais correta embora a apresentaccedilatildeo ridiacutecula e hiperboacutelica que Nietzsche faz do indiviacuteduo soberano faccedila com que a primeira leitura nos pareccedila mais atraente Mas conforme Leiter ambas as leituras ldquonos permitiriam compreender como e porque Nietzsche o fatalista e superceacutetico acerca do livre-arbiacutetrio teria criado a figura do indiviacuteduo soberanordquo (LEITER 2011 p 103) De acordo com Leiter a capacidade de autodomiacutenio natildeo eacute uma escolha autocircnoma da pessoa Natildeo haacute em seu entendimento nenhum ldquoeurdquo no autodomiacutenio em suas proacuteprias palavras natildeo existe

nenhum ldquoeurdquo consciente ou livre que contribua com algo ao processo O ldquoautodomiacuteniordquo natildeo passa de um efeito da interaccedilatildeo de certos impulsos sobre os quais o eu consciente natildeo exerce nenhum controle (apesar de poder por assim dizer torcer por um lado ou por outro) O ldquoeu conscienterdquo e seu corpo eacute tatildeo somente uma arena onde a luta dos impulsos se desenrola como eles terminam determina o que o eu acredita valoriza e se torna Mas enquanto eu consciente ou ldquoagenterdquo a pessoa natildeo tem parte ativa no processo De fato alguns ldquotipos mais elevadosrdquo ndash Goethes e Nietzsches por exemplo ndash seriam exemplares de uma hierarquia unificada de impulsos o que Nietzsche ocasionalmente chama de exemplares da ldquoliberdaderdquo (LEITER 2011 p 110)

Eacute com base nessa concepccedilatildeo de autodomiacutenio que Leiter propotildee compatibilizar a passagem sobre o indiviacuteduo soberano na Genealogia da moral com a negaccedilatildeo do livre-arbiacutetrio e da responsabilidade moral nesta e em tantas outras obras de Nietzsche

Em seguida Leiter coteja a sua explicaccedilatildeo fatalista do indiviacuteduo soberano com as noccedilotildees de liberdade e de livre-arbiacutetrio identificadas em diversos escritos do filoacutesofo Inicialmente contudo ele expotildee a posiccedilatildeo de Peter Poellner para quem a visatildeo positiva da liberdade em Nietzsche representa uma espeacutecie de ldquoideal substantivordquo Leiter associa esta interpretaccedilatildeo de Poellner com a posiccedilatildeo de Ken Gemes para quem Nietzsche estaria propondo um ldquoideal de agecircncia que exigiria uma espeacutecie de unidade de impulsosrdquo (LEITER 2011 p 111) Leiter entatildeo pondera que talvez o polecircmico indiviacuteduo soberano represente tal ideal mas natildeo concorda que ele esteja ligado agraves noccedilotildees de liberdade e livre-arbiacutetrio ou mesmo de autonomia Aqui o argumento central do professor da Universidade de Chicago eacute que Nietzsche utiliza os conceitos de liberdade e de livre-arbiacutetrio em sentido revisionista promovendo o que Charles Stevenson chama de ldquodefiniccedilatildeo persuasiva da liberdaderdquo Para Leiter Nietzsche

deseja revisar radicalmente o conteuacutedo da palavra ldquoliberdaderdquo enquanto explora a valecircncia positiva que o termo possui para seus leitores A razatildeo disto eacute que Nietzsche reconhece que para transformar realmente a consciecircncia de seus leitores preferidos ele deve tocaacute-los no niacutevel

Caius Brandatildeo

73

emocional ateacute mesmo subconsciente e uma forma de fazecirc-lo eacute associar os seus ideais aos valores cujos seus leitores jaacute se encontram emocionalmente investidos (LEITER 2011 p 112)

Leiter propotildee que para Nietzsche liberdade significa a atitude fatalista diante da realidade conhecida como amor fati ou seja a afirmaccedilatildeo intransigente da maneira como as coisas realmente satildeo ao inveacutes de se render agraves fantasias dos idealistas Nas palavras de Leiter ldquoser livre neste sentido significa entatildeo ser livre do desejo de que a realidade seja diferente daquilo que ela eacute ndash isto eacute desigual terriacutevel e cruelrdquo (LEITER 2011 p 118)

Em suas consideraccedilotildees finais Leiter afirma que o desejo de tornar o filoacutesofo ldquomenos temiacutevelrdquo aos delicados leitores modernos explica o ldquoconsensordquo em torno da leitura de um Nietzsche que acredite na liberdade e no livre-arbiacutetrio Enfim para natildeo deixar duacutevida sobre a sua interpretaccedilatildeo fatalista o professor da Universidade de Chicago afirma na conclusatildeo de seu texto

Nietzsche natildeo crecirc na liberdade ou na responsabilidade ele natildeo acredita que noacutes exercitamos qualquer controle significativo sobre nossas vidas ele natildeo crecirc que o seu sentido revisionista de ldquoliberdaderdquo ndash a ldquovontade longa e duradourardquo como ele coloca na passagem da GM II sect2 [] ndash esteja ao alcance de qualquer um de noacutes ou que qualquer um poderia simplesmente ldquoescolherrdquo possuiacute-la (LEITER 2011 p 119)

Por essa razatildeo Leiter rejeita categoricamente a persistente influecircncia maligna das leituras moralizantes das obras do filoacutesofo alematildeo

Em suma enquanto Leiter e Gemes concordam que Nietzsche rechaccedila o livre-arbiacutetrio e a responsabilidade moral eles divergem sobre a liberdade enquanto autonomia Na visatildeo compatibilista de Gemes Nietzsche afirma a liberdade da vontade e a responsabilidade quando associadas agrave agecircncia genuiacutena e autocircnoma Leiter por sua vez defende uma leitura fatalista do filoacutesofo argumentando que mesmo homens raros como Goethe seriam frutos da fortuna

Quais satildeo as consequecircncias de acordo com Nietzsche em HH I sect 39 que nos obrigariam a retornar agrave sombra e agrave inverdade Se natildeo temos o direito de imputar agrave ave de rapina o fato de ela ser o que eacute como podemos nos dar o direito de castigaacute-la por isso Como podemos julgar algueacutem e ateacute a noacutes mesmos por ter agido de determinada forma se for verdade que a vontade racional natildeo eacute a causa de nossas accedilotildees Uma vez confirmada essa teoria de Nietzsche estariacuteamos irremediavelmente diante da imensa tarefa de transvaloraccedilatildeo dos valores morais e de autossupresatildeo da justiccedila

Compatibilismo ou fatalismo O problema do livre-arbiacutetrio em Nietzsche

74

Referecircncias bibliograacuteficasGEMES Ken Nietzsche on Free Will Autonomy and the Sovereign Individual In GEMES Ken (org) Nietzsche on Freedom and Autonomy Oxford Oxford University Press 2009LEITER Brian Who is the ldquoSovereign Individualrdquo Nietzsche on Freedom In MAY Simon (org) Nietzschersquos On the Genealogy of Morality A Critical Guide Cambridge Cambridge University Press 2011NIETZSCHE Friedrich Genealogia da moral ndash uma polecircmica Trad de Paulo Ceacutesar Lima de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Humano demasiado humano Trad de Paulo Ceacutesar Lima de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Ceacutelia Machado Benvenho

75

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche1

Ceacutelia Machado Benvenho2

Embora natildeo forme um corpus unificado nem mesmo se concentre em textos especiacuteficos Nietzsche faz uma reflexatildeo radical da linguagem desde seus primeiros escritos (1869 a 1871) quando ainda filoacutelogo e a ela dedicaraacute uma especial atenccedilatildeo a ponto de condicionar a tarefa de compreender as transformaccedilotildees que a linguagem havia sofrido desde suas possibilidades originais como uma condiccedilatildeo para a compreensatildeo do desenvolvimento da proacutepria filosofia Nesse sentido embora habitualmente a obra de Nietzsche seja dividida em trecircs periacuteodos distintos com algumas variaccedilotildees de pontos de vistas a linguagem serve como um fio condutor um dos elementos fundamentais para compreensatildeo da sua criacutetica aos problemas tradicionais da metafiacutesica e epistemologia Sua principal criacutetica seraacute aos poderes representativos da linguagem ou seja agrave crenccedila no poder da linguagem de nos fornecer um conhecimento adequado da realidade

No periacuteodo de 1869-70 quando receacutem-nomeado professor na Universidade da Basileacuteia o filoacutesofo prepara um de seus primeiros cursos Liccedilotildees sobre gramaacutetica latina em que num capiacutetulo introdutoacuterio cujo tiacutetulo eacute Sobre a origem da linguagem faz um estudo da gecircnese da linguagem e desenvolve a sua primeira concepccedilatildeo de linguagem e manifesta interesse por diferentes teorias da linguagem da eacutepoca3 Entre os anos de 1872 e 1874 Nietzsche tambeacutem daraacute aulas sobre Retoacuterica antiga4 e Histoacuteria da eloquecircncia grega

Dentre as reflexotildees de Nietzsche sobre a linguagem nos interessa aqui tratar da concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem que aparece nas anotaccedilotildees para o Curso de retoacuterica realizado entre os anos de 1872 e 1874 e no escrito inacabado Sobre verdade e mentira no sentido extramoral de 1873 em que Nietzsche defende a tese de que a linguagem eacute essencialmente e por sua proacutepria natureza uma arte Pretendemos investigar no acircmbito da filosofia do jovem Nietzsche como a concepccedilatildeo retoacuterica da linguagem se mostra relevante e quais as influecircncias dessa abordagem no seu estilo de filosofar posterior A questatildeo que se coloca eacute se esta concepccedilatildeo retoacuterica da linguagem jaacute natildeo anuncia uma objeccedilatildeo do filoacutesofo agrave pretensatildeo metafiacutesica de um discurso que expresse a verdade objeccedilatildeo tiacutepica da criacutetica genealoacutegica que ele iraacute empreender

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001

2 Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute3 Tais como Filosofia do Inconsciente de E Von Hartmann Histoacuteria da Ciecircncia da Linguagem de Th Benfey e Criacutetica

da Faculdade do Juiacutezo de E Kant (Cf CAVALCANTI Anna Hartmann 2005 p 29-39)4 Texto agrupado em seu Curso de Retoacuterica cujo tiacutetulo original eacute Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga anunciado pela Univer-

sidade da Basileacuteia para acontecer no semestre de 1874 Guervoacutes (2000 p 13-16) ressalta que nesse Curso Nietzsche trata sistematicamente e historicamente da retoacuterica e pressupotildee a leitura da obra de Gustav Gerber Die Sprache als Kunst pertencente a uma tradiccedilatildeo filosoacutefica-linguiacutestica e agrave filosofia da linguagem do seacuteculo XIX e de outro grupo que corresponderia agrave tradiccedilatildeo da filologia claacutessica (A Westermann L Spengel R Volkmann e F Blass)

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche

76

Concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem Em notas para o seu Curso de retoacuterica realizado entre os anos de 1872 e 1874

Nietzsche defende a tese de que a linguagem eacute essencialmente e por sua proacutepria natureza uma arte Faz isso sob a influecircncia da obra de Gustav Gerber A linguagem como arte retomando o caraacuteter original da linguagem como uma obra de arte a linguagem se origina de um procedimento esteacutetico originaacuterio inconsciente intuitivo um processo de criaccedilatildeo simboacutelica que tem iniacutecio na percepccedilatildeo humana do mundo A partir desse contexto assim como em outros textos da juventude a relaccedilatildeo do homem com o mundo caracteriza-se como uma relaccedilatildeo esteacutetica Enquanto arte a linguagem expressa somente nossa relaccedilatildeo com as coisas com o mundo ou seja sua origem natildeo eacute intelectual mas intuitiva Tudo se inicia com um estiacutemulo nervoso uma excitaccedilatildeo que suscita uma sensaccedilatildeo que por sua vez eacute representada em uma imagem e depois modelada em um som

O homem que forma a linguagem natildeo percebe coisas ou processos mas excitaccedilotildees [Reize] natildeo transmite sensaccedilotildees mas somente coacutepias de sensaccedilotildees A sensaccedilatildeo suscitada atraveacutes de uma excitaccedilatildeo nervosa natildeo apreende a proacutepria coisa essa sensaccedilatildeo eacute representada externamente atraveacutes de uma imagem (Curso de retoacuterica sect 3)

Em seu ensaio poacutestumo Sobre verdade e mentira em sentido extra-moral5 (1873) simplificando o esquema de Gustav Geber6 Nietzsche diz ldquoUm estiacutemulo nervoso (Nervenreiz) primeiramente transposto (uumlbertragen) em uma imagem (Bild) Primeira metaacutefora A imagem por sua vez modelada em um som Segunda metaacuteforardquo (WLVM sect1) Aqui estaacute uma das chaves para entendermos a defesa de Nietzsche de uma estrutura tropoloacutegica da linguagem que trataremos com mais detalhes a seguir O que ocorre eacute um procedimento de criaccedilatildeo simboacutelica em que se produz uma imagem a partir de outra imagem por um processo de transposiccedilatildeo Estamos sempre operando num processo de transposiccedilatildeo de imagem a imagem No entanto pergunta Nietzsche ldquoComo um ato da alma pode ser representado atraveacutes de uma imagem sonora (Curso de Retoacuterica sect 3) Podemos acrescentar outras questotildees o que temos acesso da coisa percebida pela nossa percepccedilatildeo O que captamos dela O que podemos representar dela por meio das palavras O proacuteprio Nietzsche nos ajuda com as respostas ldquoNatildeo satildeo as coisas que penetram na consciecircncia senatildeo a maneira que noacutes nos colocamos ante elas o pithanoacuten (poder de persuasatildeo) Nunca se capta a essecircncia plena das coisas () Em vez da coisa a sensaccedilatildeo soacute capta um sinal (Merkmal) () um sinal que lhe parece predominanterdquo (Curso de Retoacuterica sect 3) Essa relaccedilatildeo que o homem estabelece com as coisas eacute a base do modelo retoacuterico de linguagem para Nietzsche ldquoAs propriedades contecircm apenas relaccedilotildeesrdquo (NachlassFP KSA 7 9[242] Veratildeo 1872-1874) e mais especificamente relaccedilotildees humanas

A tese de Nietzsche eacute que a linguagem eacute em sua essecircncia retoacuterica ou seja a linguagem antes de ser referecircncia das coisas eacute uma transposiccedilatildeo linguiacutestica pois o homem utiliza a palavra como um siacutembolo uma imagem para representar o que experimentou ldquoNossos sentidos imitam a natureza na medida em que a retratam constantemente A imitaccedilatildeo pressupotildee uma recepccedilatildeo e logo uma transposiccedilatildeo continuada da imagem recebida em mil

5 Doravante WLVM6 Simplificaccedilatildeo feita por Nietzsche do esquema de Gerber em sua obra A linguagem como arte ldquoPartindo da coisa em

si se produz um impulso nervoso que provoca uma sensaccedilatildeo que por sua vez se transforma em som que eacute a imagem externa da de uma sensaccedilatildeo Ao agrupar as distintas observaccedilotildees particulares sobre a coisa se forma a representaccedilatildeo que eacute uma imagem interna da sensaccedilatildeordquo (Cf GUERVOacuteS 2000 p43)

Ceacutelia Machado Benvenho

77

metaacuteforas todas atuandordquo (NachlassFP KSA 7 19[226] Veratildeo 1872-1874) Sendo assim as palavras natildeo satildeo mais que o resultado dessa relaccedilatildeo mimeacutetica com as representaccedilotildees intuitivas o que se tem na origem da linguagem natildeo eacute um procedimento de transmissatildeo de informaccedilatildeo ou comunicaccedilatildeo mas uma transposiccedilatildeo sensorial algo que afeta e que produz efeito

Ora se natildeo haacute uma conexatildeo loacutegica entre as palavras e as coisas se os enunciados linguiacutesticos natildeo estatildeo relacionados a um significado ideal ou com a essecircncia das coisas buscar um criteacuterio de correspondecircncia entre as palavras e o mundo exterior natildeo eacute mais que um mero artifiacutecio ilusoacuterio Por isso natildeo eacute estranho pensar que as questotildees epistemoloacutegicas se coloquem de forma mais apropriada como questotildees retoacutericas para Nietzsche Para ele o mundo pode ser descrito de um modo adequado com categorias retoacutericas porque ele mesmo estaacute constituiacutedo completamente de um modo retoacuterico na medida em que se mostra acessiacutevel aos homens somente como uma imagem o reflexo da opiniatildeo do homem sobre si mesmo ldquoO homem conhece o mundo na medida em que ele se conhece quer dizer a profundidade do mundo se desvela ao homem na medida em que ele se maravilha de si mesmo e de sua complexidaderdquo (NachlassFP 19[118] Veratildeo de 1872 comeccedilo de 1873)

Desse modo a base da linguagem eacute retoacuterica que por sua vez eacute soacute um aperfeiccediloamento dos recursos artifiacutecios jaacute presentes na linguagem os tropos utilizado por Nietzsche no sentido de transportar saltar de um lugar para o outro um recurso expressivo em que se associa o sentido de uma palavra a outra lhe dado um sentido diferente do literal atraveacutes de um processo de semelhanccedila como no caso que acontece com a metaacutefora e metoniacutemia exemplos de tropos tratados pelo filoacutesofo ldquoA ideia de troacutepoitropos - lsquodesignaccedilotildees improacutepriasrsquo- indica artifiacutecios importantes da retoacuterica datildeo agraves palavras significados que inicialmente elas natildeo tecircm mudando substituindo acentuando certas caracteriacutesticas e fazendo uso de engenhosos recursos sempre por meio da transposiccedilatildeordquo (Curso de retoacuterica sect 8) De modo similar aparece num fragmento do veratildeo de 1872 ldquoNossas percepccedilotildees sensoriais natildeo se baseiam em raciociacutenios inconscientes senatildeo em tropos O processo original consiste em identificar o semelhante com o semelhante ndash em descobrir uma certa semelhanccedila entre uma coisa e outrardquo (NachlassFP KSA 7 19[217] Veratildeo 1872-1874)

Sendo assim o uso de artifiacutecios no discurso de tropos natildeo eacute um fator estranho na linguagem e por isso natildeo podemos caracterizaacute-lo como uma linguagem artificial improacutepria ou retoacuterica no sentido pejorativo do termo Ao contraacuterio a artificialidade compotildee a proacutepria essecircncia da linguagem em todas as ocasiotildees uma vez que a proacutepria linguagem eacute retoacuterica ou seja composta de artifiacutecios natildeo haacute nada dentro da estrutura da liacutengua ou de conhecimentos derivados da linguagem que natildeo tenham presente em seu acircmago a retoacuterica ldquoNatildeo existe de maneira alguma a lsquonaturalidadersquo natildeo retoacuterica da linguagem a qual se pudesse apelar a linguagem mesmo eacute resultado de artes puramente retoacutericasrdquo (Curso de retoacuterica sect 3) Ou seja aquilo que foi chamado de retoacuterico no discurso antigo a capacidade de desentranhar e extrair o que em cada coisa eacute ativo e produz impressatildeo eacute a essecircncia da linguagem e natildeo podemos classificar isso como artificial ou improacuteprio em oposiccedilatildeo a algo natural e proacuteprio

Ora se todas as questotildees que se referem agrave linguagem satildeo questotildees retoacutericas ou seja toda expressatildeo linguiacutestica pode ser reduzida em seus elementos essenciais agrave sua estrutura retoacuterica inerente todo resultado do uso linguiacutestico natildeo pode ser uma episteme um conhecimento jaacute que natildeo nos diz como as coisas satildeo em sua essecircncia e verdade mas meras opiniotildees ldquoEste eacute o primeiro ponto de vista a linguagem eacute retoacuterica porque apenas

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche

78

quer transmitir (uumlbertagen) uma doxa e natildeo uma epistemerdquo (Curso de retoacuterica sect 3) Essa aparente limitaccedilatildeo significa que o mais importante no discurso eacute a persuasatildeo a forccedila do convencimento que eacute o que na realidade exerce um papel essencial em nossa percepccedilatildeo do mundo e em nossa comunicaccedilatildeo com os demais O discurso natildeo tem como objetivo transmitir um conhecimento verdadeiro mas comunicar uma opiniatildeo a partir de um efeito esteacutetico

Como diz Guervoacutes (2000 p23) Nietzsche desprezando o modelo representacional da linguagem em favor do modelo retoacuterico da mesma ldquonatildeo soacute afirma a identidade estrutural entre linguagem e retoacutericardquo jaacute que a linguagem utiliza os mesmos mecanismos que a retoacuterica para fazer-se uma imagem do mundo como tambeacutem ldquoassinala uma identidade de funccedilotildees entre linguagem e retoacutericardquo na medida em que uma linguagem obedece ao mesmo imperativo que a retoacuterica Por isso a afirmaccedilatildeo de Nietzsche no Curso de retoacuterica

Natildeo eacute difiacutecil provar agrave luz clara do entendimento que o que se chama lsquoretoacutericorsquo como meio de uma arte consciente jaacute agia como um meio de uma arte inconsciente na linguagem e no seu desenvolvimento e inclusive que a retoacuterica eacute um aperfeiccediloamento dos artifiacutecios jaacute presentes na linguagem (Curso de retoacuterica sect 3)

Guervoacutes (2000 p32) ainda ressalta que se observarmos o proceder do pensamento loacutegico assim como dos processos abstratos cujo resultado eacute o que chamamos de conhecimento veremos que operam a partir do mesmo modelo retoacuterico com figuras Tudo que se denomina eloquecircncia eacute linguagem figurada

O pensamento loacutegico categoriza objetiva e generaliza porque deduz de uma observaccedilatildeo a essecircncia completa das coisas E isso natildeo eacute mais que um processo de simplificaccedilatildeo que totaliza uma parte em um todo e opera por isso como uma sineacutedoque O mesmo poderia se dizer dos processos abstrativos que propotildee a loacutegica na mudanccedila do individual ao general pois tambeacutem as abstraccedilotildees satildeo metoniacutemias Desta maneira Nietzsche pode argumentar que tanto a linguagem conceitual como o conhecimento se fundamentam em inversotildees substitutivas

Metaacutefora como tropos por excelecircnciaTanto no Curso de retoacuterica como no texto Sobre verdade e mentira no sentido extra-

moral Nietzsche toma a metaacutefora como um tropo7 por excelecircncia na medida em que eacute um importante instrumento de exemplificaccedilatildeo do processo artiacutestico que ocorre na relaccedilatildeo do homem com o mundo ldquotransporte ou deslocamento de sentidordquo que ocorre no ldquoato de traduccedilatildeo de uma esferardquo perceptiva agrave ldquooutrardquo

Nietzsche se apropria da ideia aristoteacutelica de metaacutefora como ldquotransposiccedilatildeordquo (epiphora) embora utilize o vernaacuteculo Uumlbertragung como correspondente para o termo grego e junto dela a ideia impliacutecita de dynamis que o filoacutesofo alematildeo interpretaraacute como forccedila (Kraft) Aristoacuteteles caracteriza a metaacutefora como a transposiccedilatildeo de uma palavra cujo significado habitual eacute outro Essa transposiccedilatildeo se daria de quatro tipos 1) Transferecircncia de uma expressatildeo proacutepria de um gecircnero para uma espeacutecie Ex lsquoo barco descansarsquo em vez de lsquoo barco estaacute ancoradorsquo 2) Transferecircncia de um termo proacuteprio de uma espeacutecie a um gecircnero Ex lsquoUlisses empreendeu 7 Segundo Nietzsche chegou a ser estabelecido 38 tipos de tropos quanto ao nuacutemero e divisatildeo apesar das divergecircn-

cias dos quais ele trata somente de 15 tipos em seu Curso de retoacuterica Trabalharemos aqui com a metaacutefora por ser considerada o tropo por excelecircncia

Ceacutelia Machado Benvenho

79

ldquomilhotildeesrdquo de accedilotildees famosasrsquo 3) Transferecircncia de um termo especiacutefico a outro termo especiacutefico Ex lsquosuprimindo a vida com o bronzersquo e lsquocortando com o bronze invenciacutevelrsquo suprimir e cortar pertencem agrave ideia de separar 4) Quando a metaacutefora nasce daquilo que parece comum a uma proporccedilatildeo quando os dois termos comungam um mesmo traccedilo semacircntico Ex lsquoa velhice estaacute para a vida como o entardecer para o diarsquo (Cf Curso de retoacuterica sect 7)

No entanto Nietzsche natildeo acompanha8 Aristoacuteteles quando esse afirma que a metaacutefora se constitui como imagem primeira do mundo dos objetos transportada e figurativa e por isso uma imagem improacutepria desprovida de caraacuteter filosoacutefico e sem valor cognoscitivo A metaacutefora nesse sentido se apresenta como oposiccedilatildeo agraves palavras usuais comuns proacuteprias ou seja eacute um efeito da linguagem preacute-constituiacuteda Para Nietzsche os termos ldquotransposiccedilatildeordquo e por conseguinte ldquometaacuteforardquo natildeo se refere ao processo de constituiccedilatildeo de palavras e conceitos mas a um procedimento originaacuterio inconsciente preacute-linguiacutesitico em que se postula a existecircncia de algo que nada mais eacute em uacuteltima instacircncia uma concepccedilatildeo subjetiva O que constitui a linguagem eacute a forccedila que se radica na transposiccedilatildeo porque a linguagem fundamentalmente eacute transposiccedilatildeo linguiacutestica antes de ser referecircncias das coisas algo que eacute puramente secundaacuterio e derivado

A forccedila (Kraft) que Aristoacuteteles chama retoacuterica que eacute a forccedila de deslindar e de fazer valer para cada coisa o que eacute eficaz e impressiona essa forccedila eacute ao mesmo tempo a essecircncia da linguagem esta se reporta tatildeo pouco como a retoacuterica ao verdadeiro agrave essecircncia das coisas natildeo quer instruir mas transmitir a outrem uma emoccedilatildeo e uma apreensatildeo subjetivas (Curso de retoacuterica sect 3)

Assim a metaacutefora se caracteriza mais do que um simples tropo retoacuterico (um mero recurso estiliacutestico ou um simples ornato) na medida em que pertence a um acircmbito originaacuterio proacuteprio da atividade humana do qual se originaria a linguagem e natildeo o contraacuterio Esse procedimento originaacuterio eacute definido por Nietzsche em suas notas de 1872 como um processo perceptivo analoacutegico que por meio da comparaccedilatildeo busca relacionar coisas diferentes a partir da identificaccedilatildeo de uma semelhanccedila ldquoMetaacutefora significa tratar como idecircntico algo que se reconheceu em um ponto como semelhanterdquo (NachlassFP KSA 7 19[249] Veratildeo 1872-1874) Nietzsche complementa num fragmento do mesmo periacuteodo (19[227]) a metaacutefora eacute ldquoum raciociacutenio analoacutegicordquo cujo resultado permite que ldquose descubram e se reavivam de novo as semelhanccedilasrdquo Ainda em notas do mesmo periacuteodo o filoacutesofo ressalta que toda ldquocomparaccedilatildeo (pensamento original) eacute uma imitaccedilatildeo [] Nossos sentidos imitam a natureza na medida em que a retratam constantementerdquo (19 [226]) A metaacutefora eacute esse jogo vital que nos obriga agrave imitaccedilatildeo ldquoA imitaccedilatildeo pressupotildee uma recepccedilatildeo e logo uma transposiccedilatildeo continuada da imagem recebida em mil metaacuteforas todas atuandordquo (NachlassFP KSA 7 19[226] Veratildeo 1872-1874)

Para Nietzsche a linguagem se origina desse processo artiacutestico inconsciente em que estaacute em accedilatildeo um impulso criativo fundamental a formaccedilatildeo de imagens um processo de transposiccedilatildeo que consiste em engendrar uma imagem no lugar de uma coisa o metaforizar A linguagem eacute fundamentalmente transposiccedilatildeo linguiacutestica antes de ser referecircncias das coisas algo que eacute puramente secundaacuterio e derivado 8 Na Introduccedilatildeo a retoacuterica de Aristoacuteteles redigida no inverno de 1874-1875 Nietzsche elogia Aristoacuteteles na Retoacuterica

dizendo que ningueacutem teve um talento retoacuterico como ele no entanto natildeo faz o mesmo elogio em relaccedilatildeo agrave Poeacuteti-caldquoCom frequecircncia descubro na Poeacutetica algo em que digo para mim aqui estaacute Aristoacuteteles completamente como um estranho e fora do lugar ele natildeo pode ensinar nada aqui porque carece de capacidade naturalrdquo (NIETZSCHE Introduccedilatildeo a retoacuterica de Aristoacuteteles)

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche

80

A base de todas as construccedilotildees da linguagem do edifiacutecio dos conceitos eacute um impulso fundamental o metaforizar ou seja a fantasia a imaginaccedilatildeo criadora a forccedila-formadora-de-imagens Esse impulso segue fluindo como fonte inesgotaacutevel e busca para sua atividade um campo novo e uma via distinta e os encontra no mito e de modo geral na arte (WLVM sect 2)

Depois de investigar o processo de formaccedilatildeo de palavras e conceitos Nietzsche descarta a possibilidade de uma ldquoexpressatildeo adequada de um objeto no sujeitordquo e afirma que entre esferas tatildeo distintas natildeo existe mais do que uma relaccedilatildeo esteacutetica na qual sempre ocorre uma traduccedilatildeo para uma linguagem completamente heterogecircnea Entre a sensaccedilatildeo experimentada pelo indiviacuteduo e o balbuciar por ele emitido haacute um abismo profundo O conteuacutedo representado pela palavra natildeo eacute expressatildeo das proacuteprias coisas mas de um acircmbito puramente fenomecircnico o de nossas representaccedilotildees O processo de traduccedilatildeo do sentimento indica a dimensatildeo simboacutelica e figurativa da linguagem jamais expressa direta ou indiretamente o sentimento mas o traduz em signos simboliza-o Ora se a palavra natildeo passa de um siacutembolo natildeo pode haver uma relaccedilatildeo de correspondecircncia imediata entre a palavra e as coisas pois as palavras natildeo expressam as intuiccedilotildees originaacuterias mas as representaccedilotildees imagem que temos das mesmas Por isso a insistecircncia de Nietzsche que as palavras e conceitos natildeo expressam adequadamente a realidade nem verdades absolutas mas designam relaccedilotildees humanas

Na multiplicidade das liacutenguas se revela imediatamente o fato de que palavra e coisa natildeo coincidem e nem se completam necessariamente Poreacutem o que simboliza a palavra Sem duacutevida nada mais que representaccedilotildees sejam conscientes ou como sucede na maioria das vezes inconscientes pois como uma palavra-siacutembolo poderia corresponder agravequela essecircncia intimiacutessima da qual noacutes mesmos e o mundo somos imagens Esse nuacutecleo noacutes soacute o conhecemos em forma de representaccedilotildees e unicamente nos eacute familiar em suas expressotildees simboacutelicas fora disso natildeo haacute nenhuma ponte direta que nos conduza ateacute o mesmo (NachlassFP KSA 12 [1])

Haacute uma impossibilidade linguiacutestica ou conceitual de expressar a natureza do real porque a linguagem soacute tem valor em seus aspectos simboacutelicos e figurativos ldquoNatildeo haacute expressotildees proacuteprias nem conhecimento proacuteprio senatildeo metaacuteforas [] Conhecer natildeo eacute mais que trabalhar com as metaacuteforas preferidas [] uma imitaccedilatildeo jaacute natildeo percebida como imitaccedilatildeordquo (NachlassFP 19[228] - 1872-1874) A radicalizaccedilatildeo se daacute quando pelo uso constante e habitual das designaccedilotildees se esquece da origem metafoacuterica das palavras e cria-se a ilusatildeo de que entre elas e as coisas existe uma conexatildeo mais iacutentima de caraacuteter eminentemente metafiacutesico a crenccedila de que a verdade se apresenta na linguagem Conforme o filoacutesofo descreve em um poacutestumo do veratildeo de 1872 ndash comeccedilo de 1873 ldquoPor lsquoverdadeirorsquo haacute de se entender somente aquilo que usualmente eacute metaacutefora habitual ndash por conseguinte soacute uma ilusatildeo que se fez familiar por um uso frequente e que natildeo eacute percebida como ilusatildeo metaacutefora esquecida quer dizer uma verdade que se esqueceu de que eacute uma metaacuteforardquo (NachlassFP 19 [229] 1872 ndash 1874) Antes aquilo que se denominara verdade se revela afinal ldquoum batalhatildeo moacutevel de metaacuteforas metoniacutemias antropomorfismos enfim uma soma de relaccedilotildees humanas que foram enfatizadas poeacutetica e retoricamente transpostas enfeitadasrdquo (WLVM sect 1)

Ceacutelia Machado Benvenho

81

Como a atividade originaacuteria do homem eacute metafoacuterica o conceito seria somente um produto resultante deste processo pois assim como a metaacutefora o conceito constroacutei similaridades entre duas coisas que natildeo satildeo similares Quando se desconsidera os traccedilos individuais e passa a igualar o desigual por meio de uma ilusatildeo de identidade temos o conceito e assim comeccedila-se o conhecimento Eacute da ldquoigualaccedilatildeo do natildeo-igualrdquo e da ldquodesconsideraccedilatildeo do individual e efetivordquo que nasce o conceito (WLVM sect 1) Razatildeo e conhecimento portanto satildeo ilusotildees criadas a partir do pressuposto da identidade e da estabilidade dos conceitos ldquoNo entanto natildeo haacute uma correspondecircncia com a essecircncia das coisas trata-se de um processo cognitivo que natildeo afeta a essecircncia das coisasrdquo (NachlassFP 1872 ndash 1874 19[236] KSA 7493) ldquoCremos saber algo das coisas mesmas quando falamos de aacutervores cores neve e flores e natildeo possuiacutemos no entanto mais do que metaacuteforas das coisas que natildeo correspondem em absoluto agraves essecircncias primeirasrdquo (WLVM sect 1)

Ao identificar a doxa como base da retoacuterica tornando-a uma caracteriacutestica da proacutepria linguagem Nietzsche quebra com a ilusatildeo de uma linguagem verdadeira e reabilita a linguagem da persuasatildeo enquanto doxa O que de fato eacute importante eacute a persuasatildeo a forccedila originaacuteria que tem um papel essencial em nossa relaccedilatildeo com o mundo e em nossa comunicaccedilatildeo com os demais A linguagem eacute um meio por meio do qual todas as expressotildees satildeo transpostas do individual ao coletivo apesar de toda a subjetividade pressuposta a linguagem atinge um niacutevel de exteriorizaccedilatildeo comum O viacutenculo indissociaacutevel entre pensamento e linguagem permitiu aproximar a retoacuterica da filosofia e evidencia a emergecircncia do pensamento metafoacuterico como forma originaacuteria do conhecimento humano Como diz Guervoacutes (2000 p 54) ldquoSe a metaacutefora estaacute na origem do conceito Nietzsche despreza a relaccedilatildeo metafiacutesica entre linguagem e realidade destronando a soberania conceitual e revelando o caraacuteter metafoacuterico dos conceitosrdquo ou caraacuteter ficcional da linguagem

A concepccedilatildeo retoacuterica de linguagem em Nietzsche

82

Referecircncias bibliograacuteficasCAVALCANTI Anna Hartmann Siacutembolo e alegoria a gecircnese da concepccedilatildeo de linguagem em Nietzsche Satildeo Paulo Annablume Fapesp Rio de Janeiro DAAD 2005CRAWFORD C The beginnings of Nietzschersquos theory of language New York de Gruyter 1998 NIETZSCHE Friedrich Wilhelm Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe (KSA) G Colli e M Montinari (Hg) Berlin Walter de Gruyter 1999 15 Bn _____ Curso de Retoacuterica Traduccedilatildeo Thelma L da Fonseca In Cadernos de Traduccedilatildeo Satildeo Paulo 1999_____ Da retoacuterica Trad Tito Cardoso e Cunha Lisboa Passagens 2002 _____ Escritos sobre retoacuterica Ediccedilatildeo traduccedilatildeo e introduccedilatildeo de Luis Enrique de Santiago Guervoacutes Madrid Editorial Trotta 2000_____ Fragmentos poacutestumos (1869-1874) Trad Luis E de Santiago Guervoacutesv I 2 ed Madrid Tecnos 2010 _____ Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral (Org e Trad Fernando de Moraes Barros) Satildeo Paulo Hedra 2007

Eder David de Freitas Melo

83

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3

Eder David de Freitas Melo1

A tese central do aforismo 3 de ABM eacute a tese da contiguidade entre atividades instintivas e pensamentos conscientes ou seja a tese de que os pensamentos conscientes (ou ao menos a maior parte desse tipo de pensamento) e as atividades instintivas satildeo atividades que operam no mesmo registro ndash corporal ndash e atendem a necessidades de mesma origem quais sejam necessidades de regulaccedilatildeo fisioloacutegica e sobrevivecircncia2

Nesta comunicaccedilatildeo tentaremos mostrar que subjaz de forma velada a essa tese uma perspectiva genealoacutegica de anaacutelise daquele tipo de pensamento Nietzsche explica a relaccedilatildeo entre pensamento consciente e instintos como veremos natildeo pelas suas estruturas e conteuacutedos internos uma certa loacutegica racional daqueles em seus motivos e ldquopor quecircsrdquo ou a falta de razatildeo dos instintos com sua impetuosidade aparentemente cega Antes essa relaccedilatildeo eacute explicada segundo uma certa noccedilatildeo naturalista de praacutexis vital na qual as condiccedilotildees de surgimento e atuaccedilatildeo dos pensamentos conscientes dizem respeito concomitantemente a demandas fisioloacutegicas caracteriacutesticas do humano e necessidades de sobrevivecircncia da espeacutecie Assim Nietzsche contextualizaria histoacuterica e biologicamente as atividades instintivas bem como as atividades de pensamento segundo a pergunta genealoacutegica pela origem e pelas condiccedilotildees de desenvolvimento de algo

Pois bem o primeiro questionamento que colocamos diz respeito agrave possibilidade de se falar de um meacutetodo genealoacutegico em Nietzsche anterior agrave Genealogia da Moral Ora no aforismo 32 de Aleacutem do bem e do mal a criacutetica da moral e sua possibilidade de superaccedilatildeo se configuram a partir de uma genealogia do valor da accedilatildeo e dos modelos de agecircncia Assim ele divide como a accedilatildeo foi inicialmente em um periacuteodo preacute-histoacuterico e preacute-moral entendida e avaliada a partir de suas consequecircncias depois em um periacuteodo moral a partir de sua origemintenccedilatildeo para enfim sugerir que em um periacuteodo extra-moral a accedilatildeo seria valorada diversamente de como se deu anteriormente ou seja a partir daquilo que nela eacute natildeo-intencional isto como decorrecircncia de ldquoum novo auto-escrutiacutenio e aprofundamento do homemrdquo

Concordamos com Paolo Stellino (2015 p 562-565) em seu artigo Self-Knowledge Genealogy Evolution o qual afirma que tambeacutem no aforismo 335 de A Gaia Ciecircncia Nietzsche se serve do meacutetodo genealoacutegico para analisar como nossos juiacutezos morais vem agrave

1 Doutorando em Filosofia Universidade Federal de Goiaacutes2 A bem ver em Nietzsche a regulaccedilatildeo fisioloacutegica natildeo objetiva apenas sobrevivecircncia ou um estado de equiliacutebrio de

bem estar por assim dizer ou saudaacutevel Agraves vezes mesmo o oposto eacute o caso ldquotambeacutem a inutilizaccedilatildeo parcial a atrofia e degeneraccedilatildeo a perda de sentido e propoacutesitordquo e ateacute mesmo a morte estaacute ldquoentre as condiccedilotildees para o verdadeiro progres-sus o qual sempre aparece em forma de vontade e via de maior poderrdquo (NIETZSCHE 2009 p 62) (grifos do autor)

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3

84

existecircncia com sua preacute-histoacuteria em nossos instintos e impulsos em nossas experiecircncias e inexperiecircncias Ademais no proacuteprio prefaacutecio da Genealogia da Moral paraacutegrafo segundo Nietzsche sinaliza que mesmo antes de Humano demasiado humano ele jaacute refletia sobre a moralidade em uma perspectiva sobre a origem desses preconceitos morais ou ainda como coloca no aforismo 2 de Autora que a origem dos valores morais eacute para ele uma questatildeo de primeira ordem a qual direciona para o futuro da humanidade semelhantemente agrave anaacutelise de Aleacutem do bem e do mal 32 onde de um olhar para a origem de algo aventa-se algo para o futuro ou seja a anaacutelise genealoacutegica do valor da accedilatildeo nos periacuteodos preacute-moral e moral desemboca em uma possiacutevel ou talvez desejaacutevel era extra-moral

Pois bem dito isso sobre uma posiccedilatildeo mais abrangente em torno do meacutetodo genealoacutegico vejamos agora o que eacute aventado no aforismo objeto desta comunicaccedilatildeo Seguindo a ordem do texto as principais afirmaccedilotildees que Nietzsche faz resumidamente satildeo

(i) A maior parte do pensamento consciente deve ser contado entre as atividades instintivas

(ii) Inclusive a atividade filosoacutefica deve ser aiacute considerada (iii) Os juiacutezos nos seus variados tipos tem seu valor na medida da importacircncia

reguladora para a fisiologia corporal e natildeo por seu valor de verdade (falsidade ou verdade)(iv) O ser humano natildeo eacute sujeito de determinaccedilatildeo ou indeterminaccedilatildeo da verdadeSegundo interpretamos essas afirmaccedilotildees se organizam em torno da seguinte questatildeo

assumindo que o ser humano natildeo eacute polo de determinaccedilatildeo essencial ou indeterminaccedilatildeo da verdade qual a relaccedilatildeo entre nossos procedimentos mentais conscientes e nossa fisiologia de modo que juiacutezos de valor possam indicar atividades fisioloacutegicas caracteriacutesticas Ou colocando de forma mais breve qual eacute a relaccedilatildeo entre pensamentos conscientes e atividades instintivas em um contexto de indeterminaccedilatildeo do conhecimento da verdade

Comeccedilando a leitura pelo final do aforismo lemos o seguinte

Por exemplo que o determinado tenha mais valor que o indeterminado a aparecircncia menos valor que a ldquoverdaderdquo tais avaliaccedilotildees [Schaumltzungen] poderiam [koumlnnten] natildeo obstante a sua importacircncia reguladora para noacutes ser apenas avaliaccedilotildees-de-fachada [Vordergrunds-Schaumltzungen] um determinado tipo de niaiserie [tolice] tal como pode ser necessaacuterio justamente para a preservaccedilatildeo de seres como noacutes Supondo [Gesetzt] claro que natildeo seja precisamente o homem a ldquomedida de todas as coisasrdquo (NIETZSCHE 2005 p 11) (grifos do autor)

Postular que o homem natildeo eacute a ldquomedida de todas as coisasrdquo negando assim a famosa sentenccedila de Protaacutegoras natildeo coloca a princiacutepio nada de novo na histoacuteria da filosofia Tanto Platatildeo quanto Aristoacuteteles escreveram refutando Protaacutegoras esse conhecido sofista Mas isso claro se deu no acircmbito da epistemologia O debate era entre o relativismo de Protaacutegoras e a defesa filosoacutefica de Platatildeo e Aristoacuteteles em torno do conhecimento verdadeiro

Jaacute Nietzsche desloca a questatildeo da validade do valor de verdade dos juiacutezos sobre a realidade para o ambiente das valoraccedilotildees do grau de importacircncia (ou capacidade reguladora) que algo possui em relaccedilatildeo a noacutes3 ao assumir que o ser humano natildeo possui 3 Como ele escreve no aforismo seguinte ldquoA falsidade de um juiacutezo natildeo chega a constituir para noacutes uma objeccedilatildeo

contra ele [] A questatildeo eacute em que medida ele promove ou conserva a vida conserva ou ateacute mesmo cultiva a espeacutecierdquo (NIETZSCHE 2005 p 11)

Eder David de Freitas Melo

85

nem um criteacuterio objetivo de avaliaccedilatildeo da realidade nem um puramente subjetivo para isso pois ele natildeo eacute a medida do real Assim Nietzsche vai por uma terceira via ele se orienta no registro da questatildeo do valor do quanto algo contribui ou natildeo para preservaccedilatildeo da nossa fisiologia e cultivo do nosso tipo ou seja em torno das estimativas de valor que noacutes seres humanos consciente ou inconscientemente construiacutemos para tornar nossa vida possiacutevel e desejaacutevel

Que a histoacuteria da filosofia seja preenchida pela busca da ldquoverdaderdquo pela possibilidade de estabelecimento da exatidatildeo em suas vaacuterias aacutereas de investigaccedilatildeo isso diz algo da nossa fisiologia dos estados caracteriacutesticos de nossos impulsos Nesse iacutenterim Nietzsche escreve no iniacutecio do aforismo

Depois de por muito tempo ler nos gestos e nas entrelinhas [zwischen die Zeilen und auf die Finger] dos filoacutesofos disse a mim mesmo a maior parte do pensamento consciente [bewussten Denkens] deve [muss] ser incluiacuteda [rechnen] entre [unter] as atividades instintivas ateacute mesmo o pensamento filosoacutefico (NIETZSCHE 2005 p 10)

A primeira sentenccedila dessa citaccedilatildeo enfatiza o cuidado a atenccedilatildeo prolongada na arte de interpretar por nuances Olhar sobre [auf] os dedos de algueacutem eacute prestar atenccedilatildeo nas minuacutecias nos sinais que uma pessoa vela mas que os dedos desvelam mostrando as reais intencionalidades do natildeo dito4 Por intencionalidade buscamos indicar o movimento dos impulsos e afetos constitutivos do humano como um direcionamento de si mesmo em direccedilatildeo e em relaccedilatildeo a algo que lhe seja outro como forccedila configuradora de sentido de perspectiva e natildeo no sentido mais usual de intenccedilatildeo da vontade de um eu de um eu como sujeito autocircnomo5

Nesse sentido Nietzsche chama a atenccedilatildeo nesse trecho para as dinacircmicas sutis da individualidade que levam a determinados valores e conceitos Em A Gaia Ciecircncia aforismo 370 Nietzsche chama esse tipo de movimento interpretativo de ldquoinferecircncia regressivardquo ou seja a inferecircncia ldquoque vai da obra ao autor do ato ao agente do ideal agravequele que dele necessita de todo modo de pensar e valorar agrave necessidade que por traacutes dele comandardquo (2001 p 273) (grifos do autor) Assim tem-se um sinal do princiacutepio genealoacutegico de anaacutelise com respeito agraves condiccedilotildees de surgimento e desenvolvimento ldquode todo modo de pensar e valorarrdquo ao afirmar que haacute necessidades anteriores agraves formas de pensamento e de valoraccedilatildeo necessidades que comandam a emergecircncia deles segundo demandas fisioloacutegicas e histoacutericas como se percebe no todo do aforismo Isso eacute semelhante ao que Nietzsche pontua na Genealogia da moral onde se lecirc ldquocom a necessidade com que uma aacutervore tem seus frutos nascem em noacutes nossas ideias nossos valores nossos sins e natildeos ses e quecircs ndash todos relacionados e relativos uns aos outrosrdquo (2009 p 8) (grifo nosso)

Outra questatildeo que emerge da citaccedilatildeo acima relaciona-se agraves condiccedilotildees de sentido da conclusatildeo nietzscheana qual seja que ldquoa maior parte do pensamento consciente deve ser incluiacuteda entre as atividades instintivasrdquo Para ela ser realmente uma conclusatildeo e natildeo apenas uma convicccedilatildeo disfarccedilada de conclusatildeo haacute de existir algum nexo semacircntico-formal-fisioloacutegico no conjunto de ldquosistemasrdquo que integra a vida humana Ou seja as possibilidades

4 Sobre essa arte da leitura um aprendizado do espiacuterito para a qual necessita-se ser educado Nietzsche escreve no Crepuacutesculo dos Iacutedolos capiacutetulo O que falta aos alematildees sect6 ldquoAprender a ver acostumar os olhos ao repouso agrave paciecircncia habituaacute-los a deixar ver as coisas a localizar o juiacutezo aprender a cercar e envolver o caso concreto Esta eacute a primeira preparaccedilatildeo para educar o espiacuteritordquo (2006 p 60)

5 Encontra-se esse mesmo uso por exemplo em Constacircncio 2015 p 304

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3

86

de configuraccedilatildeo de sentido (semacircntica) as estruturas gramaticais que permitem essa construccedilatildeo (forma) e os estados caracteriacutesticos do conjunto de impulsos que formam o ser humano (fisiologia) em relaccedilatildeo com as caracteriacutesticas do meio em que esse habita (um conjunto de forccedilas em constante relaccedilatildeo agoniacutestica) devem possuir algum tipo de nexo6 A necessidade desse nexo se coloca no mesmo sentido que no aforismo 20 de ABM Nietzsche escreve sobre um certo esquema baacutesico de filosofias possiacuteveis no qual acaba-se por percorrer sempre a mesma oacuterbita servindo-se novamente dos mesmos trilhos ou caminhos [Pfaden] Ou seja haacute que ter certos trilhos que permitem o movimento a ligaccedilatildeo entre as constelaccedilotildees de impulsos e as configuraccedilotildees de sentido Caso contraacuterio natildeo haveria como fazer inferecircncia regressiva aos moldes acima nem ter alguma determinaccedilatildeo de sentido Natildeo seria possiacutevel ir das entrelinhas e dos gestos para as demandas fisioloacutegicas e instintivas de algueacutem nem dispor das condiccedilotildees contextuais e estruturais necessaacuterias para se orientar na interpretaccedilatildeo genealoacutegica e nas configuraccedilotildees de sentido

O conhecido capiacutetulo do Zaratustra intitulado Dos desprezadores do corpo eacute particularmente significativo e provocante no que diz respeito agrave origem ou origens de algumas das demandas que se constituem na emergecircncia daquele nexo semacircntico-formal-fisioloacutegico da praacutexis vital do ser humano Nesse texto Nietzsche delineia importantes distinccedilotildees sobre o corpo como a existecircncia de uma grande e uma pequena razatildeo de um Eu (ou espiacuterito) e um Si-mesmo O Si-mesmo enquanto expressatildeo da totalidade e unidade do corpo identifica-se agrave grande razatildeo O Eu enquanto atividade consciente de um logos ou um espiacuterito identifica-se agrave pequena razatildeo A relaccedilatildeo entre essas duas razotildees se daacute segundo o poder de comando da maior delas comando esse que mostra-se enquanto instacircncia capaz de determinar quais satildeo as necessidades do indiviacuteduo em torno de sua regulaccedilatildeo fisioloacutegica e condiccedilotildees de existecircncia

Os termos ldquopequenardquo e ldquogranderdquo na expressatildeo pequena e grande razatildeo natildeo denotam apenas uma distinccedilatildeo meramente morfoloacutegica entre elas ou seja de que uma seja estruturalmente maior que a outra na qual a menor integra a estrutura da maior A diferenccedila entre a pequena e a grande razatildeo natildeo eacute apenas de ldquotamanhordquo ou em outras palavras de abrangecircncia e estrutura Nos dois termos grande razatildeo e pequena razatildeo o substantivo ldquorazatildeordquo natildeo possui o mesmo significado natildeo denota o mesmo conteuacutedo Se assim o fosse a uacutenica diferenccedila entre a pequena e a grande razatildeo seria que uma eacute grande abrangendo todo o corpo outra pequena abrangendo apenas o que identificamos estritamente como atividade mental

Natildeo obstante isso eacute possiacutevel identificar uma distinccedilatildeo fisioloacutegica entre elas a pequena razatildeo se identifica ao exerciacutecio de um Eu ou seja de uma subjetividade consciente de si contudo consciente tatildeo somente enquanto produto de um agente o Eu o qual natildeo passa de uma ficccedilatildeo e um instrumento da grande razatildeo Esta esse Si-mesmo identifica-se a uma potecircncia plasmadora artiacutestica que se encerra em uma unidade o corpo atraveacutes de uma multiplicidade de impulsos Ela forja o Eu esse simulacro de uma paz enquanto racionalidade e unidade de consciecircncia para ser um instrumento de suas proacuteprias 6 Eacute sugestivo que no conhecido aforismo 23 de ABM o qual encerra o primeiro capiacutetulo desse livro caracterizando a

psicologia como a rainha das ciecircncias e caminho para os problemas fundamentais Nietzsche tambeacutem caracteriza a singularidade da sua psicologia com uma ecircnfase em dois aspectos peculiares a ela quais sejam estudo da estrutura e da atividade dos impulsos Enquanto morfologia Nietzsche sublinha a importacircncia de se investigar uma certa conformaccedilatildeo estrutural dos impulsos e suas expressotildees e enquanto fisiologia (teoria da evoluccedilatildeo da vontade de poder e fisiopsicologia no texto) ele procura colocar em vista o modo de atividade e funcionamento dos impulsos ou seja a importacircncia e as decorrecircncias de se interpretar o humano como uma relaccedilatildeo agoniacutestica e perene entre impulsos como um movimento constante por mais poder

Eder David de Freitas Melo

87

demandas Por isso enquanto os pensamentos conscientes do Eu se datildeo segundo as regras da racionalidade da pequena razatildeo o jogo agoniacutestico de impulsos instintos e afetos do corpo no registro da grande razatildeo possuem seu rigor proacuteprio que ao mesmo tempo cria as exigecircncias de um cogito o Eu sem identificarem ou restringirem suas possibilidades a ele

Nesse sentido aleacutem de uma diferenccedila morfoloacutegica (uma pequena outra grande sendo a pequena um ldquooacutergatildeordquo da grande) haacute tambeacutem uma diferenccedila fisioloacutegica entre essas razotildees Ambas satildeo expressotildees dos impulsos corporais da hierarquia do corpo mas a pequena razatildeo eacute limitada ao exerciacutecio consciente e racional do pensamento o que nem por isso deixa de ser uma das formas de atividade do corpo em seus impulsos instintos e afetos permanecendo assim como atividades contiacuteguas

Como essa relaccedilatildeo se daacute sob as demandas fisioloacutegicas do corpo haacute uma dinacircmica instrumental na qual a grande razatildeo ldquoconhecerdquo melhor as necessidades do indiviacuteduo e transmite essas necessidades ou ao menos parte delas agrave pequena razatildeo Esta com sua melhor sabedoria tem de pensar para prover uma soluccedilatildeo agravequelas demandas Por isso natildeo nos tornamos conscientes por meio de nossos pensamentos e sensaccedilotildees de tudo o que ocorre conosco e ao nosso redor mas apenas daquilo que emerge na superfiacutecie do Eu atraveacutes grande razatildeo segundo uma ldquoheuriacutestica da necessidaderdquo na qual os anseios e necessidades dos nossos impulsos da economia fisioloacutegica de nosso corpo forccedilam o pensamento consciente (pequena razatildeo) em determinada direccedilatildeo forjando e reproduzindo conceitos imprimindo sentido criando e aprendendo valores tornando a vida possiacutevel de determinado modo7 Assim atividades e necessidades fisioloacutegicas em boa medida inconscientes instintivas mas nem por isso desprovidas da unidade e individualidade do corpo levam a juiacutezos de valor conscientes expressos em pensamentos e linguagem mais ou menos determinados

Por isso Nietzsche escreve que

Assim como o ato de nascer natildeo conta [so wenig] no processo e progresso geral da hereditariedade tambeacutem ldquoestar conscienterdquo natildeo [wenig] se opotildee de algum modo decisivo ao que eacute instintivo mdash em sua maior parte o pensamento consciente de um filoacutesofo eacute secretamente guiado e colocado em certas trilhas pelos seus instintos (NIETZSCHE 2005 p 10)

Ora se o ato de pensar eacute direcionado pelos instintos segundo uma hierarquia do corpo enquanto instrumento da grande razatildeo uma anaacutelise do pensamento consciente como ferramenta do processo de sobrevivecircncia e incremento de poder acaba por levar obrigatoriamente em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees fisioloacutegicas e histoacutericas de emergecircncia e direcionamento pelos instintos do ldquotornar-se consciente de sirdquo sem o qual perde-se o sentido da atribuiccedilatildeo de valor como processo de regulaccedilatildeo fisioloacutegica sobrevivecircncia e expansatildeo de vida ou seja perde-se o sentido da praacutexis vital Portanto concluiacutemos que na tese da contiguidade entre atividades instintivas e pensamentos conscientes subjaz a pergunta genealoacutegica pelas condiccedilotildees de emergecircncia dos pensamentos conscientes o que exige pensar em qualquer circunstacircncia sobre as condiccedilotildees bioloacutegicas e histoacutericas de surgimento e ocorrecircncia desse tipo de pensamento o que foi empreendido em sua forma mais completa no corpus nietzscheano no conhecido aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia

7 Sobre a noccedilatildeo de heuriacutestica da necessidade Cf Stegmaier 2010

Uma genealogia do pensamento consciente em ABM sect3

88

Referecircncias bibliograacuteficasBORNEDAL Peter A Silent World Nietzschersquos Radical Realism World Sensation Language Nietzsche-Studien Walter de Gruyter-Berlin-New York v 34 2005 p 1-47CLARK Maudemarie DUDRICK David The soul of Nietzschersquos Beyond good and evil Cambridge Cambridge University Press 2012 CLARK Maudemarie Nietzsche on truth and philosophy Cambridge Cambridge University Press 2002 CONSTAcircNCIO Joatildeo Nietzsche on Decentered Subjectivity or the Existential Crisis of the Modern Subject In CONSTAcircNCIO Joatildeo Branco MARIA J M RYAN Bartholomew (Eds) Nietzsche and the Problem of Subjectivity BerlinBoston de Gruyter 2015 p 279-316 HEIT Helmut Nietzsches Zukunft als Kritiker (Vortragsmanuskript) In Stegmaier W Giacoia O (Orgs) Tagung ldquoNiezsches Zukunftrdquo an der Unicamp Campinas Unicamp 2016 MUumlLLER-LAUTER Wolfgang A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche Trad Oswaldo Giacoia Juacutenior Satildeo Paulo Anna Blumme 1997NIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Aleacutem do bem e do mal Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras [bolso] 2005_____ Crepuacutesculo dos Iacutedolos Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006_____ Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB) BerlinNew York Walter de Gruyter 1967- Disponiacutevel em lthttpwwwnietzschesourceorgeKGWBgt Acesso em 20 out 2017 _____ Genealogia da moral Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras (bolso) 2010 _____ Kritische Studienausgabe [KSA] 15 vol Editado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari Muumlnchen DTV De Gruyter 1988_____ Assim falou Zaratustra Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1983PIPPIN Robert The Expressivist Nietzsche In CONSTAcircNCIO Joatildeo Branco MARIA J M RYAN Bartholomew (Eds) Nietzsche and the Problem of Subjectivity BerlinBoston de Gruyter 2015 p 654-667RICHARDSON John Nietzschersquos Psychology In Abel G Brusotti M Heit H (Eds) Nietzsches Wissenschaftsphilosophie Berlin de Gruyter ndashVerlag 2012 STELLINO Paolo Self-Knowledge Genealogy Evolution In CONSTAcircNCIO Joatildeo Branco MARIA J M RYAN Bartholomew (Eds) Nietzsche and the Problem of Subjectivity BerlinBoston de Gruyter 2015 p 550-573 STEGMAIER Werner O pessimismo dionisiacuteaco de Nietzsche interpretaccedilatildeo contextual do aforismo 370 drsquoA Gaia Ciecircncia Trad Jorge L Viesenteiner Revista Estudos Nietzsche v 1 n 1 p 35-60 2010

Estevatildeo Bocalon

89

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent1

Estevatildeo Bocalon2

O presente trabalho versa sobre a noccedilatildeo de fisiopsicologia elaborada pelo filoacutesofo alematildeo Friedrich Nietzsche (1844-1900) e demonstrada a partir das criacuteticas desferidas contra o compositor conterracircneo Richard Wagner (1813-1883) A fisiopsicologia seraacute entendida aqui segundo o sentido desenvolvido por Nietzsche em Aleacutem do Bem e do Mal sect23 ldquomorfologia e doutrina do desenvolvimento [Entwicklungslehre] da vontade de potecircnciardquo Eacute com esse sentido de fisiopsicologia em mente que se realizaraacute a constituiccedilatildeo de um tipo que opera como expressatildeo maacutexima da deacutecadence na cultura alematilde moderna o tipo Wagner enquanto artista da deacutecadence Dito isso o foco principal dessa investigaccedilatildeo seraacute nas obras da maturidade filosoacutefica de Nietzsche principalmente O Caso Wagner (1888) e Ecce Homo (1888) embora em virtude do tema proposto seja necessaacuterio recorrer agrave outras obras do mesmo periacuteodo de produccedilatildeo filosoacutefica O problema nisso eacute a ausecircncia desse termo (fisiopsicologia) na obra O Caso Wagner na qual o pensador alematildeo tece os principais elementos da deacutecadence na produccedilatildeo artiacutestica de Wagner Ora eacute justamente pela noccedilatildeo de deacutecadence desenvolvida na obra citada acima que eacute possiacutevel identificar tambeacutem a fisiopsicologia Para aleacutem disso ressalta-se um paralelo entre indiviacuteduo e cultura devidamente apontado por Nietzsche por tomar Wagner como a personificaccedilatildeo da deacutecadence na cultura alematilde moderna O compositor eacute tomado como uma ldquolente de aumentordquo que permite analisar a cultura alematilde em sua eacutepoca

Em primeira instacircncia para compreender como se daacute a construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent como dito anteriormente eacute preciso atentar para o fato de que a anaacutelise fisiopsicoloacutegica resulta em um diagnoacutestico Trata-se de uma investigaccedilatildeo que remete a origem de toda produccedilatildeo intelectual e artiacutestica de um organismo e ateacute mesmo de uma cultura Conforme apontado pelo autor essas produccedilotildees satildeo sintomas de uma dinacircmica impulsional em um dado organismo e de forma semelhante ocorre em uma cultura Eacute importante salientar que uma dinacircmica impulsional natildeo eacute constituida apenas por processos bioloacutegicos visto que natildeo satildeo somente impulsos orgacircnicos pois esta possui resultantes natildeo-orgacircnicas como a arte filosofia ciecircncia etc Portanto essas forccedilas ocorrem tambeacutem nas produccedilotildees culturais

Como alvo da investigaccedilatildeo fisiopsicoloacutegica estaacute propriamente a dinacircmica impulsional engendrada pela vontade de potecircncia Ou seja a primeira eacute expressatildeo da

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001

2 Mestrando em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute ndash UNIOESTE Bolsista CAPES

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo

90

segunda pois a vontade de potecircncia de forma breve constitui-se de uma constante luta entre impulsos por mais potecircncia Para tal investigaccedilatildeo eacute necessaacuterio atentar-se para os sintomas expressos em uma produccedilatildeo artiacutestica ou cultura Acerca da produccedilatildeo artiacutestica eacute somente atraveacutes dela que se realiza um diagnoacutestico do artista e natildeo ao contraacuterio Eacute a obra que possibilita investigar a dinacircmica impulsional do artista natildeo se pode inferir isso a partir do artista mesmo A partir disso Nietzsche em primeiro lugar investiga qual a relaccedilatildeo que essa produccedilatildeo estabelece com a vida e entatildeo caracteriza a dinacircmica impulsional expressa como sadia ou doente

Adiante tambeacutem eacute possiacutevel perceber se haacute potencializaccedilatildeo ou natildeo da vontade em uma determinada dinacircmica De forma mais clara ldquoSe o conjunto de impulsos for bem hierarquizado ou potente ele eacute saudaacutevel se for desorganizado ou anaacuterquico e despotencializado ele eacute moacuterbidordquo (FREZZATTI 2016 p236) Um conjunto de impulsos saudaacutevel caracteriza-se por expressar afirmaccedilatildeo da vida haacute uma confluecircncia com o devir mundano e a finitude inerente a existecircncia Por outro lado negar esse fluxo contiacutenuo negar o proacuteprio estatuto efecircmero da vida fixando e valorando com conceitos eternos e absolutos o mundo na medida que este vem a ser satildeo sintomas de uma configuraccedilatildeo de impulsos despotencializada sem hierarquia Eis o criteacuterio para a realizaccedilatildeo de tal diagnoacutestico a vida Eacute desse modo que Nietzsche analisa a produccedilatildeo artiacutestica de Wagner em sua obra O Caso Wagner como seraacute visto mais adiante

Uma vez que alguns dos pressupostos da fisiopsicologia foram esclarecidos faz-se necessaacuterio explicitar o entendimento nietzschiano sobre a vida o criteacuterio que permite avaliar a configuraccedilatildeo de impulsos em um dado organismo ou em uma cultura tal como o faz com o compositor alematildeo (Wagner) e a cultura alematilde A vida pode ser compreendida no contexto da vontade de potecircncia como um contiacutenuo processo de autossuperaccedilatildeo Acrescenta-se com isso ainda que a vida natildeo possui uma finalidade especiacutefica um objetivo a ser cumprido eacute pura e simplesmente busca por superar a si mesma Posto isso eacute possiacutevel identificar alguns aspectos sobre a relaccedilatildeo que as produccedilotildees intelectuais e artiacutesticas estabelecem com a vida ou ainda sobre a valoraccedilatildeo moral sobre esta realizada pelos homens enquanto sintoma de uma dinacircmica impulsional Isto se deve ao fato de que ldquoAo falar de valores falamos sob a inspiraccedilatildeo sob a oacutetica da vida a vida mesma nos forccedila a estabelecer valores ela mesma valora atraveacutes de noacutes ao estabelecermos valoresrdquo (NIETZSCHE 2006 p 30) Nesta passagem podemos identificar que a valoraccedilatildeo moral da vida eacute manifestaccedilatildeo de um sintoma valoraccedilatildeo esta que eacute resultante de uma dinacircmica impulsional mas que ela mesma a vida natildeo possui valor moral algum Eacute o homem que estabelece valores acerca da vida

A vida sendo o criteacuterio para realizar um diagnoacutestico atraveacutes da fisiopsicologia natildeo pode ser moralmente valorada Desta forma toda valoraccedilatildeo atribuiacuteda agrave vida eacute ilusoacuteria perene ou ainda um sintoma Em outras palavras

[] esses mais saacutebios dos homens em alguma coisa coincidiam fisiologicamente para situar-se ndash ter de situar-se ndash negativamente perante a vida Juiacutezos juiacutezos de valor acerca da vida contra ou a favor nunca podem ser verdadeiros afinal eles tecircm valor apenas como sintomas satildeo considerados apenas como sintomas [] o valor da vida natildeo pode ser estimado Natildeo por um vivente pois ele eacute parte interessada ateacute mesmo objeto da disputa e natildeo juiz e natildeo por um morto por um outro motivo (NIETZSCHE 2006 p 14-15)

Estevatildeo Bocalon

91

Quando o homem exerce qualquer valoraccedilatildeo da vida este manifesta um sintoma de sua configuraccedilatildeo de impulsos mas que natildeo fazem jus a vida mesma mas antes apenas a proacutepria configuraccedilatildeo de impulsos nele presente

Eacute possiacutevel identificar a partir do que foi dito ateacute aqui que a fisiopsicologia (componente da noccedilatildeo de fisiologia propriamente nietzschiana) busca realizar um retorno as origens das produccedilotildees artiacutesticas e culturais tendo como pano de fundo a vontade de potecircncia uma dinacircmica impulsional e por fim a vida mesma Eacute por isso que tanto uma produccedilatildeo artiacutestica quanto uma cultura que simboliza uma reuniatildeo dessas produccedilotildees artiacutesticas e da moralidade desenvolvida por uma tradiccedilatildeo podem ser investigadas a partir da fisiopsicologia

Em seus escritos Nietzsche realiza uma anaacutelise fisiopsicoloacutegica de diversas culturas como a civilizaccedilatildeo grega romana a cultura francesa entre outras Cada uma delas enquanto expressotildees de uma ou mais configuraccedilotildees de impulsos Pode-se perceber ainda que ldquoa concepccedilatildeo de corpo passa a ter um papel fundamental para entendermos a culturardquo (FREZZATTI 2004 p118) ressaltando assim a importacircncia dos estudos fisioloacutegicos realizados pelo autor A cultura eacute entatildeo entendida como expressatildeo da condiccedilatildeo humana Essa expressatildeo se daacute pela produccedilatildeo cultural de um povo caracterizando um grau de complexidade maior de uma dinacircmica impulsional mais complexa do que a que se daacute no homem A cultura eacute desse modo supra-orgacircnica resultante das produccedilotildees culturais realizadas pelo homem que podem tambeacutem ser decadentes ou sadias Elevar a condiccedilatildeo do homem para que possibilite o surgimento de povos com cultura mais elevada configura uma das preocupaccedilotildees axiais no pensamento nietzschiano

O surgimento do grande homem ou gecircnio eacute importante pois este eacute capaz de criar novas culturas e novos valores Mas tambeacutem ocorre de levar a cultura a deacutecadence como seraacute visto a respeito do tipo Wagner deacutecadent que surgiu como resultante da cultura alematilde decadente segundo Nietzsche Diante disso pode-se agora investigar como a deacutecadence manifesta-se atraveacutes do tipo Wagner delineado por Nietzsche

Segundo a concepccedilatildeo de fisiopsicologia de Nietzsche tem-se as produccedilotildees intelectuais e artiacutesticas como capazes de oferecer um vieacutes interpretativo e metafoacuterico acerca do mundo e da vida Como vimos uma produccedilatildeo artiacutestica pode ser um sintoma da disposiccedilatildeo dos impulsos moacuterbida no caso de fomentar em uma visatildeo negativa da vida pessimista ou sadia caso afirme a vida e o constante devir mundano Quando ocorre de uma interpretaccedilatildeo ser moacuterbida quando expressa uma relaccedilatildeo de negaccedilatildeo com a vida isso quer dizer que a dinacircmica impulsional manifesta eacute deacutecadent Pois em uma dinacircmica impulsional assim os impulsos encontram-se com baixo grau de hierarquia provocando uma fragmentaccedilatildeo e enfraquecimento dessa um decliacutenio Isto leva o homem a procurar valores fixos e absolutos como ponto de apoio que nega o constante devir mundano a mutabilidade dos valores e a vida mesma Um exemplo de uma interpretaccedilatildeo de mundo moacuterbida eacute a metafiacutesica tradicional que pensa o mundo pautado em uma dualidade de conceitos transcendentes e absolutos (um mundo ideal e um aparente)

Quarta tese Dividir o mundo em um ldquoverdadeirordquo e um ldquoaparenterdquo seja agrave maneira do cristianismo seja agrave maneira de Kant (um cristatildeo insidioso afinal de contas) eacute apenas uma sugestatildeo da deacutecadence ndash um sintoma da vida que declina O fato de o artista estimar a aparecircncia mais que a realidade natildeo eacute objeccedilatildeo a essa tese Pois ldquoa aparecircnciardquo significa neste

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo

92

caso novamente a realidade mas numa seleccedilatildeo correccedilatildeo reforccedilo (NIETZSCHE 2006 p 24 grifos do autor)

Como visto do mesmo modo eacute possiacutevel proceder a partir da arte para se estabelecer uma compreensatildeo do que eacute o artista tambeacutem de forma orgacircnica psicoloacutegica e bioloacutegica para entatildeo reconhececirc-lo em uma eacutepoca Pois mesmo que um artista tenha preferecircncia para a aparecircncia trata-se de uma adaptaccedilatildeo de realidade sintomas de uma dinacircmica impulsional Assim ocorre com as anaacutelises de Nietzsche sobre o compositor Richard Wagner Em O Caso Wagner lecirc-se ldquo[] a esteacutetica se acha indissoluvelmente ligada a esses pressupostos bioloacutegicosrdquo (NIETZSCHE 1999 p 42) Nietzsche assim leva agrave cabo a ligaccedilatildeo entre a fisiologia e a vontade de potecircncia e eacute desse modo que Wagner seraacute caracterizado nessa obra (O Caso Wagner) Natildeo eacute apenas o compositor Wagner que eacute assim analisado mas tambeacutem o periacuteodo moderno na Alemanha dessa eacutepoca Eis aqui um indiacutecio da fisiopsicologia presente nessa obra

A partir do que foi exposto eacute preciso que se defina o que eacute a Deacutecadence para Nietzsche O conceito de deacutecadence eacute em certa medida utilizado por Nietzsche atraveacutes das leituras do romancista francecircs Paul Bourget3 (1852-1935) Eacute a partir da formulaccedilatildeo desse conceito por Bourget que Nietzsche avalia as mais variadas produccedilotildees artiacutesticas de sua eacutepoca Assim como para Bourget segundo o pensador alematildeo a deacutecadence se manifesta nos escritos literaacuterios mas natildeo somente nisso tambeacutem na muacutesica no teatro nas oacuteperas e ateacute mesmo na moral Ou seja

No momento me deterei apenas na questatildeo do estilo ndash Como se caracteriza toda deacutecadence literaacuteria Pelo fato de a vida natildeo mais habitar o todo A palavra se torna soberana e pula fora da frase a frase transborda e obscurece o sentido da paacutegina a paacutegina ganha vida em detrimento do todo ndash o todo jaacute natildeo eacute um todo Mas isto eacute uma imagem para todo estilo da deacutecadence a cada vez anarquia dos aacutetomos desagregaccedilatildeo da vontade ldquoliberdade individualrdquo em termos morais (NIETZSCHE 1999 p 23 grifos do autor)

Eacute dessa forma segundo a definiccedilatildeo de deacutecadence que ocorre tambeacutem com a dinacircmica impulsional expressada pelo compositor alematildeo diagnosticada como enfraquecida Os impulsos que se encontram de forma desorganizada perdem potecircncia e fragmentam-se e isso acarreta em uma obra que representa essa configuraccedilatildeo doente Em suma a obra eacute expressatildeo de uma ou mais configuraccedilotildees de impulsos presentes no artista Por isso eacute que eacute possiacutevel uma avaliaccedilatildeo fisiopsicoloacutegica atraveacutes da arte da produccedilatildeo artiacutestica A deacutecadence aparece como indissociavelmente ligada agrave fisiopsicologia e tambeacutem agrave vontade de potecircncia Posto isso passa-se a identificar os elementos da fisiopsicologia contidos na obra O Caso Wagner

Na obra em supracitada Richard Wagner eacute tomado como uma ldquolente de aumentordquo que eacute utilizada para avaliar toda a cultura e arte alematilde de sua eacutepoca Nietzsche relaciona o decliacutenio da arte em geral em consonacircncia com o decliacutenio do artista (em consequecircncia a cultura alematilde dessa eacutepoca) Desta forma

Um decliacutenio de caraacuteter poderia talvez ser expresso provisoriamente com esta foacutermula o muacutesico agora se faz ator sua arte se transforma cada

3 A obra de Paul Bourget que influenciou o pensamento nietzschiano acerca da deacutecadence eacute especificamente Essais de Psychologie Contemporaine de 1883

Estevatildeo Bocalon

93

vez mais num talento para mentir [] essa metamorfose geral da arte em histrionismo eacute uma expressatildeo de degenerescecircncia fisioloacutegica (mais precisamente uma forma de histerismo) tanto quanto cada corrupccedilatildeo e fraqueza da arte inaugurada por Wagner por exemplo a instabilidade da sua oacutetica que obriga (a todo instante) a mudar de posiccedilatildeo diante dela Nada se compreende de Wagner ao distinguir nele apenas um arbitraacuterio jogo da natureza um capricho e um acaso Ele natildeo era um gecircnio ldquoincompletordquo ldquodesafortunadordquo ldquocontraditoacuteriordquo como jaacute foi dito Wagner era algo perfeito um tiacutepico deacutecadent no qual natildeo haacute ldquolivre-arbiacutetriordquo cada feiccedilatildeo tem sua necessidade (NIETZSCHE 1999 p 22-23 grifos do autor)

Para melhor entender como a deacutecadence afeta a arte e principalmente a obra de Wagner pode-se observar como que para impelir um sentimento entusiasmado de sua produccedilatildeo artiacutestica no espectador o compositor faz uso das danccedilas teatrais do drama exacerbado (histrionismo) das gesticulaccedilotildees desmedidas das minimidades cotidianas ou seja a trivialidade da vida particular em detrimento do todo Aleacutem disso haacute tambeacutem a presenccedila de ideais aceacuteticos nas suas obras Muacutesicas que provocam histeria para ldquoexcitar nervos cansadosrdquo Fica mais clara assim a relaccedilatildeo entre fisiopsicologia com a noccedilatildeo de decaacutedence pois a mesma eacute constituiacuteda por uma configuraccedilatildeo de forccedilas desorganizada na qual as partes ganham mais importacircncia que o todo

Apesar das criacuteticas nietzschianas serem direcionadas especificamente agraves obras de Wagner os atributos nelas percebidos satildeo sintomas presentes na modernidade Nietzsche evidencia que o compositor em questatildeo eacute a personificaccedilatildeo da doenccedila que aflige a sua eacutepoca e mais ainda foi responsabilidade dele acelerar este adoecimento ao qual a modernidade estaria fadada Aleacutem disso segundo o pensador alematildeo

Wagner eacute uma grande corrupccedilatildeo para a muacutesica Ele percebeu nela um meio para excitar nervos cansados ndash com isso tornou a muacutesica doente Natildeo eacute pouco seu taleno na arte de aguilhoar os totalmente exaustos de chamar agrave vida os semimortos Ele eacute o mestre do passe hipnoacutetico mesmo os mais fortes ele derruba como touros O sucesso de Wagner ndash seu sucesso junto ao nervos e em consequencia junto agraves mulheres ndash transformou o mundo dos muacutesicos ambiciosos em seguidores da sua arte oculta E natildeo soacute os ambiciosos tambem os sagazes Hoje se faz dinheiro apenas com muacutesica doente nossos grandes teatros vivem de Wagner (NIETZSCHE 1999 p 19-20 grifos do autor)

Justifica-se dessa forma as mais variadas produccedilotildees artiacutesticas da eacutepoca todas apresentando caracteriacutesticas em comum a frieza mercantilista com que a arte eacute produzida os ideais asceacuteticos peccedilas demasiadamente dramaacuteticas e de cunho apelativo Satildeo estas caracteriacutesticas todas encontradas na obra de Wagner que Nietzsche considera danoso doente

Minhas objeccedilotildees agrave muacutesica de Wagner satildeo fisioloacutegicas por que disfarccedila-las em foacutermulas esteacuteticas Afinal a esteacutetica natildeo passa de fisiologia aplicada ndash meu ldquofatordquo meu ldquopetit fait vrai [pequeno fato verdadeiro]rdquo eacute que jaacute natildeo consigo respirar direito quando essa muacutesica me atinge logo meu peacute se irrita com ela e se revolta ele necessita de compasso danccedila marcha [] Wagner torna doente (NIETZSCHE 1999 p 50 grifos do autor)

A tipologia nietzschiana A construccedilatildeo

94

Conforme se viu ateacute aqui a deacutecadence assolou a arte moderna na Alemanha Eacute o que se confirma pelo proacuteprio autor em Ecce Homo a respeito de servir-se de Wagner como ldquolente de aumentordquo como dito anteriormente na seguinte passagem ldquoTerceiro nunca ataco pessoas ndash sirvo-me da pessoa como uma forte lente de aumento com que se pode tornar visiacutevel um estado de miseacuteria geral poreacutem dissimulado pouco palpaacutevel [] Assim ataquei Wagnerrdquo (NIETZSCHE 1995 p 30) Com isso pode-se confirmar que a construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent natildeo se trata de um ataque pessoal em primeira instacircncia Eacute antes uma anaacutelise das suas obras com vistas aos valores nelas expressos

Assim se configura um tipo para a filosofia de Nietzsche que serve como exemplo do que ocorre com a cultura em geral um padratildeo Esse modus operandi que aparece nas obras de Wagner configuram a construccedilatildeo de um tipo deacutecadent com todas as caracteriacutesticas apontadas por Nietzsche Seguindo esses pressupostos pode-se notar que a fisiopsicologia leva em consideraccedilatildeo sua correspondecircncia com a vontade de potecircncia As interpretaccedilotildees realizadas por Wagner satildeo resultantes de sua dinacircmica impulsional que como visto nos paraacutegrafos anteriores preconizam e reforccedilam uma vez mais os valores e ideais metafiacutesicos que influenciaram o compositor Trata-se de um reflexo de suas vivecircncias interpretadas a partir de valores metafiacutesicos (como o ideais asceacuteticos de redenccedilatildeo)

Desse modo Wagner eacute um sedutor em grande estilo Nada existe de cansado de caduco de vitalmente perigoso e de caluniador do mundo entre as coisas do espiacuterito que a sua arte natildeo tenha secretamente tomado em proteccedilatildeo [] Ele incensa todo instinto niilista (- budista) e o transveste em muacutesica ele incensa todo o cristianismo toda a forma de expressatildeo religiosa da deacutecadence Abram seus olhos tudo o que jamais cresceu no solo da vida empobrecida toda a falsificaccedilatildeo que eacute a transcendecircncia e o Aleacutem tem na arte de Wagner o seu mais sublime advogado (NIETZSCHE 1999 p 36 grifos do autor)

Uma vez mais identifica-se o processo constitutivo desse tipo a partir de uma configuraccedilatildeo de impulsos moacuterbida onde haacute enfraquecimento de potecircncia as manifestaccedilotildees dessa configuraccedilatildeo nas produccedilotildees artiacutesticas de Wagner resultam em uma interpretaccedilatildeo de mundo empobrecida devido aos ideais metafiacutesicos cristatildeos expressos em sua obra Eacute assim que a construccedilatildeo do tipo Wagner deacutecadent desenvolveu-se a partir da investigaccedilatildeo de Nietzsche acerca das obras do compositor alematildeo O que somente foi possiacutevel ao fazer uso da anaacutelise fisiopsicoloacutegica mesmo que esta noccedilatildeo natildeo apareccedila em uma definiccedilatildeo precisa em O Caso Wagner

Estevatildeo Bocalon

95

Referecircncias bibliograacuteficasFREZZATTI Jr W A A fisiologia de Nietzsche a Superaccedilatildeo da Dualidade CulturaBiologia Ijuiacute Unijuiacute 2006_____ Verbete ldquoFisiopsicologiardquo In GEN Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo GEN Loyola 2016 p 236-238MUumlLLER-LAUTER W A doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche Traduccedilatildeo de Oswaldo Giacoia Junior Satildeo Paulo Annablume 1997_____ Deacutecadence artiacutestica enquanto deacutecadence fisioloacutegica A propoacutesito da criacutetica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner Traduccedilatildeo de Scarlett Marton Cadernos Nietzsche Satildeo Paulo n6 p 11-30 1999MARTON S Verbete ldquoVontade de Potecircnciardquo In GEN Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo GEN Loyola 2016 p 423-425NIETZSCHE F W Aleacutem do Bem e do Mal Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005_____ Ecce Homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008_____ Genealogia da Moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Assim falou Zaratustra Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Compainha das Letras 2011_____ A Gaia Ciecircncia Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2012_____ O caso Wagner Nietzsche contra Wagner Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2016_____ Crepuacutesculo dos Iacutedolos Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Compainha das Letras 2017

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

96

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise sobre a criacutetica de Nietzsche em humano demasiado humano

Gracy Kelly Bourscheid1

A histoacuteria dos sentimentos moraisA abordagem criacutetica de Nietzsche acerca da moral em Humano demasiado humano

I (1878) tem seu ponto de partida na ecircnfase sobre o papel da histoacuteria na observaccedilatildeo de que a maioria dos erros cometidos pelos filoacutesofos decorre da falta de anaacutelises sobre os aspectos histoacutericos da moralidade ldquofalta de sentido histoacuterico eacute o defeito hereditaacuterio de todos os filoacutesofosrdquo (MAIHHI sect2) Opondo-se ao modo de investigaccedilatildeo que se baseia em verdades eternas o filoacutesofo indica que as crenccedilas morais devem ser analisadas a partir de seu surgimento histoacuterico

Todos os filoacutesofos tecircm em comum o defeito de partir do homem atual e acreditar que analisando-o alcanccedilam seu objetivo Involuntariamente imaginam ldquoo homemrdquo como uma aeterna veritas [verdade eterna] como uma constante em todo o redemoinho uma medida segura das coisas Mas tudo o que o filoacutesofo declara sobre o homem no fundo natildeo passa de testemunho sobre o homem de um espaccedilo de tempo bem limitado (MAIHHI sect2)

Observando o homem de nosso tempo percebemos as caracteriacutesticas morais culturais religiosas poliacuteticas que se manifestam socialmente Sabemos entretanto que tais particularidades natildeo nos servem como chave de compreensatildeo sobre a humanidade O ponto de divergecircncia de Nietzsche em relaccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo de alguns filoacutesofos decorre do modo como estes cristalizaram caracteriacutesticas morais histoacutericas em fatos eternos A anaacutelise de uma manifestaccedilatildeo social de compaixatildeo para com algueacutem que sofre de dores intensas por exemplo natildeo pode ser determinante na visatildeo do filoacutesofo para que se considere que algueacutem efetivamente sofra diante da dor alheia

Nietzsche observa que as manifestaccedilotildees do homem satildeo histoacutericas dentro de um espaccedilo de tempo bem limitado emanam de interesses especiacuteficos e natildeo podem portanto ser consideradas como medida para a anaacutelise de todos os homens ldquoTudo veio a ser natildeo existem fatos eternos assim como natildeo existem verdades absolutas ndash Portanto o filosofar histoacuterico eacute doravante necessaacuteriordquo (MAIHHI sect2) A histoacuteria eacute vista desse modo como um importante instrumento para tomar a moral como um problema para investigaacute-la a partir de suas manifestaccedilotildees efetivas Para que seja possiacutevel uma anaacutelise sobre o surgimento da

1 Mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Paranaacute turma 2017-2019

Gracy Kelly Bourscheid

97

moralidade Nietzsche recorre aos aspectos histoacutericos que determinam como os sentimentos morais surgiram e de que modo foram transmitidos

Nietzsche considera que atraveacutes da observaccedilatildeo histoacuterica eacute possiacutevel constatar que certos conceitos e virtudes morais natildeo existem efetivamente Isso ocorre quando analisamos cuidadosamente as accedilotildees ditas altruiacutestas e tambeacutem as desinteressadas Para o filoacutesofo a exaltaccedilatildeo de tais accedilotildees vistas como virtudes eacute fruto de um exagero decorrente de crenccedilas populares e concepccedilotildees metafiacutesicas Tambeacutem os conceitos opostos e bem delineados tais como bem e mal altruiacutesmo e egoiacutesmo culpa e inocecircncia salvaccedilatildeo e danaccedilatildeo satildeo considerados como contraposiccedilotildees que para o filoacutesofo soacute fazem sentido para as especulaccedilotildees metafiacutesicas e religiosas A negaccedilatildeo de dualidades fixas e eternas se configura atraveacutes do pensamento de que todas as coisas em efetividade satildeo dinacircmicas estatildeo em constante mudanccedila As coisas humanas natildeo devem portanto ser vistas a partir de crenccedilas em verdades eternas mas sim como configuraccedilotildees que estatildeo num processo contiacutenuo de transformaccedilotildees

A filosofia histoacuterica que natildeo se pode mais conceber como distinta da ciecircncia natural o mais novo dos meacutetodos filosoacuteficos constatou em certos casos (e provavelmente chegaraacute ao mesmo resultado em todos eles) que natildeo haacute opostos salvo no exagero habitual da concepccedilatildeo popular ou metafiacutesica e que na base dessa contraposiccedilatildeo estaacute um erro da razatildeo conforme sua explicaccedilatildeo a rigor natildeo existe accedilatildeo altruiacutesta nem contemplaccedilatildeo totalmente desinteressada ambas satildeo apenas sublimaccedilotildees em que o elemento baacutesico parece ter se volatizado e somente se revela agrave observaccedilatildeo mais aguda (MAIHHI sect1)

Na consideraccedilatildeo de Nietzsche as explicaccedilotildees morais sobre as accedilotildees consideradas altruiacutestas representam um erro comum a muitos filoacutesofos que consideram as manifestaccedilotildees ditas altruiacutestas como se fossem um bem em si Sobre o sentimento altruiacutesta o filoacutesofo se distancia tambeacutem do pensamento de seu amigo e interlocutor Paul Reacutee Em concordacircncia com Nietzsche o pensador Paul Reacutee tambeacutem se opotildee agraves certezas metafiacutesicas e agraves especulaccedilotildees sobre o homem a partir de conceitos absolutos2 ldquoa essecircncia de todo sentimento soacute eacute clara uma vez que a histoacuteria de seu surgimento eacute clarardquo (REacuteE 2018 p50) Nietzsche reconhece a contribuiccedilatildeo das observaccedilotildees psicoloacutegicas de Reacutee em contraposiccedilatildeo agraves especulaccedilotildees metafiacutesicas Mas a sua abordagem acerca do altruiacutesmo natildeo eacute conciliaacutevel agraves perspectivas sobre os sentimentos morais do filoacutesofo alematildeo Analisando as manifestaccedilotildees de sentimentos altruiacutestas e egoiacutestas Reacutee os toma como instintos naturais do homem ldquotodo homem traz em si dois instintos ou seja o egoiacutesta e o altruiacutestardquo (REacuteE 2018 p 45) Essa consideraccedilatildeo se choca com a convicccedilatildeo nietzschiana de que o homem natildeo possui nenhuma caracteriacutestica moral em sua constituiccedilatildeo Enquanto Nietzsche considera todos os aspectos morais incluindo altruiacutesmo e egoiacutesmo como meras manifestaccedilotildees pontuais transformadas

2 Em suas anaacutelises sobre a moralidade nos escritos de A origem dos sentimentos morais Paul Reacutee recusa as convicccedilotildees metafiacutesicas da imortalidade da alma da existecircncia e da bondade de Deus da liberdade da vontade humana e observa que a feacute na imortalidade da alma e numa possiacutevel retaliaccedilatildeo eterna aos autores das maacutes accedilotildees pode explicar algumas accedilotildees morais ldquoos selvagens acreditam que o que eles sonham de fato ocorre na vida por exemplo acreditam realmen-te ter visitado uma pessoa que eles visitaram no sonho Mas tendo em vista que seu corpo natildeo deixou o lugar que ocupava como eles notam no despertar e como eacute confirmado por outras pessoas entatildeo uma coisa separada do corpo deve ter empreendido aquela viagem Na morte a alma se desprende totalmente do corpo assim como no sono ela se separa temporariamente dele Desse modo pocircde surgir a crenccedila numa retaliaccedilatildeo depois da morte Que os teoacutelogos ainda hoje acreditem nela pode ser explicado pelo fato de que eles raramente se preocupam em provar aquilo que foi aceito como vaacutelido em sua igreja Natildeo faz parte da natureza humana como ela habitualmente eacute arriscar a paz de espiacuterito (que deve ser muito grande numa feacute cega) por causa de um conhecimento inexoraacutevel da verdade ou colocar seu emprego e seu salaacuterio em jogo por causa da profissatildeo de feacute na verdaderdquo (REacuteE 2018 p 97-98)

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

98

em virtudes ou viacutecios Reacutee toma o egoiacutesmo e o altruiacutesmo como caracteriacutesticas efetivas da natureza humana ldquoPor causa do instinto altruiacutesta o homem faz do bem-estar dos outros em funccedilatildeo deles mesmos o fim uacuteltimo de sua accedilatildeo seja para auxiliar no bem-estar deles seja para lhes evitar o danordquo (REacuteE 2018 p 46) Considerando o altruiacutesmo como um instinto natural Reacutee buscou nas manifestaccedilotildees afetivas dos reconhecidos altruiacutestas e compassivos uma chave para a explicaccedilatildeo de sua tese As accedilotildees visando o bem do proacuteximo ou a evitar um sofrimento aparente convenceram o pensador de que haacute no homem um instinto altruiacutesta natural

Natildeo sentimos dor apenas quando experimentamos a dor alheia mas eacute o fato do sofrimento alheio que nos doacutei noacutes sentimos de forma altruiacutesta [] Quando o compassivo ajuda o sofredor isso acontece para aliviar o sofrimento alheio ele ajuda o outro em funccedilatildeo do outro natildeo em funccedilatildeo de si mesmo por exemplo a matildee age exclusivamente para livrar o filho da dor em funccedilatildeo do filho portanto e natildeo em funccedilatildeo de si mesma A observaccedilatildeo (sobretudo a auto-observaccedilatildeo) pode ensinar que essas accedilotildees altruiacutestas realmente existem (REacuteE 2018 p 46-47)

Na perspectiva de Reacutee o homem natildeo soacute se compadece diante do sofrimento alheio como tambeacutem age no sentido de livrar o proacuteximo do sentimento danoso Nietzsche discorda completamente desta concepccedilatildeo Para o filoacutesofo alematildeo natildeo existem accedilotildees altruiacutestas e as manifestaccedilotildees de compaixatildeo satildeo meras representaccedilotildees com um interesse especiacutefico de causar uma boa impressatildeo social observa que ldquoa sede de compaixatildeo eacute uma sede de gozo de si mesmordquo (MAIHHI sect50) Nesse caso a avaliaccedilatildeo eacute de que toda accedilatildeo considerada moralmente como desinteressada e altruiacutesta possui alguma caracteriacutestica interesseira seja a sensaccedilatildeo de bem estar ao ser engrandecido socialmente ou de algum outro interesse pessoal Seja como for o filoacutesofo afirma ldquonum exame rigoroso o conceito de lsquoaccedilatildeo altruiacutestarsquo se pulveriza no ar Jamais um homem fez algo apenas para outros e sem qualquer motivo pessoalrdquo (MAIHHI sect133) Haacute para Nietzsche algum interesse especiacutefico em toda accedilatildeo aparentemente altruiacutesta As manifestaccedilotildees morais satildeo portanto evidentes marcas do desejo pessoal de suscitar algum reconhecimento social Nietzsche pontua que as accedilotildees consideradas virtuosas natildeo passam de impressotildees manipuladas por atores com interesses especiacuteficos de comover a sua plateacuteia

Mesmo na dor mais profunda o ator natildeo pode deixar de pensar na impressatildeo produzida por sua pessoa e por todo o efeito cecircnico ateacute no enterro de seu filho por exemplo ele choraraacute por sua proacutepria dor e as manifestaccedilotildees dela como sua proacutepria plateacuteia [] Se algueacutem quer parecer algo por muito tempo e obstinadamente afinal lhe seraacute difiacutecil ser outra coisa A profissatildeo de quase todas as pessoas mesmo a do artista comeccedila com hipocrisia com uma imitaccedilatildeo do exterior com uma coacutepia daquilo que produz efeito Aquele que sempre usa a maacutescara do rosto amaacutevel teraacute enfim poder sobre os acircnimos beneacutevolos sem os quais natildeo pode ser obtida a expressatildeo da amabilidade ndash e estes por fim adquirem poder sobre ele ele eacute beneacutevolo (MAIHHI sect51)

Em oposiccedilatildeo ao instinto altruiacutesta defendido por Reacutee o filoacutesofo alematildeo considera que as manifestaccedilotildees morais refletem o interesse social do homem em suscitar a imagem de uma pessoa boa As accedilotildees consideradas altruiacutestas ou compassivas satildeo para o filoacutesofo meras manifestaccedilotildees do nosso interesse social em causar boa impressatildeo aos espectadores

Gracy Kelly Bourscheid

99

que jaacute envolvidos na teia da crenccedila em caracteriacutesticas morais absolutas costumam nos ver com bons olhos e nos exaltam como seres compassivos e bons

Agrave medida que as especulaccedilotildees sobre o homem estiverem pautadas em seu fazer especiacutefico dentro de um espaccedilo de tempo limitado as certezas absolutas que caracterizam e moldam o homem comeccedilam a ser passiacuteveis de questionamentos Nietzsche considera portanto a filosofia histoacuterica como importante mecanismo da ciecircncia natural um novo meacutetodo cientiacutefico que passa a investigar as especificidades dos sentimentos morais religiosos esteacuteticos e culturais do homem em suas relaccedilotildees sociais histoacutericas

Tudo o que necessitamos e que somente agora nos pode ser dado graccedilas ao niacutevel atual de cada ciecircncia eacute uma quiacutemica das representaccedilotildees e sentimentos morais religiosos e esteacuteticos assim como de todas as emoccedilotildees que experimentamos nas grandes e pequenas relaccedilotildees da cultura e da sociedade (MAIHHI sect1)

Em oposiccedilatildeo agraves especulaccedilotildees metafiacutesicas o filoacutesofo propotildee uma anaacutelise quiacutemica dos sentimentos morais Quiacutemica no sentido de observar cuidadosamente as caracteriacutesticas especiacuteficas dos sentimentos suas propriedades seu aparecimento histoacuterico e sobretudo as suas transformaccedilotildees culturais ao longo do tempo Meacutetodo que tambeacutem deve ser adotado para analisar as transformaccedilotildees gerais da moral da religiatildeo da arte ldquocom a religiatildeo a arte e a moral natildeo tocamos a lsquoessecircncia do mundo em sirsquo estamos no domiacutenio da representaccedilatildeordquo (MAIHHI sect10) Ao observar os fenocircmenos morais como representaccedilotildees e sentimentos o que se manifesta satildeo as superfiacutecies das coisas que nos aparecem em detrimento da crenccedila de que pudeacutessemos tocar a essecircncia das coisas A desmistificaccedilatildeo de sentimentos considerados socialmente como altruiacutestas desinteressados compassivos demanda a percepccedilatildeo de que tais accedilotildees natildeo passam de manifestaccedilotildees humanas demasiado humanas

Certo de que natildeo existem fatos morais e de que a dinacircmica efetiva da histoacuteria permite uma nova disposiccedilatildeo de vida o filoacutesofo recorre agrave investigaccedilatildeo sobre a proveniecircncia dos sentimentos para demonstrar que as nossas convicccedilotildees morais satildeo frutos do costume do haacutebito de admitir como boas as accedilotildees jaacute reconhecidas tradicionalmente como virtudes Ocorre que justamente esse haacutebito carece de questionamentos para que assim possamos pintar a nossa histoacuteria com novas cores ldquoos estudos histoacutericos cultivam a qualificaccedilatildeo para essa pintura pois sempre nos desafiam ante um trecho da histoacuteria a vida de um povo ndash ou de um homemrdquo (MAIHHI sect274) Uma caracteriacutestica importante da filosofia histoacuterica eacute a perspectiva de reformulaccedilatildeo das convicccedilotildees Em Humano demasiado humano I Nietzsche indica que a vida de um povo pode ser vista a partir de ciclos3 de desenvolvimento que se manifestam numa dinacircmica entre a religiatildeo a moral a arte e a ciecircncia O filoacutesofo observa que essas fases satildeo habituais na cultura dos povos e estatildeo num processo dinacircmico contiacutenuo Reconhece que todas as fases da cultura satildeo necessaacuterias Neste sentido a moralidade deve ser vista como uma das fases culturais do homem que poderaacute ser transformada diante do 3 Na observaccedilatildeo de Frezzatti um dos papeacuteis da filosofia histoacuterica em Humano demasiado humano I eacute indicar que a vida

deve ser observada a partir desse processo histoacuterico dinacircmico que nos permite visualizar uma nova fase de cultura humana ldquoEm Humano demasiado humano I esboccedila-se o que temos chamado de ldquociclo vital da culturardquo Ao consi-derar as fases culturais o fisiopsicoacutelogo nietzschiano pode recorrer a uma tipologia das culturas pois o movimento ciacuteclico embora apresente expressotildees diferentes em cada cultura tem como possibilidade a mesma sequecircncia de fases [] Nietzsche entende portanto o processo histoacuterico em Humano demasiado humano I como um movimento ciacuteclico e repartido em fases Seu sentido histoacuterico permite que possamos conhecer experimentando-as fases anteriores do desenvolvimentordquo (FREZZATTI 2018 p 27) O sentido histoacuterico como um movimento ciacuteclico e repartido em fases nos indica que o conhecimento detalhado das manifestaccedilotildees morais religiosas artiacutesticas possibilitaraacute o surgi-mento de uma nova fase histoacuterica da humanidade

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

100

surgimento de novos haacutebitos ldquocompreendemos nossos semelhantes como tais sistemas e representantes bem definidos de culturas diversas isto eacute como necessaacuterios mas alteraacuteveisrdquo (MAIHHI sect274) Diante desta perspectiva o homem moral poderaacute ser transformado poderaacute recriar seus costumes e assim ver surgir uma nova cultura ldquopor algum tempo a metafiacutesica soacute persiste e sobrevive em arte ou como disposiccedilatildeo artisticamente transfiguradora Mas o sentido cientiacutefico torna-se cada vez mais imperioso e leva o homem adulto agrave ciecircncia natural e agrave histoacuteriardquo (MAIHHI sect 272) Esse ciclo dinacircmico da cultura aponta para uma perspectiva de desenvolvimento em que uma fase abre caminho para a sua superaccedilatildeo e o surgimento de uma nova fase da cultura O olhar voltado para o aparecimento das criaccedilotildees morais tem um papel portanto que vai aleacutem da criacutetica agraves convicccedilotildees morais enquanto verdades absolutas Aponta tambeacutem para a possibilidade de elevaccedilatildeo da cultura do homem

Nietzsche considera os sentimentos morais a partir das inclinaccedilotildees e aversotildees do homem isto eacute dos impulsos que nos movem em direccedilatildeo ao que parece ser proveitoso ou nos afastam para longe de algo supostamente nocivo ldquoUm impulso em direccedilatildeo ou para longe de algo sem o sentimento de querer o que eacute proveitoso ou se esquivar do que eacute nocivo [] natildeo existe no homemrdquo (MAIHHI sect32) Nessa dinacircmica as accedilotildees satildeo motivadas por um interesse especiacutefico que nos inclina ou nos afasta de algo O filoacutesofo esclarece que nossas accedilotildees satildeo motivadas pelos impulsos mas natildeo possuem uma caracteriacutestica boa ou maacute em si ldquotodas as lsquomaacutesrsquo accedilotildees satildeo motivadas pelo impulso de conservaccedilatildeo ou mais exatamente pelo propoacutesito individual de buscar o prazer e evitar o desprazer satildeo assim motivadas mas natildeo satildeo maacutesrdquo (MAIHHI sect99) O mesmo tambeacutem ocorre com as accedilotildees consideradas boas satildeo motivadas pela busca do prazer mas natildeo satildeo boas em si Investigando o mecanismo desta cadeia de motivaccedilotildees Nietzsche observa que as accedilotildees humanas satildeo motivadas pela sensaccedilatildeo de prazer ldquosem prazer natildeo haacute vida a luta pelo prazer eacute a luta pela vidardquo (MAIHHI sect104) Na vida comunitaacuteria o homem sente prazer ao fazer aquilo que eacute habitual O filoacutesofo observa que a crenccedila de que os costumes satildeo comprovada sabedoria de vida faz com que o homem se adeque agraves coerccedilotildees morais e limite seus impulsos naturais

A moralidade eacute antecedida pela coerccedilatildeo e ela mesma eacute ainda por algum tempo coerccedilatildeo agrave qual a pessoa se acomoda para evitar o desprazer Depois ela se torna costume mais tarde obediecircncia livre e finalmente quase instinto entatildeo como tudo o que haacute muito tempo eacute habitual e natural acha-se ligada ao prazer ndash e se chama virtude (MAIHHI sect99)

O sentimento de prazer ao realizar alguma accedilatildeo comprovadamente uacutetil agrave comunidade torna o homem domesticado O filoacutesofo observa que esse mecanismo coercitivo estaacute tatildeo fortemente enraizado nas comunidades que a pessoa segue os costumes de modo obediente sem qualquer reflexatildeo Essa dinacircmica de apego agrave tradiccedilatildeo eacute transmitida como heranccedila e a adequaccedilatildeo ao costume eacute vista como uma virtude moral Em Humano demasiado humano I o filoacutesofo pontua o que pode ser considerado como uma virtude boa para a tradiccedilatildeo moral ldquoBomrdquo diz ele ldquoeacute chamado aquele que apoacutes longa hereditariedade e quase por natureza pratica facilmente e de bom grado o que eacute moralrdquo E sobre a concepccedilatildeo habitual do que possa ser um homem moral esclarece ldquoser moral morigerado eacutetico significa prestar obediecircncia a uma lei ou tradiccedilatildeo haacute muito estabelecidardquo (MAIHHI sect96) A obediecircncia aos costumes morais eacute apontada pelo filoacutesofo como central para a compreensatildeo deste sentimento de dever moral herdado4 e perpetuado historicamente 4 No Humano demasiado humano II publicado em 1879-80 o filoacutesofo confirma o caraacuteter hereditaacuterio dos sentimentos

morais afirmando que ldquoa moralidade (o modo de agir herdado transmitido instintivo segundo sentimentos morais)rdquo

Gracy Kelly Bourscheid

101

Destituiacutedo das convicccedilotildees metafiacutesicas mas focado nas manifestaccedilotildees morais Nietzsche considera que o homem natildeo pode ser considerado moral ou imoral por sua obediecircncia ou negligecircncia ao costume moral Isso porque na visatildeo do filoacutesofo natildeo somos responsaacuteveis por nossas accedilotildees Considerando a inocecircncia das nossas accedilotildees indica que ldquoa histoacuteria dos sentimentos morais eacute a histoacuteria de um erro o erro da responsabilidade que se baseia no erro do livre-arbiacutetriordquo (MAIHHI sect39) No pensamento do filoacutesofo nossas accedilotildees natildeo satildeo consequumlecircncias de uma vontade livre que nos permita agir deste ou daquele modo Considera que o homem natildeo eacute dotado de vontade livre e portanto natildeo deveria ser responsabilizado por suas accedilotildees Nietzsche afirma que a histoacuteria dos sentimentos morais eacute a histoacuteria pela qual tornamos o homem responsaacutevel por todas as suas accedilotildees ldquoa histoacuteria dos sentimentos em virtude dos quais tornamos algueacutem responsaacutevel por seus atos ou seja a histoacuteria dos chamados sentimentos moraisrdquo (MAIHHI sect39) Analisando a histoacuteria dos sentimentos morais o filoacutesofo constata que a tradiccedilatildeo moral e religiosa obteve ecircxito em tornar o homem culpado A partir da crenccedila moral e religiosa de que o homem possui liberdade para escolher entre essa ou aquela accedilatildeo surge a sensaccedilatildeo nos espectadores e no proacuteprio agente de que a accedilatildeo considerada imoral poderia ter sido evitada

O sentimento de culpa por desobedecer a uma regra um costume moral eacute um forte repressor social Na concepccedilatildeo de Nietzsche esse sentimento eacute fruto do erro em acreditar na liberdade da vontade ldquoporque o homem se considera livre natildeo porque eacute livre ele sofre arrependimento e remorsordquo (MAIHHI sect39) Esse sentimento poderaacute ser superado segundo o filoacutesofo agrave medida que o homem reconhecer sua inocecircncia ao agir ldquoningueacutem eacute responsaacutevel por suas accedilotildees ningueacutem responde por seu ser julgar significa ser injusto Isso tambeacutem vale para quando o indiviacuteduo julga a si mesmordquo (MAIHHI sect39) Considerando que o homem natildeo dispotildee de vontade livre o filoacutesofo propotildee um novo modo de olhar para as accedilotildees humanas Em sua anaacutelise o homem natildeo pode ser responsabilizado por suas accedilotildees porque age por necessidade

A total irresponsabilidade do homem por seus atos e seu ser eacute a gota mais amarga que o homem do conhecimento tem de engolir se estava habituado a ver na responsabilidade e no dever a carta de nobreza de sua humanidade Todas as suas avaliaccedilotildees distinccedilotildees aversotildees satildeo assim desvalorizadas e se tornam falsas seu sentimento mais profundo que ele dispensava ao sofredor ao heroacutei baseava-se num erro ele jaacute natildeo pode louvar nem censurar pois eacute absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidade (MAIHHI sect107)

Se considerarmos como propotildee o filoacutesofo as accedilotildees como totalmente necessaacuterias o homem natildeo poderaacute ser responsabilizado por elas E isso ocorre tanto para as accedilotildees consideradas tradicionalmente como boas quanto com as consideradas maacutes Assim como ao homem considerado bom natildeo caberaacute honras e meacuteritos agravequele que parecer mau agrave comunidade natildeo poderaacute ser penalizado A concepccedilatildeo nietzschiana sobre a irresponsabilidade das accedilotildees se choca com um importante aparato de repressatildeo moral Um dos pilares da tradiccedilatildeo moral e religiosa eacute a noccedilatildeo de recompensa e castigo vinculada agraves accedilotildees ldquose desaparecessem o castigo e o precircmio acabariam os motivos mais fortes que nos afastam de certas accedilotildees e nos impelem a outrasrdquo (MAIHHI sect105) Segundo o filoacutesofo meacuterito ou castigo natildeo cabem ao homem porque as nossas accedilotildees satildeo tatildeo necessaacuterias quanto agraves accedilotildees da natureza ldquoeacute absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidaderdquo (MAIHHI sect107) Desse modo somos tatildeo

(MAIIHHII sect212)

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

102

responsaacuteveis pelos impulsos que movem nosso corpo quanto agrave natureza eacute responsaacutevel pelos seus movimentos

Natildeo acusamos a natureza de imoral quando ela nos envia uma tempestade e nos molha por que chamamos de imoral o homem nocivo Porque neste caso supomos uma vontade livre operando arbitrariamente e naquele uma necessidade Mas tal diferenciaccedilatildeo eacute um erro (MAIHHI sect102)

Ao abordar a sua concepccedilatildeo acerca da irresponsabilidade do homem sobre as suas accedilotildees o filoacutesofo indica que os atos humanos devem ser considerados do mesmo modo que os movimentos da natureza Homem e natureza agem por necessidade e natildeo por vontade livre Nossas accedilotildees satildeo tatildeo necessaacuterias portanto como uma chuva numa tarde de veratildeo Essa consideraccedilatildeo de Nietzsche coloca sob questionamento a convicccedilatildeo moral e religiosa a respeito da liberdade e responsabilidade individual Habituamo-nos a reconhecer nossas accedilotildees como responsabilidade individual Diante da crenccedila na responsabilidade individual pela qual o homem considerado imoral eacute julgado e punido Nietzsche esclarece ldquoningueacutem eacute responsaacutevel por suas accedilotildees ningueacutem responde por seu ser julgar significa ser injusto Isso tambeacutem vale para quando o indiviacuteduo julga a si mesmordquo (MAIHHI sect39) A partir da compreensatildeo de que o homem eacute totalmente irresponsaacutevel por seus atos o filoacutesofo propotildee um novo modo de sentimento a adoccedilatildeo do sentimento de inocecircncia em detrimento do sentimento de culpa Se o homem incorporar a sua inocecircncia sobre as accedilotildees natildeo aceitaraacute mais ser premiado ou castigado tampouco puniraacute ou aplaudiraacute accedilotildees alheias afinal nenhuma accedilatildeo poderia ter ocorrido de outra maneira

Quem compreendeu plenamente a teoria da completa irresponsabilidade jaacute natildeo pode incluir a chamada justiccedila punitiva e premiadora no conceito de justiccedila se esta consiste em dar a cada um o que eacute seu Pois aquele que eacute punido natildeo merece a puniccedilatildeo eacute apenas usado como meio para desencorajar futuramente certas accedilotildees tambeacutem aquele que eacute premiado natildeo merece o precircmio ele natildeo podia agir de outro modo (MAIHHI sect105)

Esse novo modo de olhar para as accedilotildees humanas abala toda a estrutura da moralidade Todo louvor diante das accedilotildees vistas como virtuosas se tornaria dispensaacutevel Toda nossa reprovaccedilatildeo diante de supostas infraccedilotildees morais se tornaria ridiacutecula Afinal como reprovar ou aplaudir accedilotildees que natildeo poderiam ocorrer de outro modo ldquoseu sentimento mais profundo que ele dispensava ao sofredor ao heroacutei baseava-se num erro ele jaacute natildeo pode louvar nem censurar pois eacute absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidaderdquo (MAIHHI sect107) Nietzsche reconhece que o surgimento do sentimento de inocecircncia em substituiccedilatildeo ao sentimento moral de culpa eacute um processo O homem precisa assimilar a sua inocecircncia e compreender que natildeo eacute responsaacutevel por seus atos Trata-se de um novo conhecimento ldquotudo eacute necessidade ndash assim diz o novo conhecimento e ele proacuteprio eacute necessidade Tudo eacute inocecircncia e o conhecimento eacute a via para compreender essa inocecircnciardquo (MAIHHI sect107) O filoacutesofo pontua que assim como a moralidade gerou sentimentos e mecanismos coercitivos atraveacutes da transmissatildeo dos costumes esse novo conhecimento poderaacute criar um novo homem o homem saacutebio e inocente

Tudo no acircmbito da moral veio a ser eacute mutaacutevel oscilante tudo estaacute em fluxo eacute verdade - mas tudo se acha tambeacutem numa corrente em direccedilatildeo a uma meta Pode continuar a nos reger o haacutebito que herdamos de avaliar amar odiar erradamente mas sob o influxo do conhecimento

Gracy Kelly Bourscheid

103

crescente ele se tornaraacute mais fraco um novo haacutebito o de compreender natildeo amar natildeo odiar abranger com o olhar pouco a pouco se implanta em noacutes no mesmo chatildeo e daqui a milhares de anos talvez seja poderoso o bastante para dar agrave humanidade a forccedila de criar o homem saacutebio e inocente (consciente da inocecircncia) da mesma forma regular como hoje produz o homem tolo injusto consciente da culpa ndash que eacute natildeo o oposto mas o precursor necessaacuterio daquele (MAIHHI sect107)

O filoacutesofo considera o resgate da origem dos sentimentos morais como importante mecanismo para que o homem compreenda que o sentimento de culpa eacute um erro moral histoacuterico que o prejudica Em Humano demasiado humano I Nietzsche ainda natildeo indica objetivamente de que modo considera as accedilotildees humanas como totalmente necessaacuterias Essa noccedilatildeo ficaraacute mais clara a partir da concepccedilatildeo do filoacutesofo sobre a vida humana ou seja da vida enquanto vontade de potecircncia A definiccedilatildeo da vida enquanto vontade de potecircncia permitiraacute a compreensatildeo de que os impulsos responsaacuteveis pelas accedilotildees seguem sua constituiccedilatildeo natural de luta por expansatildeo Nessa dinacircmica portanto natildeo haacute escolha moral as accedilotildees seguem uma luta contiacutenua de busca por expandir-se De qualquer forma o apontamento acerca da irresponsabilidade sobre as accedilotildees em Humano demasiado humano I jaacute demonstra claramente a intenccedilatildeo do filoacutesofo em livrar o homem do sentimento de culpa Nietzsche nos indica que assim como a moralidade fez surgir o homem culpado o conhecimento da irresponsabilidade do homem sobre as suas accedilotildees permitiraacute o surgimento de um novo homem um homem saacutebio e inocente consciente de sua inocecircncia Se considerarmos a cultura como um processo dinacircmico de transformaccedilatildeo o homem moral o homem culpado poderaacute ser visto como precursor do homem inocente O surgimento desse novo homem desponta na perspectiva analisada em Humano demasiado humano I como uma meta

Histoacuteria dos sentimentos morais Uma anaacutelise

104

Referecircncias bibliograacuteficasFREZZATTI W A JR As noccedilotildees de histoacuteria na II Consideraccedilatildeo Extemporacircnea e em Humano demasiado humano In Cadernos Nietzsche vol 39 n 1 Satildeo Paulo janabr 2018NIETZSCHE Friedrich Wilhelm Humano demasiado humano Um livro para espiacuteritos livres Volume 1 12ordf reimp Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2017_____ Humano demasiado humano Um livro para espiacuteritos livres Volume 2 Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008REacuteE Paul A origem dos sentimentos morais Traduccedilatildeo de Andreacute Itaparica e Clademir Araldi Satildeo Paulo Editora UNIFESP 2018

Guilherme Freire da Costa

105

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch ndash Arte Filosofia e Ciecircncia na obra nietzschiana

Guilherme Freire da Costa1

ApresentaccedilatildeoUma vez Nietzsche afirmou que a profundidade de um filoacutesofo poderia ser medida

pelo tempo necessaacuterio para decifraacute-lo E o fato de estar aqui debruccedilado sobre outra possibilidade interpretativa jaacute natildeo seria um sintoma de criaccedilatildeo eternamente em devir Por outro lado existiria uma plenitude compreensiva Um encerramento de possibilidades e perspectivas Ou estamos fadados agraves configuraccedilotildees de nossa espaccedilo-temporalidade Do vir-a-ser em que nos tornarmos quem somos Seria a dinacircmica compreensiva apenas conjuntos de configuraccedilotildees contingentes das capacidades e tensotildees interpretativas Conjuntos derivados de forccedilas que se configuram e se destroem permanentemente nos corpos Enfim muitas questotildees Mas precisamos encaraacute-las vivenciaacute-las e interpretaacute-las se queremos honrar a superaccedilatildeo permanente

A primeira vez que tomei em matildeos seus mais notaacuteveis inteacuterpretes do seacuteculo XX forccedilas me conduziram agrave percepccedilatildeo de que se efetivava uma das previsotildees que Nietzsche havia deixado sobre si mesmo a da quarta parte do Zaratustra quando o filoacutesofo alematildeo se autocelebrou como asno ao se projetar nas expressotildees de homens superiores do porvir ndash Eram incapazes de sua obra presos por grilhotildees da tradiccedilatildeo idealista que tanto combateu E o que natildeo fariam da filosofia do Zaratustra Em sua projeccedilatildeo dos vindouros expressou a criaccedilatildeo de uma festa para celebrar a si mesmo como asno Nietzsche assim se celebrando havia se tornado um burro Sua filosofia ganhava interpretaccedilotildees mais baixas que a dos uacuteltimos homens Perdia-se promessa cultivo e realizaccedilatildeo do Uumlbermensch2

Natildeo vou aqui aprofundar o que compreendo sobre tornar Nietzsche um asno Para cada homem superior que assim o celebra no futuro que jaacute eacute passado seria necessaacuterio um estudo agrave parte e para cada tipo o que eacute impossiacutevel em espaccedilo tatildeo curto Aqui vou expressar um conjunto de forccedilas quantificado Seria possiacutevel expressar uma qualidade E mesmo que provisoriamente a posse de uma vontade de potecircncia Quero algo mais que o comentaacuterio sobre outrem Quero afirmar possibilidades proacuteprias tensotildees resultantes de meus estados fisioloacutegicos pois me sinto liberado em instintos sentimentos e interpretaccedilotildees 1 Programa de poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro2 Gostaria de assinalar que natildeo me agradam as expressotildees super-homem e aleacutem-do-homem A primeira natildeo por si

mesma mas pela degradaccedilatildeo que sofreu com a produccedilatildeo cultural desde princiacutepios do seacuteculo XX A segunda pelos perigos assinalados por Nietzsche diante de esperanccedilas e sentimentos ultraterrenos ou seja diante das promessas religiosas que necessitam negar vida e corpo para se imporem ao contrapocirc-los a uma promessa de aleacutem-mundo E apesar de ser do meu agrado a utilizaccedilatildeo do termo sobrehomem manterei a expressatildeo original cunhada por Ni-etzsche na maior parte do texto

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

106

para esse voo de superaccedilatildeo E o que mira meu arco teso ao atirar a flecha ndash Ferir a tradiccedilatildeo e potencializar condiccedilotildees ao cultivo e devir do Uumlbermensch Pretendo pois transmutar valores e funcionamentos das relaccedilotildees que se configuraram entre arte filosofia e ciecircncia afastando as tradicionais interpretaccedilotildees que sobrevalorizaram as artes subvalorizando as ciecircncias ou vice-versa

Entretanto natildeo tenho como algo fechado o que a seguir expressarei Senatildeo que se trata de um tentame de uma elevaccedilatildeo de suspeitas pessoais a dimensotildees de compartilhamento onde me beneficiarei por novas suspeitas que natildeo as minhas e que seratildeo expressas na linguagem de vocecircs Claro se me julgarem merecedor da potecircncia de suas forccedilas no esforccedilo interpretativo do que escrevo

Finalmente assinalo qual estiacutemulo me direcionou agrave construccedilatildeo textual aqui apresentada Foi a leitura de um artigo que me impulsionou transmutando ato intelectivo autossuficiente em vontade de compartilhar e de ser desafiado ao desafiar Nomeado O Mal do Mar em Nietzsche tem autoria do professor Charles Feitosa e foi publicado em 2003 no livro Assim Falou Nietzsche IV ndash A Fidelidade agrave terra3

Referecircncias para a efetivaccedilatildeo do UumlbermenschApoacutes ter sido tocado pelo artigo do professor Feitosa foi sua uacuteltima frase que

primeiro me tocou Percebi mais uma vez quanto se distanciam meus pensamentos das interpretaccedilotildees de grande parte da atualidade e do passado mas tambeacutem o quanto devo a elas Ao concluir seu texto afirma Feitosa que a Kinderland (terra das crianccedilas) nietzschiana seria ldquoldquouma utopia no sentido mais radical da palavra natildeo um sonho ou ideal impossiacutevel de ser realizado mas um lugar que natildeo existe aindardquordquo FEITOSA O Mal do Mar em Nietzsche in Assim Falou Nietzsche IV pag 332) Muito bem para mim esse lugar jaacute existia antes mesmo da vida ter vindo a ser ele estaacute aiacute desde sempre desde muito antes do aparecimento do homem Esse lugar seria o universo e soacute existe vida porque ele se efetiva em eterno movimento ndash E aqui expresso minha primeira particularidade ao pensar a superaccedilatildeo do homem a necessidade de experimentar vivecircncias no universo de estar vivendo e se movimentando em outras relaccedilotildees com a gravidade pois que efetivando deslocamentos ao voar para dentro do ceacuteu4

Voar para dentro do ceacuteu Sim e muito falta para tal conquista comeccedilando pela criaccedilatildeo de linguagem matemaacutetica que simbolize a capacidade corretiva para movimentos em altas velocidades de trajetoacuterias astronocircmicas Linguagem que necessita para vir a ser de criaccedilatildeo filosoacutefica e intermediaccedilatildeo da arte na geraccedilatildeo de meacutetodos cientiacuteficos O proacuteximo degrau A criaccedilatildeo de tecnologia a dar conta das necessidades nascentes de experimentaccedilatildeo do Uumlbermensch Jaacute iniciamos a conquista do universo por mais tosca que se efetive E jaacute poucos eleitos viveram em seus corpos breves temporalidades sem os efeitos do espiacuterito de gravidade Mas permanecemos muito afastados de deslocamentos velozes em grandes distacircncias de um grau miacutenimo de seguranccedila em dinacircmicas de sobrevivecircncia no cosmos

3 Cito o uacuteltimo paraacutegrafo do artigo de Feitosa ldquoO lsquomal do marrsquo pode agraves vezes ser o sintoma de uma nostalgia im-proacutepria por terra segura pela paacutetria a terra do pai [Vaterland] o lugar das certezas paradigmaacuteticas que nos ajudam a justificar a existecircncia Mas o lsquomal do marrsquo pode ser tambeacutem o elixir que vai nos deixar leves o suficiente para navegar ateacute a Kinderland literalmente a lsquoterra de crianccedilasrsquo terra de homens superiores um lugar onde tudo pode ser inventa-do A Kinderland de Zaratustra eacute uma utopia no sentido mais radical da palavra natildeo um sonho ou ideal impossiacutevel de ser realizado mas apenas um lugar que natildeo existe aindardquo

4 Refiro-me ao paraacutegrafo Antes do Nascer do Sol do Zaratustra onde em minha interpretaccedilatildeo Nietzsche aponta para a experimentaccedilatildeo necessaacuteria da vida leve como efetivaccedilatildeo e inocecircncia do Uumlbermensch Ou seja para que se efetive ele mesmo na realidade espaccedilo-temporal de seu corpo

Guilherme Freire da Costa

107

Pois bem em favor da compreensatildeo que afirma Nietzsche como precursor de tal necessidade para a efetivaccedilatildeo do Uumlbermensch gostaria de primeiro invocar trecircs momentos em sequecircncia de A Gaia Ciecircncia a uacuteltima frase do paraacutegrafo 123 ldquoldquoexiste alguma coisa nova na histoacuteria quando o conhecimento deseja ser mais que um meiordquordquo a primeira frase do paraacutegrafo 124 ldquoldquodeixamos a terra firme e subimos a bordo Destruiacutemos a ponte atraacutes de noacutes e mais destruiacutemos todos os laccedilos com a terra atraacutes de noacutesrdquordquo e todo o paraacutegrafo 125 onde destaco as seguintes passagens apoacutes afirmada a morte de Deus

Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro Que fizemos quando desatamos esta terra do seu Sol Para onde vai ela agora Para onde vamos noacutes mesmos Para longe de todos os soacuteis Natildeo estamos incessantemente a cair Para diante para traacutes para os lados em todas as direccedilotildees Natildeo sentimos na face um sopro frio Natildeo se tornou ele mais frio Natildeo anoitece eternamente Natildeo seraacute necessaacuterio acender os candeeiros logo de manhatilde

E conclui ldquoldquoChego cedo demais disse ele entatildeo o meu tempo ainda natildeo chegou Esse acontecimento enorme ainda estaacute a caminho e ainda natildeo chegou ao ouvido dos homensrdquordquo (NIETZSCHE A Gaia Ciecircncia paraacutegrafo 125)

Agora peccedilo que fechem os olhos e enxerguem nosso planeta como se estivessem leves envolvidos por energia escura e abandonados no cosmos Poderiacuteamos falar de horizonte Dispor das medidas usuais de quantificaccedilatildeo dos dias das estaccedilotildees climaacuteticas etc para mediccedilotildees de tempo Natildeo estariacuteamos em uma noite permanente enquanto em deslocamentos ultra velozes no universo Os candeeiros natildeo estariam acesos mesmo de dia

Avancemos aos discursos do Zaratustra agravequele intitulado Antes do Nascer do Sol Aqui jaacute temos o sentimento que o homem precisa ser superado e a percepccedilatildeo de que eacute agrave moral que se precisa fazer guerra E o que nos diz Nietzsche em sua vontade de superaccedilatildeo ao falar para o ceacuteu ldquoldquoLanccedilar-me agrave tua altura ndash eis a minha profundeza Ocultar-me em tua pureza ndash eis a minha inocecircncia O deus eacute encoberto por sua beleza assim escondes tuas estrelasrdquordquo E continua ldquoldquoE todo o meu caminhar e subir montanhas apenas necessidade recurso de um canhestro - somente voar deseja a minha vontade voar para dentro de tirdquordquo (NIETZSCHE Assim Falou Zaratustra paacutegs 156 e 157) Justamente por lhe faltar a condiccedilatildeo para a experimentaccedilatildeo do Uumlbermensch que depende de invenccedilotildees tecnoloacutegicas Nietzsche mira seu pensamento em outro alvo Natildeo percebendo possiacutevel se efetivar precisa entatildeo criar os valores que possibilitaratildeo seus herdeiros a finalizar as pontes que compreende necessaacuterias agrave superaccedilatildeo do homem O que exige elevar ao maacuteximo o que de melhor e pior deve ser cultivado nos homens de tipos superiores ou natildeo para que viva o Uumlbermensch Afinal toda a vida quer dar vazatildeo agrave sua forccedila seja ela uma promessa de futuro seja ela uma negaccedilatildeo da proacutepria vida ndash Tambeacutem o niilismo precisa encontrar sua expressatildeo mais potente

Compreendo pois que o centro de forccedilas da perspectiva filosoacutefica de Nietzsche venha a se configurar um duro e decisivo ataque agrave moral enquanto conjunto de elementos que interferem no cultivo do homem Valores e juiacutezos organizaccedilatildeo social e estatal instruccedilatildeo tais movimentos satildeo esmiuccedilados e em seus modos cristatildeos e modernos combatidos Mas o centro se configura dinacircmico se deslocando atraveacutes de um fio condutor que nessa perspectiva vem a ser a superaccedilatildeo do homem E superaccedilatildeo que natildeo pode ser reduzida agrave

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

108

produtividade exclusiva do intelecto agrave consciecircncia que temos do mundo e de noacutes mesmos Natildeo Eacute preciso primeiro atacar o cultivo vigente do corpo pois eacute aiacute que Nietzsche reconhece o iniacutecio dos erros de razatildeo que se sucederam ao longo da histoacuteria Eacute quando o corpo se torna desvalorizado pela filosofia platocircnica e depois refutado pelo cristianismo que o homem passa a correr grande risco de extinccedilatildeo

Tambeacutem natildeo podemos esquecer que a ciecircncia de seu tempo estaacute comeccedilando a engatinhar na direccedilatildeo da leveza e de novas tecnologias E Nietzsche reconhece a impossibilidade de abordar diretamente a realidade do Uumlbermensch passando a priorizar seus esforccedilos sobre a realidade corporal humana em suas configuraccedilotildees de forccedilas e combater erros que poderiam vir a efetivar o refreamento da superaccedilatildeo ou sua natildeo realizaccedilatildeo A sobrehumanidade era inalcanccedilaacutevel mas natildeo a moral que a coloca em risco

Uma uacuteltima citaccedilatildeo para mais uma vez iluminar a necessidade de vivecircncias no universo como condiccedilatildeo de devir do Uumlbermensch

Suponha que algueacutem frequentemente sonhe que estaacute voando e assim que comeccedila a sonhar se torna consciente da arte e da habilidade de voar como seu privileacutegio assim como sua felicidade mais particular e invejaacutevel - algueacutem assim que pensa poder negociar todo tipo de curvas e acircngulos com o menor impulso que conhece o sentimento de uma certa facilidade divina um ldquopara cimardquo sem tensatildeo ou forccedila um ldquopara baixordquo sem condescendecircncia ou rebaixamento - sem gravidade5

Nietzsche aponta para uma necessidade que deve se tornar sentida para o homem que nessa vida acorrentada agrave gravidade que experimentamos na Terra jamais conseguiremos vivenciar o Uumlbermensch quanto menos projetar a dimensatildeo das transmutaccedilotildees orgacircnicas fisioloacutegicas e valorativas que se sucederatildeo na leveza do cosmos E o primeiro movimento mesmo que ainda em sonhos eacute de linguagem na matemaacutetica atual superar o determinismo do caacutelculo tensorial e comeccedilar a pensar em um caacutelculo correcional transmutativo para deslocamentos seguros em altas velocidades e pronto para se corrigir diante das modificaccedilotildees de trajetoacuteria em funccedilatildeo de encurvamentos efetivados na proximidade de corpos massivos por menores que sejam Pois uma coisa eacute idealizar a partir de observaccedilotildees experiecircncias na mente ou reproduzi-las em ambientes controlados de laboratoacuterio outra eacute vivenciaacute-las efetivamente sem controle laboratorial6 Afinal tomando o encurvamento do espaccedilo-tempo quando da presenccedila de corpos se deslocando e estabelecendo relaccedilotildees com a energia escura ou outros corpos precisamos para o movimento seguro de um ponto a outro ter agrave disposiccedilatildeo caacutelculos que possibilitem quaisquer correccedilotildees para escapar do fim de toda continuidade de encurvamento espaccedilo-temporal Natildeo podemos para nos deslocarmos no espaccedilo-tempo escolher a trajetoacuteria sem essa consideraccedilatildeo inicial sob o risco de nos 5 Nietzsche F W Beyond Good and Evil Prelude to a Philosophy of the Future paragraph 193 Traduccedilatildeo de Judith

Norman New York Cambridge University Press 2002 ldquoSuppose someone frequently dreams that he is flying and as soon as he starts dreaming he becomes aware of the art and ability of flight as his privilege as well as his most particular most enviable happiness ndash someone like this who thinks he can negotiate every type of curve and corner with the slightest impulse who knows the feeling of an assured divine ease an ldquoupwardsrdquo without tension or force a ldquodownwardsrdquo without condescension or abasement ndash without heavinessrdquo (Posto em negrito e traduzido livremente por mim)

6 Aqui quero chamar a atenccedilatildeo para o caraacuteter observacional das cosmologias mais recentes que se contentam com muito pouco e acreditam encontrar verdades em deduccedilotildees antropomoacuterficas do que conseguem ver atraveacutes de lentes de aumento Para esses fiacutesicos (Hawking por exemplo) muitas vezes incensados e mais que incensados a leitura de Sobre a Verdade e a Mentira em Sentido Extramoral seria uma excelente opccedilatildeo de remeacutedio para a patologia metafiacutesica que expressam

Guilherme Freire da Costa

109

chocarmos com outro corpo ou de provocarmos a criaccedilatildeo de um buraco negro que nos absorveraacute7

Dito isso gostaria de colocar algumas questotildees e derivaccedilotildees se tomarmos como uma das tarefas assumidas por Nietzsche a transvaloraccedilatildeo de todos os valores e aleacutem se colocarmos essa transvaloraccedilatildeo na necessidade de estiacutemulo ao gecircnio da criaccedilatildeo artiacutestica-filosoacutefica-cientiacutefica dos elementos e eventos que levem o homem agrave superaccedilatildeo e ao desbravamento do universo natildeo estaria sua filosofia ainda capengando Jaacute natildeo deveriacuteamos ter alcanccedilado um grau de experimentaccedilatildeo muito superior ao que vivemos Sequer conseguimos estabelecer os primeiros entrepostos de suporte agrave continuidade do desbravamento do cosmos Temos uma estaccedilatildeo orbital que funciona apenas como ponto avanccedilado de pesquisa Natildeo fizemos quase nada E por que Talvez pela falta de combatentes De filoacutesofos que legislem Estariam os uacuteltimos homens pendendo muito para o senso comum ao inveacutes de se almejarem homens superiores Promovemos sentimentos e valoraccedilotildees para a derrocada da arte filosofia e ciecircncia Natildeo parece que faltam uacuteltimos homens superiores Ou Filoacutesofos com vivecircncias nos meios onde se tomam decisotildees e se estabelecem finalidades transitoacuterias das pesquisas de ponta Natildeo estaacute o mais frio de todos os monstros frios abandonado agraves forccedilas dos mais mesquinhos tipos de homem E que tais tipos jamais promoveratildeo a superaccedilatildeo permanente pois sequer enxergam ou desejam o Uumlbermensch

Na presenccedila de tais questotildees natildeo podemos nos eximir noacutes filoacutesofos de nossos atos e escolhas tambeacutem do que vem a se efetivar como nossos pensamentos Nos escondemos nas universidades e falamos para um puacuteblico cada vez mais restrito fugimos do combate franco contra forccedilas promotoras da manutenccedilatildeo dos uacuteltimos homens ndash os que mais duram Natildeo afirmou Nietzsche que o cientista ndash ou homem da ciecircncia ndash natildeo passa de um instrumento a ser utilizado pelas matildeos de outros homens os que possuem e projetam o conhecimento das possibilidades e necessidades de superaccedilatildeo em cada transitoriedade das gradaccedilotildees da vida E tais homens deveriam ser os filoacutesofos natildeo investidores poliacuteticos ou militares esses vivem em perspectivas curtas de visatildeo e em interesses especiacuteficos que longe se encontram do Uumlbermensch em sua significaccedilatildeo mais profunda Que digo Sequer conseguem percebecirc-lo quanto mais pensaacute-lo Precisamos nos colocar na vanguarda de uma reorganizaccedilatildeo sociopoliacutetica que decirc vazatildeo agraves potencialidades da filosofia nietzschiana Soacute assim conseguiremos acelerar as pesquisas para que o Uumlbermensch entre em seus derradeiros niacuteveis de preacute-efetivaccedilatildeo

Ultimas Suspeitas ndash Relaccedilotildees e Hierarquias entre Arte Filosofia e CiecircnciaExpressei algumas primiacutecias do Uumlbermensch Insisto no homem presente e

potencializo as tensotildees entre suas relaccedilotildees afirmaccedilotildees e reaccedilotildees existenciais suas accedilotildees 7 Poreacutem tambeacutem pode haver a possibilidade de um buraco negro nada mais ser que a passagem de um universo a

outro em ampliaccedilatildeo que pode ser pensada e quem sabe um dia testada diante da esteacutetica do multiverso Acredito pessoalmente que existam muacuteltiplos universos e que os buracos negros sejam os canais de transferecircncia de grandes quantidades de forccedilas responsaacuteveis pelos movimentos expansivos e de retraccedilatildeo que ocorrem Ora se o nuacutemero de universos se manteacutem constante pode ser que jamais entremos em um processo de retraccedilatildeo podendo entatildeo trabalhar a superaccedilatildeo permanente com o sentimento tranquilizador de eternidade Se eles por outro lado continuarem a ser criados pode ser que a energia se torne insuficiente e que acabem por iniciarem processos de retraccedilatildeo e colapso de alguns desses universos Da minha parte acredito que colapsos e criaccedilotildees satildeo a regra constante Para que uns se ex-pandam outros tem que se colapsar e pensar em um iniacutecio ou fim dessa dinacircmica eacute perder o foco no que realmente vale a pena em valores vitais de existecircncia e potencializaccedilatildeo do conhecimento Nesse sentido seria muito mais interessante e mesmo frutiacutefero que pesquisaacutessemos modos de adentrarmos e vencermos os buracos negros visando descobrir por experiecircncia inuacutemeras possibilidades de dinacircmicas existenciais tanto em relaccedilatildeo aos movimentos desses muacuteltiplos universos como em relaccedilatildeo a noacutes mesmos interagindo com essas imensuraacuteveis possibilidades de forccedila

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

110

criativas e de cultivo e seus estaacutegios linguiacutesticos Para comeccedilar coloco algumas questotildees 1) se assumimos que estamos no niacutevel de uacuteltimos homens como nos afirmar e agir nessa realidade 2) Como a partir de tentativas permanentes de superaccedilatildeo estimular o outro a tambeacutem se superar permanentemente afastando do Uumlbermensch atavismos notadamente ideoloacutegicos e socioeconocircmicos 3) Tendo conquistado o equiliacutebrio espaccedilo-temporal entre grande e pequena razatildeo como conquistar a posiccedilatildeo8 de comando na tomada de decisotildees que estimulem uacuteltimos homens a se tornarem superiores mesmo em suas limitaccedilotildees E 4) como expandir exponencialmente a quantidade dos construtores de pontes assim como a qualidade dos meacutetodos de construccedilatildeo maximizando a eficiecircncia no uso de riquezas e forccedilas naturais9

Insisto o princiacutepio eacute assumir a impossibilidade experimental do Uumlbermensch nos faltam valores e tecnologia Precisamos nos liberar da interpretaccedilatildeo sobrevalorizada de noacutes mesmos e encontrar no passo atraacutes um degrau firme na escada E tendo apoio tensionar as pernas e preparar o grande salto aquele que vence a gravidade Poreacutem no processo de conquista dos graus de movimento precisaremos contar com certos elementos a serem inventados mesmo que natildeo possamos projetar neles a realidade sobrehumana Eacute pois pela perspectiva do ainda humano que se iniciam os estiacutemulos agrave criatividade e superaccedilatildeo O problema do valor dos valores e da hierarquia de forccedilas Nos colocamos em perigo talvez diante do maior de todos os perigos A metaacutefora nietzschiana de embarcar e abandonar a terra atraacutes de si se transforma em tentativas de abandonar a Terra caindo para noacutes Projetamos movimentos em velocidades jamais realizadas por isso a necessidade de se reescreverem os modos de expressatildeo matemaacutetica (caacutelculos) apoacutes reinventarmos os meios pelos quais criamos o se expressar (filosofia e arte) Abolimos o determinismo pois assumimos a perspectiva Agora jaacute podemos conquistar os caacutelculos para deslocamentos coacutesmicos e os cantos e danccedilas em um viver sem gravidade

Nossas melhores invenccedilotildees ndash arte filosofia e ciecircncia ndash agora transbordam em novas criaccedilotildees atuam para transformar nossa estupidez em riso e transmutar o riso em promessas e possibilidades de futuro Acreditamos por muitos seacuteculos no Ser ao inveacutes de no devir Na pretensatildeo de poder identificar e definir o Ser acabamos por utilizar medidas e materiais falsos impossiacuteveis para uma existecircncia como a nossa As linguagens e as loacutegicas das linguagens natildeo passam de antropomorfismos que se negam Soacute pela arte criaremos o riso que postula um abismo sem fundo soacute a filosofia com sua inventividade expressiva superaraacute a arte e elevaraacute o riso permitindo projetar contingencialmente um tipo de terra na profundeza sem fim soacute a ciecircncia com sua inventividade edificante concretizaraacute riso e terra permitindo que possamos repetir corrigindo movimentos e inventar o apoio que nos permita saltar Beleza conhecimento e praacutexis atuando em sucessotildees combinatoacuterias para transformar o riso que escarniava em riso de promessa e superaccedilatildeo e afastar o medo pelo rugir vitorioso da coragem de quem se abandona a si mesmo diante do desconhecido E mais uma vez no eterno retorno ampliado das condiccedilotildees e possibilidades de vivecircncias manifestarem-se gradaccedilotildees de suspeitas e escaacuternios que iniciam ciclos eternamente seguindo o fluxo do devir em seu superar-se Natildeo superamos de uma soacute vez o Ser e o

8 Posiccedilatildeo aqui significa a combinaccedilatildeo fluida e dinacircmica entre sentimento e consciecircncia9 Entendo aqui forccedilas e riquezas naturais de forma ampla ou seja tanto em referecircncia ao mundo-universo como ao

mundo-homem em processo de superaccedilatildeo

Guilherme Freire da Costa

111

eterno retorno do mesmo e do diferente10 Natildeo podemos superar capacidades de corrigir direccedilotildees e ampliar movimentos a cada ciclo

Mas ouccedilamos Zaratustra ao dormir e acordar ao meio-dia quando tensotildees entre grande e pequena razatildeo entre corpo e consciecircncia encontram um instante de perfeiccedilatildeo

Que aconteceu comigo Escuta O tempo voou embora Natildeo estou caindo Natildeo caiacute ndash escuta ndash no poccedilo da eternidade Que acontece comigo Silecircncio Sinto uma pontada ndash ai ndash no coraccedilatildeo No coraccedilatildeo Oh despedaccedila-te despedaccedila-te coraccedilatildeo apoacutes essa felicidade apoacutes essa pontada ndash Como O mundo natildeo se tornou perfeito nesse instante (NIETZSCHE Assim Falou Zaratustra paacuteg 263)

E Zaratustra volta agrave sua caverna laacute encontrando os homens com quem cruzou durante o dia Seriam homens superiores Sim superiores no desespero no grito de socorro que ecoa entre uacuteltimos homens Esperava por seus filhos mas malogrados e homens pathos-loacutegicos subiram agrave caverna Ainda natildeo se configuravam as forccedilas que fariam Zaratustra descer uma uacuteltima vez para junto dos homens Quis as aacutervores de vida das suas forccedilas e mais altos desejos Encontrou poeira e miseacuteria ndash encontrou desertos e seu mortal inimigo o espiacuterito de gravidade Precisaria criar aquilo que deseja Entatildeo crie Zaratustra e conclame o homem superior a desejar Crie canccedilotildees para seus hoacutespedes durante a ceia que oferece em sua caverna E deixe que o transformem em asno e celebrem uma festa O fazem em sua homenagem

E noacutes o que temos feito para superar o homem O que temos criado acima de noacutes Temos pelo menos as matildeos livres para criar Trancafiados em ilhas empoeiradas nos embrenhamos e nos perdemos em tensotildees inuacuteteis e disputas ideoloacutegicas disputas por um tipo de poder que sequer toca o mais elevado acontecer na dinacircmica global de superaccedilotildees e exerciacutecio de potecircncias Abrimos matildeo de nossas funccedilotildees mais nobres abrimos matildeo de noacutes mesmos Jaacute natildeo nos fazemos ouvir Em nossa esterilidade viramos motivo de piada para especialistas que deveriam estar submetidos agrave nossa vontade mais profunda que eacute vontade de superaccedilatildeo e vir-a-ser do Uumlbermensch ndash Temos ainda sauacutede para realccedilar nossas forccedilas e transbordaacute-las em mensuraccedilotildees de vontades de potecircncia De impocirc-las aos muitos demais e uacuteltimos homens Ou de arriscar a vida e jogar o jogo mesmo que ruim

O cientista segue seu fluxo sem superaccedilatildeo lucro e armas no mais do mesmo Deixamos a ciecircncia dominada por aacutevidos investidores poliacuteticos e militares mercenaacuterios Os piores comandam sociedades e destinos O que nos restou Retribuir desprezo com desprezo Temos deixado asnos interferirem na potecircncia de leotildees Para onde teraacute voado nossa altivez Para onde rastejado nossa prudecircncia Ah caros filoacutesofos de ontem hoje e amanhatilde o homem precisa ser superado e a noacutes cabe tomar as reacutedeas desse destino e impor as dinacircmicas tensionais desse movimento E como iniciar o processo Primeiramente abandonando disputas ideoloacutegicas abandonado a proacutepria ideologia para que poliacuteticos e muitos demais se imiscuam sozinhos na lama ateacute que por fim se afoguem em suas sujeiras O mundo natildeo possui nem precisa de ideologia tambeacutem natildeo existe moral na natureza apenas forccedilas que precisam vir a ser hierarquizadas para que transbordem e se configurem em vontades cada vez mais profundas e potentes E uma expressatildeo se faz necessaacuteria 10 Afinal natildeo foi Zaratustra quem disse o eterno retorno do mesmo mas seus animais em moda de realejo Leia-se

O convalescente em Assim Falou Zaratustra Para Zaratustra o mesmo e o diferente caminham juntos ora um ora outro se efetivando de acordo com as hierarquias de forccedilas configuradas Pois se somente houvesse o eterno retorno do mesmo natildeo haveria superaccedilatildeo ou criaccedilatildeo e se soacute houvesse o diferente natildeo haveria retorno

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

112

que natildeo existe igualdade de forccedilas nem de vontades apenas hierarquias transitoacuterias Eacute pela valorizaccedilatildeo e estiacutemulo das diferenccedilas que poderaacute o homem vir a se superar Ou que pereccedilamos na igualdade de direitos e em disputas ou combates entre convicccedilotildees o estado simiesco nos aguarda se apresenta como nunca em possibilidade

Poreacutem se lutarmos pela superaccedilatildeo permanente poderemos criar expressotildees artiacutesticas a intermediar tensotildees entre filosofia histoacuterica e ciecircncias filosoacuteficas perspectivando interpretaccedilotildees transitoacuterias do conhecimento e suspeitando de qualquer expressatildeo efetivada Arte vivida como promessa do sublime mestra no rir de si e do mundo e intermediadora da cultura E noacutes filoacutesofos entre artistas e cientistas entre filoacutesofos que decidimos nos expressar enquanto preluacutedio e necessidade do Uumlbermensch natildeo apenas queremos mas devemos iluminar as primeiras efetivaccedilotildees dessa arte Precisamos cantar agraves futuras geraccedilotildees o valor da superaccedilatildeo permanente Como transmutados quase a habitar naves espaciais elencar e comandar os esforccedilos que levem agrave conquista do cosmos Basta de convicccedilotildees e ateacute mesmo de verdades Entramos na era da leveza e o corpo se faz imanecircncia tensatildeo e pluralidades transitoacuterias de hierarquizaccedilotildees de forccedilas

Uma uacuteltima afirmaccedilatildeo para decifrar eacute necessaacuterio tambeacutem ultrapassar superar Ou nas palavras do Zaratustra ldquoldquoretribuiacutemos mal a um professor se continuamos sempre alunordquordquo (NIETZSCHE Assim Falou Zaratustra paacuteg 75) Que tal pois comeccedilarmos a olhar para os seacuteculos XX e XXI e buscar nas obras dos grandes fiacutesicos e matemaacuteticos elementos do pensamento nietzschiano Como o tempo proacuteprio einsteiniano ou o princiacutepio da complementaridade de Niels Bohr

Guilherme Freire da Costa

113

Referecircncias bibliograacuteficas

FilosofiaNIETZSCHE F W Sobre a Verdade e a Mentira em Sentido Extramoral Traduccedilatildeo de Fernando de Moraes Barros Satildeo Paulo Editora Hedra 2012_____ Humano Demasiado Humano Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2017_____ Humano Demasiado Humano II Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008_____ Aurora Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2016_____ A Gaia Ciecircncia Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2012_____ A Gaia Ciecircncia Traduccedilatildeo de Jean Melville Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2010_____ Assim Falou Zaratustra Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2017_____ Aleacutem do Bem e do Mal Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003_____ Beyond Good and Evil Traduccedilatildeo de Judith Norman Nova Iorque Cambridge University Press 2002_____ Genealogia da Moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2017_____ Crepuacutesculo dos Iacutedolos Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006_____ Ecce Homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995BARRENECHEA M A Nietzsche e o Corpo Rio de Janeiro Editora 7 Letras 2017BERGMANN Peter Nietzsche The ldquoLast Anti-Political Germanrdquo Bloomington Indiana University Press 1987BLONDEL Eacuteric ldquoIntroductionrdquo IN NIETZSCHE F LrsquoAnteacutechrist Paris GF-Flammarion 1994CONILL Jesuacutes El poder de la mentira Nietzsche y la poliacutetica de la transvaloracioacuten Madrid Tecnos 1997 DELEUZE G Nietzsche and Philosophy Traduccedilatildeo de Hugh Tomlinson Nova Iorque Columbia University Press 2006FOUCAULT M Nietzsche Freud e Marx Traduccedilatildeo de Jorge Lima Barreto Satildeo Paulo Princiacutepio Editora 1997_____ Nietzsche a Genealogia e a Histoacuteria in A Microfiacutesica do Poder Traduccedilatildeo de Roberto Machado Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1999GENTILI Carlo Nietzsche Madri Biblioteca Nueva 2004HEIDEGGER M Nietzsche Vol I e II Traduccedilatildeo de David Farrell Krell San Francisco Harper amp Row 1991MARTON S Das Forccedilas Coacutesmicas aos Valores Humanos Satildeo Paulo Editora Brasiliense 1990

Fiacutesica e Matemaacutetica BORN M Einsteinrsquos Theory of Relativity New York Dover Publications 1965

Superaccedilatildeo do Homem e vir-a-ser do Uumlbermensch

114

EINSTEIN A Relativity The Special and General Theory Toronto Ancient Wisdom Publications 2010GAUSS K F Theory of the Motion of the Heavenly Bodies New York Dover Publications 1973HAWKING S The Theory of Everything The Origin and Fate of the Universe California Phoenix Books 2005HEISENBERG W The Physical Principles of the Quantum Theory Traduccedilatildeo de Carl Eckart e F C Hoyt Nova Iorque Dover Publications 1949KAUFMANN W J III Black Holes and Warped Spacetime Toronto Bantam Books 1980LOBACHEVSKY N Geometrical Researches on the Theory of Parallels New York Cosimo Inc 2007MAXWELL J C A Dynamical Theory of the Electromagnetic Field Oregon Wipf and Stock Publishers 1996RIEMANN B On the Hypotheses Which Lie at the Bases of Geometry Traduccedilatildeo de William Clifford Suiacuteccedila Editora Birkhaumluser 2016SCHROumlDINGER E Space-Time Structure Nova Iorque Cambridge University Press 1985

Hailton Felipe Guiomarino

115

Para que sofrer Acerca do problema do sentido do sofrimento

Hailton Felipe Guiomarino1

Este trabalho eacute uma versatildeo sinteacutetica de anaacutelises realizadas na pesquisa de mestrado a respeito da temaacutetica do sentido do sofrimento em Nietzsche Na tentativa de identificar um horizonte teoacuterico que perpassaria as reflexotildees de Nietzsche sobre sofrimento este trabalho avalia criticamente a posiccedilatildeo de trecircs inteacuterpretes que tentam determinar um conceito de sofrimento em Nietzsche Philip Kain (Nietzsche eternal recurrence and the horror of existence) cuja interpretaccedilatildeo se assenta na noccedilatildeo de ldquoterror e horror da existecircnciardquo retirada de O nascimento da trageacutedia Christopher Janaway (On the very idea of justifying suffering e Attitudes to suffering Parfit and Nietzsche) o qual centra-se no acircmbito das consideraccedilotildees psicoloacutegicas nietzschianas e Bernard Reginster (The Affirmation of Life Nietzsche on overcoming niilism) quem parte do conceito de vontade de poder para abordar o sofrimento Apesar de reconhecer os ganhos teoacutericos que cada inteacuterprete oferece para a compreensatildeo da filosofia de Nietzsche seraacute mostrado os impasses incontornaacuteveis no empreendimento de conceituar o sofrimento O motivo ndash e aqui o trabalho propotildee sua interpretaccedilatildeo alternativa ndash reside justamente no fato de que Nietzsche natildeo esteve preocupado com a conceituaccedilatildeo do sofrimento mas sim em pensar o seu sentido

1 A interpretaccedilatildeo de Philip KainEm seu artigo Nietzsche eternal recurrence and the horror of existence Kain reflete

sobre a noccedilatildeo de ldquoterror e horror da existecircnciardquo apresentada no capiacutetulo 3 de O nascimento da trageacutedia Essa noccedilatildeo se refere agrave sabedoria do Sileno segundo a qual seria melhor aos seres humanos nunca terem nascido ou jaacute o tendo morrerem o mais raacutepido possiacutevel A razatildeo eacute que entre mundo e ser humano natildeo haveria congruecircncia pois um natildeo se conformaria ao outro Tendo uma vez nascido o ser humano estaria fadado ao acaso e ao tormento de uma existecircncia passageira repleta de sofrimento sem sentido Essa seria a visatildeo horrorosa da existecircncia a qual instauraria uma tensatildeo conflituosa entre ser humano e mundo O primeiro eacute impelido sempre novamente pelo segundo a ter que inventar uma razatildeo para suportar a indiferenccedila cruel e riacutespida com que o movimento do vir-a-ser destroacutei tudo aquilo que existe

De acordo com o capiacutetulo 7 drsquoO nascimento da trageacutedia quem contempla a visatildeo terriacutefica de que o curso do vir-a-ser destroacutei tudo sem nenhum sentido redentor eacute levado a um instado de inaniccedilatildeo similar a Hamlet A este algueacutem enojaria a accedilatildeo pois entenderia que o ser humano eacute incapaz de modificar a eterna natureza padecente das coisas Restaria

1 Doutorando Instituiccedilatildeo Universidade federal do Paranaacute (UFPR)

Para que sofrer Acerca do problema do

116

entatildeo apenas mascarar esse conhecimento com alguma ilusatildeo mediante a qual se possa viver num mundo de tormentos irreparaacuteveis Para Kain no entanto Nietzsche estaria preocupado em romper com esse modus operandi ao buscar a possibilidade de afirmar o sofrimento sem sentido Eacute na noccedilatildeo de ldquoterror e horror da existecircnciardquo que estaria o marco fundamental da empreitada filosoacutefica nietzschiana Por isso o inteacuterprete sustenta que aquela noccedilatildeo possui ldquoum profundo efeito no seu [de Nietzsche] pensamento aliaacutes que ele natildeo pode ser adequadamente entendido sem olhar a centralidade desse conceitordquo (KAIN 2007 p50) O autor passa entatildeo a desdobrar suas consequecircncias filosoacuteficas para o pensamento do eterno retorno e do amor fati com foco para suas formulaccedilotildees nrsquoA gaia ciecircncia e em Ecce Homo

O que eacute importante destacar na interpretaccedilatildeo de Philip Kain eacute a presenccedila drsquoO Nascimento da Trageacutedia como referencial teoacuterico basilar da sua argumentaccedilatildeo Nesta obra Nietzsche trabalha de fato com uma noccedilatildeo de sofrimento entendido como ocorrecircncia destituiacuteda de sentido Trata-se de uma noccedilatildeo de sofrimento bastante peculiar que natildeo o define mas ao contraacuterio justamente lhe retira todo conteuacutedo Kain se aproveita dessa vagueza semacircntica para se deslocar indiscriminadamente pelas obras e conceitos de Nietzsche Isso que pareceria uma vantagem eacute na verdade o que prejudica sua interpretaccedilatildeo Os pressupostos teoacutericos da obra de 1872 pelos quais Nietzsche estabelece a ideia de um sofrimento sem sentido inerente ao vir-a-ser estatildeo embebidos de elementos metafiacutesicos que o filoacutesofo rejeitaraacute jaacute a partir de Humano demasiado humano uma noccedilatildeo schopenhauriana de efetividade mesclada a um modelo hegeliano de uma dialeacutetica constitutiva do mundo nos impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco (EH O nascimento da trageacutedia 1) Se Nietzsche ainda fala de sofrimento sem sentido por exemplo na terceira dissertaccedilatildeo da Genealogia da Moral natildeo eacute mais fundamentado num substrato metafiacutesico O filoacutesofo tem em 1887 no seu arcabouccedilo teoacuterico uma conjuntura natildeo metafiacutesica de pensamento a fisio-psicologia de seu tempo a morte de Deus e o meacutetodo genealoacutegico Aqui o sem-sentido natildeo adveacutem mais do fundo metafiacutesico de um suposto Uno-primordial mas do proacuteprio esvaziamento e descreacutedito do pensamento metafiacutesico A insistecircncia de Philip Kain em definir o sofrimento como ocorrecircncia sem sentido a partir irrestritamente dos pressupostos teoacutericos drsquoO nascimento da trageacutedia fica por isso bastante comprometida

2 A interpretaccedilatildeo de Christopher JanawayChristopher Janaway por sua vez se propotildee a discutir se Nietzsche estaacute de algum

modo engajado com um empreendimento teoacuterico de teodiceia que visa justificar a ocorrecircncia do sofrimento no mundo Em seu artigo On the very idea of justifying suffering (2017) o inteacuterprete sustenta que a reflexatildeo nietzschiana sobre o sofrimento se situa fora de uma tradiccedilatildeo que procurou justificar o sofrimento no mundo seja enquanto teodiceia seja como teleologia laica Considerando as consequecircncias da morte de Deus e conduzindo sua filosofia com um declarado pendor anti-moral Nietzsche abandonaria a questatildeo da significaccedilatildeo uacuteltima do sofrimento ndash ainda presente na ideia de uma justificaccedilatildeo esteacutetica da existecircncia ndash em favor da adoccedilatildeo de uma abordagem psicoloacutegica que particulariza a ocorrecircncia do sofrimento Assim Nietzsche passaria a indagar pelo valor do sofrimento relativamente agraves vivecircncias de um indiviacuteduo e natildeo mais por um valor em-si

Apoacutes delinear a reflexatildeo nietzschiana no acircmbito psicoloacutegico Janaway em Attitudes to suffering Parfit and Nietzsche (2016) apresenta um Nietzsche que recusa concepccedilotildees

Hailton Felipe Guiomarino

117

normativas e objetivas destinadas a definir um valor em si para o sofrimento2 Tomando por base o aforismo 338 drsquoA gaia ciecircncia o inteacuterprete entende que isoladamente o sofrimento natildeo eacute objeto das reflexotildees de Nietzsche Natildeo haveria algo que isoladamente fosse intrinsecamente produtor de sofrimento nem que fosse mal Apenas dentro da interconexatildeo orgacircnica das vivecircncias de um indiviacuteduo o sofrimento poderia ser devidamente apreciado Na economia subjetiva das vivecircncias algo pode vir a valer como sofrimento e assumir um valor positivo ou negativo conforme puder ser assimilado pelo indiviacuteduo No interior da narrativa de uma vida pessoal o sofrimento poderia ensejar o a potencializaccedilatildeo das forccedilas de um indiviacuteduo pela superaccedilatildeo de adversidades Janaway (2016 p13-18) cunha a expressatildeo ldquocrescimento atraveacutes do sofrimentordquo (growth throught suffering) para mostrar como o sofrimento pode reconfigurar as atitudes e o entendimento de um indiviacuteduo de um modo que seja significativo para este Janaway tem em vista fenocircmenos como desenvolvimento da autonomia do aprendizado a obtenccedilatildeo de profundidade teoacuterica o aprimoramento de capacidades pessoais aleacutem do desenvolvimento de um senso de autodisciplina para estabelecer metas pessoais de vida (idem p 15)

Natildeo obstante sua criatividade e agudeza conceitual o perigo da argumentaccedilatildeo de Janaway consiste em transparecer a ideia de que ao rejeitar uma normatividade moral ou metafiacutesica Nietzsche se situaria imediatamente e tatildeo somente no restrito acircmbito de consideraccedilotildees psicoloacutegicas sobre o sofrimento Ao entender as muacuteltiplas ocorrecircncias do sofrimento (dor fiacutesica sentimentos de culpa desgosto perda solidatildeo desapontamento doenccedila revezes catastroacuteficos etc) somente na medida em que podem ser traduzidas para uma semacircntica psicoloacutegica Janaway perde de vista que Nietzsche tambeacutem desenvolveu 1) consideraccedilotildees histoacutericas sobre o sofrimento Por exemplo no aforismo 18 de Aurora ao mostrar que na eacutepoca da ldquomoralidade do costumerdquo o sofrimento era indispensaacutevel para agradar aos deuses e com isso conseguir a prosperidade da comunidade Aqui natildeo havia qualquer preocupaccedilatildeo em buscar um sentido para o sofrimento nas vivecircncias de um indiviacuteduo 2) consideraccedilotildees fisioloacutegicas como aquelas encontradas nos prefaacutecios de 1886 no aforismo 370 drsquoA gaia ciecircncia e na anaacutelise do sacerdote asceacutetico 3) por fim tambeacutem consideraccedilotildees esteacuteticas e artiacutesticas como aquelas ligadas ao tema da criaccedilatildeo em Assim falou Zaratustra ou agrave estilizaccedilatildeo da narrativa de si feita em Ecce Homo na qual Nietzsche confere um sentido para o seu sofrimento enquanto destino da humanidade

3 A interpretaccedilatildeo e Bernard ReginsterJaacute Bernard Reginster em seu livro The Affirmation of Life Nietzsche on overcoming

niilismo (2008) nas seccedilotildees dedicadas a expor o que entende por ldquoeacutetica do poderrdquo (p 176-196) elabora uma definiccedilatildeo de sofrimento em Nietzsche com base na noccedilatildeo de vontade de poder e em remissatildeo ao projeto de transvaloraccedilatildeo de todos os valores O inteacuterprete sustenta que identificar o valor positivo do sofrimento constitui o foco do projeto nietzschiano da transvaloraccedilatildeo Pois tomando como base em BM 225 e GC 338 e HH I 235 o caraacuteter distintivo da moral que Nietzsche critica seria a condenaccedilatildeo intransigente do sofrimento ao valoraacute-lo como necessariamente mal como ldquoobjeccedilatildeo agrave existecircnciardquo Desse modo mostrar que Nietzsche ressignifica o sofrimento e o reveste com um valor positivo seria na interpretaccedilatildeo de Reginster o preacute-requisito para realizar a transvaloraccedilatildeo (idem p 229-235)

2 O ponto de vista de Christopher Janaway apresentado neste paraacutegrafo tambeacutem eacute apresentado no seu artigo citado anteriormente Todavia optou-se por considera-lo tal qual aparece no artigo de 2016 haja vista estar mais exten-samente desenvolvido neste uacuteltimo Natildeo obstante o outro artigo tambeacutem foi utilizado para sopesar alteraccedilotildees na argumentaccedilatildeo e efetuar comparaccedilotildees em vista de explicitar melhor a interpretaccedilatildeo de Janaway

Para que sofrer Acerca do problema do

118

A base teoacuterica desta ressignificaccedilatildeo estaria na hipoacutetese da vontade de poder Nesta uma forccedila busca sempre superpotencializar o seu grau de poder Para tal ela requer outra forccedila que lhe oponha resistecircncia O aumento do poder viria da superaccedilatildeo dessa resistecircncia na dominaccedilatildeo da forccedila opositora Reginster define o sofrimento como sendo precisamente esta resistecircncia que uma forccedila encontra na sua busca por ampliaccedilatildeo de poder (idem p 177) Outras variantes dessa definiccedilatildeo trazem as seguintes formulaccedilotildees sofrimento como ldquoa experiecircncia de resistecircncia agrave satisfaccedilatildeo dos desejosrdquo (idem p 233) e sofrimento como se referindo ldquoao desprazer que resulta da resistecircncia agrave satisfaccedilatildeo de nossos desejosrdquo (idem p 234)

A interpretaccedilatildeo do sofrimento como resistecircncia teria implicaccedilotildees eacuteticas que para Reginster estatildeo sinteticamente esboccediladas em AC sect2 ldquoO que eacute bomrdquo pergunta Nietzsche neste paraacutegrafo ldquotudo o que eleva o sentimento de poder a vontade de poder o proacuteprio poder no homemrdquo Em seguida continua ldquoO que eacute mau mdash Tudo o que vem da fraqueza O que eacute felicidade mdash O sentimento de que o poder cresce de que uma resistecircncia eacute superadardquo Para o inteacuterprete Nietzsche apresentaria aqui uma ldquoeacutetica do poderrdquo na qual o valor ldquobomrdquo eacute definido pela superaccedilatildeo da resistecircncia Assim se a elevaccedilatildeo de poder eacute valorada como boa entatildeo a resistecircncia tambeacutem precisa secirc-lo pois esta eacute condiccedilatildeo daquela Disso se segue que se resistecircncia eacute sofrimento entatildeo no registro teoacuterico da vontade de poder o sofrimento eacute valorado como bom Nesse registro teoacuterico jaacute ocorreria uma transvaloraccedilatildeo dos valores no tocante ao sofrimento Agora este natildeo eacute mais um mero complemento acidental ou condiccedilatildeo instrumental para a felicidade mesmo que concebida nos termos de uma eacutetica do poder Nas palavras de Reginster ldquoDo ponto de vista da eacutetica do poder o sofrimento natildeo eacute algo pelo qual sob as circunstacircncias deste mundo os indiviacuteduos tem que passar em vista de serem felizes mas ao contraacuterio eacute parte do que compotildee sua proacutepria felicidaderdquo (idem p 231)

O que eacute criticaacutevel na interpretaccedilatildeo de Reginster eacute o protagonismo teoacuterico que ele confere agrave sua definiccedilatildeo de sofrimento a fim de tornar possiacutevel a transvaloraccedilatildeo de todos os valores Natildeo parece ser assim que o proacuteprio Nietzsche pensou seu projeto No final de BM 225 o filoacutesofo diz que existem problemas mais elevados que prazer sofrimento e compaixatildeo Isso natildeo quer dizer que estes temas natildeo necessitem de consideraccedilotildees filosoacuteficas Quer dizer antes que coloca-los em primeiro plano eacute uma ingenuidade pois eles pressupotildeem questotildees mais substanciais O projeto da transvaloraccedilatildeo se voltaria entatildeo para o desmonte daqueles valores pelos quais foi imposto ao vir-a-ser algum tipo de teleologia a fim de denunciar sua proveniecircncia numa constituiccedilatildeo fisio-psicoloacutegica doentia que culpabiliza a existecircncia pela ocorrecircncia do sofrimento A criacutetica aos valores negadores da vida natildeo parece necessitar de uma re-conceituaccedilatildeo do sofrimento Pois o problema natildeo estaacute no sofrimento inerente ao vir-a-ser mas nos valores que o interpretam Isso mostra que Nietzsche natildeo estaacute preocupado com a conceituaccedilatildeo do sofrimento mas sim com o sentido que ele recebe numa dada interpretaccedilatildeo Eacute mais importante mostrar a falecircncia de um padratildeo interpretativo que necessitava buscar fora do mundo uma razatildeo metafiacutesica para redimir o sofrimento terreno Desfeita essa ilusatildeo soacute resta aprender a afirmar o sofrimento inerente ao mundo Se isto se faz por uma nova conceituaccedilatildeo do sofrimento essa eacute uma questatildeo secundaacuteria e que depende primeiramente do desmonte de antigos e perniciosos sentidos ideais para a existecircncia

No mais ao centrar sua definiccedilatildeo de sofrimento no conceito de vontade de poder a interpretaccedilatildeo de Bernard Reginster seria quando muito uma interpretaccedilatildeo sustentaacutevel

Hailton Felipe Guiomarino

119

apenas para o periacuteodo teoacuterico no qual Nietzsche reconfigura suas teses a partir do seu conceito interpretativo de todo acontecer Ler com essas lentes os pensamentos de Nietzsche sobre sofrimento anteriores ao periacuteodo do surgimento do conceito de vontade de poder e do projeto de transvaloraccedilatildeo se torna portanto insustentaacutevel e ilegiacutetimo

4 Da questatildeo do conceito para a preocupaccedilatildeo com o sentido do sofrimentoDiante das criacuteticas agraves interpretaccedilotildees acima apresentadas propotildee-se a interpretaccedilatildeo

segundo a qual os impasses de uma definiccedilatildeo conceitual de sofrimento em Nietzsche se devem a uma preocupaccedilatildeo filosoacutefica mais fundamental de seu pensamento a questatildeo do sentido do sofrimento a qual dificulta a conceituaccedilatildeo por razotildees de ordem fisio-psicoloacutegica3

Em uma anotaccedilatildeo pessoal o fragmento poacutestumo 14 [89] da primavera de 1888 Nietzsche apresenta aquilo que chamou de problema do sentido do sofrimento O pano de fundo da formulaccedilatildeo do problema eacute a contraposiccedilatildeo entre os simbolismos do deus Dioniso e do Crucificado A cada um satildeo imputadas valoraccedilotildees antagocircnicas da vida na medida em que respondem diferentemente ao sofrimento inerente ao movimento de vir-a-ser da proacutepria vida Nos termos do fragmento

Dioniso contra o ldquoCrucificadordquo aqui vocecircs tecircm a oposiccedilatildeo Natildeo eacute uma diferenccedila em termos de martiacuterio - eacute soacute que o mesmo tem um sentido diferente A vida mesma sua eterna fertilidade e retorno implica o tormento a destruiccedilatildeo a vontade de aniquilaccedilatildeo No outro caso o sofrimento o ldquocrucificado como inocenterdquo vale como uma objeccedilatildeo a essa vida como foacutermula de sua condenaccedilatildeo Decifra-se o problema eacute o do sentido do sofrimento ou um sentido cristatildeo ou um sentido traacutegico No primeiro caso ele deve ser o caminho para uma existecircncia bem-aventurada (selig) no uacuteltimo a existecircncia vale como suficientemente bem-aventurada (selig) para justificar uma imensa quantidade de sofrimentoO ser humano traacutegico afirma inclusive o sofrimento mais aacutespero eacute bastante forte pleno deificante para fazecirc-loO cristatildeo nega inclusive o mais feliz dos destinos sobre a Terra eacute bastante fraco pobre deserdado para sofrer ainda em toda forma de vidaldquoO Deus na cruzrdquo eacute uma maldiccedilatildeo contra a vida uma indicaccedilatildeo para libertar-se delaO Dioniso cortado em pedaccedilos eacute uma promessa de vida esta eternamente renasceraacute e da destruiccedilatildeo retornaraacute (eKGWB FP 1888 14 [89] traduccedilatildeo nossa)

Assim apresentados Dioniso e o Crucificado satildeo duas formas opostas de valoraccedilatildeo da vida a partir da interpretaccedilatildeo do sofrimento O deus grego ao simbolizar o movimento ciacuteclico de destruiccedilatildeo e criaccedilatildeo da vida seria o siacutembolo maior de afirmaccedilatildeo desta porque expressaria em maacuteximo grau o incessante movimento de renovaccedilatildeo da proacutepria vida Para que seja possiacutevel este movimento natildeo soacute eacute necessaacuterio mas desejaacutevel o sofrimento implicado na destruiccedilatildeo de tudo o que eacute O que equivale a dizer para que haja mudanccedila deve haver o 3 A temaacutetica do sentido do sofrimento enquanto horizonte teoacuterico comum das reflexotildees nietzschianas sobre sofrimen-

to foi abordada na dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada ldquoO problema do sentido do sofrimento em Nietzscherdquo Aqui limita-se a explicitar a temaacutetica tal como aparece no periacuteodo de 1886-1888 por julgar-se que aiacute Nietzsche apresenta as razotildees pelas quais natildeo um ou outro sentido do sofrimento eacute problemaacutetico mas o ato mesmo de dar sentido ao so-frimento eacute em si problemaacutetico Com isso o tema do sentido se destacaria como a preocupaccedilatildeo geral de suas reflexotildees sobre o sofrimento

Para que sofrer Acerca do problema do

120

perecimento de um estado estaacutevel sendo o sofrimento o colapso dessa estabilidade Desse modo no siacutembolo do Dioniso o sofrimento jaacute estaria justificado na e pela proacutepria vida

Na contramatildeo o Crucificado simbolizaria a incapacidade de afirmar o sofrimento inerente ao movimento de vir-a-ser acabando por avaliaacute-lo como objeccedilatildeo agrave vida Em decorrecircncia desse movimento interpretativo construir-se-iam ideais que buscariam ocultar ou corrigir o vir-a-ser O ldquoDeus na cruzrdquo seria seu exemplo por excelecircncia na medida em que supotildee a ficccedilatildeo de um aleacutem-mundo considerado perfeito eterno estaacutevel e indolor Medindo a vida a partir desse ideal o sofrimento ganha um sentido Ele deve ser um instrumento para alcanccedilar aquela existecircncia num aleacutem-mundo Isto eacute o sofrimento rdquodeve ser o caminho para uma existecircncia bem-aventurada (selig)rdquo Somente assim ele justifica a existecircncia O sentido do sofrimento apontado pelo ideal torna a vida suportaacutevel porque ela seraacute compensada numa existecircncia no aleacutem Desse modo a vida natildeo eacute afirmada mas meramente aceita

Em ambos os casos o sofrimento eacute colocado como instacircncia decisiva para avaliaccedilatildeo da vida A resposta que se daacute ao sofrimento inerente ao movimento do vir-a-ser seraacute ou um sentido cristatildeo ou um sentido traacutegico No aforismo 370 drsquoA gaia ciecircncia Nietzsche jaacute havia trabalhado com a noccedilatildeo de que toda filosofia e toda arte pressupotildee sofredores e satildeo efetivamente a resposta idiossincraacutetica destes em relaccedilatildeo ao sofrimento inerente agrave vida Esse tipo de consideraccedilatildeo eacute no entanto introduzida fundamentalmente um ano antes nos prefaacutecios de 1886 Neste conjunto de textos em particular nos paraacutegrafos 2 e 3 do prefaacutecio a A gaia ciecircncia Nietzsche trata de filosofias que manifestam em suas proposiccedilotildees ou sauacutede ou doenccedila Ele passa a indagar natildeo mais pela verdade ou falsidade de um pensamento mas pela sua sauacutede ou doenccedila Interessa ao filoacutesofo saber sob que condiccedilotildees vitais uma dada interpretaccedilatildeo foi engendrada e que anseios ela visa responder Em 1887 Nietzsche prossegue esse modo de questionamento Ele o transforma numa ldquoheuriacutestica da necessidaderdquo e esquematiza expressotildees filosoacuteficas e artiacutesticas que nascem da superabundacircncia ou do empobrecimento de vida (GC 370) e o utiliza tambeacutem como parte do meacutetodo genealoacutegico para sondar as condiccedilotildees de emergecircncia da interpretaccedilatildeo asceacutetico-sacerdotal do sofrimento (GM III)

Esses textos de 1886-87 testemunham a preocupaccedilatildeo de Nietzsche em buscar no sofrimento a necessidade que comanda por traacutes de uma resposta saudaacutevel ou doente A terceira dissertaccedilatildeo da Genealogia da moral eacute decisiva a esse respeito Ela explicita a gecircnese de uma interpretaccedilatildeo asceacutetica do sentido De posse dela Nietzsche conhece as condiccedilotildees fisioloacutegicas pelas quais um sentido ideal eacute produzido Ela eacute obrigada a se posicionar ante a incontornaacutevel realidade do sofrimento sem sentido Eacute para domaacute-lo de alguma maneira que o ser humano eacute levado a instaurar um sentido A falta de sentido por sua vez eacute um problema imperioso que surge a partir do marco existencial da morte de Deus Quando as instacircncias suprassensiacuteveis natildeo mais podem ser consideradas paracircmetros de valor para auferir o sentido da existecircncia resta apenas a proacutepria vida terrena Na totalidade desta eacute o sofrimento o ponto crucial que decidiraacute o valor da vida e o sentido da existecircncia pois eacute ele que decidiraacute em uacuteltima instacircncia a continuidade de um indiviacuteduo na vida pela afirmaccedilatildeo dionisiacuteaca desta ou sua fuga dela num ideal

Preocupado com as condiccedilotildees fisio-psicoloacutegicas de surgimento das interpretaccedilotildees natildeo interessa tanto a Nietzsche saber como um pensador conceitua algo nem a verdade do conceito mas porque e para que ele precisa conceituar do modo como o faz Esta

Hailton Felipe Guiomarino

121

preocupaccedilatildeo com o ldquopara querdquo com a meta e a proveniecircncia eacute a preocupaccedilatildeo com o sentido Desse modo o sentido natildeo eacute uma questatildeo secundaacuteria que dependeria da conceituaccedilatildeo mas o contraacuterio O conceito dependeraacute das necessidades oriundas de constituiccedilotildees fisio-psicoloacutegicas especiacuteficas A necessidade (Beduumlrfnis) seraacute decisiva para determinar tanto a forma do sentido do sofrimento ideal ou fluido como para determinar o proacuteprio conteuacutedo desse sentido E isto justamente porque a necessidade seraacute entendida por Nietzsche como sendo ou um sintoma de fraqueza ou de forccedila fisio-psicoloacutegica Isso incide diretamente na questatildeo se o sofrimento eacute por exemplo algo a ser evitado ou apropriado como estimulante se eacute um aspecto horroroso a ser abolido ou obstaacuteculo que a vontade de poder busca para sua auto-superaccedilatildeo se seraacute moralizado como puniccedilatildeo asceacutetica ou se seraacute inocentado e estetizado Com esse olhar Nietzsche eacute mais um diagnosticador que um conceituador Eacute mais fundamental para ele responder a perguntas como que condiccedilotildees vitais impelem que o sofrimento seja interpretado a partir de uma instacircncia suprassensiacutevel E consequentemente que tipo de vida se constitui a partir dessa necessidade

Diante disso sustenta-se que a disparidade interpretativa encontrada nos inteacuterpretes analisados se deve ao fato de que Nietzsche natildeo estaacute preocupado com a conceituaccedilatildeo do sofrimento mas sim com o problema do seu sentido Natildeo se afirma com isso que natildeo haja um conceito de sofrimento em Nietzsche ou que seja impossiacutevel elaborar um Defende-se isto sim que essa empreitada precisa passar pela temaacutetica do sentido do sofrimento pois ela aponta para um perspectivismo interpretativo ligado agraves condiccedilotildees fisiopsicoloacutegicas de resposta ao sofrimento o que impossibilita uma definiccedilatildeo uacuteltima

Para que sofrer Acerca do problema do

122

Referecircncias bibliograacuteficasJANAWAY Christohper Attitudes to suffering Parfit and Nietzsche In Inquiry Na Interdisciplinary Journal of Philosophy v 60 n1-2 p 66-95 2016_____ On the very ideia of ldquojustifying sufferingrdquo In Journal of Nietzsche Studies v 48 n 2 p 152-170 2017KAIN Philip Nietzsche the eternal recurrence and the horror of existence In The Journal of Nietzsche Studies n 33 p49-63 2007NIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2012_____ Aleacutem do bem e do mal Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2005_____ Aurora Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2016_____ Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB) Disponiacutevel em lt httpwwwnietzschesourceorgeKGWB gt_____ Humano demasiado humano Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2006_____ Ecce homo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995_____ Fragmentos poacutestumos volumen IV (1885-1889) Traduccedilatildeo de Juan Luis Vermal e Joan B LLinares Madrid Tecnos 2008_____ Genealogia da moral Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ O anticristo Traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007_____ O nascimento da trageacutedia Traduccedilatildeo de J Guinsburg Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992REGINSTER Bernard The affirmation of life Nietzsche on overcoming niilism Estados Unidos Harvard University Press 2008

Isabella Vivianny Santana Heinen

123

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche O uacuteltimo homem e o aleacutem-do-homem

Isabella Vivianny Santana Heinen1

Este ensaio pretende desenvolver uma possibilidade de interpretaccedilatildeo do uacuteltimo homem e do aleacutem-do-homem atraveacutes da perspectiva criacutetica das constituiccedilotildees morais estabelecidas por Nietzsche na sua fase madura especificamente na obra Assim Falou Zaratustra Em tal obra Nietzsche faz uso de uma nova forma de escrita Inovadora ateacute mesmo no que se refere ao estilo aforismaacutetico adotado a partir de Humano demasiado humano Todavia eacute importante atentar para o fato de haver certo caacutelculo temaacutetico no que se refere a estes escritos com respeito agrave Assim Falou Zaratustra Eacute no final do quarto livro ndash e inicialmente uacuteltimo ndash de A Gaia Ciecircncia que o filoacutesofo apresenta primeiramente o personagem Zaratustra De acordo com a compreensatildeo da estrutura da obra Assim Falou Zaratustra empreendida por Andreacutes Sanchez Pascual o personagem Zaratustra viveu no seacuteculo VI ac Destaca-se que Nietzsche ao usar essa figura persa procura se afastar tal qual no iniacutecio das raiacutezes da filosofia grega da tradiccedilatildeo racionalista socraacutetico-platocircnica Haacute uma conhecida menccedilatildeo de Nietzsche a esse tema em Ecce homo elucidando que Assim Falou Zaratustra eacute o primeiro a estabelecer a dicotomia entre Bem e Mal e por isso deve ser aquele que pode superar esta separaccedilatildeo Conforme observa-se

Natildeo se indagou de mim como se deveria indagar qual eacute justamente na minha boca na boca do primeiro imoralista o significado do nome Zaratustra de facto o que constitui a unicidade tremenda daquele persa na histoacuteria eacute precisamente o contraacuterio em relaccedilatildeo a mim Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal o mecanismo genuiacuteno na engrenagem das coisas ndash a translaccedilatildeo da moral em metafiacutesica da moral como forccedila causa fim em si eacute a sua obra Mas esta pergunta seria no fundo jaacute a resposta Zaratustra criou este erro pejado de consequecircncias fatais a moral por conseguinte deve tambeacutem ser o primeiro a reconhececirc-lo (NIETZSCHE 2003 p 27)

Com Zaratustra2 o filoacutesofo teria a intenccedilatildeo de explorar uma forma diferenciada de filosofia destacando atraveacutes deste singular personagem uma maneira de transgressatildeo a ideia moral e metafiacutesica de entendimento do mundo pois o proacuteprio arranjo deste livro indica sua construccedilatildeo por imagens narrativas progressotildees histoacutericas e inclusive por um fazer

1 Universidade do Estado do Paraacute2 Segundo Viesenteiner (2013) Nietzsche apresenta seus pensamentos filosoacuteficos sem valer-se de um modo sistemaacuteti-

co e padronizado por isso mesmo natildeo deve-se ler a obra ZaZA como uma doutrina ou ainda um modelo universal de determinaccedilatildeo moral do homem A obra precisa ser interpretada segundo sua proacutepria forma musical em que cada leitor encontra para si um caminho

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche o

124

poeacutetico Mais uma vez evidenciando o distanciamento de uma escrita ou um pensamento dogmaacutetico regados por uma loacutegica obstinada a atingir a verdade

Os argumentos impressos nessa obra refletem uma linguagem que natildeo tem como fundamento dizer a verdade ou revelar uma compreensatildeo conceitual do mundo mas proporcionar uma maneira de expressatildeo diferente do posicionamento do homem ocidental

Roberto Machado (1999) salienta que Nietzsche propunha uma nova forma de filosofar a partir de moldes antagocircnicos ao dos estabelecidos desde o racionalismo socraacutetico ou seja o filoacutesofo em questatildeo tratou de questotildees filosoacuteficas com uma nova forma de seriedade decorrente de sua discordacircncia com referecircncia a expressatildeo de um modo impositivo do racionalismo e da metafiacutesica A concepccedilatildeo da alegre ciecircncia expressa precisamente este aspecto ela se propotildee a associar o rigor cientiacutefico com a possibilidade experimental de formas e interpretaccedilotildees proacuteprias da arte tendo em vista a formulaccedilatildeo de novas possibilidades de interpretaccedilatildeo da efetividade

Em vista disso no Proacutelogo de Assim Falou Zaratustra Nietzsche por intermeacutedio do discurso empreendido pelo profeta assinala

Todos os seres ateacute agora criaram algo acima de si proacuteprios e voacutes quereis ser a vazante dessa grande mareacute e antes retroceder ao animal do que superar o homem Que eacute o macaco para o homem Uma risada ou dolorosa vergonha Exatamente isso deve o homem ser para o super-homem uma risada ou dolorosa vergonha Fizestes o caminho do verme ao homem e muito em voacutes ainda eacute verme Outrora fostes macacos e ainda agora o homem eacute mais macaco do que qualquer macaco (NIETZSCHE 2011 p 12)

O filoacutesofo nessa passagem nos permite fazer uma analogia entre o animal e o uacuteltimo homem no sentido de os entender como uma vazante que se intitula inferior que necessita criar algo sobre-humano por ser incapaz de superar a si mesmo

Deste modo o homem se comporta como um verdadeiro animal pois apesar de sua racionalidade age com toda a animalidade pois usa sua razatildeo como instrumento de destruiccedilatildeo de consumaccedilatildeo de uma mentalidade que visa o desenvolvimento normatizado de suas forccedilas naturais A exemplificaccedilatildeo dessa compreensatildeo de homem eacute explorada por Nietzsche em sua obra posterior Aleacutem do bem e do mal

No homem se encontram reunidos a criatura e o criador no homem estaacute a mateacuteria isto eacute o incompleto o supeacuterfluo isto eacute a argila o lodo o absurdo o caos mas no homem tambeacutem estaacute o sopro que cria que plasma isto eacute a dureza do martelo quer dizer o espectador a divina contemplaccedilatildeo do seacutetimo dia observai o contraste entre vossa compaixatildeo que eacute a revolta da ldquocriatura que haacute no homemrdquo isto eacute aquilo que deve ser plasmado estampado batido como o ferro afinado passado pelo fogo e purificado mdash aquilo que deve e eacute constrangido a sofrer e a nossa compaixatildeo (NIETZSCHE 1992 p 98)

Segundo esse ponto de vista o homem eacute caracterizado por Nietzsche como aquele capaz de criar de reinventar de organizar e tambeacutem provocar o caos isto eacute o homem natildeo possui uma definiccedilatildeo estaacutetica ele estaacute inserido em um campo interpretativo em que ora eacute um ora eacute outro ou ainda os dois ao mesmo tempo Seus atributos constituem um sistema de forccedilas que se rompem e se ligam afirmando assim seu movimento sua possibilidade de alteraccedilatildeo

Isabella Vivianny Santana Heinen

125

Este conflito no entanto antes de estabelecer uma contraposiccedilatildeo de cunho negativo instituir-se-ia como um estaacutegio de realizaccedilatildeo do homem E que para Nietzsche em Assim Falou Zaratustra a noccedilatildeo de homem jaacute expressava essas nuances conforme observa ldquoeacute uma corda atada entre o animal e o super-homem ndash uma corda sobre um abismo [] Grande no homem eacute ser ele uma ponte e natildeo um objetivo o que pode ser amado no homem eacute ser ele uma passagem e um decliacuteniordquo (NIETZSCHE 2011 p 13) Neste acircmbito o homem natildeo eacute definido ou conceituado tatildeo pouco eacute somente um estado limiacutetrofe Ele perpassa inuacutemeras variaccedilotildees entre sua constituiccedilatildeo humana cujo decliacutenio eacute compreendido como transiccedilatildeo tracircnsito pois Nietzsche sugere uma outra conotaccedilatildeo para essa proposiccedilatildeo ldquoAmo aquele que trabalha e inventa para construir a casa para o super-homem e lhe preparar terra bicho e planta pois assim quer o seu decliacutenio Amo aquele que ama a sua virtude pois virtude eacute vontade de decliacutenio e uma flecha de anseiordquo (NIETZSCHE 2011 p 13) Ou seja o processo do homem de maleabilidade eacute sua forccedila seu impulso de virtude seu decliacutenio eacute a chance de mostrar toda a sua grandeza

Em tal medida eacute exposto por Zaratustra um modo de rebaixamento indicado pela figura do uacuteltimo homem conforme podemos verificar nas seguintes passagens ldquo[] aproxima-se o tempo em que o homem jaacute natildeo daraacute agrave luz nenhuma estrela [] Aproxima-se o tempo do homem mais despreziacutevel que jaacute natildeo sabe desprezar a si mesmordquo (NIETZSCHE 2011 p 14) reitera em seguida ldquoa terra se tornou pequena entatildeo e nela saltita o uacuteltimo homem que tudo apequena Sua espeacutecie eacute inextinguiacutevel como o pulgatildeo o uacuteltimo homem eacute o que tem vida mais longardquo (NIETZSCHE 2011 p 14) Essas consideraccedilotildees acerca do uacuteltimo homem corroboram para a inferecircncia de que essa tipologia humana reverbera a espeacutecie mais nociva do homem pois impotildee sua existecircncia tanto na incapacidade de criaccedilatildeo quanto na incapacidade de reconhecer suas proacuteprias limitaccedilotildees por orgulhar-se de sua vida confortavelmente segura

Nietzsche destaca ainda que ldquoldquoNoacutes inventamos a felicidaderdquo ndash dizem os uacuteltimos homens e piscam o olho Eles deixaram as regiotildees onde era duro viver pois necessita-se de calor Cada qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega pois necessita-se de calorrdquo (NIETZSCHE 2011 p 14) Este homem manteacutem sua existecircncia nos pequenos prazeres na ideia de felicidade pautada em um ideal mediacuteocre de fixidez e ausecircncia de infortuacutenios Com isso o homem quer garantir sua proacutepria vida ao relacionar-se com outros de sua espeacutecie preservar sua existecircncia ao comunicar-se e essa relaccedilatildeo muacutetua eacute a mais simples e comum na vida em sociedade cujo cerne eacute a vida gregaacuteria habituando-se aos conceitos e valores jaacute instaurados

Felizmente o mundo natildeo se edifica sobre instintos em que o animal de rebanho apenas bonacheiratildeo encontra a sua estreita felicidade exigir que todo laquoo homem bomraquo um animal gregaacuterio tenha olhos azuis seja beneacutevolo tenha uma laquobela almaraquo ndash ou como deseja o Sr Herbert Spencer que se torne altruiacutesta seria tirar agrave existecircncia a sua caracteriacutestica maior significaria castrar a humanidade e fazecirc-la descer a uma miseraacutevel chinesice ndash E foi o que se tentou Eis o que justamente se denominou moral Nesse sentido Zaratustra chama aos bons ora laquoos uacuteltimos homensraquo ora o laquocomeccedilo do fimraquo acima de tudo considera-os como a mais prejudicial espeacutecie de homens porque levam avante a sua existecircncia tanto agrave custa da verdade como do futuro (NIETZSCHE 2000 p 17)

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche o

126

Essa figura nietzschiana expressa um homem sem anseios proacuteprios sem vontade de criaccedilatildeo uma figura rebaixada que para se desenvolver precisa sempre de uma constituiccedilatildeo democraacutetica capaz de determinar suas accedilotildees ou seja uma tipologia que encontra no estudo genealoacutegico de Nietzsche forma cabal no tipo escravo engendrado pela moral do escravo Este tipo toma fundamentaccedilatildeo praacutetica no homem gregaacuterio moderno pois em conformidade com Giacoia ldquoeacute nessa imbricaccedilatildeo entre a ideologia do igualitarismo uniforme e sua fundamentaccedilatildeo poliacutetico-religiosa pela moral cristatilde que se esclarece o significado da figura nietzschiana do ldquouacuteltimo-homemrdquordquo (GIACOIA 2002 p 18)

Este tipo nivela-se por depender do instinto gregaacuterio se auto-afirmando somente como integrante de uma coletividade a sua altivez soacute se estabelece em bando transferindo a causa de sua solidatildeo e anguacutestia a outros Este tipo amplamente criticado pelo filoacutesofo sente o pesar da vida moderna a frustraccedilatildeo da incapacidade que acredita ser provocada pelo sistema social em que eacute constituinte simplesmente natildeo se responsabiliza conforma-se Para ele a vida eacute isso mesmo

Neste sentido a perspectiva de interpretaccedilatildeo adotada no que tange a caracterizaccedilatildeo do uacuteltimo homem diz respeito a uma postura contraacuteria a afirmaccedilatildeo da vida proveniente do conflito com seu tempo que tem a moralidade e a razatildeo como forma de esgotamento Essa tipologia se desloca como defensora dos costumes e valores constituiacutedos pois alegra-se com as pequenas realizaccedilotildees do cotidiano se deixa subordinar pelas tarefas exigidas em sociedade pela aprendizagem fornecida e por sua vez natildeo consegue se distanciar das amarras da tradiccedilatildeo Age como se essa significasse a uacutenica forma possiacutevel de vida seu modo de manifestaccedilatildeo ocorre por conveniecircncia jaacute que natildeo consegue se organizar sem as determinaccedilotildees estabelecidas

O uacuteltimo homem por conseguinte reflete exatamente o homem da modernidade porque ele natildeo eacute capaz de rebaixar a si mesmo e verificar o que eacute baixo em sua proacutepria natureza Sendo justamente em funccedilatildeo disso que Nietzsche propotildee uma superaccedilatildeo deste homem e nos sugere o aleacutem-do-homem

Por isso conforme destaca-se Nietzsche indica o aleacutem-do-homem ldquoVede eu vos ensino o super-homem ele eacute este oceano nele pode afundar o vosso grande desprezordquo (NIETZSCHE 2011 p 12) Com isso avisa que o aleacutem-do-homem diferente do uacuteltimo homem natildeo depende de um consentimento ou auxiacutelio de uma figura suprema e sobrenatural que regule sua conduta e forma de manifestaccedilatildeo diante do mundo jaacute que toma a razatildeo como uma das variadas expressotildees da capacidade humana e natildeo como a absoluta dirigente do homem O ensinamento do aleacutem-do-homem evidencia sua grandiosidade por ensinar aos homens que natildeo precisam se basear em princiacutepios externos mas a partir de suas proacuteprias criaccedilotildees configuraccedilotildees e intervenccedilotildees

Zaratustra ao trazer variadas discussotildees agrave tona natildeo procura disciacutepulos no sentido tradicional do termo pois natildeo professa por impossibilidade efetiva nenhuma doutrina Ao fazer uso de expressotildees anaacutelogas a biacuteblia ele demonstra a sua forma de parodiaacute-la ldquoCompanheiros eacute o que busca o criador e aqueles que saibam afiar suas foices Destruidores seratildeo eles chamados e desprezadores de bem e malrdquo (NIETZSCHE 2011 p 18) Os disciacutepulos a quem ele se refere diferente da versatildeo biacuteblica natildeo precisam seguir um mestre poreacutem construiacuterem outras possibilidades interpretativas isto eacute ldquoaqueles que tambeacutem criem busca Zaratustrardquo (NIETZSCHE 2011 p 19) Por conseguinte superar a filosofia que prega a necessidade de um homem capaz meramente de reproduzir as suas leis e doutrinas eacute o primeiro vieacutes para a confirmaccedilatildeo do aleacutem-do-homem

Isabella Vivianny Santana Heinen

127

Nessa medida pode-se dizer que Nietzsche no Proacutelogo de Assim Falou Zaratustra interpreta a modernidade atraveacutes da configuraccedilatildeo do uacuteltimo homem como o periacuteodo crucial de decisotildees concernente ao propoacutesito da civilizaccedilatildeo pois com o aviso do decaimento moral e dos ensinamentos cristatildeos oferece margem para outras constituiccedilotildees valorativas circundantes a dois extremos o uacuteltimo homem que natildeo passa de um apequenado ou melhor em consonacircncia com o pensamento de Machado ldquoos que natildeo sabem o que eacute amor o que eacute criaccedilatildeo e o que eacute anseio ndash isto eacute tudo o que pode servir de ponte para o super-homem -rdquo (MACHADO 1999 p 54) E como reiteraccedilatildeo a essa tipologia nietzschiana cito Stegmaier

O ldquouacuteltimo homemrdquo de quem fala Zaratustra em sua terceira tentativa de aproximar o aleacutem-do-homem ao ldquopovordquo O ldquouacuteltimo homemrdquo eacute aquele que considera a destinaccedilatildeo uacuteltima do homem a de seu tempo portanto como a destinaccedilatildeo do homem em si e deste modo potildee termo agrave destinaccedilatildeo do homem em si mesmo em suas expectativas de uma ordenaccedilatildeo da vida Tratar-se-ia para Zaratustra (com foco nas expectativas vigentes no final do seacuteculo XIX) de uma ordenaccedilatildeo em que natildeo deveria haver nenhum sofrimento ndash nenhuma frieza nenhuma dureza nenhuma doenccedila nenhuma desconfianccedila nenhuma contradiccedilatildeo social nenhum domiacutenio ndash mas somente felicidade e diversatildeo (STEGMAIER 2009 p 32-33)

Ou seja o uacuteltimo homem eacute compreendido enquanto figuraccedilatildeo de um tipo proacuteprio da modernidade que se acalenta no seio de uma vida programada cuja vida eacute regada pelas pequenas felicidades por natildeo se considerar o sofrimento ou qualquer transposiccedilatildeo social que leve a uma desorganizaccedilatildeo pois este homem precisa ser enquadrado a uma rotina que lhe conceda ao final do dia a recompensa em forma de pequenas felicidades por ter cumprido todas as tarefas necessaacuterias para a regulaccedilatildeo da vida gregaacuteria

Enquanto que o outro extremo se configura na tipologia do aleacutem-do-homem Nos discursos de Zaratustra ldquoo super-homem eacute o sentido da Terra Que a vossa vontade diga o super-homem seja o sentido da Terrardquo (NIETZSCHE 2011 p 12) pretendendo que os homens obtivessem desejo de superaccedilatildeo que criassem algo superior a eles proacuteprios e se mantivessem fieacuteis a Terra De acordo com Nietzsche ldquona verdade um rio imundo eacute o homem Eacute preciso ser um oceano para acolher um rio imundo sem se tornar impurordquo (NIETZSCHE 2011 p 12) Salienta-se portanto que o aleacutem-do-homem natildeo eacute uma ideia redentora do mundo ele eacute um ensinamento para aqueles que natildeo se satisfazem com a pequenez do homem moderno

Nesse acircmbito Nietzsche anuncia o ensinamento do aleacutem-do-homem em oposiccedilatildeo ao uacuteltimo homem mas natildeo como figura do redentor ou como representaccedilatildeo divinizada tampouco como doutrinadora e sim como aquele detentor de uma assimilaccedilatildeo dionisiacuteaca do mundo apropriado para afirmar a vida a existecircncia apto a efetuar uma nova consideraccedilatildeo de cultura Destarte a ideia de aleacutem-do-homem condiz com a possibilidade de criar e superar a si proacuteprio pois se refere ao homem adequado para enfrentar a vida sem confortos metafiacutesicos estabelecidos com a finalidade de recusa das experiecircncias de tempo e tambeacutem de impulsos corpoacutereos

O aleacutem-do-homem assim eacute compreendido enquanto o renunciador do mundo supra-sensiacutevel e o afirmador da terra e da vida exatamente como elas se apresentam Ele concerne na vontade de criar de construir de transvalorar e afirmar a vida conquistando um modo diferente de interpretaccedilatildeo Por esse motivo compreende-se que o aleacutem-do-

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche o

128

homem delineia o ldquosentido da terrardquo como uma criacutetica impetuosa agraves concepccedilotildees metafiacutesicas e dogmaacuteticas do homem

Nesse acircmbito sua oposiccedilatildeo eacute contra uma configuraccedilatildeo moral que dita que qualquer outra configuraccedilatildeo moral que o homem eventualmente deseje para si natildeo eacute possiacutevel ou seja natildeo eacute possiacutevel criar alguma coisa eacute preciso que a moral crie regule determine uma possibilidade nova Vale salientar que Zaratustra natildeo apresenta o aleacutem-do-homem como uma configuraccedilatildeo capaz de governar o uacuteltimo homem jaacute que estes satildeo empreendidos enquanto tipologias

Portanto no proacutelogo de Assim Falou Zaratustra Nietzsche salienta dois aspectos importantiacutessimos o ensinamento do aleacutem-do-homem e a tipologia criacutetica do uacuteltimo homem O ensinamento do aleacutem-do-homem significa uma condiccedilatildeo ainda irrealizaacutevel poreacutem que engendra a possibilidade de refletir acerca de uma perspectiva distinta relacionada a autossuperaccedilatildeo a dinacircmica de ldquotornar-se o que se eacuterdquo atraveacutes de uma valorizaccedilatildeo da existecircncia A sua importacircncia estaacute em sublinhar o desafio da vida e ainda assim vivecirc-la com toda a forccedila necessaacuteria Por outro lado a figura do uacuteltimo homem eacute uma advertecircncia para a cultura moderna em que Nietzsche identificava um homem domesticado nivelado e impossibilitado de pensar acerca de si e de seu tempo por consequecircncia decadente

Tal anaacutelise eacute possiacutevel a partir da interpretaccedilatildeo nietzschiana da figura do uacuteltimo homem que elucida um tipo disciplinado e incrivelmente conformado com a crenccedila em uma tal felicidade Com efeito Nietzsche verifica a desqualificaccedilatildeo e deterioraccedilatildeo da vida por meio da moralizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo dos instintos que acarreta na precariedade formativa mas sua perspectiva criacutetica permite a indicaccedilatildeo de outras formas de vida para aleacutem da degenerescecircncia constituiacuteda

Segundo essas argumentaccedilotildees observa-se que Zaratustra na primeira parte da obra inicia um processo de ensinamento da superaccedilatildeo em contraposiccedilatildeo aos valores morais a Deus aos iacutedolos e a alma Indica de tal modo como possibilidade de oposiccedilatildeo a esses aspectos o sentido da terra como o elogio do corpo e de suas manifestaccedilotildees criadoras

Para confirmar esse posicionamento Nietzsche reforccedila

Que o vosso espiacuterito e a vossa virtude sirvam ao sentido da terra irmatildeos e que o valor de todas as coisas seja novamente colocado por voacutes Por isso deveis ser combatentes Para isso deveis ser criadores Sabendo purifica-se o corpo tentando com saber ele se eleva para o homem do conhecimento todos os instintos se tornam sagrados para o elevado a alma a alma se torna alegre (NIETZSCHE 2011 p 74)

Desse modo o sentido da terra indicado pelo filoacutesofo estaacute relacionado a possibilidade inerente do homem de criar valores de desenvolver mecanismos que digam respeito a sua proacutepria singularidade Isto eacute que os valores constituiacutedos sejam empregados por agentes criadores com posicionamentos que levem em consideraccedilatildeo a configuraccedilatildeo corpoacuterea capacitados a natildeo se submeter a uma medida universal embasada em uma racionalidade que serve de paracircmetro para todas as coisas

Nesse sentido Nietzsche mostra que a vida tem uma dinacircmica ininterrupta de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo prazer e desprazer bem e mal etc e esse movimento apenas eacute possiacutevel no sentido da terra no acircmbito de suas transformaccedilotildees De acordo com Nietzsche em Ecce homo Zaratustra

Isabella Vivianny Santana Heinen

129

[] diz natildeo actua por negaccedilatildeo perante tudo aquilo a que ateacute agora se disse sim e apesar de tudo pode ser o contraacuterio de um espiacuterito que diz natildeo do mesmo modo que o espiacuterito que aguenta o maior peso do destino uma fatalidade da missatildeo pode todavia ser o mais aacutegil e para aleacutem de tudo ndash Zaratustra eacute um danccedilarino ndash como o que tem a mais implacaacutevel a mais temiacutevel visatildeo da realidade que excogitou o laquopensamento mais abissalraquo natildeo encontra apesar de tudo objecccedilatildeo alguma contra a existecircncia nem se- quer contra o seu eterno retorno ndash pelo contraacuterio depara com mais um fundamento para ele proacuteprio ser o eterno sim a todas as coisas para ser o ingente e ilimitado sim e aacutemenraquo laquoA todos os abismos levo ainda o meu dizer sim fonte de becircnccedilatildeosraquo Eis poreacutem mais urna vez ainda a noccedilatildeo de Dioniso (NIETZSCHE 2003 p 28)

Zaratustra apresenta a possibilidade do dizer sim dionisiacuteaco tanto por destruir quanto por dar existecircncia desvincula-se portanto da dual concepccedilatildeo de mundo aparente e mundo verdadeiro ou ainda da oposiccedilatildeo entre corpo e alma

Eacute necessaacuterio perceber por conseguinte que na segunda parte de Assim Falou Zaratustra Nietzsche segue com o tema da autossuperaccedilatildeo compreendendo-a como desafio sugerindo a promoccedilatildeo da vontade criadora que apresenta a superaccedilatildeo como instrumento dinacircmico de sua accedilatildeo

A partir desses aspectos Nietzsche na seccedilatildeo Do homem superior acena

Os mais preocupados perguntam hoje ldquoComo conservar o homem rdquo Mas Zaratustra eacute o primeiro e uacutenico a perguntar ldquoComo superar o homem rdquo O super-homem me estaacute no coraccedilatildeo ele eacute o primeiro e uacutenico para mim ndash e natildeo o homem natildeo o proacuteximo natildeo o mais pobre natildeo o mais sofredor natildeo o melhor (NIETZSCHE 2011 p 272)

Pode-se dizer portanto que o ensinamento de superaccedilatildeo de Zaratustra natildeo tem a finalidade da conservaccedilatildeo e promoccedilatildeo do homem ao contraacuterio possibilita o aprendizado de como superar o homem e usar as adversidades concernentes a existecircncia como mecanismo de autossuperaccedilatildeo Zaratustra natildeo estaacute desconsiderando assim a dor e o sofrimento mas estaacute analisando-as como caraacuteter afirmativo da vida como possibilidade de aperfeiccediloamento e criaccedilatildeo

Por isso em continuidade a esta seccedilatildeo Nietzsche escreve

ldquoO homem tem de se tornar melhor e piorrdquo ndash assim ensino eu O pior eacute necessaacuterio para o melhor do super-homem Para aquele pregador da gente pequena pode ter sido bom que sofresse e carregasse o pecado do homem Eu poreacutem alegro-me do grande pecado como de meu grande consolo [] Oacute homens superiores julgais que estou aqui para reparar o que fizestes mal Ou que quero preparar leitos mais cocircmodos para voacutes que sofreis Ou mostrar veredas novas e mais faacuteceis a voacutes instaacuteveis perdidos e extraviados na montanha Natildeo Natildeo Trecircs vezes natildeo Cada vez mais e melhores homens de vossa espeacutecie deveratildeo perecer - pois as coisas deveratildeo ser cada vez mais duras e difiacuteceis para voacutes Somente assim cresce o homem ateacute as alturas em que o raio o atinge e despedaccedila alto o bastante para o raio (NIETZSCHE 2011 p 273-274)

A dinacircmica de construccedilatildeo e destruiccedilatildeo em Nietzsche o

130

Segundo esta anaacutelise para Nietzsche o homem precisa experimentar tanto as caracteriacutesticas que lhe satildeo mais vergonhosas quanto aquelas que lhe parecem mais virtuosas Ainda sobre isso Nietzsche acrescenta em Aleacutem do bem e do mal

Acreditamos que a insensibilidade o perigo a escravidatildeo que se encontram sempre na rua e nos coraccedilotildees a clandestinidade a austeridade toda classe de bruxarias tudo o que eacute mau terriacutevel tiracircnica tudo que existe no homem de animal predador ou de reacuteptil eacute da mesma forma que seu oposto uacutetil para elevar o niacutevel da espeacutecie humana (NIETZSCHE 1992 p 45)

Delineia-se por conseguinte que mais uma vez o filoacutesofo faz referecircncia a um tipo-homem natildeo idealizado imperfeito sujeito as mudanccedilas naturais de seu organismo e relaccedilatildeo entre os homens Os homens superiores satildeo interpretados por Nietzsche como aqueles que natildeo produzem que natildeo criam nada natildeo criam nenhuma possibilidade do novo estando absolutamente presos no dogmatismo da humanidade Zaratustra atraveacutes do grito de socorro encontra os homens superiores da modernidade que para ele esses homens satildeo na verdade esteacutereis

Isto posto considera-se que Nietzsche salienta uma forma incomum de percepccedilatildeo do homem natildeo tenta corrigi-lo ou alcanccedilar uma verdade universal sobre ele Ele indica a importacircncia de um processo de autossuperaccedilatildeo do homem em que valoriza tambeacutem os estaacutegios de existecircncia mais baixo Do mesmo modo fala aos homens superiores que seu anseio natildeo eacute trazer consolo nem evitar o sofrimento e muito menos corrigir aquilo que se concebe como erro Zaratustra salienta que eacute por meio da superaccedilatildeo de sua proacutepria enfermidade de sua proacutepria afliccedilatildeo e desventura que o homem consegue alcanccedilar o que se eacute

Isabella Vivianny Santana Heinen

131

Referecircncias bibliograacuteficasGIACOIA Oswaldo J Criacutetica da moral como poliacutetica em Nietzsche Disponiacutevel em lthttp httpwwwrubedopscbrartigosbcrimornthtmgt Acesso em 09 de Nov de 2012_____ O uacuteltimo homem e a teacutecnica moderna Revista Natureza Humana v1 n1 Satildeo Paulo jun 1999 _____ Nietzsche amp Para aleacutem de bem e mal Rio de Janeiro Jorge Zahar 2002MACHADO Roberto Nietzsche e a verdade 2ed Rio de Janeiro Rocco 1999_____ Zaratustra ndash trageacutedia nietzscheana Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001NIETZSCHE FW Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011_____ A genealogia da moral Petroacutepolis Trad Mario Ferreira dos Santos Rio de Janeiro Vozes 2009_____ A gaia ciecircncia 6 ed Lisboa Guimaratildees Editores 2000_____ Aleacutem do bem e do mal preluacutedio a uma filosofia do futuro Trad Paulo Cezar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992_____ Ecce homo Como algueacutem se torna o que eacute Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003STEGMAIER Werner Antidoutrinas Cena e doutrina em Assim falava Zaratustra de Nietzsche In Cadernos Nietzsche nordm 25 Satildeo Paulo 2009VIESENTEINER J L Nietzsche e a vivecircncia de tornar-se o que se eacute Campinas Satildeo Paulo Editora PHI 2013

O Poder do Riso em Nietzsche

132

O Poder do Riso em Nietzsche

Ivan Risafi de Pontes1

Vivo em minha proacutepria casaalgo de algueacutem jamais imitei e ndash de cada mestre debochei que de si mesmo natildeo debocha

(Inscrito sobre a minha porta Gaia Ciecircncia)

Ich wohne in meinem eignen HausHab Niemandem nie nichts nachgemachtUnd ndash lachte noch jeden Meister ausder nicht sich selber ausgelacht

(Uumlber meiner Haustuumlr Die froumlhliche Wissenschaft)

Na obra e pensamento filosoacutefico de Friedrich Nietzsche haacute um poder do riso que nos faz crer que a sua ausecircncia implica uma impotecircncia para viver Eacute possiacutevel afirmar que o riso em Nietzsche conteacutem em si um valor afirmativo da natureza humana Sob este ponto de vista o ato de rir eacute manifestaccedilatildeo dessa proacutepria natureza de suas forccedilas imaginativas de seus incontrolaacuteveis impulsos e de seus mais profundos instintos Rir de si e dos outros eacute portanto expressatildeo de poder Um poder cuja capacidade inerente eacute de preservaccedilatildeo e construccedilatildeo da vida e do mundo

Considere-se por outro lado que devemos ter em conta ao analisar essa capacidade particular do humano no contexto do pensamento de Nietzsche o impulso destrutivo contido em cada riso Pois tambeacutem nele o caraacuteter cultural de um povo encontra aleacutem da expressatildeo para sua identidade aquilo que eacute afastado como ridiacuteculo por meio de escaacuternio e da pilheacuteria da mesma forma que o indiviacuteduo o faz ao demonstrar sua particularidade na maneira e no objeto de seu riso Nestes termos emergem algumas questotildees seria possiacutevel estabelecer limites para o riso ou para a escolha de seu objeto Seria ateacute mesmo necessaacuterio determinar uma norma eacutetica e poliacutetica para a accedilatildeo dessa idiossincrasia do ser humano Quais seriam os elementos esteacuteticos e poliacuteticos que o riso manipula

Podemos afirmar indubitavelmente que o horizonte dessas questotildees nos eacute apresentado por Nietzsche em toda amplitude de sua obra Dos textos de sua juventude ateacute a maturidade de sua obra o riso de Nietzsche ecoa numa atmosfera de libertaccedilatildeo e

1 Universidade Federal do Paraacute

Ivan Risafi de Pontes

133

destruiccedilatildeo na qual as mais diversas tensotildees da vida se enfrentam para dar testemunho do caraacuteter afirmativo do viver Como quer que seja conceitos como Amor fati o dionisiacuteaco e o espiacuterito-livre incorporam em suas accedilotildees toda a gama da alegria da dor e da vontade de viver que o riso conteacutem em si

Com efeito a filosofia como reflexatildeo seacuteria que busca um distanciamento do senso comum reconheceu no riso uma fonte de conhecimento reveladora natildeo apenas de um caraacuteter moral determinante para a formaccedilatildeo do homem mas tambeacutem de um componente antropoloacutegico e filosoacutefico que se impotildee na reflexatildeo sobre o valor da vida e a capacidade humana de reconhecer o misteacuterio o invisiacutevel a vida e a morte Agrave luz das consideraccedilotildees precedentes podemos da mesma forma indagar ateacute que ponto eacute possiacutevel refletir sobre a existecircncia de um riso proacuteprio da filosofia em oposiccedilatildeo agravequele do senso comum um riso capaz de revelar tambeacutem o dom e a natureza proacutepria da filosofia Poderia portanto o riso estabelecer-se como um elemento de distinccedilatildeo filosoacutefica em contraposiccedilatildeo ao riso das multidotildees

Isto posto vejamos rapidamente um dos exemplos que a tradiccedilatildeo nos apresenta para contextualizarmos a dinacircmica do riso seu caraacuteter pilheacuterico e de ridicularizaccedilatildeo que em alguns casos pode alcanccedilar ateacute mesmo a hostilidade Tomemos com efeito a perspectiva da multidatildeo em relaccedilatildeo agrave vida contemplativa do filoacutesofo para num segundo momento nos concentramos no poder do riso filosoacutefico O caso de Tales nos eacute conhecido Ao cair num poccedilo por ter seu olhar voltado para a infinitude do universo e natildeo para as limitaccedilotildees do mundo que o cercava o filoacutesofo astroacutelogo eacute observado por uma camponesa traacutecia Vejamos como seu comentaacuterio zombeteiro sobre a situaccedilatildeo do filoacutesofo eacute fundamentado na sabedoria popular sobre o destino do filoacutesofo escutemo-lo ldquoeis aqui um homem que estuda as estrelas e natildeo pode ver o que estaacute aos seus peacutesrdquo O proacuteprio Platatildeo em Teeteto 147a testemunha a opiniatildeo da massa sobre o modo de vida do filoacutesofo e o riso pilheacuterico que a expressa lsquoQualquer pessoa que dedique sua vida agrave filosofia estaacute vulneraacutevel a esse tipo de escaacuterniohellip Toda a raleacute se juntaraacute agrave camponesa rindo dele hellip pois em seu desamparo ele parece um tolordquo

Na figura do Zaratustra de Nietzsche por outro lado podemos analisar como o filoacutesofo apropria-se do riso como um instrumento ndash sem necessidade de normatizaacute-lo ndash para fazer dele um produtor de valores que por sua vez datildeo suporte agrave criaccedilatildeo esteacutetica e agrave (des)construccedilatildeo poliacutetica de uma sociedade e de seu tempo O abandono daquele que foi objeto do riso da multidatildeo ndash que o vecirc como encarnaccedilatildeo da tolice e da ineacutepcia para viverndash ao ser transvalorado transforma-se num instrumento de afirmaccedilatildeo dos erros proacuteprios do filoacutesofo que natildeo acredita naquilo que se encontra sob seus peacutes ou agrave sua frente Apenas o filoacutesofo que enclausurado na solidatildeo de seu poccedilo eacute capaz de rir de sua queda ndash tendo consciecircncia que ser motivo de pilheacuteria para o vulgo eacute tambeacutem motivo de riso para si consegue apoderar-se do riso como um poder de transvaloraccedilatildeo O riso do filoacutesofo sobre aquilo que foi reconhecido como ridiacuteculo pela multidatildeo transforma o risiacutevel fonte de escaacuternio e zombaria em riso prazeroso diante da liberdade de viver e andar pelo mundo segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees Eacute nesse contexto que o descer de Zaratustra de sua montanha nos mostra o mesmo destino que tem Tales apoacutes sua queda em seu poccedilo A escuridatildeo de sua casa e a solidatildeo de seu isolamento satildeo o oposto da visatildeo de um universo infinito Rir de si mesmo eacute como visto apoderar-se do ridiacuteculo daquilo que a crueldade da maioria qualifica como despreziacutevel como erro em poucas palavras eacute apontar e reconhecer em sua fraqueza a maior de suas conquistas O inscrito que Nietzsche apresenta no umbral

O Poder do Riso em Nietzsche

134

de sua morada ao visitante de sua Gaia Ciecircncia nos ensina tambeacutem que aquele que natildeo ri de seu mestre nunca aprenderaacute a rir de si mesmo Ele nunca encontraraacute em suas fraquezas em seus erros e em sua debilidade ou seja na vulnerabilidade do seu ser perante a vida no seu perecer seu proacuteprio retiro uma morada E tambeacutem natildeo teraacute o poder de sobre ela colocar sua marca seu proacuteprio inscrito

Como sabemos a criaccedilatildeo de personagens-conceituais capazes de transvalorar eacute para Nietzsche absolutamente necessaacuteria agrave luta contra o enrijecimento de valores proacuteprios da estagnaccedilatildeo da vida Como valor estabelecido eacute proacuteprio da natureza moral a luta pela sua manutenccedilatildeo e natildeo um embate a fim de alcanccedilar sua expansatildeo visto que o desencadeamento de um conflito pode ocasionar sua destruiccedilatildeo Assim de forma peremptoacuteria Nietzsche nos mostra que a cultura e a moral de uma eacutepoca negam a accedilatildeo da vontade de potecircncia como expressatildeo da proacutepria vida junto ao seu intriacutenseco sentido a saber a afirmaccedilatildeo da proacutepria vida nas suas mais diversas facetas ou seja natildeo apenas no prazer na dor no sofrimento e na luta mas tambeacutem em uma de suas mais envolventes e intrigantes formas o riso

Em uma nota da primavera de 1884 sobre uma passagem da biacuteblia encontramos uma frase reveladora sobre o poder do riso em Nietzsche principalmente quando a tomamos como antiacutepoda de sua sagraccedilatildeo esteacutetica e poliacutetica do riso ldquomaldiccedilatildeo sobre aqueles que riemrdquo anota Nietzsche sobre Luc 6 25

Eacute no contexto dessas questotildees que intentaremos traccedilar algumas reflexotildees sobre o riso no pensamento e na obra de Friedrich Nietzsche De fato levado agraves suas uacuteltimas consequecircncias como hodierno diagnoacutestico e como superaccedilatildeo do niilismo a filosofia Nietzsche busca uma afirmaccedilatildeo incondicional de todas potencialidades proacuteprias do humano e de sua natureza Acreditamos que o conhecimento traacutegico da vida do qual o jovem Nietzsche nos daacute liccedilotildees em sua primeira obra publicada O Nascimento da Trageacutedia alcanccedila o seu pendant mais natural ou seja seu irrestrito complemento artiacutestico e filosoacutefico tanto na obra intitulada Gaia Ciecircncia Die Froumlhliche Wissenschaft como na criaccedilatildeo do personagem-conceitual Zaratustra

Eis que Gaia Ciecircncia o termo e tiacutetulo criado por Nietzsche revela natildeo apenas a natureza do conhecimento e da ciecircncia como fonte de alegria ndash um dos objetos de expressatildeo do riso ndash mas um jogo de significados que a palavra gaya permite revelar qual seja a ciecircncia da alegria fundamentalmente como ciecircncia do mundo e da terra ndash Gaia na mitologia grega eacute a personificaccedilatildeo da terra Por tal motivo A Teogonia de Hesiacuteodo nos apresenta o caos como sua origem e Gaia como uma das primeiras deusas sobre a Terra O estado de Gaia eacute de gravidez o que nos remete a origem indo-germacircnica da palavra Gaia a gestante

Jaacute Zaratustra a maacutescara filosoacutefica de Nietzsche impotildeem-se no acircmbito do questionamento sobre a decadecircncia proacutepria do niilismo como primeiro e uacutenico homem que riu ao vislumbrar as luzes do mundo De origem persa o nome Zaratustra significa ldquoo proprietaacuterio de valiosos camelosrdquo Os estudiosos da cultura oriental o descrevem como ldquoo poliacuteticordquo e o ldquoxamatilderdquo a fonte de sua origem eacute encontrada no Avesta uma coletacircnea de textos sagrados na qual Zaratustra eacute apresentado como fundador de uma religiatildeo monoteiacutesta fundamentada na luta entre o bem e o mal Em um fragmento do outono de 1883 podemos ler o seguinte sobre Zaratustra e sua origem ndash tambeacutem nele Nietzsche desvendaraacute a natureza do riso agrave qual Zaratustra pertence ldquoDe onde vem Zaratustra para noacutes Quem satildeo seu pai e sua matildee O destino e o riso satildeo o pai e a matildee de Zaratustra o terriacutevel destino e o doce riso geraram tal broto Alegria como o benefiacutecio secreto da

Ivan Risafi de Pontes

135

morte lsquoEstou procurando Zaratustra Zaratustra foi perdido para mimrsquordquo (NIETZSCHE 1999 vol X p 546)2 Ou ainda numa estrofe do poema Da pobreza do riquiacutessimo no livro Nietzsche contra Wagner (NIETZSCHE 2016 p 75)

Como quer que seja uma coisa contudo eacute particularmente notaacutevel ao refletirmos sobre ambos os nomes os quais Nietzsche forjou tambeacutem como insiacutegnia para a particularidade de seu pensamento sobre o poder do riso Tanto a Gaia Ciecircncia como Zaratustra carregam em si a marca e a potecircncia do nascimento e o destino mortal da natureza humana Afinal em sua dolorosa luta de libertaccedilatildeo das trevas e do caos o nascimento nos traz ao contraacuterio do que poderiacuteamos imaginar o riso como expressatildeo da vida ateacute mesmo diante da inexoraacutevel morte Sua obra eacute trazer o mais profundo valor das profundezas da terra da mesma forma como o homem busca o ouro em suas entranhas o metal mais precioso e de maior durabilidade para a construccedilatildeo de valores No capiacutetulo ldquoDos grandes acontecimentosrdquo de Zaratustra haacute uma importante menccedilatildeo sobre a natureza auriacutefera do riso ldquomas o ouro e o riso ndash ele os tira do coraccedilatildeo da terra pois que o saibas ndash o coraccedilatildeo da terra eacute de ouro [hellip] (NIETZSCHE 2011 p 126)

Se a origem do riso encontra-se para Nietzsche no acircmago e nas entranhas auriacuteferas mais profundas da terra ao contraacuterio o que se refere agrave sua condiccedilatildeo apoacutes o nascimento ou seja agrave sua vinda agrave superfiacutecie da terra seu impulso mais natural satildeo as alturas Contrariamente ao espiacuterito da gravidade que leva tudo a baixo ndash cujas criaccedilotildees satildeo como podemos ler em Zaratustra ldquocoaccedilatildeo estatuto necessidade consequecircncia finalidade vontade bem e malrdquo (NIETZSCHE 2011 p 188) ndash rir representa um ganho de perspectiva para a afirmaccedilatildeo da vida e com ela o movimento de inversatildeo de sentidos proacuteprios da transvaloraccedilatildeo de todos os valores ldquoOlhais para cima quando buscais a elevaccedilatildeo Eu olho para baixo porque estou elevado Quem entre voacutes pode ao mesmo tempo rir e sentir-se elevado Quem sobe aos montes mais altos ri das trageacutedias do palco e da vidardquo (NIETZSCHE 2011 p 40) Nesse capiacutetulo de Zaratustra intitulado ldquoLer e escreverrdquo Nietzsche segue ainda com descriccedilotildees que revelam como a risada de Zaratustra constitui-se como um iacutendice da natureza e da filosofia natildeo somente de Zaratustra mas certamente do proacuteprio filoacutesofo O ambiente no qual esses pensamentos e a vida contraacuteria ao espiacuterito de gravidade desenvolvem-se eacute o do encantamento pela danccedila da leveza e do equiliacutebrio que permitem o voo a grandes alturas Em oposiccedilatildeo a esse meio criou-se o inferno cristatildeo e uma seriedade demoniacuteaca Para que possamos melhor entender essa caracterizaccedilatildeo do espiacuterito da gravidade por Nietzsche eacute mister reproduzi-la na iacutentegra

Eu acreditaria somente num deus que soubesse danccedilarQuando vi meu diabo achei-o seacuterio meticuloso profundo e solene era o espiacuterito da gravidade ndash ele faz todas as coisas caiacuterem Natildeo com a ira mas com o riso eacute que se mata Eia vamos matar o espiacuterito da gravidade

[hellip] Agora sou leve agora voo agora me vejo abaixo de mim agora danccedila um deus atraveacutes de mimrdquo (NIETZSCHE 2011 p 40)

A partir do que foi tematizado torna-se possiacutevel agora notar um ponto absolutamente central para o esclarecimento da particularidade do riso poliacutetico e esteacutetico de Nietzsche a saber o caraacuteter cruel do riso e essa crueldade eacute santificada segundo Nietzsche pela

2 A traduccedilatildeo de todos fragmentos-poacutestumos aqui citados eacute de responsabilidade do autor

O Poder do Riso em Nietzsche

136

proacutepria natureza do riso por sua origem e genealogia por ele ser proacuteprio do coraccedilatildeo de ouro da terra Por tais motivos o riso eacute santificado Eis que o riso eacute complementar agrave virtude do homem e do espiacuterito livre que encontram na arte a expressatildeo do seu ser e na destruiccedilatildeo de taacutebuas morais sua accedilatildeo poliacutetica

ldquoSe minha virtude eacute a virtude de um danccedilarino e muitas vezes saltei com os dois peacutes para um enlevo ouro-esmeraldaSe minha maldade eacute uma maldade sorridente que se sente em casa entre roseiras e sebes de liacuterios ndash pois no riso tudo que eacute mau se acha concentrado mas santificado e absolvido por sua proacutepria bem-aventuranccedila ndashEsse eacute meu alfa e ocircmega que tudo pesado se torne leve todo corpo danccedilarino e todo espiacuterito paacutessaro e em verdade esse eacute meu alfa e ocircmegardquo (NIETZSCHE 2011 p 221)

Sob este ponto de vista eacute importante notar que o riso em Nietzsche expressa natildeo apenas a intenccedilatildeo e natureza destrutivas do rir mas tambeacutem como jaacute dito uma crueldade ldquo[hellip] O riso eacute originalmente a expressatildeo da crueldaderdquo (NIETZSCHE 1999 vol 10 p 329) escreve Nietzsche num fragmento poacutestumo do veratildeo de 1883 No foco dessa accedilatildeo cruel age um caraacuteter poliacutetico e esteacutetico que demonstra uma aversatildeo a todo tipo de fixaccedilatildeo do ser e da vida e que busca o fortalecimento espiritual para a mudanccedila Essa risada encontra seu alvo no homem cristatildeo e decadente naquele que se guia pela virtude que apequena e pelas velhas taacutebuas morais as quais impedem o florescer de novos valores

Em outras palavras o riso cruel encontra aqui no homem que crecirc na existecircncia do livre-arbiacutetrio naquele que acredita que a posse da virtude o faraacute reconhecer a justa causa para decisotildees tomadas com base no princiacutepio de causa e efeito o motivo de sua accedilatildeo destrutiva um componente proacuteprio do niilismo o qual abre espaccedilo para a ocupaccedilatildeo do nada por meio tambeacutem da accedilatildeo da natureza esteacutetica do riso ldquoMas a voz da beleza fala suavemente insinua-se apenas nas almas mais alertas Suavemente estremeceu hoje meu escudo e sorriu para mim este eacute o sagrado riso e tremor da beleza De voacutes virtuosos riu hoje minha belezardquo (NIETZSCHE 2011 p 89) A esse homem misericordioso de natureza compassiva Nietzsche direciona a crueldade letal de sua risada E assim com base no princiacutepio exposto no aforismo 200 da Gaia Ciecircncia ldquoRir ndash Rir significa ter alegria com o mal dos outros ndash ser malicioso mas com boa consciecircnciardquo (NIETZSCHE 2001 p 156) Nietzsche imporaacute o seu riso mortiacutefero contra agravequeles que amaldiccediloaram essa forccedila primaveril da vida criando o pecado ldquoQual foi ateacute agora o maior pecado aqui na terra Natildeo foi a palavra daquele que disse lsquoAi daqueles que agora riemrsquo Ele proacuteprio natildeo achou na terra motivos para rir Entatildeo procurou mal Ateacute mesmo uma crianccedila encontra motivosrdquo (NIETZSCHE 2011 p 279) Essa passagem Do homem superior de Zaratustra eacute como vemos uma clara oposiccedilatildeo a Lucas 625 ldquomaldiccedilatildeo sobre aqueles que riemrdquo

Com efeito esse riso que destroacutei ndash como um raio que emerge na escuridatildeo demostrando sua potecircncia nas alturas e seu caraacuteter mortiacutefero ao alcanccedilar a terra ndash eacute tambeacutem mateacuteria de conhecimento para o homem superior (NIETZSCHE 1999 vol 11 p 279) Esse sentimento de prazer que o riso cruel proporciona aproxima para Nietzsche o homem da natureza dos deuses do Olimpo bem como do ganho de uma nova perspectiva proacutepria das alturas ldquoObservar as naturezas traacutegicas perecerem e ainda poder rir desprezar o mais profundo entender sentir e compaixatildeo ndash eacute divinordquo (NIETZSCHE 1999 vol 10 p 63)

Ivan Risafi de Pontes

137

Aprender a rir apresenta-se nesse contexto como uma arte que eacute proacutepria do homem superior e que vive nas alturas Para o homem que desaprendeu a rir eacute necessaacuterio a pressatildeo a luta os conflitos que fazem nascer novos pensamentos e o impele a novas conquistas

Natildeo desanimeis Que importa Quanta coisa eacute ainda possiacutevel Aprendei a rir de voacutes mesmos tal como se deve rir [hellip] O que no homem eacute mais distante mais profundo alto como as estrelas sua tremenda forccedila tudo isso natildeo ferve e se embate vossa panela [hellip] Aprendei a rir de voacutes tal como se deve rir Oacute homens superiores quanta coisa eacute ainda possiacutevel (NIETZSCHE 2011 p 278)

Da maacutecula do pecado o riso eacute libertado tornando-se sagrado no processo de transvaloraccedilatildeo daquilo que o homem tem de mais sublime em si Essa condiccedilatildeo amaldiccediloada ndash a qual natildeo se tem notiacutecias nas escrituras que Jesus filho de Deus estivesse uma uacutenica vez sujeito ndash eacute transformada por Nietzsche num agente catalisador de potecircncias essenciais agrave vida agrave produccedilatildeo poliacutetica e esteacutetica O riso transforma-se num iacutendice de poder para o desvelamento daquilo que eacute decadente no homem e nos deuses impotentes diante do riso e da danccedila A capacidade de rir como podemos ver uma arte em si no pensamento nietzschiano exige um aprendizado que busca no isolamento da natureza humana o conhecimento sobre o caraacuteter artiacutestico da criaccedilatildeo da moral Assim a incapacidade do riso de Jesus expressa para Nietzsche seu niilismo e sua impotecircncia em reconhecer o valor da vida e do riso

Essa visatildeo traacutegica da vida do filho de Deus eacute contraposta ao conhecimento traacutegico dos gregos revelado no Nascimento da Trageacutedia e agrave explosatildeo do riso sagrado que se escuta e ecoa por toda Gaia Ciecircncia bem como em Zaratustra

ldquoAinda conhecia apenas laacutegrimas e a melancolia do hebreu juntamente com o oacutedio dos bons e justos ndash o hebreu Jesus entatildeo foi acometido pelo anseio da morte Tivesse ele permanecido no deserto longe dos bons e justos Talvez tivesse aprendido a viver e aprendido a amar a terra ndash e tambeacutem o risordquo (NIETZSCHE 2011 p 71)

No destino decadente desse homem seacuterio e pesado que se une a um Deus que natildeo ri Nietzsche diagnostica o mais imperdoaacutevel em sua natureza o homem que tem o poder e natildeo quer dominar como nos relata o capiacutetulo ldquoA hora mais quietardquo de Zaratustra Ao contraacuterio do peso gigantesco que esse homem exerce sobre a vida levando-a para baixo o riso sagrado de Nietzsche provoca o impulso de poderes que flexibilizam e articulam dinamicamente o fluxo de vida necessaacuterio para a ampliaccedilatildeo de poder e com ele consequentemente as conquistas de novas perspectivas Assim nos relata um outro fragmento poacutestumo de 1888 muito semelhante agrave seccedilatildeo 6 do capiacutetulo Os sete selos de Zaratustra ldquono riso todos os maus impulsos tornam-se sagrados e ainda todas as coisas pesadas se tornam levesrdquo (NIETZSCHE 1999 vol 10 p 584)

Natildeo devemos mais nos surpreender portanto como o riso assume um papel determinante para constatarmos natildeo soacute o que eacute verdadeiro filosofar ndash o bem viver e natildeo o preparar-se para a morte socraacutetica do Feacutedon de Platatildeo ndash mas tambeacutem para diferenciar o homem que faz uso de todo o poder de sua natureza para criar valores proacuteprios e afirmativos da vida daquele que perdeu a capacidade e o poder do riso ou ainda daquele outro que ri da filosofia personagem comum em todos os tempos da histoacuteria que despreza a solidatildeo

O Poder do Riso em Nietzsche

138

a dor e a alegria que o conhecimento filosoacutefico traz para a afirmaccedilatildeo da potecircncia da vida No aforismo 183 do livro Humano demasiado Humano I Nietzsche descreve atraveacutes da metaacutefora de uma chave o comportamento de escaacuternio desses desconhecedores do riso e do poder criador de valores que os pensamentos novos satildeo capazes de criar ldquoA chave ndash Aquele pensamento ao qual sob o riso e escaacuternio dos mediacuteocres um homem eminente daacute grande valor eacute para ele uma chave de tesouros secretos e para aqueles apenas um pedaccedilo de ferro velhordquo (NIETZSCHE 2002 p 123)

No contexto desse diagnoacutestico do cristianismo como religiatildeo triste que amaldiccediloa o riso no lugar de sacralizaacute-lo Nietzsche natildeo deixa de lado uma criacutetica agrave educaccedilatildeo que deveria valorizar a natureza do riso e poder provindo dela O aforismo 177 da Gaia Ciecircncia revela no acircmbito de sua criacutetica agrave cultura superior alematilde o componente educacional a ser ganho pelo riso ldquoContribuiccedilatildeo ao lsquosistema educacionalrsquo ndash Na Alemanha falta aos homens superiores um grande meio de educaccedilatildeo a risadas dos homens superiores estes natildeo riem na Alemanhardquo (NIETZSCHE 2001 p 153)

Dito assim rir assume na filosofia de Nietzsche traccedilos e caracteriacutesticas do verdadeiro filosofar Reconhecer na dor a condiccedilatildeo fundamental da existecircncia humana e no riso a sua redenccedilatildeo torna-se o ato de potecircncia e poder proacuteprio da filosofia que se coloca diante de perspectivas que ganham das alturas a visatildeo dos abismos da natureza humana

ldquoEsqueci-me de dizer que tais filoacutesofos satildeo alegres e que gostam de sentar-se no abismo de um ceacuteu perfeitamente brilhante mdash a eles satildeo necessaacuterios outros meios para suportar a vida do que a outros homens porque eles sofrem de maneira diferente (a saber com a mesma intensidade no fundo de seu desprezo humano que no amor por ele mdash O animal mais sofredor da terra inventou para si mdash o riso (NIETZSCHE 1999 vol XI p 576)

Ao contraacuterio de Zaratustra que nasceu do ventre do riso e da Gaia que libera suas forccedilas mais profundas para o mundo o filoacutesofo necessita criar o riso por meio da invenccedilatildeo Essa forccedila esteacutetica e poliacutetica que movimenta o mundo e o liberta de suas dores e de suas amarras degenerativas dando agrave filosofia o caraacuteter libertador do riso eacute contemplada por Nietzsche como uma contrapartida diante da ameaccedila do niilismo que a cultura decadente do cristianismo inculcou no espiacuterito cansado e pesado do homem moderno Numa outra passagem dos mesmos fragmentos poacutestumos de junho-julho de 1885 encontramos um depoimento sobre como Nietzsche reconhece em si mesmo esse filoacutesofo do riso o seu proacuteprio inventor

Mas para suportar esse extremo pessimismo (como soa aqui e ali em meu lsquoNascimento da Trageacutediarsquo) lsquoviver sozinho sem Deus e moralidadersquo tive que inventar uma contrapartida Talvez eu saiba melhor por que o homem ri sozinho soacute ele sofre tatildeo profundamente que teve que inventar o riso O animal desafortunado e melancoacutelico eacute como de costume o mais alegrerdquo (NIETZSCHE 1999 vol XI p 571)

Se em Ecce Homo Nietzsche afirma ldquoestimo o valor dos homens e da raccedila pelo quatildeo necessariamente concebem o deus como inseparaacutevel do saacutetirordquo (NIETZSCHE 2001 p 40) sua filosofia do riso reconhece como uma de suas tarefas diagnosticar por meio do riso onipresente na face do saacutetiro a qualidade de um pensamento seu peso ou impulso para o fluxo ininterrupto da vida Em uma palavra eacute possiacutevel agravequele que conhece a natureza aacuteurea do riso classificar a proximidade dos filoacutesofos dos deuses do Olimpo e a autenticidade de seus conhecimentos diante da tarefa humana de viver submerso no reino da dor da existecircncia

Ivan Risafi de Pontes

139

Em Aleacutem do bem e do Mal Nietzsche nos faz saber que a seriedade imposta agrave filosofia pelo riso eacute o crivo determinante de toda filosofia demonstrando que a razatildeo filosoacutefica deve se submeter ao riso seacuterio

O viacutecio oliacutempico ndash Natildeo obstante aquele filoacutesofo que como autecircntico inglecircs tentou difamar o riso entre as cabeccedilas pensantes ndash lsquoo riso eacute uma grave enfermidade da natureza humana que toda cabeccedila pensante se empenharia em superarrsquo (Hobbes) ndash eu chegaria mesmo a fazer uma hierarquia dos filoacutesofos conforme a qualidade do seu riso ndash colocando no topo aqueles capazes da risada de ouro E supondo que tambeacutem os deuses filosofem como algumas deduccedilotildees jaacute me fizeram crer natildeo duvido que eles tambeacutem saibam rir de maneira nova e sobre-humana ndash e agrave custa de todas as coisas seacuterias Os deuses gostam de gracejos parece que mesmo em cerimonias religiosas natildeo deixam de rir (NIETZSCHE 2017 p 177)

No acircmbito de accedilatildeo do riso seacuterio Nietzsche constata um tema em relaccedilatildeo ao qual o riso natildeo deve ocorrer Trata-se da crenccedila nos dogmas impostos agrave vida pelo cristianismo e de sua maleacutefica negaccedilatildeo da natureza humana ldquoNatildeo eacute risiacutevel que algueacutem ainda acredite em uma lei santa e imutaacutevel lsquoNatildeo mentiraacutesrsquo lsquoNatildeo mataraacutesrsquo ndash em uma existecircncia cujo caraacuteter eacute a constante mentira o constante assassinatordquo (NIETZSCHE 1999 vol IX p 649)

A arte do riso a ser aprendida pelos homens de natureza superior eacute revestida da mesma leveza necessaacuteria ao bom danccedilarino Sua arte eacute aquela da superaccedilatildeo da gravidade que leva e impele tudo agrave superfiacutecie da terra Criar pensamentos leves demonstra uma posiccedilatildeo no mundo semelhante agravequela do danccedilarino que coloca em accedilatildeo o sonho de conquista daquilo que os paacutessaros alcanccedilam ao desfrutar de sua natureza quando ele se desloca do chatildeo em busca da superaccedilatildeo dos limites dos movimentos

Oacute homens superiores o pior que haacute em voacutes eacute natildeo aprendestes a danccedilar como se deve danccedilar ndash indo aleacutem de voacutes mesmo Que importa se malograstes Quanta coisa eacute ainda possiacutevel Entatildeo aprendei a rir indo aleacutem de voacutes mesmos Erguei vossos coraccedilotildees oacute bons danccedilarinos Mais alto E natildeo esqueccedilais o bom riso tampoucoEsta coroa do homem que ri esta coroa de rosas a voacutes irmatildeos arremesso esta coroa Declarei santo o riso oacute homens superiores aprendei a ndash rir (NIETZSCHE 2011 p 281)

A risada dos deuses do Olimpo a de constrangimento ou causada pelas coacutecegas do bom-humor a risada puacuteblica sobre si mesmo uma outra que soa como um relinchar ou ainda aquela que o solitaacuterio ri num monoacutelogo consigo mesmo e em sua solidatildeo No pensamento e filosofia de Friedrich Nietzsche a capacidade e o poder de rir representam em suas mais diversas formas um elemento definidor e multiplicador da desmedida vontade de viver tatildeo cara ao artista nietzschiano

Como traccedilo caracteriacutestico do homem encontrado na obra de Aristoacuteteles o riso passa a exercer em Nietzsche uma funccedilatildeo esteacutetica-filosoacutefica ateacute entatildeo nunca vista na filosofia do ocidente A accedilatildeo que se porta por traacutes do riso determina essencialmente as caracteriacutesticas e os atos dos personagens conceituais que ocupam a obra nietzschiana Natildeo apenas em Zaratustra a forccedila do riso de natureza satiacuterica abre o caminho e determina a accedilatildeo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores e sua ruptura com o pessimismo bem como com

O Poder do Riso em Nietzsche

140

o niilismo Por toda obra nietzschiana o riso desvenda o caraacuteter de transvaloraccedilatildeo o qual o mundo e a vida exigem do humano Assim constituiacutedo o riso eacute siacutembolo e expressatildeo maior da vida como vontade de potecircncia

Para Nietzsche o riso determina e acompanha portanto natildeo apenas a destruiccedilatildeo de todos os valores mas tambeacutem o fundamento de uma nova moral e o estabelecimento de valores mundanos Partindo de seu aspecto esteacutetico centrado na figura do artista cujo maior representante eacute o saacutetiro primeiro ator do ocidente e da trageacutedia grega o riso alcanccedila seu acircmbito poliacutetico e moral

A accedilatildeo do riso provoca ainda a ressonacircncia que atingiraacute os ouvidos daqueles que Nietzsche acredita ser os verdadeiros artistas A esses irmatildeos de Zaratustra Nietzsche escreve na quarta parte de seu livro dedicado a todos e a ningueacutem ldquoEsta coroa do ridente esta coroa grinalda-de-rosas a voacutes meus irmatildeos eu vos atiro esta coroa O riso eu declarei santo voacutes homens superiores aprendei ndash a rirrdquo (NIETZSCHE 2011 p 281)

O riso em Nietzsche assume assim um patamar esteacutetico-filosoacutefico no qual eacute possiacutevel vislumbrar o verdadeiro filoacutesofo e livre pensador nietzschiano ndash poeta e ator muacutesico e artista personagem conceitual e danccedilarino em uma uacutenica pessoa Com o riso santificado mas natildeo apenas com seu papel filosoacutefico e poliacutetico redefinido diante da tradiccedilatildeo da cultura ocidental Nietzsche afirmaraacute em Ecce Homo ldquoEu sou um disciacutepulo do filoacutesofo Dioniacutesio eu preferiria ser um saacutetiro do que um santordquo (NIETZSCHE 2015 p 13) O caraacuteter santificado do riso de Nietzsche constitui-se portanto como um evangelho ndash um sistema filosoacutefico coeso que busca a redefiniccedilatildeo e a revalorizaccedilatildeo do que haacute de mais humano em noacutes ndash para o filoacutesofo do futuro e livre pensador o qual encontraraacute tambeacutem no final do livro I de Humano demasiado humano a reveladora dimensatildeo do riso diante da vida

ENTRE AMIGOSUm epiloacutego1Eacute belo guardar silecircncio juntosAinda mais belo sorrir juntos ndash Sob a atenda do ceacuteu de sedaEncostado ao musgo da faiaDar boas risadas com os amigosOs dentes brancos mostrando

Se fiz bem vamos manter silecircncioSe fiz mal ndash vamos rir entatildeoE fazer sempre piorFazendo pior rindo mais altoAteacute descermos agrave cova

Amigos Assim deve ser ndash Ameacutem E ateacute mais ver (NIETZSCHE 2002 p 275)

Ivan Risafi de Pontes

141

Referecircncias bibliograacuteficasNIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia 3deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2001 _____ Friedrich Aleacutem do bem e do Mal 17deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2017 _____ Friedrich Assim falou Zaratustra 3deg ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011 _____ Friedrich Ecce Homo 4deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2015 _____ Friedrich Kristiche Studienausgabe in 15 Banden 4 deged Berlim Nova Iorque Walter de Gruyter GmbH amp Co KG 1999_____ Friedrich Humano Demasiado Humano 3deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2002_____ Friedrich Nietzsche contra Wagner 1deg ed Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2016

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

142

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo Uma reflexatildeo sobre a intoleracircncia religiosa radical a partir da Genealogia da Moral

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas1

A presenccedila marcante da palavra ldquofundamentalismordquo nos noticiaacuterios nacionais e internacionais mdash sempre associada a escacircndalos de violecircncia ou a discursos sectaacuterios de oacutedio que marcam o cotidiano de inuacutemeros paiacuteses incluindo o Brasil mdash eacute um lembrete de que estes fenocircmenos situam-se entre os grandes desafios enfrentados por governos sociedades e instituiccedilotildees democraacuteticas na atualidade

Tendo surgido na virada do seacuteculo XIX para o seacuteculo XX num contexto de disputas entre grupos de protestantes nos EUA o fundamentalismo cristatildeo sofreu um baque significativo com a repercussatildeo negativa gerada pelo julgamento do professor John Scopes em 1925 por ter desafiado a lei que proibia o ensino do evolucionismo nas escolas puacuteblicas do Tennessee

Rotulado a partir de entatildeo como um movimento retroacutegrado de minorias supersticiosas ele parecia relegado ao esquecimento ateacute seu assustador ressurgimento nas deacutecadas de 1970-1980 o qual marcou o retorno de fundamentalismos dos mais diversos matizes aos palcos da geopoliacutetica global como forccedilas impossiacuteveis de serem negligenciadas condiccedilatildeo que permanece vigente ateacute os dias atuais

Considerando-se a sua natureza complexa e multifaacuteria mdash fato amplamente reconhecido e enfatizado por estudiosos do assunto2 mdash eacute seguro afirmar que o desenvolvimento de abordagens teoacutericas diferenciadas sobre os fundamentalismos tem o potencial de contribuir de maneira decisiva para a ampliaccedilatildeo das suas possibilidades de entendimento sendo este precisamente o objetivo do presente artigo

Nossa proposta de interpretar o fundamentalismo a partir de Nietzsche insere-se num conjunto de iniciativas inauguradas em 2003 com a publicaccedilatildeo de Fundamentalismus mdash maskierter nihilismus por Christoph Tuumlrcke Anos depois esta proposta foi retomada por Oswaldo Giacoia Junior em 2006 com Terrorismos e em 2013 com Nietzsche O humano como memoacuteria e como promessa Estes trabalhos juntamente com nossa pesquisa de doutorado e os textos dela derivados constituem toda a bibliografia sobre o tema o que indica o quanto ele ainda foi pouco explorado

1 Universidade Federal do Tocantins ndash UFT2 A coletacircnea organizada por Martin E Marty e R Scott Appleby comprova a complexidade caracteriacutestica dos

fundamentalismos natildeo apenas pelo seu grande volume e diversidade (mais de 100 capiacutetulos redigidos por autores diferentes totalizando cerca de 3500 paacuteginas) mas tambeacutem pela preocupaccedilatildeo expliacutecita dos organizadores em jus-tificar o emprego do termo ldquofundamentalismordquo como um denominador comum para se referir a fenocircmenos com caracteriacutesticas significativamente diferentes entre si Cf MARTY amp APPLEBY 1991 Introduccedilatildeo

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

143

O nuacutecleo argumentativo desses trabalhos gira em torno da tese de que o surgimento e o fortalecimento dos fundamentalismos satildeo reaccedilotildees tardias contra o niilismo isto eacute contra a acentuada crise dos ideais verdades e valores de natureza metafiacutesica eou transcendente bem como do ethos religioso tradicional a qual foi acompanhada pela crescente racionalizaccedilatildeo e secularizaccedilatildeo das sociedades e de suas principais instituiccedilotildees

Se por um lado o niilismo contribui para esclarecer as dimensotildees psicoloacutegica e existencial dos fundamentalismos por outro lado pretendemos mostrar aqui como o ressentimento se relaciona diretamente com a agressividade e o segregacionismo dos fundamentalistas em relaccedilatildeo agraves sociedades secularizadas e tambeacutem aos seguidores de outras religiotildees

Independentemente das especificidades de cada crenccedila eacute certo que todos os fundamentalismos satildeo intrinsecamente marcados por uma postura combativa (MARTY amp APPLEBY 1991 p 820-826) O enfrentamento dos valores do Anticristo ou da jahiliyyah3 (feminismo poliacutetica e ciecircncia laicas toleracircncia religiosa democracia igualdade de direitos para os grupos LGBT liberdade de expressatildeo etc) exige obediecircncia inquestionaacutevel disciplina rigorosa e disposiccedilatildeo para qualquer sacrifiacutecio A paradoxal criminalidade destes defensores ferrenhos da ldquomoral e dos bons costumesrdquo ― que recorrem sem qualquer escruacutepulo agrave violecircncia brutal agrave sabotagem da poliacutetica agrave discriminaccedilatildeo e assassinato de dissidentes e opositores bem como agrave destruiccedilatildeo de siacutembolos eou templos religiosos alheios ― encontra justificativa na crenccedila de que a perfeiccedilatildeo e a justeza da causa pela qual lutam automaticamente redimiria suas transgressotildees

Diante disso nossa hipoacutetese eacute a de que a disposiccedilatildeo para a violecircncia entre os fundamentalistas eacute fruto de uma condiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica doentia marcada por um profundo grau de debilidade e inseguranccedila perante si e tambeacutem perante a alteridade

() A funccedilatildeo mais importante desse absolutismo imanente [isto eacute do fundamentalismo ndash JPSVB] eacute entretanto proteger a gente das proacuteprias duacutevidas na medida em que se imuniza o novo-velho fundamento ldquoabsolutamenterdquo contra duacutevidas de fora Mas com isso jaacute se afirma tambeacutem que o fundamentalismo eacute― de forma aparentemente paradoxal ―um filho da duacutevida justamente diante do que ele anuncia O fundamentalismo eacute cego diante de si mesmo enquanto tentativa hermeticamente fechada contra toda e qualquer criacutetica de combater e curar com ajuda da droga ldquoabsolutismordquo a deficiecircncia imunoloacutegica aniacutemico-espiritual que pertence agrave constituiccedilatildeo do homem e que o abandonaria natildeo fosse a droga sem proteccedilatildeo ao viacuterus da duacutevida ― da duacutevida diante de ldquoDeusrdquo da igreja da naccedilatildeo da identidade proacutepria ou coletiva do sentido da vida Essa duacutevida eacute sentida pelas pessoas abaladas na sua seguranccedila como uma espeacutecie de AIDS espiritual que a gente contraiu no contato demasiado iacutentimo com a modernidade Sente-se que isso pode ser letal para a feacute a igreja a naccedilatildeo o ego Por isso a difusatildeo e a intensidade do fundamentalismo satildeo indicadores do grau da duacutevida e do desespero daqueles que lhe vendem a sua alma Quem tem certeza da sua feacute do seu ldquodeusrdquo e natildeo precisa por conseguinte temer muito pode demonstrar toleracircncia compreensatildeo e mesmo amor aos que seguem outro credo que pensam diferentemente

3 Em aacuterabe ldquoera da ignoracircnciardquo No Alcoratildeo esse termo refere-se agrave condiccedilatildeo primitiva das tribos aacuterabes no periacuteodo preacute-islacircmico Sayyid Qutb (1906-1966) professor teoacutelogo e literato egiacutepcio cuja obra foi a base para o surgimento e organizaccedilatildeo de grupos fundamentalistas sunitas (tais como Boko Haram Talibatilde HAMAS Al-Qaeda e Estado Islacircmico) retira-o de seu contexto original equiparando a condiccedilatildeo corrompida de todo o mundo natildeo-islacircmico e das sociedades aacuterabes da sua eacutepoca com a jahiliyyah

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

144

Na sua autocompreensatildeo esses outros natildeo ameaccedilam a sua feacute por que ele haveria entatildeo de ameaccedilaacute-los constrangecirc-los A seguranccedila que a sua feacute lhe daacute confere-lhe uma soberania aniacutemico-espiritual que natildeo necessita de nenhuma agressividade e de nenhuma violecircncia para afirmar-se Ele natildeo sofre de nenhum grave problema de identidade que pudesse forccedilaacute-lo a partir do temor da perda da identidade a delimitar-se contra instacircncias exteriores assim por exemplo com ajuda de imagens do inimigo Ele certamente tambeacutem natildeo estaacute imune contra duacutevidas mas a sua feacute eacute suficientemente forte para mantecirc-las em xeque Por isso ele tambeacutem natildeo tem necessidade de defender o seu ldquodeusrdquo ou a sua naccedilatildeo ou os seus valores atraveacutes da construccedilatildeo de um sistema de poder institucional que precisa por sua parte ser imunizado contra influecircncias dissolventes de fora se necessaacuterio com violecircncia (KUumlNZLI 1995 p 66-67) Grifo nosso

Embora Arnold Kuumlnzli natildeo tenha se referido ao arcabouccedilo teoacuterico nietzschiano para pensar sobre o fundamentalismo suas ideias apontam justamente para nossa hipoacutetese de que as razotildees da belicosidade caracteriacutestica dos fundamentalistas residem numa profunda incapacidade desses indiviacuteduos em lidarem com o novo com o diferente com o incontrolaacutevel o que por sua vez faz com que a experiecircncia da alteridade lhes seja algo extremamente desconfortaacutevel e ameaccedilador

Quando se considera o papel desempenhado pela agressividade no modus operandi fundamentalista pode-se afirmar que o emprego da violecircncia eacute tido como um meio para a consecuccedilatildeo de um entre dois principais objetivos combater as outras religiotildees para homogeneizar uma populaccedilatildeo ou entatildeo garantir a segregaccedilatildeo dos fundamentalistas em relaccedilatildeo ao restante do mundo4 No caso de enclaves fundamentalistas em sociedades onde o isolamento total natildeo eacute possiacutevel os esforccedilos de segregaccedilatildeo se concentram em controlar o mais rigorosamente possiacutevel a influecircncia de costumes praacuteticas ou de instituiccedilotildees julgadas como desvirtuadoras tais como os meios de comunicaccedilatildeo agremiaccedilotildees sociais e instituiccedilotildees educacionais

Apesar de parecerem distintos agrave primeira vista ambos os objetivos derivam de um mesmo impulso homogeneizador Conforme as condiccedilotildees histoacutericas poliacuteticas e sociais os fundamentalistas podem se dedicar agrave eliminaccedilatildeo da alteridade que existe fora do grupo ou agrave prevenccedilatildeo do surgimento da alteridade no interior do proacuteprio grupo

O histoacuterico de atuaccedilatildeo de grupos fundamentalistas em vaacuterios paiacuteses mostra que eles procuram se isolar do restante da sociedade a partir do momento em que a eliminaccedilatildeo ou a domesticaccedilatildeo da alteridade se revela como um objetivo impossiacutevel Como exemplos pode-se mencionar o lobby fundamentalista cristatildeo protestante nos EUA em favor da educaccedilatildeo domiciliar surgido apoacutes a aprovaccedilatildeo em 1958 do National Defense Education Act o qual revogou as leis que proibiam o ensino do evolucionismo nas escolas puacuteblicas de alguns estados Diante da impossibilidade de banirem o ensino do evolucionismo para todas as crianccedilas os fundamentalistas buscaram impedir que suas proacuteprias famiacutelias tivessem contato com a ciecircncia secularizada

No acircmbito do islamismo sunita apoacutes constatar que a corrupccedilatildeo generalizada havia rebaixado o mundo islacircmico agrave condiccedilatildeo de jahiliyyah Sayyid Qutb propocircs que os verdadeiros fieis formassem comunidades isoladas

4 Este anseio segregacionista dos fundamentalistas eacute semelhante agrave distopia cinematograacutefica do filme A Vila (2004) onde um grupo de pessoas profundamente traumatizadas decide se afastar do mundo para construiacuterem o sonho de uma sociedade perfeita Cf GALLO amp VEIGA-NETO 2009

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

145

Os muccedilulmanos do presente dizia Qutb precisavam igualmente rejeitar a jahiliyyah contemporacircnea e construir um enclave islacircmico puro Podiam e de fato deviam ser gentis com os descrentes e os apoacutestatas de sua sociedade mas tinham de restringir os contatos a um miacutenimo e adotar uma poliacutetica de natildeo-cooperaccedilatildeo em assuntos vitais como a educaccedilatildeo (HADDAD apud ARMSTRONG 2001 p 275)

Jaacute os judeus haredi por sua vez em face da impossibilidade de lograrem a destruiccedilatildeo do Estado de Israel para que a regiatildeo da ldquoterra santardquo permanecesse livre de instituiccedilotildees humanas como um enorme santuaacuterio eternamente consagrado ao estudo da Toraacute e agrave praacutetica da oraccedilatildeo buscaram isolar-se do restante da sociedade israelense formando comunidades centradas em torno de suas escolas religiosas tradicionais as yeshivot

Esse impulso homogeneizador que eacute incapaz de lidar com a alteridade de uma forma que natildeo seja conflituosa origina-se a partir da constataccedilatildeo dos proacuteprios fundamentalistas de que as sociedades secularizadas exerceriam uma espeacutecie de apelo sedutor e desencaminhador irresistiacutevel para eles Daiacute o acerto da descriccedilatildeo de Kuumlnzli quando emprega um linguajar meacutedico para descrever o modo como os fundamentalistas encaram o mundo corrupto e profano que os cerca um ambiente contaminado que tem o potencial de inocular um ldquoviacuterus espiritualrdquo naqueles que com ele mantiverem um contato demasiado prolongado Prova disso eacute a intensidade e a frequecircncia com que os discursos fundamentalistas representam o mundo secular como um local simultaneamente ameaccedilador e sedutor caracterizado por viacutecios depravaccedilotildees e apostasia

A esse respeito vale destacar a importacircncia da figura do Anticristo nos discursos apocaliacutepticos dos fundamentalistas cristatildeos protestantes a qual eacute associada a uma personalidade inteligente ardilosa e de grande carisma que ldquopela dupla via da perseguiccedilatildeo temporal e da seduccedilatildeo religiosa tenta provocar o fracasso do plano divino de salvaccedilatildeordquo (SEMERARO 2003 p 30)

No acircmbito judaico os haredi acreditam que a fundaccedilatildeo do Estado de Israel seria uma desobediecircncia agraves leis divinas Da mesma forma como ocorreu com o episoacutedio biacuteblico da Torre de Babel todos aqueles que satildeo favoraacuteveis agrave existecircncia de Israel teriam sucumbido agrave tentaccedilatildeo da vaidade e do poder mundanos e portanto cometeram pecado mortal Por fim entre os muccedilulmanos xiitas as expressotildees ldquoocidentoxicaccedilatildeordquo e ldquoocidentoserdquo (ARMSTRONG 2001 p 279) cunhadas por dois intelectuais iranianos entre os anos de 1960 e 1970 natildeo deixam duacutevidas sobre onde se localizaria a fonte da corrupccedilatildeo e do desencaminhamento do povo iraniano

Eacute justamente na identificaccedilatildeo das raiacutezes da belicosidade fundamentalista numa profunda inseguranccedila e incocircmodo perante o outro que se encontra a base para o estabelecimento de uma relaccedilatildeo teoacuterica destes fenocircmenos com o ressentimento Quando considerada agrave luz do ressentimento a incapacidade dos fundamentalistas em lidar com a alteridade de uma forma que natildeo seja agressiva revela-se como o resultado de uma profunda suscetibilidade fisiopsicoloacutegica associada a um princiacutepio moral que defende a eliminaccedilatildeo das diferenccedilas em favor da absolutizaccedilatildeo de uma uacutenica perspectiva de sentido verdade e valor

Na Genealogia da Moral Nietzsche subsume sob a rubrica ldquoressentimentordquo um amplo conjunto de reflexotildees que podem ser didaticamente divididas em quatro sentidos principais todos eles presentes na primeira dissertaccedilatildeo Em primeiro lugar o termo se relaciona com a caracterizaccedilatildeo de um tipo de constituiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica na qual o

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

146

ressentido eacute apresentado como um indiviacuteduo fraco e decadente em contraposiccedilatildeo a outros mais saudaacuteveis e felizes

(hellip) Os ldquobem-nascidosrdquo se sentiam mesmo como os ldquofelizesrdquo eles natildeo tinham de construir artificialmente a sua felicidade de persuadir-se dela menti-la para si por meio de um olhar aos seus inimigos (como costumam fazer os homens do ressentimento) e do mesmo modo sendo homens plenos repletos de forccedila e portanto necessariamente ativos natildeo sabiam separar a felicidade da accedilatildeo mdash para eles ser ativo eacute parte necessaacuteria da felicidade (nisso tem origem εὖ πράττειν [fazer bem estar bem]) mdash tudo isso o oposto da felicidade no niacutevel dos impotentes opressos achacados por sentimentos hostis e venenosos nos quais ela aparece essencialmente como narcose entorpecimento sossego paz ldquosabbatrdquo distensatildeo do acircnimo e relaxamento dos membros ou numa palavra passivamente (NIETZSCHE 2004 p 30)

O segundo sentido com que Nietzsche emprega o ressentimento eacute de longe o mais conhecido devido agrave estreita associaccedilatildeo com as caracteriacutesticas do protagonista do romance Memoacuterias do Subsolo de Dostoieacutevski Aqui o filoacutesofo se refere ao modo de reagir agraves contrariedades infortuacutenios e reveses inevitaacuteveis da vida enquanto que nos indiviacuteduos bem constituiacutedos as respostas se dariam por meio de uma accedilatildeo imediata os ressentidos teriam um ldquosentimento de obstruccedilatildeo fisioloacutegicardquo (NIETZSCHE 2004 p 120) Perante uma situaccedilatildeo ou um estiacutemulo externo que provoca uma determinada reaccedilatildeo o indiviacuteduo ressentido eacute total ou parcialmente incapaz de fazecirc-la devido a esta inibiccedilatildeo de forma que a carga pulsional ao inveacutes de se descarregar para fora descarrega-se para dentro Como consequecircncia os ressentidos seriam obrigados a se contentar com uma resposta meramente imaginaacuteria ldquoA rebeliatildeo escrava na moral comeccedila quando o proacuteprio ressentimento se torna criador e gera valores o ressentimento dos seres aos quais eacute negada a verdadeira reaccedilatildeo a dos atos e que apenas por uma vinganccedila imaginaacuteria obtecircm reparaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 2004 p 28-29)

A impossibilidade de eliminaccedilatildeo eou assimilaccedilatildeo dos afetos negativos somada agrave excessiva vulnerabilidade fazem com que os ressentidos continuem sentindo e sofrendo as consequecircncias de perturbaccedilotildees passadas haacute muito tempo Como resultado previsiacutevel tem-se uma profunda ldquodesordem psiacutequicardquo (PASCHOAL 2014 p 33) caracterizada por um oacutedio e rancor crescentes acompanhados de um anseio doentio por vinganccedila por fazer sofrer aqueles considerados responsaacuteveis pela miseacuteria dos ressentidos No entanto a proacutepria natureza debilitada e inibida desses indiviacuteduos faz com que este anelo vingativo permaneccedila na praacutetica irrealizaacutevel (Idem p 33-34)

Se o termo ressentimento tivesse sido empregado por Nietzsche apenas nos dois sentidos anteriormente mencionados mdash ambos situados no acircmbito de uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas psiacutequicas fisioloacutegicas e pulsionais de um determinado tipo humano mdash eacute certo que nossa proposta de empregaacute-lo como chave de leitura do modus operandi fundamentalista natildeo seria capaz de abarcar a amplitude e as peculiaridades deste fenocircmeno

Conquanto a suscetibilidade doentia dos ressentidos possa servir como recurso para pensar tanto a origem da enorme dificuldade dos fundamentalistas em aceitar a alteridade como tambeacutem a facilidade com que eles se sentem profundamente ofendidos com provocaccedilotildees de qualquer natureza5 ainda assim os fundamentalistas natildeo se enquadrariam 5 Tomando como exemplo o ataque ao escritoacuterio da revista francesa Charlie Hebdo em janeiro de 2015 que teve como

saldo 11 mortos e 11 feridos eacute possiacutevel constatar que se um grupo de indiviacuteduos considera que a ofensa causada por algumas poucas caricaturas ordinaacuterias eacute digna de morte e de fato leva esta ameaccedila agraves vias de fato entatildeo natildeo pode haver

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

147

nem de longe na categoria nietzschiana de indiviacuteduos inibidos na sua capacidade de reagir agraves ofensas Pelo contraacuterio o que se pode observar entre eles eacute o cultivo de uma postura permanente de militacircncia ativa e de agressividade expliacutecita cuja temeridade alcanccedila as raias do autossacrifiacutecio sem se deter ante qualquer perigo ou ameaccedila

Eacute preciso ressaltar todavia que os sentidos do ressentimento que melhor se prestam a um esclarecimento sobre os fundamentalismos satildeo distintos Para aleacutem de realizar uma caracterizaccedilatildeo fisiopsicoloacutegica Nietzsche tambeacutem emprega esse termo em suas reflexotildees sobre a moral Contudo para que se consiga compreender de que forma uma constituiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica doentia e inibida se relaciona com o desenvolvimento de valores morais que sustentam um discurso radicalmente intolerante e segregacionista eacute preciso refletir sobre o modo como os fundamentalistas se relacionam com a alteridade

Toda alteridade eacute um obstaacuteculo e isso vale para todos os seres vivos Desde a infacircncia somos confrontados com indiviacuteduos e situaccedilotildees que limitam a satisfaccedilatildeo de nossos desejos e a realizaccedilatildeo plena de nossas vontades Aleacutem disso eacute de amplo conhecimento que o enfrentamento dos obstaacuteculos representados pela alteridade eacute parte fundamental do processo de desenvolvimento psicoloacutegico e emocional de todo ser humano

No entender de Nietzsche o fato dos ressentidos natildeo terem condiccedilotildees de reagir agrave altura das perturbaccedilotildees sofridas priva-os da possibilidade de descarregarem para fora de si seus impulsos negativos e frustraccedilotildees Essa condiccedilatildeo quando somada agrave incapacidade deles em assimilar as energias psiacutequicas deleteacuterias desses eventos digerindo-as (incapacidade esta que por sua vez eacute uma consequecircncia da sua fragilidade fisiopsicoloacutegica referida no primeiro sentido do ressentimento) gera como resultado uma excessiva suscetibilidade visto que o delicado equiliacutebrio desses indiviacuteduos moacuterbidos acaba sendo perturbado ateacute mesmo por ocorrecircncias insignificantes

Os ressentidos sofrem grandes dificuldades ao se confrontarem com o outro com o diferente com o imprevisiacutevel de uma forma isenta de problemas porque sua debilidade fisiopsicoloacutegica faz com que o seu fraacutegil equiliacutebrio venha a ser facilmente perturbado sempre que eles se chocam com uma alteridade que lhes eacute incontrolaacutevel e da qual natildeo conseguem se desvencilhar por meio de uma reaccedilatildeo adequada Soma-se a isso o fato de que eles satildeo incapazes de compreender (ou se compreendem relutam em aceitar) que a causa de seus malogros frustraccedilotildees e experiecircncias negativas reside primordialmente na sua proacutepria fraqueza e debilidade o que os leva a impingir a culpa das suas miseacuterias agrave existecircncia eou agrave accedilatildeo dos diferentes

A consequecircncia previsiacutevel da repeticcedilatildeo de ocorrecircncias deste tipo eacute o surgimento de um oacutedio profundo perante a alteridade acompanhado pelo anseio por desvalorizaacute-la enfraquececirc-la controlaacute-la eou destruiacute-la

A partir deste ponto podemos entatildeo falar de um terceiro sentido do ressentimento o qual se constitui numa diferenciaccedilatildeo entre dois modos possiacuteveis pelos quais os indiviacuteduos seriam levados a afirmar proacutepria individualidade e por conseguinte estruturar seus juiacutezos morais enquanto que nos fortes e saudaacuteveis o ponto de partida eacute a autoafirmaccedilatildeo (constituindo uma moral que surge a partir de um olhar que se volta para o proacuteprio indiviacuteduo) nos ressentidos a criaccedilatildeo de juiacutezos morais se daacute de forma secundaacuteria reativa derivada pois eles tecircm necessidade de olhar primeiramente para fora de si negando a alteridade para soacute entatildeo afirmarem a si proacuteprios

qualquer duacutevida quanto agrave profunda vulnerabilidade da condiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica dessas pessoas Eacute inegaacutevel a diferenccedila entre sentir-se incomodado com uma provocaccedilatildeo de gosto duvidoso e responder a ela com um ataque armado

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

148

() Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma jaacute de iniacutecio a moral escrava diz Natildeo a um ldquoforardquo um ldquooutrordquo um ldquonatildeo-eurdquo mdash e este Natildeo eacute seu ato criador Esta inversatildeo do olhar que estabelece valores mdash este necessaacuterio dirigir-se para fora em vez de voltar-se para si mdash eacute algo proacuteprio do ressentimento a moral escrava sempre requer para nascer um mundo oposto e exterior para poder agir em absoluto mdash sua accedilatildeo eacute no fundo reaccedilatildeo O contraacuterio sucede no modo de valoraccedilatildeo nobre ele age e cresce espontaneamente busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior juacutebilo e gratidatildeo mdash seu conceito negativo o ldquobaixordquo ldquocomumrdquo ldquoruimrdquo eacute apenas uma imagem de contraste paacutelida e posterior em relaccedilatildeo ao conceito baacutesico positivo inteiramente perpassado de vida e paixatildeo ldquonoacutes os nobres noacutes os bons os belos os felizesrdquo (NIETZSCHE 2004 p 29)

Eacute de se esperar que em comunidades ou grupos sociais formados majoritariamente por indiviacuteduos ressentidos essa perspectiva de mundo acabe por assumir o papel de um conjunto de valores coletivamente compartilhados de forma que os diferentes venham gradualmente a ser discriminados com intensidade cada vez maior

Como se pode facilmente prever o compartilhamento social da visatildeo de mundo e dos valores dos ressentidos acaba com o passar do tempo por servir de base para um tipo de cultura profundamente marcada pela intoleracircncia pela exclusatildeo e discriminaccedilatildeo social e nos piores casos pelo extermiacutenio dos diferentes sendo que estas formas de violecircncia satildeo justificadas pela rotulaccedilatildeo da alteridade como subversiva criminosa depravada degenerada pecaminosa maacute etc

Por fim o quarto sentido do ressentimento diz respeito a um fenocircmeno social criador de valores o qual emerge como resultado das condiccedilotildees fisiopsicoloacutegicas doentias anteriormente mencionadas6 No livro Nietzsche e o ressentimento Antonio Edmilson Paschoal avanccedila no desenvolvimento deste sentido que foi primeiramente destacado por Max Scheler afirmando que o ressentimento corresponde aiacute ldquoa uma moral a uma concepccedilatildeo de justiccedila e a um modo de intervenccedilatildeo socialrdquo (PASCHOAL 2014 p 42)

Na denominada ldquomoral de animal de rebanhordquo (ABM 202) expressatildeo que Nietzsche utiliza para sintetizar aquela forma de valoraccedilatildeo tiacutepica do ressentimento a sede de vinganccedila assume contornos de uma tentativa de domiacutenio de impor uma determinada forma de organizaccedilatildeo visando desestabilizar possiacuteveis concorrentes e intensificar o proacuteprio poder Porquanto ela natildeo se volta apenas para pretensos detratores ou para aqueles que satildeo considerados culpados pelo sofrimento do fraco mas contra todos aqueles que natildeo sofrem como ele e que portanto natildeo satildeo seus iguais

Universalizada dessa maneira a sede de vinganccedila recebe o nome de ldquojusticcedilardquo institucionalizando aquele princiacutepio de igualdade que de resto conflui numa massificaccedilatildeo disforme espalhando-se por todo o corpo social como o veneno de uma taracircntula que invade sua viacutetima Em relaccedilatildeo ao fraco tal veneno funciona como um anesteacutesico que permite a ele suportar seu sofrimento sem sucumbir a ele e em relaccedilatildeo ao forte como um entorpecimento que visa enfraquececirc-lo Em ambos os casos o propoacutesito eacute um nivelamento 6 Embora de forma menos expliacutecita que os outros trecircs sentidos mencionados ainda assim a presenccedila deste quarto

sentido do ressentimento pode ser observada nos aforismos 6 a 9 da primeira dissertaccedilatildeo onde o filoacutesofo aborda o surgimento da moral sacerdotal e o posterior conflito dela com a moral dos guerreiros o qual eacute referido como a primeira transvaloraccedilatildeo de todos os valores

Joatildeo Paulo Simotildees Vilas Bocircas

149

do homem a produccedilatildeo do rebanho universal e impedir o aparecimento de tipos diferentes de homem (PASCHOAL 2014 p 71-72)

A hipoacutetese de que o ressentimento daria ensejo ao surgimento de um anseio pelo domiacutenio absoluto de uma perspectiva unilateral de valores a qual almeja em uacuteltima instacircncia a homogeneizaccedilatildeo da humanidade e dos discursos sob uma uacutenica bandeira natildeo apenas se coaduna com uma condiccedilatildeo fisiopsicoloacutegica de excessiva fraqueza como tambeacutem parece corresponder ao modus operandi dos fundamentalismos

Considerando-se que os fundamentalistas encaram a vida nas sociedades secularizadas com seus princiacutepios democraacuteticos de igualdade Estado laico liberdade de expressatildeo etc como uma experiecircncia ofensiva e ultrajante de sofrimento e desestabilizaccedilatildeo existencial e ainda considerando-se que tanto os ateus como os religiosos liberais satildeo vistos como cuacutemplices desta sociedade corrupta entatildeo eacute certo que o desejo deles pela eliminaccedilatildeo da alteridade pode perfeitamente ser considerado como um anseio doentio por vinganccedila que rotula como culpados todos aqueles que natildeo sofrem como os fundamentalistas anseio este sintetizado por Nietzsche na conhecida sentenccedila ldquoEu sofro disso algueacutem deve ser culpadordquo (NIETZSCHE 2004 p 117)

Agrave luz da presente reflexatildeo os esforccedilos dos fundamentalistas para se afastarem do mundo natildeo se contradizem com o ideal expansivo e homogeneizador da moral do ressentimento visto que este ideal acaba por transparecer nos seus contiacutenuos esforccedilos para conquistar novos proseacutelitos Por meio do amplo emprego de teacutecnicas avanccediladas de comunicaccedilatildeo de propaganda e de psicologia de massas os fundamentalistas vecircm conseguindo engrossar suas fileiras veiculando discursos simplistas que ao mesmo tempo em que apregoam a existecircncia de uma crise religiosa e moral tambeacutem apontam quais os culpados a serem enfrentados e qual a recompensa que aguarda agravequeles que seguirem fielmente o caminho redentor

Esta surpreendente semelhanccedila entre de um lado o anseio doentio dos sacerdotes asceacuteticos ressentidos por espalharem sua cura venenosa a todos buscando deliberadamente adoecer os sadios e bem logrados com o objetivo uacuteltimo de transformar a humanidade num gigantesco rebanho de animais mansos e domesticados e de outro lado o repuacutedio escancarado de todos os discursos fundamentalistas pelo pluralismo poliacutetico e religioso pelo agonismo democraacutetico e pela liberdade de expressatildeo evidencia o significativo potencial do ressentimento para esclarecer aspectos importantes do fundamentalismo

Nietzsche ressentimento e fundamentalismo uma reflexatildeo sobre

150

Referecircncias bibliograacuteficasARMSTRONG Karen Em nome de Deus O fundamentalismo no judaiacutesmo cristianismo e islamismo Trad Hildegard Feist Satildeo Paulo Cia das Letras 2001DE BONI Luis A (Org) Fundamentalismo Porto Alegre EDIPUCRS 1995GALLO Silvio VEIGA-NETO Alfredo (Orgs) Fundamentalismo amp Educaccedilatildeo ― A Vila Belo Horizonte Autecircntica 2009GIACOIA Junior Oswaldo Nietzsche O humano como memoacuteria e como promessa Petroacutepolis Vozes 2013MARTY Martin E amp APPLEBY R Scott (Orgs) Fundamentalisms Observed ChicagoLondres The University of Chicago Press 1991NIETZSCHE Friedrich Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB) Org Paolo DrsquoLorio Disponiacutevel em lt httpwwwnietzschesourceorg gtAcesso em 09 nov 2018_____ Genealogia da Moral Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Cia das Letras 2004PACOMIO Luciano (Org) LEXICON ndash Dicionaacuterio Teoloacutegico Enciclopeacutedico Satildeo Paulo Loyola 2003PASCHOAL Antonio Edmilson Nietzsche e o ressentimento Satildeo Paulo Humanitas 2014PASSETI Edson OLIVEIRA Salete (Orgs) Terrorismos Satildeo Paulo EDUC 2006TUumlRCKE Christoph Fundamentalismus mdash maskierter Nihilismus Springe zu Klampen Verlag 2003VILAS BOcircAS Joatildeo Paulo S Niilismo fanatismo e terror uma leitura do fundamentalismo a partir de Friedrich Nietzsche 2016 Tese (Doutorado) ― Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas Universidade Estadual de Campinas Campinas

Joseacute Nicolao Juliatildeo

151

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

Joseacute Nicolao Juliatildeo1

IntroduccedilatildeoNa uacuteltima fase da sua filosofia de forma mais geral Nietzsche quis dar uma unidade

agrave sua obra como um todo isto pode ser constatado tanto nas diversas anotaccedilotildees no espoacutelio quanto no vasto epistolaacuterio2 da eacutepoca mas tambeacutem na forma organizada como reprefaciou as obras anteriores apoacutes o teacutermino de PBM No entanto do ponto de vista teoacuterico para realizar tal tarefa ele foi buscar focirclego na fecundidade do distanciamento da moral (Distanzierung von der Moral)3 Nietzsche fez do tema do distanciamento embora natildeo fosse algo novo4 uma das tarefas fundamentais da sua filosofia madura acentuando isto nos tiacutetulos dos seus tratados PBM e GM Ele procurou portanto compreender o pensamento europeu em sua totalidade a partir da sua proacutepria posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave moral contudo tinha consciecircncia que por mais que quisesse se distanciar da moral ele natildeo poderia sair totalmente do seu domiacutenio Por isso propocircs uma transvaloraccedilatildeo dos valores (Umwerthung aller Werthe) apropriando-se da historicizaccedilatildeo oferecida pelo seacuteculo XIX para fazer tal distanciamento pois uma vez que se escreve a histoacuteria de algo distanciando-se desse algo pode-se usando na medida exata a memoacuteria e o esquecimento - que o afastamento propicia - melhor avaliar esse algo tendo desta maneira a histoacuteria em geral a seu serviccedilo A moral historicizada em oposiccedilatildeo ao seu caraacuteter metafiacutesico atemporal que Nietzsche pensa desde HH I5 eacute retomada e considerada como um fato contingente que emergiu sob determinadas condiccedilotildees de existecircncia e que consequentemente pode se remodelar ou mesmo se dissolver sob outras condiccedilotildees de existecircncia e a genealogia serve exatamente para avaliar este processo

Na uacuteltima fase da sua filosofia nomeadamente fase da transvaloraccedilatildeo dos valores Nietzsche ao tratar do sentido histoacuterico a partir da histoacuteria da emergecircncia dos sentimentos morais ele o faraacute agora6 marcado essencialmente em sua relaccedilatildeo com a atividade

1 Doutor em filosofia pela UNICAMP Prof Titular da UFRRJ2 Por exemplo Cf carta para Franz Overbeck de 24 de marccedilo de 1887 (KSB 848s) carta para Meta von Salis de 14

de setembro de 1887 (KSB 8151)3 Esta eacute uma tese de Werner Stegmaier que noacutes adotamos em nossa interpretaccedilatildeo da uacuteltima fase do pensamento de

Nietzsche Cf Stegmaier 1994 p 404 Em GC 15 Nietzsche trata da questatildeo do ldquoafastamentordquo da ldquodistacircnciardquo do ldquolongerdquo que ele agraves vezes usa como Dis-

tanz ou Ferne contudo relacionando mais com questotildees esteacuteticas5 Cf HH I segunda parte ldquoContribuiccedilatildeo agrave histoacuteria dos sentimentos moraisrdquo6 Nietzsche remissivamente no prefaacutecio agrave GM diz o seguinte sobre HH ldquo[] foi agrave primeira vez que eu apresentei

a proveniecircncia daquelas hipoacuteteses as quais estas dissertaccedilotildees satildeo dedicadas com torpeza que eu seria o uacuteltimo a querer ocultar-me ainda sem liberdade sem dispor de uma linguagem proacutepria (eigne Sprache) para dizer estas coisas proacuteprias e com muacuteltiplas recaiacutedas e flutuaccedilotildees(GM prefaacutecio 4) Em nossa interpretaccedilatildeo quando Nietzsche fala de

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

152

fundamental da vontade de poder que passa a ganhar evidecircncia capital em sua obra a partir de Aurora tornando-se a sua Grundwort desde o Zaratustra e de maneira muito especial nas obras genealoacutegicas PBM e GM7 Nesse periacuteodo de modo geral tomando as obras desde PBM ateacute EH ele teraacute em relaccedilatildeo ao sentido histoacuterico uma posiccedilatildeo ora incisivamente criacutetica ora efusivamente festiva vendo-o de forma positiva dependendo do texto e contexto da sua inserccedilatildeo Deste modo em o CI vemos Nietzsche fazer um elogio ao tema muito anaacutelogo ao jaacute apresentado em HH II 17 contrapondo-o ao ldquoegipcismordquo filosoacutefico ou seja agrave falta de sentido histoacuterico dos filoacutesofos devido ao enrijecimento atemporal de suas ideias com pretensatildeo de eternidade definidas por conceitos como modo de reaccedilatildeo ao caraacuteter mutaacutevel do devir diz ele

Quereis que vos diga tudo que eacute peculiar aos filoacutesofos Por exemplo sua falta de sentido histoacuterico seu oacutedio agrave ideia do devir seu egipcismo Creem honrar uma coisa despojando-a de seu aspecto histoacuterico sub specie aeterni quando fazem dela uma muacutemia Tudo com que os filoacutesofos se ocupam haacute milhares de anos satildeo ideias mdash muacutemias nada real saiu vivo de suas matildeos Esses senhores idoacutelatras das ideias quando adoram matam e empalham tudo eacute posto em perigo de morte quando eles adoram A morte a evoluccedilatildeo a idade tanto quanto o nascimento e o crescimento satildeo para eles natildeo soacute objeccedilotildees como ateacute refutaccedilotildees O que eacute natildeo se torna natildeo se faz e o que se torna ou se faz natildeo eacute Todos acreditam desesperadamente no ser (CI ldquoA razatildeo na filosofiardquo 1)

Nas primeiras paacuteginas da mesma obra entretanto constatamos uma caricata metaacutefora para descrever o historiador que se prende ao passado acarretando assim uma grande ineacutercia para o presente ldquoA forccedila de buscar o comeccedilo se converte em um caranguejo O historiador olha para traacutes e acaba por fim tambeacutem crendo (glaubt) para traacutesrdquo (CI ldquoMaacuteximas e saacutetirasrdquo 24) Jaacute em PBM 224 KSA XI 34(229) GM I 2 e II 12 e ainda EH ldquoAs Extemporacircneasrdquo 1 notamos uma aguda criacutetica majoritariamente ao sentido histoacuterico e ao historicismo poreacutem apontando mesmo que de forma menos expressiva para certas vantagens Assim em KSA XI 34(229) do espoacutelio de 1885 vemos um tom reprovativo no que concerne ldquoao erro baacutesico de todo historiadorrdquo ao qual ele natildeo se submete - pois natildeo admite que ldquoos fatos (die facta) sejam todos bem menores do que parecem serrdquo E na referida passagem de EH remissiva agrave Ext II Nietzsche manteacutem o mesmo diagnoacutestico de doenccedila e decadecircncia do seu seacuteculo em consequecircncia do orgulho depositado no sentido histoacuterico diz ele ldquoNeste ensaio o lsquosentido histoacutericorsquo de que o presente histoacuterico tanto se orgulha eacute pela primeira vez reconhecido como doenccedila como tiacutepico sinal de decadecircnciardquo (EH ldquoAs Extemporacircneasrdquo 1) Ainda satildeo dignas de destaque no uacuteltimo periacuteodo as criacuteticas remetidas agrave fecundidade do meacutetodo evolutivo progressivo disseminado natildeo soacute na histoacuteria mas nas ciecircncias em geral ldquoprogresso eacute simplesmente uma ideia moderna ou seja uma ideia falsa O europeu de hoje vale bem menos do que o europeu do Renascimento desenvolvimento contiacutenuo natildeo eacute forccedilosamente elevar-se aperfeiccediloar-se fortalecer-serdquo (AC 4)8 Todavia o que se torna mais relevante - segundo a nossa hipoacutetese hermenecircutica - na

uma ldquolinguagem proacutepria (eigne Sprache)rdquo ele estaacute se referindo aos conceitos chaves da sua filosofia especialmente agrave vontade de poder

7 Incluindo entre essas os prefaacutecios tardios do ano de 18868 Cf tambeacutem KSA XIII 15 (8) da mesma eacutepoca com conteuacutedo parecido ldquonatildeo devemo-nos deixar enganar O

tempo caminha a diante gostariacuteamos de acreditar que tudo que estaacute nele caminhasse tambeacutem para frente ndash que o desenvolvimento eacute o que se move para adiante E quanto ao correlato do progresso a ideia de humanidade ele diz a humanidade natildeo avanccedila nem sequer existerdquo

Joseacute Nicolao Juliatildeo

153

uacuteltima fase do processo de desenvolvimento intelectual de Nietzsche em seu tratamento filosoacutefico da histoacuteria eacute a sua concepccedilatildeo de genealogia9 apresentada implicitamente em PBM e de forma muito especial em a GM Nessas obras a moral eacute historicizada a partir de novas bases contrapondo-a a visatildeo metafiacutesica-moral do mundo sendo considerada como um fato contingente que emergiu de determinadas condiccedilotildees de existecircncia e que se pode transvalorar ou mesmo se dissolver sob outras condiccedilotildees de existecircncia e por isso eacute pensada como indefiniacutevel tal como reza a exigecircncia do ldquomeacutetodordquo ldquoDefiniacutevel eacute apenas aquilo que natildeo tem nenhuma histoacuteriardquo (GM II 13)

O sentido histoacuterico e a genealogia na Genealogia da MoralA GM e a Ext II satildeo as duas obras nas quais o seu autor de forma mais ldquosistemaacuteticardquo

ndash embora repugne sistemas10 - discorre sobre a problemaacutetica da histoacuteria em sua filosofia sem contudo ligar os dois tratados natildeo haacute nenhuma referecircncia remissiva agrave obra de juventude na madura embora alguns temas sejam comuns A primeira eacute desenvolvida ainda muito influenciada pelas teses que Nietzsche apresentou em o NT que repercutiram fortemente sobre ela Jaacute a segunda eacute marcada a partir de novos paradigmas essencialmente pela atividade fundamental da vontade de poder que comeccedilou a ser delineada a partir das reflexotildees sobre o ldquosentido da potecircnciardquo em Aurora e em alguns fragmentos poacutestumos contemporacircneos mas tambeacutem por sua tentativa de oferecer uma unidade como um todo a sua obra focada na questatildeo da moral e ainda por seu distanciamento metodoloacutegico estabelecendo certo equiliacutebrio no uso da memoacuteria e do esquecimento ndash equiliacutebrio este que jaacute havia sido proposto em a Ext II - para apreender o passado Portanto em nossa hipoacutetese interpretativa depois que a GM foi apresentada como um esclarecimento (Erlaumluterung) agrave PBM ela se tornou independente se constituindo por assim dizer como o mais completo trabalho filosoacutefico de Nietzsche nela estatildeo reunidos todos os grandes temas de sua filosofia e de forma muito especial as suas consideraccedilotildees sobre a histoacuteria ndash sentido histoacuterico e niilismo - sob a insiacutegnia da genealogia

O tema do niilismo comeccedila aparecer no final da fase intermediaacuteria na filosofia de Nietzsche ganha evidecircncia precisamente em obra publicada entre o teacutermino de PBM e o iniacutecio da GM aparecendo mais destacadamente nos aforismos iniciais do quinto livro de a GC ndash os que vatildeo de 343 a 347 ndash e no conjunto poacutestumo de sentenccedilas de Lenzer-Heide ldquoO niilismo europeurdquo Em a GM11 ainda que a escrita da palavra tenha uma presenccedila tiacutemida o tema eacute recorrente ao longo dos trecircs ensaios sendo abordado tambeacutem em outros domiacutenios que natildeo o histoacuterico pois aparece ainda como sintoma de decrepitude tanto fisioloacutegico quanto psicoloacutegico A questatildeo ocorre desde o proacutelogo 4 quando confronta Schopenhauer por ter dourado e divinizado a compaixatildeo a abnegaccedilatildeo e o sacrifiacutecio transformando-os em valores em-si a partir dos quais disse um natildeo agrave vida perpassando o paraacutegrafo 12 do primeiro ensaio definindo-o como o cansaccedilo do homem por si mesmo no qual pergunta e responde ldquoo que eacute o niilismo hoje se natildeo isto Estamos cansados do homemrdquo na variada forma do niilismo compreendido como nada no paraacutegrafo 11 do segundo ensaio no qual condena como um sinal de cansaccedilo e uma hostilidade contra a vida que lanccedilaria

9 A primeira vez Nietzsche se refere a genealogia como seu pensamento filosoacutefico eacute em um fragmento do veratildeo-ou-tono de 1884 KSA XI 26 (432) no qual eacute dito ldquoQuando eu penso em minha genealogia filosoacutefica entatildeo me sinto em um contexto antiteleoloacutegico isto eacute o movimento espinosista de nosso tempo mas com uma diferenccedila que eu tambeacutem sustento que a ldquofinalidaderdquo e a ldquovontaderdquo em noacutes isto eacute um enganordquo O termo jaacute havia aparecido antes no entanto sem se referir a sua filosofia

10 Cf CI ldquoSentenccedilas e flechasrdquo 2611 Para um estudo mais apurado da relaccedilatildeo niilismo e histoacuteria em a GM cf BORN (2010)

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

154

consequentemente a humanidade futura rumo ao nada apoiado na ideia de direito de Eugen Duumlhring12 segundo a qual ldquotoda vontade deve considerar toda outra vontade como igualrdquo (GM II 11) e ganhando destaque de quem passa de coadjuvante para protagonista tambeacutem em sua variante como nada na uacuteltima linha da obra com a seguinte formulaccedilatildeo ldquoo homem ainda prefere querer o nada do que nada quererrdquo (GM III 28) Contudo em a GM a exortaccedilatildeo maior do niilismo em seu tratamento histoacuterico fica expressa na ideia de que os valores a partir dos quais a humanidade se edificou satildeo desprovidos de valor

Quanto ao termo sentido histoacuterico ele natildeo aparece cunhado sequer uma vez no tratado entretanto surge o seu similar espiacuterito histoacuterico (historischer Geist) -que o filoacutesofo jaacute havia formulado no supracitado paraacutegrafo 223 de PBM - no segundo paraacutegrafo do primeiro ensaio ldquoTodo o respeito portanto aos bons espiacuteritos que acaso habitem esses historiadores da moral Mas infelizmente eacute certo que lhes falta o proacuteprio espiacuterito histoacuterico que foram abandonados precisamente pelos bons espiacuteritos da histoacuteriardquo (GM I 2) Natildeo obstante apesar de Nietzsche natildeo falar literalmente de sentido histoacuterico em GM II 12 articulando somente a noccedilatildeo de ldquosentidordquo (ldquoSinnrdquo) de forma geneacuterica seraacute nessa seccedilatildeo que ele seraacute mais condizente lsquometodologicamentersquo com a sua ideia apresentada imediatamente logo apoacutes terminar PBM de que ldquoA filosofia tal como eu a considero como a forma mais geral da histoacuteria a tentativa de descrever e abreviar alguns sinais do vir-a-ser (Werden) heracliacutetico (traduzir e mumificar por assim dizer uma espeacutecie de ser aparente)rdquo (KSA XI 36 (27))

A exortaccedilatildeo para que a filosofia se torne histoacuterica Nietzsche algumas vezes jaacute havia se esforccedilado para mostrar isto quando por exemplo tentou descrever uma ldquohistoacuteria dos sentimentos moraisrdquo no segundo capiacutetulo de HH I ou uma ldquohistoacuteria natural da moralrdquo no quinto capiacutetulo de PBM Todavia a sua mais bem sucedida tentativa de historicizar a moral foi apresentada em a GM um livro cuja missatildeo eacute derivada a partir de uma convicccedilatildeo profunda historicista que ldquopretende conhecer sob quais condiccedilotildees e circunstacircncias que os valores morais nasceram se desenvolveram e se transformaramrdquo (GM proacutelogo 6) Com efeito a prima facie Nietzsche parece exigir um conjunto de premissas histoacutericas demonstraacuteveis tais como que realmente houve um tempo durante o qual um conjunto de valores aristocraacuteticos dominou e um momento posterior em que se tornou obsoleto devido agrave inversatildeo promovida desses valores pela moral dos escravos E chega a reivindicar a busca da ldquomoralidade como ela realmente existiu e foi realmente vividardquo ldquoa histoacuteria real da moralidaderdquo que pode ldquorealmente ser confirmada e tenha realmente existidordquo13 Isso no entanto envolveria a genealogia de Nietzsche em problemas consideraacuteveis sobre meta-histoacuteria14 e teoria da histoacuteria alguns dos quais ele mesmo apresenta Por isso para noacutes a genealogia eacute antes de tudo uma tentativa do seu autor articular a histoacuteria do desenvolvimento dos valores morais de uma forma que mine a crenccedila dos seus contemporacircneos no valor absoluto dos seus proacuteprios valores e ele faz isso em dois niacuteveis

Em primeiro lugar oferecendo uma explicaccedilatildeo histoacuterica que revela o caraacuteter intrinsecamente histoacuterico e natildeo absoluto (metafiacutesico atemporal) dos valores morais E sobre este artigo Nietzsche tinha aliados respeitaacuteveis como Paul Reacutee e a ldquoEscola Inglesardquo 12 Cf Der Wert des Lebens (1865) sobre a relaccedilatildeo de Nietzsche e Eugen Duumlhring Venturelli (2003) pp 203-23713 Cf GM proacutelogo 714 Tomamos aqui como meta-histoacuteria a investigaccedilatildeo que se propotildee a estabelecer um conjunto de regras ou leis que

regem os fatos histoacutericos e o lugar destes fatos numa visatildeo explicativa do mundo neste sentido Nietzsche teria uma antimeta-histoacuteria uma vez que em sua visatildeo histoacuterica do mundo natildeo haacute leis e regras que rejam fatos pois os fatos nem existem satildeo produtos da interpretaccedilatildeo Cf sobre uma visatildeo acerca da meta-histoacuteria na discussatildeo na teoria da histoacuteria White H (1992)

Joseacute Nicolao Juliatildeo

155

de psicologia-moral representada principalmente por Herbert Spencer15 - que seguiu a alusatildeo de Charles Darwin que mesmo a moralidade deve ser vista como um fenocircmeno evolutivo16 Mas enquanto a sua interpretaccedilatildeo de que a evoluccedilatildeo parecia garantir o status progressivo dos valores fundamentalmente cristatildeos como altruiacutesmo honestidade cooperaccedilatildeo e compaixatildeo a proacutepria ldquopsicologizaccedilatildeo-historicizadardquo de Nietzsche descobriu um lado mais obscuro da moralidade Na verdade em virtude do texto em si representar algo como um novo-darwinismo17 ou entatildeo um anti-darwinismo18 na medida em que rejeita o progresso evolutivo substituindo-o por uma visatildeo de ldquocompeticcedilatildeo entre forccedilasrdquo como um mecanismo para explicar as mudanccedilas histoacutericas Nietzsche rejeita as estimativas darwinistas refutando as suas presunccedilotildees sobre a origem do valor que repousariam no beneficiaacuterio em vez de no agente de ldquoboasrdquo ou ldquomaacutesrdquo accedilotildees acerca da natureza com a finalidade de conservaccedilatildeo19 ao inveacutes de superaraccedilatildeo sobre a passividade e o caraacuteter acidental do sucesso evolutivo e sobre a possibilidade e o valor do altruiacutesmo dentro das estruturas sociais O sucesso dessa refutaccedilatildeo reside no fato que sendo a narrativa de Nietzsche histoacuterica de alguma forma ela eacute ldquomelhorrdquo do que a alternativa soacutecio-darwinista pois eacute mais precisa e abrangente Entretanto a genealogia de Nietzsche oferece dados histoacutericos insuficientes que justifiquem a sua proacutepria interpretaccedilatildeo dos eventos e oferece poucas fontes que dificilmente comprovem muito da sua narrativa como uma histoacuteria objetiva da moralidade ela falha em grande parte para demonstrar as hipoacuteteses de Nietzsche Pelos padrotildees atuais de pesquisa em filosofia e histoacuteria das ideias as consideraccedilotildees de Nietzsche sobre o assunto seriam avaliadas como um fracassado trabalho intelectual o que ele provavelmente tomaria como elogio

Eacute no segundo niacutevel que podemos nomear de meta-histoacuterico que a genealogia nietzschiana revela a sua originalidade duradoura O filoacutesofo argumenta que a proacutepria tentativa de reconstruir a histoacuteria do desenvolvimento da moralidade tal ldquocomo ela aconteceu propriamenterdquo (wie es eigentlich gewesen ist) eacute obstruiacuteda pois o proacuteprio narrador de acontecimentos estaacute intriacutenseco na histoacuteria ou seja o proacuteprio historiador natildeo eacute sem inclinaccedilatildeo objetivamente ponto estaacutetico de observaccedilatildeo mas ele mesmo foi se tornando temporalmente carregado de valor e subjetividade Portanto ele eacute tatildeo histoacuterico e dirigidamente constituiacutedo como os valores que ele tentava explicar Ao contraacuterio dos darwinistas Nietzsche reconheceu que a histoacuteria natildeo eacute sobre como lhe dar com os fatos ldquocomo eles propriamente satildeordquo mas de interpretaacute-los de acordo com a perspectiva informada na qual o historiador foi incorporado Considerando que os darwinistas interpretaram a evoluccedilatildeo histoacuterica da moralidade como se eles proacuteprios estivessem fora dela por isso que para Nietzsche ldquocontar - apoacutes o fato - todas as doze badaladas do reloacutegio de nossa experiecircncia da nossa vida nosso ser - ah e contamos errado Pois continuamos necessariamente estranhos a noacutes mesmos noacutes natildeo nos entendemos temos que nos mal-entenderrdquo (GM proacutelogo 1) Os valores e tambeacutem a concepccedilatildeo de que noacutes mesmos como criadores de valores afetamos dinamicamente o caminho pelo qual se interpreta estes 15 Cf GM I 3 e II 1216 Spencer foi fortemente influenciado por Darwin em 1864 ele forjou em seu livro Principles of Biology a expressatildeo

a ldquosobrevivecircncia do mais aptordquo Deste modo ele procurou aplicar em sua obra as leis da evoluccedilatildeo a todos os niacuteveis da atividade humana O filoacutesofo aplicou agrave sociologia ideias que retirou das ciecircncias naturais criando um sistema de pensamento muito influente em seu tempo Segundo ele a natureza eacute fonte da verdade incluindo a verdade moral Cf sobre Spencer Francis Mark (2007)

17 Sobre o darwinismo de Nietzsche cf Richardson (2004)18 Sobre o antidarwinismo de Nietzsche cf Johnson (2010)19 Cf KSA XII 7 (25) Comparar com GC 352 PBM 253 GM Prefaacutecio 7 CI lsquoIncursotildeesrsquo 14 KSA XI 442 KSA XIII

14 (123)

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

156

valores de modo que a tentativa de re-apresentar o ldquoprimeiro sinal (signo)rdquo que o valor original livre das distorccedilotildees de geraccedilotildees para substituir a reformulaccedilatildeo e sobretudo a transvaloraccedilatildeo desses valores torna-se impossiacutevel Consequentemente diz Nietzsche

Como procederam neste caso ateacute agora os genealogistas morais Ingenuamente como sempre - eles descobrem no castigo uma lsquofinalidade (Zwerck)rsquo qualquer por exemplo a vinganccedila ou a intimidaccedilatildeo entatildeo despreocupadamente colocam essa finalidade no comeccedilo como causa fiendi (causa da origem) do castigo e ndash eacute tudo Mas lsquofinalidade no direitorsquo eacute a uacuteltima coisa a se aplicar na histoacuteria da emergecircncia do direito pois natildeo haacute proposiccedilatildeo mais importante para toda historiografia do que esta que com grande esforccedilo se conquistou mas que tambeacutem deveria ser realmente conquistada ndash o de que a causa da emergecircncia de uma coisa e a sua utilidade final a sua efetiva utilizaccedilatildeo e inserccedilatildeo em um sistema de finalidades diferem toto coelo (totalmente) de que algo existente que de alguma forma chegou a se efetivar eacute sempre reinterpretado para novo fins requisitado de modo novo transformado e redirecionado para uma nova utilidade por um poder que lhe eacute superior de que todo acontecimento do mundo orgacircnico eacute um subjugar e assenhorear-se e todo subjugar e assenhorear-se eacute uma nova interpretaccedilatildeo um ajuste no qual o ldquosentidordquo e a ldquofinalidaderdquo anteriores satildeo necessariamente obscurecidos ou completamente obliterados [] Mas todos os fins e utilidades satildeo apenas um sinal de que a vontade de poder assenhoreou-se sobre algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma funccedilatildeo e toda a histoacuteria de uma lsquocoisarsquo um oacutergatildeo um uso pode ser desse modo uma ininterrupta cadeia contiacutenua de sinais de sempre novas interpretaccedilotildees e ajustes cujas causas nem precisam estar relacionadas entre si antes podendo se suceder e substituir de maneira meramente aleatoacuteria (GM II 12)

Esta talvez seja a mais importante passagem senatildeo de toda filosofia de Nietzsche pelo menos da obra madura nela o filoacutesofo apresenta toda forccedila do seu ldquomeacutetodordquo genealoacutegico combatendo a ideia de finalidade em teoria e consequentemente a sucessatildeo causal progressiva apresentando como alternativa a doutrina da vontade de poder compreendida como disputa entre forccedilas na determinaccedilatildeo do sentido de algo Portanto natildeo haacute fato histoacuterico antes do estabelecimento da conjugaccedilatildeo do embate entre forccedilas Nessa magistral passagem Nietzsche oferece a explicaccedilatildeo mais penetrante entre as suas consideraccedilotildees sobre a histoacuteria no periacuteodo de maturidade vale a pena por isso uma investigaccedilatildeo mais cuidadosa Parece haver trecircs teses inter-relacionadas Primeiro a histoacuteria praticada corretamente deve estar coadunada com a natureza verdadeira da realidade Para Nietzsche os outros ldquogenealogistasrdquo - que neste contexto satildeo representados principalmente por Paul Reacutee e os moralistas de inspiraccedilatildeo darwinista como Herbert Spencer - estatildeo em uma posiccedilatildeo de vantagem em relaccedilatildeo aos filoacutesofos metafiacutesicos como Platatildeo Spinoza e Kant por exemplo na medida em que acertadamente reconhecem a fluidez dos conceitos morais No entanto onde os ldquogenealogistasrdquo realistas ingenuamente erram eacute na irrefletida presunccedilatildeo de que as suas proacuteprias interpretaccedilotildees dos conceitos morais satildeo de alguma forma verdadeiras por todos os tempos e para todas as pessoas em outras palavras que as suas interpretaccedilotildees do fluxo da histoacuteria de alguma forma ficam fora do fluxo da histoacuteria20 Em segundo lugar a genealogia de Nietzsche se adapta ao que poderia ser chamado de uma teoria antirrealista da explicaccedilatildeo e descriccedilatildeo histoacuterica Termos como ldquocausardquo ldquoefeitordquo 20 Cf sobre a posiccedilatildeo dos outros ldquogenealogistasrdquo e tradiccedilatildeo metafiacutesica e entre eles e a genealogia nietzschiana Johnson

(2010 p 116-148) ver tambeacutem Born (2010 p 202-52)

Joseacute Nicolao Juliatildeo

157

e ldquofinalidaderdquo natildeo satildeo elementos de um mundo ldquorealrdquo senatildeo signos que se tornaram uacuteteis para comunicar sentidos (significados) intersubjetivamente a partir de um embate entre forccedilas Em terceiro lugar e como consequecircncia das duas primeiras teses natildeo pode haver nenhuma interpretaccedilatildeo uacutenica e ldquoabsolutardquo do passado as interpretaccedilotildees satildeo funccedilotildees do mundo histoacuterico Como todos os fenocircmenos elas mudam e se transformam ao longo do tempo de acordo com as exigecircncias profundas e muitas vezes inconscientes dos agentes que inventam aceitar ou rejeitar essas interpretaccedilotildees O exemplo do castigo na passagem supracitada ilustra particularmente bem como o significado de uma uacutenica palavra se desloca em determinadas eacutepocas e culturas O que explica essa mudanccedila eacute a dinacircmica do poder fluiacutedo devido o embate de forccedilas tanto em historiadores quanto na esfera mais ampla do que uma cultura considera um ldquofato histoacutericordquo ao longo do tempo Por isso que soacute eacute definiacutevel aquilo que natildeo tem histoacuteria (GM II 13) ou seja o que eacute estagnado

Apesar da sua convicccedilatildeo de que a filosofia deva ser histoacuterica Nietzsche compreendeu simultaneamente que a escrita filosoficamente histoacuterica tem um esforccedilo profundamente problemaacutetico Qualquer tentativa de descrever ou explicar um evento histoacuterico equivale a uma descontextualizaccedilatildeo eacute ilegiacutetima a tentativa de fixar o invariaacutevel com conceitos supostamente estaacuteticos E este impasse Nietzsche descreveu em carta ao seu amigo o teoacutelogo historiador Franz Overbeck em 23 de fevereiro de 1887 ldquoenfim minha desconfianccedila agora se volta para a questatildeo de saber se a histoacuteria eacute realmente possiacutevel O que entatildeo queremos verificar (feststellen) - algo que em um momento do acontecimento natildeo eacute ldquopermanenterdquo (ldquofeststandrdquo)rdquo (KSB 8 28) A situaccedilatildeo piora ao reconhecer que natildeo soacute a realidade eacute descrita em um estado de fluxo mas aquele que a reconhece estaacute em um estado de fluxo semelhante

Por todos esses problemas por noacutes aqui levantados sobre a relaccedilatildeo precisa do histoacuterico com o filosoacutefico na genealogia necessitam ainda ser feito muitos esclarecimentos Pretendemos no final desse estudo ter uma noccedilatildeo de conjunto das consideraccedilotildees de Nietzsche sobre a histoacuteria dentro de uma abordagem que preserve a continuidade a unidade e o sentindo do processo de ressignificaccedilotildees apresentando o seu desfecho em sua noccedilatildeo de genealogia A genealogia por sua vez natildeo pode ser identificada nem com a teoria da histoacuteria nem com filosofia da histoacuteria ou seja nem como ciecircncia estrita nem como metafiacutesica Neste sentido acompanhamos Martin Saar21 argumentando que o genealoacutegico natildeo eacute o tribunal do todo histoacuterico mas que natildeo eacute algo totalmente diferente tampouco como algo totalmente restrito agrave filosofia da histoacuteria Considerando que alguns dos melhores inteacuterpretes de Nietzsche lhe atribuem agrave visatildeo de que ldquoa genealogia eacute histoacuteria corretamente praticadardquo22 Saar defende a tese de que a genealogia eacute a histoacuteria de forma diferentemente praticada ou seja a histoacuteria com uma diferenccedila que soacute pode ser explicada filosoficamente ndash acrescentamos - uma histoacuteria criativa

21 Cf Saar (2008 p 297) Cf tb Saar (2007) e (2002 p 231ndash245)22 Saar se refere explicitamente a Nehamas (1985 p 46) e a Geuss (1999 p 3 ss)

O sentido histoacuterico e a genealogia em Nietzsche

158

Referecircncias bibliograacuteficasNIETZSCHE Friedrich Kritische Studienausgabe (KSA) In 15 B Herausgegeben von G Colli und M Montinari BerlinNY dtvde Gruyter 1988_____ Saumlmtliche Briefe-Kritische Studienausgabe (KGB) In 7 B dtv Walter Gruyter BerlinNY dtvde Gruyter 1986BORN Marcus Andreas Nihilistisches Geschichtsdenken Nietzsches perspektivische Genealogie Muumlnchen Wilhelm Fink 2010FRANCIS Mark Herbert Spencer and the Invention of Modern Life Stocksfield Acumen 2007GEUSS R ldquoNietzsche and Genealogyrdquo in Morality Culture and History Essays on German Philosophy 17 Cambridge Cambridge University Press 1999JOHNSON Dirk R Nietzschersquos Anti-Darwinism Cambridge Cambridge University Press 2010NEHAMAS A ldquoThe Genealogy of Genealogy Interpretation in Nietzschersquos Second Untimely Meditationand in On the Genealogy of Moralsrdquo in Nietzsche Genealogy and Morality edited by Richard Schacht Berkeley University of California Press 1994 269ndash83RICHARDSON John Nietzschersquos New Darwinism OxfordNova York Oxford University Press 2004SAAR M ldquoGenealogy and Subjectivityrdquo In European Journal of Philosophy Blackwell Publishers Ltd 2002 p 231ndash245_____ Genealogie als Kritik Geschichte und Theorie des Subjekts nach Nietzsche und Foucault (Theorie und Gesellschaft) FrankfurtNew York Campus Verlag 2007_____ ldquoUnderstanding genealogy history power and the selfrdquo In Journal of the Philosophy of History 2 295ndash314 2008 STEGMAIER W Nietzsches `Genealogie der Moral` Darmstatt Wissenschaftliche Buchgellschaft 1994VENTURELLI A Kunst Wissenschaft und Geschichte bei Nietzsche BerlinNew York Walter de Gruyter 2003WHITE Hayden A Meta-Histoacuteria ndash a Imaginaccedilatildeo Histoacuterica no seacuteculo XIX Satildeo Paulo EDUSP 1992

Laura Elizia Haubert

159

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre a consciecircncia [Bewuszligtsein]

Laura Elizia Haubert1

IntroduccedilatildeoO interesse em compreender a consciecircncia bem como as estruturas da mente

ocupa um nuacutemero consideraacutevel de filoacutesofos contemporacircneos Apoacutes anos de predomiacutenio da linguagem e anaacutelise loacutegica devido agrave ldquovirada linguiacutesticardquo em especial entre os analiacuteticos nas uacuteltimas deacutecadas voltou-se a atenccedilatildeo para o problema da consciecircncia A consciecircncia se tornou novamente um toacutepico central na filosofia

Entre os temas principais destaca-se a triangulaccedilatildeo entre consciecircncia linguagem e natureza Estes trecircs toacutepicos foram o centro nas uacuteltimas deacutecadas de intensos debates e controveacutersias que abrangeram filoacutesofos neurocientistas psicoacutelogos e linguistas As diferentes aacutereas de pesquisa buscam solucionar o enigma da consciecircncia sobretudo o curioso fato de que seres bioloacutegicos foram capazes de desenvolvecirc-la

Natildeo surpreende que os olhares se voltem justamente para Nietzsche ao tratar do assunto Com efeito em suas obras e fragmentos poacutestumos o filoacutesofo oferece inuacutemeras reflexotildees sobre os temas da linguagem consciecircncia e natureza bem como sobre suas conexotildees Nietzsche discutiu a gecircnese da consciecircncia seu alcance sua supervaloraccedilatildeo as realizaccedilotildees epistecircmicas e o surgimento do ego e da linguagem Aleacutem disso o filoacutesofo ainda escreveu interessantes passagens a respeito do inconsciente e de processos da percepccedilatildeo

Apesar das numerosas passagens a respeito o tema da consciecircncia em Nietzsche foi interpretado de modo divergente por seus comentadores sendo muitas destas anaacutelises contraditoacuterias e paradoxais o que gerou a impressatildeo de que sua teoria sobre a consciecircncia seria inconsistente confusa e obscura Poreacutem essa eacute uma imagem errocircnea gerada por interpretaccedilotildees descuidadas ldquoNietzsche na verdade tem um relato coerente e novo da consciecircnciardquo (KATSAFANAS 2005 p 1)

Nietzsche parece querer demarcar os limites da consciecircncia e da linguagem na medida em que os associa a uma forma de perigo e hipostatizaccedilatildeo da consciecircncia Ele associa impulsos e consciecircncia bem como orgacircnico e psicoloacutegico Contudo suas posiccedilotildees estatildeo longe de poderem ser interpretadas de modo reducionista materialista Vale recordar que o filoacutesofo estava a par dos debates cientiacuteficos do idealismo tardio e sobre este preferiu assumir uma posiccedilatildeo de impossibilidade tanto sobre o conhecimento do mundo quanto sobre uma reduccedilatildeo ao material

1 Mestranda em Filosofia Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica-PUCSP Bolsista do CNPq

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre

160

Natildeo obstante de fato haacute em Nietzsche um destaque para o caraacuteter orgacircnico da consciecircncia em clara oposiccedilatildeo agrave noccedilatildeo de consciecircncia transcendental da tradiccedilatildeo filosoacutefica desenvolvida a partir de Descartes O filoacutesofo apresenta uma teoria da consciecircncia voltada para uma compreensatildeo a partir da fisiologia e da zoologia conforme seraacute tratado a seguir

Os aportes de Nietzsche a respeito da consciecircncia se estendem pelo periacuteodo de 1880 ateacute 1888 Os mais importantes e detalhados remontam a notas poacutestumas dos anos de 1884 e 1885 Contudo apesar do nuacutemero consideraacutevel de fragmentos apenas uma parcela diminuta de suas ideias a respeito foram tema nas obras destinadas a publicaccedilatildeo Dentre estas concentrou-se os esforccedilos de anaacutelise nos aforismos de ldquoA Gaia Ciecircnciardquo

Nesta obra haacute dois aforismos que tratam diretamente da consciecircncia o aforismo sect11 e o sect354 O aforismo sect11 remonta ao periacuteodo de escrita original da obra entre 18811882 e eacute particularmente importante Nele o filoacutesofo especifica pela primeira vez em obras publicadas a natureza pulsional e bioloacutegica da consciecircncia Jaacute o aforismo sect354 pertence ao livro V que fez parte de um acreacutescimo agrave ediccedilatildeo original em sua republicaccedilatildeo supervisionada por Nietzsche tendo sido composto no ano de 1886 (LUPO 2006)

Nas paacuteginas a seguir buscou-se sem a pretensatildeo de esgotar o rico assunto e os complexos aforismos apresentar de modo sinteacutetico o que parece ser as caracteriacutesticas essenciais da consciecircncia a saber (i) ela natildeo eacute uma propriedade essencial da mente (ii) existe uma relaccedilatildeo entre linguagem e consciecircncia e (iii) essa relaccedilatildeo depende de um caraacuteter social que auxilia a falsificar a proacutepria consciecircncia

Aforismo sect11O aforismo sect11 eacute essencial para o primeiro ponto da argumentaccedilatildeo qual seja a

consciecircncia natildeo eacute uma propriedade essencial da mente Essa caracteriacutestica parece estar embasada por ao menos duas ideias que estatildeo desenvolvidas no aforismo Satildeo elas (i) a consciecircncia eacute um desenvolvimento orgacircnico e tardio e (ii) haacute estados mentais inconscientes

Nietzsche inicia o aforismo intitulado ldquoA consciecircnciardquo (Bewuszligtsein) esclarecendo que ldquoa consciecircncia [Bewuszligheit] eacute o uacuteltimo e derradeiro desenvolvimento do orgacircnico e por conseguinte tambeacutem o que nele eacute mais inacabado e menos forterdquo (NIETZSCHE 2012 sect11) Eacute preciso analisar melhor as informaccedilotildees contidas nesta breve passagem

Em primeiro lugar porque o filoacutesofo realiza uma mudanccedila de termos Ele transforma a consciecircncia substacircncia [Bewuszligtsein] em uma consciecircncia processo [Bewuszligheit] Em segundo lugar porque com isso ele destaca que natildeo estaacute narrando a histoacuteria da consciecircncia tradicional transcendente mas sim uma histoacuteria de um sistema evolutivo que pode ser observado a partir de uma perspectiva natural e bioloacutegica A consciecircncia passa a ser algo no corpo perdendo seu privileacutegio trata-se dela como se trataria de qualquer outro oacutergatildeo (BERTINO 2012))

Esse iniacutecio do aforismo revela ainda uma outra caracteriacutestica essencial da consciecircncia O fato de que ela eacute apenas um desenvolvimento orgacircnico implica que haacute uma passagem contiacutenua para o pensador entre o fisioloacutegico e o psiacutequico Esse processo de continuidade permite que Nietzsche se afaste de qualquer compreensatildeo dualiacutestica Essa passagem junto das caracteriacutesticas aprofundadas no aforismo seguinte deu margem ao que inteacuterpretes nomearam como o princiacutepio do continuum (ABEL 2001) Isto eacute em Nietzsche do extremo inorgacircnico ateacute o orgacircnico do corpo agrave consciecircncia e aos estados mentais haacute uma contiacutenua relaccedilatildeo de desenvolvimento

Laura Elizia Haubert

161

Justamente a criacutetica de Nietzsche no aforismo visa despertar o leitor para o fato de que natildeo se pode perder de vista a ideia de que a consciecircncia eacute apenas um dos extremos de uma longa cadeia de elos onde haacute inuacutemeras relaccedilotildees entre impulsos a cada momento que estatildeo sendo passados por alto e ignorados (CONSTAcircNCIO 2011) Esta criacutetica fica ainda mais clara no decorrer do aforismo

[] Pensam que nela estaacute o acircmago do ser humano o que nele eacute duradouro derradeiro eterno primordial Tomam a consciecircncia por uma firme grandeza dada Negam seu crescimento suas intermitecircncias Veem-na como lsquounidade do organismorsquo - Essa ridiacutecula superestimaccedilatildeo e maacute-compreensatildeo da consciecircncia tem por corolaacuterio a grande vantagem de que assim foi impedido o seu desenvolvimento muito raacutepido [] (NIETZSCHE 2012 sect11)

Para Nietzsche os homens compreenderam errado a consciecircncia e a superestimaram - em especial os filoacutesofos Ela natildeo passa de algo no corpo e estaacute longe de ser o centro ou o acircmago do humano Nela natildeo haacute nada de duradouro eterno ou primordial Ela eacute pelo contraacuterio orgacircnica inacabada o que implica numa certa fraqueza de sua parte A consciecircncia natildeo eacute de todo necessaacuteria ao homem e ele poderia passar bem sem este uacuteltimo desenvolvimento tardio do corpo

Outra caracteriacutestica que parece apontar para a mesma conclusatildeo eacute o fato de que se ignorou o caraacuteter intermitente [Intermittenzen] da consciecircncia Ser intermitente significa que haacute impulsos que se desenvolvem em estados mentais conscientes e outros que natildeo Isto eacute quando se trata de estados psiacutequicos natildeo existe um ldquotudo ou nadardquo um ldquoon-offrdquo mas sim um cenaacuterio onde estados conscientes se relacionam com um nuacutemero ainda maior de estados inconscientes (CONSTAcircNCIO 2011)

Os estados conscientes teriam origem a partir de uma multiplicidade de estados inconscientes sendo a consciecircncia nada mais que uma aglutinaccedilatildeo de determinados estados conscientes que emergem em uma forma de produto final que nada tem a ver com os estados inconscientes dos quais deriva (KATSAFANAS 2016)

O proacuteprio filoacutesofo mais tarde reformulou claramente estas ideias no aforismo sect357 afirmando que ldquo[] a consciecircncia eacute tatildeo soacute um accidens [acidente] da representaccedilatildeo natildeo seu atributo necessaacuterio e essencial []rdquo porque ela constitui um desenvolvimento tardio onde ldquoapenas um estado de nosso mundo espiritual e psiacutequico (talvez um estado doentio) e de modo algum ele proacutepriordquo (NIETZSCHE 2012 sect357)

Essa mesma ideia de que a consciecircncia eacute um desenvolvimento tardio fraco inacabado e de modo algum eacute uma propriedade essencial da mente aparece melhor desenvolvida no aforismo seguinte onde o filoacutesofo apresenta sua formulaccedilatildeo mais famosa a respeito da consciecircncia

Aforismo 354Nietzsche logo na abertura do aforismo destacou novamente o caraacuteter desnecessaacuterio

da consciecircncia uma vez que ldquoo problema da consciecircncia [] soacute nos aparece quando comeccedilamos a entender em que medida poderiacuteamos passar sem elardquo Isto eacute seria possiacutevel para o homem ldquopensar sentir querer recordar poderiacuteamos igualmente lsquoagirrsquo em todo sentido da palavra e [] nada disso precisaria nos lsquoentrar na consciecircnciarsquordquo (NIETZSCHE 2012 sect354)

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre

162

Com efeito o fato de que seria possiacutevel que o homem passasse sem consciecircncia isto eacute de que ela natildeo constitui uma propriedade essencial da mente levanta quase de imediato uma questatildeo importante a saber ldquopara que entatildeo consciecircncia quando no essencial eacute supeacuterfluardquo (NIETZSCHE 2012 sect354)

A resposta do filoacutesofo eacute a de que ldquoa sutileza e a forccedila da consciecircncia estatildeo sempre relacionadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por sua vez agrave necessidade de comunicaccedilatildeordquo (NIETZSCHE 2012 sect354) Isto parece implicar para inteacuterpretes que haacute formas de sentir querer pensar e agir que tornam o homem consciente de si poreacutem a efetiva consciecircncia soacute ocorre quando ela eacute formulada na comunicaccedilatildeo entre os homens (CONSTAcircNCIO 2012)

A afirmaccedilatildeo de Nietzsche eacute assim bastante radical porque implica que ldquoa reflexatildeo eacute imanente agrave comunicaccedilatildeo ou em outras palavras que haacute uma dimensatildeo inescapavelmente puacuteblica na lsquointencionalidadersquo humanardquo (CONSTAcircNCIO 2012 p 206) Isto significa que natildeo importa o quanto algueacutem possa se sentir isolado o pensamento consciente - qualquer pensamento consciente - eacute sempre embasado em uma esfera de necessidade de comunicaccedilatildeo em contexto puacuteblico

A necessidade de comunicaccedilatildeo nasceu do fato de que os homens precisaram durante geraccedilotildees sob pressatildeo fazer-se entender pelos demais de modo raacutepido e efetivo quase em uma espeacutecie de cadeia de comando e obediecircncia numa comunicaccedilatildeo de ordens que visava a sobrevivecircncia

Consciecircncia eacute na realidade apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre pessoas - apenas como tal ela teve que se desenvolver um ser solitaacuterio e predatoacuterio natildeo necessitaria dela O fato de nossas accedilotildees pensamentos sentimentos mesmo movimentos nos chegarem agrave consciecircncia - ao menos parte deles - eacute consequecircncia de uma terriacutevel obrigaccedilatildeo que por longuiacutessimo tempo governou o ser humano ele precisava sendo o animal mais ameaccedilado de ajuda proteccedilatildeo precisava de seus iguais tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensiacutevel - e para isso tudo ele necessitava antes de lsquoconsciecircnciarsquo isto eacute lsquosaberrsquo o que lhe faltava lsquosaberrsquo como se sentia lsquosaberrsquo o que pensava Pois dizendo-o mais uma vez o ser humano como toda criatura viva pensa continuamente mas natildeo o sabe o pensar que se torna consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia Em suma o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciecircncia (natildeo da razatildeo mas apenas do tomar-consciecircncia-de-si da razatildeo) andam lado a lado (NIETZSCHE 2012 sect354)

O excerto acima reitera a segunda caracteriacutestica a ser ressaltada haacute uma relaccedilatildeo profunda entre linguagem e consciecircncia De fato haacute um triacircngulo de relaccedilotildees entre linguagem consciecircncia e sociabilidade de modo que Nietzsche define a consciecircncia como uma conexatildeo [Verbindungsnetz] uma rede entre pessoas Ou seja a consciecircncia natildeo seria possiacutevel para um indiviacuteduo em completo isolamento

Isto porque aleacutem de ser um elo o desenvolvimento da consciecircncia estaacute atrelado ao desenvolvimento da linguagem Com efeito ldquoa alegaccedilatildeo central desta passagem eacute que o pensamento consciente e apenas o pensamento consciente ocorre em palavrasrdquo (KATSAFANAS 2005 p 3) Essa conexatildeo parece extremamente importante

Laura Elizia Haubert

163

Na concepccedilatildeo de Nietzsche esta relaccedilatildeo significa que natildeo apenas consciecircncia e linguagem satildeo contiacutenuas mas que satildeo mutuamente dependentes Isto eacute todo o pensamento consciente necessariamente deve ocorrer dentro da linguagem ou em suas margens e o niacutevel de clareza depende da verbalizaccedilatildeo Mas natildeo eacute possiacutevel pensar sem linguagem - ao menos uma forma consciente de pensamento (CONSTAcircNCIO 2009)

O esforccedilo empreendido por Nietzsche parece ser o de recolocar natildeo apenas a consciecircncia - coisa que ele jaacute havia feito no aforismo sect11 ndash mas tambeacutem a linguagem de volta em um domiacutenio orgacircnico e instintivo Nisto natildeo haacute nenhuma reduccedilatildeo materialista seu naturalismo eacute apenas uma forma de traduzir o homem de volta agrave sua histoacuteria isto eacute de volta agrave cultura e agrave sociedade

Por isso natildeo se pode deixar de observar a relevante afirmaccedilatildeo de Nietzsche que coloca a consciecircncia e a cultura em uma esfera natildeo meramente bioloacutegica mas em uma dependecircncia social e cultural A linguagem tal como a consciecircncia desenvolve-se a partir de uma sede histoacuterica real

A conexatildeo interna entre consciecircncia e linguagem eacute extremamente importante em vaacuterios aspectos Ao direcionar a atenccedilatildeo para o viacutenculo entre consciecircncia e linguagem surgem diferentes aspectos da consciecircncia que tecircm um status ontoloacutegico diferente dos componentes jaacute discutidos nas rubricas do lsquocontinuumrsquo lsquodesenvolvimento emergentersquo lsquoprocessorsquo e lsquoorganizaccedilatildeo funcionalrsquo O uso da linguagem e dos signos satildeo componentes que tecircm sua sede no mundo social histoacuterico e cultural Eles natildeo podem simplesmente ser reduzidos a processos orgacircnicos ou neurobioloacutegicos Isso eacute particularmente verdadeiro nos aspectos de ordem mais elevada da consciecircncia como a autoconsciecircncia a experiecircncia da sua proacutepria individualidade e as auto interpretaccedilotildees - por exemplo de um agente de accedilatildeo livre Quando se trata de tais aspectos ateacute mesmo nos presente os pesquisadores do ceacuterebro reconhecem que lsquoparecem exigir implicaccedilotildees que transcendem o reducionismo puramente neurobioloacutegicorsquo (Singer 1998 1830) O ponto decisivo eacute que a consciecircncia e a mente agora se tornaram tematizadas na interseccedilatildeo entre os desenvolvimentos na esfera natural e orgacircnica e nos domiacutenios social histoacuterico e cultural (ABEL 2015 p 48)

Assim a consciecircncia depende da comunicaccedilatildeo porque os homens satildeo animais fracos natildeo possuem garras nem forccedila nem satildeo velozes Eles precisaram desenvolver uma ferramenta que pudesse suprimir essas deficiecircncias e esta eacute justamente a linguagem e a consciecircncia Ao se comunicarem os homens estabeleceram uma rede de significados que satildeo transmitidos e permitem o agir em comum

O foco de Nietzsche eacute o problema da vulgarizaccedilatildeo ou da generalizaccedilatildeo Se a consciecircncia de um indiviacuteduo se desenvolve ao mesmo tempo que sua habilidade de se comunicar pela linguagem e se a linguagem depende de uma certa comunidade e de seus usos entatildeo o homem estaacute permanentemente condicionado por este social devido agrave linguagem mesmo naquilo que lhe parece mais iacutentimo e privado como sua consciecircncia

O que fica subentendido eacute que ldquoquando se acessa a introspecccedilatildeo e conscientemente o mundo interior individual o que se encontra laacute natildeo eacute de forma alguma individual mas sim linguiacutestico e portanto puacuteblicordquo (CONSTAcircNCIO 2015 p 307) A consciecircncia embora pareccedila interior e particular eacute jaacute um ambiente puacuteblico inserido em uma determinada comunidade que estabelece suas diretrizes Isto significa que o indiviacuteduo soacute se opotildee agrave comunidade na aparecircncia ele eacute prioritariamente um ldquoanimal de rebanhordquo

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre

164

De fato as vivecircncias individuais das quais os homens tomam consciecircncia portanto satildeo apenas aquelas que podem ser organizadas pelas palavras isto eacute que obedecem ao pressuposto esquema linguiacutestico De outra forma as impressotildees e impulsos permanecem no inconsciente onde natildeo podem ser acessadas (GIACOIA JUNIOR 2001)

Meu pensamento como se vecirc eacute que a consciecircncia natildeo faz parte realmente da existecircncia individual do ser humano mas antes daquilo que nele eacute natureza comunitaacuteria e gregaacuteria que em consequecircncia apenas em ligaccedilatildeo com a utilidade comunitaacuteria e gregaacuteria ela se desenvolveu sutilmente e que portanto cada um de noacutes com toda a vontade que tenha de entender a si proacuteprio de maneira mais individual possiacutevel de lsquoconhecer a si mesmorsquo sempre traz agrave consciecircncia justamente o que natildeo possui de individual o que nele eacute lsquomeacutediorsquo - que nosso pensamento mesmo eacute continuamente suplantado digamos pelo caraacuteter da consciecircncia - pelo lsquogecircnio da espeacuteciersquo que nele domina - e traduzido de volta para a perspectiva gregaacuteria Todas as nossas accedilotildees no fundo satildeo pessoais de maneira incomparaacutevel uacutenicas ilimitadamente individuais natildeo haacute duacutevida mas tatildeo logo as traduzimos para a consciecircncia natildeo parecem mais secirc-lo [] Este eacute o verdadeiro fenomenalismo e perspectivismo como eu o entendo a natureza da consciecircncia animal ocasiona que o mundo de que podemos nos tornar conscientes seja soacute um mundo generalizado vulgarizado - que tudo o que se torna consciente por isso mesmo torna-se raso ralo relativamente tolo geral signo marca de rebanho que a todo tornar-se consciente estaacute relacionada uma grande radical corrupccedilatildeo falsificaccedilatildeo superficializaccedilatildeo e generalizaccedilatildeo Afinal a consciecircncia crescente eacute um perigo e quem vive entre os mais conscientes europeus sabe ateacute que eacute uma doenccedila (NIETZSCHE 2012 sect354)

Desponta por fim a terceira caracteriacutestica que se buscou ressaltar a respeito da consciecircncia como em Nietzsche ela depende de um ambiente puacuteblico social que acaba por influenciar seu desenvolvimento e assim condicionaacute-lo Isto significa que embora se possa ter estados mentais privados inconscientes natildeo se pode ter estados mentais conscientes sem que eles sejam diretamente afetados pela sociabilidade

O aforismo apresenta uma inversatildeo paroacutedica da noccedilatildeo socraacutetica de conhecer a si mesmo jaacute que conhecer a si mesmo - ou qualquer forma de conhecimento - depende da consciecircncia e da linguagem que por sua vez eacute dependente do aspecto mais comum e ordinaacuterio da convivecircncia Assim o conhecer a si mesmo implica tambeacutem em uma forma de perder-se de si proacuteprio (GIACOIA JUNIOR 2001)

Essa passagem conta ainda com um jogo de palavras em alematildeo que serve para ressaltar essa condiccedilatildeo Nietzsche utiliza o termo Gemeinde (comunidade) e gemein (comum mediacuteocre) para expressar que o que estaacute na esfera da consciecircncia eacute somente o que eacute gemein porque ela se desenvolve sob a pressatildeo dos valores da Gemeinde (GIACOIA JUNIOR 2001)

De fato haacute que se observar que ldquoao empregar os mesmos signos para as mesmas experiecircncias intensifica-se a Gemeinheitrdquo (VIESENTEINER 2009 p 249) Ou seja a passagem pela linguagem ateacute a consciecircncia implica uma transformaccedilatildeo para diferentes esferas do particular interior para o comum acessiacutevel por todos Trata-se de um processo de abandono das proacuteprias singularidades em detrimento da possibilidade de sobrevivecircncia que soacute ocorre em comunidade

Laura Elizia Haubert

165

Com efeito isto significa que a linguagem - e portanto tambeacutem a consciecircncia - pressupotildee e lida jaacute com um certo ethos na medida em que eacute experimentada pelos sujeitos natildeo sendo uma criaccedilatildeo puramente epistemoloacutegica que lida com fatos racionais A linguagem e a consciecircncia satildeo responsaacuteveis por aplainar as diferentes perspectivas e impulsos pessoais por meio de um modo de falsificaccedilatildeo

O perspectivismo e o fenomenalismo da consciecircncia significam justamente que os conteuacutedos psiacutequicos inconscientes - estes podem ser verdadeiramente individuais - natildeo podem ser conceituados de uma uacutenica maneira mas sim de diversos modos desde que os homens ainda sejam capazes de compreenderem uns aos outros (KATSAFANAS 2016)

Nietzsche novamente utiliza uma seacuterie de adjetivos negativos ao tratar da consciecircncia Ela eacute uma simplificaccedilatildeo uma falsificaccedilatildeo bem como uma generalizaccedilatildeo Essas caracteriacutesticas em conjunto analisadas desvelam o fato de que a consciecircncia natildeo pode para o filoacutesofo garantir nenhuma objetividade do conhecimento natildeo fornece nenhum acesso agrave estrutura ontoloacutegica da realidade pelo contraacuterio ela eacute apenas uma forma de reduccedilatildeo da riqueza e diversidade do mundo (GIACOIA JUNIOR 2001)

Consideraccedilotildees finais Nietzsche elabora o aforismo a partir de diferentes extratos de argumentaccedilatildeo que

vatildeo ao longo do texto se intercalando Isto eacute haacute diferentes conceitos mais ou menos desenvolvidos com os quais se estaacute trabalhando constantemente - vide a consciecircncia a inconsciecircncia a linguagem e o orgacircnico para citar apenas alguns Embora ocasionalmente possam parecerem confusos o filoacutesofo sem duacutevida pretende tranccedilaacute-los em uma amaacutelgama

Consciecircncia linguagem corpo e sociedade tornam-se assim um mesmo problema observado e analisado a partir de diferentes perspectivas Pode-se falar de uma consciecircncia epistemoloacutegica racional mas ela eacute antes disso jaacute uma forma de consciecircncia eacutetica porque ela eacute linguagem e esta depende da sociedade A consciecircncia depende da linguagem e de sua forccedila violenta para poder ser expressada

Expressar-se para e com os demais faz parte das necessidades mais baacutesicas do ser humano Desta depende a proacutepria sobrevivecircncia O homem eacute colocado sob suas ordens de forma semelhante agrave situaccedilatildeo do gecircnio da espeacutecie de Schopenhauer onde o impulso sexual da espeacutecie vence qualquer forma de individualidade

Isto parece significar que em uacuteltima instacircncia a consciecircncia eacute o caminho por meio do qual o homem se perde de si mesmo porque fala porque conceitua e assim se torna cada vez mais alheio de si sem perceber as teias da linguagem que o envolvem e afastam dos instintos e impulsos pessoais e inconscientes

Por fim observa-se que a consciecircncia eacute o uacuteltimo desenvolvimento corporal algo natildeo necessaacuterio aos estados mentais algo supeacuterfluo falso e que constantemente permite enredar-se e perder-se por meio da linguagem em um mundo externo e social Em suma ao inveacutes de um voltar-se para si a consciecircncia eacute a dissoluccedilatildeo do indiviacuteduo na sociedade

Nietzsche Breves comentaacuterios sobre

166

Referecircncias bibliograacuteficasABEL Gunter Bewusstsein - Sprache - Natur Nietzsche Philosophie des Geistes Nietzsche-Studien 30 2001ABEL Gunter Consciousness language and nature Nietzsche philosophy of mind and nature In DRIES Manuel KAIL PJE (ed) Nietzsche on mind and nature Oxford Oxford University Press 2015BERTINO Andrea Discovering moral aspects of the philosophical discourse about language and consciousness with Nietzsche Humboldt and Levinas In CONSTANCIO Joatildeo BRANCO Maria Joatildeo M As the Spider Spins essays on Nietzschersquos critique and use of language Berlin Walter de Gruyter 2012CONSTAcircNCIO Joatildeo Consciousness communication and self-expression Towards an interpretation of aphorism 354 of Nietzschersaquos The Gay Science In CONSTAcircNCIO Joatildeo BRANCO Maria Joatildeo Mayer As the spider spins essays on Nietzschersquos critique and use of language BerlinBoston De Gruyter 2012_____ Instinct and language in Nietzschersquos beyond good and evil In CONSTAcircNCIO Joatildeo BRANCO Maria Joatildeo Mayer Nietzsche on Instinct and Language BerlinBoston De Gruyter 2009_____ Nietzsche on decentered subjectivity or the existential crisis of the modern subject In CONSTAcircNCIO Joatildeo BRANCO Maria Joatildeo Mayer RYAN Bartholomew Nietzsche and the problem of subjectivity BerlinBoston de Gruyter 2015_____ On Consciousness Nietzschersquos departure from Schopenhauer Nietzsche-Studien n 40 p 1-42 2011GIACOIA JUNIOR Oswaldo Nietzsche como psicoacutelogo Satildeo Leopoldo Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos 2001 [Coleccedilatildeo Focus]KATSAFANAS Paul Nietzschersquos theory of mind consciousness and conceptualization European Journal of Philosophy v 13 n 1 p 1-31 2005_____ The Nietzschean self moral psychology agency and the unconscious Oxford Oxford University Press 2016LUPO Luca Le colombe dello scettico riflessioni di Nietzsche sulla coscienza negli anni 1880-1888 Pisa Edizioni ETS 2006NIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2012VIESENTEINER Jorge Luiz Experimento e vivecircncia a dimensatildeo da vida como Pathos [Tese de Doutorado apresentada a Universidade Estadual de Campinas] Campinas SP 2009

Leonardo Arauacutejo Oliveira

167

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida em Nietzsche e Rosset

Leonardo Arauacutejo Oliveira1

Clement Rosset em seu livro ldquoA forccedila maiorrdquo realiza uma leitura afirmativa de Nietzsche tendo como ponto de reflexatildeo principal a alegria aquilo que se configura como a forccedila maior referida no tiacutetulo O autor ressalta o caraacuteter paradoxal da alegria Ela pode aparecer sem qualquer motivo dispensando qualquer razatildeo de existir chegando a aparecer inclusive em sua forma mais intensa nas situaccedilotildees mais adversas possiacuteveis nos estados de penuacuteria infortuacutenio privaccedilatildeo (Cf ROSSET 1983 p11) Por seu caraacuteter paradoxal estaria situada no exterior da razatildeo A alegria tambeacutem eacute paradoxal por se constituir como uma aprovaccedilatildeo traacutegica da existecircncia Ela existe em consonacircncia com os aspectos terrificantes da vida e ela existe apenas diante dessa contrariedade e comportando uma contradiccedilatildeo interna (Cf ROSSET 1983 p25)

Sem razatildeo de ser a alegria aparece sem espera como um acreacutescimo de vida Ela se constitui como essa forccedila maior que sem uma causa determinada e especiacutefica natildeo deriva de um ponto central mas ao contraacuterio faz com que tudo mais se derive dela Que ela seja causada natildeo se dispensa que ela ignore suas causas de modo que seja permitido falar em um efeito superior agrave causa em um processo que sendo o efeito preexistente agrave proacutepria causa ele se manifesta nela de modo que o papel da causa de uma alegria seja meramente o de ceder o meio para que o efeito se expresse Rosset invoca Spinoza para ressaltar essa primazia da alegria Em sua leitura do filoacutesofo judeu ldquoo uacutenico afeto eacute a alegria (e seu contraacuterio a tristeza) todo outro afeto natildeo eacute mais do que uma modificaccedilatildeo desse afeto primeiro visto que ele estaacute sujeito aos caprichos do acaso e da sorterdquo (ROSSET 1983 p12) Eacute desse modo que o autor vecirc a afirmaccedilatildeo da vida em Nietzsche como uma forccedila primeira que guia e se manifesta nas outras esferas de sua filosofia Zaratustra busca que a alegria seja criteacuterio ateacute mesmo para o conhecimento ldquoconsideremos falsa toda verdade em que natildeo houve ao menos uma risadardquo (NIETZSCHE 2011 p 202 Z III Das velhas e novas taacutebuas 23) na medida em que enquanto manifestaccedilatildeo da vida em ascensatildeo de potecircncia o riso se autojustifica ldquopois no riso tudo que eacute mau se acha concentrado mas santificado e absolvido por sua proacutepria bem-aventuranccedilardquo (NIETZSCHE 2011 p 221 Z III Os sete selos 6)

Rosset constata que na histoacuteria da filosofia predomina a ideia de que a alegria soacute eacute legiacutetima se situada para aleacutem da simples alegrias dos encontros durante a passagem da vida O autor busca uma concepccedilatildeo de alegria que se situe precisamente na contingecircncia naquilo que eacute pereciacutevel mutaacutevel inacabado impermanente efecircmero o juacutebilo terreno que se daacute

1 Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida

168

nos encontros habituais com a fruiccedilatildeo da vida a simples alegria de viver (Cf ROSSET 1983 p19-20) Essa ideia parece ganhar muito espaccedilo no pensamento de Nietzsche Renegar a alegria pueril da vida em sua ingenuidade em nome da esperanccedila em uma alegria permanente por vir consiste naquela confianccedila no supraterreno a qual Zaratustra se contrapotildee logo no iniacutecio de sua jornada Essa accedilatildeo eacute proacutepria daqueles que Zaratustra denomina de ldquotransmundanosrdquo homens esgotados paralisados cansados da vida Contra todo tipo de permanecircncia Zaratustra eacute partidaacuterio do movimento e da oscilaccedilatildeo ldquoEu sou um andarilho e um escalador de montanhas disse para seu coraccedilatildeo eu natildeo gosto de planiacutecies e ao que parece natildeo posso ficar muito tempo paradordquo (NIETZCHE 2011 p145 Z III O andarilho) Ao abandonar toda transcendecircncia Zaratustra se volta para terra e encontra regozijo nos encontros que realiza com travessias homens animais montanhas alimentos e consigo mesmo ndash visto que a variaccedilatildeo contiacutenua a impermanecircncia a transformaccedilatildeo se realizam desde o corpo proacuteprio

Mas Zaratustra tambeacutem se entristece Talvez seja essa a resistecircncia que seria possiacutevel encontrar na histoacuteria da filosofia a respeito da alegria natildeo suportar a exigecircncia de variaccedilatildeo desse afeto que pode por muitas vezes ser vertido em seu contraacuterio das maneiras mais avassaladoramente inesperadas Essa exigecircncia tambeacutem contempla o aspecto paradoxal da alegria como enfatiza Rosset Quando o sofrimento subtrai a alegria e invade o espiacuterito alegre ele ainda eacute considerado pela sabedoria alegre ndash enquanto conhecimento traacutegico ndash como um estimulante um ldquoacreacutescimo de gaacuteudio [gaieteacute] que prevalece sobre o sofrimentordquo (ROSSET 1983 p43) O sofrimento aparece como uma prova para a alegria Nas palavras de Zaratustra ldquoDissestes uma vez Sim a um soacute prazer Oh meus amigos entatildeo dissestes tambeacutem Sim a todo sofrimentordquo (NIETZSCHE 2011 p307 Z IV O canto eacutebrio 10 grifo do autor)

Rosset inicia seu capiacutetulo sobre Nietzsche e a moral enfatizando as intenccedilotildees criacuteticas de Nietzsche mormente nos uacuteltimos anos de sua produccedilatildeo em que estaria concentrado seu projeto de transvaloraccedilatildeo dos valores mas potildee em cheque a interpretaccedilatildeo ndash segundo ele dominante entre comentadores ndash que faz de Nietzsche um filoacutesofo que pauta sua filosofia sob uma inclinaccedilatildeo fundamentalmente criacutetica pois a preocupaccedilatildeo criacutetica natildeo poderia estar em primeiro lugar em uma filosofia da afirmaccedilatildeo da vida A criacutetica seria secundaacuteria e proveniente da afirmaccedilatildeo Nietzsche natildeo estaria fundamentalmente engajado na luta contra a moral contra o cristianismo contra o platonismo etc Assim Rosset declara abertamente que esse ponto da leitura de Deleuze eacute contestaacutevel O autor de Nietzsche e a filosofia centra o peso da filosofia de Nietzsche na postura criacutetica valorizando a desmistificaccedilatildeo como o ponto mais positivo da filosofia e chegando a encontrar a afirmaccedilatildeo naquilo que Rosset denomina de ldquonegaccedilatildeo dialeacutetica da negaccedilatildeordquo (ROSSET 1983 p 74-75)

Rosset reconhece a discussatildeo entre o negativo e o positivo como possivelmente o principal problema interno da filosofia nietzschiana mas eacute categoacuterico em sua posiccedilatildeo o poder criacutetico natildeo pode ser o mais positivo ele deve advir do poder afirmativo Seria faacutecil notar segundo o autor que a criacutetica enquanto derivada da afirmaccedilatildeo incidiria sobre elementos julgados como natildeo-afirmativos Entretanto Rosset se pergunta como essa ldquocriacutetica dialeacuteticardquo se sustenta a partir da recusa de Nietzsche em alguns momentos agrave luta e a acusaccedilatildeo como no 276 da Gaia ciecircncia em que eacute apresentado o amor fati Segundo o autor o caminho da resoluccedilatildeo da questatildeo consiste em uma delimitaccedilatildeo do conceito nietzschiano de criacutetica

Leonardo Arauacutejo Oliveira

169

Em um procedimento negativo Rosset inicia pela explicitaccedilatildeo do sentido de criacutetica que Nietzsche natildeo faz uso ldquopocircr em duacutevida contestar atacar acusarrdquo Esse seria o uso mais cotidiano do termo Assim seria preciso ir ateacute a etimologia do mesmo onde se poderia encontrar o sentido do uso nietzschiano da criacutetica ldquocriticar significa tambeacutem e primeiramente segundo a etimologia grega e latina do termo (Krinocirc kritikos cernere) observar discernir distinguirrdquo(ROSSET 1983 p 76) Esse segundo sentido natildeo contempla a ideia de combate luta conflito Essa eacute a razatildeo para Rosset valorizaacute-lo Aos olhos do autor a criacutetica de Nietzsche natildeo visa o ataque mas a compreensatildeo natildeo intenta uma interferecircncia na realidade natildeo busca remeacutedios soluccedilotildees mudanccedilas mas consiste em ver e fazer ver natildeo tem como fito diminuir a tolice e a baixeza do pensamento (como diz Deleuze) mas se efetua como uma espeacutecie de observaccedilatildeo impiedosa embora sem qualquer ldquomaacute intenccedilatildeordquo ldquoEacute por isso que os comentadores atuais que atribuem a Nietzsche uma preocupaccedilatildeo qualquer com a luta contra os valores estabelecidos ou contra qualquer outra coisa me parecem ter feito o caminho erradordquo (ROSSET 1983 p 74-77)

Pensando no aspecto positivo Rosset acredita haver uma moral em Nietzsche mas diz que ela eacute secundaacuteria estabelece sua constituiccedilatildeo em suma enquanto uma moral do gozo de todas as coisas O homem virtuoso seria aquele capaz de gozar o mundo Em contrapartida aquilo que Nietzsche criticaria aquele que ele condenaria moralmente seria o homem do sofrimento e do ressentimento Rosset concorda com Deleuze na caracterizaccedilatildeo psicoloacutegica desse tipo de homem ele eacute impossibilitado de reagir Ele absorve a dor o sofrimento a ofensa mas natildeo expressa seu rancor ao inveacutes disso paralisa Assim o homem do ressentimento impossibilitado de afirmar natildeo consegue nem mesmo negar Ele se contenta em emitir falsos ldquosinsrdquo (Cf ROSSET 1983 p 78-79) Eacute ele a quem Nietzsche representa com a figura do asno de Zaratustra

Em um primeiro momento pensar que a criacutetica entra em conflito com a afirmaccedilatildeo da vida pode nos levar a seguinte linha de leitura que encontra eco em textos de Nietzsche se a principal preocupaccedilatildeo do autor do Anticristo fosse uma criacutetica total levada ateacute o fim de sua potecircncia ateacute mesmo a vida natildeo escaparia dela o que desembocaria em um conflito com a insiacutegnia nietzschiana de que a vida natildeo pode ser avaliada que ao contraacuterio ela eacute o criteacuterio de toda avaliaccedilatildeo Assim a criacutetica soacute poderia ser secundaacuteria em relaccedilatildeo agrave vida e sua afirmaccedilatildeo uma vez que a avaliaccedilatildeo deve partir dela ateacute mesmo a avaliaccedilatildeo daqueles que se potildeem a avaliar a vida ndash nos termos de Zaratustra ldquoEsses acusadores da vida a vida os supera com um piscar de olhosrdquo (NIETZSCHE 2011 p209 Z III O convalescente)

A passagem do Crepuacutesculo dos iacutedolos em que se baseia o argumento acima parece sugerir que a vida seria um elemento extra-filosoacutefico e por isso estaria fora do acircmbito da avaliaccedilatildeo Rosset ressalta como o tema da afirmaccedilatildeo da vida natildeo tem justificaccedilatildeo teoacuterica Ele o coloca sempre em termos necessitaristas e afetivos como que separados de qualquer teoria Contudo gostariacuteamos de lembrar que mesmo se a vida eacute uma tema difuso e de difiacutecil articulaccedilatildeo conceitual em Nietzsche o autor se preocupa em ligaacute-la agrave vontade de poder conceito sobre o qual ele teoriza fecundamente Sobre a afirmaccedilatildeo da vida em especiacutefico ela se encontra atrelada a doutrina do eterno retorno Esses dois conceitos que se apresentam na trama de Zaratustra estabelecem a vida e sua afirmaccedilatildeo como um problema filosoacutefico debatido filosoficamente ainda que com ferramentas pouco aceitaacuteveis em alguns ciacuterculos como a narrativa a linguagem metafoacuterica o uso deliberadamente retoacuterico da escrita a dramatizaccedilatildeo a movimentaccedilatildeo e transformaccedilatildeo de ideias em funccedilatildeo de seus contextos de aplicaccedilatildeo em suma mecanismos que supotildeem uma noccedilatildeo mais ampliada de argumentaccedilatildeo

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida

170

Do mesmo modo Nietzsche natildeo visa simplesmente negar ou se opor agrave razatildeo mas pensar uma noccedilatildeo mais ampliada de racionalidade culminando naquilo que Zaratustra denomina de ldquogrande razatildeordquo

Mas essa natildeo parece ser a preocupaccedilatildeo de Rosset Ele se concentra em explicitar a recusa de Nietzsche ao combate ao ataque agrave condenaccedilatildeo Pois bem de fato em alguns momentos de sua produccedilatildeo Nietzsche se coloca numa posiccedilatildeo de recusa ao embate em que se considera demasiadamente nobre para lutar Por exemplo em Ecce homo quando comenta que sua campanha contra a moral em Aurora natildeo tinha relaccedilatildeo com negaccedilatildeo ou ataque (Cf NIETZSCHE 2008 p75 EH A 1) e na Gaia ciecircncia em que ao declarar o amor fati se recusa a ser um acusador (Cf NIETZSCHE 2001 p 166 GC 276) Contudo em vaacuterias outras passagens de Nietzsche (muitas citadas aqui) o conflito eacute natildeo soacute elogiado (filosofia praacutetica) como tambeacutem eacute necessaacuterio (ontologia) Para quem atribui creacutedito a uma ideia de filosofia primeira tem-se o conflito de forccedilas desde sua cosmologia ou ontologia da vontade de poder

Assim falou Zaratustra eacute uma obra providencial para ser tomada como contra-exemplo agrave recusa de conflito e negaccedilatildeo em Nietzsche O ldquodizer natildeordquo eacute de fundamental importacircncia para o percurso de Zaratustra Esse dito soa inclusive tatildeo necessaacuterio quanto o ldquodizer simrdquo O natildeo do leatildeo o guerreiro amado pela sabedoria a paz como mero meio para a guerra o momento certo de dizer natildeo o retorno de Zaratustra possibilitado por sua negaccedilatildeo o desejo apreccedilo e amor pelos inimigos negar como a tempestade destruir como o raio a tripla negaccedilatildeo tripla contra o adivinho contra os homens do fastio e contra a reparaccedilatildeo dos males acomodaccedilotildees e caminhos faacuteceis Essas ideias e imagens constituem alguns dos momentos de negaccedilatildeo e conflito pelos quais passa e aos quais chega Zaratustra

Do mesmo modo eacute possiacutevel contrapor o texto do Zaratustra a ideia de Rosset de que Nietzsche natildeo visava criticar os valores estabelecidos Ora o ldquonatildeordquo do leatildeo se direciona precisamente a eles O problema do valor eacute tatildeo importante ao ponto de se declarar o estreito viacutenculo entre vida e avaliaccedilatildeo Eacute veemente a necessidade da destruiccedilatildeo de valores que seratildeo substituiacutedos reposicionados criados precisamente por aqueles que satildeo a um soacute tempo criadores e combatentes O texto clama pelo destroccedilamento das velhas taacutebuas de valores

Portanto o sentido predominante da criacutetica em Nietzsche natildeo eacute aquele que tem como eixo principal a observaccedilatildeo e o discernimento A maneira com que Rosset a enuncia dando relevo a falta de acusaccedilatildeo agrave compreensatildeo ao fazer ver lembra um trecho da Gaia ciecircncia em que Nietzsche critica Spinoza por esse uacuteltimo segundo o filoacutesofo alematildeo ignorar que a compreensatildeo natildeo existe de forma independente a certos afetos uma vez que inversamente natildeo existe o puro entendimento A compreensatildeo se envolve com uma complexidade de afetos da qual ela resulta Nietzsche se opotildee a tal pretensatildeo ao purismo no campo do conhecimento

A questatildeo natildeo pode ser separada da problemaacutetica da vontade e poder e do perspectivismo Ateacute mesmo no que diz respeito agraves ciecircncias da natureza em sua relaccedilatildeo com o conhecimento puro somente o que comportaria de pureza seria sua pretensatildeo a esse ideal de conhecimento que natildeo ultrapassaria a condiccedilatildeo de pura pretensatildeo pois o perspectivismo implicado ao conceito de vontade de poder tambeacutem atua no saber cientiacutefico fazendo com que esse tipo de conhecimento esteja embasado natildeo em fatos mas em interpretaccedilotildees vinculadas a manifestaccedilotildees de vontades de poder

Leonardo Arauacutejo Oliveira

171

Ainda que fosse possiacutevel conceber um ser humano que anulasse seus afetos e sua proacutepria vontade ao adentrar no processo gnosioloacutegico natildeo se poderia estabelecer uma separaccedilatildeo entre ciecircncia e vontade uma vez que esse homem estaria a serviccedilo de interesses de outro(s) Esse tipo de ser humano eacute configurado por Nietzsche com a imagem do erudito Se Nietzsche aderisse a essa espeacutecie de ldquoobservaccedilatildeo imaculadardquo pela qual Rosset concebe a criacutetica ele se aproximaria dos eruditos que tanto critica tendo dedicado uma seccedilatildeo de Assim falou Zaratustra para essa criacutetica Sobre eles nos diz Zaratustra ldquose acham frequentemente sentados na fria sombra querem ser apenas espectadores em tudo e evitam sentar-se ali onde o sol queima os degrausrdquo (NIETZSCHE 2011 p119 Z II Dos eruditos) Essa observaccedilatildeo somente pela observaccedilatildeo oblitera o envolvimento afetivo ligado a toda compreensatildeo natildeo passando de uma armadilha moral

Eacute certo que a noccedilatildeo de criacutetica em Nietzsche comporta o sentido do afastamento para um bom discernimento Mas como procuramos mostrar ateacute aqui esse sentido natildeo eacute uacutenico e nem primeiro em relaccedilatildeo aos outros Aleacutem disso esse proacuteprio afastamento natildeo eacute unitaacuterio mas muacuteltiplo O conhecimento eacute tanto mais preciso quanto mais observaccedilotildees diversas forem realizadas (Cf NIETZSCHE 2009 p110 GM III 13) Em alguns momentos essa distacircncia tomada natildeo visa somente a constataccedilatildeo mais apurada mas tambeacutem algo como uma tomada de impulso com o fito de acertar um golpe mais forte

Essa concepccedilatildeo de criacutetica como pura observaccedilatildeo sem interferecircncia ou qualquer tipo de intenccedilatildeo transformadora se adeacutequa bem a concepccedilatildeo que Rosset faz da afirmaccedilatildeo da vida um gozo irrestrito e irracional de todas as coisas Residiria aiacute a ldquoaprovaccedilatildeo jubilatoacuteria da existecircncia sob todas suas formasrdquo (ROSSET 1983 p74) Contudo ambas as concepccedilotildees bem como seu casamento natildeo se aliam ao reconhecimento da criacutetica de Nietzsche ao ldquofalso simrdquo Eacute certo que a figura do asno pode representar adequadamente o homem ressentido aquele que natildeo sabe negar e que toma a pura resignaccedilatildeo como afirmaccedilatildeo Mas eacute certo tambeacutem que essa figura pode representar aqueles que Zaratustra denomina de ldquocontentes com tudordquo Contra esses Zaratustra aponta a necessidade da negaccedilatildeo a capacidade de selecionar a necessidade de se diferenciar daqueles que se alimentam de tudo sem qualquer criteacuterio

O ldquonatildeordquo eacute importante para a afirmaccedilatildeo na medida em que a afirmaccedilatildeo nietzschiana natildeo ldquoafirmardquo tudo de modo indiferente isto eacute natildeo aceita tudo A afirmaccedilatildeo se liga a uma seleccedilatildeo e portanto um percurso afirmativo natildeo dispensa a negaccedilatildeo Em Ecce homo Nietzsche diz que o homem dotado de uma iacutendole bem lograda (Wohlgeratenheit) eacute ldquoum princiacutepio seletivordquo (NIETZSCHE 1999 p419 EH Por que sou tatildeo saacutebio 2) A aprovaccedilatildeo de tudo eacute uma afirmaccedilatildeo inadequada Nos termos do bestiaacuterio de Zaratustra trata-se da aceitaccedilatildeo de toda carga pelo camelo do falso e grotesco ldquosimrdquo do asno e da asquerosa alimentaccedilatildeo do porco

Entre alegria e criacutetica Sobre afirmaccedilatildeo da vida

172

Referecircncias bibliograacuteficasNIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011_____ Ecce homo como algueacutem se torna o que eacute Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008_____ Genealogia da moral uma polecircmica Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Obras incompletas Traduccedilatildeo de Rubens Rodrigues Torres Filho Satildeo Paulo Nova Cultural 1999 (Col Os pensadores)ROSSET Clement La force majeure Paris Les Eacuteditions de Minuit 1983

Luiza Fonseca Regattieri

173

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche e seus desdobramentos eacutetico-esteacuteticos

Luiza Fonseca Regattieri1

IntroduccedilatildeoA proposta desta apresentaccedilatildeo eacute abordar os pontos que eu acredito serem iniciais

para pensar um sentido de justiccedila proacuteprio agrave filosofia de Nietzsche Para nesse vieacutes de investigaccedilatildeo eu possa comeccedilar a delinear a hipoacutetese de que Nietzsche relacionaria justiccedila e gosto borrando os limites entre eacutetica e esteacutetica

Em Genealogia da Moral Nietzsche critica o esforccedilo filosoacutefico moderno em especial o de Eugen Duumlhring2 de colocar a justiccedila como um princiacutepio de accedilatildeo impulsionado pela vinganccedila e o ressentimento (Cf DUumlHRING 2011) Nesta tradiccedilatildeo moderna criticada por Nietzsche a justiccedila se implicaria moral e politicamente a partir desses afetos para superaacute-los atraveacutes de um complexo de poder imparcial com o fim de garantir igualdade universal e eliminar as injusticcedilas (NIETZSCHE 1998 p 64-65GM II sect11) Diferentemente para Nietzsche a justiccedila natildeo proveria de tais afetos e nem teria uma funccedilatildeo correcional da vida como defende Duumlhring Nietzsche propotildee algo diferente em GM que a justiccedila surge como ldquoboa vontade entre homens de poder aproximadamente igual [] de lsquoentender-sersquo mediante um compromissordquo (NIETZSCHE 1998 p 60GM II sect8) ldquocomo um meio na luta entre complexos de poderrdquo (NIETZSCHE 1998 p 65GM II sect11) ldquopara criar maiores unidades de poderrdquo (NIETZSCHE 1998 p65GM II sect11) Essa definiccedilatildeo pode nos lembrar tambeacutem um fragmento poacutestumo de 1884 em que ele escreve ldquoJusticcedila como funccedilatildeo de um poder de abrangecircncia da visatildeo que olha aleacutem das pequenas perspectivas de bem e mal portanto um horizonte mais amplo de vantagem ndash do que a intenccedilatildeo de obter algo que eacute mais do que isso ou essa pessoardquo (NIETZSCHE FP-1884 26[149])

Para entendermos essa definiccedilatildeo eu vou adentrar nos pontos que eu entendo como centrais desta investigaccedilatildeo a partir dos seguintes elementos conceituais a) a necessaacuteria injusticcedila (NIETZSCHE 2000 p 12-13 e 38-39HDHI Proacutelogo sect6 HDHI sect32) b) a boa vontade de entender-se (NIETZSCHE 1998 p 60GM II sect8) c) o mal-entendimento (NIETZSCHE 1998 p 7GM Proacutelogo sect1 BM sect27) d) a autosubsunccedilatildeo da justiccedila (NIETZSCHE 1998 p 62GM II sect10) e e) o gosto (NIETZSCHE 2001 p 169GC III sect184 HDHII sect219 HDHII sect170)

1 Doutoranda no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGFUFRJ) 2 (1833-1921) filoacutesofo e economista poliacutetico alematildeo

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche

174

Justiccedila e gosto borrando os limites entre eacutetica e esteacutetica Em Humano demasiado humano I na seccedilatildeo 32 Nietzsche escreve sobre a

necessidade de ser injusto a primeira informaccedilatildeo que Nietzsche nos apresenta nesse aforismo eacute de que os juiacutezos satildeo injustos porque iloacutegicos Ele define a injusticcedila como uma incontornaacutevel inexatidatildeo do juiacutezo no entanto aqui entra sua segunda informaccedilatildeo o juiacutezo natildeo pode ser freado i e ele se daacute necessariamente na vida em todo impulso em toda accedilatildeo Avaliar ou seja julgar a vida os valores os acontecimentos eacute irrenunciaacutevel embora seja uma operaccedilatildeo inevitavelmente iloacutegica Eacute impossiacutevel haver conhecimento absoluto ou exato de algo ou algueacutem pois ldquoo modo como se apresenta o material [eacute] muito incompletordquo (NIETZSCHE 2000 p 38-39 HDHI sect32) cada parte dele nos chega de maneira inexata e sua soma natildeo poderia ser atingida a partir dessa inexatidatildeo Aleacutem disso natildeo haacute algo estaacutevel que sirva de crivo ou medida para o julgamento natildeo haacute uma grandeza imutaacutevel natildeo existe um fundamento que justifique a avaliaccedilatildeo que faccedila jus ao julgamento

Nietzsche toma como necessaacuterio o movimento irrefreaacutevel de fundar apesar do sem fundamento proacuteprio da criaccedilatildeo de modos de vida Disso decorre a terceira ideia que ele apresenta ldquosomos [] capazes de reconhecerrdquo (NIETZSCHE 2000 p 39 HDHI sect32) esta insoluacutevel desarmonia da existecircncia conseguimos perceber o sem fundamento da vida e nosso movimento de fundamentaacute-la Parto da hipoacutetese que essa capacidade eacute a funccedilatildeo da justiccedila no sentido nietzschiano A justiccedila eacute o natildeo desviar do olhar para a produccedilatildeo de fundamentaccedilotildees e para o campo de batalha entre elas Ela se exercita como dever de

aprender a perceber o que haacute de perspectiva em cada valoraccedilatildeo [em disputa] ndash o deslocamento a distorccedilatildeo e a aparente teleologia dos horizontes e tudo o que se relaciona agrave perspectiva tambeacutem o quecirc de estupidez que haacute nas oposiccedilotildees de valores e a perda intelectual com que se paga todo proacute e todo contra Vocecirc deve apreender a injusticcedila necessaacuteria de todo proacute e contra a injusticcedila como indissociaacutevel da vida a proacutepria vida como condicionada pela perspectiva e sua injusticcedila (NIETZSCHE 2000 p 12-13HDH I Proacutelogo sect 6)

A justiccedila se daacute entatildeo neste incessante aprender a perceber perspectivas e perdas da avaliaccedilatildeo Esse sentido eacute retomado em Genealogia da Moral quando Nietzsche define a justiccedila como o empenho de entender ldquojusticcedila eacute a boa vontade entre humanos de poder aproximadamente igual [] de lsquoentender-sersquordquo (NIETZSCHE 1998 p 60GM II sect8) O entender-se foi destacado entre aspas no texto original Essa ecircnfase lembra singelamente ao leitor que se o entendimento pleno natildeo eacute possiacutevel o entender pressupotildee um ldquomal-entenderrdquo (NIETZSCHE 1998 p 7GM Proacutelogo sect1) como explica Nietzsche

Eacute difiacutecil ser entendido [] ndash faccedilo eu tudo para me tornar dificilmente entendido ndash e deve-se ser de coraccedilatildeo reconhecidamente grato soacute pela boa vontade em alguma sutileza de interpretaccedilatildeo Que [isso] poreacutem diz respeito ldquoaos bons amigosrdquo que estatildeo sempre em [situaccedilatildeo] cocircmoda e justamente por serem amigos acreditam ter direito a tal comodidade ora eacute bom que se conceda a eles de imediato uma margem de manobra e um espaccedilo de recreaccedilatildeo para o mal-entendimento - assim se haacute de rir ainda - ou absolutamente [haacute] de se repelir esses bons amigos e assim tambeacutem rir (NIETZSCHE 1992 p 32BM sect27)

Luiza Fonseca Regattieri

175

Nietzsche coloca nesse aforismo algo que deve haver ali no movimento para entender uma boa vontade em alguma sutileza de interpretaccedilatildeo ou seja um empenho de querer entender considerar natildeo ser indiferente Afinal ele afirma ldquoquem nada entendeu de mim negava que eu em geral fosse levado em consideraccedilatildeordquo (NIETZSCHE 1995 p 21-22EH Por que escrevo tatildeo bons livros sect1) Essa eacute a mesma boa vontade que Nietzsche coloca como condiccedilatildeo para ldquoQuando realmente acontece de o homem justo ser justo [] (e natildeo apenas frio comedido distante indiferente ser justo eacute sempre uma atitude positiva)rdquo (NIETZSCHE 1998 p 63GM II sect11)

O filoacutesofo ainda recomenda que agrave boa vontade seja concedida uma ldquomargem de manobra e um espaccedilo de recreaccedilatildeo para o mal-entendimentordquo (NIETZSCHE 1992 p 32BM sect27) Como bem aponta Werner Stegmaier no artigo traduzido como Signos de Nietzsche o mal-entender eacute acolher a incompreensatildeo como compreensatildeo ou seja ldquoesforccedilar-se por condescender a outros por meio de compreensibilidaderdquo (STEGMAIER 2013 p 143) e o acolhimento do incompreendido se daacute nessa margem de manobra e espaccedilo de recreaccedilatildeo apontado por Nietzsche3 Esse espaccedilo natildeo eacute algo necessaacuterio Nietzsche o recomenda ldquoeacute bom que se concedardquo (NIETZSCHE 1992 p 32BM sect27) Mas a concessatildeo de um espaccedilo para o acolhimento do incompreensiacutevel do estranho da diferenccedila soacute eacute possiacutevel quando se reconhece a estranheza Nesse sentido como observa Stegmaier conceder a margem de manobra para o mal-entendimento eacute uma soluccedilatildeo eacutetica fornecida por Nietzsche para o problema da dificuldade de ser entendido (STEGMAIER 2013 p139) Essa margem evidencia que o entendimento eacute a possibilidade de entendermos algo e nesse mesmo ato produzir e acolher um equiacutevoco

Proponho que a soluccedilatildeo eacutetica indicada por Nietzsche agrave dificuldade de ser entendido pode ser aplicada tambeacutem agrave justiccedila o acolhimento da ambivalecircncia A justiccedila em Nietzsche seria esse espaccedilo de recreaccedilatildeo essa margem de manobra Quando Nietzsche escreve ldquoVocecirc deve apreender a injusticcedila necessaacuteria de todo proacute e contra a injusticcedila como indissociaacutevel da vida []rdquo (NIETZSCHE 2000 p 12-13HDH I Proacutelogo sect 6) ele tambeacutem aqui recomenda ndash ldquovocecirc deverdquo ndash que se conceda a margem para o acolhimento da inexatidatildeo do juiacutezo Para esse acolhimento Nietzsche nos diz que eacute preciso boa vontade ou seja esforccedilo para perceber a injusticcedila que necessariamente resta na justiccedila esta eacute sua genialidade ser ldquouma adversaacuteria das convicccedilotildeesrdquo (NIETZSCHE 2000 p 305HDHI sect636)

Entretanto independentemente dessa ambivalecircncia ser acolhida a produccedilatildeo do sentido de justiccedila eacute marcada por ela Nietzsche em Genealogia da Moral descreve que a produccedilatildeo do justo em uma comunidade se daacute por um processo de suspenccedilatildeo do que se compreendia como justiccedila anteriormente O que outrora se compreendeu por justiccedila eacute visto por uma nova perspectiva como injusticcedila e a partir disso eacute produzido um novo sentido de justo Nietzsche denomina esse processo de autossubsunccedilatildeo da justiccedila

Aumentando o poder de uma comunidade ela natildeo mais atribui tanta importacircncia aos desvios do indiviacuteduo [] pelo contraacuterio [] as tentativas de achar equivalentes e acomodar a questatildeo (compositio) [] a vontade cada vez mais firme de considerar toda infraccedilatildeo resgataacutevel de algum modo de isolar [] o criminoso de seu ato ndash estes satildeo os traccedilos que marcam cada vez mais nitidamente a evoluccedilatildeo posterior do direito

3 Stegmaier descreve esse espaccedilo de manobra ldquocomo um espaccedilo no qual algueacutem ou alguma coisa pode se comportar de acordo com lsquoregras de atuaccedilatildeorsquo (Spielregen) proacuteprias espaccedilo que natildeo obstante eacute limitado por meio de regras ou dados de fato (Gegebenheiten) sobre os quais nem um nem outro nesse espaccedilo pode ldquorecreandordquo impor-serdquo (2013 p 143)

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche

176

penal [] A justiccedila que iniciou com ldquotudo eacute resgataacutevel tudo tem que ser pagordquo termina como toda coisa boa sobre a terra superando a si mesma [sich selbst aufheben] A autossubsunccedilatildeo [Selbstaufhebung] da justiccedila sabemos com que belo nome ela se apresenta ndash graccedila ela permanece como eacute oacutebvio privileacutegio do poderoso ou melhor o seu ldquoaleacutem do direitordquo (NIETZSCHE 1998 p 61-62GM II sect10)4

O aforismo nos mostra que uma forma de justiccedila (compensaccedilatildeo ldquotudo eacute resgataacutevel tudo tem que ser pagordquo) eacute negada por uma perspectiva que a vecirc como injusta assim para se superar essa injusticcedila se produz uma nova compreensatildeo de justiccedila (composiccedilatildeo) Nesse sentido a justiccedila se processa enquanto autossuspenccedilatildeo isto eacute superaccedilatildeo de injusticcedilas sem entretanto extinguir a injusticcedila que lhe eacute inerente natildeo podendo assim dar cabo agrave sua proacutepria produccedilatildeo

Nietzsche entende que esse movimento de superaccedilatildeo acontece irrefreavelmente ldquoSe crescem o poder e a consciecircncia de si de uma comunidade torna-se mais suave o direito penal se haacute enfraquecimento dessa comunidade [] formas mais duras desse direito voltam a se manifestarrdquo (NIETZSCHE 1998 p 61-62GM II sect10) No entanto para Nietzsche noacutes natildeo nos atentamos a esse processo de autossubsunccedilatildeo (NIETZSCHE 20001 p 220-221GC IV sect 333) e acreditamos que a justiccedila eacute uma avaliaccedilatildeo loacutegica e objetiva uma evoluccedilatildeo purificadora Mas essa crenccedila soacute eacute possiacutevel se negamos a vida como condicionada pela perspectiva e sua injusticcedila Assim eacute em razatildeo dessa denegaccedilatildeo que o processo de autossubsunccedilatildeo da justiccedila se apresenta com o nome de graccedila (NIETZSCHE 1998 p 61-62GM II sect10)

A autossubsunccedilatildeo da justiccedila natildeo eacute para Nietzsche uma graccedila O filosofo recusa a ideia de inspiraccedilatildeo (NIETZSCHE FP-187724[1]) ldquoToda atividade humana eacute assombrosamente complexa natildeo soacute a do gecircnio mas nenhuma eacute um lsquomilagrersquordquo (NIETZSCHE 2000 p 124HDHI sect162) Assim ldquocomo a ideia da obra de arte do poema o pensamento fundamental de uma filosofiardquo (NIETZSCHE 2000 p 119-120HDHI sect 155) natildeo caem ldquodo ceacuteu como um raio de graccedilardquo (Idem) mas longe disso satildeo produto de um ldquojulgamento (Urteilskraft) () [que] rejeita seleciona combinardquo(Idem) a autossubsunccedilatildeo da justiccedila eacute tambeacutem proacutepria dessa capacidade de julgar

Nos aforismos em que Nietzsche recusa a crenccedila na inspiraccedilatildeo e afirma o julgamento que escolhe (NIETZSCHE FP-187724[1] ) ele trata da arte da literatura e da filosofia (NIETZSCHE 2000 p 119-124HDHI sect155 e sect162) No entanto o que nos permite estender essa compreensatildeo agrave justiccedila eacute aleacutem do sect 10 jaacute citado de Genealogia da Moral a seccedilatildeo 184 de Gaia Ciecircncia Nele Nietzsche nos diz ldquoJusticcedila ndash Melhor se deixar roubar 4 Entendo Selbstaufhebung der Gerechtigkeit como autossubsunccedilatildeo da justiccedila e natildeo como auto-supressatildeo na versatildeo em

portuguecircs traduzida por Paulo Ceacutesar A palavra supressatildeo carrega o sentido de extinccedilatildeo o que pode levar agrave interpre-taccedilatildeo de que a Selbstaufhebung eacute o processo de extinccedilatildeo da justiccedila sentido esse que na minha interpretaccedilatildeo o aforismo natildeo possui No prefaacutecio tardio agrave Aurora no aforismo 4 apoacutes ter explanado sobre o pessimismo alematildeo e ter terminado o aforismo anterior exemplificando esse pessimismo em Hegel citando a frase ldquoa contradiccedilatildeo move o mundo todas as coisas contradizem a si mesmasrdquo Nietzsche se questiona se Aurora natildeo seria um livro pessimista pois ele representa uma contradiccedilatildeo e natildeo tem medo dela Nesse sentido Nietzsche escreve que essa contradiccedilatildeo eacute a de que o livro retira a confianccedila na moral mas por moralidade e que ele assim o faz atraveacutes de uma vontade que natildeo quer voltar atraacutes de tudo que jaacute se acredita superado uma vontade pessimista que se nega com prazer Enfim ele escreve que se for desejado uma ldquofoacutermulardquo para isso ela eacute a autossubsunccedilatildeo da moral (die Selbstaufhebung der Moral) Dessa forma natildeo soacute fica explicito o sentido de negar sem suprimir que Nietzsche enxerga em Aufhebung como esse sentido guarda uma relaccedilatildeo com o conceito de Aufhebung em Hegel Hegel como explica Vladimir Safatle em seu curso transcrito sobre a Fenomenologia do Espiacuterito ldquofornece pela primeira vez uma definiccedilatildeo operacional de Aufhebung lsquoO superar apresenta sua dupla significaccedilatildeo verdadeira que vimos no negativo eacute ao mesmo tempo um negar (Negieren) e um conservar (Aufbewahren)rsquo(HEGEL Fenomenologia par 113)rdquo Aufheben eacute como bem observou Georges Bataille inspirado pela filosofia de Hegel um verbo intraduziacutevel que tem o sentido de superar mantendo (BATAILLE 2014 p 59 nota 4) Para mais discussotildees sobre o verbo alematildeo aufheben e as relaccedilotildees entre o conceito em Hegel e Nietzsche conf KAUFMANN 1974 p 236-238

Luiza Fonseca Regattieri

177

do que ter espantalhos ao seu redor ndash eis o meu gosto E em todas as circunstacircncias isso eacute uma questatildeo de gosto ndash e nada maisrdquo (NIETZSCHE 2001 p 169GC sect184) ou seja justiccedila (Justiz5) eacute questatildeo de gosto ou seja uma forma determinada de justiccedila eacute uma produccedilatildeo do gosto Nesse pequeno aforismo Nietzsche propotildee o gosto como a medida do justo resta entatildeo em nos perguntarmos sobre o gosto em sua filosofia

Aproximando gosto e justiccedila Nietzsche se afasta mais uma vez da tradiccedilatildeo filosoacutefica moderna especialmente de Kant para quem o gosto eacute reservado agrave produccedilatildeo de juiacutezos esteacuteticos Quando Nietzsche considera que as atividades do artista do filoacutesofo e do cientista (NIETZSCHE 2000 p 124HDHI sect162) satildeo um julgamento que escolhe e as equipara como uma mesma atividade que parte da fantasia6 ele se afasta do empreendimento kantiano (Cf KANT 1995) pois Kant entende o gosto como um juiacutezo meramente esteacutetico atraveacutes do qual seria impossiacutevel a produccedilatildeo de conhecimento ou de justiccedila por ele natildeo ser um juiacutezo objetivo e universalizaacutevel e ainda divide gosto e julgamento (gosto como desinteressado e proacuteprio do acircnimo de quem julga e julgamento como a mediaccedilatildeo entre o entendimento ou a razatildeo e a imaginaccedilatildeo) Como aponta Katia Hanza em seu texto que discute o gosto na obra intermediaacuteria de Nietzsche

Diferentemente de Kant para quem a tarefa da faculdade de julgar consiste na mediaccedilatildeo entre o entendimento ou a razatildeo e a imaginaccedilatildeo Nietzsche soacute leva em conta dois termos desta constelaccedilatildeo a faculdade de julgar e a fantasia (ou imaginaccedilatildeo) O entendimento ou a razatildeo natildeo satildeo considerados em absoluto pois se ele menciona a ldquoideia da obra de arte da poesiardquo ou o ldquopensamento fundamental de uma filosofiardquo eacute para relacionaacute-los diretamente com a fantasia Eacute como se pensamentos ou ideias fossem produtos apenas da imaginaccedilatildeo e natildeo do entendimento ou da razatildeo Por este motivo as atividades do artista e do filoacutesofo satildeo compreendidas analogicamente Enquanto Kant procura especificar a tarefa da mediaccedilatildeo que a faculdade de julgar realiza entre a intuiccedilatildeo e o entendimento [] Nietzsche reconhece soacute uma faculdade de julgar a que ldquoescolherdquo (auswaumlhlende) [] Como vimos o gosto e a faculdade de julgar cumprem para Nietzsche a mesma funccedilatildeo (HANZA 2005 p 109)

Se pudermos corroborar essa hipoacutetese poderiacuteamos propor que pensando o gosto como medida da justiccedila Nietzsche borra os limites entre os campos eacutetico e esteacutetico Ele afirma que ldquojuiacutezos esteacuteticos e morais satildeo lsquotons sutiliacutessimosrsquo da physisrdquo (NIETZSCHE 2001 p 83GC I sect 39) pois ldquoseu julgamento lsquoIsso estaacute certorsquo tem uma preacute-histoacuteria nos seus impulsos inclinaccedilotildees aversotildees experiecircncias e inexperiecircnciasrdquo (NIETZSCHE 2001 p 222-225GC IV sect 335) Assim ele aproxima os juiacutezos de gosto a instintos e conclui que ldquoOs juiacutezos esteacuteticos (o gosto desagrado asco etc) constituem a base das taacutebuas de valor [Guumltertafel] Estas por sua vez satildeo a base dos juiacutezos moraisrdquo (NIETZSCHE FP-188111[78]) havendo assim um contiacutenuo esteacutetico eacutetico ou melhor Nietzsche coloca os valores morais como superfiacutecies sintomas de valores esteacuteticos Tudo isso me encaminha para a necessidade de investigar o sentido de gosto na filosofia de Nietzsche para comeccedilar a tentar compreender o que seria essa justiccedila como questatildeo de gosto e de nada mais5 O dicionaacuterio Wahrig Alematildeo define o verbete ldquoJustiz ltf - unzgt Rechtswesen Rechtspflegerdquo Rechtswesen tem

o sentido de aquilo que pertence ao Direito e Rechtspflege aquilo que cuida ou assiste ao Direito por isso aponto a diferenccedila entre Justiz e Gerechtigkeit

6 ldquoa fantasia do bom artista ou do pensador produz continuamente [] o seu julgamento altamente aguccedilado e exer-citado rejeita seleciona combinardquo (HDHI sect162)

Elementos para um conceito de justiccedila em Nietzsche

178

Referecircncias bibliograacuteficasBATAILLE G O Erotismo Belo Horizonte Autecircntica Editora 2014DUumlHRING E A satisfaccedilatildeo transcendente da vinganccedila Traduccedilatildeo de Edmilson Pascoal Estudos Nietzsche Curitiba v 2 n 1 p 123-138 janjun 2011 HANZA K Distinccedilotildees em torno da faculdade de distinguir o gosto na obra intermediaacuteria de Nietzsche Cadernos Nietzsche 19 p 101-122 2005 KANT Immanuel Criacutetica da faculdade do juiacutezo 2ordm ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1995KAUFMANN W Nietzsche philosopher psycologist antichrist 4ordm ed Princeton Pinceton University Press 1974NIETZSCHE F Aleacutem do bem e do mal Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992_____ Assim Falou Zaratustra Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011_____ Aurora [eBook] Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 _____ Digitale Kritische Gesamtausgabe ndash Digital version of the German critical edition of the complete works of Nietzsche edited by Giorgio Colli and Mazzino Montinari Disponiacutevel em lthttpwwwnietzschesourceorggt Acesso em 04092017_____ Ecce Homo Satildeo Paulo Companhia de Bolso 1995_____ A Gaia Ciecircncia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 _____ Genealogia da Moral Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ Humano demasiado humano I Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000_____ Humano demasiado humano II Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008SAFATLE V Curso integral ndash A Fenomenologia do Espiacuterito de Hegel 2007 Disponiacutevel em lt httpswwwacademiaedu5857053Curso_Integral_-_A_Fenomenologia_do_EspC3ADrito_de_Hegel_2007_gt Acesso em 04092017STEGMAIER W Signos de Nietzsche In VISENTEINER J GARCIA A (Org) As linhas fundamentais do pensamento de Nietzsche Petroacutepolis Vozes 2013 WAHRIG-BURFEIND R Wahrig dicionaacuterio semibiliacutengue para brasileiros alematildeo Traduccedilatildeo de Karina Janini amp Rita de Caacutessia Machado 4 ed Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2011

Maria Helena Lisboa da Cunha

179

A danccedila aleacutem do bem e do mal

Maria Helena Lisboa da Cunha1

A natureza do corpo eacute correlata agrave natureza do ambiente mudando-se o ambiente muda-se o corpo muda-se o cenaacuterio muda-se o contexto a exemplo do que acontece no Butocirc uma arte ldquoexplosivardquo onde danccedila e teatro se imbricam fazendo eclodir pulsotildees inconscientes danccedilada pelo danccedilarino japonecircs Kasuo Ohno em 1928 teve inspiraccedilatildeo no teatro japonecircs traacutegico Nocirc e na danccedilarina espanhola Antonia Mercecirc la Argentina Para Ohno La Argentina no depoimento de Mark Holborn incarnava a danccedila a literatura a muacutesica e a arte mas principalmente ela simbolizava o amor e a dor da vida real (MAUREY 2004 p97) No Butocirc termo que designa etimologicamente com BU saltar pular enquanto TO martelamento daiacute que Butocirc seja da ordem ldquoascendenterdquo como ascensatildeo vertical dos saltos de Nijinski ou como ldquofonte de luzrdquo para a qual tendia Isadora Duncan Butocirc eacute da ordem da ldquodescidardquo da terra do solo nele o corpo eacute um corpo morto o que lhe daacute vida eacute a relaccedilatildeo que se estabelece entre o corpo e o ambiente Essa espeacutecie de comunicaccedilatildeo do corpo com o mundo tem como premissa a afirmaccedilatildeo radical de Merleau-Ponty de que ldquonosso corpo natildeo estaacute no espaccedilo ele eacute o espaccedilordquo (PONTY 1966 p173) ele me constitui e se dilata ateacute onde vai a minha percepccedilatildeo a exemplo do quarto do vizinho de baixo onde ouccedilo ruiacutedos agrave noite

O Butocirc foi originalmente influenciado pela escrita do novelista japonecircs Yukio Mishima (1925-1970) dono de uma escrita densa e de protesto e dos textos de Artaud poeta e dramaturgo francecircs que acabou seus dias num asilo para doentes mentais agrave procura de sua identidade estrangulada pelo crescimento da ocidentalizaccedilatildeo do Japatildeo depois do fim da Segunda guerra mundial apoacutes a explosatildeo atocircmica em Hiroshima e Nagasaki pelos Aliados Segundo consta no relato de Inecircs Bogeacutea foi com a peccedila Kinjiki baseada na obra Cores Esquecidas do novelista japonecircs que o butocirc entrou em cena em 1959 danccedilada por Tatsumi Hijikata ao mesmo tempo em que o estilo danccedilado foi cognominado Ankoku Butoh ldquodanccedila das trevasrdquo mais tarde tendo se tornado simplesmente Butoh (de bu danccedila e toh descer para o chatildeo cfr supracitado) A estrateacutegia em Artaud visa criar um ldquocorpo sem oacutergatildeosrdquo para desestabilizar o discurso do poder negaccedilatildeo do corpo como organismo com seus suores feacutetidos seus hormocircnios seus odores inventar a danccedila para redescobrir o corpo ilusatildeo fazendo o corpo danccedilar pelo avesso o que natildeo estaacute nem dentro e nem fora do corpo mas ldquoentrerdquo ldquoNatildeo haacute transiccedilatildeo de um gesto para grito ou para um movimento todos os sentidos se interpenetram como se atraveacutes de estranhos canais escavados no proacuteprio espiacuteritordquo (ARTAUD sd p85)

1 Profa Titular de Filosofia da UERJ

A danccedila aleacutem do bem e do mal

180

Essa danccedila ldquoenvelopardquo o espectador as trevas sendo para ele o ldquoventre da matildeerdquo Kazuo Ohno precisa ldquoDe uma hora para a outra noacutes renascemos isto natildeo eacute tatildeo simples como ter nascido do ventre materno Muitos nascimentos satildeo necessaacuterios eacute necessaacuterio renascer sempre e em toda parterdquo (BOGEacuteA 2003 p35) Inecircs Bogeacutea assim o define Kazuo Ohno danccedila entre o mundo visiacutevel e o invisiacutevel Num movimento crepuscular que eacute difiacutecil descrever e mesmo difiacutecil definir o que eacute obscuro e o que eacute luminoso na nossa natureza ele cede para os sentidos sem perder sua ambiguidade e sem contradiccedilatildeo () Cada imagem cada instante eacute uma singularidaderdquo (IDEM p27) e mesmo o peso da morte ele consegue carregar nas suas costas em cada movimento em cada performance O ator precisa ldquoVida eacute movimento mover significa lsquoprocurar a vidarsquo Cada pequeno instante nas minhas performances pode ser modificado porque eacute a proacutepria vida que determina issordquo (IDEM IBIDEM) na sua percepccedilatildeo da realidade vida e morte se alternam num fluxo contiacutenuo completando-se daiacute que ter consciecircncia desse movimento deve monitorar o ritmo da danccedila

Ohno sinaliza que sua arte eacute improvisada ele anotava palavras de poemas e pinturas que no momento da danccedila se corporificam e vatildeo dando lugar a movimentos do corpo por outro lado segundo relata ele tenta carregar no seu corpo o peso e o misteacuterio da vida e da morte ldquoEu sigo todo o tempo minhas memoacuterias para traacutes para o ventre maternordquo (IDEM p 38) danccedila na qual ele se traveste em velho e jovem homem e mulher forte e fraco ao mesmo tempo trazendo agrave baila para reflexatildeo a indeterminaccedilatildeo das forccedilas inconscientes e primitivas em oposiccedilatildeo agraves conscientes focadas e unilaterais O corpo eacute um centro energeacutetico nele uma pluralidade de forccedilas estaacute em accedilatildeo e eacute por isso que a danccedila eacute tida como uma experiecircncia de vitalidade natildeo soacute porque ela requer um corpo viril mas tambeacutem porque ela daacute essa virilidade essa elasticidade ao corpo ldquoNatildeo eacute a gordura que um danccedilarino pretende obter de sua alimentaccedilatildeo mas o maacuteximo de elasticidade e forccedila e natildeo conheccedilo nada que um filoacutesofo goste mais do que ser um bom danccedilarino Porque a danccedila eacute o seu ideal sua arte tambeacutem sua uacutenica piedade seu lsquocultorsquordquo (NIETZSCHE 1982 sect 381)

Em Nietzsche a danccedila se transforma numa proposta anti-metafiacutesica porque eacute sedutora proteiforme dionisiacuteaca ldquoaleacutem do bem e do malrdquo ela manifesta a vida natildeo como um fardo que se carrega mas como uma alegria que se afirma primeiramente a danccedila da vida embriaguez dionisiacuteaca que se apresenta como criaccedilatildeodestruiccedilatildeo das formas na obra A origem da trageacutedia concebida como a relaccedilatildeo DionisoApolo em segundo lugar como a danccedila das forccedilas coacutesmicas que criam e se recriam na teoria das forccedilas a danccedila de Shiva Nataraja deus hindu da geraccedilatildeo e da transformaccedilatildeo coacutesmica e em terceiro lugar a danccedila dos conceitos que como a vida satildeo dinacircmicos fluidos natildeo estaacuteticos soacutelidos ldquoOs homens que se dizem superiores natildeo sabem danccedilar como eacute preciso ndash danccedilar com os conceitosrdquo (IDEM 1908 ldquoDo homem superiorrdquo sect 20)

A consequecircncia desse posicionamento estaacute no fato de que um pensamento que danccedila natildeo se subordina a sistemas nem a estruturas duraacuteveis de valores por isso segundo Nietzsche essa imagem do pensamento tem no danccedilarino sua mais alta expressatildeo ldquoPensar necessita uma teacutecnica um programa uma vontade de mestria o pensamento tem que ser aprendido como se aprende a danccedilar como uma espeacutecie de danccedila () saber danccedilar com os peacutes com as ideias com as palavras com a penardquo (IDEM 1974 sect 7) O conceito nietzschiano de aleacutem-do-homem concebido em algumas traduccedilotildees como super-homem tem por objetivo o surgimento de uma poliacutetica traacutegica que tem na imagem do danccedilarino a sua mais alta expressatildeo ldquoEacute danccedilando que sei dizer os siacutembolos das coisas mais sublimesrdquo

Maria Helena Lisboa da Cunha

181

(IDEM 1908 ldquoO canto do tuacutemulordquo sect 159) isto porque a danccedila mediatiza o visiacutevel e o invisiacutevel reconciliando os instintos animais e espirituais duas vitais dimensotildees da existecircncia tornando-se traacutegica Poreacutem a proposta nietzschiana contra a metafiacutesica natildeo diviniza somente a danccedila como supramencionado na nota 2 ldquonatildeo conheccedilo nada de que um filoacutesofo goste mais do que ser um bom danccedilarinordquo (IDEM 1982 sect 381) mas tambeacutem o riso ldquoTodas as boas coisas riemrdquo (IDEM 1908 ldquoDo homem superiorrdquo sect 17) segundo o filoacutesofo eacute preciso saber inclusive rir de si mesmo ldquoMoro em minha proacutepria casa nada imitei de ningueacutem e ndash ainda rio de todo mestre que natildeo riu de si tambeacutemrdquo (IDEM 1982 p19)

Os antigos jaacute concebiam o universo como tendo nascido de uma enorme gargalhada uma gargalhada diaboacutelica como se deus de repente se desse conta do absurdo da existecircncia eacute de se morrer de rir (Autor anocircnimo do papiro alquiacutemico Papiro de Leyde do seacutec III) Ibsen em sua peccedila Esperando Godot coloca como protagonistas dois vagabundos Vladimir e Estragon monologando sobre o ldquonadardquo da existecircncia e o diaacutelogo termina com uma interrogaccedilatildeo de um dos protagonistas para o outro ―ldquoVocecirc acha que a vida tem um sentidordquo Ao que o outro responde com uma gargalhada e o pano cai sobre os dois Na poesia e na muacutesica a poliacutetica traacutegica articula-se por meio das maacutescaras o bufatildeo o poeta e o muacutesico dionisiacuteaco atores no palco da vida satildeo ilusionistas no mais alto grau a arte eacute ldquoa mais alta potecircncia do falsordquo (IDEM 1995 sect 107) daiacute que a questatildeo da existecircncia em Nietzsche tome essa feiccedilatildeo traacutegica o valor de um livro de uma muacutesica ou de um ser humano assenta na possibilidade ou na impossibilidade de serem leves como os paacutessaros danccedilarinos portanto ou pesados como a gravidade a carga que a humanidade carrega tendo o seu simbolismo na imagem do camelo e do asno animais de carga ldquoE isto eacute meu alfa e o meu ocircmega que tudo o que eacute pesado se torne leve que todo corpo se torne danccedilarino todo espiacuterito paacutessarordquo (IDEM 1908 ldquoOs sete selosrdquo sect 6) Vale observar que o bailarino conhece o mundo natildeo com a cabeccedila (a aranha da razatildeo) mas com os peacutes (onde se encontram a terminaccedilatildeo dos centros nervosos zona por isso mesmo extremamente sensiacutevel) daiacute a consideraccedilatildeo do filoacutesofo ldquoEstamos acostumados a pensar ao ar livre caminhando saltando subindo danccedilando e acima de tudo nas solitaacuterias montanhas ou na orla do mar onde estatildeo incluiacutedos os caminhos que se fazem meditativosrdquo (IDEM 1982 sect 366)

Em um texto sobre ldquoTeatro e Maacutescara no pensamento de Nietzscherdquo Franco Ferraz (2002 pp117-132) observa que a maacutescara tem como poliacutetica traacutegica a criacutetica ao modelo de identidade do platonismo posto que pura diferenccedila simulacro e natildeo coacutepia ela esconde e revela ao mesmo tempo pondo a ambiguidade em cena desqualificando a miacutemesis categoria precipuamente platocircnica para erigir no seu lugar o outro que natildeo ela mesma a Goacutergona medusa ou similar Parmecircnides e seu famoso princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo estariam para sempre sepultos por isso no aforismo 40 de Aleacutem do bem e do mal Nietzsche afirma ldquoTudo que eacute profundo ama a maacutescarardquo () ldquomais ainda ao redor de todo espiacuterito profundo cresce continuamente uma maacutescara graccedilas agrave interpretaccedilatildeo perpetuamente falsa ou seja rasa de cada palavra cada passo cada sinal de vida que ele daacuterdquo inaugurando o primado da aparecircncia da ilusatildeo e da ausecircncia de fundamento fruto do afundamento do terreno metafiacutesico propondo uma ponte agrave outras maacutescaras outras cavernas por detraacutes das cavernas ldquouma caverna ainda mais profunda por detraacutes de cada cavernardquo () posto que segundo o filoacutesofo ldquoToda filosofia tambeacutem esconde uma filosofia toda opiniatildeo eacute tambeacutem um esconderijo toda palavra tambeacutem uma maacutescarardquo (NIETZSCHE 1998 sect 289)

A danccedila aleacutem do bem e do mal

182

Joseacute Gil na obra Movimento total se refere ao fato de que a danccedila eacute o seu danccedilado ela eacute sempre o que eacute daiacute que sendo a danccedila contemporacircnea do seu devir ela sempre eacute ldquoEacute proacuteprio da danccedila que o seu movimento possa tender infinitamente para a energia pura a fim de atingir a maior liberdade () Este paradoxo implica como princiacutepio do movimento danccedilado a possibilidade teoacuterica de converter totalmente o peso em energiardquo (GIL 2005 p19) Esta caracteriacutestica eacute uma das que distinguem um gesto comum do gesto danccedilado o bailarino cria o espaccedilo com o seu movimento constituindo um ldquoespaccedilo do corpordquo espaccedilo paradoxal virtual diferente do objetivo posto que investido de forccedilas e afetos que o intensificam expandindo e prolongando os seus limites aleacutem de seus contornos visiacuteveis

A arte do bailarino consiste em construir um maacuteximo de instabilidade em desarticular as articulaccedilotildees em segmentar os movimentos em separar os membros e os oacutergatildeos a fim de poder reconstruir um sistema de equiliacutebrio infinitamente delicado ndash uma espeacutecie de caixa de ressonacircncia ou de amplificador dos movimentos microscoacutepicos do corpo (IDEM p 23)

Um exemplo do que estamos afirmando podemos ter na danccedila de possessatildeo transes danccedila de Satildeo Vito tarantela thiaso dionisiacuteaco danccedila dos coribantes adoradores de Cibele deusa-matildee da regiatildeo da Friacutegia na Aacutesia menor onde o proacuteprio corpo se torna a cena da danccedila como se outro corpo danccedilasse no interior do primeiro Na possessatildeo eacute o movimento que danccedila natildeo haacute um eu a danccedilar Na esteira de Spinoza Nietzsche eacute um filoacutesofo que vai fazer do corpo o seu conceito-chave e a partir dele eacute toda a filosofia francesa encabeccedilada por Deleuze Guattari Derrida Foucault Bataille Baudrillard e outros tantos que seguiraacute nessa direccedilatildeo

Instrumento de teu corpo eacute tambeacutem a tua pequena razatildeo meu irmatildeo a qual chamas ldquoespiacuteritordquo pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razatildeo ldquoEurdquo dizes e ufanas-te desta palavra Mas ainda maior no que natildeo queres acreditar ndash eacute o teu corpo e a tua grande razatildeo esta natildeo diz eu mas faz eu (NIETZSCHE 1908 ldquoDos desprezadores do corpordquo)

Adeus ceacuterebro flutuante adeus filoacutesofos de gabinete magros e esquaacutelidos hoje haacute ateacute uma filosofia que se intitula filosofia da mente que aposta na profunda interaccedilatildeo existente entre corpo ceacuterebro e emoccedilotildees como observa Antonio Damaacutesio em sua obra O erro de Descartes corroborando as intuiccedilotildees junguianas e nietzschianas ldquoO ceacuterebro e o corpo encontram-se indissociavelmente integrados por circuitos bioquiacutemicos e neurais dirigidos um para o outrordquo (2000 p113) por duas vias a primeira constituiacuteda por nervos motores e sensoriais perifeacutericos transportando sinais do corpo para o ceacuterebro e vice-versa e a segunda conhecida e decantada pelos antigos atraveacutes da corrente sanguiacutenea que cuida do transporte dos hormocircnios os neurotransmissores e os neuromoduladores O autor se estende sobre o tema afirmando que haacute tambeacutem uma interaccedilatildeo entre o corpo-ceacuterebro e o meio-ambiente seja ela comportamental ou imagiacutestica (visual auditiva ou somatosensorial) na esteira de Jung que jaacute apregoava no seacuteculo dezenove ldquoComo a psique e a mateacuteria estatildeo encerradas em um soacute e mesmo mundo e aleacutem disso se acham permanentemente em contato entre si () haacute natildeo soacute a possibilidade mas ateacute mesmo certa probabilidade de que a mateacuteria e a psique sejam dois aspectos diferentes de uma soacute e mesma coisardquo ( JUNG 1982 p152) Com Deleuze essa questatildeo desemboca num pensamento ousado

Maria Helena Lisboa da Cunha

183

O pensamento natildeo eacute arborescente e o ceacuterebro natildeo eacute uma mateacuteria enraizada nem ramificada O que se chama equivocadamente de lsquodendritosrsquo natildeo assegura uma conexatildeo dos neurocircnios num tecido contiacutenuo A descontinuidade das ceacutelulas o papel dos axocircnios o funcionamento das sinapses a existecircncia de microfendas sinaacutepticas o salto de cada mensagem por cima destas fendas fazem do ceacuterebro uma multiplicidade que no seu plano de consistecircncia ou em sua articulaccedilatildeo banha todo um sistema probabiliacutestico incerto um certain nervous system (DELEUZE 2004 p25)

Filosofia e danccedila portanto filosofia e muacutesica satildeo almas gecircmeas os primeiros filoacutesofos como Pitaacutegoras e seus disciacutepulos satildeo tanto matemaacuteticos como muacutesicos A muacutesica se constitui para eles num objeto de estudo privilegiado eles se espantam de ouvir certos intervalos produzirem um som particular e de constatar que esses intervalos compreendem as leis fiacutesicas e matemaacuteticas Esses pensadores assim como Platatildeo e o teoacuterico da muacutesica Aristoacutexeno de Tarento ou Plutarco depois os teoacutericos romanos como Aristides Quintiliano ou Claacuteudio Ptolomeu elaboram as leis matemaacuteticas e fiacutesicas da muacutesica que conhecem uma grande repercussatildeo na histoacuteria ocidental da teoria musical Essas teorias tecircm por base o princiacutepio matemaacutetico das ldquoconsonacircnciasrdquo (sumphonia em grego) atribuiacutedo a Pitaacutegoras que corresponde aos intervalos de oitava (escala do-do) de quinta (escala do-sol) e de quarta (escala do-faacute) e se traduzem matematicamente pela foacutermula (n + 1n) dita ldquosuperparcialrdquo Desse modo cada modo musical e cada gecircnero contem trecircs graus fixos que entreteacutem entre eles uma relaccedilatildeo de consonacircncia e correspondem respectivamente agrave nota fixa mais baixa do modo ou do gecircnero a mediana e a mais alta As leis matemaacuteticas de harmonia se desenvolvem nas civilizaccedilotildees gregas e romanas a partir desses princiacutepios Relevando da fiacutesica da matemaacutetica e da filosofia essas leis natildeo satildeo conhecidas dos muacutesicos daquela eacutepoca que natildeo recebiam formaccedilatildeo teoacuterica tatildeo aprofundada na antiguidade mas sim dos filoacutesofos

Dadas essas premissas compreendemos a estreita e imprescindiacutevel relaccedilatildeo existente desde a antiguidade claacutessica entre filosofia muacutesica e danccedila e natildeo se entende como e nem porque essa triacuteade se desfez ou melhor se entende como um desvio cultural perpetrado pelo crescente racionalismo que tomou conta do panorama filosoacutefico e cientiacutefico a partir de Soacutecrates Platatildeo e Aristoacuteteles e galopante ateacute nossos dias Mas esse galope estaacute com os seus dias contados inuacutemeros pensadores e poetas do passado e da atualidade se rebelaram com esse feito e denunciaram o engessamento da cultura bem como propalaram a articulaccedilatildeo da filosofia com as letras e as com artes Cito apenas trecircs para natildeo me estender demasiado o primeiro se encontra no diaacutelogo Feacutedon da maturidade de Platatildeo Soacutecrates traz agrave baila um sonho em que lhe cobram o fato de natildeo ter feito muacutesica na sua existecircncia ao que ele responde que na verdade jaacute faz ldquo() pois para mim a filosofia eacute a muacutesica suprema e eacute justamente isto que eu faccedilordquo (60-61a)

Platatildeo sabe que a alma possui movimentos e que estes satildeo suscetiacuteveis de se desorganizar por isso propotildee em As leis obra da velhice do filoacutesofo a muacutesica por sua afinidade com a dialeacutetica como potecircncia capaz de harmonizar os afetos e os desregramentos internos propiciando a temperanccedila (sophrosyacutene) virtude eacutetica maacutexima para os gregos que se consideravam aristoacutei isto eacute os melhores A teoria dos movimentos da alma atribui a esta os mesmos movimentos que os astros considerados de harmonia perfeita pela sua circularidade regularidade e beleza essa esteacutetica frequentemente tomou como referencial a proacutepria beleza inscrita no kosmos Haacute toda uma linhagem de filoacutesofos que propotildee que o homem se transforme eticamente na medida em que ele vai se tornando kosmios (ordenado)

A danccedila aleacutem do bem e do mal

184

ou seja na medida em que ele vai conquistando para a sua realidade pessoal a beleza e a ordenaccedilatildeo que estariam dadas exemplarmente na proacutepria organizaccedilatildeo do kosmos Em uma nota de rodapeacute o tradutor e comentador das Obras completas de Platatildeo na Bibliothegraveque de la Pleacuteiacircde Leacuteon Robin e seu colaborador Mndash J Moreau fazem a seguinte referecircncia ldquoBasta com efeito que uma esfera coincida pelo seu centro com seu proacuteprio centro para que ela coincida consigo mesma em todos os pontos propriedade que soacute ela possui entre todos os soacutelidos regularesrdquo

Nietzsche em vaacuterios aforismos diz que a vida eacute muacutesica e numa carta a Peter Gast seu amigo e bioacutegrafo datada de 15011888 na cidade de Nice ao sul da Franccedila declara ldquoA vida sem muacutesica eacute simplesmente um erro uma tarefa cansativa um exiacuteliordquo (CUNHA 2009 p98) Concluo com Deleuze para quem a muacutesica eacute ldquoatividaderdquo constitui o ldquoato da Razatildeo sensiacutevelrdquo o que equivale a dizer que a ldquorazatildeo natildeo tem por funccedilatildeo representar no sentido de generalizar abstraindo mas atualizar a potecircncia isto eacute instaurar relaccedilotildees humanas numa mateacuteria expressivardquo fazer movimento neste caso a mateacuteria sonora (DELEUZE 2003 p16) Para o pensador a muacutesica eacute movimento que agindo sobre todo o corpo o utiliza como seu proacuteprio palco por isso ela tambeacutem eacute uma poliacutetica uma guerrilha e uma resistecircncia ainda que sem imagens potecircncia de expressatildeo dramaticidade histrionismo dionisiacuteaco ldquoEacute como se a arte musical tivesse dois aspectos um como danccedila de moleacuteculas sonoras revelando a ldquomaterialidade dos movimentos que atribuiacutemos agrave almardquo () mas tambeacutem outro como instauraccedilatildeo de relaccedilotildees humanas nessa mateacuteria sonora que produz diretamente os afetos que costumam ser explicados pela psicologiardquo (IDEM pp52-3) Em Mateacuteria e memoacuteria Bergson diz coisa semelhante quando afianccedila que a consciecircncia natildeo representa mas conecta ou desconecta imagens como uma central telefocircnica

A muacutesica tem por funccedilatildeo produzir afetos ela atualiza as forccedilas que perpassam os corpos ldquotorna visiacutevel o invisiacutevelrdquo frase do pintor abstracionista alematildeo Paul Klee no seu ensaio Teoria da arte moderna Uma oacutepera natildeo eacute feita para que pensemos no que Mozart sentiu quando fez Don Giovanni mas para que vivenciemos o desejo de Elvira por Don Giovanni para que esse desejo se aposse de nossa alma e nos sufoque ou entatildeo que nos apossemos do desejo de Carmen por Don Joseacute quando ela o seduz danccedilando a Seguidilla ou cantando a famosa aacuteria da Habanera na taberna de Lillas Paacutestia ldquoO amor eacute um paacutessaro rebelde que ningueacutem pode aprisionar e eacute em vatildeo que o chamamos se lhe conveacutem recusar O amor o amor O amor eacute uma crianccedila boecircmia ele nunca conheceu leis se tu natildeo me amas eu te amo se eu te amo toma cuidadordquo corroborando as afirmaccedilotildees de Nietzsche-Zaratustra ldquoPor seus cantos e por suas danccedilas o homem mostra que ele eacute membro de uma comunidade superior ele esqueceu a marcha e a palavra ele estaacute a ponto de voar danccedilando pelos ares [] O homem natildeo eacute mais um artista se converteu numa obra de arterdquo (NIETZSCHE 1977 sect 1)

Maria Helena Lisboa da Cunha

185

Referecircncias bibliograacuteficasARTAUD Antonin O teatro e o seu duplo Trad Fiama Hasse Pais Brandatildeo Prefaacutecio de Urbano Tavares Rodrigues Lisboa Minotauro sd p 185BERGSON H Matiegravere et memoire Paris PUF 1965BOGEacuteA Inecircs Kazuo Ohno Satildeo Paulo Cosac Naify Photos Emidio Luisi 2003CUNHA M H Lisboa da Nietzsche ndash Espiacuterito artiacutestico Londrina CEFIL 2003 _____ Rhizoma Uma esteacutetica da existecircncia em Platatildeo Nietzsche e Jung Rio de Janeiro Verbete 2009 DAMAacuteSIO Antonio R O erro de descartes Trad Dora Vicente Georgina Segurado 5ordf ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000DELEUZE Gilles Mil platocircs Trad Aureacutelio Guerra Neto e Ceacutelia Pinto Costa 3ordf ed Rio de Janeiro Editora 34 2004_____ Peacutericles e Verdi A filosofia de Franccedilois Chacirctelet Trad Hortecircncia S Lencastre Rio de Janeiro Pazulin 2003 FRANCO FERRAZ Maria Cristina Nove variaccedilotildees sobre temas nietzschianos Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2002GIL Joseacute Movimento total Satildeo Paulo Iluminuras 2005JUNG Carl Gustav Obras completa v VIII2 A natureza da psique Trad Pe Dom Mateus Ramalho Rocha OSB 1 ed Petroacutepolis Vozes 1982MAUREY Catheacuterine laquo Danser la cruauteacute Correspondances entre les theacuteories theacuteacirctrales drsquo Antonin Artaud et le Buto raquo In Aesthetics looking at japanese culture nordm 11 (Special Issue) The Japanese Society for Aisthetics University of Tokyo 2004MERLEAU-PONTY Maurice Pheacutenomeacutenologie de la perception Paris Gallimard 1966NIETZSCHE Friedrich Whilelm Oeuvres philosophiques complegravetes Textes et variantes eacutetablis par Giorgio Colli et Mazzino Montinari tome V Le gai savoir laquo Gaya ciecircncia raquo Fragments posthumes (Eacuteteacute 1881 ndash eacuteteacute 1882) Trad Pierre Klossowski Paris Gallimard 1982_____ Oeuvres philosophiques complegravetes (automne 1869printemps 1872) Traduction de Michel Haar Philippe Lacoue-Labarthe et Jean-Luc Nancy Textes et variantes eacutetablis par Giorgio Colli et Mazzino Montinari tome I v 1 La naissance de la trageacutedie Fragments posthumes Paris Gallimard 1977_____ Oeuvres philosophiques complegravetes tome VIII v 1 Creacutepuscule des idoles trad Jean-Claude Heacutemery Textes et variantes eacutetablis par G Colli et M Montinari Paris Gallimard 1974_____ Ainsi parlait Zarathoustra (un livre pour tous et pour personne) Trad Henri Albert 17egraveme ed Paris Societeacute du Mercure de France 1908 _____ La volonteacute de puissance Trad Geneviegraveve Bianquis 2vs Paris Gallimard 1995_____ Aleacutem do bem e do mal Trad Paulo Ceacutezar de Souza1 ed Satildeo Paulo Companhia da Letras 1998PLATON Oeuvres complegravetes Traduction et notes de Leacuteon Robin avec la colaboration de MndashJ Moreau Paris Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard 1999 2vs

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

186

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees de sujeito transcendental e de coisa em si no primeiro capiacutetulo de Humano demasiado humano I

Marina Gomes de Oliveira1

A criacutetica nietzscheana ao sujeito transcendentalNietzsche abre o primeiro capiacutetulo de Humano demasiado humano com dois

aforismos programaacuteticos nos quais opotildee duas modalidades de filosofia a metafiacutesica e a histoacuterica Essa uacuteltima eacute descrita no primeiro aforismo como natildeo podendo mais ser concebida como ldquodistinta da ciecircncia natural o mais novo dos meacutetodos filosoacuteficosrdquo Jaacute a filosofia metafiacutesica possui como um de seus traccedilos fundamentais a ldquofalta de sentido histoacutericordquo o ldquodefeito hereditaacuterio dos filoacutesofosrdquo Esse diagnoacutestico eacute realizado no segundo aforismo que transcrevemos abaixo de forma parcial

Defeito hereditaacuterio dos filoacutesofos ndash Todos os filoacutesofos tecircm em comum o defeito de partir do homem atual e acreditar que analisando-o alcanccedilam seu objetivo Involuntariamente imaginam ldquoo homemrdquo como uma aeterna veritatis [verdade eterna] como uma constante em todo o redemoinho uma medida segura das coisas Mas tudo o que o filoacutesofo declara sobre o homem no fundo natildeo passa de testemunho sobre o homem de um espaccedilo de tempo bem limitado Falta de sentido histoacuterico eacute o defeito hereditaacuterio de todos os filoacutesofos (hellip) Natildeo querem aprender que o homem veio a ser e que mesmo a faculdade de cogniccedilatildeo veio a ser enquanto alguns deles querem inclusive que o mundo inteiro seja tecido e derivado desta faculdade de cogniccedilatildeo ndash Mas tudo o que eacute essencial na evoluccedilatildeo humana se realizou em tempos primitivos antes desses quatro mil anos que conhecemos aproximadamente nestes o homem jaacute natildeo deve ter se alterado muito O filoacutesofo poreacutem vecirc ldquoinstintosrdquo no homem atual e supotildee que estejam entre os fatos inalteraacuteveis do homem e que possam entatildeo fornecer uma chave para a compreensatildeo do mundo em geral () Mas tudo veio a ser natildeo existem fatos eternos assim como natildeo existem verdades absolutas ndash Portanto o filosofar histoacuterico eacute doravante necessaacuterio e com ele a virtude da modeacutestia (NIETZSCHE 2005 p16)

Embora Nietzsche natildeo faccedila aqui nenhuma referecircncia nominal fica claro qual eacute o alvo especiacutefico de sua criacutetica Kant com sua pretensatildeo de que o ldquomundo inteiro seja tecido e derivadordquo da humana ldquofaculdade de cogniccedilatildeordquo O argumento nietzschiano eacute o de que esta tese opera implicitamente com uma concepccedilatildeo do homem como um ser eterno as caracteriacutesticas que possui hoje e que o definem como sujeito cognoscente as possuiria

1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Marina Gomes de Oliveira

187

deste o momento do seu aparecimento na Terra Jaacute a teoria evolucionista a cujas linhas gerais Nietzsche adere afirma que estas caracteriacutesticas foram lentamente adquiridas ao longo do processo de evoluccedilatildeo sendo parcialmente compartilhadas pelos chamados animais superiores Essa concepccedilatildeo do homem difere da adotada pela tradiccedilatildeo filosoacutefica que segundo Nietzsche sempre o tomou como um ser dotado de uma natureza inalteraacutevel que o distingue fundamentalmente do restante dos animais Partindo dessa premissa os filoacutesofos da tradiccedilatildeo teriam buscado definir e fixar os traccedilos fundamentais dessa natureza na crenccedila de que isto lhes forneceria a chave para a compreensatildeo da essecircncia do mundo em geral

Ao lanccedilarmos um olhar retrospectivo sobre a histoacuteria da filosofia percebemos que o primeiro a realizar explicitamente este movimento foi Parmecircnides ao estabelecer o princiacutepio de identidade como a lei fundamental do pensamento estendeu automaticamente esta suposta necessidade loacutegica agrave esfera ontoloacutegica reduzindo o mundo acessiacutevel atraveacutes dos sentidos a mera aparecircncia ilusoacuteria A partir de entatildeo o grande desafio da filosofia grega foi o de conciliar a evidecircncia dos sentidos com as exigecircncias da razatildeo A esse respeito as tentativas de Platatildeo e Aristoacuteteles se tornaram paradigmaacuteticas tendo influenciado de forma direta ou indireta os empreendimentos de toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica posterior Como se sabe isso se deveu natildeo soacute aos seus indiscutiacuteveis meacuteritos filosoacuteficos mas tambeacutem a questotildees de ordem histoacuterica poliacutetica e religiosa

Na Modernidade Kant influenciado pelo empirismo de Hume se posiciona de forma ceacutetica em relaccedilatildeo agraves pretensotildees epistecircmicas dessa tradiccedilatildeo representada agrave eacutepoca na Alemanha pelo influente leibnizianismo da escola de Christian Wolff Em sua obra capital a Criacutetica da Razatildeo Pura cuja primeira ediccedilatildeo data de 1781 expotildee a conhecida doutrina de que as formas puras da sensibilidade e as categorias ou conceitos puros do entendimento fornecem as condiccedilotildees transcendentais de possibilidade do assim denominado mundo fenomecircnico na medida em que mantecircm uma relaccedilatildeo constitutiva com os objetos que o integram O mundo do fenocircmeno eacute assim segundo Kant o produto da conjunccedilatildeo das formas e categorias a priori com um ldquoXrdquo desconhecido (a coisa em si) que ao afetar a faculdade sensorial fornece a mateacuteria bruta das sensaccedilotildees o papel dos elementos transcendentais da sensibilidade e do entendimento eacute basicamente o de unificar e organizar a multiplicidade deste caos sensorial dando origem ao mundo tal como nos aparece atraveacutes da experiecircncia

O problema apontado por Nietzsche no aforismo supracitado reside poreacutem no seguinte se a subjetividade transcendental eacute condiccedilatildeo de possibilidade da existecircncia da proacutepria natureza (entendida como o conjunto de todos os fenocircmenos e de suas relaccedilotildees espaacutecio-temporais) entatildeo ela mesma natildeo pode estar submetida a essas determinaccedilotildees Em outras palavras aquilo que eacute condiccedilatildeo de possibilidade da proacutepria historicidade dos fenocircmenos na medida em que lhes impotildee a priori a forma necessaacuteria da sucessatildeo natildeo pode ele mesmo ser histoacuterico Isso traz agrave tona outros problemas tal como aquele que diz respeito agrave origem da espeacutecie humana A aporia que se instaura aqui pode ser formulada da seguinte maneira como o ser humano pode ter vindo a ser a partir de espeacutecies mais primitivas tal como afirma a teoria evolucionista se a proacutepria existecircncia do mundo natural eacute funccedilatildeo da vigecircncia das leis a priori da subjetividade transcendental Torna-se clara a partir de questionamentos deste tipo a existecircncia de uma incompatibilidade incontornaacutevel entre as premissas gerais do idealismo transcendental e os postulados baacutesicos da teoria da evoluccedilatildeo das espeacutecies eacute impossiacutevel afirmar simultaneamente e sem contradiccedilatildeo que as estruturas e elementos transcendentais satildeo por um lado condiccedilatildeo de possibilidade

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

188

da realidade empiacuterica e por outro que a existecircncia do ser humano como uma espeacutecie dotada de capacidades cognitivas especiacuteficas eacute o produto tardio e acidental de uma longa e complexa seacuterie de processos naturais que antecedem em muito o seu aparecimento na Terra

Eacute justamente nesta incompatibilidade que residem para Nietzsche as implicaccedilotildees metafiacutesicas da concepccedilatildeo kantiana do homem na medida em que este eacute identificado em sua qualidade de sujeito cognoscente com a subjetividade transcendental A seu ver o filoacutesofo de Koumlnigsberg ainda compartilharia com a tradiccedilatildeo metafiacutesica - a despeito dos esforccedilos que empreendeu para dela se afastar atraveacutes do estabelecimento dos limites intriacutensecos ao conhecimento humano que decorrem por sua vez do caraacuteter finito do nosso intelecto - a concepccedilatildeo do homem como um ser destacado da natureza que natildeo soacute escaparia agraves determinaccedilotildees processuais do mundo do fenocircmeno como estaria em sua proacutepria origem No aforismo 16 intitulado Fenocircmeno e coisa em si Nietzsche destaca um segundo traccedilo fundamental da ldquofilosofia metafiacutesicardquo jaacute entrevisto na exposiccedilatildeo que realizamos ateacute aqui Trata-se da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo ontoloacutegica da realidade em duas esferas distintas e separadas poreacutem natildeo estanques

Os filoacutesofos costumam se colocar diante da vida e da experiecircncia ndash daquilo que chamam de mundo do fenocircmeno ndash como diante de uma pintura que foi desenrolada de uma vez por todas e que mostra invariavelmente o mesmo evento esse evento acreditam eles deve ser interpretado de forma correta para que se tire uma conclusatildeo sobre o ser que produziu a pintura isto eacute sobre a coisa em si que sempre costuma ser vista como a razatildeo suficiente do mundo do fenocircmeno (NIETZSCHE 2005 p 25)

Nietzsche parte aqui da interpretaccedilatildeo da filosofia transcendental conhecida como ldquointerpretaccedilatildeo dos dois mundosrdquo2 de acordo com a qual a distinccedilatildeo kantiana entre fenocircmenos e coisas em si daacute origem a uma clivagem ontoloacutegica fundamental por meio da qual a realidade eacute dividida em dois domiacutenios distintos de objetos a saber os objetos empiacutericos e os objetos transcendentais sendo que estes uacuteltimos se identificariam ainda com o sentido negativo do conceito de nuacutemeno3 Este por sua vez ldquocorresponderia ao fenocircmeno como seu substrato como algo inteligiacutevel que soacute poderia ser conhecido como objeto por uma intuiccedilatildeo natildeo-sensiacutevelrdquo (BONACCINI 2003 P 323) Ora o que distingue essencialmente a filosofia criacutetica de Kant da tradiccedilatildeo metafiacutesica anterior eacute justamente a negaccedilatildeo categoacuterica por parte do filoacutesofo da possibilidade desse conhecimento negaccedilatildeo esta que deriva da premissa de que o homem eacute um ser dotado exclusivamente de intuiccedilotildees sensiacuteveis e por isso natildeo pode pretender conhecer as coisas tais como satildeo em si mesmas Isso natildeo elimina poreacutem a necessidade da postulaccedilatildeo da existecircncia de um domiacutenio incondicionado de objetos que atuam como a causa das afecccedilotildees as quais por sua vez datildeo origem aos fenocircmenos ao pocircr em accedilatildeo a faculdade representativa

Acontece no entanto que a tese fulcral do idealismo transcendental reside no princiacutepio de que soacute conhecemos representaccedilotildees ou seja de que nosso acesso agrave realidade eacute sempre e necessariamente mediado pelos elementos transcendentais que promovem a unidade sinteacutetica do muacuteltiplo segundo regras A primeira etapa da unificaccedilatildeo ocorre jaacute

2 A respeito da interpretaccedilatildeo alternativa conhecida como ldquoteoria dos dois aspectosrdquo advogada dentre outros por Alli-son conferir Bonaccini 2003 pp 226 ndash 257

3 A respeito da identificaccedilatildeo dos conceitos de coisa em si objeto transcendental e nuacutemeno em sentido negativo ver Bonaccini 2003 p 325

Marina Gomes de Oliveira

189

na esfera da sensibilidade na qual o material bruto das sensaccedilotildees ie das modificaccedilotildees sofridas pelos sentidos eacute organizado nas formas do espaccedilo e do tempo que posteriormente seratildeo referidas pelos conceitos do entendimento a objetos dando origem ao mundo tal como nos aparece atraveacutes da experiecircncia Os contemporacircneos de Kant natildeo demoraram a perceber a aporia implicada por este quadro se soacute conhecemos representaccedilotildees isto eacute se nossos conceitos tecircm seu domiacutenio de validade restrito agraves sensaccedilotildees que direito possuiacutemos a postular a existecircncia das coisas em si e ainda mais de lhes atribuir uma accedilatildeo causal sobre nossa sensibilidade Por outro lado se natildeo existem objetos externos agraves representaccedilotildees para fornecer-lhes o seu material como podemos falar em conceitos como os de representaccedilatildeo ou de fenocircmeno que perdem todo o seu sentido sem a referecircncia a algo que cumpra o papel de um objeto externo e existente por si mesmo ao qual se refiram como a seu substrato

O problema da coisa em si em Hegel Schopenhauer e SpirSegundo J A Bonaccini esta objeccedilatildeo jaacute aparece mesmo que forma impliacutecita na

famosa recensatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura atribuiacuteda a Feder e a Garve cuja publicaccedilatildeo data de 19 de janeiro de 1782 mas o iniciador propriamente dito daquela que ficou conhecida como a ldquopolecircmica da coisa em sirdquo teria sido Friedrich Heinrich Jacobi que apresentou o primeira criacutetica clara e precisa a este conceito no conhecido Apecircndice a seu livro David Hume Uumlber der Glauben oder Idealismus und Realismus Ein Gespraumlch intitulado Sobre o Idealismo Transcendental Estaria neste texto de Jacobi a origem do ldquoproblema da coisa em sirdquo tambeacutem conhecido como o ldquoproblema da afecccedilatildeordquo Ainda segundo Bonaccini trata-se na verdade natildeo de um uacutenico problema mas de uma ldquoproblemaacutetica que se desdobra numa seacuterie de objeccedilotildees () intimamente ligadas () que depois seratildeo retomadas na maior parte dos casos separadamenterdquo por autores como ldquoSchulze Maimon Fichte Schelling e Hegel () e pensadores posteriores como Schopenhauer e Nietzscherdquo (BONACCINI 2003 p 42) 4

No deacutecimo aforismo de Humano demasiado humano que transcrevemos abaixo na iacutentegra Nietzsche se refere a este problema de forma expliacutecita no contexto de uma alusatildeo criacutetica a Schopenhauer

Inocuidade da metafiacutesica no futuro ndash Logo que a religiatildeo a moral e a arte tiverem sua gecircnese descrita de maneira tal que possam ser inteiramente explicadas sem que se recorra agrave hipoacutetese de intervenccedilotildees metafiacutesicas no iniacutecio e no curso do trajeto acabaraacute o mais forte interesse no problema puramente teoacuterico da ldquocoisa em sirdquo e do ldquofenocircmenordquo Pois seja como for natildeo tocamos a ldquoessecircncia do mundo em sirdquo estamos no domiacutenio da representaccedilatildeo nenhuma ldquointuiccedilatildeordquo pode nos levar adiante Com tranquilidade deixaremos para a fisiologia e a histoacuteria dos organismos e dos conceitos a questatildeo de como pode a nossa imagem do mundo ser tatildeo distinta da essecircncia inferida do mundo (NIETZSCHE 2005 p 20)

Na continuaccedilatildeo do aforismo de nuacutemero 16 jaacute citado parcialmente acima Schopenhauer eacute novamente aludido indiretamente e de forma criacutetica na sequecircncia Hegel eacute tambeacutem alvo de uma criacutetica velada Antes dessas duas alusotildees Nietzsche faz ainda uma referecircncia impliacutecita a Afrikan Spir54 As objeccedilotildees de Jacobi podem ser resumidas segundo esse autor da seguinte forma 1- A tese central do idealismo

transcendental de que soacute conhecemos fenocircmenos ie representaccedilotildees conduziria ao solipcismo 2- Esse solipcismo eacute incompatiacutevel com a postulaccedilatildeo das coisas em si como os fundamentos externos dos fenocircmenos 3- A tese da incog-noscibilidade das coisas em si mesmas conduz ao ceticismo

5 Afrikan Spir (1837 ndash1900) eacute um filoacutesofo de origem russa que publicou suas obras em alematildeo com o qual Nietzsche manteve um diaacutelogo permanente ao longo de sua obra

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

190

Por outro lado loacutegicos mais rigorosos apoacutes terem claramente estabelecido o conceito do metafiacutesico como o do incondicionado e portanto tambeacutem incondicionante contestaram qualquer relaccedilatildeo entre o incondicionado (o mundo metafiacutesico) e o mundo por noacutes conhecido de modo que no fenocircmeno precisamente a coisa em si natildeo aparece e toda conclusatildeo sobre esta a partir daquele deve ser rejeitada Mas de ambos os lados se omite a possibilidade de que essa pintura ndash aquilo que para noacutes homens se chama vida e experiecircncia ndash gradualmente veio a ser estaacute em pleno vir a ser e por isso natildeo deve ser considerada como uma grandeza fixa a partir da qual se possa tirar ou rejeitar uma conclusatildeo acerca do criador (a razatildeo suficiente) () o intelecto humano fez aparecer o fenocircmeno e introduziu nas coisas suas errocircneas concepccedilotildees fundamentais Tarde bem tarde ndash ele cai em si agora o mundo da experiecircncia e a coisa em si lhe parecem tatildeo extraordinariamente distintos e separados que ele rejeita a conclusatildeo sobre esta a partir daquele ndash ou de maneira terrivelmente misteriosa exorta agrave renuacutencia do nosso intelecto de nossa vontade pessoal de modo a alcanccedilar o essencial tornando-se essencial Outros ainda recolheram todos os traccedilos caracteriacutesticos do nosso mundo do fenocircmeno - isto eacute da representaccedilatildeo do mundo tecida com erros intelectuais e por noacutes herdada ndash e em vez de apontar o intelecto como culpado responsabilizaram a essecircncia das coisas como causa desse inquietante caraacuteter efetivo do mundo e pregaram a libertaccedilatildeo do ser (NIETZSCHE 2005 p 25)

De acordo com Bonaccini Hegel reconduz a problemaacutetica legada por Jacobi ldquoagrave pressuposiccedilatildeo fundamental de Kant qual seja o dualismo ontoloacutegicordquo (BONACCINI 2003 p 143) que opotildee de um lado as esferas do sujeito da consciecircncia e do pensamento e do outro os domiacutenios do objeto da realidade e do ser Ultrapassa o escopo do presente trabalho a exposiccedilatildeo da forma como Hegel procurou descrever e fundamentar em seu complexo sistema a identidade dialeacutetica entre ser e pensar interessa-nos aqui apenas apontar para o modo como o filoacutesofo alematildeo buscou descontruir o conceito de coisa em si ao questionar o pressuposto kantiano da existecircncia de um abismo originaacuterio e intransponiacutevel entre as esferas do sujeito e do objeto Este esforccedilo pode ser percebido de acordo com Bonaccini jaacute em suas primeiras obras anteriores agraves grandes exposiccedilotildees da Fenomenologia do Espiacuterito e da Ciecircncia da Loacutegica

Como eacute sabido um ano depois da publicaccedilatildeo do Differenzschrift em 1802 Hegel publica Feacute e saber O intuito de Hegel continua sendo a criacutetica da filosofia da eacutepoca enquanto esta pressupotildee uma dualidade entre o sujeito e o objeto que impossibilita alcanccedilar a identidade que ela busca O esforccedilo de Hegel constitui ainda uma tentativa de alccedilar-se por cima das oposiccedilotildees para mostrar a identidade originaacuteria que reuacutene o ser e o pensar A criacutetica do conceito kantiano de coisa em si prende-se desse modo agrave criacutetica da filosofia da reflexatildeo - segundo a denominaccedilatildeo cunhada por Hegel em Feacute e saber ndash a qual oporia o pensamento agrave realidade empiacuterica afirmando a finitude das categorias do entendimento humano e a impossibilidade de conhecer o absoluto a natildeo ser pela feacute (BONACCINI 2003 p 133)

Hegel busca apontar dessa forma para o fato de que a defesa kantiana da tese do caraacuteter puramente formal das categorias do entendimento e da sua consequente aplicabilidade exclusiva ao conteuacutedo fornecido pela sensibilidade depende da pressuposiccedilatildeo de um dualismo de base entre o pensamento e a realidade Uma vez superado esse ponto

Marina Gomes de Oliveira

191

de vista o proacuteprio conceito de fenocircmeno ganharia novos contornos diferentemente do que afirmava Kant o caraacuteter relativo e condicionado do conhecimento empiacuterico natildeo teria origem na finitude constitutiva do entendimento a qual faria com que os objetos da experiecircncia nos apareccedilam sempre como fenocircmenos mas sim no fato de esses objetos serem em si mesmos fenocircmenos ie ldquoa manifestaccedilatildeo finita de um fundamento inteligiacutevel que eacute o proacuteprio absolutordquo (BONACCINI 2003 p 139)

Eacute importante apontar para o fato de que a identidade entre o ser e o pensar postulada por Hegel natildeo se apresenta como uma unidade imediata isto eacute como algo presente de forma efetiva desde o iniacutecio mas sim como uma identidade que soacute se concretiza e realiza ao teacutermino de um processo que tem lugar no tempo trata-se portanto de uma identidade dialeacutetica cujas etapas de constituiccedilatildeo o autor busca descrever nas paacuteginas da Ciecircncia da Loacutegica Nesta obra de 1816 Hegel traccedila um itineraacuterio loacutegico-ontoloacutegico que vai do ser ao conceito passando pela essecircncia Sem entrar nos detalhes da complexa exposiccedilatildeo hegeliana interessa-nos apenas apontar para o fato de que um dos pressupostos fundamentais da loacutegica dialeacutetica eacute o de que a realidade possui um caraacuteter fundamentalmente contraditoacuterio na medida em que a passagem da indeterminaccedilatildeo do ser em geral agrave determinaccedilatildeo plena do conceito na ideia absoluta se efetiva atraveacutes de sucessivas negaccedilotildees dos estaacutegios anteriores as quais simultaneamente os conservam e aprofundam

A esse respeito pode-se identificar em Schopenhauer a presenccedila de uma atitude baacutesica compartilhada com Hegel no que tange agraves suas respectivas relaccedilotildees com a heranccedila da filosofia criacutetica Trata-se de uma atitude marcada por ambiguidades e tensotildees e que pode ser expressa resumidamente atraveacutes da ideia de que Kant teria aberto ou indicado o caminho correto para a filosofia sem ter tido no entanto a coragem de segui-lo ateacute o final esta tarefa caberia agrave posteridade que teria como missatildeo a correccedilatildeo e desenvolvimento do precioso legado de que eacute herdeira O problema da coisa em si surge nesse contexto como o principal desafio que qualquer um que aspire agrave consecuccedilatildeo dessa tarefa deve enfrentar na medida em que se trata de uma questatildeo que desde sua formulaccedilatildeo original por Jacobi foi retomada de diferentes maneiras representando uma espeacutecie de ponto cego no sistema kantiano que o torna amplamente vulneraacutevel a ataques externos

Schopenhauer tomou contato durante seus anos de formaccedilatildeo atraveacutes das aulas de G E Schulze que frequentou na universidade de Goumlttingen com o aspecto mais emblemaacutetico da problemaacutetica levantada por Jacobi qual seja a criacutetica jaacute explicitada acima ao caraacuteter autorrefutatoacuterio do conceito de coisa-em-si como causa externa das sensaccedilotildees Isso o levou a formular em sua famosa obra O Mundo como Vontade e Representaccedilatildeo (1819) a tese que devemos buscar o acesso agrave realidade tal como eacute em si mesma natildeo atraveacutes de uma relaccedilatildeo que invoque o conceito de causalidade (cuja proacutepria definiccedilatildeo limita seu escopo de aplicaccedilatildeo ao domiacutenio fenomecircnico) mas sim atraveacutes da consciecircncia imediata do nosso proacuteprio corpo que obtemos por ocasiatildeo dos nossos atos voluntaacuterios Isso se deve ao fato de que o corpo eacute para Schopenhauer o uacutenico objeto que se manifesta para noacutes em um duplo aspecto simultacircneo qual seja por um lado o de um objeto empiacuterico dentre outros cujas condiccedilotildees de possibilidade remetem ao quadro da reelaboraccedilatildeo da deduccedilatildeo transcendental das categorias efetuada em sua tese de doutoramento intitulada A Quaacutedrupla Raiz do Princiacutepio de Razatildeo Suficiente (1813) e por outro o de uma percepccedilatildeo interna de um ato de vontade a qual forneceria um acesso imediato ao ldquolado de dentrordquo do proacuteprio indiviacuteduo Ao estender analogicamente essa duplicidade ontoloacutegica ao restante dos seres que integram o mundo o filoacutesofo concebe um sistema que partindo da aceitaccedilatildeo da dualidade kantiana

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

192

entre sujeito e objeto busca ao mesmo tempo superaacute-la atraveacutes de uma abordagem imanente cujo nuacutecleo consiste na tese metafiacutesica de que a Vontade (entendida natildeo em um sentido estritamente psicoloacutegico mas como um princiacutepio coacutesmico destituiacutedo de finalidade e sabedoria uma espeacutecie de impulso cego) e a representaccedilatildeo devem ser compreendidas como os dois lados de uma mesma e uacutenica moeda

Fiel neste ponto agrave inspiraccedilatildeo da filosofia transcendental Schopenhauer afirma que a origem do mundo como representaccedilatildeo localiza-se no intelecto humano Isso se deve ao fato de que a estrutura deste uacuteltimo corresponderia como mencionado acima ao princiacutepio da razatildeo suficiente o qual ao determinar que toda experiecircncia seja submetida agraves condiccedilotildees do tempo do espaccedilo e da causalidade produz a fragmentaccedilatildeo da unidade originaacuteria da Vontade em uma multiplicidade de indiviacuteduos que competem permanentemente pelos recursos necessaacuterios agrave proacutepria sobrevivecircncia criando assim um mundo de luta e violecircncia um cenaacuterio aterrador de autofagia da Vontade anaacutelogo a um pesadelo no interior do qual a consciecircncia se manteacutem aprisionada Isso faz com que caiba a cada um uma vez que se decirc conta dessa situaccedilatildeo a tarefa de purificar sua vontade atraveacutes de etapas sucessivas que correspondem agrave percepccedilatildeo esteacutetica agrave consciecircncia moral e finalmente agrave autossuperaccedilatildeo plena na atitude asceacutetica Essa uacuteltima conduziria a uma modalidade de consciecircncia livre de toda dor e de todo conflito um estado de contemplaccedilatildeo miacutestica no qual as fronteiras entre sujeito e objeto encontram-se agrave beira da dissoluccedilatildeo Eacute a esta uacuteltima etapa que Nietzsche se refere no aforismo 16 supracitado ldquo() ou de maneira terrivelmente misteriosa exorta agrave renuacutencia do nosso intelecto de nossa vontade pessoal de modo a alcanccedilar o essencial tornando-se essencialrdquo

Depreende-se facilmente deste mesmo aforismo a posiccedilatildeo de Nietzsche a respeito das soluccedilotildees encontradas por Hegel e Schopenhauer para o problema da coisa em si ele as rejeita igualmente encontrando aspectos problemaacuteticos em ambas Qual eacute poreacutem a sua atitude em relaccedilatildeo agrave soluccedilatildeo de Spir Para responder a esta pergunta empreenderemos primeiro uma breve reconstituiccedilatildeo das teses deste pensador que representa uma das principais fontes de diaacutelogo criacutetico para Nietzsche

Assim como Hegel e Schopenhauer Spir almeja fornecer com sua filosofia uma correccedilatildeo do kantismo ou seja uma saiacuteda para a aporia suscitada pelo problema da coisa em si tal como originalmente formulado por Jacobi Em sua tentativa de realizar esta tarefa chega poreacutem a conclusotildees opostas agraves alcanccediladas pelos filoacutesofos supracitados em que pesem as especificidades inerentes a seus respectivos sistemas tanto Hegel como Schopenhauer partem de uma mesma premissa qual seja a de que a relaccedilatildeo existente entre aquilo que Kant denominava as esferas do nuacutemeno e do fenocircmeno eacute de imanecircncia e natildeo de transcendecircncia Isso significa dizer que para esses pensadores o erro de Kant foi o de ter estabelecido uma distinccedilatildeo excessivamente riacutegida entre os domiacutenios da realidade empiacuterica e da realidade tal como eacute em si mesma Ora para Spir o problema com o sistema de Kant eacute exatamente o oposto em sua tentativa de estabelecer as fronteiras entre os domiacutenios do nuacutemeno e do fenocircmeno e assim circunscrever a esfera de validade das proposiccedilotildees sinteacuteticas a priori formuladas pelas ciecircncias em geral e pela fiacutesica newtoniana em particular Kant teria por assim dizer borrado a linha que divide os referidos domiacutenios no proacuteprio ato de traccedilaacute-la

Segundo Rogeacuterio Lopes existem para Spir cinco pontos centrais na filosofia de Kant que devem ser revistos para que seu sistema seja adequadamente reformulado Para os fins

Marina Gomes de Oliveira

193

da presente exposiccedilatildeo destacarei trecircs destes pontos quais sejam 1- rdquoa tese da idealidade transcendental do tempo deve ser abandonadardquo 2- rdquoos conceitos a priori do entendimento deduzidos por Kant carecem de um princiacutepio de unificaccedilatildeo Eacute preciso derivaacute-los de uma uacutenica lei a priori esta lei loacutegica fundamental eacute o princiacutepio de Identidaderdquo 3- rdquosegundo Spir Kant teria se contentado em provar a existecircncia de conceitos a priori e sua validade subjetiva Spir propotildee como tarefa da filosofia transcendental a) demonstrar a existecircncia do a priori b) provar sua validade objetivardquo (LOPES 2008 p 281)

A respeito do primeiro ponto sem entrar nos detalhes da argumentaccedilatildeo de Spir interessa-nos aqui apenas apontar para o modo como em uma passagem de Denken und Wirklichkeit citada por Nietzsche em sua obra de juventude A filosofia na era traacutegica dos gregos o filoacutesofo russo critica a tese kantiana da idealidade transcendental do tempo6 defendendo que este possui uma realidade objetiva Para tal faz uso de argumentos que recordam os utilizados por Nietzsche ao criticar a ldquofalta de sentido histoacutericordquo dos filoacutesofos no segundo aforismo de Humano demasiado humano

() a suposiccedilatildeo de Kant implica absurdidades tatildeo evidentes que algueacutem toma por milagre o fato de ele tecirc-las ignorado De acordo com tal suposiccedilatildeo Ceacutesar e Soacutecrates natildeo estatildeo efetivamente mortos mas vivem tatildeo bem como haacute dois mil anos e parecem estar simplesmente mortos em virtude de um arranjo do meu lsquosentido internorsquo Aqui cumpre indagar acima de tudo como pode o iniacutecio e o fim da vida consciente incluindo todos os sentidos internos e externos existirem simplesmente agrave maneira do sentido interno O fato eacute que natildeo se pode denegar em absoluto a realidade da mudanccedila (NIETZSCHE 2008 p 104)

No aforismo 18 de Humano demasiado humano intitulado Questotildees fundamentais da metafiacutesica Nietzsche se refere diretamente ao segundo ponto citando outro trecho da obra seminal de Spir

Quando algum dia se escrever a histoacuteria da gecircnese do pensamento nela tambeacutem se encontraraacute sob uma nova luz a seguinte frase de um loacutegico eminente ldquoA originaacuteria lei universal do sujeito cognoscente consiste na necessidade de reconhecer cada objeto em si em sua proacutepria essecircncia como um objeto idecircntico a si mesmo portanto existente por si mesmo e no fundo sempre igual e imutaacutevel em suma como uma substacircnciardquo (NIETZSCHE 2005 p 27)

Spir busca reduzir assim o conjunto das formas e conceitos a priori de Kant a um uacutenico princiacutepio qual seja o princiacutepio de Identidade Chegamos assim ao terceiro ponto destacado por Lopes qual seja o de que para Spir este princiacutepio possui uma validade que ultrapassa a esfera do a priori tal como definido por Kant Sua necessidade e universalidade natildeo dizem respeito somente agrave esfera da subjetividade transcendental e do domiacutenio dos fenocircmenos por ela condicionados mas possuem uma validade propriamente objetiva Quando confrontamos esta afirmaccedilatildeo com a tese da realidade igualmente objetiva da sucessatildeo temporal chegamos facilmente agrave conclusatildeo que Nietzsche enuncia no aforismo 16 de Humano demasiado humano

6 Trata-se da famosa passagem contida em uma nota de rodapeacute no sect 7 da Primeira Parte da Doutrina Transcendental dos Elementos da Criacutetica da Razatildeo Pura na qual Kant defende a tese de que a experiecircncia que possuiacutemos da sucessatildeo dos pensamentos em nossa mente corresponde somente agrave representaccedilatildeo desses mesmos pensamentos pelo sentido interno e natildeo a uma determinaccedilatildeo da realidade tal como eacute em si mesma

A criacutetica nietzscheana agraves concepccedilotildees

194

Por outro lado loacutegicos mais rigorosos apoacutes terem claramente estabelecido o conceito do metafiacutesico como o do incondicionado e portanto tambeacutem incondicionante contestaram qualquer relaccedilatildeo entre o incondicionado (o mundo metafiacutesico) e o mundo por noacutes conhecido de modo que no fenocircmeno precisamente a coisa em si natildeo aparece e toda conclusatildeo sobre esta a partir daquele deve ser rejeitada (NIETZSCHE 2005 p 25)

Para Spir existe portanto um abismo intransponiacutevel entre a ldquotemporalidade e particularidade da sensaccedilatildeordquo e a ldquoatemporalidade e simplicidade da apercepccedilatildeordquo (GREEN 2002 p 47) isto eacute entre as esferas da sucessatildeo temporal que rege o mundo empiacuterico por um lado e do princiacutepio de Identidade compreendido como lei originaacuteria do sujeito cognoscente e da proacutepria realidade tal como eacute em si mesma por outro Kant teria tentado ao ver de Spir sem sucesso superar essa contradiccedilatildeo atraveacutes do esquematismo transcendental que cumpriria a funccedilatildeo de conectar a passividade da sensibilidade com a espontaneidade do entendimento supostamente reduzindo a realidade da sucessatildeo temporal ao estatuto de uma representaccedilatildeo circunscrita na unidade de uma consciecircncia atemporal conferindo assim algo da unidade e estabilidade do ldquomundo metafiacutesicordquo agrave multiplicidade caoacutetica da realidade empiacuterica

Marina Gomes de Oliveira

195

Referecircncias bibliograacuteficasBONACCINI Juan Adolfo O problema da coisa em si no idealismo alematildeo 1ordf ed Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2003GREEN Michael Nietzsche and the Transcendental Tradition Champaign IL University of Illinois Press 2002LOPES Rogeacuterio Antocircnio Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche 573 f Tese (Doutorado em Filosofia) Minas Gerais Universidade Federal de Minas Gerais 2008NIETZSCHE Friedrich Humano demasiado humano um livro para espiacuteritos livres1ordf ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005_____ A filosofia na era traacutegica dos gregos 1ordf ed Satildeo Paulo Hedra 2008

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

196

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface entre Nietzsche e Freud

Michaella Carla Laurindo1

A funccedilatildeo do meacutedico da cultura na obra de NietzscheEste trabalho propotildee uma interface investigativa entre Nietzsche e Freud O objetivo

eacute identificar especificamente a funccedilatildeo do filoacutesofo como ldquomeacutedico da culturardquo e a funccedilatildeo do psicanalista como ldquomeacutedico das neurosesrdquo examinando suas aproximaccedilotildees e diferenccedilas Na obra de Nietszche e de Freud encontramos o termo impulso [Trieb2] mas empregado com conotaccedilotildees distintas Em Nietzsche temos sua doutrina de Vontade de Potecircncia eacute um conceito mais amplo que a Trieb freudiana e diretamente ligada agrave funccedilatildeo do filoacutesofo como ldquomeacutedico da culturardquo

O termo Trieb eacute utilizado para compreender a relaccedilatildeo entre o orgacircnico e o inorgacircnico no que tange agrave concepccedilatildeo de vontade de potecircncia ldquoCada movimento cada histoacuteria do mundo eacute sintoma de ajustamentos e subversotildees de relaccedilotildees de potecircncia vigentes entre as mais vigorosas correntes pulsionaisrdquo3 Os impulsos nessa perspectiva nietzschiana natildeo satildeo corpo e nem alma A vontade de potecircncia pode se manifestar na esfera do inorgacircnico como forccedila no orgacircnico na forma de impulsos fisioloacutegicos e tambeacutem na esfera cultural Na concepccedilatildeo do autor o mundo estaacute em constante mutaccedilatildeo que se efetiva como Vontade de Potecircncia (Wille zur Macht) atraveacutes de uma variedade de impulsos concorrentes ldquoo termo Wille entendido enquanto disposiccedilatildeo tendecircncia impulso e Macht associado ao verbo machen fazer produzir formar efetuar criarrdquo (MARTON 2016 p424) Em Para aleacutem de bem e mal sect36 ([1886] 2005) ele diz

Supondo finalmente que se conseguisse explicar toda nossa vida instintiva como elaboraccedilatildeo e ramificaccedilatildeo de uma forma baacutesica de vontade - vontade de potecircncia como eacute minha tese - supondo que se pudesse reconduzir todas as funccedilotildees orgacircnicas a essa vontade de potecircncia e nela se encontrasse tambeacutem a soluccedilatildeo para o problema da geraccedilatildeo e nutriccedilatildeo ndash eacute um soacute problema - entatildeo se obteria o direito de definir toda forccedila atuante inequivocamente como vontade de potecircncia O mundo visto de dentro o mundo definido e designado conforme o seu ldquocaraacuteter inteligiacutevelrdquo ndash seria justamente ldquovontade de potecircnciardquo e nada mais

1 UNIOESTE2 O termo alematildeo Trieb seraacute nesse artigo traduzido como ldquopulsatildeordquo quando utilizado no contexto freudiano e ldquoimpulsordquo

quando utilizado no contexto nietzschiano3 KSA XII Nachgelassene Fragmente 188587 p 654

Michaella Carla Laurindo

197

Dessa forma constata-se que na concepccedilatildeo nietzschiana ldquotoda forccedila atuante eacute vontade de potecircnciardquo sendo que tanto o organismo quanto as produccedilotildees culturais satildeo conjuntos de forccedila lutando entre si Essa noccedilatildeo dissolveria os limites entre o cultural e o bioloacutegico compreendidos nessa visatildeo como processos de hierarquizaccedilatildeo de impulsos (FREZZATTI Jr 2006 p 31) Trieb portanto eacute o quantum de potecircncia que tende ao crescimento

Mas Nietzsche nos adverte que a domesticaccedilatildeo e o amansamento dos impulsos humanos na tentativa de produzir um ldquohomem bom e uacutetil agrave sociedaderdquo conduz agrave decadecircncia por negar o mundo como um fluxo contiacutenuo de mudanccedilas e por negar a efetivaccedilatildeo do quanta de potecircncia Isso paralisa o movimento a mudanccedila da cultura Considerando esse aspecto torna-se fundamental explicitar o que eacute a fisiopsicologia ndash a forma como meacutedico filosoacutefico poderaacute investigar os sintomas culturais

A fisiopsicologia para Nietzsche seria uma forma de abordagem profunda dos problemas Na visatildeo do autor a psicologia permaneceu superficial em seu entendimento sobre o homem presa em concepccedilotildees de tradiccedilatildeo cientiacutefico-filosoacutefica uma psicologia resumida em fazer ciecircncia a partir dos atos de consciecircncia e tambeacutem impregnada pelas noccedilotildees morais de bem e mal Seria um modelo que limita a compreensatildeo que o homem pode ter de si mesmo pois eacute ldquoheranccedilardquo do pensamento metafiacutesico com seus juiacutezos de realidade e de valor um modelo a ser superado Nietzsche em Humano Demasiado Humano critica a psicologia como estudo dos fenocircmenos intelectuais e morais

que se impocircs graccedilas ao trabalho de Christian Wolff (1679-1754) Testemunha e cuacutemplice do processo geral de naturalizaccedilatildeo que se iniciava Wolff dedicou-se a mostrar que a psicologia estava mais distante das questotildees sobre a origem do universo que dos problemas acerca da interaccedilatildeo do homem com o que o rodeava Se teve o meacuterito de ser um dos primeiros a consideraacute-la uma disciplina especiacutefica natildeo abandonou os princiacutepios transcendentes Partindo da noccedilatildeo leibniziana de alma entendida como uma substacircncia simples e incorpoacuterea capaz de representar o mundo Wolff sustentou que suas representaccedilotildees podiam ser perfeitas se fossem plenamente adequadas ou imperfeitas se natildeo o fossem Sendo claramente conhecidas a ideias de perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo por sua vez engendravam as de bem e mal (MARTON 2016 p 348)

Para compreender a funccedilatildeo da psicologia eacute relevante citar o aforismo 23 de Aleacutem do bem e do mal

Toda psicologia ateacute o momento tem estado presa a preconceitos e temores morais natildeo ousou descer agraves profundezas Compreendecirc-la como morfologia e doutrina de desenvolvimento da vontade de potecircncia tal como faccedilo ndash isto eacute algo que ningueacutem tocou sequer em pensamento na medida em que eacute permitido ver no que foi ateacute agora escrito um sintoma do que foi ateacute aqui silenciado A forccedila dos preconceitos morais penetrou profundamente no mundo mais espiritual aparentemente mais frio e mais livre de pressupostos ndash de maneira inevitavelmente nociva inibidora ofuscante deturpadora (NIETZSCHE [1886] 2005 p 27 traduccedilatildeo modificada)

Cabe entatildeo ao fisiopsicoacutelogo ldquoousar descer agraves profundezasrdquo Trata-se de analisar a relaccedilatildeo das produccedilotildees culturais para aleacutem das noccedilotildees de bem e mal ou seja como uma

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

198

expressatildeo dos impulsos na acircnsia pelo aumento de potecircncia Mas eacute relevante considerar o uso especiacutefico da palavra ldquofisiologiardquo nesse contexto - os processos fisioloacutegicos natildeo equivalem a processos bioloacutegicos Nietzsche utiliza o termo de forma ampliada pois considera tanto corpos vivos quanto inorgacircnicos e produccedilotildees humanas ndash Estado religiatildeo filosofia etc - como conjunto de forccedilas ou impulsos (FREZZATTI Jr 2006 p 25)

Mas o quecirc significa compreender a fisiopsicologia como morfologia e doutrina do desenvolvimento da vontade de potecircncia

Morfologia porque investiga a hierarquia de impulsos Nietzsche em um fragmento poacutestumo intitulado ldquoVontade de Poder Morfologiardquo nos remete agrave questatildeo das modalizaccedilotildees da vontade de poder ldquoVontade de potecircncia como lsquonaturezarsquo como vida como sociedade como vontade de verdade como religiatildeo como arte como moral como humanidaderdquo4 A vontade de potecircncia assume diversas formas mas isso natildeo significa que devemos tomar uma dessas modalizaccedilotildees como sua essecircncia

Ela [vontade de potecircncia] natildeo eacute um fundamento do mundo que produz vida ou que se exterioriza como arte ou se efetiva como humanidade Muito ao contraacuterio as lsquoconfiguraccedilotildeesrsquo (Gestaltungen) apresentadas por Nietzsche satildeo segundo sua essecircncia vontade de poder Tornar visiacutevel essa essecircncia nos lsquoacircmbitosrsquo de espeacutecie diversa eacute a tarefa de uma lsquomorfologiarsquo da vontade de poder (MUumlLLER-LAUTER 1997 p 86-87 traduccedilatildeo modificada)

Teoria do desenvolvimento porque tenta entender a dinacircmica da variaccedilatildeo da quantidade de potecircncia e da formaccedilatildeo contiacutenua de hierarquias (FREZZATTI Jr 2008 p305)

Os novos filoacutesofos na concepccedilatildeo do autor deveriam ser ldquoespiacuteritos fortes e originais o bastante para estimular valorizaccedilotildees opostas e transvalorar e transtornar lsquovalores eternosrsquordquo Seriam os ldquohomens do futurordquo teriam que se achar sempre em contradiccedilatildeo com o ldquoideal de seu hojerdquo5 Eacute atraveacutes da fisiopsicologia que o meacutedico da cultura pode diagnosticar as produccedilotildees em termos de sauacutede ou doenccedila Seu papel natildeo eacute o do ldquomeacutedico de almasrdquo e se opotildee ao ideal civilizatoacuterio que preconiza o ldquoprogressordquo ldquoQue noacutes natildeo nos enganemos O tempo corre avante - noacutes gostariacuteamos de crer que tudo que estivesse no tempo tambeacutem corresse avante que o desenvolvimento [Entwicklung] fosse uma evoluccedilatildeo [Vorwaumlrts-Entwicklung] Isso eacute a aparecircncia enganosa que seduz os mais prudentes mas o seacuteculo XIX natildeo eacute um progresso em relaccedilatildeo ao XVIrdquo6 Neste ponto eacute pertinente considerar e ampliar as conjecturas e criacuteticas de Nietzsche sobre a civilizaccedilatildeo compreendida como ldquomelhoramento e progresso do homemrdquo A domesticaccedilatildeo e amansamento dos instintos na tentativa de tornar o ldquohomem bomrdquo o tornam apenas obediente e servil o que significa a desagregaccedilatildeo dos instintos de um indiviacuteduo ou de uma cultura Nietzsche aponta que a filosofia metafiacutesica o socratismo o platonismo o cristianismo a moral e a arte satildeo expressotildees de um mundo supostamente civilizado mas que na verdade evidenciam essa desagregaccedilatildeo Nesse sentido podemos considerar esses ldquoavanccedilos sociaisrdquo como os sintomas de uma doenccedila Em A gaia ciecircncia ele aponta

4 Cf Fragmento poacutestumo 14 [72] primavera 1888 v 4 p 5315 Cf Humano Demasiado Humano sect 203 e 2126 Cf Fragmento poacutestumo 15 [8] primavera 1888 v 4 p 626

Michaella Carla Laurindo

199

Eu espero ainda que um meacutedico filosoacutefico no sentido excepcional do termo ndash algueacutem que persiga o problema da sauacutede geral de um povo de uma eacutepoca de uma raccedila da humanidade - tenha futuramente a coragem de levar ao cuacutemulo a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmaccedilatildeo em todo o filosofar ateacute o momento a questatildeo natildeo foi absolutamente a ldquoverdaderdquo mas algo diferente como sauacutede futuro potecircncia crescimento vida (NIETZSCHE [1886] 2001 p10)

Estimar o erudito e o impulso de conhecimento cientiacutefico satildeo sinais de doenccedila assim como a pretensatildeo de determinar uma verdade absoluta ndash satildeo aspectos sob os quais incide o crivo do meacutedico filosoacutefico pois satildeo sinais de doenccedila ldquoQualquer alianccedila com o eruditos deve ser rejeitada Esse eacute o maior inimigo porque dificultam o trabalho dos meacutedicos e negam a existecircncia da doenccedilardquo7 Para o filoacutesofo alematildeo natildeo haacute imparcialidade nessa dedicaccedilatildeo agrave ciecircncia ndash o anseio por essa verdade a ser ldquodesveladardquo representa a luta entre os proacuteprios impulsos mas numa mescla muito variada

O meacutedico da cultura tambeacutem deve estar atento aos sintomas representados pela compaixatildeo culpa conceitos de pecado e castigo ndash jaacute que a maacute-consciecircncia eacute signo de doenccedila Segundo Nietzsche a religiatildeo cristatilde com sua moral de ressentimento inventou a ldquogrande estratagemardquo para aliviar a dor do homem ao responsabilizaacute-lo e culpabilizaacute-lo por seu sofrimento Foi a forma de dar-lhe um sentido pois o que o homem natildeo suporta natildeo eacute a dor mas sim sua falta de sentido ldquoo homem preferiraacute ainda querer o nada a nada quererrdquo (NIETZSCHE [1887] 2009 p 140)

A funccedilatildeo do meacutedico das neuroses na obra de FreudNa obra freudiana haacute duas teorias sobre as pulsotildees a primeira apresenta o dualismo

pulsotildees sexuais e pulsotildees de autoconservaccedilatildeo a segunda apresenta o dualismo pulsotildees de vida e pulsotildees de morte

A pulsatildeo eacute definida na primeira teoria como um ldquoconceito-limite entre o psiacutequico e o somaacutetico como o representante psiacutequico dos estiacutemulos que provecircm do interior do corpo e alcanccedilam a psique como uma medida da exigecircncia de trabalho imposta ao psiacutequico em consequecircncia de sua relaccedilatildeo com o corpordquo (FREUD [1915] 2006 p 148)

Parece evidente mas eacute preciso considerar atentamente o que o autor quer transmitir ao dizer ldquoum estiacutemulo que proveacutem de interior do corpo e atua no psiquismordquo Trata-se de uma fronteira portanto eacute preciso evitar o equiacutevoco de cindir o termo Trieb e trata-lo como referente ao bioloacutegico ou soacute ao que eacute humano e de inclinaccedilatildeo psiacutequica ndash natildeo haacute uma dicotomia mente-corpo No mesmo artigo intitulado A pulsatildeo e seus destinos8 Freud sublinha que a pulsatildeo tem uma forccedila constante tem sua origem em fontes de estimulaccedilatildeo internas do organismo e nenhuma accedilatildeo de fuga prevalece contra ela Dessa forma ele marca a distinccedilatildeo entre um estiacutemulo interno que atua no psiquismo e um estiacutemulo externo que tem origem fisioloacutegica Mas quantas pulsotildees nessa fase dos escritos Freud supotildee existir Ele propotildee a distinccedilatildeo de dois grupos de pulsotildees primordiais o das pulsotildees do Eu ou de autoconservaccedilatildeo9 e o das pulsotildees sexuais ndash distinccedilatildeo que se assenta nas duas grandes tendecircncias reconhecidas pela biologia da eacutepoca Encontram-se sob o predomiacutenio

7 Cf Fragmento poacutestumo 29 [222] veratildeo-outuno 1872-1873 Nietzsche v 2 p 5498 Texto de abertura do conjunto de artigos concebidos entre 1914 e 1915 para apresentar a Metapsicologia A teoria

psicanaliacutetica de Freud eacute composta por uma parte empiacuterica - a sua psicologia dos fatos cliacutenicos - e outra especulativa - a metapsicologia Podemos entender como uma perspectiva

9 Pulsatildeo do Eu e Pulsatildeo de autoconservaccedilatildeo seratildeo usados como sinocircnimos no texto

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

200

de diferentes princiacutepios de funcionamento Pulsotildees do Eu satildeo regidas pelo princiacutepio de realidade e soacute podem satisfazer-se com um objeto real Pulsotildees sexuais encontram-se sob o predomiacutenio do princiacutepio do prazer podendo satisfazer-se com objetos da fantasia As pulsotildees sexuais logo que surgem estatildeo ligadas agraves pulsotildees do Eu das quais soacute gradativamente se separam10 O movimento pulsional se origina numa fonte implica uma forccedilapressatildeo tem uma meta e essa meta se apoia em um objeto ldquoO objeto da pulsatildeo eacute aquilo em que ou por meio de que a pulsatildeo pode alcanccedilar sua meta [a satisfaccedilatildeo] Ele eacute o elemento mais variaacutevel da pulsatildeo e natildeo estaacute originariamente ligado agrave ela sendo-lhe apenas acrescentado em razatildeo de sua aptidatildeo para propiciar satisfaccedilatildeo [] o objeto poderaacute ser substituiacutedo por interminaacuteveis outros objetosrdquo (FREUD [1915] 2006 p 149)

Em 1920 Freud formula a oposiccedilatildeo entre Pulsatildeo de Vida e Pulsatildeo de Morte A pulsatildeo de vida eacute concebida como a tendecircncia agrave formaccedilatildeo de unidades maiores agrave aproximaccedilatildeo e agrave unificaccedilatildeo entre as partes dos seres vivos A pulsatildeo de morte ao contraacuterio eacute vista como a tendecircncia agrave separaccedilatildeo agrave destruiccedilatildeo e em uacuteltima anaacutelise agrave volta ao estado inorgacircnico O conceito de pulsatildeo aqui eacute muito mais amplo Em vez de uma exigecircncia de trabalho feita pelo soma ao aparelho psiacutequico tem-se duas tendecircncias gerais que se aplicam a toda mateacuteria viva No trabalho intitulado O problema econocircmico do masoquismo ([1924] 2007) o autor declara que os dois tipos de pulsatildeo sempre satildeo amplamente misturados em variadas proporccedilotildees Eacute digno da atenccedilatildeo do leitor que a segunda teoria natildeo substitui inteiramente a primeira mas a engloba com algumas alteraccedilotildees

Mas para o objetivo do presente trabalho conveacutem retomar o esclarecimento sobre o objeto pulsional pelo qual o homem busca satisfazer-se e que pode variar e se deslocar para outros objetos No texto Projeto de uma psicologia cientiacutefica Freud realiza uma decomposiccedilatildeo da primeira experiecircncia de satisfaccedilatildeo e descreve o objeto inicial supondo se tratar de outro ser humano como sendo o primeiro objeto de satisfaccedilatildeo Um outro ser humano seraacute responsaacutevel pela accedilatildeo especiacutefica de nutrir o receacutem nascido pois ldquoo organismo humano eacute a princiacutepio incapaz de promover essa accedilatildeo especiacutefica Ela se efetua por ajuda alheia [Nebenmensch] quando a atenccedilatildeo de uma pessoa experiente eacute voltada para um estado infantil por descarga atraveacutes da via de alteraccedilatildeo internardquo (FREUD [1895] 1996 p370) Mas o que seria apenas a satisfaccedilatildeo de uma necessidade [fome] no humano se mescla com uma satisfaccedilatildeo sexual - portanto pulsional

Quando a pessoa que executa o trabalho da accedilatildeo especiacutefica no mundo externo para o desamparado este uacuteltimo fica em posiccedilatildeo por meio de dispositivos reflexos de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessaacuteria para remover o estiacutemulo endoacutegeno A totalidade do evento constitui entatildeo a experiecircncia de satisfaccedilatildeo que tem as consequecircncias mais radicais no desenvolvimento das funccedilotildees do indiviacuteduo (FREUD [1895]1996 p370 grifo da autora)

Uma vez jaacute experienciada a satisfaccedilatildeo reaparecendo o ldquoestado de urgecircncia ou desejordquo (p371) haacute uma ativaccedilatildeo concomitante entre a representaccedilatildeo do objeto [lembranccedila] e a imagem reconstruindo a presenccedila do objeto a partir de uma alucinaccedilatildeo ldquoNatildeo tenho duacutevida de que na primeira instacircncia essa ativaccedilatildeo do desejo produz algo idecircntico a uma percepccedilatildeo ndash a saber uma alucinaccedilatildeo Quando uma accedilatildeo reflexa eacute introduzida em seguida a esta a consequecircncia inevitaacutevel eacute o desapontamentordquo (FREUD [1895] 1996 p372) Esse eacute

10 Um exemplo seria a boca e o ldquosugar com deleiterdquo a princiacutepio a serviccedilo da alimentaccedilatildeo e posteriormente a serviccedilo da sexualidade

Michaella Carla Laurindo

201

o argumento sobre a busca de objetossituaccedilotildees que satisfaccedilam a pulsatildeo Esse eacute o recalque primordial e que faraacute o ser humano buscar a satisfaccedilatildeo miacutetica ao longo da vida

Acompanhando Freud Quinet (2012) destaca que a satisfaccedilatildeo pulsional seraacute sempre parcial pois o objeto que supostamente traria a satisfaccedilatildeo completa estaacute perdido Assim as pulsotildees satildeo investidas em diversos objetos que trazem satisfaccedilatildeo momentacircnea mas nunca ininterrupta O ser humano procura constantemente este objeto que um dia trouxe uma suposta satisfaccedilatildeo sem igual uma plena satisfaccedilatildeo Isso ocasiona uma vida de procura e reencontros tatildeo somente com substitutos fugazes Assim ele [o objeto] natildeo estaacute de volta eacute somente uma sombra do que foi perdido sem nem mesmo ter existido11

A funccedilatildeo do psicanalista como meacutedico das neuroses eacute pautada nos sintomas de um corpo que eacute material mas tambeacutem pulsional ou seja estreitamente relacionado com o psiquismo e em consequecircncia com o inconsciente Eacute o corpo atravessado pela Trieb ndash natildeo eacute um corpo puramente anatocircmico mas simboacutelico Para Freud a neurose e suas formaccedilotildees sintomaacuteticas satildeo respostas agrave exigecircncia pulsional de satisfaccedilatildeo que se expressa em sofrimento e morbidez Eacute funccedilatildeo desse meacutedico estar atento ao fato de que o ser humano emprega defesas e estrateacutegias para interagir com o mundo externo em sua busca incessante de realizar suas pulsotildees mas que satildeo inconciliaacuteveis com a vida em civilizaccedilatildeo O processo de formaccedilatildeo das sociedades traz inerentemente consigo uma sensaccedilatildeo de mal-estar ocasionada pelos sacrifiacutecios impostos pela civilizaccedilatildeo ao homem Dentre eles pode-se citar os relacionados agrave sexualidade e agrave agressividade Isso diminui as probabilidades de o ser humano ser feliz em sociedade pois torna a vida ldquoaacuterdua demaisrdquo O homem civilizado a partir disso troca uma quantia de satisfaccedilatildeo por uma quantia de seguranccedila ou seja viver em sociedade provocou uma perda de liberdade em ganho de seguranccedila (FREUD [1930] 1996) O padecimento sempre estaacute relacionado justamente agrave tentativa de amansar ou tentar deixar latente a forccedila pulsional desconhecida pela consciecircncia

Uma das funccedilotildees do meacutedico das neuroses eacute escutar sem julgamentos preacutevios de base moral Essa postura tambeacutem eacute solicitada a quem o procura que deve associar livremente ldquo[] lhe ocorreratildeo vaacuterios pensamentos que vocecirc quer rechaccedilar com certas restriccedilotildees criacuteticas [] nunca ceda a essa criacutetica diga-o mesmo assim justamente porque vocecirc sente uma rejeiccedilatildeo diante dissordquo (FREUD [1913] 2017 p 136) Trata-se de uma escuta com atenccedilatildeo equiflutuante e neutralidade evitando o perigo de selecionar certos trechos do discurso em meio ao material apresentadoNatildeo eacute possiacutevel que o analista faccedila seleccedilatildeo com base em suas proacuteprias inclinaccedilotildees ou expectativas isso apenas falsificaria a percepccedilatildeo ldquoNatildeo nos esqueccedilamos que ouvimos coisas cuja importacircncia soacute se revelaratildeo a posteriori (FREUD [1912] 2017 p 94) O analista precisa ldquodirigir para o inconsciente emissor do paciente o seu proacuteprio inconsciente enquanto oacutergatildeo receptorrdquo (p99) e ldquocolocar de lado todos os seus afetos e ateacute a compaixatildeo humanardquo (p98) A frieza emocional do analista tem o objetivo de evitar a ambiccedilatildeo terapecircutica natildeo eacute possiacutevel que o tratamento busque o efeito de convencimento no paciente ldquoO meacutedico precisa ser opaco para o analisando e assim como uma superfiacutecie espelhada natildeo deve mostrar nada aleacutem daquilo que lhe eacute mostradordquo (p 102) Tambeacutem natildeo cabe ao praticante ter ambiccedilatildeo educativa pois a atividade intelectual natildeo alivia os efeitos da neurose pelo contraacuterio - refletir muito e frequentemente com muita erudiccedilatildeo eacute um sinal de resistecircncia

Os dois uacuteltimos artigos afirmam que natildeo haacute uma ldquoverdade absolutardquo de posse do analista ou um juiacutezo em termos de ldquobem e malrdquo O significado singular da vida do sujeito 11 A satisfaccedilatildeo miacutetica daraacute origem agrave noccedilatildeo freudiana de realidade psiacutequica isso significa que a verdade eacute uma ficccedilatildeo

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

202

soacute seraacute conhecido a posteriori12 com base no discurso do proacuteprio analisando Afirmam tambeacutem que a compaixatildeo a erudiccedilatildeo e o uso das capacidades conscientes em nada o auxiliam

Na visatildeo freudiana a internalizaccedilatildeo das imposiccedilotildees morais da cultura como pecado ndash castigo tambeacutem provocam o adoecimento do analisando na forma de um supereu muito severo Portanto outra funccedilatildeo do meacutedico das neuroses eacute abrandar a severidade do supereu pois o sentimento de culpa condena qualquer tentativa de satisfaccedilatildeo pulsional e ainda produz auto-recriminaccedilatildeo Freud explica que as exigecircncias culturais as criacuteticas dos pais e as censuras dos educadores satildeo os meios encontrados por essas proibiccedilotildees de fora que falam na terceira pessoa para se internalizarem como a voz da consciecircncia por efeito do recalcamento A religiatildeo busca aplacar a falta de sentido da vida e ldquoo homem comum soacute pode imaginar essa Providecircncia sob a figura de um pai ilimitadamente engrandecido Apenas um ser desse tipo pode compreender as necessidades dos filhos dos homens enternecer-se com suas preces e aplacar-se com os sinais de seu remorso Tudo eacute tatildeo patentemente infantilrdquo (FREUD [1930] 1996 p 82) Alega ainda redimir a humanidade do sentimento de culpa a que chamam de pecado utilizando a seu favor a severidade do supereu

3 O vazio de sentido ndash a reinvenccedilatildeo de si proacuteprioEacute necessaacuterio a princiacutepio demarcar aproximaccedilotildees e tambeacutem diferenccedilas entre as

abordagens de Nietzsche e Freud O primeiro faz uma construccedilatildeo cosmoloacutegica ao formular seu conceito de Forccedilas e Vontade de Potecircncia enquanto o segundo ocupa-se de uma terapecircutica Satildeo dois corpos teoacutericos distintos em que uma interlocuccedilatildeo eacute possiacutevel mas com certa cautela para evitar o reducionismo No momento cabe sintetizar alguns pontos que auxiliam na anaacutelise dessas aproximaccedilotildees e diferenccedilas

Nietzsche e Freud fizeram um diagnoacutestico e criacutetica da eacutepoca em que viveram ndash e tambeacutem do presente Separaram-se daquilo que era tido como verdadeiro natildeo foram dogmaacuteticos numa busca pela verdade ldquouacuteltimardquo Natildeo se limitaram a um mero diagnoacutestico cliacutenico das patologias da modernidade mas se arriscaram na emissatildeo de um prognoacutestico Seus respectivos pontos de vista satildeo uma criacutetica a concepccedilatildeo que o homem moderno fez de si ndash como um lsquosujeito racionalrsquo lsquoconscientersquo e apresentaram um contra ideal perante as exigecircncias da civilizaccedilatildeo Podemos encarar suas obras como perspectivas interpretaccedilatildeo sobre o mundo

O que eacute adoecedor decadente e qual o papel do psicanalista e do filoacutesofo O que eacute adoecedor na visatildeo de Freud satildeo os ideais e exigecircncias da civilizaccedilatildeo e que satildeo inconciliaacuteveis com as exigecircncias pulsionais Ele destaca que as pulsotildees devem ser conhecidas pelo sujeito e natildeo rechaccediladas A civilizaccedilatildeo inventou doutrinas e praacuteticas terapecircuticas para tratar no niacutevel coletivo as infelicidades inerentes agrave condiccedilatildeo humana A religiatildeo seria uma dessas ldquoideologias da promessardquo Freud afirma que o mal estar na civilizaccedilatildeo eacute um conflito indissoluacutevel sua uacutenica ldquopromessardquo eacute ldquotransformar um sofrimento neuroacutetico numa infelicidade comum [] estar mais bem armado contra essa infelicidaderdquo13(FREUD [1895] 1996 p316)

Jaacute em Nietzsche vemos que a humanidade natildeo evolui para o melhor para o mais forte ou para o superior O principal papel do meacutedico filosoacutefico seria deixar acontecer o 12 Freud aponta no capiacuteto II do Mal-estar na ciilizaccedilatildeo que a felicidade deve ser construiacuteda individualmente ldquoNatildeo haacute

aqui um conselho vaacutelido para todos cada um tem que descobrir a sua maneira particular de ser felizrdquo ([1930] 2010 p40-41)

13 Outra aproximaccedilatildeo entre os autores eacute o ldquosentimento inconsciente de culpardquo e ldquomaacute consciecircnciardquo - os dois principais sin-tomas que denunciam uma ldquodoenccedilardquo que se alastra da moral para outros domiacutenios da cultura e desta para o psiquismo

Michaella Carla Laurindo

203

ciclo vital14 e tambeacutem que suas fases sejam superadas Adoecedor seria negar a vida que na verdade deveria ser um processo incessante de autossuperaccedilatildeo Elevaccedilatildeo da cultura significa expressar os impulsos no intuito de autossuperaccedilatildeo propiciar a accedilatildeo criadora e de renovaccedilatildeo da cultura sem a ilusatildeo de uma felicidade suprema

Haacute nos dois autores uma articulaccedilatildeo entre sintoma individual cultural Mas Nietzche parece enfatizar o sintoma cultural quando escreve ldquoNos indiviacuteduos a loucura [Irrsinn] eacute rara - mas no grupos partidos povos eacutepocas eacute a regra e por isso os historiadores natildeo tecircm falado da loucura ateacute hoje Mas chegaraacute o tempo em que os meacutedicos escreveratildeo a histoacuteriardquo15 De qualquer forma tanto psicanalista quanto filoacutesofo tecircm que ldquolutar com resistecircncias inconscientes no proacuteprio coraccedilatildeo do investigador sem condicionamentos entre lsquobom e malrsquo se posicionar para aleacutem da moralrdquo (NIETZSCHE sect23 [1886] 2005 p27-28)

O vazio de sentido e a reinvenccedilatildeo construccedilatildeo de si proacuteprio tanto em Nietzsche quanto em Freud haacute uma interrogaccedilatildeo sobre o que vem a ser a verdade Em Freud por exemplo vimos que toda a busca de sentido ao longo da vida estaacute assentada em uma ficccedilatildeo ndash haacute uma total falta de sentido para a existecircncia Eacute que o objeto da pulsatildeo eacute uma experiecircncia de satisfaccedilatildeo em torno da qual estruturou-se o circuito da pulsatildeo Mas se trata de uma experiecircncia de satisfaccedilatildeo que carece de essecircncia ou melhor dizendo eacute um nada de substacircncia Eacute o encontro com esse nada que a neurose pretende evitar a todo preccedilo (GODINO-CABAS 2009) Em Genealogia da Moral vemos que ldquoalgo faltava que uma monstruosa lacuna circundava o homem ndash ele natildeo sabia justificar explicar afirmar a si mesmo ele sofria do problema do seu sentido []o ideal asceacutetico lhe ofereceu um sentidordquo (NIETZSCHE [1887] 2009 p 139) Os conceitos dos dois autores orbitam em torno de se permitir a experiecircncia da falta de sentido que as identificaccedilotildees e as idealizaccedilotildees declinem Trata-se de assumir a proacutepria vida sem as proacuteteses da ilusatildeo e tentar fazer dela uma obra de arte uma reinvenccedilatildeo permanente de si mesmo O conflito decorrente da vida em civilizaccedilatildeo pode ser produtivo Construir um mundo individual e comunitaacuterio menos sofrido Essa construccedilatildeo natildeo toma por base uma esperanccedila de natureza religiosa nem uma certeza ndash eacute uma aposta sem as garantias de um final feliz Trata-se portanto de fomentar a criatividade humana e a constante mudanccedila de valores e conceitos recusando-se agrave estagnaccedilatildeo

14 Fase de juventude fase de apogeu e fase debilitada da cultura15 Cf Fragmento poacutestumo 3[1] [159] veratildeo-outuno 1882 Nietzsche v 3 p 67

O homem como criador e criatura de si proacuteprio ndash Uma interface

204

Referecircncias bibliograacuteficasFREUD S A psicoterapia da histeria [1895] In Ediccedilatildeo Standart Brasileira das Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud (Vol II) Rio de Janeiro Imago 1996_____ Projeto de uma psicologia cientiacutefica [1895] In Ediccedilatildeo Standart Brasileira das Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud (Vol I) Rio de Janeiro Imago 1996_____ Recomendaccedilotildees ao meacutedico para o tratamento psicanaliacutetico [1912] In Obras Incompletas de Sigmund Freud Autecircntica Editora 2017_____ Sobre o inicio do tratamento [1913] In Obras Incompletas de Sigmund Freud Autecircntica Editora 2017_____ A pulsatildeo e destinos da pulsatildeo [1915] In Obras Psicoloacutegicas de Sigmund Freud - Volume 1 ndash Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente Rio de Janeiro Imago 2004_____ Aleacutem do princiacutepio do prazer [1920] In Obras Psicoloacutegicas de Sigmund Freud - Volume 2 ndash Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente Rio de Janeiro Imago 2006_____ O problema econocircmico do masoquismo [1924] In Obras Psicoloacutegicas de Sigmund Freud - Volume 3 ndash Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente Rio de Janeiro Imago 2007_____ O mal-estar na civilizaccedilatildeo [1930] In Obras completas de Sigmund Freud (Vol XVIII) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 FREZZATTI Jr Wilson Anotnio A fisiologia de Nietzsche a superaccedilatildeo da dualidade culturabiologia Ijuiacute Ed Unijuiacute 2006_____ O problema de Soacutecrates um exemplo da fisiopsicologia de Nietzsche Rev Filos Aurora Curitiba v 20 n 27 p 303-320 juldez 2008GODINO-CABAS A O sujeito na psicanaacutelise de Freud a Lacan Da questatildeo do sujeito ao sujeito em questatildeo Rio de Janeiro Zahar 2009MARTON S Verbete Vontade de Potecircncia [Wille zur Macht] Psicologia [Psychologie] In GEN Dicionaacuterio Nietzsche Satildeo Paulo Loyola 2016MUumlLLER-LAUTER W A doutrina da vontade de poder em Nietzsche Trad O Giacoacuteia Jr Satildeo Paulo Annablume 1997NIETZSCHE FW Humano demasiado humano [1878] Traduccedilatildeo P C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2005 _____ Aleacutem do bem e do mal [1886] Traduccedilatildeo P C de Souza Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2005_____ A gaia ciecircncia [1886] Traduccedilatildeo P C de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____Genealogia da moral uma polecircmica [1887] Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ [1967] Nachgelassene Fragmente 1885-1887 Em G Colli amp M Montinari (Orgs) Kritische Studienausgegeben ndash KSA Vol 12 BerlinNew York Walter de Gruyter _____ Fragmentos Poacutestumos 1885-1889 (vol II) Madrid Editorial Tecnos 2016_____ Fragmentos Poacutestumos 1885-1889 (vol III) Madrid Editorial Tecnos 2016_____ Fragmentos Poacutestumos 1885-1889 (vol IV) Madrid Editorial Tecnos 2016QUINET A (2012) Os outros em Lacan Rio de Janeiro Zahar

Neomar Sandro Mignoni

205

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as influecircncias de Paul Reacutee 1

Neomar Sandro Mignoni2

Quando veio a puacuteblico em maio de 1878 Humano demasiado humano provocou inuacutemeras reaccedilotildees entre os amigos e leitores de Nietzsche Com exceccedilatildeo de Burckhardt que se refere agrave obra quase como a um ldquolivro soberanordquo3 e de Reacutee que entusiasmadamente o definiu como ldquoo livro dos livrosrdquo (cf KGB II6 850) as demais reaccedilotildees foram incocircmodas e ateacute explicitamente negativas Wagner se recusou a ler o livro Cosima o definiu como ldquoum livro tristerdquo ldquofruto da perversatildeordquo que ldquoprovoca grande constrangimento entre os amigosrdquo Rohde permaneceu consternado Malwida embaraccedilada e Marie Baumgartner afirmou ter ldquotremido de espantordquo4 Numa carta que enviou a Reacutee (12 de maio de 1878) Nietzsche confessou que apesar de sua obra ter causado ldquoirritaccedilatildeo mal-entendidos estranhamentosrdquo ele se sentia ldquorejuvenescido semelhante a um paacutessaro de montanha que estaacute laacute em cima no alto vizinho ao gelo a olhar o mundo laacute embaixordquo (Epistolario III 720) Foi tambeacutem nesse espiacuterito que ainda nos primeiros dias de 1878 num rascunho da carta destinada a Wagner o filoacutesofo escrevera ldquoEste livro eacute meu eu trouxe agrave luz minha mais iacutentima percepccedilatildeo sobre os homens e as coisas e pela primeira vez circulei a periferia de meu proacuteprio pensamentordquo (Epistolario III 676)

Mais do que ldquoo monumento de uma criserdquo (EH Humano demasiado humano sect1) Humano eacute tambeacutem o marco decisivo do retorno a si mesmo da retomada de uma via de pensamento que jamais seraacute abandonada Esta eacute a obra na qual o filoacutesofo se sente no direito de afirmar a proacutepria autonomia intelectual de buscar a proacutepria liberdade de espiacuterito No entanto nem todos assim o compreenderam Se por um lado congratulava-se com Reacutee pela consonacircncia de suas ideias (cf Epistolario III 743) por outro confrontava-se com Rohde em defesa da originalidade de suas proacuteprias conclusotildees frente a acusaccedilatildeo deste de que ele se despira da proacutepria alma para assumir a de Reacutee Em sua defesa Nietzsche escreveu

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - coacutedigo de Financiamento 001

2 Bolsista na Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Campus Toledo Paranaacute3 Essa opiniatildeo positiva do historiador e colega de profissatildeo de Nietzsche adveacutem de uma carta enviada a von Preen

em dezembro de 1878 (cf KGV IV4 p48) na qual afirmara ldquoNotaste que Nietzsche em seu livro faz uma meia conversatildeo em direccedilatildeo ao otimismo Eacute um homem extraordinaacuterio Para todas as coisas tem seu proacuteprio ponto de vista adquirido de maneira autocircnomardquo

4 Em relaccedilatildeo agraves reaccedilotildees dos leitores da obra veja-se Epistolario III 720s p 291s e suas respectivas notas aleacutem da KGB IIVI2 p850)

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as

206

Entre parecircntesis procure sempre a mim em meu livro e natildeo o amigo Reacutee Estou orgulhoso de ter descoberto as suas esplendidas qualidades e aspiraccedilotildees mas acerca da concepccedilatildeo da minha lsquophilosophia in nucersquo ele natildeo exerceu sequer a menor influecircncia esta estava pronta e em boa parte jaacute confiada ao papel quando o conheci de modo mais proacuteximo no outono de 1876 Nos encontramos colocados sobre um plano idecircntico o prazer dos nossos coloacutequios era sem limites e foi certamente de grande vantagem para ambos (Epistolario III 727)

A nosso modo de ver esta talvez seja a afirmaccedilatildeo que melhor ilustra seja o caraacuteter de Humano demasiado humano seja a influecircncia exercida por Reacutee no periacuteodo da elaboraccedilatildeo da obra Vejamos Nietzsche conheceu Reacutee na primavera de 18735 e em 1875 expressou grande apreccedilo agraves Observaccedilotildees psicoloacutegicas6 de Reacutee que fora publicada naquele mesmo ano No entanto eacute somente em 1876 que amizade entre os dois se consolida definitivamente apoacutes a visita de Reacutee agrave Basileacuteia em fevereiro deste mesmo ano Em agosto ambos se apresentaram em Bayreuth para a primeira ediccedilatildeo do festival wagneriano Depois que Nietzsche abandonou o Festival Reacutee o acompanhou agrave Basileacuteia onde iniciaram uma seacuterie de leituras e estudos em comum Eacute tambeacutem nesse periacuteodo que Nietzsche ditou a Gast o Die Plufgschar (O arado) (cf caderno M I 1 de 1876 grupo 18) Posteriormente dirigiram-se a Bex7 e mais tarde partiram em direccedilatildeo ao sul onde se encontraram com Malwida e Brenner para a estadia em Sorrento Seraacute pois em Sorrento que tanto a Origem dos sentimentos morais quanto Humano demasiado humano foram gestados pelo menos em sua maior parte

Uma anaacutelise mais acurada do espoacutelio de Nietzsche evidencia que justamente ao longo dos anos de 1875 e 1876 Nietzsche passou por uma profunda crise intelectual e emocional cujas consequecircncias transformaram seu modo de pensar e conceber o mundo8 No entanto essa crise natildeo eacute algo que veio agrave tona por forccedila do acaso tampouco de maneira suacutebita e inesperada Desde pelo menos 1872-73 eacute possiacutevel verificar alguns sinais desse evento A publicaccedilatildeo de O Nascimento da Trageacutedia (1872) jaacute evidenciara que a exuberante visatildeo do mundo que o filoacutesofo construiacutera ao longo da obra constituiacutea apenas uma bela ilusatildeo da qual nem mesmo ele acreditava muito (cf DrsquoIORIO 2014 p 11) Prova disso eacute a profunda cisatildeo existente entre aquilo que tornou puacuteblico atraveacutes da obra e aquilo que manteve no segredo de suas anotaccedilotildees privadas eou confiadas agraves liccedilotildees que proferiu a seus alunos Essa cisatildeo soacute alcanccedilaraacute seu fim no decorrer de sua estadia no Sul em Sorrento quando de fato toda aquela atividade de pensamento todo aquele fluxo que se manteve oculto ateacute entatildeo comeccedila a emergir dando vida a Humano demasiado humano5 Na ocasiatildeo Reacutee estivera na Basileacuteia para prestigiar a livre-docecircncia de seu amigo Romundt que tambeacutem era amigo

de Nietzsche Este em carta a Rohde descreveu Reacutee como um ldquoum homem muito reflexivo e talentosordquo (cf Episto-lario II 307) Reacutee permaneceu na Basileacuteia por todo o semestre de veratildeo onde juntamente com Gersdorff frequentou as aulas de Nietzsche sobre os preacute platocircnicos

6 Por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo Nietzsche cumprimentou o autor numa carta ldquoCaro senhor doutor as suas Observaccedilotildees psicoloacutegicas me fizeram muito prazer porque levastes a seacuterio o seu incoacutegnito poacutestumo (ldquodo legado literaacuteriordquo) [] Se vocecirc natildeo publicar mais anda aleacutem destas maacuteximas formadoras do ESPIacuteRITO se estaacute obra for e seraacute verdadeiramente o seu legado tudo bem tambeacutem quem vive em tanta independecircncia e segue adiante por sua proacutepria conta tem o direito de exigir que se lhe poupe elogios e esperanccedilasrdquo (Epistolaacuterio II 492) Reacutee agradeceu generosamente poucos dias depois

7 Um ano mais tarde Reacutee ainda lembraraacute desta estadia ldquoNestes tempos de agora meus pensamentos vagueiam por Bex e natildeo querem deixar-se expulsar de laacute De algum modo foi a lua de mel de nossa amizade e a pequena casa agrave parte a sacada de madeira os cachos de uva e o Saacutebio completam o quadro de uma situaccedilatildeo perfeitardquo (cf Triangolo di lettere Paul Reacutee a Nietzsche em 10 de outubro de 1877 p 28)

8 Alguns sintomas dessas mudanccedilas podem ser encontrados ateacute mesmo entre seus escritos de 1873 e 1874 especial-mente os escritos durante o veratildeo-outono de 1873 como por exemplo o caderno U II 2

Neomar Sandro Mignoni

207

As consequentes mudanccedilas provocadas por essa crise alteraram natildeo soacute o seu modo de pensar ou o seu modo de escrita mas influenciaram ateacute mesmo suas leituras Agrave medida em que se tornou evidente o real significado do renascimento cultural proposto por Wagner agrave medida que as ideias de Schopenhauer natildeo o convenciam mais Nietzsche ampliou seus horizontes de estudos Em 1875 adquiriu uma seacuterie de obras muitas delas de cunho puramente cientiacutefico como no caso das obras publicadas na Internationale wissenschaftliche Bibliothek o filoacutesofo passou a ocupar-se tambeacutem com muitas outras leituras ateacute entatildeo ineacuteditas como por exemplo os moralistas franceses9 Spencer Duumlhring e obviamente as Observaccedilotildees Psicoloacutegicas de Paul Reacutee entre outras

Nesse meio tempo enquanto Nietzsche se ocupava com seus estudos cientiacuteficos e com a quarta extemporacircnea Richard Wagner em Bayreuth Reacutee iniciava seus estudos para sua segunda obra a jaacute citada Origem dos sentimentos morais Interessante notar que tanto Reacutee quanto Nietzsche jaacute vinham se ocupando de suas respectivas obras desde 1875 e que tanto Origem dos sentimentos morais quanto Humano demasiado humano soacute foram publicadas apoacutes a intensa convivecircncia dos dois autores 1877 e 1878 respectivamente Sendo assim eacute bastante natural que tais obras incorporem elementos provenientes do intenso diaacutelogo entre seus autores Contudo delimitar tais influecircncias eacute algo bastante complexo senatildeo impossiacutevel razatildeo pela qual natildeo nos cabe aqui reconstruir esse diaacutelogo mas antes apontar alguns desses elementos que a nosso ver satildeo essenciais agrave compreensatildeo das mutuas influecircncias entre Nietzsche e Reacutee Aqui vale ressaltar que a amizade entre os dois autores se solidificou efetivamente apoacutes o rompimento de Nietzsche com Wagner Reacutee natildeo teve nenhuma influecircncia sobre o distanciamento de Nietzsche para com Wagner no entanto nos parece bastante razoaacutevel que em virtude desse afastamento a posterior influecircncia de Reacutee tenha contribuiacutedo positivamente com Nietzsche na sua busca pela proacutepria originalidade de pensamento

As razotildees pelas quais Nietzsche empreende novos estudos sobretudo no acircmbito cientiacutefico mais do que um retorno ao seu antigo e contiacutenuo interesse pela temaacutetica cientiacutefica representa tambeacutem a tomada de consciecircncia das questotildees essenciais de uma nova eacutepoca que agora despontava O homem moderno jaacute natildeo se satisfaz com as promessas metafiacutesicas ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da ciecircncia traz consigo questotildees cada vez mais complexas que o colocam em confronto com sua proacutepria existecircncia Dentre as grandes novidades do periacuteodo certamente natildeo passaram despercebidas ao filoacutesofo as vozes que traziam notiacutecias de Londres sobre o encontro de Darwin com Ruumltimeyer de 1877 por exemplo ou aquelas da Alemanha que debatiam o cientificismo positivista de Ernest Haeckel ou ainda as da Franccedila que faziam irromper o movimento antirromacircntico impulsionados pelo impressionismo de Manet e Rodin A muacutesica tambeacutem teve suas expressotildees quando por exemplo Brahms assumiu a corrente antiwagneriana salvando o prestiacutegio e a legitimaccedilatildeo da sinfonia O mesmo pode ser visto na literatura na medida em que ecoava o naturalismo em obras como Lrsquoassomoir de Emile Zola de 1876 (cf JANZ 1980 p 780) O clima era de intensa mudanccedila e Nietzsche com a sensibilidade de um sismoacutegrafo certamente natildeo soacute percebera a ebuliccedilatildeo dessa nova atmosfera como tambeacutem tratou de inserir-se nesse novo meio cultural

9 Entre eles La Rochefoucauld Vauvenargues Chamfort Montaigne e La Bruyegravere e os Filoacutesofos do Iluminismo principalmente Voltaire mas tambeacutem Diderot Helvetius e Fontenelle e provavelmente tambeacutem Rousseau em suas Confissotildees

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as

208

Paul Reacutee por sua vez mediante seus heterogecircneos interesses parecia incorporar esta nova efervescecircncia cientiacutefico-cultural Apaixonado por etnologia antropologia e direito comparado Reacutee representava praticamente uma antiacutetese daquilo que Nietzsche vivenciara ateacute entatildeo nos ciacuterculos wagnerianos e schopenhauerianos dos quais agora procurava afastar-se Ceacutetico em relaccedilatildeo aos confrontos com o idealismo metafiacutesico Reacutee manteve tambeacutem um vivo diaacutelogo com os moralistas franceses a ponto de alguns o considerarem como o responsaacutevel pela iniciaccedilatildeo de Nietzsche na escrita em forma de aforismos Influenciado pelo positivismo e consciente do papel que o instinto e a imaginaccedilatildeo desempenham na construccedilatildeo do pensamento afastara-se progressivamente de Schopenhauer para avizinhar-se do empirismo e das novas disciplinas cientiacuteficas10 (cf FORNARI 2006 p 34)

Em certa medida a amizade com Reacutee ocorreu em um momento crucial e decisivo para o filoacutesofo Diante de seus interesses a influecircncia de Reacutee contribuiu ainda mais para a ampliaccedilatildeo de seu horizonte de leituras Depois de aprofundar ainda mais seus interesses pelas ciecircncias naturais Nietzsche passou a adquirir e estudar uma seacuterie de obras de escritores britacircnicos e americanos que em grande parte se dedicavam agrave ciecircncia natural e agrave antropologia11 Aleacutem de sua preocupaccedilatildeo com cientistas ingleses que agora em muito expandiam a ciecircncia para aleacutem do continente Nietzsche tambeacutem se ocupou com os pensadores franceses em sua maioria moralistas aleacutem de outros importantes nomes da Alemanha

O momento eacute de transiccedilatildeo e ao mesmo tempo em que o filoacutesofo se dedica cada vez mais agraves temaacuteticas cientiacuteficas e filosoacuteficas a autores iluministas franceses e ingleses ele tambeacutem se ocupa ainda que por pouco tempo sobre algumas obras de autores com vieacutes schopenhaueriano como por exemplo E Duumlhring e P Mainlaumlnder O abandono de todas aquelas posiccedilotildees metafiacutesicas idealistas pessimistas ateacute entatildeo guiadas pela esteacutetica e pela arte o permitem lanccedilar-se agora em direccedilatildeo a posiccedilotildees mais ceacuteticas e ateacute mesmo agrave concessatildeo de elogios ao Iluminismo Aleacutem disso um outro fator importante senatildeo decisivo eacute o fato da ciecircncia adquirir a partir de agora predominacircncia sobre a arte garantindo sua soberania a partir de um livre pensar cuja expressatildeo mais niacutetida aparece agrave luz por vez primeira em Humano demasiado humano (cf EH Humano demasiado humano sect1-5) Provavelmente a maior parte desses elementos figuravam entre as principais motivaccedilotildees pelas quais aqueles que lhe eram proacuteximos quedarem-se perplexos diante daquilo que julgavam como uma suacutebita mudanccedila de perspectiva e que agora aparecia estampada em sua mais recente obra

Nesse sentido natildeo haacute duacutevidas que Humano demasiado humano seja o ldquomonumento de uma criserdquo mas de uma crise em vias de superaccedilatildeo Provavelmente Nietzsche natildeo pretendia fazer dele uma declaraccedilatildeo de guerra mas antes a definitiva constataccedilatildeo do crepuacutesculo dos ldquoideaisrdquo metafiacutesicos sintetizados sob a figura de Schopenhauer e dos miacuteticos mantidos sob a eacutegide de Wagner ldquoCom ele [Humano demasiado humano] me libertei do que natildeo pertencia agrave minha naturezardquo escreveu tambeacutem no Ecce Homo (EH Humano demasiado humano sect1) Em outro fragmento escreveu tambeacutem ldquoQuero expressamente explicar aos leitores dos meus escritos anteriores que desisti das visotildees metafiacutesicas e artiacutesticas que os dominam essencialmente elas satildeo agradaacuteveis poreacutem insustentaacuteveisrdquo E em seguidardquo numa espeacutecie de 10 ldquoDepois de ter estudado em Leipzig e Berlim com professores do calibre de Curtius Drobisch Gerber e Robert

Hartmann (foi tambeacutem um dos poucos que foram admitidos para seguir as liccedilotildees privadas do aluno de Liebig Au-gust Wilhelm von Hofmann) Reacutee participou antes de mais nada da atmosfera do laboratoacuterio que foi de Johannes Muumlller autecircntica central de energia intelectual da Europa da metade do seacuteculo que tomado de volta de Karl Reichert e Emile Du Bois-Reymond depois da morte do grande fisioacutelogo renano pretendia uma explicaccedilatildeo experimental do vivente confiada agraves ciecircncias quiacutemicas e fiacutesicasrdquo (FORNARI 2006 p 34)

11 Confira-se o caderno N I 3b da primavera de 1875 por exemplo

Neomar Sandro Mignoni

209

mea culpa acrescenta ldquoQualquer pessoa que se permita falar publicamente em uma idade precoce geralmente eacute obrigada a discordar publicamente logo depoisrdquo (FP 23[159] final de 1876-veratildeo de 1877)

Mais do que expressar em primeira matildeo todas essas mudanccedilas Humano demasiado humano incorpora tambeacutem de maneira ineacutedita a afirmaccedilatildeo ainda que tateante em alguns aspectos de uma filosofia que se reconhece como tal Nesse sentido vale recordar aqui da jaacute mencionada carta enviada a Wagner no princiacutepio de 1878 na qual Nietzsche afirma que Humano eacute um livro seu em que pela primeira vez traccedilou os contornos de seu proacuteprio pensamento Um livro sobre o qual diz natildeo conhecer ningueacutem que tenha os mesmos pontos de vista um livro do qual ldquome orgulho de ter pensado natildeo como indiviacuteduo mas como coletividade [] Um arauto que precedeu os demais com seu cavalo e natildeo sabe bem se a fila de cavaleiros o segue ou se existe aindardquo (cf Epistolario III 676) Esse eacute tambeacutem um dos motivos que o levaram a afirmar que ldquoHumano demasiado humano eacute o monumento de uma criserdquo (EH Humano demasiado humano sect1) Aliaacutes na proacutepria obra o filoacutesofo numa espeacutecie de retrospectiva da proacutepria vida tambeacutem reflete

As fases habituais da cultura espiritual que se atingiu ao longo da histoacuteria satildeo recobradas pelos indiviacuteduos cada vez mais raacutepido Atualmente eles comeccedilam a entrar na cultura como crianccedilas movidas pela religiatildeo e aos dez anos de idade atingem talvez a vivacidade maior desse sentimento depois passando a formas mais atenuadas (panteiacutesmo) enquanto se aproximam da ciecircncia deixam para traacutes a noccedilatildeo de Deus de imortalidade e coisas assim mas sucumbem ao encanto de uma filosofia metafiacutesica Esta lhes parece tambeacutem pouco digna de creacutedito afinal e a arte parece prometer cada vez mais de modo que por algum tempo a metafiacutesica soacute persiste e sobrevive transformada em arte ou como disposiccedilatildeo artisticamente transfiguradora Mas o sentido cientiacutefico torna-se cada vez mais imperioso e leva o homem adulto agrave ciecircncia natural e agrave histoacuteria sobretudo aos meacutetodos mais rigorosos do conhecimento enquanto a arte vai assumindo uma significaccedilatildeo mais branda e mais modesta Nos dias de hoje tudo isso costuma suceder nos primeiros trinta anos da vida de um homem (HDH sect272)

Em certo sentido esta parece ser a descriccedilatildeo do percurso daquelas ideias que ateacute entatildeo permaneciam em segredo e que foram se desenvolvendo ao longo dos uacuteltimos anos e que pouco a pouco foi ganharam forccedilas ateacute o filoacutesofo natildeo possuir mais razotildees para mantecirc-las ocultas Ainda pouco antes do festival de Bayreuth e dos manuscritos de Humano demasiado humano o filoacutesofo declara ldquoNatildeo deveraacute passar muito tempo e deverei manifestar opiniotildees que satildeo consideradas ignominiosas para aquele que as nutre Tambeacutem os amigos e conhecidos se tornaratildeo tiacutemidos e assustadosrdquo (FP 5 [190] do veratildeo de 1875) De fato a mudanccedila entre os escritos anteriores e o que agora se apresenta eacute bastante perceptiacutevel seja no estilo ou no conteuacutedo Entretanto apesar das inuacutemeras mudanccedilas Nietzsche natildeo abandona seu apreccedilo por Goethe pelos antigos gregos nem tampouco deixa de ocupar-se com a cultura ou com os valores o que muda agora eacute a perspectiva cuja proeminecircncia pertence agrave ciecircncia

Todos esses novos elementos que vieram agrave tona e revelaram um Nietzsche ateacute entatildeo desconhecido levaram Rohde sobretudo mas natildeo somente ele a desconfiar do alcance da influecircncia de Reacutee Mesmo depois do filoacutesofo ter defendido sua proacutepria filosofia a imagem

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as

210

da influecircncia de Reacutee no acircmbito do Humano demasiado humano continuaraacute assombrando-o por muitos anos Natildeo por acaso em vaacuterios outros momentos o filoacutesofo sentiraacute a necessidade de defender-se dessa filiaccedilatildeo indesejada ldquoNatildeo quero mais ser confundido com ningueacutemrdquo escreveu a Koumlselitz (carta de 17 de abril de 1883) ainda em referecircncia agrave Reacutee (cf Epistolario IV 402) Ou ainda quando no prefaacutecio (sect2 sect4 e sect7) da Genealogia da moral refuta a possibilidade de ter sido influenciado por Reacutee na eacutepoca do Humano defendendo que aquele ldquolivrinho claro limpo e sagaz ndash e marotordquo natildeo passa de uma antiacutetese de Humano assim como seu meacutetodo ingecircnuo e ldquoreconhecidamente inglecircsrdquo teria sido jaacute deixado de lado por ele12

Nesse embate haacute quem defenda que Reacutee foi apenas uma figura ao acaso na vida de Nietzsche de modo que poderia haver alguma relevacircncia de ordem afetiva e psicoloacutegica mas natildeo no acircmbito intelectual13 Por outro lado haacute tambeacutem aqueles que defendem uma muacutetua influecircncia muitas vezes ateacute em sentido exagerado14 Maria Cristina Fornari em sua obra intitulada La Morale evolutiva del gregge Nietzsche legge Spencer e Mill (2006) nos oferece uma terceira possibilidade de interpretaccedilatildeo Segundo a autora a relaccedilatildeo de Nietzsche com os autores que lecirc segue por algumas vias muito mais complexas que a simples apropriaccedilatildeo ou da simples refutaccedilatildeo (cf FORNARI 2006 p 47-48)

Assim sendo o caso de Reacutee eacute sem duacutevidas um caso bastante particular Isso porque eacute o uacutenico caso em que um texto (Origens dos sentimentos morais) eacute trazido pelo filoacutesofo agrave baila em trecircs momentos distintos de sua obra publicada15 Aleacutem disso a cada momento em que eacute citado ele passa assumir um significado diverso Por exemplo se a relaccedilatildeo de Nietzsche com Reacutee depende de uma consonacircncia concreta entre intenccedilotildees e aspiraccedilotildees as quais satildeo passiacuteveis de serem localizadas na efetiva familiaridade das duas obras posteriormente agrave medida em que Nietzsche amplia e aprofunda seu horizonte filosoacutefico ele passaraacute a citar o amigo sobretudo na Genealogia da moral como um exemplo de erros de perspectiva nos quais ele mesmo havia se enredado Isso jaacute configuraria o amadurecimento de Nietzsche em seu contraste com os ldquoinglesesrdquo dos quais Reacutee em muito dependia para entatildeo visualiza-los agora enquanto expoentes da ingenuidade histoacuterica e como maus genealogistas Mas isso evidenciaria tambeacutem que o filoacutesofo tem consciecircncia de que esteve muito proacuteximo de assumir ldquoas hipoacuteteses e o deacutebito intelectual contraiacutedo com as proacuteprias fontes agrave medida em que alcanccedila uma posiccedilatildeo mais profunda e que se sustente cientificamenterdquo (FORNARI 2006 p 48)

12 ldquoSe para isso [ao propoacutesito de procurar companheiros no questionamento dos valores morais] pensei no menciona-do dr Reacutee entre outros isso ocorreu por natildeo duvidar que a natureza mesma das suas questotildees o levaria a meacutetodos mais corretos para alcanccedilar as respostas Teria me enganado nisso Meu desejo em todo o caso era dar a um olhar tatildeo agudo e imparcial uma direccedilatildeo melhor a direccedilatildeo da efetiva histoacuteria da moral prevenindo-o a tempo contra essas hipoacuteteses inglesas que se perdem no azulrdquo (GM Prefaacutecio sect7)

13 Essa eacute por exemplo a visatildeo de K Jaspers (Nietzsche Einfuumlhrung in das Verstaumlndnis seines Philosophierens Berlin 1936) e D Haleacutevy (Nietzsche Paris 1944) Ambos consideram que a influecircncia entre os dois autores eacute puramente biograacute-fica e psicoloacutegica-sentimental Para Eugen Fink (Nietzsches Philosophie Stuttgart 1960) Reacutee seria o responsaacutevel por consentir a Nietzsche que este vivesse de modo livre sua fase iluminista Jaacute Andler (Nietzsche sa vie et sa penseacutee 1958) assume que Reacutee fora um pensador infinitamente modesto frente agrave Nietzsche o que natildeo impediria Nietzsche de ter sido influenciado por ele eacute verdade poreacutem segundo o autor uma comparaccedilatildeo entre as obras evidencia que a semel-hanccedila entre elas eacute iacutenfima (cf FORNARI 2006 p 47)

14 P L Ausson por exemplo considera Reacutee como um ldquoantiacutedoto a Wagnerrdquo e sua influecircncia teria o significado de um ldquopassaporte na direccedilatildeo de um novo mundo filosoacuteficordquo Desse modo a Origem dos sentimentos morais seria como que ldquoa dinamite que permitiu de escrever o lsquoLivro para espiacuteritos livresrsquordquo (cf AUSSON 1979 p 5-68) Outros autores que seguem nessa linha satildeo B Donnellan (Friedrich Nietzsche and Paul Reacutee cooperation and conflict in Journal of the Study of Ideas 1982 p 595-612) e L Battaglia (Due Genealogie della morale Nietzsche e Reacutee in Intinerati Nietzschiani ESI Napoli 1983 p 67-93)

15 Cf HDH sect37 GM Prefaacutecio sect4 EH Humano demasiado humano sect6

Neomar Sandro Mignoni

211

Em certa medida essa seria a razatildeo daquela espeacutecie de irritaccedilatildeo e o tom vagamente ressentido com o qual Nietzsche se afasta de Reacutee Nesse sentido eacute como se Nietzsche apelasse a uma espeacutecie de sobreposiccedilatildeo quase que uma superaccedilatildeo dialeacutetica daquele que um dia fora seu amigo Isso se torna ainda mais evidente no Ecce Homo quando o filoacutesofo ao retomar passagens do Humano demasiado humano (cf HDH I sect37) retoma juntamente com elas a proposiccedilatildeo de Reacutee de que ldquoo homem moral natildeo estaacute mais proacuteximo do mundo inteligiacutevel (metafiacutesico) que o homem fiacutesicordquo para em seguida atribuiacute-la natildeo mais a Reacutee mas a si mesmo ldquo(lizes [leia-se] Nietzsche o primeiro imoralista)rdquo e o faz no intuito de apresentar a sua ldquoTransvaloraccedilatildeo de todos os valoresrdquo (cf (EH Humano demasiado humano sect6)

Interessante perceber que esse inesperado retorno a Reacutee ocorre muitos anos depois da amizade entre os dois haver-se exaurido naquele embaraccedilante affaire que teve como protagonista a jovem Lou Salomeacute Mais curioso ainda eacute que mesmo apoacutes o fim da amizade Nietzsche manteacutem um vivo diaacutelogo com o texto de Reacutee Tanto eacute que a partir de 1883 Nietzsche natildeo soacute relecirc a obra de Reacutee como tambeacutem passa a ocupar-se com algumas de suas ideias como eacute o caso do conceito de culpa e de castigo que em certa medida daratildeo a tonalidade da retomada do autor da Origem dos sentimentos morais quase como um contraponto ao Nietzsche questionador da moral

Entretanto por mais que Nietzsche tenha mantido um diaacutelogo bastante profiacutecuo com a obra de Reacutee as possiacuteveis influecircncias advindas do autor se restringem a acircmbitos bastante especiacuteficos embora natildeo menos importantes do pensamento nietzschiano como eacute o caso da moral e natildeo propriamente agrave totalidade do conjunto dos elementos que compotildeem a obra Por mais que a influecircncia de Reacutee seja significativa ela natildeo eacute determinante A nosso ver o estranhamento dos que eram proacuteximo a Nietzsche com a receacutem-publicada obra eacute muito mais fruto de uma incompreensatildeo e desconhecimento e descreacutedito para com o que de fato o filoacutesofo pensava do que com uma possiacutevel justificativa acerca das influecircncias de Reacutee

Assim sendo por estes e outros elementos vale ressaltar que Humano demasiado humano natildeo eacute uma consequecircncia direta resultante do afastamento de Nietzsche em relaccedilatildeo a Wagner muito menos o resultado das inuacutemeras leituras levadas a cabo no periacuteodo de elaboraccedilatildeo da obra e tampouco pode ser resumida na siacutentese das reflexotildees e mutuas influecircncias mantidas com Reacutee Humano demasiado humano eacute antes de tudo o fruto de um longo e silencioso processo de amadurecimento intelectual gestado ao longo de vaacuterios anos mas que por razotildees obvias durante a fase wagneriana permaneceu confiado apenas ao material natildeo publicado dando origem agravequela cisatildeo entre os escritos publicados de cunho wagneriano e estes que satildeo mantidos no anonimato de suas liccedilotildees e anotaccedilotildees privadas

Nesse sentido se bem analisarmos os escritos anteriores ao Humano demasiado humano veremos guardadas as devidas proporccedilotildees uma intensa continuidade e coerecircncia entre os escritos juvenis marcados pelo elogio de Demoacutecrito o esboccedilo sobre e teleologia e a impiedosa criacutetica agrave metafiacutesica de Schopenhauer ainda na segunda metade da deacutecada de 1860 para com as aulas sobre os preacute-platocircnicos e o natildeo publicado escrito acerca de A filosofia na era traacutegica dos gregos da primeira metade da deacutecada de 1870 e por fim para com a filosofia do espiacuterito livre da segunda metade da deacutecada de 1870 Tatildeo evidente quanto as diferenccedilas entre Humano demasiado humano e as obras publicadas nos anos anteriores especialmente O Nascimento da Trageacutedia satildeo as tensotildees natildeo resolvidas entre a forccedila miacutetica

O contexto de humano demasiado humano Nietzsche e as

212

coesiva da arte caracteriacutestico dos escritos de cunho wagneriano e o espiacuterito analiacutetico e desagregador da filosofia tatildeo evidente nas liccedilotildees sobre os preacute-platocircnicos

Humano demasiado humano resolve essas cisotildees agrave medida em que mantendo a coerecircncia com o desenvolvimento intelectual de Nietzsche iniciado antes mesmo de conhecer Wagner devolve a autonomia e a liberdade de pensamento ao seu autor Essas satildeo as razotildees pelas quais a obra figura enquanto o ldquomonumento de uma criserdquo com o qual foi possiacutevel dar um ldquobrusco fim a todo lsquoembuste superiorrsquo lsquoidealismorsquo lsquosentimento belorsquordquo com os quais fora contagiado E o papel de Reacutee em todo esse processo me parece ser justamente o de coadjuvante no proacuteprio processo de busca pela autonomia filosoacutefica que lhe garantisse a libertaccedilatildeo do espiacuterito Atraveacutes dele Nietsche logrou natildeo soacute discutir e esclarecer suas proacuteprias convicccedilotildees mas tambeacutem tomar conhecimento e entrar em contato com uma gama de autores que certamente em muito contribuiacuteram com sua filosofia

Portanto mais do que uma ponte atraveacutes da qual Nietzsche pode acessar uma seacuterie de outros autores a influecircncia de Reacutee foi sem duacutevidas fundamental para que aquele idecircntico plano de interesses e aspiraccedilotildees convergissem aos propoacutesitos que o filoacutesofo almejava com sua obra A influecircncia certamente foi muacutetua poreacutem nunca determinante razatildeo pela qual Nietzsche pode rebater a provocaccedilatildeo de Rohde solicitando que este buscasse no Humano demasiado humano natildeo Reacutee mas Nietzsche E por Nietzsche eu acrescentaria buscar natildeo apenas o que abandona Wagner e Schopenhauer mas sobretudo o Nietzsche interessado em Demoacutecrito que se ocupou com as questotildees da teleologia que fez duras criacuteticas agrave metafisica de Schopenhauer o Nietzsche filoacutelogo interessado nos neoplatocircnicos ou ainda aquele Nietzsche que dedicou grande parte de seu tempo ao estudo das ciecircncias naturais Talvez com isso o significado de ldquoum livro para espiacuteritos livresrdquo se torne ainda mais evidente

Neomar Sandro Mignoni

213

Referecircncias bibliograacuteficasAUSSON Paul-Laurent Nietzsche et le Reacuteealisme Eacutetude-Preface In REacuteE Paul De lrsquoorigine des sentiments moraux Paris Presses Universitaires de France 1982DrsquoIORIO Paolo Nietzsche na Itaacutelia A viagem que mudou os rumos da filosofia Trad Joana Angeacutelica drsquoAvila Melo Rio de Janeiro Zahar 2014FAZIO Domenico M Paul Reacutee un profilo filosofico Bari Palomar Alternative 2003FORNARI Maria Cristina La morale evolutiva del gregge Nietzsche legge Spencer e Mill Pisa Edizioni ETS 2006NIETZSCHE Friedrich Digitale Kritische Gesamtausgabe (eKGWB) ndash Digital version of the German critical edition of the complete works of Nietzsche edited by Giorgio Colli and Mazzino Montinari The eKGWB is edited by Paolo DrsquoIorio and published by Nietzsche Source httpwwwnietzschesourceorg_____ Briefwechsel Kritische Gesamtausgabe hrsg von G Colli und M Montinari de Gruyter Berlin 1975 ssg (KGB)_____ Epistolario Vol III 1875-1879 Edizione stabilita da Giorgio Colli e Mazzino Montinari Milano 1995_____ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007_____ Humano Demasiado Humano I um livro para espiacuteritos livres Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004_____ Genealogia da Moral uma polecircmica Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ Triangolo di Lettere Cartegio di Friedrich Nietzsche Lou von Salomeacute e Paul Reacutee A cura di M Carpitella Adelphi Milano 1999SMALL Robin Nietzsche and Reacutee a star friendship New York Oxford University Press Inc 2005

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)

214

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)1

Newton Pereira Amusquivar Junior2

A interpretaccedilatildeo de Nietzsche sobre o caraacuteter agoniacutestico de HeraacuteclitoPara Nietzsche a luta tem uma grande importacircncia na sua filosofia esse eacute um dos

motivos de admiraccedilatildeo a Heraacuteclito e o filoacutesofo alematildeo reconhece muito bem o caraacuteter agoniacutestico natildeo apenas em Heraacuteclito mas tambeacutem nos gregos em geral No texto A disputa de Homero presente em Cinco prefaacutecios para cinco livros natildeo escritos Nietzsche cita e traduz uma passagem de Trabalhos e dias de Hesiacuteodo em que identifica e diferencia duas deusas Eris (ἔρις)

Uma Eris deve ser tatildeo louvada quanto a outra deve ser censurada pois diferem totalmente no acircnimo essas duas deusas Pois uma delas conduz agrave guerra maacute e ao combate a cruel Nenhum mortal preza sofrecirc-la pelo contraacuterio sob o jugo da necessidade prestam-se as honras ao fardo pesado dessa Eris segundo os desiacutegnios dos imortais Ela nasceu como mais velha da noite negra a outra poreacutem foi posta por Zeus o regente altivo nas raiacutezes da Terra e entre os homens como algo bem melhor Ela conduz ateacute mesmo o homem sem capacidades para o trabalho e um que carece de posses observa o outro que eacute rico e entatildeo se apressa a semear e plantar do mesmo modo que este e a ordenar bem a casa o vizinho rivaliza com o vizinho que se esforccedila para seu bem-estar Boa eacute essa Eris para os homens Tambeacutem o oleiro guarda rancor do oleiro e o carpinteiro do carpinteiro o mendigo inveja o mendigo e o cantor inveja o cantor(NIETZSCHE 2007 p 69)

Nietzsche argumenta contra a interpretaccedilatildeo moderna que considera esses versos como natildeo autecircnticos por considerar a boa Eris com rancor e inveja pois Aristoacuteteles e os gregos em geral natildeo perceberam nenhuma contradiccedilatildeo na referecircncia a tais versos para a boa Eris dado que aponta para uma Eris como maacute e depois enaltece uma outra como boa ldquoaquela que como ciuacuteme rancor inveja estimula os homens para a accedilatildeo mas natildeo para a luta aniquiladora e sim para a accedilatildeo da disputardquo (NIETZSCHE 2007 p 70) Diferente do nosso tempo moderno o grego natildeo vecirc a inveja como defeito mas como qualidade O grego tem como caracteriacutestica a disputa e Nietzsche nota isso em Xenoacutefanes de Colofon em relaccedilatildeo a Homero em Platatildeo com sua disputa aos sofistas e artistas no ostracismo dos efeacutesios ao banir Hermodoro pois ldquoelimina-se aqueles que sobressaem para que o jogo da disputa desperte novamenterdquo (NIETZSCHE 2007 p 72) Haacute sempre vaacuterios gecircnios 1 Esse trabalho faz parte da minha tese de doutorado realizado na UNICAMP com o financiamento da bolsa CAPES 2 Doutorando em filosofia na UNICAMP

Newton Pereira Amusquivar Junior

215

que se estimulam na disputa Assim nas disputas os gregos buscavam honrar a sua cidade natal nos jogos oliacutempicos na educaccedilatildeo os jovens foram educados a disputarem entre si assim como seus educadores disputavam entre si como os sofistas e os artistas musicais e dramaturgo

Por conta disso em Os filoacutesofos preacute-platocircnicos quando Nietzsche interpreta Heraacuteclito ele coloca oπόλεμος como o seu terceiro conceito principal (NIETZSCHE 1995 p 272) E ao se referir ao fragmento DK3 B80 ele considera como uma das maiores ideias ldquo uma ideia que foi retirada do mais profundo fundamento da essecircncia grega Isso eacute a boa Eacuteris de Hesiacuteodo tornada o princiacutepio do mundordquo (NIETZSCHE 1995 p 272) A δίκη como ἔρις eacute essa ideia grega que parte da boa Eacuteris que foi analisada em A disputa de Homero ou seja que estimula a disputa e natildeo leva a completa aniquilaccedilatildeo Nietzsche nota tambeacutem em A filosofia na era traacutegica dos gregos que aqui ldquotrata-se da boa Eacuteris de Hesiacuteodo transfigurada em princiacutepio cosmoloacutegico ()rdquo(NIETZSCHE 2008 p 60) Assim Heraacuteclito transferiu a disputa da luta social dos gregos para o que haacute de mais universal a engrenagem do cosmo A vitoacuteria de um natildeo destroacutei completamente seu oponente jaacute que a destruiccedilatildeo tambeacutem faria cessar a luta dando ensejo ao predomiacutenio nefasto da maacute Eris

O πόλεμος como legalidade do devir aparece de maneira ainda mais niacutetida em A filosofia na era traacutegica dos gregos considerando todo o vir-a-ser como algo que surge da guerra entre opostos

Todo vir-a-ser surge da guerra dos opostos as qualidades determinadas que se nos aparecem como sendo duradouras exprimem tatildeo-soacute a prevalecircncia momentacircnea de um dos combatentes mas com isso a guerra natildeo chega a seu termo poreacutem a luta segue pela eternidade Tudo se daacute de acordo com esse conflito e eacute precisamente esse conflito que revela a justiccedila eterna(NIETZSCHE 2008 p 60)

Nessa passagem pode-se notar cinco aspectos importantes da interpretaccedilatildeo de Nietzsche sobre Heraacuteclito primeiramente o devir surge da guerra dos opostos entatildeo o devir natildeo eacute um simples fluxo sem nenhuma unidade ele tem sim sua unidade mas ela eacute formada pelo πόλεμος ou seja uma luta constante entre os opostos Em segundo lugar a determinaccedilatildeo e a unidade do devir exprime uma predominacircncia do combatente vitorioso logo natildeo eacute uma determinaccedilatildeo absoluta mas completamente relativa com a luta que ainda estaacute presente mesmo com o predomiacutenio de um dos opostos Em terceiro lugar a luta continua eternamente ela natildeo cessa pois o predomiacutenio de um dos opostos eacute temporaacuterio e mesmo com ele haacute ainda uma luta que impotildee resistecircncia Em quarto lugar Nietzsche faz referecircncia ao fragmento DK B80 em que considera que tudo se daacute segundo conflito logo πόλεμος eacute universal estaacute presente em tudo Por uacuteltimo eacute desse conflito que se tem a justiccedila eterna haacute uma clara referecircncia novamente ao DK B80 em que justiccedila (δίκη) eacute discoacuterdia (ἔρις) O que significa que a justiccedila eacute discoacuterdia Para Nietzsche isso parece significar que eacute na proacutepria luta entre os opostos que se forma a legalidade e justiccedila natildeo haacute um juiz neutro e fora do conflito para julgar mas os proacuteprios lutares satildeo os juiacutezes

Enquanto a imaginaccedilatildeo de Heraacuteclito mensurava o universo incansavelmente movido a ldquoefetividaderdquo com o olho do feliz espectador que vecirc inumeraacuteveis pares combaterem numa alegre competiccedilatildeo sob a

3 Indico a citaccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito por meio da sigla DK indicando a organizaccedilatildeo dos fragmentos dos preacute-socraacuteticos realizada por Hermann Diels e Walther Kranz

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)

216

eacutegide de riacutegidos aacuterbitros adveio-lhe um pressentimento mais elevado ele jaacute natildeo podia tomar os pares beligerantes e os juiacutezes como coisas separadas entre si haja vista que os proacuteprios juiacutezes pareciam lutar e os proacuteprios lutadores pareciam julgar a si mesmos ndash e jaacute que no fundo percebeu apenas uma justiccedila eternamente dominante ele ousou exclamar ldquoO proacuteprio conflito do muacuteltiplo eacute a uacutenica justiccedilardquo E em geral o um eacute o muacuteltiplo ()rdquo(NIETZSCHE 2008 p 62)

Natildeo haacute nenhum ser fora do devir para poder julgar a luta entre os opostos Por isso a justiccedila ocorre pelo proacuteprio conflito pela boa discoacuterdia (ἔρις) que estimula a disputa entre os opostos e manteacutem o devir continuamente numa alternacircncia de predomiacutenio de um com o outro pois ateacute mesmo num momento estaacutevel a luta estaacute presente de maneira latente

Para ilustrar como o πόλεμος estaacute eternamente presente no devir Nietzsche se utiliza de uma passagem de O mundo como vontade e representaccedilatildeo que trata da constante alteraccedilatildeo na natureza causada pela eterna disputa pela mateacuteria na qual se engajam todos os indiviacuteduos Esse combate inexoraacutevel reflete a discoacuterdia interna da vontade que ao objetivar-se na multiplicidade da realidade empiacuterica crava incessantemente os dentes na sua proacutepria carne

Cada grau de objetivaccedilatildeo da Vontade combate com outros por mateacuteria espaccedilo e tempo Constantemente a mateacuteria que subsiste tem de mudar de forma na medida em que pelo fio condutor da causalidade entra em cena e assim arrebatam uns aos outros a mateacuteria pois cada um quer manifestar a proacutepria Ideia Esse conflito pode ser observado em toda natureza () Tal conflito entretanto eacute apenas a manifestaccedilatildeo da discoacuterdia essencial da Vontade consigo mesma () Assim a Vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria carne () (SCHOPENHAUER 2005 p 211)

Notamos novamente como Nietzsche percebe em fragmentos de Heraacuteclito aspectos da filosofia schopenhaueriana da vontade natildeo soacute na concepccedilatildeo de devir como pura sucessatildeo de tempo mas tambeacutem no proacuteprio πόλεμος Entretanto aqui Nietzsche faz uma ressalva importante em Schopenhauer o conflito na natureza eacute um tanto diferente do πόλεμος de Heraacuteclito ldquona medida que para o primeiro a luta eacute uma prova da cisatildeo interna da vontade de vida um devorar-se-a-si-mesmo desse impulso opressivo e sombrio um fenocircmeno horriacutevel que de maneira alguma traz felicidaderdquo (NIETZSCHE 2008 p 61) Eacute justamente nesse ponto que a filosofia de Heraacuteclito se distancia de Schopenhauer para este a luta eacute resultado de uma dilaceraccedilatildeo inerente agrave natureza metafiacutesica da vontade para Heraacuteclito segundo a interpretaccedilatildeo de Nietzsche no lugar disso a proacutepria luta eacute a instacircncia geradora da unidade

Com isso nota-se que Nietzsche viu em Heraacuteclito uma fonte para afirmar ainda mais a luta dentro da efetividade logo a luta assim como a transitoriedade e o sofrimento natildeo constituem uma objeccedilatildeo contra a existecircncia tal como ocorre com Schopenhauer Essa interpretaccedilatildeo seraacute de suma importacircncia para poder formar uma concepccedilatildeo cosmoloacutegica em constante luta tambeacutem no conceito de vontade de poder Com a interpretaccedilatildeo de Nietzsche sobre Heraacuteclito podemos notar primeiramente que o πόλεμος eacute universal estaacute sempre presente e eacute comum o devir conteacutem a constante luta entre esses opostos e a justiccedila (δίκη) eacute discoacuterdia (ἔρις) natildeo haacute um juiz que julga os lutadores mas eacute a proacutepria

Newton Pereira Amusquivar Junior

217

luta que configura a justiccedila Tambeacutem natildeo haacute uma unidade totalizadora que resgate os combatentes natildeo haacute nada fora do fluxo do devir a partir e em referecircncia ao qual este possa ser julgado

O πόλεμος na funccedilatildeo do ser orgacircnico como vontade de poder Nietzsche deu grande importacircncia para a fisiologia medicina e ciecircncia natural e

isso se mostra no grande nuacutemero de escritos de ciecircncia natural adquirido ou emprestado por ele Por conta disso eacute bem notaacutevel nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche uma relaccedilatildeo entre vontade de poder e o ser orgacircnico Em trecircs fragmentos poacutestumos4 (26 [273] 1884 35 [15] 1885 e 1 [30] 1885-6) Nietzsche considera a vontade de poder como funccedilatildeo do ser orgacircnico deixando portanto claro a importacircncia do ser orgacircnico para compreender a vontade de poder Ateacute o momento a vontade de poder foi analisada com relaccedilatildeo ao ser e devir sendo pela explicaccedilatildeo de todos os acontecimentos mas agora notamos essa relaccedilatildeo da vontade de poder com o ser orgacircnico Isso eacute compreensiacutevel pelo fato de Nietzsche natildeo ter uma ontologia separada do ser orgacircnico pois dar uma estabilidade de algo no devir se relaciona com o ser orgacircnico Poreacutem o que significa a vontade de poder como funccedilatildeo do ser orgacircnico O iniacutecio da resposta a essa pergunta pode estar na frase ldquogovernar e obedecer como expressatildeo da vontade de poder no orgacircnicordquo (39 [13] 1885) Nietzsche vecirc na natureza orgacircnica uma relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo mas essa relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo natildeo ocorre com um puro mandar e obedecer como pode parecer nessa citaccedilatildeo mas eacute tambeacutem resistecircncia e luta Em outro fragmento poacutestumo isso fica mais niacutetido (14 [174] de 1888)

O ser humano natildeo busca o prazer e natildeo evita o desprazer se entende ao qual o famoso prejuiacutezo que me oponho com isso prazer e desprazer satildeo meras consequecircncias meros fenocircmenos concomitantes - o que o ser humano quer o que cada parte minuacutescula de um organismo quer eacute um plus de poder Ao se esforccedilar-se por consegui-lo se produzem tanto o prazer como o desprazer a partir dessa vontade o organismo busca resistecircncia necessita algo que se ponha contra O desprazer enquanto impedimento da vontade de poder eacute pois um faktum normal o ingrediente normal de todo acontecer orgacircnico o ser humano natildeo desvia dele pelo contraacuterio o necessita constantemente toda vitoacuteria todo sentimento de prazer todo acontecer pressupotildee uma resistecircncia superada

Ao considerar que o ser humano e o ser orgacircnico natildeo buscam prazer e nem evitam o desprazer Nietzsche coloca como princiacutepio cardial do organismo a vontade de poder ou seja busca mais poder mas essa busca conteacutem resistecircncia sendo por isso um fato normal da dinacircmica da vontade de poder Nesse mesmo fragmento (14 [174] 1888) Nietzsche toma como exemplo a nutriccedilatildeo primitiva do protoplasma que estende seus pseudoacutepodos para buscar algo que resiste natildeo por fome mas pela vontade de poder logo nutriccedilatildeo eacute um fenocircmeno posterior de se tornar mais forte e que encontra como consequecircncia uma resistecircncia que estabelece uma luta

A luta (ou o πόλεμος) tem uma grande importacircncia na dinacircmica da vontade de poder presente na relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e essa luta natildeo eacute espaccedilo ou alimento mas pela proacutepria luta como afirma o fragmento poacutestumo 26 [276] 1884

4 Os fragmentos poacutestumos foram consultados em Friedrich Nietzsche Digital critical edition of the complete works and letters based on the critical text by G Colli and M Montinari BerlinNew York de Gruyter 1967- edited by Paolo DrsquoIorio no site httpwwwnietzschesourceorgeKGWB Acesso em 18 Maio de 2018 Como natildeo haacute paacutegina eu irei me referir ao fragmento poacutestumo pelo nuacutemero catalogado e o ano

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)

218

Quando dois seres orgacircnicos colidem quando soacute haacute luta pela vida ou pela alimentaccedilatildeo como Eacute necessaacuterio que haja a luta pela luta e dominar eacute suportar o contrapeso da forccedila mais fraca portanto um modo de continuaccedilatildeo da luta Obedecer tambeacutem eacute uma luta enquanto ainda ficar forccedila para resistir

Nessa passagem fica ainda mais claro que a relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo (mando e obediecircncia) se estabelece por meio da luta e da resistecircncia como afirma Frezzatti ldquoA dominaccedilatildeo (e a submissatildeo) eacute um aspecto do impulso vital a relaccedilatildeo entre o dominador (o que comanda) e o dominado (o que resiste) eacute a proacutepria luta e portanto a busca por dominaccedilatildeo prevalece sobre a conservaccedilatildeordquo (FREZZATTI 2014 p73)

Natildeo podemos deixar de lado o fato dessa importacircncia da luta do ser orgacircnico ser natildeo apenas uma influecircncia de Heraacuteclito mas tambeacutem de bioacutelogos do seacuteculo XIX que Nietzsche entrou em contato entre 1881 e 1883 Entre esses bioacutelogos destaco Wilhelm Roux pois para ele a luta tambeacutem ocorre na proacutepria constituiccedilatildeo do organismo

Nietzsche adquiriu e leu o livro A luta das partes no organismo (Der Kampf der Theile im Organismus) de Roux e foi influenciado por ele mas tambeacutem tinha sua visatildeo criacutetica em relaccedilatildeo ao autor Focarei aqui mais a influecircncia pois o tema que mais me interessa no momento eacute mostrar o πόλεμος na vontade de poder e acredito que isso fica mais evidente notando a luta nos seres orgacircnicos como funccedilatildeo de mando e obediecircncia da vontade de poder

Para Roux o organismo eacute resultado da luta entre suas proacuteprias moleacuteculas ceacutelulas tecidos e oacutergatildeos Haacute trecircs momentos em que ocorre a luta entre as partes do organismo No primeiro momento a luta das moleacuteculas orgacircnicas pelo espaccedilo o liacutequido nutritivo exterior a ceacutelula favorece mais a assimilaccedilatildeo de determinadas moleacuteculas como o espaccedilo molecular eacute limitado entatildeo se produz entre as moleacuteculas uma competiccedilatildeo no qual a que tem maior nuacutemero definiraacute o tipo da ceacutelula Num segundo momento se tem a luta entre ceacutelulas no qual da mesma forma que as moleacuteculas ocorrem reaccedilotildees aos fatores externos e ocupa um espaccedilo limitado do organismo As ceacutelulas que se nutrem mais raacutepidos satildeo as que se tornam predominantes Pela reproduccedilatildeo das ceacutelulas a diferenciaccedilatildeo no niacutevel superior ou seja dos tecidos se acentua No terceiro momento a luta eacute entre os tecidos e os oacutergatildeos que segue a mesma loacutegica das ceacutelulas mas haacute limites colocados pelo organismo como um todo pois uma predominacircncia muito forte de certos tecidos ou oacutergatildeos podem ser nocivos ao organismo como um todo logo a luta soacute prossegue na medida em que contribui para o uso econocircmico do alimento e do espaccedilo

Assim diferente de Darwin que pressupotildee os organismos dados para a luta pela vida Roux explica a gecircnese do organismo pela luta de suas partes que o compotildee Soacute pode haver luta entre os seres vivos se cada um se conservar na sua luta interior por espaccedilo e nutriccedilatildeo presente nas ceacutelulas tecidos e os oacutergatildeos Essa explicaccedilatildeo da gecircnese do organismo pela luta tem convergecircncia com Heraacuteclito e o proacuteprio Roux sabe disso e cita o fragmento DK B53 ldquo lsquoA briga eacute o pai das coisasrsquo diz Heraacuteclito ()rdquo (ROUX 1881 p 65) destacando tambeacutem outros autores como Empeacutedocles Darwin e Wallace para os quais tambeacutem a luta eacute fundamental

Assim a concepccedilatildeo de que a formaccedilatildeo do organismo ocorre por meio da luta tem como precursor Heraacuteclito Nietzsche daacute uma grande importacircncia ao Roux justamente por poder atraveacutes dele comprovar o πόλεμος como funccedilatildeo do ser orgacircnico enquanto vontade

Newton Pereira Amusquivar Junior

219

de poder Muumlller-Lauter destaca que ldquoo entendimento de Nietzsche do organismo como uma multiplicidade de vontade de poder que luta uma com a outra foi preparado pela sua leitura de Rouxrdquo(MUumlLLER-LAUTER 1999 p 102)

Portanto o que predomina na natureza natildeo eacute uma legalidade mas sim uma constante luta que como jaacute destacamos conteacutem uma relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo de forccedilas da vontade de poder Isso fica bem niacutetido no fragmento poacutestumo 40 [55] de 1885

A legalidade da natureza eacute uma falsa interpretaccedilatildeo humanitaacuteria Trata-se de uma constataccedilatildeo absoluta da relaccedilatildeo de poder de toda brutalidade sem a suavizaccedilatildeo que a vida orgacircnica traz consigo a antecipaccedilatildeo do futuro cuidado astuacutecia e esperteza em resumo o espiacuterito A absoluta instantaneidade da vontade de poder governa no homem (e jaacute na ceacutelula) essa constataccedilatildeo eacute um processo que desloca-se continuamente com o crescimento de todos participantes ndash uma luta supondo que se entenda essa palavra um sentido amplo e profundo como para entender tambeacutem a relaccedilatildeo do que domina com o dominado como combate e da relaccedilatildeo do que obedece com o que domina como resistecircncia

Nesse sentido Nietzsche se afasta do mecanicismo de Roux pois natildeo eacute de uma relaccedilatildeo mecacircnica das partes do organismo de busca por alimento que se constitui a luta mas a luta por si mesmo se constitui como relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo de mando e obediecircncia da vontade de poder ldquoa progressatildeo do orgacircnico natildeo estaacute ligado agrave nutriccedilatildeo mas ao poder de comandar e controlar a nutriccedilatildeo eacute somente um resultadordquo (26 [272] 1884) De modo semelhante Nietzsche tambeacutem afirma ldquoA alimentaccedilatildeo soacute uma consequecircncia da apropriaccedilatildeo insaciaacutevel da vontade de poderrdquo (2[76] 1885-6) Assim a alimentaccedilatildeo tem sua importacircncia para fortalecer o ser orgacircnico e natildeo para o conservar como afirma Meca ldquoO impulso baacutesico da vida natildeo eacute conservar uma unidade ou uma identidade estaacutevel alguma vez conseguida mas sim nutrir-se crescer e exceder em cada momento o jaacute alcanccedilado esforccedilando-se para tornar-se cada vez mais forte e ser mais apropriando-se de tudo aquilo que lhe puder fazer crescerrdquo(MECA 2011 p20)

Nesse sentido a vontade de poder visa conservar a proacutepria luta e natildeo a constituiccedilatildeo do ser orgacircnico ldquoem virtude do ser orgacircnico natildeo se quer conservar o ser mas sim a proacutepria luta() O que chamamos de lsquoconsciecircnciarsquo e lsquoespiacuteritorsquo eacute apenas meio e instrumento mediante se quer conservar natildeo um sujeito mas sim uma lutardquo (1[124] 1886) Portanto a busca por se tornar mais forte da vontade de poder tem como pressuposto a luta natildeo por conservaccedilatildeo mas por mais poder por isso luta por si mesmo

No entanto a vontade de poder deve ser vista como uma multiplicidade ou seja natildeo eacute apenas uma luta por dominaccedilatildeo mas tambeacutem haacute uma resistecircncia contra a dominaccedilatildeo Nietzsche destaca isso em dois fragmentos poacutestumos um ele relaciona com a incorporaccedilatildeo do protoplasma e afirma logo no comeccedilo ldquoA vontade de poder soacute pode se manifesta diante de resistecircncia ela busca portanto por aquilo que resiste a elardquo (9 [151] 1887]) Em um outro fragmento poacutestumo (26[272] 1884) Nietzsche relaciona essa necessidade de resistecircncia com o desprazer

O desprazer eacute um sentimento com inibiccedilatildeo mas dado que o poder soacute pode ser consciente com inibiccedilotildees entatildeo o desprazer eacute um ingrediente necessaacuterio de toda atividade (toda atividade estaacute direcionada contra algo que deve ser superado) A vontade de poder portanto anseia por

A vontade de poder enquanto luta (πόλεμος)

220

resistecircncias por desprazer No fundo haacute em todo organismo vivo uma vontade de sofrimento (contra ldquofelicidaderdquo como ldquometardquo)

Assim a vontade de poder busca o que lhe daacute desprazer o que faz resistecircncia contra sua forccedila Isso implica que o sofrimento natildeo pode ser uma objeccedilatildeo contra a existecircncia como pensou Schopenhauer A dor natildeo eacute motivo para a negaccedilatildeo da vida antes o contraacuterio eacute verdadeiro a afirmaccedilatildeo da vida inclui necessariamente a afirmaccedilatildeo da dor O que eacute poderoso ama ser desafiado e por sua forccedila contra uma resistecircncia jaacute o dominado sempre teraacute poder para pode resistir como jaacute citamos Zaratustra fala ldquoRebeliatildeo ndash esta eacute a nobreza do escravordquo (NIETZSCHE 2011 p 47) A vontade de poder natildeo eacute uma coisa uma res ou substacircncia mas eacute uma relaccedilatildeo de poder que visa acumular domiacutenio para ser mais forte e isso implica que haja resistecircncia por isso ela eacute muacuteltipla e natildeo una

E o desprazer natildeo torna o poder mais fraco pelo contraacuterio num fragmentos poacutestumo de anos depois (1887) Nietzsche retomaraacute esse tema do desprazer e resistecircncia da vontade de poder como o que a faz ela ser reforccedilada (11[77] 1887)

Conforme as resistecircncias que uma forccedila para se tornar senhor sobre elas assim precisa crescer a medida do fracasso e a fatalidade que com ele se provocam e na medida em que toda forccedila soacute pode descarregar diante de resistecircncia eacute necessaacuterio em toda accedilatildeo o ingrediente do desprazer Esse desprazer atua apenas como estiacutemulo da vida e fortalece a vontade de poder

Com isso notamos que a resistecircncia diante da vontade de poder fortalece e por isso faz parte da sua proacutepria dinacircmica logo a luta eacute central para a compreensatildeo da vontade de poder pois somente com conflito se tem a busca por mais poder Se a vontade de poder estaacute em tudo entatildeo tudo tambeacutem eacute luta tal como pensou Heraacuteclito E com isso se deve notar uma influecircncia do filoacutesofo grego em Nietzsche tal como observou Paul van Tongeren ldquoO fato de que tudo eacute vontade de poder traz consigo a noccedilatildeo de que nessa perspectiva tudo eacute compreendido a partir de tal combate No mesmo contexto desse tema do combate novamente se mostra a influecircncia de Heraacuteclitordquo (TONGEREN 2012 p225)

Mostramos aqui como a vontade de poder eacute funccedilatildeo do ser orgacircnico pela luta como jaacute destacamos a vontade de poder natildeo estaacute apenas no ser orgacircnico mas tambeacutem no inorgacircnico como mostramos isso no fragmento poacutestumo (34 [247] 1885) A vontade de poder estaacute no mundo em sua totalidade e numa dinacircmica de forccedila que o aproxima de Heraacuteclito por conta da luta Eacute o que pretendo demonstrar agora para depois de verificar essa aproximaccedilatildeo entre Nietzsche e Heraacuteclito notar aspectos ontoloacutegicos que o aproxima mais do pensador grego e se afasta da interpretaccedilatildeo de Heidegger sobre a vontade de poder como ser do ente

Newton Pereira Amusquivar Junior

221

Referecircncias bibliograacuteficas FREZZATTI Junior Wilson Antonio Nietzsche contra Darwin 2ordf ediccedilatildeo ampliada Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 HERAacuteCLITO Die Fragmente der Vorsokratiker Organizada por Hermann Diels e Walther Kranz Berlim Weidmann 1989MECA Diego Saacutenchez ldquoVontade de potecircncia e interpretaccedilatildeo como pressupostos de todo processo orgacircnicordquo in Cadernos Nietzsche no 28 p13-47 2011 MUumlLLER-LAUTER W Der Organismus als innerer Kampf Der Einfluss von Wilhem Roux auf Friedrich Nietzsche In Uumlber Werden und Wille zur Macht Nietzsche-Interpretationen I Walter de Gruyter Berlin e New York 1999NIETZSCHE F A filosofia na era traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Fernando R de Moraes Barros Satildeo Paulo Hedra 2008 _____ Assim falou Zaratustra Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011 _____ Die vorplatonischen Philosophen In Werke Gesamtausgabe Zweite Abteilung Vierter Band Hereausgegeben von Fritz Bormann Berlin New York Wlater de Guyter1995_____Digital critical edition of the complete works and letters based on the critical text by G Colli and M Montinari BerlinNew York de Gruyter 1967- edited by Paolo DrsquoIorio no site httpwwwnietzschesourceorgeKGWB Acesso em 18 Maio de 2018_____Cinco prefaacutecios para cincos livros natildeo escritos 7 Letras Rio de Janeiro 2007 ROUX Wilhelm Der Kampf der Theile im Organismus ein Beitrag zur Vervollstaumlndigung der Mechanischen Zweckmaumlssigkeitslehre Hanse Leipizg 1881 SCHOPENHAUER A O mundo como vontade e representaccedilatildeo 1ordm tomo Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 TONGEREN Paul van A moral da criacutetica de Nietzsche agrave moral estudo sobre Para aleacutem de bem e mal Traduccedilatildeo Jorge Luiz Viesenteiner Curitiba Champagnat 2012

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees

222

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees desinteressadas em Nietzsche

Rafael dos Santos Ramos1

Elementos para uma genealogia da razatildeo (praacutetica)A crenccedila em construir algum conhecimento (Erkenntniss) ou mesmo qualquer

ideia que se pretenda fixar eacute segundo Nietzsche um erro (Irrtum) necessaacuterio que desde os tempos mais primitivos permitiu agrave espeacutecie humana conservar-se e expandir-se no transcorrer histoacuterico do mundo O aspecto negativo destes erros se daacute em parte pelo modo com que os filoacutesofos da tradiccedilatildeo conceberam o homem natildeo como Nietzsche o descreve enquanto vontade de potecircncia2 (Wille zur Macht) mas sim como uma dualidade razatildeocorpo Segundo estes filoacutesofos a racionalidade caracterizaria certa distinccedilatildeo e primazia da espeacutecie em relaccedilatildeo agraves outras mas tambeacutem desempenharia um controle legiacutetimo sobre os instintos (o corpo) Para Nietzsche o corpo eacute prova do devir o absoluto fluxo das forccedilas esta afirmativa torna toda pretensatildeo humana de fixidez uma ilusatildeo (IIIusion Taumluschung)

O desenvolvimento da linguagem e da moral quando analisadas de perto expressariam minuciosamente algumas nuances de tais ilusotildees ou erros a proacutepria noccedilatildeo de consciecircncia (Bewuβtsein) eacute tambeacutem um exemplo disso Em A Gaia ciecircncia (livro I sect 10 e sect11) Nietzsche apresenta seu projeto de ldquoincorporaccedilatildeo do saberrdquo em que expliacutecita que durante a evoluccedilatildeo e a histoacuteria incorporamos erros fundamentais em nossa cogniccedilatildeo

Por acreditarem jaacute terem a consciecircncia os homens natildeo se empenharam em adquiri-la ndash e ainda hoje natildeo eacute diferente A tarefa de incorporar o saber e torna-lo instintivo eacute ainda inteiramente nova apenas comeccedila a despontar para o olho humano dificilmente perceptiacutevel ndash uma tarefa vista apenas por aqueles que entenderam que ateacute hoje foram incorporados somente os nossos erros e que toda nossa consciecircncia diz respeito a erros (NIETZSCHE 2001 pg 63)

A noccedilatildeo nietzschiana de erro designa aquilo que o autor entende por conhecimento No entanto por hora eacute importante destacar que as representaccedilotildees ldquoerrosrdquo (como exemplo do conteuacutedo de nossa consciecircncia descrito acima por Nietzsche) tiveram a utilidade de

1 Mestrando no PPGFIL pela Universidade Federal de Pelotas2 Esta expressatildeo natildeo pode ser concebida como mera unidade ou essecircncia mas enquanto multiplicidade de forccedilas que a

todo tempo se reconfiguram no fluxo do eterno vir a ser eacute forccedila que faz nas palavras de Marton ldquoQualidade de todo acontecer ela diz respeito ao efetivar-se das forccedilas Mais proacuteximo da archeacute dos preacute-socraacuteticos que daacute entelecheacuteia de Aristoacuteteles o conceito nietzschiano de vontade de potecircncia constitui um dos principais pontos de ruptura em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo filosoacuteficardquo (Marton 2016 pg 425)

Rafael dos Santos Ramos

223

conservaccedilatildeo e expansatildeo da vida Neste sentido podemos afirmar que tais erros acenam para uma perspectiva positiva dos axiomas que se pretendiam absolutos (a fixidez de uma ideia ndash a ldquoverdaderdquo por exemplo)

Mas por outro lado em uma perspectiva negativa o engendramento destas ideias fixas em certo momento histoacuterico teriam contribuiacutedo para que o humano negasse aquela afirmativa que o potildee no mesmo status de todos os outros seres vivos ou seja a confianccedila em certos axiomas (erros) construiacutedos pelos proacuteprios humanos no transcorrer histoacuterico do mundo teriam contribuiacutedo para a negaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo que faz Nietzsche a saber de que a uacutenica realidade do humano eacute o corpo com suas pulsotildees organizadas hierarquicamente obedecendo assim a dinacircmica da vontade da potecircncia ndash esta deve ser concebida nas dimensotildees tanto psicoloacutegica quanto fisioloacutegica (SALANSKIS 2016 p159)

Em Aleacutem do Bem e do mal sect 23 Nietzsche funde a psicologia e fisiologia em fisiopsicologia (Physio-Psychologie) e nesta acepccedilatildeo o corpo se comparado agrave mera introspecccedilatildeo ofereceria certo privileacutegio metodoloacutegico para uma anaacutelise filosoacutefica Segundo essa perspectiva (fisiopsicoloacutegica) o corpo eacute descrito enquanto uma multiplicidade de almas que em suas relaccedilotildees de mando e obediecircncia teriam como criteacuterio de organizaccedilatildeo as condiccedilotildees que permitissem a manutenccedilatildeo e expansatildeo da vida Estas novas nuances satildeo de extrema relevacircncia para genealogia nietzschiana e seu projeto de cultivo (SALANSKIS 2016 p 160) em que concebe certa noccedilatildeo de indiviacuteduo cujo o conceito de razatildeo dever-se-ia investigar frente agrave dinacircmica da vontade de potecircncia

Em seu Assim Falou Zaratustra (Dos desprezadores do corpo sect 5 sect 6) Nietzsche menciona duas dimensotildees em se tratando do conceito de razatildeo pois o corpo seria a grande razatildeo e a outra chamada de pequena razatildeo

O corpo eacute uma grande razatildeo uma multiplicidade com um soacute sentido uma guerra e uma paz um rebanho e um pastorInstrumento de teu corpo eacute tambeacutem tua pequena razatildeo que chamas de ldquoespiacuteritordquo meu irmatildeo um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razatildeoldquoEurdquo dizes tu e tens orgulho desta palavra A coisa maior poreacutem em que natildeo queres crer ndash eacute teu corpo e sua grande razatildeo essa natildeo diz Eu mas faz EuO que o sentido sente o que o espiacuterito conhece jamais tem fim em si mesmo Mas sentido e espiacuterito querem te convencer de que satildeo o fim de todas as coisas tatildeo vaidosos satildeo eles (NIETZSCHE 2011 pg 35)

Esta ldquopequena razatildeordquo forjada pela tradiccedilatildeo natildeo seria mais que um instrumento do corpo (LIMA 2016 p 352) Assim destaca-se que qualquer significaccedilatildeo atribuiacuteda ao corpo (Leib) eacute tambeacutem mera ilusatildeo metodoloacutegica Segundo Nietzsche a confusatildeo em tornar tal ilusatildeo numa certeza (Gewissheit) teve seu aacutepice na modernidade com filosofia cartesiana especialmente na concepccedilatildeo dogmaacutetica do ldquoeurdquo como uma unidade distinta e governante do corpo3

Na Genealogia da Moral (segunda dissertaccedilatildeo sect1 e sect2) Nietzsche remete agrave Aurora (livro I sect9) obra em que desenvolve o conceito de ldquoeticidade do costumerdquo (Sittlichkeit der

3 Marton comenta sobre o pensamento nietzschiano acerca do ldquoeurdquo em seu texto Do dilaceramento do sujeito agrave plenitude dionisiacuteaca ldquoAo contraacuterio do que se supotildee o eu natildeo comanda o corpo mas dele decorre natildeo executa as accedilotildees mas se constitui enquanto lsquoefeitorsquo delas Natildeo se trata pois de inverter a relaccedilatildeo tradicionalmente estabelecida entre corpo e alma mas de mostrar que o homem eacute lsquotodo corpo e nada aleacutem dissorsquo ()rdquo (MARTON 2009 pg 55)

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees

224

Sitte) supondo que desde os tempos mais primitivos as relaccedilotildees de mando e obediecircncia bem como o engendramento de valores e normas no transcorrer civilizatoacuterio fizeram o indiviacuteduo sofrer sacrificar-se e assim forjou-se suas capacidades cognitivas ou ainda o desenvolvimento de suas faculdades intelectuais Neste iacutenterim parece-nos necessaacuterio aprofundar e expor minimamente como Nietzsche concebe o conceito de razatildeo pois em se tratando de disputa teoacuterica este seja talvez o conceito mais caro da histoacuteria da filosofia

Dada a multiplicidade e certa disputa sobre o modo de conceber o conceito de razatildeo nas reflexotildees filosoacuteficas contemporacircneas eacute que julgamos demasiado pertinente o pensamento nietzschiano Seguindo nossa abordagem atentamos para a importacircncia de se interpretar a segunda dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral segunda dissertaccedilatildeo sect 3 na qual o autor destaca aspectos crueacuteis na construccedilatildeo dos valores humanos forjados a ferro e fogo Dentre eles a capacidade do homem de cumprir promessas de assenhorar-se diante de si mesmo sua responsabilidade Estes aspectos proviriam de uma necessidade primitiva pois segundo Nietzsche foi preciso superar o esquecimento (Vergessen) este uacuteltimo entendido como uma espeacutecie de forccedila orgacircnica oriunda da animalidade humana necessariamente teria de ser superado especialmente a partir da construccedilatildeo de uma memoacuteria Desta capacidade de memorizaccedilatildeo surge a responsabilidade como ldquoinstinto dominanterdquo ndash a isso o homem teria chamado de sua consciecircncia

Para demostrar parte do processo deste construto Nietzsche menciona a mais antiga e douradora psicologia da terra explicada a partir da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoGrava-se algo a fogo para que fique na memoacuteria apenas o que natildeo cessa de causar dor fica na memoacuteriardquo (NIETZSCHE 1998 pg 50) Ao argumentar sobre este diagnoacutestico destaca exemplos de puniccedilotildees que outrora eram tidas como normais (assim como castraccedilotildees esquartejamentos etc) Justamente nesta ilustraccedilatildeo sobre como formamos nossas capacidades cognitivas que percebemos certa perspectiva de Nietzsche a partir da qual podemos apontar para uma genealogia da razatildeo Notemos o que diz o autor ao refletir sobre as condiccedilotildees que permitiram a racionalidade destacando algumas imagens das puniccedilotildees (procedimentos de castigos e torturas em puacuteblico) no transcorrer histoacuterico

Com ajuda de tais imagens e procedimentos termina-se por reter na memoacuteria cinco ou seis ldquonatildeo querordquo com relaccedilatildeo aos quais se fez uma promessa a fim de viver os benefiacutecios da sociedade ndash e realmente Com ajuda dessa espeacutecie de memoacuteria chegou-se finalmente ldquoa razatildeordquo ndash Ah a razatildeo a seriedade o domiacutenio sobre os afetos toda essa coisa sombria que se chama reflexatildeo todos esses privileacutegios e adereccedilos do homem como foi alto seu preccedilo Quanto sangue e quanto horror haacute no fundo de todas as lsquocoisas boasrsquo (NIETZSCHE 1998 pg 52)

A mnemoteacutecnica como meacutetodo na ldquoincorporaccedilatildeordquo de axiomas se instituiria nas esferas juriacutedicas religiosas etc Ateacute um ponto em que nas relaccedilotildees humanas numa loacutegica credordevedor internalizar-se-ia a noccedilatildeo de ldquodiacutevidardquo Transmutando-a em sentimento de culpa (Schuld) tal sentimento (se pensado na dinacircmica da vontade de potecircncia) desembocaria numa espeacutecie de descarga interna promovendo assim a doenccedila da maacute consciecircncia (schlechtes Gewissen) Tal doenccedila explica Nietzsche (em sua primeira versatildeo) decorre do contexto das primeiras comunidades onde teriam se desdobrado inicialmente os elementos do conceito de eticidade do costume (como vimos podemos conferir em sect 9 de Aurora) mas ganha um contorno mais forte a partir das teorias de Parmecircnides e Platatildeo especialmente neste uacuteltimo buscava-se em um fora (no suprassensiacutevel) ideias fixas

Rafael dos Santos Ramos

225

(como os valores por exemplo) reivindicando assim um lugar para a verdade (Wahrheit) no acircmbito da loacutegica (Logik) esta tentativa de superar o saber miacutetico atraveacutes da filosofia destes racionalistas forjaram uma forma de conceber o mundo e se conciliariam posteriormente ao cristianismo disso surgiria uma nova apresentaccedilatildeo da ldquomaacute consciecircnciardquo na genealogia nietzschiana a saber aquela natildeo mais do homem em geral que nos primoacuterdios luta contra a sua animalidade construindo uma espeacutecie de segunda natureza4 mas sim a ldquomaacute consciecircnciardquo com a dimensatildeo do sofrimento eterno a noccedilatildeo de pecado operando em uma medida que tiraniza desagrega os impulsos (Trieb) Obviamente haacute outros caminhos a se percorrer nos textos de Nietzsche que nos permitiria concluir tambeacutem que a razatildeo estaacute intimamente ligada agrave construccedilatildeo da noccedilatildeo nietzschiana de segunda natureza e na medida em que a racionalidade eacute forjada ndash enquanto resultado de configuraccedilotildees que a proacutepria vida humana demandou diante das necessidades (manutenccedilatildeo e expansatildeo por mais potecircncia) no entanto o que apuramos ateacute aqui nos possibilita obter minimamente o estatuto da razatildeo na filosofia nietzschiana

Conhecimento enquanto o erro mais profundo Com intento de ampliar a reflexatildeo que o autor faz sobre o conceito de razatildeo

seguimos nossa abordagem na direccedilatildeo da concepccedilatildeo de conhecimento tomada por Nietzsche Pois uma vez que a razatildeo ao inveacutes de algo essencialmente dado (da categoria humana) foi construiacuteda ao longo de muito tempo ao passo em que o homem por necessidade incorporou-a ateacute um ponto em que se tornou um instinto uma espeacutecie de forccedila na multiplicidade da vontade de potecircncia que desempenha um papel instrumental muito importante (em especial sua utilidade de facilitar a vida por exemplo) a partir da noccedilatildeo de nossa capacidade em produzir ficccedilotildees regulativas

Neste sentido a razatildeo em sua gecircnese jaacute carregaria uma dimensatildeo praacutetica por necessidade e todo conhecimento teoacuterico em alguns casos chamado de puro para Nietzsche seria equivalente a ficccedilotildees regulativas (qualquer signo pretensatildeo de objetividade unidade etc) forjadas por necessidade e por isso estariam sempre passiacuteveis de novas configuraccedilotildees (a proacutepria troca de paradigma cientifico na histoacuteria do mundo seria prova desta afirmativa) Com o que vimos ateacute aqui podemos passar a desenvolver elementos que busquem corroborar a tese de que em Nietzsche o conhecimento tem sua gecircnese com base na moral uma vez que os seres humanos desenvolveram suas capacidades de conhecimento a partir das relaccedilotildees interpessoais sempre condicionados por lutas de forccedilas que buscam em sua singularidade manter e expandir o seu poder

Na tradiccedilatildeo filosoacutefica especialmente em Kant em sua obra Criacutetica da razatildeo pura a razatildeo operaria sob diferentes interesses e nisso eacute marcado o ponto de ruptura entre o uso da razatildeo pura e o uso da razatildeo praacutetica Na primeira com o interesse de estabelecer as condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento vaacutelido o que para Kant soacute eacute possiacutevel se dar na esfera dos fenocircmenos em que o conceito de causa eacute constitutivo do conhecimento Jaacute em seu uso praacutetico a razatildeo lidaria com princiacutepios regulativos dos quais ela natildeo seria

4 Haacute muitos autores que aprofundam uma importante discussatildeo acerca do naturalismo em Nietzsche podemos desta-car a leitura de cunho cientificista de B Leiter em seu O naturalismo de Nietzsche reconsiderado In Cadernos Niet-zsche USP Satildeo Paulo 29 (2011) pag 77-126 Bem como tambeacutem a leitura mais abrangente de R Schacht em seu O naturalismo de Nietzsche In Cadernos Nietzsche USP Satildeo Paulo v I n 29 (2011) pp 45) este uacuteltimo reivindica outras dimensotildees como a cultura a histoacuteria etc A nossa perspectiva de abordagem concorda de certa forma com as teses de Schacht mas chamamos atenccedilatildeo a noccedilatildeo de segunda natureza levando em conta as formas mais primitivas de conhecimento ou seja a construccedilatildeo da linguagem e posteriormente os efeitos de sua seduccedilatildeo (especialmente ao analisar a primeira forma de manifestaccedilatildeo da maacute consciecircncia exposta em Genealogia da moral)

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees

226

legitimada a conferir alguma intuiccedilatildeo via intelecto aos objetos que ela postula Ou seja pode-se interpretar nos escritos kantianos que o interesse (ou uso) praacutetico da razatildeo se daacute na dimensatildeo em que Kant suprime o conhecimento para dar espaccedilo aos erros (crenccedilas que natildeo podem ser verificadas via conhecimento) Neste acircmbito os postulados (ou as Ideias) da razatildeo enquanto princiacutepios regulativos tais como Deus a imortalidade da alma o mundo ou a liberdade seriam (se comparado ao que se pode conhecer) erros da razatildeo (entendidos como impossibilidade de conferir conhecimento a certos objetos) Isto Kant chamou de nocircumenos isto eacute objetos os quais natildeo podemos conhecer No entanto enquanto exercendo certa legitimidade que a razatildeo atribui aos erros estes postulados pela razatildeo podem ser pensados5 e por conseguinte funcionariam como princiacutepios regulativos

Esta marca kantiana que expressa a distinccedilatildeo daquilo que podemos conhecer daquilo que podemos pensar deve nos auxiliar se comparada agrave concepccedilatildeo nietzschiana sobre o que chamamos aqui de ficccedilotildees regulativas (ou ainda conhecimento enquanto ldquoo erro mais profundordquo) pois como jaacute afirmamos acima Nietzsche nega a possibilidade de algum tipo de conhecimento totalmente puro que seja isento das demandas e das valoraccedilotildees morais6

A criacutetica nietzschiana ao conhecimento eacute tambeacutem uma criacutetica agrave moral pois a forma segundo a qual o ser humano desenvolveu sua linguagem (construccedilatildeo dos signos crenccedilas baacutesicas dar unidade agrave multiplicidade dos sentidos atraveacutes de signos palavras etc) e a proacutepria justificaccedilatildeo e busca de fundamentaccedilatildeo da verdade derivariam do acircmbito da valoraccedilatildeo moral Assim a distinccedilatildeo entre interesses da razatildeo que se pode evidenciar na filosofia de Kant (enquanto uso praacutetico e uso puro) em Nietzsche natildeo procede pois ao operar sobre as regras da linguagem e concluir a partir de conceitos (e categorias) que visam estancar o fluxo do vir a ser (werden) dando unidade ao caos da multiplicidade obtida por nossos sentidos pode-se afirmar que a razatildeo apenas ofereceria adequaccedilatildeo discursiva a um interesse maior do que ela poderia desenvolver por conta proacutepria Ou seja enquanto uma forccedila na multiplicidade da vontade de potecircncia a razatildeo teria uma atuaccedilatildeo a partir de erros que estatildeo sempre passiacuteveis de novas configuraccedilotildees Assim a razatildeo mesmo quando estivesse operando o mais abstratamente estaria no fundo atuando sob um interesse praacutetico a saber aquele tendo em vista estar conforme os interesses de uma determinada perspectiva interpretativa que pode afirmar (tipo forte) ou negar (tipo fraco) certa dinacircmica no fluxo de forccedilas do proacuteprio corpo (vida)

Eacute importante mencionar o projeto de transvaloraccedilatildeo de todos os valores pois a moral e o conhecimento (em todo transcorrer histoacuterico do mundo) teriam sido para Nietzsche superestimados como soluccedilotildees dos problemas existenciais A ponto de seus valores enquanto ficccedilotildees que regulariam as diferentes perspectivas interpretativas de avaliaccedilotildees (e em contextos especiacuteficos) em algum momento tornaram-se ideias absolutas ldquoiacutedolosrdquo Ou seja metodologicamente o homem inventou uma mentira para poder obter

5 Maiores desdobramentos sobre a comparaccedilatildeo entre Kant e Nietzsche eacute possiacutevel explorar o comentaacuterio de LIMA Maacutercio Joseacute Silveira Em Funccedilotildees regulativas em Kant e Nietzsche

6 Atenuando a isso destacamos o comentaacuterio de Corbanezi ldquo() Nenhum conhecimento repousa em uma necessi-dade puramente teoacuterica e abstrata isolada de interesses praacuteticos revela-se antes funesta a pretensa distinccedilatildeo entre teoria e praacutetica conforme ressaltam anotaccedilotildees poacutestumas de 1888 () Impossiacutevel em um mundo que vem a ser o assim chamado conhecimento pressupotildee como sua condiccedilatildeo necessaacuteria um mundo fictiacutecio criado e arranjado de modo a nos aparecer como lsquocognosciacutevelrsquo Assim o conhecimento repousa na crenccedila em identidade permanecircncia igualdade e muitas outras noccedilotildees por noacutes inventadas as quais como esquemas reguladores forjam um mundo calcu-laacutevel e formulaacutevel para noacutes Da aplicaccedilatildeo dessas ficccedilotildees decorrem apenas simplificaccedilotildees e falsificaccedilotildees se satildeo muitas vezes consideradas verdades absolutas eacute porque possibilitam a conservaccedilatildeo de uma determinada espeacutecie de vida Eis contudo o maior erro tomar aquele mundo de ilusotildees como um mundo verdadeiro e atribuir-lhe valor supremordquo (CORBANEZI 2016 pag 152153)

Rafael dos Santos Ramos

227

uma verdade algo fixo absoluto universal tais invenccedilotildees (fictiacutecias) teriam a utilidade de trazer objetividade para a manutenccedilatildeo e constacircncia da vida Mas o conhecimento eacute um erro Nas palavras de Nietzsche ldquoViver eacute a condiccedilatildeo para conhecer Errar eacute a condiccedilatildeo para viver e na verdade errar profundamente Conhecer eacute o erro que natildeo elimina o erro Ele natildeo eacute nada de amargo Temos que amar e tomar conta do erro ele eacute a origem do conhecimentordquo (NIETZSCHE 1881 FP MIII1 11[162])

Ficccedilotildees regulativas e a dinacircmica das accedilotildees desinteressadas Depois de explorar minimamente a compreensatildeo que Nietzsche faz do conceito

de razatildeo e de porte de sua concepccedilatildeo de erro podemos dar um passo adiante e buscar circunscrever uma anaacutelise de cunho moral acerca do que o autor pensou das accedilotildees desinteressadas Assim podemos mostrar que a noccedilatildeo de altruiacutesmo pode ser entendida tambeacutem como ficccedilatildeo regulativa7

Ao refletir sobre as accedilotildees desinteressadas (o conceito de altruiacutesmo) Nietzsche se distancia de suas primeiras referecircncias (em especial Schopenhauer e Wagner) e passa analisar o tema junto a Paul Reacutee Este uacuteltimo propotildee uma explicaccedilatildeo naturalista sobre os sentimentos morais Em 1875 Reacutee publica sua obra Observaccedilotildees Psicoloacutegicas em 1877 lanccedila A origem dos sentimentos morais Aleacutem de toda parceria e certa influecircncia reciacuteproca que tiveram em suas obras durante esse periacuteodo se distinguiam especificamente em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de altruiacutesmo pois de modo resumido podemos dizer que para Reacutee o bom eacute o natildeo egoiacutesta enquanto o mau eacute o egoiacutesta Sentimentos e accedilotildees natildeo egoiacutestas satildeo o que conta nas relaccedilotildees Assim Reacutee defende que somente accedilotildees altruiacutestas satildeo boas e somente accedilotildees egoiacutestas satildeo maacutes

Se para Nietzsche todas as accedilotildees podem ser interpretadas a partir da dinacircmica da vontade de potecircncia nesta perspectiva natildeo haacute desinteresse dos indiviacuteduos em seus relacionamentos mesmo no acircmbito moral Em 1878 em HDH I (Capiacutetulo segundo seccedilatildeo 57 ndash A moral como auto divisatildeo do homem) jaacute se nota certa impossibilidade de algum agir desinteressado nas relaccedilotildees interpessoais Neste contexto Nietzsche passa a exemplificar alguns modos de como o humano se autodivide a partir do fenocircmeno moral demonstrando quatro exemplos em que podemos perceber o conceito de altruiacutesmo (ou as accedilotildees desinteressadas) nos dilemas da vida praacutetica (1) o autor que deseja ser superado (auto desinteresse) em relaccedilatildeo a tema em que desenvolve (2) a jovem apaixonada que pretende testar a fidelidade de seu companheiro (3) a entrega da vida do soldado (por ele mesmo) pela relevacircncia de pertencimento em sua ldquopaacutetriardquo e no uacuteltimo exemplo (a nosso entender o mais chocante) (4) a privaccedilatildeo de algumas necessidades da matildee em relaccedilatildeo a seu filho ou seja nem mesmo o interesse materno escaparia de um tipo de auto interesse ndash de egoiacutesmo Em cada um destes exemplos o autor nos remete diretamente a noccedilatildeo de altruiacutesmo e a seguir problematiza com as seguintes questotildees

() mdash Mas seratildeo todos esses estados altruiacutestas Seratildeo milagres esses atos da moral jaacute que na expressatildeo de Schopenhauer satildeo ldquoimpossiacuteveis e contudo reaisrdquo Natildeo estaacute claro que em todos esses casos o homem tem

7 Tais ficccedilotildees regulativas (altruiacutesmo compaixatildeo etc) tambeacutem satildeo caracterizadas por Nietzsche como sintoma da deacuteca-dence fisioloacutegica pois na perspectiva nietzschiana nossas accedilotildees desinteressadas em uacuteltima instacircncia se aportariam em uma justificativa que se caracterizaria em uma dimensatildeo esteacutetica se comparada a um embasamento eacutetico Ou seja tal justificaccedilatildeo das accedilotildees desinteressadas decorreria de uma espeacutecie de vaidade que dependendo da perspectiva in-terpretativa revelaria tambeacutem um tipo de egoiacutesmo especifico (como veremos adiante) Tratar do tema da deacutecadence fisioloacutegica demandaria outro trabalho ainda maior que este no entanto fica o registro da extensatildeo abrangente acerca do termo ficccedilatildeo regulativa

Acerca de uma articulaccedilatildeo entre erro e accedilotildees

228

mais amor a algo de si um pensamento um anseio um produto do que a algo diferente de si e que ele entatildeo divide seu ser sacrificando uma parte agrave outra Seraacute algo essencialmente distinto quando um homem cabeccedila-dura diz ldquoPrefiro ser morto com um tiro a me afastar um passo do caminho desse homemrdquo () (NIETZSCHE 2000 pag 3637)

Assim como conceber que o conhecimento enquanto crenccedilas verdadeira e justificada eacute mais uma das ficccedilotildees que estatildeo assentadas em erros e portanto precisam de certa desmistificaccedilatildeo requer-se tambeacutem ao conceito de egoiacutesmo certo desvelamento ou seja concebecirc-lo como ldquomaurdquo (como fazem as principais correntes teoacutericas em filosofia moral) Segundo Nietzsche iraacute depender de uma determinada perspectiva (forte ou fraca) que interpreta e avalia pois tal perspectiva pode ser do tipo que afirme a vontade de potecircncia criando certa harmonia na integridade dos impulsos ou aquela que ao contraacuterio desagregaria seus impulsos Ainda sem o escopo de sua teoria das forccedilas e no contexto de Humano demasiado humano I (Capiacutetulo segundo seccedilatildeo 101 ndash Natildeo julgueis) Nietzsche afirma

() ndash O egoiacutesmo natildeo eacute mau porque a ideia de ldquoproacuteximordquo ndash a palavra eacute de origem cristatilde e nem corresponde agrave verdade ndash eacute muito fraca em noacutes e nos sentimos em relaccedilatildeo a ele quase tatildeo livres e irresponsaacuteveis quanto em relaccedilatildeo a pedras e plantas Saber que o outro sofre eacute algo que se aprende e que nunca pode ser apreendido inteiramente (NIETZSCHE 2000 pg 77)

Notemos a impossibilidade de agarrar ou apreender (pelo menos inteiramente) algo no fluxo eterno do vir a ser

Se inicialmente constatamos essas mesmas condiccedilotildees humanas acerca do conhecimento (ao qual eacute possiacutevel questionar a objetividade de tudo que se pretenda como fixo) agora tambeacutem nos aparece o mesmo problema (ou seja se eacute possiacutevel apreender o sofrimento de outrem) expresso na esfera moral

Consideraccedilotildees finaisPor hora demonstramos que a razatildeo (ou a racionalidade) em Nietzsche se comparada

a perspectiva da filosofia moderna (especialmente com o criticismo kantiano) opera sempre em perspectiva praacutetica ou seja ateacute em nossas abstraccedilotildees mais complexas a racionalidade se daacute a partir de conflitos de forccedilas que com ela concorrem Ademais destacamos a impossibilidade de agarrar ou apreender (pelo menos inteiramente) algo no fluxo eterno do vir a ser pois se inicialmente constatemos essas condiccedilotildees humanas acerca do conhecimento (cuja eacute possiacutevel questionar a objetividade de tudo que se pretenda como fixo) por uacuteltimo buscamos demonstrar o mesmo problema expresso na esfera moral ou seja de que natildeo eacute possiacutevel aprender o sofrimento de outrem Com intento de desenvolver certa propedecircutica para pensar ndash como eacute uma norma na concepccedilatildeo de Nietzsche transitamos ateacute aqui por abordagens de cunho epistecircmico e moral Como resultado dentre outras constataccedilotildees demonstramos que para Nietzsche se natildeo podemos escapar de nossas ficccedilotildees regulativas que nada tem de puro tambeacutem estamos condicionados a certo egoiacutesmo (oriundo de certa tipificaccedilatildeo) e que pode afirmar ou negar a vida

Rafael dos Santos Ramos

229

Referecircncias bibliograacuteficasCORBANEZI Eder Verbetesconhecimento (BewuBtsein) IN Dicionaacuterio Nietzsche [editora responsaacutevel Scarlett Marton] ndash Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 ndash (Sendas amp Veredas) [154-156]KANT Emmanuel Criacutetica da razatildeo pura Traduccedilatildeo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujatildeo 5 Ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulberkian 2001 680p_____ Criacutetica da razatildeo praacutetica Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Valeacuterio Rohden Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 620 p LIMA Maacutercio Joseacute Silveira Funccedilotildees regulativas em Kant e Nietzsche Kriterion Belo Horizonte nordm 128 p 367-382 Dez2013_____ Verbetesrazatildeo (Vernunft) IN Dicionaacuterio Nietzsche [editora responsaacutevel Scarlett Marton] ndash Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 ndash (Sendas amp Veredas) [352-354]LEITER Brian O naturalismo de Nietzsche reconsiderado Traduccedilatildeo de Oscar Augusto Rocha Santos In Cadernos Nietzsche USP Satildeo Paulo 29 (2011) pag 77-126MARTON Scarlett Do dilaceramento do sujeito agrave plenitude dionisiacuteaca IN Cadernos Nietzsche v 25 p 53-81 2009_____ Verbetesvontade de potecircncia (Wille zur Macht) IN Dicionaacuterio Nietzsche [editora responsaacutevel Scarlett Marton] ndash Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 ndash (Sendas amp Veredas) [pag 423-425]NIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza Satildeo Paulo Cia das Letras 2001_____ Aleacutem do bem e do mal preluacutedio a uma filosofia do futuro Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza _ Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005_____ Assim Falou Zaratustra traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza Satildeo Paulo Cia das Letras 1998_____ Aurora traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza Satildeo Paulo Cia das Letras 2005_____ Fragmentos poacutestumos (1875-1882) (Vol II) Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego Saacutenches Meca Madrid Editorial Tecnos (Grupo Anaya S A) 2008 _____ Genealogia da moral uma polecircmica Friedrich Nietzsche traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Ceacutesar de Souza ndash Satildeo Paulo Companhia das Letras 1998_____ Humano demasiado humano um livro para espiacuteritos livres Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio Paulo Cesar de Souza ndash Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000REacuteE Paul Basic writings Urbana University of Illinois Press 2003_____ Ursprung der moralischenEmpfindungen Chemnitz Schmeitzner 1877 ROHDEN V Interesse da razatildeo e liberdade Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1981SALANSKIS Emmanuel VerbetesCorpo (Leib) IN Dicionaacuterio Nietzsche [editora responsaacutevel Scarlett Marton] ndash Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016 ndash (Sendas amp Veredas) [pag 159-160]SCHACHT Richard O naturalismo de Nietzsche Traduccedilatildeo de Oliacutempio Pimenta In Cadernos Nietzsche USP Satildeo Paulo v I n 29 (2011) pp 45

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

230

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica de Nietzsche ao cristianismo

Rafael Gonccedilalves da Silveira1

1 IntroduccedilatildeoO escritor e pensador brasileiro Maacuterio Ferreira dos Santos publicou em menos de

quinze anos a coleccedilatildeo Enciclopeacutedia de Ciecircncias Filosoacuteficas e Sociais que abrange cerca de 45 volumes incluindo obras de caraacuteter teoacuterico e tiacutetulos de caraacuteter histoacuterico-criacutetico Seu modo particular de filosofar eacute apresentado na obra Filosofia Concreta publicada em 1957 Para o autor a filosofia possui um genuiacuteno valor epistemoloacutegico seja na investigaccedilatildeo e na sistematizaccedilatildeo seja na anaacutelise e na siacutentese de temas expositivos e polecircmicos Ele apresentou uma nova metodologia para guiar o estudante no campo do saber filosoacutefico e social na sua obra Meacutetodos Loacutegicos e Dialeacuteticos publicada em 1959

Aleacutem de filosofo e advogado Maacuterio Ferreira dos Santos dedicou-se a traduccedilatildeo traduzindo para o portuguecircs diversos filoacutesofos tais como Pitaacutegoras Aristoacuteteles Nietzsche Kant Pascal Tomaacutes de Aquino e Duns Scot De Nietzsche traduziu direto do alematildeo as obras Aurora Assim Falava Zaratustra Aleacutem do Bem e do Mal e Vontade de Potecircncia2

O presente artigo busca analisar as criacuteticas de Nietzsche ao cristianismo pela oacutetica de Maacuterio Ferreira em seu ensaio O homem que foi um campo de batalha publicado em 1945 como um prefaacutecio para sua traduccedilatildeo da obra Vontade de Potecircncia Apoacutes analisar a interpretaccedilatildeo de Maacuterio neste ensaio passamos a analisar as criacuteticas do filosofo alematildeo em suas obras criacuteticas principalmente O Anticristo livro em que o autor busca operar sua transvaloraccedilatildeo de todos os valores Destacamos a figura do sacerdote como central para estabelecer um viacutenculo entre a criacutetica de Nietzsche ao cristianismo e a interpretaccedilatildeo de Maacuterio Ferreira dos Santos

2 A interpretaccedilatildeo de Maacuterio Ferreira dos Santos Para Maacuterio Ferreira dos Santos o primeiro homem que encontrou uma norma geral

que definiu um determinado grupo de fenocircmenos sentiu-se como um Deus o primeiro Deus Para o autor a ldquoideia de Deusrdquo soacute nasce onde os poucos atingem um grau que permita estabelecer regras normativas leis gerais Para ele essas ideias jaacute seriam a tentativa

1 Mestrando em Ciecircncias Sociais pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel)2 A obra Vontade de Potecircncia na verdade natildeo pertence a Nietzsche pois o autor teria abandonado o projeto de es-

crever tal livro Contudo ela foi publicada com sendo do autor alematildeo devido a uma deturpaccedilatildeo feita por sua irmatilde Elisabeth Nietzsche que devido agrave sauacutede fraca do filosofo estava responsaacutevel pelos arquivos nietzschianos Somente com a ediccedilatildeo criacutetica das obras de Nietzsche feita por Giorgio Colli e Mazzino Montinari entre 1967-1978 eacute que foi possiacutevel ter acesso aos livros realmente escritos pelo autor

Rafael Gonccedilalves da Silveira

231

de estabelecer uma lei universal Ele ressalta no entanto que isto natildeo implica em uma refutaccedilatildeo de Deus Conforme ele diz

O que desconhecemos natildeo estaacute refutado pela ignoracircncia A humanidade ainda natildeo existe como totalidade ocircntica ( jaacute era o pensamento de Gothe de Nietzsche etc ) Conceber que na razatildeo estava o tiacutetulo o atributo das gloacuterias do homem foi uma ingenuidade uma longa e milenar ingenuidade de filoacutesofos (SANTOS 1945 p45)

Em parte isso contrasta com o que Nietzsche pensa sobre Deus e religiatildeo Em Nietzsche pessoa sinteacutetica e coletivamente alienada de cada povo todo Deus acumularia sob a perspectiva da vontade de potecircncia o inteiro processo de conformaccedilatildeo dos impulsos e forccedilas afetivas das quais se seguiram quais sintomas os valores religiosamente instituiacutedos e esposados por cada povo Segundo o filosofo alematildeo

Mesmo com um miacutenimo de religiosidade no peito um Deus que no instante certo cura um resfriado ou que nos faz subir na carruagem quando comeccedila uma tempestade deveria nos parecer tatildeo absurdo que teria de ser eliminado ainda que existisse um Deus como domeacutestico como carteiro como calendarista ndash no fundo uma palavra para designar o mais estuacutepido tipo de acaso ( NIETZSCHE 2016 p 63 )

Maacuterio Ferreira daacute um tom existencial sobre a relaccedilatildeo do homem com Deus Diz ele ldquoSe o homem tende para o infinito eacute porque precisamente eacute finito Aiacute estaacute um dos sentidos dos traacutegicos da vida Esse desejo de eternidade e da ldquoinfinituderdquo eacute um ldquopathosrdquo do desejo de Deus porque ele eacute o desejado absoluto (SANTOS 1945 p 45 ) Maacuterio fala entatildeo da finitude humana e do desejo do ldquoinfinitordquo Fala em tempo e eternidade Para o autor nesse ponto a ideia de Deus eacute irrefutaacutevel pois ldquonatildeo se refuta o ldquoinfinitamenterdquo grande com a alegaccedilatildeo do ldquoinfinitamenterdquo pequeno nem se mede a concepccedilatildeo de Deus por escalas racionalistasrdquo (SANTOS 1945 p 45)

Maacuterio chama a atenccedilatildeo para o modo como os homens e os filoacutesofos quiseram medir Deus por escolas racionalistas buscar racionalizar Deus quando na verdade Deus eacute um sentimento para ser vivido ndash sobre isso vemos o que diz Nietzsche na obra O Anticristo sobre um ldquocristianismo autecircntico ser possiacutevel ldquoo cristianismo autecircntico original sempre seraacute possiacutevel Natildeo uma feacute mas um fazer sobretudo um natildeo-fazer-muitas-coisas um ser de outro modordquo(NIETZSCHE 2016 p 44) Nesse ponto da interpretaccedilatildeo ferreriana ambos os autores estatildeo de acordo

Ainda sobre o aspecto da concepccedilatildeo racionalista de Deus para o autor brasileiro ldquoa mais satilde ideia coloca-o no inatingiacutevel para o homem como homem daiacute a interpretabilidade por que refuta eacute aplicar medidas humanas (SANTOS 1945 p45) Para Maacuterio chama-lo de absoluto eacute negaacute-lo Chamaacute-lo de incondicionado tambeacutem eacute negaacute-lo O absoluto natildeo condiciona porque soacute o condicionado condiciona Definiacute-lo eacute sempre negaacute-lo Assim ldquoa afirmaccedilatildeo de Deus pertence agrave feacute e somente a feacute Tudo o mais eacute tateamento ensaiordquo (SANTOS 1945 p 45-46 )

Entatildeo em Maacuterio eacute por isso que toda e qualquer ideia que de Deus faccedilamos se refutada natildeo o refuta mas sim agrave ideia Os homens natildeo podem ldquocompreender lsquocom palavrasrsquo o que transcende a tudo mas pode lsquovive-lorsquo Deus eacute assim um lsquosentimentorsquo para ser lsquovividorsquo natildeo uma ideia para ser pensada nem para ser medida (SANTOS 1945 p 46) O autor

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

232

aponta que para o crente a ldquoinfinituderdquo dos espaccedilos coacutesmicos eacute um ldquolimiterdquo agrave sua crenccedila e criar-lhe o ponto torturado de uma duacutevida Para o natildeo-crente essa mesma ldquoinfinituderdquo eacute uma fronteira de sua duacutevida na possibilidade de Deus Para Maacuterio Ferreira dos Santos eacute na concepccedilatildeo do ldquoinfinitordquo do cosmos que os limites se encontram tanto dos crentes como dos natildeo crentes Para ele ldquoos atributos humanos da ideia de Deus eacute que levaram os filoacutesofos a negaacute-lo (SANTOS 1945 p 46)

Para Maacuterio a arma de defesa dos crentes ndash a razatildeo ndash serviu afinal de arma de ataque E nessa anaacutelise de Maacuterio encontramos aquilo que Nietzsche chamou de vontade de verdade3 E sobre esta razatildeo fixamos isso ao analisar a obra nietzschiana pois nos encontramos em face de contradiccedilotildees que se excluem Para Maacuterio

Nietzsche proclama-se ora ateu ora teiacutesta Mas a conclusatildeo final eacute Nietzsche apenas refutara a ideia do Deus moral do Deus antropomoacuterfico ldquopreocupadordquo com as coisas humanas do Deus caprichoso para quem se construiu uma ciecircncia e para quem se estabeleceram limites de accedilatildeo criando-se-lhe racionalmente aprioriacutesticos atributos ldquoinfinitosrdquo (SANTOS 1945 p 46)

Para Maacuterio esse Deus tornou-se afinal o prisioneiro de seus sacerdotes que lhe negavam e restringiam direitos Propriamente aceitando um ldquoperspectivismo traacutegicordquo do mundo compreendendo os limites do homem negando a concepccedilatildeo ocircntica aparentemente teria negado a Deus Em Maacuterio Nietzsche no entanto desvestindo o mundo dos seus acidentes e atributos criava a divindade Seu ideal de super homem tem algo desse anelo Nietzsche natildeo era ateu no sentido vasto Negava o Deus que os homens haviam criado agrave imagem de um Deus falso refutado

Para Maacuterio Deus eacute uma resposta que o homem daacute a um ponto de interrogaccedilatildeo e aqui ele faz referecircncia a Nietzsche As perguntas irrespondiacuteveis da ciecircncia e da filosofia nele ficam postadas e ateacute o homem coloca a imagem projetada de si mesmo num grande ser que teria todas as qualidades e atributos humanos ampliados aleacutem dos seus limites Deus eacute assim um ideal de super- humanidade Um ideal grosseiro mas ingecircnuo sincero vindo dos seus anseios naturais considera o autor afirmando que para Nietzsche era digna de respeito tal projeccedilatildeo humana Deus para Nietzsche de acordo com a interpretaccedilatildeo de Maacuterio Ferreira era mais uma estratificaccedilatildeo da vontade humana de potecircncia Mas nem por isso o filosofo alematildeo o negava apenas deixava esse problema para depois Para Maacuterio Ferreira o homem sempre teraacute um problema ao qual chamaraacute Deus Deus seraacute sempre as perguntas natildeo respondidas Assim para o autor

o ateiacutesmo de Nietzsche ia agrave negaccedilatildeo do sentido vulgar do sentido sacerdotal de Deus essa concepccedilatildeo humana ldquoridiacuteculardquo que faz de Deus um monstro de sabedoria obra dos filoacutesofos que tem a pretensatildeo que filosofar eacute um atributo divino Nietzsche era contra o Deus todo bondade ou todo justiccedila ( SANTOS 1945 p47)

Estudando-lhe os atributos que predominavam em determinadas eacutepocas e que eram projeccedilotildees coagulaccedilotildees dos desejos maiores do homem A criacutetica nietzschiana ao 3 Nietzsche apesar de caracterizar a vontade de verdade de maneira negativa ele confere a essa noccedilatildeo um papel

fundamental na histoacuteria da mentalidade religiosa da civilizaccedilatildeo ocidental Isso porque o filoacutesofo defende a seguinte relaccedilatildeo loacutegica entre vontade de verdade e ateiacutesmo o ideal de praticidade intelectual que constitui a vontade conduzi-ria necessariamente agrave negaccedilatildeo da ldquomais longa mentirardquo do ocidente isto eacute a mesma mentira da existecircncia de Deusrdquo (NETO SET de Melo 2016p 427)

Rafael Gonccedilalves da Silveira

233

cristianismo fundamentava-se nos seguintes pontos durante dois mil anos o cristianismo havia explorado um sentimento de ausecircncia Para Maacuterio

O cristianismo ldquoprometera a felicidade que faltava agraves vastas massas sociais da eacutepoca mas a prometera para um futuro que sempre afirmou proacuteximo coletivo quando viesse o juiacutezo final momento alucinante da vinganccedila dos escravos sobre os seus opressores O cristianismo de iniacutecio fora isso Prometeu um mundo o ceacuteu ndash um lugar de felicidade perene eterna onde os justos apreciaram os requintes de torturas que os democircnios usariam para puniccedilatildeo dos pecadores os ricos os poderosos os opressores (SANTOS 1945 p 47)

Durante dois mil anos o cristianismo explorou essa acircnsia Quando percebeu que os tempos natildeo vinham e as profecias natildeo se realizavam prometeu um ceacuteu imediato a cada um apoacutes a morte depois de se processarem julgamento individual Desta forma o dia do julgamento final que seria coletivo ficava transferido para o fim dos seacuteculos Ideia do limbo ampliava-se natildeo mais no sentido primitivo anterior a Cristo como um lugar preacute-determinado onde permaneceriam as almas candidatas ao ceacuteu porque este soacute poderia ser aberto por um Deus Cristo o abriria e depois dele todos os que o seguissem e todos os que o esperaram no limbo teriam oportunidade de penetrar no ceacuteu Com essa promessa de felicidade eterna infinita na contemplaccedilatildeo de Deus felicidade inalcanccedilaacutevel na terra o cristianismo pregou o oacutedio agrave vida caluniando-a por seacuteculos Com os seacuteculos dezoito e dezenove o ateiacutesmo triunfante a destruiccedilatildeo das ideias religiosas a ldquomorte enfim das possibilidades do paraiacuteso no ceacuteurdquo o cristianismo alimentou os desejos de conquista do paraiacuteso na terra Para o brasileiro nesse sentido ldquoNietzsche vecirc as doutrinas libertaacuterias socialistas como avatares do cristianismo Os desejos de felicidade perduraram nos homens como um direito (SANTOS 1945 p) Ainda segundo Maacuterio

Entre os atuais cristatildeos haacute uma corrente que natildeo vecirc em Nietzsche um inimigo do cristianismo Realmente natildeo o foi Poucas vezes se ergueram vozes de tatildeo sincera exaltaccedilatildeo agrave obra de Cristo como a dele Nietzsche combatia mais a falta de feacute que a feacute Via os cristatildeos em regra geral falsos hipoacutecritas e embusteiros mas se admirava da feacute sincera de um homem como Pascal ou de um Satildeo Francisco de Assis Via no cristianismo virtudes profundas mas acusava os maus disciacutepulos de arrastarem-se numa forccedila de regressatildeo quando Cristo tivera um iacutempeto revolucionaacuterio Denunciava os maus cristatildeos os verdadeiro ldquo assassinos de Deusrdquo que o exploraram para em nome dele dar vazatildeo aos apetites e ambiccedilotildees (SANTOS 1945 p 49)

E se a critica de Nietzsche foi demasiadamente violenta era devido ao seu temperamento Era de sua personalidade atuar com energia quando polemizava Segundo o tradutor e filosofo ele mesmo dizia que esse estilo de accedilatildeo fazia parte de sua estrateacutegia Para o filoacutesofo

Nietzsche era ateiacutesta Mas ateiacutesta no sentido Nietzschiano Sua afirmaccedilatildeo contra a existecircncia de um Deus cingia-se agrave concepccedilatildeo estreita e imitativa antropomoacuterfica de Deus Ele dera em ldquoVontade de Potecircnciardquo uma definiccedilatildeo para os crentes Dizia ldquoAfastemos a grande bondade da ideia de Deus ndash ela eacute indigna de Deus Afastemo-nos outrossim a mais alta sabedoria ndash ela eacute a vaidade dos filoacutesofos que tem na consciecircncia a insacircnia desse monstro de sabedoria que seria Deusrdquo Pretendiam que Deus se lhes assemelhasse

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

234

tanto quanto possiacutevel Natildeo Deus a mais alta potecircncia ndash isto basta Dai resulta tudo o que resulta ndash ldquoo mundordquo (SANTOS 1945 p49)

Para o autor esse ateiacutesmo de Nietzsche ldquocombatia o Deus criado pelos racionalistas O Deus definido por atributos Nietzsche negava os atributos porque o atributo jaacute eacute um limiterdquo (SANTOS 1945 p 49) Haacute uma definiccedilatildeo dos primitivos nas paraacutefrases dos crentes respeitosos mais grandeza O ateiacutesmo nietzschiano ldquoeacute assim uma devoccedilatildeo respeitosardquo (SANTOS 1945 p 50) Maacuterio afirma que amar a vida era para Nietzsche uma forma de oraccedilatildeo ou prece Reconhece que sua criacutetica ao cristianismo tem momentos de exaltaccedilatildeo e que Nietzsche mesmo dizia que os cristatildeos chamaram Deus o que lhes contrariava e os prejudicava e tambeacutem que o cristianismo permitiu uma rebeliatildeo de escravos que entrou na histoacuteria como um dos movimentos mais profundos e mais castos Afirma que ldquoo cristianismo sofrera poreacutem do influxo dos entediados dos acovardados que se aproveitaram da vitoacuteria e que natildeo a construiacuteram (SANTOS 1945 p 50)

Aqui nota-se a clara defesa de Maacuterio do cristianismo e que busca tratar a inversatildeo dos valores dos cristatildeos como uma vitoacuteria O autor ainda diz que o homem criou em si o purgatoacuterio de sua vida Para ele ldquoo vale de laacutegrimas da vida natildeo fora Deus que criara Essa acusaccedilatildeo era outra infacircmia O homem-o verdadeiro satatilde ndash criara seu proacuteprio inferno porque se negava a si mesmordquo (SANTOS 1945 p51) Ainda segundo o filoacutesofo brasileiro

Cristo tambeacutem foi um transmutador de ideias e de princiacutepios Sua reforma representava para a Judeacuteia um movimento revolucionaacuterio de grande envergadura e para o romanismo uma transmutaccedilatildeo profunda que atingia os instintos das massas oprimidas da proviacutencia (SANTOS 1945 p 51)

Para Maacuterio Cristo ao pregar aos homens que fugissem agraves honrarias salopando o respeito devido aos poderosos o abandono do luxo e as riquezas pregava na verdade tudo que era condizente coa a situaccedilatildeo poliacutetica do povo judaico oprimido e dominado por Roma Segundo o autor

Tudo isso que era tatildeo necessaacuterio naquele instante histoacuterico apesar de sua prudecircncia em natildeo se jogar contra o poder romano realmente significava uma transmutaccedilatildeo da alma decadente de um povo preocupado com as lutas bizantinas dos fariseus Cristo buscava a uniatildeo do povo de Israel num rebanho com um soacute pastor (SANTOS 1945 p51)

Ainda sobre Cristo Maacuterio diz que sua doutrina combatia a decadecircncia judaica ldquo Segue-me e deixa os mortos sepultarem seus mortosrdquo Sua filosofia era uma filosofia de vida Todos os transmutadores da humanidade alccedilam a voz contra a decadecircncia E a decadecircncia eacute sempre a morte Para o brasileiro ldquoCristo via a morte no regime imperante em sua paacutetria Cristo nunca se enganou quanto ao sentido revolucionaacuterio de sua obrardquo( SANTOS 1945 p 52 ) Aqui parece que Maacuterio natildeo estaacute ciente do que Nietzsche tambeacutem considera Cristo um decadente4 Ele parece mais interessado em sua proacutepria filosofia e a interpretaccedilatildeo religiosa que vai desenvolver sobre o cristianismo e Cristo 4 Sobre este ponto Rubira (2016) aponta que que ldquoNietzsche busca compreender traccedilos psicoloacutegicos do interes-

santiacutessimo decadente um antirrealista e grande simbolistardquo (Rubira 2016 p 85) Aqui o autor faz uma anaacutelise da obra O Anticristo demonstrando como o filosofo alematildeo separa a figura de Cristo dos seus verdadeiros detratores principalmente o apoacutestolo Paulo Contudo ressalta-se que Cristo natildeo deixa de ser um decadente Analisando o tipo psicoloacutegico do ldquoRedentorrdquo sabemos que ele pode estar contido nos evangelhos apesar dos evangelhos ainda que mutilado ou carregado de traccedilos alheios como o de Francisco de Assis estaacute conservado em suas lendas apesar de suas lendas ldquoNatildeo a verdade quanto ao que fez o que disse como realmente morreu mas a questatildeo de o seu tipo ser concebiacutevel de haver sido lsquotransmitidorsquordquo (NIETZSCHE 2007 p35)

Rafael Gonccedilalves da Silveira

235

Sobre a dubiedade do cristianismo o autor considera a doutrina cristatildeo tatildeo duacutebia as demais doutrinas e filosofias Para ele ldquopouco difere poreacutem a interpretaccedilatildeo de Nietzsche E seu ataque ao cristianismo refere-se agrave dubiedade agrave fraqueza agrave concoacuterdia dos crentes Para ele Nietzsche via exceccedilotildees no cristianismo como Pascal5 e Satildeo Franscisco de Assis Trata poreacutem dos paradoxos da ldquomorte de Deusrdquo em Nietzsche Prossegue citando o filoacutesofo marxista e socioacutelogo francecircs Henri Lefeacutebvre

Lefeacutebvre tem estas palavras ldquoO assassino de Deus ndash singular paradoxo ndash natildeo eacute o ateu O ateu nietzschiano tem o sentido do divino O verdadeiro assassino de Deus eacute o Cristatildeo O cristianismo natildeo foi mais na aparecircncia que uma feacute em Deus uma vida humana no seio divino Na realidade foi ldquoo mais baixo niacutevel da evoluccedilatildeo descendente do topo divinordquo E Lefeacutebvre prossegue ldquoo criador do judeu-cristianismo como doutrina e como igreja foi Satildeo Paulo que se serviu da biografia de Cristo para espalhar a noccedilatildeo judaica do pecado do Deus mau O uacutenico e verdadeiro cristatildeo foi Cristo e morreu na cruz ndash morreu verdadeiramente Sua presenccedila seu espiacuterito se perderamrdquo (SANTOS 1945 p 53)

De fato podemos concordar que o Paulo foi o grande detrator do cristianismo No entender de Nietzsche Paulo de Tasso teria sido o maior responsaacutevel pela disseminaccedilatildeo do cristianismo tal como conhecemos O argumento paulino de aleacutem-mundo para Nietzsche teria contagiado todo o imaginaacuterio moral da civilizaccedilatildeo ocidental O cristianismo teria dominado a cultura pagatilde atraveacutes do medo e da esperanccedila ambos suscitados pelas noccedilotildees de ldquojuiacutezo finalrdquo e ldquovida eternardquo

Salvo alguns pontos de convergecircncia entre a concepccedilatildeo de Nietzsche e a interpretaccedilatildeo de Maacuterio Ferreira dos Santos podemos poreacutem encontrar muitos pontos que natildeo correspondem ao que conhecemos da obra nietzschiana na atualidade Reconhecemos que Maacuterio teve grande importacircncia por situar o filosofo alematildeo no contexto da filosofia como autor antimetafiacutesico6 de uma noccedilatildeo de vontade de potecircncia muito aleacutem da concepccedilatildeo errocircnea de metafiacutesica da violecircncia7 Poreacutem para prosseguir o objetivo deste trabalho passamos na proacutexima sessatildeo a analisar a interpretaccedilatildeo de Nietzsche sobre o cristianismo a partir das obras criacuteticas do autor

5 O filosofo de Sils-Maria ao analisar em sua obra Aurora o corpo como uma maacutequina pouco explorada e que fe-nocircmenos naturais fisioloacutegicos satildeo entatildeo interpretados como moral e religiosos faz entatildeo uma alusatildeo agrave corrupccedilatildeo de Pascal Nietzsche mostra que a corrupccedilatildeo do homem forte pelos fracos pela moral teria acometido Pascal cuja razatildeo foi corrompida pelo seu cristianismo Citando o filosofo alematildeo ldquoO que quer que provenha do estocircmago dos intestinos da batida do coraccedilatildeo dos nervos da biacutelis do secircmen ndash todas as indisposiccedilotildees fraquezas irritaccedilotildees todos os casos de uma maacutequina que conhecemos tatildeo pouco ndash tudo isso um cristatildeo como Pascal tem de considerar um fenocircmeno moral e religioso perguntando se ali se acha Deus ou o Diabo o bem ou o mal a salvaccedilatildeo ou danaccedilatildeo Oh inteacuterprete infeliz Como precisa revirar e torturar seu sistema Como ele proacuteprio necessita revirar-se e torturar-se para ter razatildeordquo(Nietzsche 2016 p62)

6 No decorrer de suas obras Nietzsche faz criacuteticas ao dualismo de Platatildeo e sua concepccedilatildeo dos mundos sensiacutevel e inteligiacutevel ndash O pensador alematildeo apresenta o corpo fiacutesico em contiacutenua mudanccedila com impulsos que determinam diferentes relaccedilotildees de poder No pensamento platocircnico o homem eacute definido como uma dualidade de uma alma e um corpo fiacutesico distintos entre si Nessa concepccedilatildeo a alma ao encarnar apoacutes abandonar o mundo das ideias ao unir-se com esse corpo presa agrave mateacuteria constituinte inferior e menos nobre em relaccedilatildeo agrave contraparte espiritual subjulga-se aos anseios menores da mateacuteria Dessa forma submete-se a ela e nessa posiccedilatildeo menos nobre sua postura moral se traduziraacute em uma forma menos elevada

7 Nesse sentido Maacuterio Ferreira dos Santos faz uma defesa de Nietzsche no ensaio O Homem que foi um campo de batalha de 1945 buscando afastar o filosofo alematildeo da acusaccedilatildeo de ser um teoacuterico do nazismo Nessa empreitada o tradutor e filosofo brasileiro busca compreender a Vontade de Potecircncia de Nietzsche em seu real sentido na filosofia de Nietzsche Conforme Maacuterio ldquoVontade de Potecircncia natildeo eacute somente a vontade de dominar O nietzschianismo natildeo eacute uma metafiacutesica da violecircncia O tiacutetulo da obra enganou muitos inteacuterpretes Vontade de potecircncia eacute somente o esforccedilo para triunfar do nada para vencer a fatalidade e o aniquilamento a cataacutestrofe traacutegica e a morte (Santos 1945 p 70)

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

236

3 A criacutetica de Nietzsche ao cristianismoEm Humano demasiado humano no capiacutetulo terceiro intitulado ldquoA vida religiosardquo

no aforismo 108 Nietzsche diz que quando um infortuacutenio nos atinge pode-se superaacute-lo de dois modos distintos ldquoeliminando a sua causa ou modificando o efeito que produz em nossa sensibilidade (NIETZSCHE 2005 p 79) ou seja reinterpretando o infortuacutenio como um bem ou utilidade para a nossa vida A religiatildeo e a arte (e tambeacutem a filosofia metafiacutesica) vai dizer Nietzsche se esforccedilou em produzir a mudanccedila da sensibilidade em parte alterando nosso juiacutezo sobre os acontecimentos (por exemplo com a ajuda da frase Deus castiga a quem amardquo) em parte despertando prazer na dor na emoccedilatildeo mesma (ponto de partida da arte traacutegica)

Para Nietzsche ldquoTanto mais diminuir o impeacuterio das religiotildees e de todas as artes da narcose tanto mais os homens se preocuparatildeo em realmente eliminar os malesrdquo ( Nietzsche 2005 p 75) No aforismo 113 (ldquoo cristianismo como antiguidaderdquo) Nietzsche diz

Quando numa manhatilde de domingo ouvimos repicarem os velhos sinos perguntamos a noacutes mesmos mas seraacute possiacutevel Isto se faz por um judeu crucificado haacute dois mil anos que se dizia filho de Deus Natildeo existe prova para tal afirmaccedilatildeo ndash Em nossos tempos a religiatildeo cristatilde eacute certamente uma antiguidade que irrompe de um passado remoto e o fato de crermos nessa afirmaccedilatildeo ndash quando normalmente somos tatildeo rigorosos no exame de qualquer pretensatildeo ndash e talvez a parte mais antiga dessa heranccedila (NIETZSCHE 2005 p 87)

Ainda ldquoJaacute o cristianismo esmagou e despedaccedilou o homem por completo e o mergulhou como um lodaccedilal profundo entatildeo nesse sentido de total objeccedilatildeo de repente fez brilhar o esplendor de uma misericoacuterdia divina rdquo(NIETZSCHE 2005 p 88) Sobre o cristatildeo comum (aforismo 116) ndash o filosofo diz que se e o cristianismo tivesse razatildeo em suas teses a cerca de um Deus vingador seria pouco provaacutevel um individuo natildeo aceitar de bom grado os preceitos divinos e dedicar sua vida para a praacutetica asceacutetica

Para Nietzsche o cristianismo representou um movimento de continuidade do ressentimento do oacutedio e da vinganccedila instaurados pela moral judaica Essa relaccedilatildeo de parentesco com o judaiacutesmo teria levado a doutrina cristatilde proceder moralmente da mesma maneira segunda a qual a moral judaica havia operado ateacute entatildeo Isto eacute a moral tambeacutem avaliaria o tipo ldquonobrerdquo atraveacutes de seu olhar bilioso e ressentido mantendo assim a mesma atitude de identificaacute-lo como sendo moralmente ldquomaurdquo Apesar de defender essa continuidade entre judaiacutesmo e cristianismo o filoacutesofo entende que a doutrina cristatilde foi ainda mais extrema no caraacuteter imaginativo de sua vinganccedila Impotentes para realizar uma reaccedilatildeo efetiva contra seus opressores os cristatildeos ldquoforjaramrdquo a existecircncia de um julgamento divino que promoveria uma revanche na vida do aleacutem Essa desforra imaginaacuteria teria por seu turno a funccedilatildeo de dar aos oprimidos cristatildeos a sensaccedilatildeo de forccedila felicidade e conforto No aleacutem os ldquobons cristatildeosrdquo receberiam como consolo pelas dores sofridas a recompensa da bem- aventuranccedila no Reino de Deus Laacute eles seriam finalmente felizes e assistiriam aos ldquomausrdquo ndash bem logrados na vida terrena ndash pagarem por suas ldquomaldadesrdquo Enfim o sofrimento a inviacutedia e a sensaccedilatildeo de impotecircncia seriam os elementos a partir dos quais teria sido engendrada a revanche fictiacutecia do cristianismo Aleacutem de promover a vinganccedila e o consolo as noccedilotildees de juiacutezo final e de vida eterna no aleacutem tambeacutem teriam a funccedilatildeo de legitimar um modo de vida proposto pela doutrina cristatilde

Rafael Gonccedilalves da Silveira

237

Para Nietzsche conforme analisamos na obra O Anticristo Maldiccedilatildeo ao cristianismo o cristianismo tambeacutem se acha em oposiccedilatildeo a toda boa constituiccedilatildeo intelectual Ele diz pode usar apenas a razatildeo doente como razatildeo cristatilde toma o partido de tudo idiota pronuncia a maldiccedilatildeo contra o ldquoespiacuteritordquo contra a soberbia (soberba) do intelecto satildeo (NIETZSCHE 2016 p 62) Para o filosofo alematildeo tal como a doenccedila eacute da essecircncia do cristianismo assim tambeacutem o tiacutepico estado cristatildeo a ldquofeacuterdquo tem de ser uma forma de doenccedila todos os caminhos retos honestos cientiacuteficos para o conhecimento tecircm de ser rejeitados como caminhos proibidos pela igreja A duacutevida assim eacute um pecado para o cristianismo

Na anaacutelise da figura sacerdotal Nietzsche mostra que a completa falta de asseio psicoloacutegico no sacerdote ndash que jaacute se revela no olhar ndash eacute uma consequecircncia da decadecircncia ( decadeacutence) ndash ele diz que ldquo feacute significa natildeo querer saber o que eacute verdadeiro O petista o sacerdote de ambos os sexos eacute falso porque eacute doente seu instinto exige que em nenhum ponto a verdade obtenha seu direito ldquo (NIETZSCHE 2016 p 62) Nietzsche aponta que o homem que se torna doente ou por natureza eacute doente eacute considerado bom8 Ao contraacuterio o que vem da plenitude da abundacircncia e do poder eacute considerado mau e tal modo de sentir as coisa eacute tiacutepico do crente Nietzsche aponta o absurdo da concepccedilatildeo supersticiosa de Deus conforme segue

Mesmo com um miacutenimo de religiosidade no peito um Deus que no instante certo cura um resfriado ou que nos faz subir na carruagem quando comeccedila uma tempestade deveria nos parecer tatildeo absurdo que teria de ser eliminado ainda que existisse Um Deus como domeacutestico como carteiro como calendarista ndash no fundo uma palavra para designar o mais estuacutepido tipo de acaso (NIETZSCHE 2016 p 63)

Na obra O Anticristo Maldiccedilatildeo ao cristianismo Nietzsche vai mostrar como os sacerdotes abusaram do nome de Deus para satisfazerem o seu fim alcanccedilar e manter o seu poder Utilizaram ldquoDeusrdquo para medir os povos e as eacutepocas segundo a forma de posiccedilatildeo sobre os sacerdotes sendo a vontade de Deus tudo que seja favoraacutevel a manutenccedilatildeo da existecircncia desse tipo parasitaacuterio ao passo que aquilo que contraria-se seu domiacutenio e existecircncia fosse contra Deus Citando Nietzsche

A realidade no lugar dessa deploraacutevel mentira eacute a seguinte uma espeacutecie parasitaacuteria de homem que prospera apenas agraves custas de todas as formas saudaacuteveis de vida os sacerdotes abusa do nome de Deus ao estado de coisas em que o sacerdote define o valor das coisas ele chama ldquoreino de Deusrdquo aos meios pelos quais um tal estado eacute alcanccedilado ou mantido ldquo a vontade de Deusrdquo com frio cinismo ele mede os povos as eacutepocas os indiviacuteduos conforme beneficiem ou contrariem a preponderacircncia dos sacerdotes (NIETZSCHE 2016 p 31)

8 Dando sequecircncia em sua investigaccedilatildeo da moral no aforismo 2 da Segunda dissertaccedilatildeo de sua Genealogia da moral Nietzsche vai destacar a origem do termo bom tendo os homens nobres como precursores aqueles que se chamaram ldquobonsrdquo em oposiccedilatildeo ao que eacute baixo e vulgar ao que eacute ruim Nietzsche ressalta que atraveacutes do pathos da distacircncia os nobres tomaram para si o direito de criar valores e cunhar nomes para estes valores No princiacutepio deste estabeleci-mento de valores a palavra bom natildeo estaacute ligada diretamente as accedilotildees natildeo-egoiacutestas pois na perspectiva nobre ainda natildeo haacute a oposiccedilatildeo de valores (egoiacutesta versus natildeo-egoiacutesta) No tipo nobre em Nietzsche podemos identificar o corpo saudaacutevel a fisiologia sadia e a afirmaccedilatildeo da vida Em oposiccedilatildeo a esse nobre haacute o fraco tipo decadente que busca apenas preservar e conservar a vida natildeo utiliza a potecircncia criadora e interioriza a sua vontade de potecircncia Eacute esse tipo fraco que vai elaborar uma moral de escravo uma moral negadora da vida e por consequecircncia do corpo Citando Nietzsche ldquoOs juiacutezos de valor cavalheiresco-aristocraacuteticos tecircm como pressuposto uma constituiccedilatildeo fiacutesica poderosa uma sauacutede florescente rica ateacute mesmo transbordante juntamente com aquilo que serve a sua conservaccedilatildeo guerra aventura caccedila danccedila torneios e tudo o que envolve uma atividade robusta livre contenterdquo (Nietzsche 2009 p22)

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

238

Nietzsche no Anticristo radicaliza sua posiccedilatildeo sobre o cristianismo e com relaccedilatildeo ao sacerdote De certo modo ele retoma muitas questotildees jaacute expostas na obra Genealogia da Moral em que o autor investiga o surgimento da moral e analisa a transvaloraccedilatildeo feita pelos sacerdotes e pelo rebanho de fracos Aqui nesta obra Nietzsche se propotildee a fazer uma nova Transvaloraccedilatildeo dos valores para retornar aos valores afirmativos da vida No Anticristo Nietzsche vai atacar fortemente os sacerdotes pois foram eles que foram responsaacuteveis pela inversatildeo dos valores nobres e pelo decliacutenio ou deacutecadence da humanidade Ele combate natildeo o nazareno a figura de Cristo que Nietzsche vai dedicar atenccedilatildeo especial mas os tipos sacerdotais Eacute preciso para o filosofo combater tais parasitas que se encontram em toda parte e em todos eventos naturais agindo de forma a desnaturaacute-los Somente nesse combate Nietzsche vislumbra a possibilidade de uma filosofia afirmativa que propotildee a incondicional afirmaccedilatildeo da vida Nietzsche apresenta-se assim como um destino por ter levantado o pano ldquoque tapava a corrupccedilatildeo do homemrdquo (NIETZSCHE 2016 p12) Conforme Rubira

Diferentemente dos sacerdotes judeus que queriam a crucificaccedilatildeo de Jesus o alvo de Nietzsche sobretudo em O anticristo natildeo eacute um ataque ao ceacutelebre homem da Galileacuteia (ldquoHouve apenas um cristatildeo e este morreu na cruzrdquo ACAC 39) mas a um tipo sacerdotal judeu que com a crucificaccedilatildeo de Jesus teria encontrado um caminho para chegar ateacute o poder um caminho para operar uma alteraccedilatildeo em todos os valores da antiguumlidade e nesta alteraccedilatildeo levar ao primeiro plano os proacuteprios valores com base no siacutembolo ldquoDeus na cruzrdquo ou ldquocristo na cruzrdquo ou ldquoo crucificadordquo tais sacerdotes teriam operado uma transvaloraccedilatildeo de todos os valores antigos - valores esses que eram a expressatildeo de uma vida afirmativa uma vida que natildeo desprezava o vir-a-ser (RUBIRA p 118 2005)

Nietzsche pretende entatildeo retomar esses valores que expressam uma vida afirmativa Nesse combate ao tipo sacerdotal e ao cristianismo o autor vai analisar como eles subvertem a realidade atraveacutes da mentira A mentira tem como finalidade no sacerdote apenas coisas ruins ldquoenvenenamento difamaccedilatildeo negaccedilatildeo da vida desprezo pelo corpo rebaixamento e autoviolaccedilatildeo do homem pelo conceito de pecadordquo (NIETZSCHE 2016 p 68) Mas para Nietzsche natildeo eacute apenas algo meramente judeu ou cristatildeo o dito direito de mentir A mentira juntamente com a ldquosagacidade da revelaccedilatildeordquo fazem parte do tipo sacerdote tanto os sacerdotes da deacutecadence como os sacerdotes do paganismo A mentira sagrada que se encontra em Confuacutecio e no coacutedigo de Manu encontra tambeacutem em Platatildeo Para Nietzsche ldquoLeirdquo a ldquovontade de Deusrdquo o ldquolivro Sagradordquo a ldquoinspiraccedilatildeordquo ndash tudo ldquoapenas palavras para as condiccedilotildees sob as quais os sacerdotes chegam ao poder com as quais ele sustenta seu poderrdquo (NIETZSCHE 2016 p67) O filosofo aqui salienta que tais conceitos satildeo encontrados nas bases de todas as organizaccedilotildees sacerdotais Como dissemos a ldquomentira sagradardquo vai de Confuacutecio ateacute Platatildeo e nas palavras de Nietzsche ldquolsquoA verdade em sirsquo isto significa onde quer que seja ouvido o sacerdote menterdquo (Nietzsche 2016 p67)

Admitimos essa conclusatildeo e radicalizaccedilatildeo da figura do sacerdote no Anticristo agrave medida que essa obra significa a proacutepria transvaloraccedilatildeo dos valores de Nietzsche operada de modo estrateacutegico Foi num terreno assim falso de valores falsos que cresceu e dominou o cristianismo como ldquouma forma de inimizade mortal agrave realidade que ateacute agora natildeo foi superadardquo (NIETZSCHE 2016 p 33) Para encerrar sua criacutetica no Anticristo natildeo eacute

Rafael Gonccedilalves da Silveira

239

por menos que Nietzsche vai propor toda negaccedilatildeo do tipo sacerdotal principalmente do sacerdote cristatildeo considerando o mesmo como aquele que ensina a antinatureza

Artigo primeiro ndash Viciosa eacute toda espeacutecie de antinatureza A mais viciosa espeacutecie de homem eacute o sacerdote ele ensina a antinatureza Contra o sacerdote natildeo haacute razotildees haacute o caacutercererdquo () Artigo quinto ndash Quem senta agrave mesa com um sacerdote eacute expulso excomunga a si mesmo da sociedade honesta O sacerdote eacute nosso chandala ndash deve ser banido esfomeado enxotado para toda espeacutecie de deserto (NIETZSCHE 2016 p 80)

4 Consideraccedilotildees finaisAo longo deste artigo buscamos apresentar a interpretaccedilatildeo feita por Maacuterio Ferreira

dos Santos sobre a criacutetica de Nietzsche ao cristianismo Focamos a exposiccedilatildeo do filosofo brasileiro principalmente em seu ensaio O homem que foi um campo de batalha publicado em 1945 Notamos que para aleacutem de um comentaacuterio fiel ao pensador do filosofo alematildeo Maacuterio escreveu uma interpretaccedilatildeo muito particular em que busca natildeo apenas descrever a criacutetica de Nietzsche mas como tambeacutem justifica-las

Tambeacutem opera uma defesa do cristianismo neste ensaio pois Maacuterio eacute um pensador cristatildeo que escreveu diversos trabalhos sobre o cristianismo principalmente sobre o anarquismo cristatildeo Percebemos que em certo ponto ele procurou estabelecer uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e a figura de Cristo mostrando a admiraccedilatildeo do filosofo alematildeo pelo ldquoRedentorrdquo principalmente atraveacutes da acusaccedilatildeo aos sacerdotes e a figura do apoacutestolo Paulo por deturpar o cristianismo autecircntico

Analisando algumas passagens das obras de Nietzsche percebemos que suas criacuteticas ao cristianismo satildeo bem mais fortes do que Maacuterio parece destacar em seu ensaio Contudo apesar das diferenccedilas latentes entre as passagens nietzschianas e o ensaio de Maacuterio prevalece o ataque ao cristianismo na figura do sacerdote como uma ponte entre os dois autores Destacamos que ao publicar seu ensaio Maacuterio ainda natildeo tinha conhecimento da revisatildeo e ediccedilatildeo criacutetica das obras de Nietzsche que seria realizada somente entre 1967-1978 atraveacutes do esforccedilo e competecircncia dos italianos Giorgio Colli e Mazzino Montinari Assim apesar do caraacuteter ameno ao analisar a criacutetica nietzschiana Maacuterio natildeo constitui ainda uma interpretaccedilatildeo cristianizada do filosofo de Assim falava Zaratustra mas tem seu meacuterito ao defender o filosofo numa eacutepoca em que Nietzsche era utilizado para justificar as mais diversas correntes tais como o socialismo o anarquismo e ateacute mesmo o movimento nazista ainda em voga na Europa da deacutecada de quarenta

Maacuterio Ferreira dos Santos e a criacutetica

240

Referecircncias bibliograacuteficasNETO SET de Melo Cristianismo 1ordm ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016NIETZSCHE Friedrich Humano demasiado humano Um livro para espiacuteritos livres 1ordm ed Satildeo Paulo Companhia das letras 2000_____ Aurora 1ordm ed Satildeo Paulo Companhia das letras 2016_____ Genealogia da Moral Uma polecircmica 1ordmed Satildeo Paulo Companhia das letras 2008 _____ Crepuacutesculos dos Iacutedolos Ou de como filosofar com o martelo 1ordm ed Satildeo Paulo Companhia das letras 2006_____ O Anticristo Maldiccedilatildeo ao cristianismo Ditirambos de Dioniacutesio 1ordm ed Satildeo Paulo Companhia das letras 2007RUBIRA Luiacutes Eduardo Uma introduccedilatildeo agrave transvaloraccedilatildeo de todos os valores na obra de Nietzsche1ordm ed Cascavel Revista Tempo da Ciecircncia 2005_____ Dicionaacuterio Nietzsche 1ordm ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2016SANTOS Maacuterio Ferreira dos O homem que foi um campo de batalha 1ordm ed Porto Alegre O Globo 1945

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

241

Genealogia O chatildeo proacuteprio de Nietzsche

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia1

IntroduccedilatildeoHaacute em torno de quarenta registros do substantivo ldquogenealogiardquo e suas desinecircncias

em toda a obra de Nietzsche a maioria dos anos 1887 e 1888 ldquoGenealogia da moralrdquo em particular eacute uma expressatildeo que Nietzsche emprega exclusivamente no tiacutetulo de sua obra e em referecircncia a ela2 Nietzsche natildeo tem portanto como adverte Brusotti (2016 p 28) ldquoo menor interesse em designar apenas a si mesmo como lsquogenealogista da moralrsquo e qualificar apenas suas proacuteprias hipoacuteteses acerca da origem como lsquogenealoacutegicasrsquo Aleacutem disso ele nunca fala em um meacutetodo genealoacutegico mas apenas em um lsquomeacutetodo histoacutericorsquo (GM II 12 e GM II 13)rdquo Em que pese a escassez de ocorrecircncias e a ressalva do comentaacuterio Nietzsche natildeo se furta de considerar como lemos no proacutelogo da Genealogia da Moral (doravante GM) que com a genealogia ele finalmente alcanccedilou um modo proacuteprio de investigaccedilatildeo da moral

Para isso encontrei e arrisquei respostas diversas diferenciei eacutepocas povos hierarquias dos indiviacuteduos especializei meu problema das respostas nasceram novas perguntas indagaccedilotildees suposiccedilotildees probabilidades ateacute que finalmente eu possuiacutea um paiacutes meu um chatildeo proacuteprio um mundo silente proacutespero florescente como um jardim secreto do qual ningueacutem suspeitasserdquo (GM Proacutelogo 04)3

Insistindo nas imagens de Nietzsche afinal que ldquochatildeo proacutepriordquo eacute este da genealogia Quais satildeo as fronteiras de seu ldquopaiacutesrdquo os caminhos de seu ldquojardim secretordquo O que diferencia a genealogia de outros meacutetodos de investigaccedilatildeo da moral Aliaacutes a proacutepria definiccedilatildeo da genealogia como um ldquomeacutetodordquo eacute adequada Em suma o que eacute isto a genealogia O objetivo desta investigaccedilatildeo eacute demarcar algumas questotildees importantes agrave compreensatildeo da genealogia para Nietzsche a fim de contribuir para a definiccedilatildeo do objeto de anaacutelise mais amplo do receacutem-criado GT Genealogia e Criacutetica

Crise de identidadeEm German Philosophy (1760-1860) The Legacy of Idealism Terry Pinkard

reconstroacutei o ambiente histoacuterico-filosoacutefico da repentina e inesperada morte de Hegel em 1 Doutor em Filosofia pela UnicampEMA Greifswald Faculdade de Filosofia da UFG2 Binoche (2014 p 57) faz um mapeamento destas ocorrecircncias que enseja cinco conclusotildees a primeira de nosso pecu-

liar interesse nesta investigaccedilatildeo ldquoo termo genealogia sempre se remeteu sem duacutevida agrave mesma preocupaccedilatildeo a saber com uma historicidade original que supera as alternativas com as quais Nietzsche eacute confrontadordquo

3 As citaccedilotildees das obras publicadas de Nietzsche seguem a traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza da editora Companhia das Letras com exceccedilatildeo da segunda consideraccedilatildeo extemporacircnea com traduccedilatildeo de Andreacute Itaparica As citaccedilotildees do Nachlass seguem a notaccedilatildeo da KSA traduzidas por mim

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

242

novembro de 1831 e quatro meses depois a morte de Goethe Mesmo aos detratores a morte de Hegel representava o apagar de uma das maiores ldquoluzes intelectuaisrdquo da transiccedilatildeo do seacutec XVIII ao XIX e consequentemente o esfriamento das questotildees que ela iluminava Como reaccedilatildeo imediata seus alunos e amigos passaram a se mobilizar em torno de uma associaccedilatildeo dedicada a divulgar os trabalhos completos do filoacutesofo o que incluiacutea a famosa seacuterie de palestras sobre filosofia da religiatildeo filosofia da arte filosofia da histoacuteria e como marco teoacuterico desta investigaccedilatildeo a histoacuteria da filosofia

Frederick Beiser em Depois de Hegel a filosofia alematilde de 1840 a 1900 avalia a enorme influecircncia que a Geschichte der Philosophie (1833-1836) de Hegel exerceu sobre o que ele designa como as ldquonarrativas-padratildeordquo da historiografia filosoacutefica da segunda metade do seacutec XIX Grosso modo Beiser argumenta que a versatildeo do proacuteprio Hegel da filosofia que o circundava acabou por tornar-se a ldquodescriccedilatildeo padratildeordquo o ldquoparadigma predominanterdquo da filosofia do novecentos cujo principal evento o idealismo teria se iniciado em Kant passado por Reinhold Fichte e Schelling vindo a culminar no proacuteprio Hegel

Essa narrativa se consolidou em primeiro lugar dada a enorme influecircncia exercida pelo hegelianismo na primeira metade do seacutec XIX e em segundo lugar pela reafirmaccedilatildeo dessa histoacuteria por parte de outros importantes historiadores da filosofia daquele seacuteculo como Johann Erdmann e Kuno Fischer (referecircncia para Nietzsche nos estudos de filosofia moderna) sem mencionar seus desdobramentos no seacutec XX com as obras de Karl Loumlwith (1949) Richard Kroner (1921) e Frederick Copleston (1963)

O grande ocircnus dessa ldquonarrativa-padratildeordquo eacute que ela nos apresenta uma versatildeo restrita parcial da filosofia do novecentos jaacute que omite pelo menos trecircs tradiccedilotildees i) a tradiccedilatildeo idealista contemporacircnea a Hegel principalmente a sua adversaacuteria com J F Fries (1773-1843) J F Herbart (1776-1841) e F Beneke (1798-1854) ii) a tradiccedilatildeo idealista posterior a Hegel com pensadores que de algum modo reviveram o legado do idealismo como Adolf Trendelenburg (1802-1872) Hermann Lotze (1816-1881) e Eduard von Hartmann (1842-1906) iii) uma tradiccedilatildeo balizada por Schopenhauer (1788-1860) que natildeo recebe nenhuma menccedilatildeo na narrativa de Hegel mas que pauta a importante discussatildeo na segunda metade do seacutec XIX sobre o valor da vida

Contra estas narrativas-padratildeo (Hegel e Loumlwith em particular) Beiser (2017 p 25) propotildee que i) natildeo mais devemos falar sobre o fim da tradiccedilatildeo idealista em 1831 mas temos que a estender ateacute o fim do seacuteculo ii) natildeo mais devemos escrever sobre apenas uma tradiccedilatildeo idealista mas temos de considerar uma segunda e rival iii) natildeo mais devemos assumir que o marxismo e o existencialismo satildeo os principais movimentos teoacutericos da segunda metade do seacuteculo XIX iv) natildeo mais devemos tratar Schopenhauer como um dissidente Ao inveacutes disso conclui ele temos de incluir tambeacutem muitos outros movimentos tais como o idealismo tardio o historicismo o materialismo o neokantismo e o pessimismo

Cumpre mencionar por fim a grande ldquocrise de identidaderdquo que atingiu a filosofia alematilde na deacutecada de 1840 expressatildeo de Herbart Schnaumldelbach em sua Philosophie in Deutschland 1831-1933 Se antes sob o abrigo do meacutetodo a-priori e dedutivo da filosofia idealista pairava uma concepccedilatildeo mais ou menos clara e definida da filosofia de seus objetivos e meacutetodos e de suas relaccedilotildees com as ciecircncias empiacutericas com a emergecircncia do projeto fisicalista (Liebig Du Bois Reymond Helmholtz) dos primeiros neokantianos (Fries Herbart Beneke) e dos idealistas tardios (Lotze Trendelenburg Hartmann) ela se torna profundamente desacreditada A tarefa assumida pela filosofia de fornecer uma

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

243

fundamentaccedilatildeo para as ciecircncias que as abrigasse do ceticismo a partir do meacutetodo sistemaacutetico vai se esgotando na medida em que dentre outros os meacutetodos analiacuteticos de observaccedilatildeo e experimentaccedilatildeo dessas ciecircncias particularmente as ciecircncias empiacutericas como a fisiologia e a psicologia experimental em plena ascensatildeo na eacutepoca passam a alcanccedilar resultados vaacutelidos por si mesmos de maneira autocircnoma Com isso o papel central e institucionalmente estrateacutegico da filosofia como ldquoguardiatilde das ciecircnciasrdquo entra em colapso e ela passa a padecer da falta tanto de um objeto quanto de um meacutetodo proacuteprios

Meu interesse ao esquadrinhar brevemente este contexto eacute menos subscrever as descriccedilotildees propostas pelos inteacuterpretes e mais enfatizar trecircs pontos i) a profusatildeo de assuntos problemas pensadores e orientaccedilotildees que povoaram o seacuteculo XIX e em muitos casos o horizonte intelectual de Nietzsche (que conhecia direta ou indiretamente a maior parte dos pensadores e debates mencionados em especial Schopenhauer) ii) o vazio (de objetivos meacutetodos e mesmo institucional) deixado na filosofia da segunda metade do seacutec XIX com o esgotamento do idealismo especulativo iii) como consequumlecircncia disso as inuacutemeras tentativas de re-significar a filosofia na segunda metade do seacutec XIX

Isso porque num periacuteodo natildeo muito maior do que cinquenta anos o pensamento filosoacutefico na Alemanha almejou se reconstituir e redescobrir a partir de inuacutemeros projetos nenhum deles efetivamente capaz de preencher o vazio deixado pelo idealismo Tais projetos natildeo apenas pleitearam a pauta das discussotildees filosoacuteficas como disputaram a proacutepria redefiniccedilatildeo do que eacute a filosofia Mesmo considerando a dificuldade de compatibilizar uma noccedilatildeo standard de influecircncia da historiografia filosoacutefica a uma obra como a Nietzsche eacute inegaacutevel que a sua filosofia tenha sido engendrada precisamente no ambiente de crise identitaacuteria e reaccedilatildeo ao idealismo daquele meio seacuteculo Grande parte das tendecircncias e interlocutores que pleiteiam a agenda das discussotildees da segunda metade do seacutec XIX figuram no horizonte intelectual de Nietzsche e balizam a sua filosofia e particularmente a sua compreensatildeo da genealogia Sem querer com isso reduzi-la a uma soma de influecircncias espero aproximar a genealogia de Nietzsche a algumas dessas tendecircncias e interlocutores na tentativa de situaacute-la num debate mais amplo que nos permitiraacute uma primeira aproximaccedilatildeo

ReaccedilotildeesO colapso do programa fundacionista com a emergecircncia dos fisicalistas neo-

kantianos e idealistas tardios adensado pela ascensatildeo das ciecircncias empiacutericas e tornado urgente pela crise institucional na segunda metade do seacutec XIX produziu na filosofia um vazio mas tambeacutem gerou uma seacuterie de reaccedilotildees Trecircs delas inspiraram programaticamente a meu ver a genealogia Refiro-me agrave filosofia criacutetica ao historicismo e ao problema do valor da vida mais precisamente agrave postura da filosofia criacutetica o meacutetodo do historicismo e agrave pauta do valor da vida Na impossibilidade de apresentar cuidadosamente cada uma dessas reaccedilotildees tentarei alguns pontos que permitam conectaacute-las

A assim designada ldquofilosofia criacuteticardquo desenvolvida pelos intelectuais de Halle e Berlin conhecidos como os jovens ou a ldquoesquerda hegelianardquo dentre os quais menciono apenas os diretamente conhecidos por Nietzsche como Feuerbach (1804-1872) D F Strauss (1808-1874) F Vischer (1807-1887) e Bruno Bauer (1808-1892) aleacutem da origem hegeliana identificava-se por uma agenda poliacutetica radical A despeito de suas peculiaridades para esses pensadores a filosofia era entendida como uma praacutetica preponderantemente criacutetica no sentido de que ela deveria ser o escrutiacutenio das crenccedilas de diversas ordens metafiacutesicas

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

244

religiosas econocircmicas poliacuteticas Como sintetiza a famigerada afirmaccedilatildeo de Marx em carta a Arnold Ruge de setembro de 1843 a filosofia deveria se constituir como a ldquoCriacutetica implacaacutevel de qualquer coisa existenterdquo Essa criacutetica implacaacutevel operacionalizava-se no mais das vezes pela determinaccedilatildeo das origens e julgamento das pretensotildees de validade das crenccedilas numa postura tipicamente genealoacutegica aliaacutes Numa espeacutecie de iluminismo tardio pelo ldquofogo purificador da criticardquo como quer outra conhecida expressatildeo esta de Feuerbach nrsquoA essecircncia do cristianismo esses pensadores contrapunham-se agrave metafiacutesica especulativa e embora natildeo possuiacutessem nenhum compromisso com a tarefa para eles servil de fundamentaccedilatildeo das ciecircncias acreditavam poder salvaguardar a filosofia de sua crise de identidade pela tarefa fundamental e intransferiacutevel da criacutetica

Eacute importante esclarecer que o meacutetodo de investigaccedilatildeo da esquerda hegeliana deve muito de sua orientaccedilatildeo agrave teologia particularmente agrave assim designada ldquoEscola de Tuumlbingenrdquo ou ldquoEscola criacutetica da teologiardquo4 originada em meados de 1830 berccedilo intelectual de teoacutericos como B Bauer (1809-1882) e D Strauss (1808-1874) contra o qual Nietzsche insurgiu pessoalmente na primeira extemporacircnea Leitores de Spinoza eles passavam a tratar a Biacuteblia natildeo como a palavra inspirada de Deus a sagrada escritura mas como um documento histoacuterico o produto de seres humanos em um tempo e espaccedilo determinados Grosso modo portanto a filosofia criacutetica alarga o projeto da criacutetica teoloacutegica para os outros diversos acircmbitos da vida como a economia a poliacutetica a moral e a proacutepria filosofia com o objetivo de combater a alienaccedilatildeo em suas mais diferentes formas seja a crenccedila na procedecircncia divina dos priacutencipes a doutrina do espiacuterito absoluto a crenccedila em leis econocircmicas naturais ou a eacutetica baseada em mandamentos absolutos

Cumpre destacar e aqui vinculamos o historicismo agrave discussatildeo que um dos componentes fundamentais da teologia criacutetica conforme destaca Eduard Zeller (1814-1908) em seu Die Tuumlbinger historische Schule (1860) foi o meacutetodo polecircmico e inovador de tratar os textos (e temas) sagrados estritamente como documentos histoacutericos Esse meacutetodo por sua vez busca inspiraccedilatildeo no projeto da histoacuteria criacutetica engendrada no inicio dos anos 1800 por Barthold Niebuhr (1776-1831) e Leopold Ranke (1795-1886) Alcanccedilamos aqui a conexatildeo que nos permitiraacute avanccedilar aos bastidores mais proacuteximos da genealogia entre filosofia criacutetica escola de Tuumlbingen e escola criacutetica da histoacuteria De certo modo a filosofia criacutetica alarga o programa teoacuterico da escola de Tuumlbingen que por sua vez transpotildee o meacutetodo de Ranke e Niebuhr ao estudo da histoacuteria sacra

QuerelleA importante discussatildeo sobre a histoacuteria protagonizada ao longo de todo o seacutec XIX

adensa a meu ver um debate ainda mais amplo e caracteristicamente moderno que C Perrault (1628-1723) pautaraacute na Querelle des Anciens et des Modernes De modo sumaacuterio a Querelle foi uma polecircmica intelectual que agitou especialmente o mundo literaacuterio e artiacutestico francecircs do final do seacuteculo XVII ao seacuteculo XVIII e discutia a heranccedila relaccedilatildeo e superioridade dos autores da Antiguidade Claacutessica perante o pensamento moderno Em territoacuterio alematildeo ela ecoa nas discussotildees protagonizadas dentre outros por J C Gottsched (1700-1766) J J Bodmer (1698-1783) e J J Winckelmann (1717-11768) No fundo o que estaacute em jogo na Querelle eacute uma profunda investigaccedilatildeo uma auto-anaacutelise sobre o que significa ser moderno ali operacionalizada pelo contraste direto com os antigos5 4 Sobre a escola de Tuumlbingen cf WARTHMANN Stefan Die Katholische Tuumlbinger Schule Zur Geschichte ihrer

Wahrnehmung Stuttgart 2011 (Contubernium 75)5 Sobre a Querelle cf KYLOUSEK Petr Classicisme et Acircge des Lumiegraveres Masarykova univerzita Brno 2014

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

245

Esta discussatildeo comeccedila a se adensar na Alemanha com a Allgemeine Geschichtswissenschaft (1752) do pensador wolffiano Chladenius (1710-1759) em sua tentativa de estabelecer a histoacuteria como uma ciecircncia Do ponto de vista institucional por sua vez ela ganha corpo com a criaccedilatildeo das caacutetedras de histoacuteria nos cursos de teologia e direito que com a criaccedilatildeo da Universidade de Berlin em 1810 torna-se uma faculdade independente Surge neste momento justamente a escola criacutetica da histoacuteria protagonizada por Niebuhr e Ranke que tentaratildeo estabelecer definitivamente a cientificidade do conhecimento histoacuterico preconizando dentro outros que nenhuma fonte deve ser aceita simplesmente porque foi preservada e respeitada pela tradiccedilatildeo donde a necessidade de consultar os originais e avaliar sua autenticidade e que o conhecimento histoacuterico deve ser buscado por si independente da agenda do Estado e da Religiatildeo

Uma das mais fortes oposiccedilotildees que a escola criacutetica da histoacuteria encontrou foi justamente a filosofia sistemaacutetica do idealismo Fichte Schelling e Hegel como se sabe possuiacuteam uma filosofia da histoacuteria mundial formulada de acordo com meacutetodos a-priori Assim para eles a histoacuteria empiacuterica era vista como um mero objeto material para as histoacuterias especulativas Hegel aliaacutes considerava a histoacuteria criacutetica uma espeacutecie de conspiraccedilatildeo para esvaziar a histoacuteria de sentido reduzindo-a a fatos questionaacuteveis A histoacuteria assim deveria ser subordinada a um conceito um sistema filosoacutefico6

Particularmente Ranke em seu curso de 1831 insurgiraacute contra as filosofias da histoacuteria De acordo com ele a tarefa do historiador pelo meacutetodo analiacutetico natildeo eacute conhecer as leis gerais que governam uma coisa em particular mas o que haacute de uacutenico sobre ela Ranke assim contrasta os meacutetodos e aproximando o histoacuterico das ciecircncias naturais acusa a filosofia de estabelecer princiacutepios gerais que podem ser falsos e cuja legitimidade natildeo se pode estabelecer a natildeo ser atraveacutes de meios a-priori7 Antes mesmo de Marx e Kierkegaard portanto Ranke contribuiu fortemente para o descreacutedito do meacutetodo a-priori de Hegel na filosofia da histoacuteria

O historicismo de Ranke a par e passo com o positivismo cria contudo o mito da objetividade na historiografia contra o qual insurgiratildeo muitos dentre eles como aponta White (2001) J G Droysen (1808-1884) Croce (1866-1952) e Nietzsche Droysen em particular em seus cursos sobre o meacutetodo histoacuterico de 1857 contesta o ideal objetivo de Ranke pois segundo ele i) em histoacuteria natildeo eacute possiacutevel descrever fatos como nas ciecircncias naturais ii) natildeo haacute algo como fatos histoacutericos soacutelidos e seguros que independem do historiador (afinal o passado desapareceu e agora soacute existe na mente do historiador) iii) os fatos construiacutedos pelos historiadores dependem muito de seus interesses e valores e esses de seu tempoespaccedilo (cultura liacutengua etc) iv) o historiador tambeacutem eacute um fruto da histoacuteria logo o motivo e o modo dele fazer histoacuteria tambeacutem eacute histoacuterico Natildeo deve passar despercebido que um dos historiadores mais admirados por Nietzsche a quem ele endereccedilaraacute pessoalmente a sua extemporacircnea sobre a histoacuteria Jakob Burckhardt (1818-1897) estudou em Berlin entre 1839-1842 e frequentou os seminaacuterios de L Ranke Burckhardt poreacutem rejeitava tanto o historicismo quanto o positivismo e propunha com a sua historia cultural uma modalidade de literatura imaginativa proacutexima agrave poesia que natildeo pretendia a rigor contar uma histoacuteria mas pintar o retrato de uma eacutepoca ou como descreve 6 Nietzsche ataca esta postura em 5 [58] 1875 (KSA 8 56) ldquoA Alemanha se converteu na incubadora (Brutstaumltt) do

otimismo histoacuterico do qual Hegel eacute o culpado Sem embargo nenhum outro efeito da cultura alematilde resultou tatildeo perniciosordquo

7 Sobre isso cf BABEROWSKI Joumlrg Der Sinn der Geschichte Geschichtstheorien von Hegel bis Foucault Verlag C H Beck Muumlnchen 2005

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

246

Burke (2009) de apresentar uma perspectiva ou visatildeo (Anschauung) que resultasse em um retrato global (Gesamtschilderung)8

Situado o debate podemos avanccedilar agrave questatildeo que seraacute decisiva agrave compreensatildeo de Nietzsche da genealogia Refiro-me agrave compreensatildeo da histoacuteria discutida pelo filoacutesofo ao longo de toda a sua obra de modo mais concentrado numa obra publicada na segunda consideraccedilatildeo extemporacircnea

Das vantagens e desvantagens da histoacuteria para a vida (1874) condensa boa parte das posiccedilotildees de Nietzsche sobre a histoacuteria que tendo a ler concomitantemente agrave GM como uma espeacutecie de aporte metodoloacutegico Para alinhaacute-la agrave discussatildeo que vinha apresentando gostaria de destacar o triacuteplice modo de se relacionar com o passado ali descrito isto eacute o modo aistoacuterico histoacuterico e supra-histoacuterico que ensejam trecircs modalidades de historiografia a monumental a antiquaria e a criacutetica e trecircs espeacutecies de homem o de accedilatildeo o reverente e o negador A conclusatildeo de que Nietzsche ao colocar em perspectiva as vantagens e desvantagens de cada uma das histoacuterias estaria simplesmente se decidindo por uma delas parece-me apressada Isso aliaacutes ilustra bem a necessidade de se contextualizar o debate e as posiccedilotildees pois se Nietzsche simplesmente buscasse uma terceira via entre os dois modos de se relacionar com o passado e fazer histoacuteria o histoacuterico e o aistoacuterico o antiquaacuterio e o monumental sua posiccedilatildeo natildeo seria muito diferente daquela de J G Droysen por exemplo9 Nietzsche poreacutem pesa as vantagens e desvantagens de cada uma das espeacutecies de modo a promover uma anaacutelise complexa e perspectivistica do problema Assim a posiccedilatildeo da histoacuteria na segunda extemporacircnea natildeo se orienta apenas por dois pontos de referecircncia conta ou a favor mas por pelo menos seis pontos consideradas as vantagens e desvantagens de cada uma das trecircs modalidades com destaque agrave histoacuteria criacutetica por certo Eacute nesta complexidade e mesmo ambiguidade que devemos considerar a historiografia de Nietzsche e examinar suas posiccedilotildees

Ainda mais como o interesse de Nietzsche natildeo eacute reabastecer a proacutepria discussatildeo do historicismo mas colocaacute-lo tambeacutem em perspectiva ele estabelece um ponto de referecircncia balizador dos outros a vida Assim a reflexatildeo multifacetada sobre a histoacuteria tem em vista as consequecircncias que um tipo de relaccedilatildeo com o passado produz para a vida em uma eacutepoca determinada ou como podemos ler no prefaacutecio

Eacute certo que precisamos da histoacuteria mas de maneira diferente do que dela precisa o ocioso mimado no jardim do saber que pode nobremente olhar com desdeacutem para nossas toscas necessidades e nossas rudes carecircncias Isto eacute precisamos da histoacuteria para a vida e para a accedilatildeo e natildeo para uma cocircmoda renuacutencia da vida e da accedilatildeo ou ainda para a edulcoraccedilatildeo da vida egoiacutesta ou do ato covarde e vil (NIETZSCHE 2017 p 30)

Neste ponto a influecircncia de Schopenhauer transparece natildeo apenas pela contraposiccedilatildeo entre a faculdade da memoacuteria no homem e no animal que Nietzsche redige inspirado na seccedilatildeo ldquoDa histoacuteriardquo vol II do Mundo como vontade e como representaccedilatildeo mas sobretudo pelo registro em que ele se propotildee a examinar o problema da histoacuteria o da vida e seu

8 BURKE P Introduccedilatildeo In BURCKHARDT J A cultura do renascimento na Itaacutelia Traduccedilatildeo de Seacutergio Tellaroli Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009

9 Opondo-se agrave verdade e ao sentido do ponto de vista do valor certamente Nietzsche natildeo justifica apenas o uso instrumental que fez da filologia em 1872 ele encontra a ocasiatildeo para fazer um balanccedilo que retira a razatildeo de seus rivais ao mostrar que a histoacuteria positiva e a filosofia da histoacuteria satildeo igualmente patogecircnicas (BINOCHE 2014 p 39 Cadernos Nietzsche)

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

247

valor10 Com isso a triacuteplice conexatildeo que me propus a estabelecer no iniacutecio (entre filosofia criacutetica historicismo e o problema do valor da vida) estaacute caracterizada Tendo a reconhecer na genealogia ainda que em termos gerais e programaacuteticos uma inspiraccedilatildeo nestas trecircs problemaacuteticas que povoaram o seacutec XIX Eacute a partir desta demarcaccedilatildeo que proponho nos aproximarmos da GM particularmente considerando o objetivo mais amplo do GT Genealogia e Criacutetica de compreendecirc-la em e a partir de Nietzsche

GenealogiaDois apontamentos do ano de 1885 nos ajudam a compreender a dimensatildeo e a

importacircncia do problema da histoacuteria para Nietzsche que nos conduziratildeo ao centro da questatildeo que gostaria de problematizar No primeiro deles 38 [14] lemos

O que mais profundamente nos separa de qualquer modo de pensar platocircnico ou leibniziano eacute isto noacutes natildeo acreditamos em conceitos eternos valores eternos formas eternas almas eternas e a filosofia na medida em que eacute ciecircncia e natildeo legislaccedilatildeo soacute significa para noacutes a mais ampla extensatildeo do conceito de histoacuteria (KSA 11 613)

Jaacute no segundo apontamento 36 [27] Nietzsche pondera

A filosofia tal como a sigo reconhecendo isto eacute como a forma mais geral da histoacuteria [als die allgemeinste Form der Historie] como tentativa de descrever de algum modo o devir heraclitiano e reduzi-lo a signos (de traduzi-lo por assim dizer a uma espeacutecie de ser aparente e mumificaacute-lo) (KSA 11 562)

Como bem observa Jensen (2013 p 155) ldquoA historiografia eacute essencial para a filosofia de Nietzsche uma vez que seu proacuteprio assunto diz respeito a uma realidade que eacute histoacuterica por completo [] sua filosofia depende de sua versatildeo (account) do passado ndash sua capacidade de ldquodefinir aindardquo aquilo que natildeo ldquoestaacute assentadordquo11 Uma determinada versatildeo do passado eacute um paracircmetro decisivo para grande parte dos argumentos anaacutelises e personagens de Nietzsche Em sua filosofia o passado ou antes a possibilidade de retrataacute-lo de conhececirc-lo desempenha uma espeacutecie de funccedilatildeo reguladora de referencial analiacutetico sobre a qual se articulam os mais variados assuntos

No caso da moral em particular a consideraccedilatildeo da historicidade dos valores analisados e da proacutepria anaacutelise eacute uma condiccedilatildeo de probidade a qualquer anaacutelise Haacute que se empreender uma comparaccedilatildeo das diversas morais balizada pelo conhecimento acurado de povos eras e tempos como estabelece o aforismo 186 de Aleacutem do bem e do mal Por conseguinte como Nietzsche adverte pelo menos desde Humano demasiado Humano a falta de sentido histoacuterico revela-se como o ldquodefeito hereditaacuterio dos filoacutesofosrdquo que encantados pela Circe da moral soacute enxergam diante dela a possibilidade de justificaacute-la sem avanccedilar agrave consideraccedilatildeo do valor de seus valores

Esta nova perspectiva permite a Nietzsche operar uma grande revoluccedilatildeo nos estudos sobre a moral O problema que tenho em vista todavia natildeo eacute esgotado por ela O fato de 10 Eacute certo que Schopenhauer jaacute havia colocado a questatildeo do valor [Wert] da histoacuteria no capiacutetulo 38 dos suplementos

do Mundo mas era preciso entatildeo conferir ao termo seu sentido ordinaacuterio e perguntar-se qual interesse tinha o estudo da histoacuteria com que finalidade se consagrar a ela como por exemplo jaacute fazia Schiller em sua ceacutelebre aula inaugural de 1789 mesmo se fosse para responder de maneira totalmente diversa (BINOCHE 2014 p 38)

11 Neste trecho Jensen faz alusatildeo a uma carta de Nietzsche a Overbeck de 23 de fevereiro de 1887 onde lemos ldquoFi-nalmente minha desconfianccedila agora se volta para a questatildeo de saber se a histoacuteria eacute realmente possiacutevel O que entatildeo algueacutem quer definir (feststellen) Algo que em um momento de acontecimento natildeo ldquoestaacute assentadordquo (feststand)

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

248

Nietzsche empreender uma anaacutelise histoacuterica ou natural da moral natildeo legitima justifica ou valida a proacutepria possibilidade de fazecirc-lo Por isso a necessidade de reconstruir o ambiente da discussatildeo

Por que devemos confiar nas descriccedilotildees ou mesmo interpretaccedilotildees histoacutericas de Nietzsche Por exemplo nos modos de valorar do nobre e do escravo em GM ou mesmo nesta diferenciaccedilatildeo Se Nietzsche como lemos nos apontamentos acima natildeo quer pensar ao modo de um platocircnico ou leibniziano com suas figuras eternas mas ao modo heraclitiano pela descriccedilatildeo do devir qual eacute a garantia de que tal descriccedilatildeo possua o miacutenimo apelo agrave realidade e de que no limite uma obra como GM natildeo seja simplesmente uma ficccedilatildeo Objetivamente que garantia temos de que a versatildeo da histoacuteria de Nietzsche seja melhor do que as outras de que devemos levaacute-la e levaacute-lo a seacuterio

Estas satildeo verdadeiras questotildees de ordem quando nos dispomos a examinar as criacuteticas de Nietzsche particularmente se consideramos sua iniciativa de erigir uma genealogia da moral Para adensar esta questatildeo gostaria de recuperar dois trechos do proacutelogo de GM na seccedilatildeo 07

O objetivo eacute percorrer a imensa longiacutenqua e recocircndita regiatildeo da moral da moral que realmente houve que realmente se viveu [] Meu desejo em todo caso era dar um olhar tatildeo agudo e imparcial uma direccedilatildeo melhor a direccedilatildeo da efetiva histoacuteria da moral prevenindo-se a tempo contra essas hipoacuteteses inglesas que se perdem no azul

ldquoRealmenterdquo ldquoolhar agudordquo ldquoimparcialrdquo ldquodireccedilatildeo melhorrdquo ldquoefetiva histoacuteriardquo Ao escrever assim Nietzsche parece apostar na possibilidade de descrever como ele ainda designaraacute na sequecircncia do mesmo texto o ldquoefetivamente constataacutevelrdquo o ldquorealmente acontecidordquo da histoacuteria da moral Em poucas palavras Nietzsche parece acreditar que a sua versatildeo da histoacuteria da moral eacute de alguma forma melhor ou por que natildeo dizer mais verdadeira do que as outras Que o cinza de suas anaacutelises como ele sugere na diferenciaccedilatildeo da mesma seccedilatildeo (que chamaraacute a atenccedilatildeo de Foucault) eacute mais verdadeiro ou realista do que o azul das hipoacuteteses inglesas Mas como Nietzsche pode garantir isso E ademais isso natildeo comprometeria uma das diretivas baacutesicas de seu pensamento afinal de contas apenas para recordar um apontamento que se tornou proverbial ldquonatildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildeesrdquo 7 [60] (KSA 12 213)

Natildeo espero responder a estas questotildees Na verdade meu intuito ao suscitaacute-las eacute estimular o debate e apontar para questotildees elementares que deveremos enfrentar no GT Genealogia e Criacutetica Para direcionar a questatildeo neste momento gostaria de indicar algumas diretivas gerais

Tendo a pensar nestas questotildees pelo prisma de uma historiografia mais complexa como aquela preconizada desde a segunda extemporacircnea que pondera sob diversos pontos de referecircncia a partir da perspectiva da vida Neste sentido eacute preciso considerar que embora agrave primeira vista Nietzsche pareccedila apostar na possibilidade de uma descriccedilatildeo quase realista positiva do passado capaz de oferecer uma versatildeo mais verdadeira do que a de seus oponentes o procedimento genealoacutegico natildeo tem em vista a verdade mas o valor O que move a genealogia da moral natildeo eacute uma vontade de verdade mas uma vontade de poder

A genealogia de Nietzsche articula um novo modus cogitanti balizado pela vontade de poder e o perspectivismo logo o seu entendimento do que significa descrever e explicar o

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia

249

passado natildeo pode ser resumido agrave oposiccedilatildeo miacuteope entre verdade e falsidade A representaccedilatildeo que produz a genealogia eacute ldquoverdadeirardquo no registro de uma historiografia peculiar que pesa vantagens e desvantagens uma historiografia criacutetica agocircnica que se constroacutei pelo contraste e escrutiacutenio de diferentes morais e tambeacutem dos diferentes modos de avaliaacute-la psicoloacutegico fisioloacutegico histoacuterico O apontamento 38 [4] de 1885 (KSA 11 613) eacute elucidativo neste sentido ldquolsquoVerdadersquo no meu modo de pensar natildeo significa necessariamente o contraacuterio do erro mas nos casos mais fundamentais tatildeo somente a posiccedilatildeo de diferentes erros entre sirdquo

Aleacutem disso a representaccedilatildeo das atuais consideraccedilotildees de valor eacute reconstruiacuteda a partir de um procedimento genealoacutegico que natildeo busca alcanccedilar algo como um principio originaacuterio mecacircnico e causal mas que tenta retratar reconstruir tipologizar os eventos e rupturas que foram mais decisivos para o seu atual estado de cristalizaccedilatildeo Trata-se de disputar pela representaccedilatildeo uma (re)interpretaccedilatildeo do passado privilegiando elementos e registros que natildeo foram privilegiados por outros justamente porque a versatildeo dos outros natildeo tem em mira a perspectivaccedilatildeo do valor mas a sua justificaccedilatildeo

Este grau esta nuance de verdade eacute o que se parece disputar na genealogia e com ela Nietzsche parece se reconciliar com o seu ofiacutecio de filoacutelogo ainda que seja como quer a famigerada expressatildeo de Willamowitz uma ldquofilologia do futurordquo

Genealogia o chatildeo proacuteprio de Nietzsche

250

Referecircncias bibliograacuteficasBEISER Frederick C Depois de Hegel a filosofia alematilde de 1840 a 1900 Trad Gabriel Ferreira Satildeo Leopoldo Editora da Unisinos 2017BINOCHE B Do valor da histoacuteria agrave histoacuteria dos valores In Cadernos Nietzsche vol1 no34 Satildeo Paulo JanJun 2014BRUSOTTI Marco Descriccedilatildeo comparativa versus Fundamentaccedilatildeo o quinto capiacutetulo de Para Aleacutem de Bem e Mal ldquoContribuiccedilatildeo agrave histoacuteria natural da moralrdquo In Cadernos Nietzsche vol37 no1 Satildeo Paulo JanJune 2016BURCKHARDT J A cultura do Renascimento um ensaio Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009DENAT Celine A filosofia e o valor da histoacuteria em Nietzsche Uma apresentaccedilatildeo das Consideraccedilotildees extemporacircneas In Cadernos Nietzsche 26 2010 JENSEN K A Nietzschersquos Philosophy of History Cambridge Cambridge University 2013NIETZSCHE Friedrich Kritische Studienausgabe (KSA) Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari Muumlnchen Walter de Gruyter 1988_____ Das vantagens e desvantagens da histoacuteria para a vida Satildeo Paulo Hedra 2017 PINKARD Terry German Philosophy (1760-1860) The Legacy of Idealism Cambridge Cambridge University Press 2002 SCHNADELBACH H Philosophy in Germany 1831-1933 Cambridge Cambridge University Press 1984WHITE Hayden Troacutepicos do discurso Ensaios sobre a criacutetica da cultura Satildeo Paulo Ed USP 2001

Ricardo de Oliveira Toledo

251

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias no projeto cultural de Nietzsche durante a deacutecada de 1870

Ricardo de Oliveira Toledo1

1 Da necessidade de um projeto culturalDesde 1862 Nietzsche conviveu com o projeto do rei prussiano Guilherme I de

transformar os trinta e nove reinos germacircnicos num uacutenico Estado Nacional Otto von Bismarck tambeacutem conhecido como o Chanceler de Ferro liderou tal empreitada A unificaccedilatildeo se efetivou em 1871 quando a Pruacutessia venceu a Franccedila na Guerra Fanco-Prussiana Na ocasiatildeo os estados do sul foram anexados ao novo territoacuterio alematildeo Criava-se entatildeo o II Reich (ou II Impeacuterio Alematildeo) que passaria a experimentar um raacutepido desenvolvimento militar poliacutetico e econocircmico Poreacutem uma unidade permanecia natildeo concluiacuteda a identidade cultural dos cidadatildeos alematildees O problema da cultura europeia e especialmente alematilde ocupou boa parte das reflexotildees de Jacob Burckhardt e Friedrich Nietzsche

Numa carta para Friedrich von Preen do iniacutecio de 1870 Burckhardt (2003 p 275-277) demonstrou sua apreensatildeo quanto ao futuro cultural da Alemanha Ponderava que os dois povos de grande espiacuterito do continente europeu os franceses e os alematildees estavam passando por uma completa mudanccedila em sua cultura O preocupante natildeo seria a guerra travada mas o novo espiacuterito que viria a se configurar naquela eacutepoca de guerras Noutra carta ao mesmo destinataacuterio do dia 26 de abril de 1872 Burckhardt (2003 p 269) reflete sobre as recentes consequecircncias da vitoacuteria de Bismarck e de sua administraccedilatildeo militarizada que em pouco tempo empurraria os trabalhadores miseravelmente para as faacutebricas dando lugar a um Estado industrialista O desenvolvimento de uma soberania cultural duradoura ainda estava em sua infacircncia

Da parte de Nietzsche sua intensa reflexatildeo cultural nos anos 1870 pode ser observada desde sua obra O nascimento da trageacutedia Nesse livro encontra-se aquilo que poderia ser chamado de o projeto cultural juvenil de Nietzsche tendo a arte como um canal de maior calibre Aparecia em seu texto um desejo pelo alvorecer de uma cultura germacircnica forte Ao mesmo tempo havia uma preocupaccedilatildeo muito bem delineada sobre o indiviacuteduo e sua relaccedilatildeo com a cultura Nos escritos posteriores cresceria gradativamente uma veemente criacutetica agrave germanicidade artificial e decadente do poacutes-unificaccedilatildeo Um fator determinante embora natildeo exclusivo para que Nietzsche reavaliasse o seu projeto cultural de O nascimento da trageacutedia intensificando as suas criacuteticas sobre a cultura foi seu envolvimento intelectual com Jacob Burckhardt

1 Doutor em Filosofia pela UERJ

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias

252

2 A amizade e o interesse de Nietzsche pelo pensamento cultural de BurckhardtPara Andler (1958) a relaccedilatildeo entre Nietzsche e Burckhardt influenciou a ambos

A amizade entre o filoacutelogo ainda respirando os ares de sua prodigiosa juventude e o historiador uma notaacutevel figura em toda Basileia comeccedilou em 1869 quando Nietzsche decide se fixar definitivamente na cidade suiacuteccedila Escutava com admiraccedilatildeo cada liccedilatildeo sobre a histoacuteria ministrada por Burckhardt Em 7 de novembro de 1870 escreveu a Carl von Gersdorff

Ontem agrave noite tive um prazer que eu gostaria que o senhor e todas as pessoas compartilhassem Jacob Burckhardt fez uma leitura livre sobre a ldquoGrandeza Histoacutericardquo que esteve totalmente de acordo com nosso pensamento e sentimento Esse excelente e extraordinaacuterio homem embora natildeo entregue agrave distorccedilatildeo eacute ainda inclinado a abafar a verdade Mas em nossas caminhadas confidenciais ele chama Schopenhauer de ldquonosso filoacutesofordquo (NIETZSCHE 1975 v 3 p 154)

De acordo com Rossi (1987) a despeito da comum simpatia que os amigos nutriam por Schopenhauer o entusiasmo wagneriano de Nietzsche destoava do espiacuterito inteiramente emancipado que Burckhardt sempre buscou para si2 Seu amor e fidelidade agrave verdade o impediam de uma conversatildeo eufoacuterica a uma corrente intelectual vigente em seu tempo O distanciamento da cotidianidade atraveacutes de uma liberdade aristocraacutetica permitiria a Burckhardt contemplar com mais clareza a histoacuteria Assim havia feito com o otimismo hegeliano dos alematildees os positivistas de matrizes comteanas e diga-se de passagem as ondas proletaacuterias Ele era um mestre de seu tempo de seu povo apesar disso distante desse conservando sempre seu peculiar modo aristocraacutetico Mostrava repugnacircncia pelo novo conhecimento odiava os congressos a academia e a vida puacuteblica

Garner (1990) indica que aos olhos de Burckhardt as tendecircncias romacircnticas oitocentistas das quais Wagner fazia parte eram caracteriacutesticas de uma sociedade que se fundamentava em ideais revolucionaacuterios3 Em 1848 enquanto ocorria uma revoluccedilatildeo liberal e imprimia-se o Manifesto Comunista de Marx e Engels o historiador via naquelas ideias propostas de transformaccedilotildees sociais e consequentemente culturais alheias ao seu aristocratismo e conservadorismo Em seu conjunto formavam um todo confuso desembocando em muitos casos no nacionalismo exagerado com suas frentes poliacuteticas em quase todos os rincotildees europeus Correspondendo-se com Hermann Shauenburg em 23 de agosto de 1848 Burckhardt (2003 p 214) declara que tudo estava desconjuntado e que sentia a desorganizaccedilatildeo da vida privada na Alemanha e uma Europa arruinada Rechaccedilava as sublevaccedilotildees camponesas e proletaacuterias aleacutem de seus resultados Entendia que a formaccedilatildeo dos Estados nacionais esfacelava as esferas tradicionais de poder e impunha laccedilos sociais artificiais

Fernandes (2006) destaca que Burckhardt era um homem cansado de seu tempo natildeo mantendo boa relaccedilatildeo com qualquer coisa lembrasse a Modernidade A partir de uma carta para Schauenburg de fevereiro de 18464 o comentador relembra uma lista de homens dos quais o suiacuteccedilo queria se desvencilhar Eram eles os radicais comunistas industriais doutos ambiciosos reflexivos abstratos absolutos filoacutesofos sofistas fanaacuteticos do Estado e 2 Para mais informaccedilotildees sobre o assunto recomenda-se a leitura de Chaves 20003 Cf tambeacutem Kitch 20054 Cf Burckhardt 2003 p 198-199

Ricardo de Oliveira Toledo

253

idealistas Lista semelhante pode ser elaborada com base nos escritos de Nietzsche (1988 v 2) pois em vaacuterias passagens haacute criacuteticas a tais tipos de homens como se pode constatar nos aforismos 16 235 472 473 475 de Humano demasiado humano Isto demonstra o quanto ambos estavam de acordo no que tange a vaacuterios aspectos de sua cotidianidade Natildeo sabiam como lidar com as transformaccedilotildees em especial poliacuteticas pelas quais seu continente passava guardando delas um pessimismo constante

Dentre os grandiosos legados de Burckhardt algo que natildeo se pode deixar escapar eacute sua contribuiccedilatildeo a respeito da compreensatildeo da redescoberta do homem em sua singularidade na Renascenccedila italiana tese pela qual Nietzsche tinha grande apreccedilo5 Sobre ela Nietzsche (1988 v 7 p 327) comenta por exemplo em uma anotaccedilatildeo de 18716 No entendimento de Burckhardt (2009) teria havido durante o Renascimento um verdadeiro florescimento do indiviacuteduo e com este o alvorecer de uma nova humanidade que prepararia a Europa para o mundo moderno Neste ponto concorda-se com Kahan (1992) de que natildeo se deve confundir em Burckhardt Modernidade com moderno O primeiro termo se refere agrave era marcada pelo industrialismo pela agitaccedilatildeo do trabalho e pela difusatildeo de ideais poliacuteticos das massas O segundo aponta para a passagem da Idade Meacutedia para a Moderna periacuteodo no qual o homem estaacute desejoso pelo novo

Na visatildeo de Garner (1990) Burckhardt acreditava que a descoberta do ser humano o despertar da personalidade e o desenvolvimento do indiviacuteduo satildeo as marcas por excelecircncia do Renascimento como a aurora da eacutepoca moderna Surgia no periacuteodo uma nova consciecircncia do mundo do ser humano de seu impulso criativo e da cultura A individualidade passou a preceder ao sentimento imperioso do grupo do clatilde da coletividade Apoacutes a quase vigiacutelia medieval na qual o homem somente se reconhecia diluiacutedo numa coletividade foi na Itaacutelia em que pela primeira vez o homem tornou-se um indiviacuteduo espiritual reconhecendo-se como tal Todavia qualquer liberdade natildeo era gratuita pois o indiviacuteduo teria que lutar para preservar sua autonomia Uma personalidade livre enfrentaria uma vida nem sempre confortaacutevel com suacutebitas mudanccedilas assaz violentas num mundo em que a opiniotildees poderiam trazer terriacuteveis consequecircncias dentre as quais a morte e o exiacutelio A soberania poliacutetica dos principados italianos se apoiava sobre um solo recorrentemente movediccedilo As guerras e traiccedilotildees ndash algumas efetivadas entre parentes - ameaccedilavam o poder dos governantes e consequentemente a vida de seus suacuteditos e pupilos ao mesmo tempo em que geravam uma necessidade de aprimoramento beacutelico e artiacutestico tanto em acircmbito individual quanto poliacutetico Kahan (1992) salienta que a vida sem riscos almejada pela socialdemocracia europeia e levada a cabo na Alemanha por Bismarck contrastava com a atmosfera renascentista imolava e impedia a formaccedilatildeo completa do indiviacuteduo a partir de seus impulsos

Ao discutir sobre aperfeiccediloamento da personalidade nos paracircmetros renascentistas Burckhardt medita pontualmente sobre o conceito de homem universal um lugar-comum entre os historiadores do Renascimento e que natildeo foi negligenciado por Nietzsche (1988 v 2) como se lecirc no aforismo 237 de Humano demasiado humano No trecho satildeo elencadas as caracteriacutesticas da cultura do Renascimento movida por forccedilas positivas a saber a emancipaccedilatildeo do pensamento desprezo das autoridades triunfo da educaccedilatildeoformaccedilatildeo (Bildung) sobre a tradiccedilatildeo entusiasmo pela ciecircncia desgrilhoamento do indiviacuteduo e busca pela perfeiccedilatildeo em suas criaccedilotildees Huizinga (1970) explica a figura do uomo universale 5 Cf Campione et al 20036 NachlassFragmento poacutestumo (NFFP) 18719[143]

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias

254

isto eacute do grande gecircnio do Renascimento como aquele indiviacuteduo de personalidade livre que pairava sobre doutrinas e moral sendo tambeacutem arrogante friacutevolo e dado ao prazer Embora fosse curioso por tudo que o cercava orientava-se por suas proacuteprias regras Mais do que isso guardava uma paixatildeo pagatilde pela beleza pelo mundo e pela vida Tanto para Burckhardt quanto para Nietzsche essas forccedilas estavam diminuiacutedas na cultura europeia do final do seacuteculo XIX

O desenvolvimento do uomo universale aparece no texto de Burckhardt (2009) como Bildung isto eacute o aacuterduo processo para que algueacutem seja capaz de se construir e dar forma a si mesmo Numa perspectiva cultural um indiviacuteduo que reuacutene em si o maacuteximo em potecircncia histoacuterica de seu tempo eacute capaz de expressar em suas realizaccedilotildees uma gama indescritiacutevel de propriedades de sua cultura Por conseguinte transforma-se num elo necessaacuterio um momento iacutempar de sua cultura 7 Poreacutem a dominaccedilatildeo de todos os elementos da cultura natildeo eacute o mesmo que erudiccedilatildeo Mais importante que o simples saber era a utilizaccedilatildeo do conhecimento em prol da criaccedilatildeo Para o uomo universale a sua capacidade criativa era fruto de uma investigaccedilatildeo apurada do aprimoramento teacutecnico do domiacutenio do proacuteprio corpo e dos materiais ao seu redor Quanto mais rigorosa fosse a formaccedilatildeo imposta a si mesmo maior seria a tarefa para a qual se destinaria Dessa forma o Renascimento contou com aquele tipo de indiviacuteduos que Burckhardt chamou de plenamente desenvolvidos

4 Burckhardt no pensamento cultural sobre o indiviacuteduo de NietzscheSatildeo diversos os elementos nos escritos posteriores a O nascimento da trageacutedia que

demonstram que a amizade com Burckhardt e a leitura de seus textos contribuiacuteram para a que Nietzsche elaborasse uma forte criacutetica ao germanismo industrialista posterior agrave unificaccedilatildeo alematilde bem como uma avaliaccedilatildeo do tipo de indiviacuteduos de seu tempo Em Ecce Homo de 1888 Nietzsche (1988 v 6) reitera sua objeccedilatildeo agrave cultura alematilde apontando que isto o motivou a escrever as Extemporacircneas na deacutecada anterior Preocupado com o legado cultural do triunfo alematildeo na guerra contra a Franccedila iniciou sua Primeira Consideraccedilatildeo extemporacircnea David Strauss o devoto e o escritor de 1873 dizendo que uma grande vitoacuteria eacute um grande perigo Ameaccedilador se tornou o fato de a opiniatildeo puacuteblica e os pensadores alematildees acreditarem que uma conquista beacutelica desembocaria na vitoacuteria de sua cultura Natildeo era a cultura francesa que havia sido derrotada Longe disso os alematildees se mantinham dependentes dela Nas palavras do filoacutesofo ldquosoacute quando houvermos imposto a esses [os franceses] uma cultura alematilde original se poderaacute falar tambeacutem de um triunfo da cultura alematilderdquo (NIETZSCHE 1988 v 1 p 163-164) Enquanto o impeacuterio alematildeo se materializava o espiacuterito alematildeo era extirpado de seu solo O indiviacuteduo civilizado do II Reich era deacutebil e sem qualquer nobreza indiferente agraves origens de seu povo Neste ponto concorda-se com o significado do termo ldquoWolkrdquo explicitado por Mosse (1988) bastante adequado ao ponto de vista adotado por Nietzsche na Extemporacircnea em questatildeo ldquoWolkrdquo denotaria um conjunto de indiviacuteduos unidos por uma essecircncia transcendente um sentimento de comunidade que eacute igualmente fonte da criatividade de seus membros No novo Estado os alematildees se uniam por laccedilos artificiais ou seja pela exaltaccedilatildeo de valores poliacuteticos destoantes da natureza vigorosa e aristocraacutetica de seus antepassados eram meros cidadatildeos Tendo isto em conta Nietzsche exigia uma direccedilatildeo e uma unidade para a cultura alematilde ateacute entatildeo inexistente ou quando muito confundida

7 Cf Burckhardt 1959 capV

Ricardo de Oliveira Toledo

255

com os momentos culturais que nada mais eram do que horas de folga ou de digestatildeo Os alematildees se tornaram incapazes de criar um estilo proacuteprio na multiplicidade natildeo harmocircnica de uma miscelacircnea policrocircmica e desorientada de estilos emprestados O verdadeiro homem de cultura o artista criativo original e vigoroso sem o qual natildeo se pode pensar a cultura de um povo em certa eacutepoca era um tipo rariacutessimo O problema da cultura alematilde acabava passando pelo crivo do filisteu culto com sua natildeo-cultura (ou pseudocultura) filisteia ou melhor sua barbaacuterie sistemicamente estendida a todos os setores da sociedade Como reconhece Piazzesi (2003) aleacutem de natildeo haver durante os anos 1870 e 1880 uma cultura de identidade nacional inequiacutevoca natildeo havia um ser alematildeo encarnado uniacutevoco e coerente Existiam somente algumas manifestaccedilotildees isoladas sobre as quais se conseguiria construir a ideia de identidade nacional As produccedilotildees da cultura alematilde eram menos fruto de sua originalidade e mais da assimilaccedilatildeo de formas estilos estiacutemulos e de sugestotildees daquilo que lhe era estranho De algum modo os alematildees estariam sempre num certo atraso com relaccedilatildeo ao restante da civilizaccedilatildeo europeia A tarefa de dar direccedilatildeo e unidade para a cultura deveria ser para indiviacuteduos corajosos que enfrentassem a apatia cultural dos poliacuteticos pensadores artistas imprensa e instituiccedilotildees de ensino da Alemanha

A Segunda Consideraccedilatildeo extemporacircnea Das vantagens e desvantagens da Histoacuteria para vida de 1874 que conta com menccedilatildeo direta a Burckhardt8 eacute um dos momentos emblemaacuteticos que demonstram como o pensamento de Nietzsche (1988 v 1) estava contagiado por sua amizade com o suiacuteccedilo No texto na esteira de Burckhardt o filoacutesofo alematildeo aponta que um povo a quem se atribui uma cultura deve ser algo de uacutenico sem cisotildees entre o que nele eacute interno e externo forma ou conteuacutedo O restabelecimento da sauacutede de um povo passa pela promoccedilatildeo de sua unidade de estilo no reencontro de seus instintos e sua lealdade Adverte que os indiviacuteduos de seu tempo se colocavam diante de um palco como espectadores da festa de uma exposiccedilatildeo mundial organizada pelos seus artistas histoacutericos O indiviacuteduo titubeava desconfiando de seus instintos confuso pelo que ocorria agrave sua volta percebendo como caoacutetica a relaccedilatildeo entre sua interioridade e o que manifesta de si mesmo Para se preservar assumia uma maacutescara de pessoa culta douta poeacutetica e poliacutetica simulando seriedade No fundo sua personalidade deacutebil escondia as anguacutestias e as miseacuterias iacutentimas do homem da Modernidade introspectivamente rancoroso enquanto deveria ser corajoso e seguro Neste sentido este tipo de homem natildeo poderia se assemelhar aos indiviacuteduos fortes vigorosos e destemidos que numa eacutepoca qualquer construiacuteram uma verdadeira cultura A histoacuteria soacute seria suportada pelas personalidades fortes enquanto as debilitadas a cancelariam Em consonacircncia com Burckhardt Nietzsche entendia que seria o homem superior de vasta experiecircncia quem escreveria a histoacuteria Por conseguinte como um arquiteto do futuro poderia julgar o passado A melhor experiecircncia eacute retirada do presente Eacute a partir deste que se extrai o material para que artisticamente se consiga erigir uma cultura permeada pelo instinto criativo de seus indiviacuteduos Logo ldquo[] a arte se contrapotildee agrave histoacuteria e somente quando a histoacuteria suporta ser uma obra de arte pode talvez manter ou [] suscitar instintosrdquo (NIETZSCHE 1988 v 1 p 296) Natildeo era isso o que resultava da educaccedilatildeo histoacuterica dos jovens indiviacuteduos da eacutepoca de Nietzsche Sem jamais ter vivenciado aquilo que aprende o jovem pensava ser profundo conhecedor de tudo e por este motivo experiente Seu

8 Em correspondecircncia com Nietzsche em 25 de fevereiro de 1874 Burckhardt comenta a citaccedilatildeo de seu nome na obra sobre a qual se sentia pouco agrave vontade pois a imagem ali descrita natildeo era inteiramente a sua (BUR-CKHARDT 2003 p 295-297)

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias

256

aprendizado comeccedilava pelo fim do caminho uma vez que aquilo que assimilou eacute o que o filoacutesofo alematildeo chamava de ldquovelharias da humanidaderdquo Com premissas equivocadas a Modernidade tentava procriar um tipo especiacutefico de indiviacuteduos incapaz de alcanccedilar uma vitalidade que permitisse a realizaccedilatildeo de algo mais elevado do que aquilo que jaacute vivenciava em seu modelo de cultura A cultura histoacuterica oitocentista natildeo primava o grande indiviacuteduo mas dava voz a uma massa de indiviacuteduos indiscerniacuteveis A massa somente mereceria algum meacuterito por trecircs aspectos pela imitaccedilatildeo imperfeita dos grandes indiviacuteduos como obstaacuteculo para esses e enfim como seus instrumentos Por isso os instintos da massa natildeo seriam relevantes jaacute que natildeo conseguiriam fundar qualquer elemento historicamente relevante

Denat (2011) considera que a Modernidade para Nietzsche eacute uma eacutepoca de deacutecadance da vida e da cultura Sua cultura eacute uma foacutermula moacuterbida e seu homem um tipo humano fraco mediacuteocre sem personalidade e sem forccedila Ao viver uma crise pode descobrir condiccedilotildees para sua cura Embora possa cambalear entre a recuperaccedilatildeo ou a morte a Modernidade comporta as possibilidades para que o homem consiga se superar Satildeo quatro as grandes caracteriacutesticas de seu indiviacuteduo A primeira delas eacute seu desejo ilimitado de saber num apetite descomedido pela histoacuteria mas que atormenta a cultura por sua febre historiadora Nada eacute triado por essa espeacutecie de homem historicista-teoacuterico tudo eacute bom A perspectiva praacutetica ou vital eacute perdida A segunda caracteriacutestica eacute sua falta de gosto que tem como causa as ideias modernas e democraacuteticas que igualam o valor de todas as coisas impedindo que escolhas sejam operadas Natildeo se consegue mais valorizar ou desprezar reter ou rejeitar autonomamente Pior os instintos democraacuteticos levam a uma hostilidade ao que eacute mais elevado A terceira eacute a de ser difuso e caoacutetico O homem moderno eacute uma mistura de todos os estilos como aparece na Primeira Extemporacircnea ou uma acumulaccedilatildeo grotesca Sua diversidade eacute na verdade uma mistura caoacutetica e sem unidade A uacuteltima caracteriacutestica e de maior relevacircncia que pressupotildee o caos e a ausecircncia de disciplina eacute a inquietude a extrema agitaccedilatildeo que paradoxalmente pode desembocar numa paralisia conduzindo o desejo de saber ao ceticismo o otimismo teoacuterico ao pessimismo a esperanccedila do conhecimento e do domiacutenio absolutos ao sentimento de fim de desespero - niilismo Enquanto um filoacutesofo meacutedico Nietzsche especifica que sua tarefa seria a de mostrar um caminho para a superaccedilatildeo do homem moderno abrindo espaccedilo para uma grande sauacutede

A profilaxia de uma cultura fraca seria permeada por uma reflexatildeo sobre a nebulosa situaccedilatildeo do indiviacuteduo quanto aos paradigmas educacionais das instituiccedilotildees de ensino Em Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino de 1872 Nietzsche (1988 v 1) indica que o objetivo capital da educaccedilatildeo contra uma pseudocultura deveria ser a Bildung da juventude e simultaneamente o futuro da cultura e a purificaccedilatildeo do espiacuterito alematildeo Ao inveacutes de a educaccedilatildeo se comprometer com a especializaccedilatildeo erudiccedilatildeo e a formaccedilatildeo profissional com fins utilitaristas para que os alunos aprendessem a ganhar dinheiro para que se tornassem operaacuterios deveria passar por uma reforma tendo como principal objetivo o homem superior Em seu julgamento aquela cultura era inautecircntica e de mau gosto As instituiccedilotildees de ensino submetidas ao Estado reforccedilavam a tutela deste a partir de interesses utilitaristas e industrialistas Era necessaacuteria uma libertaccedilatildeo do Estado de suas universidades e do tipo de cultura que criavam9

9 Cf NFFP 187432[67]

Ricardo de Oliveira Toledo

257

Na Terceira Consideraccedilatildeo extemporacircnea Schopenhauer como educador de 1874 Nietzsche (1988 v 1) rejeita a tutela do Estado sobre a cultura atraveacutes de uma educaccedilatildeo adestradora Denuncia que os professores submetidos agraves vantagens sociais de suas profissotildees como a subsistecircncia estaacutevel propiciada por seus salaacuterios providos pelo Estado empreenderiam uma educaccedilatildeo artificializadora Dos jovens alunos restaria o indiviacuteduo cocircmodo complacente que evita o fastiacutegio sem autodomiacutenio criativo e mero repetidor da opiniatildeo puacuteblica Este seria o tipo vantajosovaloroso para o Estado que se fortalece na preguiccedila e na covardia de seus cidadatildeos mais obedientes Daiacute Nietzsche em Schopenhauer como educador apelar para que o mundo da cultura fosse independente do Estado e para que os indiviacuteduos reconhecessem outra finalidade para sua existecircncia que natildeo seja servi-lo Em seu projeto cultural entende que gecircnio deve ser o propoacutesito da cultura (Cultur) No entanto o primado educacional da erudiccedilatildeo continuava sendo um obstaacuteculo o ciacuterculo dos eruditos que se denominavam pessoas cultas bem como o tecnicismo natildeo favorecia mas impedia ldquoo desenvolvimento da cultura (Cultur) e a procriaccedilatildeo do gecircnio []rdquo (NIETZSCHE 1988 v 1 p 358)

Consideraccedilotildees finaisNietzsche foi um pensador da cultura Desde O nascimento da trageacutedia iniciou a

elaboraccedilatildeo de um projeto cultural para uma identidade do espiacuterito germacircnico O projeto sempre alterado pode ser lido com nuances proacuteprias nos escritos de 1870 dos quais foram destacados Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino e as trecircs primeiras Consideraccedilotildees extemporacircneas A expressatildeo ldquoprojeto culturalrdquo natildeo aparece nos textos do filoacutesofo alematildeo mas eacute cunhado nesta investigaccedilatildeo para expressar o que se entende como uma criacutetica cultural que possuiacutea expectativas a cura de uma cultura em crise atraveacutes do indiviacuteduo forte soberano de espiacuterito livre capaz de estender o processo criativo que deu forma a si mesmo agrave cultura tornando-se para ela um elo indispensaacutevel O pensamento de Nietzsche sobre o lugar e o papel do indiviacuteduo na cultura dialoga em vaacuterios aspectos com as reflexotildees que abordam a mesma temaacutetica em Burckhardt Para esse a cultura de seu tempo estava debilitada por estar alienada aos propoacutesitos do Estado industrialista Semelhante julgamento eacute visto em Nietzsche que atenta para os interesses econocircmicos e a tutela do Estado como prejudiciais para a cultura Burckhardt via com preocupaccedilatildeo o legado cultural da guerra entre a Franccedila e a Pruacutessia e a unificaccedilatildeo poliacutetica alematilde Este eacute outro ponto de congruecircncia com Nietzsche que natildeo percebia garantias de que a vitoacuteria alematilde seria a vitoacuteria do espiacuterito alematildeo Acreditava que a cultura germacircnica reduzida a uma cultura da naccedilatildeo alematilde estava apinhada de materiais estranhos e disformes sendo caoacutetica Para Burckhardt o Renascimento italiano foi um momento em que a instabilidade poliacutetica a competiccedilatildeo entre as cidades o entusiasmo pelo novo e o secularismo permitiram que ocorresse o desenvolvimento de indiviacuteduos soberanos e do uomo universale Isto contrastava com a realidade educacional de seu tempo muitas vezes subserviente ao Estado industrialista A formaccedilatildeo para o desenvolvimento de uma personalidade plena era colocada de lado para dar lugar agrave criaccedilatildeo de indiviacuteduos cultos ou operaacuterios das faacutebricas que buscavam sobretudo a organizaccedilatildeo o progresso a estabilidade e o bem-estar O grande indiviacuteduo indispensaacutevel para a cultura estava ameaccedilado A comparaccedilatildeo de Burckhardt entre a cultura do Renascimento italiano e a situaccedilatildeo da cultura na Alemanha na deacutecada de 1870 tambeacutem ocorre em Nietzsche A ideia de um Estado perfeito organizado e voltado para o bem-estar dos cidadatildeos poderia impedir o florescimento do grande indiviacuteduo Em contrapartida permitiria o sucesso da pseudocultura do filisteiacutesmo cultural e do indiviacuteduo vantajoso por proclamar os valores

O indiviacuteduo em Burckhardt e suas influecircncias

258

do Estado ou por ser um trabalhador Nietzsche desejava uma educaccedilatildeo que tivesse como grande finalidade a cultura livre das amarras do Estado que estimulasse o desenvolvimento de personalidades singulares e criativas Ao contraacuterio disso o ensino puacuteblico era nivelador massificador e portanto uniformizador O pensador alematildeo considerava necessaacuterio que o gecircnio fosse o propoacutesito da cultura pois quase todos os indiviacuteduos estavam debilitados Embora as reflexotildees de Burckhardt e de Nietzsche sejam atuais e bastante relevantes o esforccedilo desta pesquisa foi acima de tudo de fazer uma revisatildeo do pensamento de ambos para como consequecircncia obter maior compreensatildeo dos anseios do filoacutesofo alematildeo para a cultura

Ricardo de Oliveira Toledo

259

Referecircncias bibliograacuteficasANDLER C Nietzsche sa vie et sa penseacutee Les preacutecurseurs de Nietzsche La jeunesse de Nietzsche Paris Gallimard 1958BURCKHARDT J A Cultura do Renascimento na Itaacutelia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Cartas Trad Renato Rezende Rio de Janeiro Topbooks 2003_____ Meditazioni sulla storia universale Firenze Sansoni 1959CAMPIONE G et al Nietzsches persoumlnliche Bibliothek Berlin New York Walter de Gruyter 2003CHAVES E Cultura e poliacutetica O jovem Nietzsche e Jakob Burckhardt In Cadernos Nietzsche Satildeo Paulo n 9 p 41-66 2000CURT P Janz Vita di Nietzsche Bari Caterza 1982 Vol IIIDENAT Ceacuteline A concepccedilatildeo nietzschiana de homem moderno ou a modernidade como momento ldquocriacuteticordquo da histoacuteria In As ilusotildees do eu Spinoza e Nietzsche (Org MARTINS Andreacute SANTIAGO Homero OLIVA Luis Ceacutesar) Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2011FERNANDES C S Jacob Burckhardt e a preparaccedilatildeo para ldquoA Cultura do Renascimento na Itaacuteliardquo Fecircnix ndash Revista de Histoacuteria e Estudos Culturais v3 n 3 p1-18 2006GARNER R Jacob Burckhardt as a Theorist of Modernity Reading ldquoThe Civilization of the Renaissance in Italyrdquo Sociological Theory v 8 n 1 p 48-57 1990HUIZINGA J The problem of Renaissance In Men and ideas Essays on History the Middles Ages the Renaissance Trad J Holmes e H Marle New York Harper Torchbooks 1970KAHAN A S Aristocratic Liberalism The social thought of Jacob Burckhardt John Stuart Mill and Alexis de Tocqueville New York Oxford University Press 1992KITCH M Jacob Burckhardt Romanticism and cultural History In Historical Controversies and Historians W Lamont (org) London amp Pennsylvania Taylor amp Francis 2005MOSSE G The crisis of german idelology New York Grosset and Dunlap 1998NIETZSCHE F Saumlmtiliche Werke Kritische Studienausgabe ndash KSA (Herausgegeben von G Colli und M Montinari) Berlin New York Walter de Gruyter 1988 15 Baumlnden (15 volumes)_____ Brifwechsel Kritische Gesamtausgabe ndash KGB (Herausgegeben von G Colli und M Montinari) Berlin de Gruyter 1975 8 Baumlnden (8 volumes)PIAZZESI C Nietzsche Fisiologia dell rsquoarte e deacutecadence Lecce Conte Editore 2003ROSSI R Nietzsche e Burckhardt Genova Tilgher 1987

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno

260

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno retorno O resgate da inocecircncia do vir-a-ser

Roberta Franco Saavedra1

Uma das questotildees fundamentais da histoacuteria da filosofia ocidental eacute a anaacutelise das engrenagens dos pressupostos e das implicaccedilotildees das doutrinas morais Tradicionalmente os conceitos de ldquoculpardquo e ldquocastigordquo desempenham um importante papel na atribuiccedilatildeo de valores morais Tais conceitos fundamentam-se na crenccedila de que os indiviacuteduos satildeo dotados de uma suposta ldquovontade livrerdquo ou ldquolivre-arbiacutetriordquo o que em uacuteltima instacircncia permite a instituiccedilatildeo da imputabilidade ou responsabilidade moral Nietzsche como criacutetico ferrenho da tradiccedilatildeo de pensamento ocidental teria buscado desmistificar os pressupostos que garantem a sustentaccedilatildeo da chamada ldquoordem moral do mundordquo Uma das noccedilotildees centrais de sua filosofia consiste na concepccedilatildeo do eterno retorno e traz agrave tona uma interpretaccedilatildeo que reveste de necessidade o mundo e a existecircncia e destitui de sentido a oposiccedilatildeo metafiacutesica instaurada entre necessidade (mundo da natureza) e liberdade (mundo da vontade humana) A aposta no eterno retorno desestabiliza uma seacuterie de elementos cristalizados pela tradiccedilatildeo metafiacutesica mas aqui nos interessa especificamente a criacutetica agrave crenccedila no ldquolivre-arbiacutetriordquo humano Partindo disso este trabalho tem como objetivo principal investigar lanccedilando matildeo de uma perspectiva do eterno retorno a possiacutevel relaccedilatildeo de continuidade ou complementaridade e analisar os pontos convergentes entre dois textos nos quais Nietzsche trata do problema da imputabilidade moral Satildeo eles ldquoa faacutebula da liberdade inteligiacutevelrdquo (presente no corpo da obra Humano demasiado humano publicado em 1878) e o ldquoerro do livre-arbiacutetriordquo (compondo o capiacutetulo intitulado ldquoOs quatro grandes errosrdquo de Crepuacutesculo dos Iacutedolos publicado em 1888) Pretende-se diante disso investigar de que maneira a concepccedilatildeo do eterno retorno eacute uma forma de subversatildeo em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia ocidental no que concerne agrave questatildeo da imputabilidade moral ndash a partir da anaacutelise das duas possiacuteveis formas de abordagem do problema ndash e mapear os artifiacutecios dos quais Nietzsche se vale para investir no seu projeto de resgate da inocecircncia do vir-a-ser ndash inocecircncia que lhe foi despojada com a imposiccedilatildeo da crenccedila na imputabilidade ndash visando em uacuteltima instacircncia agrave inauguraccedilatildeo de um novo registro de pensamento e moralidade

O projeto da filosofia nietzschiana empenha-se sobretudo na criacutetica agrave metafiacutesica tradicional e na aposta em uma transvaloraccedilatildeo de todos os valores Em Assim falou Zaratustra por exemplo deparamo-nos com a radicalidade da criacutetica nietzschiana agrave fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da existecircncia o autor para simbolizar sua filosofia anti-metafiacutesica se vale da imagem do ldquomeio-diardquo ou seja o momento sem sombra de dicotomias suprimidas de afirmaccedilatildeo da existecircncia de uma uacutenica realidade Para marcar o ldquofim do longo errordquo 1 Doutoranda do PPGFUFRJ

Roberta Franco Saavedra

261

o filoacutesofo tambeacutem apresenta o personagem Zaratustra ldquoMeio-dia momento da sombra mais breve fim do longo erro apogeu da humanidade INCIPIT ZARATUSTRA [comeccedila Zaratustra])rdquo (Ibidem) Em sua obra autobiograacutefica Nietzsche refere-se a Assim falou Zaratustra como o auge da parte afirmativa de seu pensamento O autor presta cara homenagem a esta obra conferindo-lhe um valor superior em relaccedilatildeo aos outros escritos e cedendo a ela um lugar agrave parte (NIETZSCHE 2008 ldquoAssim Falou Zaratustrardquo sect 8 p 85) chegando ateacute mesmo a descrevecirc-la como o maior presente que ateacute agora fora ofertado agrave humanidade (Ibidem Proacutelogo sect 4 p 16) A razatildeo pela qual Nietzsche valoriza tatildeo enfaticamente Zaratustra deve-se agrave concepccedilatildeo fundamental da obra ldquoo pensamento do eterno retornordquo entendido como ldquoa mais elevada forma de afirmaccedilatildeo que se pode em absoluto alcanccedilarrdquo (Ibidem ldquoAssim Falou Zaratustrardquo sect 1 p 79) Em Assim falou Zaratustra o eterno retorno eacute trazido agrave tona atraveacutes de formas variadas e acompanhado de uma riqueza de siacutembolos a partir de uma linguagem poeacutetico-dramaacutetica mais ajustada com uma concepccedilatildeo artiacutestica existencial do que uma fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da existecircncia Partindo disso trabalharemos aqui com a hipoacutetese segundo a qual o pensamento do eterno retorno natildeo soacute confronta a tradiccedilatildeo metafiacutesica como tambeacutem cria outro registro de pensamento aliado com a arte operando para aleacutem das dualidades metafiacutesicas e efetivamente viabilizando o projeto nietzschiano de superaccedilatildeo da metafiacutesica

Apesar de compor o pensamento central de Assim falou Zaratustra o eterno retorno irrompe pela primeira vez em A gaia ciecircncia surgindo atraveacutes de uma forma de elaboraccedilatildeo que corrobora a tese de que se trata de uma ficccedilatildeo poeacutetica destituiacuteda de uma busca dogmaacutetica pela verdade (ou seja alheia a uma pretensatildeo ontoloacutegica) No livro IV de A gaia ciecircncia a anunciaccedilatildeo do eterno retorno se daacute nos seguintes termos ldquoE se um dia ou uma noite um democircnio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidatildeo e dissesse lsquoEsta vida como vocecirc a estaacute vivendo e jaacute viveu vocecirc teraacute de viver mais uma vez e por incontaacuteveis vezes ()rsquordquo (NIETZSCHE 2001 IV sect 341 p 230)

O gesto de apresentar o eterno retorno como hipoacutetese ficcional natildeo soacute ratifica e radicaliza a criacutetica agrave verdade ndash concebida como valor superior ndash como tambeacutem desmistifica uma seacuterie de conceitos cristalizados ao longo da tradiccedilatildeo de pensamento ocidental como as noccedilotildees de sujeito livre-arbiacutetrio temporalidade linear etc Conceber o eterno retorno tal como exposto por Nietzsche nos incita a pensar um novo modo de conceber a existecircncia que natildeo se ateacutem a nenhuma espeacutecie de fundamento metafiacutesico e que consiste na adoccedilatildeo de uma visatildeo traacutegica do mundo que afirma incondicionalmente a vida sem o objetivo de corrigi-la atraveacutes dos mecanismos da razatildeo

Para elucidar mais detidamente a ideia central do pensamento do eterno retorno podemos nos debruccedilar sobre uma passagem de Zaratustra na qual seus animais o reverenciam como ldquoo mestre do eterno retornordquo e com a imagem da ampulheta ndash tambeacutem presente no ldquomaior dos pesosrdquo de A gaia ciecircncia - elucidam essa outra concepccedilatildeo de temporalidade de histoacuteria de interpretaccedilatildeo da existecircncia

Pois teus animais bem sabem oacute Zaratustra quem tu eacutes e tens de tornar-te eis que eacutes o mestre do eterno retorno ndash eacute esse agora o teu destino[]Vecirc sabemos o que ensinas que todas as coisas eternamente retornam e noacutes mesmos com elas e que eternas vezes jaacute estivemos aqui juntamente com todas as coisas

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno

262

Ensinas que haacute um grande ano do vir-a-ser uma monstruosidade de grande ano tal como uma ampulheta ele tem de virar sempre de novo a fim de novamente escorrer e transcorrer -- de modo que todos esses anos satildeo iguais a si mesmos nas coisas maiores e tambeacutem nas menores ndash de modo que noacutes mesmos somos iguais a noacutes mesmos em cada grande ano nas coisas maiores e tambeacutem nas menores (NIETZSCHE 2011 ldquoO convalescenterdquo p 211 Grifos do autor)

O eterno retorno consiste portanto na repeticcedilatildeo ciacuteclica e eterna de todos os eventos a ampulheta eacute eternamente virada e tudo retorna incessantemente Nesse sentido podemos nos perguntar acerca das reverberaccedilotildees disso em um dos problemas claacutessicos da filosofia moderna como o problema da liberdade da vontade pois se o funcionamento do mundo ndash e dos sujeitos ndash opera sob o regime da necessidade como seria possiacutevel admitir ndash e demonstrar ndash a existecircncia do livre-arbiacutetrio humano Na afirmaccedilatildeo ilimitada e irrestrita do devir presente no pensamento do eterno retorno podemos dizer que natildeo existe ldquoliberdade da vontaderdquo ndash pelo menos natildeo de forma anaacuteloga agrave concepccedilatildeo tradicional do termo A partir dessa breve exposiccedilatildeo da perspectiva do eterno retorno estaremos em condiccedilotildees de melhor compreender o sentido da criacutetica que Nietzsche tece agrave ldquoliberdade inteligiacutevelrdquo e ao ldquoerro do livre-arbiacutetriordquo como modo de interpretar os desdobramentos do pensamento do eterno retorno no acircmbito do problema filosoacutefico que versa sobre as vicissitudes da dicotomia necessidadeliberdade

Um dos conceitos engendrados e enraizados pela tradiccedilatildeo metafiacutesica que o eterno retorno desestabiliza eacute a crenccedila no livre-arbiacutetrio ou na liberdade da vontade humana A concepccedilatildeo do eterno retorno traz agrave tona uma interpretaccedilatildeo que reveste de necessidade o mundo e a existecircncia e destitui de sentido a oposiccedilatildeo metafiacutesica instaurada entre necessidade (mundo da natureza) e liberdade (mundo da vontade humana) Eacute neste sentido que Nietzsche tece sua criacutetica agrave crenccedila no livre-arbiacutetrio em ldquoa faacutebula da liberdade inteligiacutevelrdquo o filoacutesofo descreve as fases principais da histoacuteria dos sentimentos em virtude dos quais os indiviacuteduos satildeo tornados responsaacuteveis por seus atos denominando esse processo como a histoacuteria dos sentimentos morais Nietzsche elenca a sequumlecircncia de ldquoerrosrdquo que por fim resulta na instituiccedilatildeo da imputabilidade moral

Primeiro chamamos as accedilotildees isoladas de boas ou maacutes sem qualquer consideraccedilatildeo por seus motivos apenas devido agraves consequumlecircncias uacuteteis ou prejudiciais que tenham Mas logo esquecemos a origem dessas designaccedilotildees e achamos que a qualidade de ldquobomrdquo ou ldquomaurdquo eacute inerente agraves accedilotildees sem consideraccedilatildeo por suas consequumlecircncias () Em seguida introduzimos a qualidade de ser bom ou mau nos motivos e olhamos os atos em si como moralmente ambiacuteguos Indo mais longe damos o predicado bom ou mau natildeo mais ao motivo isolado mas a todo o ser de um homem do qual o motivo brota como a planta do terreno (NIETZSCHE 2005 sect 39 p 45)

Os juiacutezos de valor moral ldquobomrdquo e ldquomaurdquo pressupotildeem e se sustentam na crenccedila na liberdade do sujeito que supostamente pratica a accedilatildeo pois se a accedilatildeo fosse considerada como executada de forma necessaacuteria (qual seja natildeo livre) tornar-se-ia inviaacutevel qualquer atribuiccedilatildeo de culpa qualquer espeacutecie de responsabilizaccedilatildeo Em sua abordagem Nietzsche procura demonstrar como os artifiacutecios de criaccedilatildeo do fundamento da imputabilidade foram articulados primeiramente os predicados ldquobomrdquo e ldquomaurdquo eram associados meramente

Roberta Franco Saavedra

263

agraves accedilotildees para posteriormente serem expandidos e atribuiacutedos ao ser humano isto eacute agrave totalidade do sujeito Em certo sentido podemos dizer que a condiccedilatildeo de possibilidade de todo julgamento moral eacute a crenccedila na liberdade da vontade isto eacute na liberdade do sujeito que pratica as accedilotildees ndash as quais em consonacircncia com esse sistema de raciociacutenio sustentado pelo edifiacutecio moral ndash seratildeo conformes agrave ldquonatureza moralrdquo do sujeito Como pontua Oswaldo Giacoacuteia em Nietzsche versus Kant

a teoria do caraacuteter inteligiacutevel tanto em Kant como em Schopenhauer eacute um recurso dos filoacutesofos para assegurar a legitimidade de conceitos fundamentais da moralidade tais como responsabilidade e imputaccedilatildeo e com isso justificar a atribuiccedilatildeo de culpa (GIACOacuteIA 2012 p 152)

Apoacutes elencar os erros oriundos da significaccedilatildeo moral da existecircncia Nietzsche anuncia o seu diagnoacutestico

E afinal descobrimos que tampouco este ser [o homem] pode ser responsaacutevel na medida em que eacute inteiramente uma consequumlecircncia necessaacuteria e se forma a partir dos elementos e influxos de coisas passadas e presentes portanto que natildeo se pode tornar o homem responsaacutevel por nada seja por seu ser por seus motivos por suas accedilotildees ou por seus efeitos Com isso chegamos ao conhecimento de que a histoacuteria dos sentimentos morais eacute a histoacuteria de um erro o erro da responsabilidade que se baseia no erro do livre-arbiacutetrio [] Logo porque o homem se considera livre natildeo porque eacute livre ele sofre arrependimento e remorso ndash (NIETZSCHE 2005 sect 39 p 45 ndash 46)

De acordo com o pensamento do eterno retorno o mundo eacute regido pela necessidade e o ldquoindiviacuteduordquo 2 natildeo pode ser considerado responsaacutevel por si mesmo porque estaacute inserido no ldquotodordquo

cada um eacute necessaacuterio eacute um pedaccedilo de destino pertence ao todo estaacute no todo ndash natildeo haacute nada que possa julgar medir comparar condenar nosso ser pois isto significaria julgar medir comparar condenar o todo Mas natildeo existe nada fora do todo (NIETZSCHE 2006 VI sect 8 p 46 Grifos do autor)

A responsabilidade natildeo deve ser atribuiacuteda a um suposto ldquosujeito livrerdquo porque toda vida opera conforme as leis de uma espeacutecie de ldquofatalidaderdquo Eacute neste sentido que ldquoNingueacutem eacute responsaacutevel pelo fato de existir por ser assim ou assado por se achar nessas circunstacircncias nesse ambienterdquo (Ibidem) Verificamos ainda uma nova concepccedilatildeo de tempo que parece inaugurar uma espeacutecie de temporalidade circular que unifica natildeo soacute ldquosujeitordquo e ldquomundordquo como tambeacutem passado presente e futuro ldquoA fatalidade do seu ser natildeo pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e seraacuterdquo (Ibidem) Se tudo eacute necessaacuterio entatildeo tudo estaacute contido no ldquofadordquo ndash ateacute mesmo as objeccedilotildees e resistecircncias a essa ideia afinal

cada ser humano eacute ele proacuteprio uma porccedilatildeo de fado quando ele pensa contrariar o fado [] justamente nisso se realiza tambeacutem o fado a luta eacute uma ilusatildeo mas igualmente a resignaccedilatildeo ao fado todas essas ilusotildees se acham incluiacutedas no fado (NIETZSCHE 2008 ldquoO andarilho e sua sombrardquo sect 61 p 199)

2 Entendido aqui como ficccedilatildeo pois a ideia de unidade natildeo comporta para Nietzsche as inuacutemeras relaccedilotildees entre forccedilas que compotildeem um indiviacuteduo

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno

264

Dessa forma Nietzsche desarticula e esvazia de sentido as engrenagens das dicotomias metafiacutesicas ao suprimir a oposiccedilatildeo entre ser humano e mundo assim como a oposiccedilatildeo entre sujeito e objeto ao contraacuterio ambos formam o ldquotodordquo e portanto encontram-se sob o mesmo regime de funcionamento Segundo Giacoacuteia

[] dissolve-se a oposiccedilatildeo comum a Platatildeo Kant e Schopenhauer entre necessidade mecacircnica vigente na natureza e liberdade (natildeo fenomecircnica pois o homem empiacuterico como parte da natureza encontra-se submetido agrave seacuterie necessaacuteria de causas invariaacuteveis liberdade portanto transcendental apreensiacutevel do ponto de vista natildeo fenomecircnico fora das coordenadas de tempo espaccedilo e causalidade natural ndash o uacuteltimo reduto metafiacutesico em que se abrigou na modernidade a faacutebula do livre-arbiacutetrio e com ele a possibilidade de justificaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo dos juiacutezos de valor moral e imputaccedilatildeo) (GIACOacuteIA 2012 p 153)

O termo ldquoliberdade inteligiacutevelrdquo eacute denunciado por Nietzsche como uma faacutebula porque essa concepccedilatildeo de liberdade baseia-se em princiacutepios metafiacutesicos ndash pois de acordo com a tradiccedilatildeo o mundo fenomecircnico (aparente) eacute regido pela necessidade mecacircnica ao passo que o mundo inteligiacutevel (isto eacute o mundo verdadeiro metafiacutesico) garantiria o fundamento da liberdade humana A histoacuteria dos sentimentos morais eacute interpretada como o desdobramento de uma seacuterie de equiacutevocos conceituais porque se sustenta em pressupostos forjados ndash ou seja em nenhuma medida ldquoaprioriacutesticosrdquo ndash como as noccedilotildees de sujeito liberdade inteligiacutevel imputabilidade moral etc

Na anaacutelise do ldquoerro do livre-arbiacutetriordquo a discussatildeo eacute desenvolvida em outros termos passando pelo crivo da criacutetica a partir de uma avaliaccedilatildeo mais declaradamente sintomatoloacutegica Se em Humano demasiado humano Nietzsche relata os rumos do percurso da histoacuteria dos sentimentos morais em Crepuacutesculo dos iacutedolos o filoacutesofo busca responder agraves questotildees de ordem mais psicoloacutegica afinal por que querer julgar E por que querer incutir culpa A origem da responsabilidade tem como pressuposto fisioloacutegico a fraqueza instintiva o objetivo do advento da responsabilidade (que viabilizou a criaccedilatildeo da culpa) consistiu na justificaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo da puniccedilatildeo Para Nietzsche os indiviacuteduos foram considerados livres com o intuito de permitir ou autorizar os mecanismos intriacutensecos ao ato do julgamento e sua consequumlente puniccedilatildeo A gecircnese da liberdade da vontade fora localizada no campo da consciecircncia ndash entendida como instacircncia produtora da vontade e governada pela contingecircncia ndash o que corresponde para o filoacutesofo alematildeo ldquoagrave mais fundamental falsificaccedilatildeo da moeda em questotildees psicoloacutegicasrdquo

Onde quer que responsabilidades sejam buscadas costuma ser o instinto de querer julgar e punir que aiacute busca O vir-a-ser eacute despojado de sua inocecircncia quando se faz remontar esse ou aquele modo de ser agrave vontade a intenccedilotildees a atos de responsabilidade a doutrina da vontade foi essencialmente inventada com o objetivo da puniccedilatildeo isto eacute de querer achar culpado () Os homens foram considerados lsquolivresrsquo para poderem ser julgados ser punidos ndash ser culpados em consequumlecircncia toda accedilatildeo teve de ser considerada como querida e a origem de toda accedilatildeo localizada na consciecircncia (ndash assim a mais fundamental falsificaccedilatildeo de moeda em questotildees psicoloacutegicas transformou-se em princiacutepio da psicologia mesma) (NIETZSCHE 2006 VI sect 7 p 45 ndash 46 Grifos do autor)

Roberta Franco Saavedra

265

O pensamento do eterno retorno instaura um caraacuteter de necessidade em cujo indiviacuteduo ndash concebido natildeo como sujeito mas como parte do todo como jogo instintivo de forccedilas ndash estaacute submetido O instinto de querer julgar e punir pulsa em um tipo de vida enfraquecido que se ressente contra o passado e eacute incapaz de afirmar a existecircncia tal como ela se apresenta procurando recalcar seus aspectos mais problemaacuteticos A puniccedilatildeo eacute um modo de consumaccedilatildeo da vinganccedila daqueles que natildeo possuem forccedila suficiente para afirmar o necessaacuterio para suportar o fado Eacute neste sentido que a repeticcedilatildeo eterna e circular de todos os eventos potildee em xeque uma significaccedilatildeo ontoloacutegica da existecircncia se absolutamente tudo eacute necessaacuterio e se natildeo haacute instacircncia ontoloacutegica para ldquosalvarrdquo a liberdade da vontade os juiacutezos morais de imputaccedilatildeo satildeo insustentaacuteveis

Para arrasar o edifiacutecio metafiacutesico e efetivamente viabilizar seu projeto Nietzsche inscreve-se em outro registro para reclamar o resgate da inocecircncia do vir-a-ser ndash inocecircncia que lhe foi despojada com a artimanha da responsabilidade

O fato de que ningueacutem mais eacute feito responsaacutevel de que o modo do ser natildeo pode ser remontado a uma causa prima () apenas isto eacute a grande libertaccedilatildeo ndash somente com isso eacute novamente estabelecida a inocecircncia do vir-a-ser (NIETZSCHE 2006 VI sect8 p 46 ndash 47 grifos do autor)

Importante ressaltar que o pensamento do eterno retorno natildeo incorre em uma concepccedilatildeo radicalmente determinista natildeo se trata da enunciaccedilatildeo de um fatalismo cego mas da incitaccedilatildeo de um pathos afirmativo em relaccedilatildeo agrave existecircncia A partir da compreensatildeo dessa nova forma de interpretaccedilatildeo abrem-se as possibilidades de ressignificaccedilatildeo de termos e conceitos exaustivamente utilizados pela tradiccedilatildeo como sinaliza Giacoacuteia

A paulatina compreensatildeo de que tudo eacute necessaacuterio conduz ao refinamento do sentimento e da ideia de justiccedila ndash mas de uma justiccedila que natildeo mais condena e pune senatildeo que absolve que faz compreender tambeacutem que tudo eacute inocecircncia pois tudo se encadeia numa mesma e uacutenica corrente do vir-a-ser (GIACOacuteIA 2012 p 153 Grifos do autor)

A noccedilatildeo de justiccedila adquire assim uma nova roupagem desvinculando-se de qualquer espeacutecie de vinganccedila Giorgio Agamben tambeacutem atenta agrave outra possiacutevel ressignificaccedilatildeo presente na filosofia de Nietzsche (AGAMBEN 2015 p 47) outro conceito ldquotransvaloradordquo eacute o de redenccedilatildeo ndash que historicamente eacute um termo apropriado pela doutrina cristatilde ndash ldquoZaratustra eacute aquele que ensina agrave vontade a lsquoquerer para traacutesrsquo a transformar todo lsquoassim foirsquo em um lsquoassim eu quisrsquo lsquoapenas isto se chama redenccedilatildeorsquordquo

O pensamento do eterno retorno para aleacutem de esvaziar o sentido das produccedilotildees metafiacutesicas cristalizadas na cultura ocidental estabelece uma nova interpretaccedilatildeo da existecircncia que consiste sobretudo na afirmaccedilatildeo da inocecircncia Inocecircncia entendida como constitutiva do pathos que diz respeito a todas as partes do todo ndash movimento que requer para ser plenamente compreendido o entendimento de que eacute absurdo separar a forccedila daquilo que ela pode e a vontade daquilo que lhe corresponde diretamente (DELEUZE 2018 p 36) pois a inocecircncia eacute o jogo da existecircncia da forccedila e da vontade e a primeira aproximaccedilatildeo da inocecircncia consiste na natildeo separaccedilatildeo da forccedila e no natildeo desdobramento da vontade

A criacutetica agrave imputabilidade moral no eterno

266

Referecircncias bibliograacuteficasDELEUZE Gilles Nietzsche e a filosofia Trad de Mariana de Toledo Barbosa Oviacutedio de Abreu Filho Satildeo Paulo n-1 ediccedilotildees 2018GIACOIA JUNIOR Oswaldo Nietzsche x Kant uma disputa permanente a respeito de liberdade autonomia e dever Rio de Janeiro Casa da Palavra Satildeo Paulo Casa do Saber 2012NIETZSCHE Friedrich Humano demasiado humano Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005_____ Humano demasiado humano II Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008_____ Aurora reflexotildees sobre os preconceitos morais Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004_____ A gaia ciecircncia Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ningueacutem Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011_____ Genealogia da moral uma polecircmica Trad de Paulo Ceacutesar Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos Trad de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006_____ Ecce Homo como algueacutem se torna o que eacute Trad de Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

Wilson Luciano Onofri

267

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista de Nietzsche a partir do conceito de autossupressatildeo

Wilson Luciano Onofri1

Consideraccedilotildees iniciais Nos uacuteltimos anos da pesquisa Nietzsche presenciamos uma enxurrada de estudos

cujas orientaccedilotildees teoacutericas remontam abordagens naturalistas invadirem congressos e simpoacutesios dedicados ao filoacutesofo Isso natildeo deixou de causar espanto a muitos daqueles que se dedicam ao estudo o filoacutesofo natildeo porque tal abordagem natildeo encontre ressonacircncia nos textos de Nietzsche mas porque essas interpretaccedilotildees tendo seu lugar nas estrateacutegias filosoacuteficas do pensador alematildeo tem resultado em aporias interpretativas ainda mais radicais do que a exegeses estava acostumada

As contradiccedilotildees e ambiguidades sempre foram reconhecidas como presentes no pensamento do filoacutesofo sendo inclusive reconhecidas como parte de seu exerciacutecio filosoacutefico todavia os problemas comeccedilam quando se procura harmonizar as pretensotildees criacuteticas radicais presentes com sua instrumentalizaccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico e seus principais resultados no seu programa filosoacutefico O problema parece se manifestar basicamente de duas formas a saber o programa criacutetico de Nietzsche muitas vezes tem como alvo as proacuteprias ciecircncias e suas bases epistemoloacutegicas inviabilizando as pretensotildees de validade dessa perspectiva no interior de seu proacuteprio pensamento e de outro temos a presenccedila dessas abordagens de cunho naturalista inspirada nos meacutetodos e conquistas das ciecircncias apresentando-se para aleacutem de pretensotildees meramente criacuteticas mas pelo contraacuterio buscando seu lugar no tatildeo discutido vieacutes propositivo do pensamento do filoacutesofo

Como forma de se buscar transpor esse problema instaurado no interior da disputa exegeacutetica dos estudos do filoacutesofo uma epistemologia de ordem pragmaacutetica2 tem se mostrado como mais promissora na harmonizaccedilatildeo de perspectivas tatildeo contraditoacuterias no interior de um pensamento que natildeo se pretendeu sistemaacutetico mas que todavia eacute sempre intimado a prestar contas sobre suas pretensotildees e meacutetodos diante a comunidade filosoacutefica especializada

Nesse sentido buscaremos estabelecer aqui a relaccedilatildeo entre a consumaccedilatildeo da epistemologia pragmaacutetica nietzschiana e o conceito de autossupressatildeo Para tanto tomamos como ponto de partida o programa nietzschiano de criacutetica do pensamento metafiacutesico de

1 (UFES)2 Tendo em vista as dificuldades de se realizar mesmo que de forma sumaacuteria a reconstruccedilatildeo do pragmatismo niet-

zschiano adotamos um conceito frouxo referente determinaccedilatildeo de validade de uma teoria tendo em vista o ecircxito praacutetico em detrimento de correntes fundacionistas do conhecimento

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista

268

cunho socraacutetico-platocircnico como base da ontologia do ser na qual a moral ocidental se fundamenta mostrando como o desenvolvimento desse programa vai se consumando numa epistemologia pragmatista onde seus recursos de ordem naturalista estatildeo ancorados Assim aquilo que tem iniacutecio como uma criacutetica externa histoacuterico-naturalista de cunho empiacuterico evolui para uma criacutetica imanente a partir da noccedilatildeo de autossupressatildeo da veracidade

A ideia que motiva este trabalho eacute tentar demonstrar que agraves posiccedilotildees pragmaacuteticas encenadas na obra de Nietzsche que muitas vezes satildeo acusadas como parte do relativismo orgiaacutestico-dionisiacuteaco de cunho estetizante e raso subjazem um profundo zelo e rigor teacutecnico Assim conforme se tentaraacute mostrar a seguir as criacuteticas feitas por Nietzsche agrave ontologia do ser se desenvolve de uma postulaccedilatildeo empiacuterica problemaacutetica para fornecer elementos para ontologia da instabilidade do devir de onde proveacutem sua criacutetica a moralidade e evolui para uma criacutetica imanente por meio do conceito de autossupressatildeo de forma que por meio do desenvolvimento desse programa criacutetico podemos conceber uma conclusatildeo de uma epistemologia pragmatista

Da criacutetica histoacuterico-natural agrave autossupressatildeo Vemos em Humanos demasiado humano (doravante citada como HH) obra

compreendida como inaugural do periacuteodo intermediaacuterio de seu pensamento haacute um ataque por parte de Nietzsche agrave filosofia dogmaacutetico-metafiacutesica endossada entatildeo pela tradiccedilatildeo filosoacutefica Este ataque feito a partir da instrumentalizaccedilatildeo da histoacuteria natural como forma de criticar os fundamentos das quais foram construiacutedas a cultura em geral consiste em mostrar a inadequaccedilatildeo da proacutepria noccedilatildeo de estabilidade ligada agrave ontologia do ser por meio do apontamento das mudanccedilas ocorridas na histoacuteria compreendendo o proacuteprio ser humano como parte da natureza

Natildeo pode mais segundo Nietzsche a tradiccedilatildeo filosoacutefica conceber os problemas filosoacuteficos a partir da negaccedilatildeo da provisoriedade dos fenocircmenos e a partir disso a consequente postulaccedilatildeo de ldquouma origem miraculosardquo como que dois mil anos atraacutes tem feito a dogmaacutetica metafiacutesica Pelo contraacuterio deve a filosofia histoacuterica se unir enquanto ferramenta filosoacutefica agraves ciecircncias naturais a fim de que se possa superar o dualismo ontoloacutegico que contamina desde os fundamentos o pensamento filosoacutefico Natildeo mais a partir de equiacutevocos de pressuposiccedilotildees apressadas e natildeo averiguadas deve ser feita a reflexatildeo filosoacutefica mas a partir da perspectiva da anaacutelise empiacuterica do desenvolvimento dos fenocircmenos3

Dessa mesma forma tambeacutem eacute problemaacutetico a partir dessas consideraccedilotildees continuar considerando o proacuteprio homem sob as quais satildeo feitas as reflexotildees do presente nos termos de uma verdade eterna O ldquodefeito hereditaacuterio de todos os filoacutesofosrdquo eacute ldquotomar a configuraccedilatildeo mais recenterdquo como se ele tambeacutem natildeo tivesse vindo a ser 4 Dessa forma o ldquodefeito hereditaacuterio dos filoacutesofosrdquo eacute ignorar ldquosentido histoacutericordquo do objeto analisado A partir dessa constataccedilatildeo da temporalidade do tipo de homem que a filosofia trata como ldquoverdade eternardquo conclui o filoacutesofo que ldquotudo veio a ser natildeo existem fatos eternos assim como natildeo existem verdades absolutas ndash Portanto o filosofar histoacuterico eacute doravante necessaacuterio e com ele a virtude da modeacutestiardquo5

Vejamos a partir de consideraccedilotildees do proacuteprio Nietzsche que apesar de se referir ao meacutetodo histoacuterico naturalista para criticar a ontologia da estabilidade do ser quando afirma

3 HH 14 Ibidem 25 Ibidem

Wilson Luciano Onofri

269

que ldquotudo veio a ser natildeo existem fatos eternos assim como natildeo existem verdades absolutasrdquo6 ele mesmo enfatiza a necessidade ldquovirtude da modeacutestiardquo Natildeo parece difiacutecil constatar que Nietzsche tinha consciecircncia dos limites de sua ferramenta filosoacutefica e por isso exercitava ele mesmo a ldquovirtude da modeacutestiardquo em seu proacuteprio pensamento (pelo menos que se refere a tomada gradual de consciecircncia dos problemas oriundos de suas experimentaccedilotildees filosoacuteficas)

ldquoO espirito da ciecircncia eacute poderoso na parte natildeo no todordquo jaacute observava Nietzsche de forma que ldquoos campos distintos das ciecircncias satildeo tratados de modo puramente objetivordquo e jaacute as ldquograndes ciecircncias geraisrdquo como um todo em razatildeo da pouca objetividade estatildeo sempre sendo convocadas a justificar a sua utilidade7 O problema enfrentado como se pode ver eacute como a partir da perspectiva parcial das ciecircncias pode se fechar as portas de maneira definitiva agrave ontologia da estabilidade do ser A perspectiva empiacuterica das ciecircncias satildeo sempre parciais de modo que apesar de abrir para a possibilidade de criacutetica da ontologia do ser natildeo eacute forte o suficiente para estabelecer uma ontologia do devir E por isso ele eacute obrigado a confessar

Eacute verdade que poderia existir um mundo metafisico dificilmente podemos contestar a sua possibilidade absoluta Olhamos todas as coisas com a cabeccedila humana e eacute impossiacutevel cortar essa cabeccedila mas permanece a questatildeo de saber o que ainda existiria do mundo se ela fosse mesmo cortada8

Como se pode ver pela passagem Nietzsche sabia muito bem das limitaccedilotildees de sua ferramenta filosoacutefica em termos metodoloacutegicos especialmente no que se refere agrave capacidade dessa metodologia ser capaz e extirpar a metafiacutesica ligada agrave ontologia do ser9 O golpe fatal contra o pensamento metafiacutesico e suas pretensotildees de estabilidade na ontologia do ser natildeo poderia ser dado pelos recursos naturalistas oriundos da metodologia empiacuterica do pensamento cientiacutefico mas deveria ser buscado de outra maneira

Nesse mesmo aforismo Nietzsche jaacute esboccedilava os termos de seu pragmatismo ao afirmar que ainda que fosse possiacutevel conhecer o mundo metafiacutesico a sua utilidade para vida seria praticamente nula tal como para um ldquonaveganterdquo seria uacutetil o ldquoconhecimento da anaacutelise quiacutemica da aacuteguardquo Vemos aqui um tratamento privilegiado ao conhecimento uacutetil a vida no mundo em detrimento da forma meramente contemplativa Em verdade essa foacutermula natildeo eacute nova jaacute aparecendo em Verdade e mentira no sentido extra-moral uma vez que o homem era o mais indefeso de todos os animais natildeo possuindo ldquogarrasrdquo ou ldquopresasrdquo para se defender fora obrigado a se reportar ao intelecto enquanto teia linguiacutestica com que se cobriu o mundo e acabou se acreditando na ldquofaacutebula da invenccedilatildeo do conhecimentordquo10

Todavia tambeacutem nesse escrito a perspectiva da estabilidade da ontologia do ser eacute criticada de forma dogmaacutetica por meio de uma estilizaccedilatildeo da descriccedilatildeo feita por meio de elementos empiacutericos Ocorre que na medida em que sua criacutetica avanccedila penetrando nos mais profundos alicercemos morais da epistemologia os elementos desestabilizadores da metafiacutesica vatildeo ganhando novos contornos tornando cada vez mais clara a interdependecircncia 6 Embora natildeo explorado aqui pensamos que uma forma em que se pode compreender o desenvolvimento do pragma-

tismo nietzschiano eacute exatamente a evoluccedilatildeo dessa foacutermula ateacute suas configuraccedilotildees finais CI VII 17 Ibidem 68 Ibidem 99 De uma perspectiva acessoacuteria do aforismo eacute importante relatar que causa estranheza Nietzsche atribuir caraacuteter

cientiacutefico ao problema do que restaria do mundo caso essa cabeccedila fosse cortada especialmente quando pensamos no perspectivismo radical que seu pensamento iraacute encontrar

10 VM 1

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista

270

entre moralidade e racionalidade pois como observa Nietzsche ldquonatildeo existem vivecircncias que natildeo sejam morais mesmo no acircmbito da percepccedilatildeo sensiacutevelrdquo11

Tem se assim tambeacutem uma criacutetica a qualquer pretenso realismo ao qual uma abordagem empiacuterica com deacuteficit criacutetico fatalmente pode recair Pois os ldquohomens soacutebrios que se sentem defendidos contra a paixatildeo e as fantasiasrdquo e investidos em seu ldquoamor agrave realidaderdquo estatildeo igualmente atados a uma ldquofantasiardquo e portanto tambeacutem estatildeo imersos no ldquopreconceitordquo Nesse sentido ldquonatildeo haacute realidade para noacutes ndash e tampouco para vocecircs soacutebriosrdquo sendo interditada a crenccedila na ldquoincapacidade de embriaguezrdquo12 Assim teses realistas no acircmbito do pensamento de Nietzsche satildeo rechaccediladas pois tambeacutem elas estatildeo atreladas a ontologia da estabilidade do ser uma vez que ldquoajustamos para noacutes um mundo em que podemos viver - supondo linhas superfiacutecies causas e efeitos movimentos e repouso forma e conteuacutedordquo como ldquoartigos de feacuterdquo13

Eacute constataccedilatildeo a interconexatildeo entre moralidade e racionalidade diagnosticada pela primeira vez no processo de decadecircncia da Greacutecia claacutessica descrita no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche percebe estar lidando Todavia ao contraacuterio de Soacutecrates cuja criacutetica alcanccedilou apenas o acircmbito dos instintos e ao qual ldquoaquele impulso loacutegico estava inteiramente proibido de voltar-se contra si proacutepriordquo14 o filoacutesofo da Basileia pretende levar as ultimas consequecircncias uma vez que as vias alternativas estavam interditadas por forccedila de sua proacutepria argumentaccedilatildeo

A via para a consumaccedilatildeo do programa filosoacutefico de criacutetica a moral em especial no que se refere agraves pretensotildees de estabilidade ontoloacutegica natildeo poderia ser feita de forma externa nos termos de uma descriccedilatildeo empiacuterica da realidade mas de forma imanente Sendo o processo de racionalizaccedilatildeo uma dinacircmica em que natildeo haacute retornos diante a perda da inocecircncia resta a Nietzsche levar o processo ateacute as suas ultimas consequecircncias

[] ele eacute retirada a confianccedila na moral- e por que Por moralidade Ou como deveriacuteamos chamar o que nele em ndash em noacutes ndashsucede Pois conforme nosso gosto preferiacuteamos palavras mais modestas Mas natildeo haacute duacutevida tambeacutem a noacutes dirige se dirige um ldquotu devesrdquo tambeacutem noacutes obedecemos ainda a uma severa lei acima de noacutes ndash estaacute eacute a ultima moral que ainda se nos faz ouvir que tambeacutem noacutes ainda sabemos viver nisto se em alguma coisa ainda somos criaturas da consciecircncia15[]

Este movimento de criacutetica imanente empreendido por Nietzsche eacute o que a exegese chama de autossupressatildeo ou autosuperaccedilatildeo16 (selbstaufhebung) da moral Como explica Oswaldo Giacoia o movimento de autossupressatildeo consiste

[] como movimento de inflexatildeo no curso de um pensamento ou numa cadeia de eventos histoacutericos no mundo da cultura operando uma mudanccedila de sentido uma decisiva alteraccedilatildeo na direccedilatildeo seja da sequecircncia dos pensamentos seja desenrolar-se de um vir a ser dos fenocircmenos da cultura Essa inflexatildeo de sentido ou mudanccedila de direccedilatildeo caracteriza-se como uma volta contra si mesmo uma reflexatildeo e nesse sentido uma inversatildeo de rota um dobrar-se sobre si mesmo tornado possiacutevel por

11 GC 11412 Ibidem 5713 Ibidem 12114 NT 1315 A proacutelogo 416 GIACOIA 2013 p119

Wilson Luciano Onofri

271

problematizaccedilatildeo ou seja um voltar-se sobre si mesmo (e contra si mesmo) do proacuteprio sujeito ou de um processo histoacuterico no interior do qual o primeiro se encontra que de diferentes madeiras tomam a si proacuteprio como objeto o que caracteriza portanto o movimento de (auto) problematizaccedilatildeo17

Trata-se portanto de um movimento realizado a partir do reconhecimento da inexorabilidade das forccedilas desagregadoras da moralidade em que qualquer tentativa de bloqueio ou retorno estatildeo interditadas Nesse sentido resta apenas a conduccedilatildeo dessa loacutegica ateacute as suas ultimas consequecircncias de modo a essa criacutetica acabar se voltando contra si mesma como condiccedilatildeo para sua consumaccedilatildeo

Dada a forte relaccedilatildeo entre moralidade e racionalidade no pensamento de Nietzsche podemos concluir junto com Giacoia que dentre as vaacuterias modalidades de autossupressatildeo a autossupressatildeo da verdade eacute a fundamental E isso se deve ao fato de que esta ldquocomanda e determina a configuraccedilatildeo e o movimento dialeacutetico das problematizaccedilotildees em que consiste as outras figurasrdquo18 Nesse sentido o proacuteprio instrumento da criacutetica pode ser criticado a partir de si mesmo isto eacute se a racionalidade ao modo de proceder metafiacutesico de cunho socraacutetico-platocircnico eacute responsaacutevel pela estabilidade ontoloacutegica do ser essa mesma racionalidade pode ser criticada a partir de si mesma em seu ideal de veracidade e pureza

Na dinacircmica da autossupressatildeo a consciecircncia filosoacutefica imbuiacuteda pela vontade de verdade numa reflexatildeo sobre si mesma se descobre enquanto engajada moralmente em seus pressupostos Desse diagnoacutestico a incondicionalidade de sua perspectiva deve ceder ao niacutevel das demais perspectivas e se reconhecer como mais uma entre as variadas formas de racionalidade

Na ciecircncia as convicccedilotildees natildeo tem direito de cidadania eacute o que se diz com boas razotildees apenas quando elas decidem rebaixar-se agrave modeacutestia de uma hipoacutetese de um ponto de vista experimental e provisoacuterio de uma ficccedilatildeo reguladora pode lhes ser concedidas a entrada e ateacute mesmo um certo valor no reino do conhecimento ndash embora ainda com a restriccedilatildeo de que permaneccedilam sob vigilacircncia policial a vigilacircncia da suspeita ndash Mas isso natildeo quer dizer examinando mais precisamente que a convicccedilatildeo para pode obter admissatildeo na ciecircncia apenas quando deixar de ser uma convicccedilatildeo [] Eacute assim provavelmente resta a pergunta se para que possa comeccedilar esta disciplina natildeo eacute preciso haver uma convicccedilatildeo e alias tatildeo imperiosa e absoluta que sacrifica a si mesma todas as demais convicccedilotildees Vecirc-se que tambeacutem a ciecircncia repousa numa crenccedila que natildeo existe ciecircncia ldquosem pressupostosrdquo []19

Se as ciecircncias serviu de meio de criacutetica ao pensamento metafiacutesico sob a qual retroalimentava a moralidade com avanccedilo de suas investigaccedilotildees esta passou a ser percebida como um dos substratos maacuteximos da racionalidade moderna alicerccedilada sobre os mesmos fundamentos da estabilidade da ontologia do ser de cunho socraacutetico ndashplatocircnico Podemos assim concluir com Nietzsche que tambeacutem as ciecircncias enquanto expressatildeo maacutexima dessa vontade de verdade tem como base a ldquoignoracircnciardquo sobre ldquoa vontade de natildeo saberrdquo sobre o ldquoerrordquo20

17 Ibidem p12118 Idem19 GC 34420 ABM 24

A constituiccedilatildeo da epistemologia pragmatista

272

Nessa mesma toada podemos ver como Nietzsche tal como em HH 11 vai deslocando os constructos metafiacutesicos para o acircmbito do uso da linguagem pois a ldquoimportacircncia da linguagem para o desenvolvimento da cultura estaacute em que nela o homem estabeleceu um mundo proacuteprio ao lado do outro um lugar que ele considerou firme o bastante para a partir dele tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhorrdquo Todavia em ABM vemos Nietzsche ainda admitir um resiacuteduo de metafiacutesica desde que compreendida pragmaticamente nos termos de ficccedilotildees linguiacutesticas naturalisticamente constatadas a partir de nossas praacuteticas comunicativas

Tal eacute a forccedila da tese da inevitabilidade de recorrecircncia aos constructos de metafiacutesicos da ontologia do ser que natildeo podemos deixar de notar a afirmaccedilatildeo de Nietzsche no sentido de a ldquoarraigada tartufice moral pertence de modo insuperaacutevel ldquonossa carne e nosso sanguerdquo chegue a nos distorcer as palavras na bocardquo21 E isso assim o eacute dada ao caraacuteter pragmaacutetico das praacuteticas comunicativas em que exprimimos nossas ldquonecessidadesrdquo tal como ldquoponte entre os homensrdquo e natildeo porque o conhecimento tem como funccedilatildeo estritamente teoacuterico-contemplativa mas porque se reporta as praacuteticas soacutecias de comunicaccedilatildeo22

Consideraccedilotildees finaisConforme exposto no iniacutecio deste trabalho a intenccedilatildeo da presente investigaccedilatildeo foi

analisar a relaccedilatildeo entre a o movimento de autossupressatildeo da verdade com a epistemologia pragmatista nietzschiana Nesse sentido tomamos como ponto de partida o programa nietzschiano de criacutetica do pensamento metafiacutesico de cunho socraacutetico-platocircnico como base da ontologia do ser do qual a moral ocidental se fundamenta mostrando como o desenvolvimento desse programa vai se consumando numa epistemologia pragmatista onde seus recursos de ordem naturalista estatildeo ancorados Assim aquilo que teve iniacutecio como uma criacutetica externa histoacuterico-naturalista de cunho empiacuterico acabou por evoluir para uma criacutetica imanente a partir da noccedilatildeo de autossupressatildeo da veracidade para a uma epistemologia naturalista

Tal se deve em razatildeo da radicalidade do projeto filosoacutefico empreendido por Nietzsche de criacutetica a filosofia dogmaacutetico-metafiacutesica de cunho socraacutetico-platocircnico ao qual o recurso histoacuterico-natural de cunho empiacuterico se mostrou insuficiente metodologicamente diante o adversaacuterio de posiccedilatildeo ontoloacutegica Dessa forma a radicalidade do projeto criacutetico soacute alcanccedila seu aacutepice a partir de uma criacutetica imanente levada a cabo pelo conceito de autossupressatildeo estabelecendo assim uma posiccedilatildeo proba no estabelecimento de sua epistemologia pragmaacutetica

21 Idem22 GC 354

Wilson Luciano Onofri

273

Referecircncias bibliograacuteficasGIACOIA O NITZSCHE o humano como memoacuteria e como promessa Rio de Janeiro Editora Vozes 2013NIETZSCHE F Aurora Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004_____ A gaia ciecircncia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001_____ Aleacutem de Bem e mal Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992_____ Humano demasiado humano Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000_____ O nascimento da trageacutedia Satildeo Paulo Companhia de Bolso 1992_____ Verdade e mentira no sentido extra-moral Satildeo Paulo Ed Hedra 2007

Page 4: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 5: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 6: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 7: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 8: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 9: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 10: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 11: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 12: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 13: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 14: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 15: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 16: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 17: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 18: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 19: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 20: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 21: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 22: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 23: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 24: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 25: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 26: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 27: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 28: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 29: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 30: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 31: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 32: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 33: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 34: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 35: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 36: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 37: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 38: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 39: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 40: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 41: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 42: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 43: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 44: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 45: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 46: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 47: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 48: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 49: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 50: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 51: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 52: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 53: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 54: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 55: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 56: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 57: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 58: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 59: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 60: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 61: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 62: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 63: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 64: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 65: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 66: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 67: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 68: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 69: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 70: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 71: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 72: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 73: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 74: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 75: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 76: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 77: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 78: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 79: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 80: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 81: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 82: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 83: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 84: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 85: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 86: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 87: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 88: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 89: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 90: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 91: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 92: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 93: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 94: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 95: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 96: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 97: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 98: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 99: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 100: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 101: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 102: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 103: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 104: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 105: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 106: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 107: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 108: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 109: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 110: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 111: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 112: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 113: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 114: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 115: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 116: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 117: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 118: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 119: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 120: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 121: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 122: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 123: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 124: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 125: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 126: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 127: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 128: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 129: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 130: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 131: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 132: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 133: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 134: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 135: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 136: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 137: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 138: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 139: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 140: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 141: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 142: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 143: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 144: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 145: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 146: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 147: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 148: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 149: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 150: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 151: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 152: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 153: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 154: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 155: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 156: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 157: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 158: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 159: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 160: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 161: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 162: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 163: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 164: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 165: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 166: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 167: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 168: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 169: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 170: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 171: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 172: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 173: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 174: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 175: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 176: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 177: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 178: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 179: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 180: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 181: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 182: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 183: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 184: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 185: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 186: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 187: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 188: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 189: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 190: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 191: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 192: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 193: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 194: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 195: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 196: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 197: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 198: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 199: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 200: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 201: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 202: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 203: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 204: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 205: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 206: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 207: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 208: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 209: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 210: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 211: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 212: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 213: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 214: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 215: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 216: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 217: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 218: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 219: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 220: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 221: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 222: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 223: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 224: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 225: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 226: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 227: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 228: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 229: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 230: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 231: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 232: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 233: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 234: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 235: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 236: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 237: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 238: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 239: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 240: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 241: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 242: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 243: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 244: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 245: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 246: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 247: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 248: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 249: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 250: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 251: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 252: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 253: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 254: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 255: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 256: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 257: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 258: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 259: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 260: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 261: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 262: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 263: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 264: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 265: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 266: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 267: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 268: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 269: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 270: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 271: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian
Page 272: Nietzsche - ANPOF · 2020. 2. 26. · Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles (UFBA) Jorge Alberto Molina (UERGS) José Lourenço (UFSM) Júlia Sichieri Moura (UFSC) Juvenal Savian