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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL/JORNALISMO André Henrique Mariz Salmerón NINJAS FORA DO EIXO: REDES, TERRITÓRIO E CRISE MIDIÁTICA São João del-Rei dezembro de 2014

Ninjas Fora do Eixo: Redes, Território e Crise Midiática

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Monografia produzida como trabalho de conclusão de curso em Jornalismo pela Universidade Federal de São João del-Rei. Autor: André Salmerón

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO JOO DEL-REI

    DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA

    GRADUAO EM COMUNICAO SOCIAL/JORNALISMO

    Andr Henrique Mariz Salmern

    NINJAS FORA DO EIXO:

    REDES, TERRITRIO E CRISE MIDITICA

    So Joo del-Rei

    dezembro de 2014

  • Andr Henrique Mariz Salmern

    NINJAS FORA DO EIXO:

    REDES, TERRITRIO E CRISE MIDITICA

    Monografia apresentada ao curso de Comunicao Social/Jornalismo da Universidade Federal de So Joo del-Rei como requisito parcial para obteno do ttulo de bacharel em Comunicao Social/Jornalismo. Orientador: Dr. Ivan Vasconcelos Figueiredo.

    So Joo del-Rei

    Universidade Federal de So Joo del-Rei

    Graduao em Comunicao Social/Jornalismo

    2014

  • AGRADECIMENTOS

    Quatro anos se passaram desde que ingressei no curso de Jornalismo da

    UFSJ e abrem-se pela frente, agora, todos os anos que ainda viro. A

    delicadeza do momento impede, talvez, que me lembre de todas as pessoas

    que merecem meu profundo agradecimento pela ajuda prestada. Mesmo

    assim, no me privo de citar aqui alguns nomes essenciais, sem deixar de lado

    a importncia de todos (as). Agradeo aos meus pais, Marcus e Maria Estela,

    por absolutamente tudo que fizeram por mim e meu irmo, Gustavo. Aos

    professores (as), que nunca se deixaram limitar pelas quatro paredes da sala

    de aula. Em especial, Ivan Vasconcelos e Chico Brinatti, tanto pelos

    ensinamentos quanto pelos sermes, pela preocupao, ajuda e,

    principalmente, por acreditarem em mim mesmo quando eu no acreditava.

    Agradeo, de corao, tambm aos amigos e amigas, em especial: Adriano

    Galvo (Fub), talo Sena (Tittalo), Matheus Arajo (Manga) e todos outros

    que fizeram parte da nossa repblica; Fernanda Morais, que nunca se cansou

    de (tentar) me colocar juzo; Igor Damasceno, por ter me ajudado escolher

    cursar jornalismo e viver literatura; Fabiano Porto, Pedro Carozzi, Joo Eurico

    Heyden, Lo Rigotto, Vincius Fernandes e Paulo da Mata, sempre presentes

    nos momentos bons e ruins; Helthon Andrade, Lvia Tostes, Marlon de Paula,

    Endiara Cruz, Gustavo Pavan, e todas as pessoas que integraram o Coletivo

    Sem Eira Nem Beira, por tudo que passamos e fizemos. Deixo tambm um

    agradecimento a todos (as) da Ascom-UFSJ, pela dedicao e carinho com a

    qual me trataram durante o perodo de estgio, permitindo que me

    aperfeioasse cada vez mais; a Marcius Barcelos (Magoo), responsvel pelo

    Laboratrio de Fotografia, por sempre prestar auxlio nas empreitadas

    fotogrficas/audiovisuais. Finalmente, claro, agradeo a Universidade Federal

    de So Joo del-Rei e ao curso de Comunicao Social (Habilitao em

    Jornalismo), pelo compromisso com a educao superior gratuita e de

    qualidade.

  • RESUMO

    A sociedade contempornea vive em meio a dois campos midiatizados. De um

    lado, o jornalismo possui um territrio institucional prprio, em constante

    (trans)formao, marcado, principalmente, pela presena das mdias

    tradicionais. Por outro, o grande avano das tecnologias de informao e

    comunicao contriburam, tambm, para a formao de outro territrio ditado

    pelas dinmicas em rede na internet. Este trabalho se dedica ao estudo do

    choque entre esses campos, atravs de um caso representativo: a ascenso e

    queda do Fora do Eixo e seu brao comunicacional Mdia Ninja perante a

    esfera pblica em 2013. Nesse cenrio, a pesquisa investiga, em um plano

    geral, as estratgias de gerenciamento de crise dos grupos pelo vis da

    Situational Crisis Communication Theory formulada por Coombs (2007).

    Especificamente, analisa-se como a crise foi reverberada na mdia, por meio

    dos eth projetados pela Folha de S. Paulo sobre o grupo, comparando tais

    designaes com as respostas destes. O corpus formado por quatro notcias

    publicadas no jornal Folha de S. Paulo durante o auge da crise, de 8 a 15 de

    agosto de 2013, alm das rplicas e tticas dos coletivos transmitidas no

    Facebook nesse perodo. Para esta funo, nos faremos valer da noo de

    ethos por meio de Charaudeau (2008; 2010). O estudo revela que a crise

    miditica enfrentada pelos coletivos foi, em parte, resultado de uma tentativa

    malsucedida desses grupos de adentrar e provocar mudanas no territrio do

    jornalismo tradicional. No embate, a mdia esvaziou a discusso relativa s

    prticas colaborativas ao mesmo tempo em que neutralizou as crticas feitas ao

    seu funcionamento. Dessa forma, mapeamos as estratgias adotadas pelo

    Fora do Eixo e Mdia Ninja para tentarem proteger suas imagens

    organizacionais, indicando os caminhos mais adequados para lidar com essas

    situaes ao contrastarmos teoria e prtica.

    Palavras-chave: Territrio. Jornalismo. Crise miditica. Fora do Eixo. Mdia

    Ninja.

  • SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................... 1

    CAPTULO 1 JORNALISMO: DISCURSO E TERRITRIO E REDES

    COLABORATIVAS ............................................................................................. 4

    1.1 Discurso jornalstico e a mquina miditica.................................................. 7

    1.2 Territrio do jornalismo ............................................................................... 10

    1.2.1 O jornalismo e o discurso neoliberal ....................................................... 12

    1.3 Redes colaborativas ................................................................................... 16

    1.3.1 Jornalismo colaborativo ........................................................................... 19

    CAPTULO 2 CRISE MIDITICA .................................................................. 21

    2.1 As origens da crise miditica da Mdia Ninja .............................................. 23

    2.2 Modelo de gesto de crise de Coombs ...................................................... 26

    CAPTULO 3 ANLISE ................................................................................. 33

    3.1 Anlise da crise miditica do Fora do Eixo e Mdia Ninja ........................... 35

    3.2 Anlise das estratgias de gesto de crise do Fora do Eixo/Mdia Ninja ... 46

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................. 55

    REFERNCIAS ................................................................................................ 59

  • 1

    INTRODUO

    O territrio institucional do jornalismo um campo em constante

    (trans)formao e expanso. Na medida em que avanam as tecnologias de

    comunicao em rede, tambm so engendradas mudanas nesse territrio,

    que, pouco a pouco, passam a ser incorporadas por seus integrantes. No

    entanto, as mudanas no ocorrem sem embate e/ou contestao: as

    organizaes/sujeitos que buscam quebrar de forma mais radical com o fazer

    jornalstico tradicional so marginalizados dentro desse mesmo territrio.

    Para adentrarmos nesse nicho, investigamos, em uma perspectiva

    macroestrutural, as estratgias de gerenciamento de crise do Fora do Eixo e da

    Mdia Ninja, diante de uma situao de crise desencadeada pela invaso

    indevida do territrio institucional do jornalismo, originada em denncias

    miditicas ocorridas em 2013. Especificamente, buscaremos tambm:

    I. Debater, em uma perspectiva terica, como as novas tecnologias

    e o modelo colaborativo alteraram a lgica de produo da notcia, levando a

    outras configuraes do territrio do jornalismo, tomando como objetos esses

    grupos.

    II. Analisar a crise miditica do coletivo por meio dos eth projetados

    pela Folha de S. Paulo sobre o Fora do Eixo e Mdia Ninja, comparando tais

    imagens com as respostas do grupo.

    III. Discutir os jogos discursivos de excluso e intolerncia praticados

    pela mdia neoliberal brasileira, representada aqui pela Folha de S. Paulo,

    frente ao modelo de gesto colaborativa e as novas prticas do fazer saber

    jornalstico empreendidas pela rede de coletivos culturais Fora do Eixo e sua

    ao Mdia Ninja.

    IV. Debater as prticas e a adequao das etapas de gerenciamento

    de crise realizadas pelo Fora do Eixo conforme quadro terico de Coombs

    (2007).

    De modo a perceber com mais clareza os processos de resistncia e

    negociao no territrio institucional do jornalismo, acessaremos a retrica e a

    Teoria Semiolingustica de Charaudeau (2010; 2008; 2006) para apontar os

    mecanismos pela qual as crticas e propostas desses grupos so neutralizadas

  • 2

    por ataques retricos. Ao mesmo tempo, buscaremos mostrar como, a partir

    disso, se originam crises de imagem que, quando no gerenciadas de maneira

    apropriada, terminam por tolher a reputao organizacional.

    A escolha pelo caso especfico do Fora do Eixo e da Mdia Ninja

    representativa de um universo mais global: do modo como, no geral, iniciativas

    dessa espcie so retratadas nos grandes veculos de comunicao. Outro

    ponto especfico diz respeito magnitude que essa situao adquiriu e os

    efeitos nefastos que a falta de aes adequadas de gerenciamento de crise

    podem gerar como veremos mais adiante.

    O principal problema do nicho aqui estudado a carncia de anlises

    voltadas especificamente para iniciativas que podem ser consideradas de

    vanguarda, as quais se propem ir alm dos limites de determinado territrio

    institucional no caso, o do jornalismo. Isso reforado pelo fato que

    fenmenos dessa natureza possuem, como nesse caso, especificidades que

    merecem ser destacadas de forma mais clara. Buscaremos oferecer esse

    suporte terico, atravs do presente estudo, partindo da anlise

    macroestrutural do processo de escrutnio mencionado no pargrafo anterior.

    No captulo inicial, sero desenvolvidas as principais fundamentaes

    tericas que guiam o presente estudo. De incio, traamos alguns

    apontamentos a respeito do funcionamento dos meios de comunicao em

    larga escala. Em seguida, avanamos para o conceito e a formao do

    territrio institucionalizado do jornalismo. Com isso em mente, oferecemos

    algumas reflexes a respeito do atual estgio de desenvolvimento da

    sociedade, no que diz respeito aos meios de comunicao em rede.

    No captulo 2, entraremos no mbito do gerenciamento de crise,

    propriamente dito. Levando em considerao o contexto apresentado no

    primeiro captulo, apontamos para alguns fatores que possibilitaram o

    surgimento da Mdia Ninja e sua relao com o Fora do Eixo. Logo depois, nos

    voltamos para a cadeia de eventos que culminou na crise experimentada pelo

    coletivo. Para finalizar esta etapa, apresentamos a teoria de Coombs (2007)

    para gerenciamento de crises, que mais adiante nos ajudar a compreender a

    macroestrutura de ao usada pelo grupo para se defender.

    Enfim, o terceiro captulo tomar como base tudo que foi apresentado

    para avanar numa anlise mais aprofundada do objeto. Inicialmente,

  • 3

    trataremos dos percursos metodolgicos e alguns procedimentos pontuais de

    anlise. Logo depois, algumas pginas sero dedicadas ao estudo ethtico da

    crise, atravs da anlise de quatro matrias veiculadas pelo jornal Folha de S.

    Paulo, durante o perodo em questo. Por fim, seguimos com a aplicao da

    teoria de Coombs (2007) ao caso especfico do Fora do Eixo. O objetivo

    identificar quais estratgias foram tomadas e questionar sua efetividade, tendo

    em vista recomendaes do autor e a maneira como se desdobraram os

    eventos.

  • 4

    CAPTULO 1 JORNALISMO: DISCURSO E TERRITRIO E REDES COLABORATIVAS

    A internet mudou tudo. Em tempo, fez frente a um modelo de

    comunicao que tende cada vez mais a centralizao tanto dos meios quanto

    das mensagens; possibilitou ainda que os sujeitos, antes meros receptores, se

    estabelecessem em posio de potencial igualdade enunciativa com veculos

    de comunicao em larga escala. Em outras palavras, o terreno que antes era

    ocupado de forma quase exclusiva pela mdia, aos poucos, vem se

    horizontalizando. Muito disso se deve as qualidades inerentes da internet: no-

    hierarquizao de seus usurios, neutralidade1 das informaes e facilidade de

    acesso a plataformas de publicao/difuso de contedo. Ao levarmos em

    conta que a informao a matria-prima do jornalismo, natural que esta

    tenha sido uma das reas que mais se modificou com o avano das novas

    tecnologias de informao e comunicao (TICs).

    As mdias tradicionais, essencialmente limitadas ao meio fsico, agora

    precisam disputar ateno com a espacialidade abstrata, quase infinita e

    atemporal da Rede. Nesse novo contexto, passam tambm a dividir

    importncia e influncia com canais muito menores ou mesmo individuais. De

    modo mais evidente, a internet altera significativamente os limites entre

    jornalista e pblico, visto que os primeiros no so mais as nicas vozes

    capazes de mostrar ao mundo um determinado recorte do real. Nesse sentido,

    demandas informacionais altamente especficas, que por isso mesmo no

    podem ser atendidas pelos mass media, podem ser exploradas pelos prprios

    (as) interessados (as), se utilizando das facilidades da web. Surge da a

    possibilidade de um novo jornalismo: descentralizado, orientado por nichos e

    construdo com a participao direta de quem o consome.

    Em suma, um modelo colaborativo de fazer jornalismo. Vale lembrar, a

    instituio jornalstica surge com a premissa de fornecer um resumo-geral dos

    1 A neutralidade da rede diz respeito ao princpio de que provedores devem tratar de maneira igual todas as informaes disponveis na rede. Tal imperativo impede, por exemplo, que o valor cobrado para acessar sites mais populares menor ou maior do que aquele cobrado para acessar endereos menos populares. Ou seja, do ponto de vista do provedor, toda informao deve ser considerada neutra.

  • 5

    fatos considerados mais importantes para a sociedade, uma vez que os

    sujeitos no so capazes de se fazerem presentes nas diversas esferas que a

    compe. Para tanto, fazia-se necessria a criao de organizaes voltadas

    especificamente para a realizao dessa tarefa.

    Contudo, o cenrio contemporneo bem diferente. Ferramentas como

    computadores, cmeras, gravadores e smartphones que integram diversas

    delas se tornaram banais. O mesmo vale para os meios de publicao. Com

    isso, a atividade de mover informaes para dentro da esfera pblica tornou-se

    acessvel a um grande nmero de pessoas o que, por sua vez, tem

    sutilmente colocado em debate o contrato de comunicao firmado entra a

    instncia miditica e sociedade. Se a primeira existe para informar a segunda,

    o que acontece quando as pessoas se tornam capazes de informarem si

    mesmas? Os papis, em parte, se invertem. O conjunto de informaes que

    so produzidas individualmente na web proporcionalmente muito maior do

    que o conjunto daquelas produzidas apenas pelas organizaes noticiosas.

    Porm, cabe aqui uma importante ressalva: quantidade, obviamente,

    no significa qualidade. Os verdadeiros desdobramentos desse novo

    ecossistema informativo s se faro sentir ao longo do tempo. Por isso, ainda

    cedo para apontar rumos e a proposta deste trabalho no realizar um

    exerccio de previso. fato que, na atualidade, a mdia tradicional segue

    sendo a principal responsvel por informar grande parte da populao. Alm

    disso, quem influencia muito daquilo que se produz dentro do ecossistema

    informativo da web. Todavia, certos lampejos de um jornalismo praticado de

    forma orgnica, entre indivduos (as) que se conectam em rede, mostram um

    pouco do que pode vir a ser o futuro da rea.

    Um caso interessante o descrito por Mallini (2011), a respeito da

    narrativa colaborativa que se construiu em torno de uma srie de protestos

    realizados em Vitria (ES) em 2013. As principais reivindicaes dos

    manifestantes diziam respeito ao transporte pblico. Como parte do ato,

    bloquearam uma das principais vias da cidade, dificultando o trnsito. O evento

    ganhou notoriedade a partir do uso desproporcional e violento de fora pela

    polcia local. Apesar dos reflexos em diversas partes da capital, ao longo do

    dia, a mdia tradicional s esteve presente durante a manh. Contudo, reunidas

    sob uma mesma tag - #ProtestoEmVitoria, centenas de fotos, vdeos e textos

  • 6

    retrataram, com vasta pluralidade de pontos de vista, os acontecimentos

    daquele dia.

    Porm, o exemplo mais emblemtico talvez tenha surgido com os

    protestos de junho de 2013. Estes tm incio com uma manifestao do

    Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento do preo das tarifas de

    transporte pblico em So Paulo (SP) em 3 de junho de 2013. Trs dias

    depois, uma nova manifestao foi convocada e, assim, sucessivamente. No

    dia 13 de junho, o confronto entre manifestantes e polcia teve seu pice. Aps

    um duro processo de represso, 200 participantes do ato foram presos; sete

    reprteres foram feridos por balas de borracha. Ao passar dos dias, o

    movimento se espalha como fogo na palha, por diversas partes do pas, at se

    tornar pauta prioritria em praticamente todos os veculos de comunicao do

    pas. Paralelamente, em sites como o Twitter e o Facebook, atravs da

    publicao individual de contedo, construa-se uma narrativa coletiva dos

    fatos.

    Esses fenmenos, cada vez mais comuns, reforam a tese de que o

    jornalismo est se modificando. Essas alteraes podem ser indicadas ao

    tomarmos como base o trabalho de Castells (1999), que argumenta que o

    avano das redes digitais modificou tambm a maneira como a prpria

    sociedade se organiza. O autor elenca uma srie de fatores que apontam como

    o foco organizacional da sociedade tem se deslocado dos arranjos fechados,

    rgidos, hierrquicos e exclusivos para os modelos mais abertos, flexveis,

    horizontais e inclusivos de funcionamento. Para ele, essas formas de

    organizao em rede, embora mais proveitosas, no eram aplicveis a projetos

    complexos por causa das dificuldades de se gerenciar a fora de trabalho.

    Entretanto, com o avano da internet, esse problema facilmente superado.

    Para ilustrar, destacamos o trabalho feito pelo site Duo Lingo. Trata-se

    uma plataforma gratuita para o ensino de idiomas. Entre os diversos exerccios

    de aprendizado, usurios precisam traduzir pequenas frases ou textos, de

    modo a avanarem para os mdulos mais avanados. primeira vista, pode

    no parecer nada demais, mas a parte fascinante a seguinte: esses textos,

    que ajudam a compor as atividades curriculares, so retirados de sites reais

    como a Wikipdia. Em seguida, as diversas verses enviadas so comparadas

    para se ter mais certeza de que o contedo est correto e, ento, essas

  • 7

    tradues so disponibilizadas ao pblico. Dessa forma, o projeto coordena um

    vasto nmero de pessoas que, atravs de contribuies pequenas e pontuais,

    ajudam a traduzir a internet para as diversas lnguas do mundo de ingls para

    portugus e vice-versa, por exemplo.

    Esse modelo apenas um pequeno exemplo de como as novas

    tecnologias permitem que empreendimentos complexos sejam completados de

    forma horizontal e colaborativa. Shirky (2008) oferece mais detalhes sobre as

    novas possibilidades organizacionais que surgem com o avano das redes;

    alm de seus efeitos mais tangveis na atualidade. Um dos pontos principais

    apontados pelo autor, no que diz respeito a esse trabalho, o seguinte: a

    Internet fez com que a colaborao se tornasse acessvel a todas as pessoas,

    sem que necessariamente integrem um corpo profissional ou uma

    instituio/organizao especfica. Isso inclui, obviamente, o jornalismo e a

    produo noticiosa. No entanto, como essas mudanas so recebidas pela

    mquina miditica? Antes de adentrarmos essa questo, fazem-se necessrios

    alguns apontamentos tericos.

    1.1 Discurso jornalstico e a mquina miditica

    Tomando como base a perspectiva charaudeana, compreende-se o

    jornalismo como discurso que tem seu alicerce na esfera sociohistrica e

    cultural. Dessa forma, sua percepo ocorre atravs de representaes sociais,

    saberes parcialmente estveis criados pela mente humana para ordenar e

    direcionar os fenmenos do mundo sob a forma de textos. A maneira como

    esses so consumidos pelas diversas esferas da sociedade regida, segundo

    Charaudeau (2010), pelo imaginrio sociodiscursivo: universo simblico que

    resgatado durante os atos enunciativos - produo, do consumo, distribuio,

    etc. Nessa esfera onde nascem, crescem e morrem os discursos, afetando,

    assim, a maneira como o mundo significado.

    Uma das particularidades do discurso jornalstico que nele se

    estabelecem jogos especficos de expectativa entre emissores e receptores.

    Um destes diz respeito a percepo generalizada de que o trabalho jornalstico

    a transposio da verdade para dentro da notcia, sem que sejam aplicados

  • 8

    filtros. Charaudeau (2010) nos lembra, entretanto, que a natureza da notcia se

    d na filtragem e interpretao prvia de um fato. Ao ser transformado em

    material jornalstico, o acontecimento se desliga da alta complexidade do real,

    impossvel de ser reproduzida em sua totalidade, e passa a existir dentro do

    espao pblico. Nesse ambiente, condicionado a partir das informaes

    disponveis dentro desse espao e tem sua interpretao baseada no

    imaginrio sociodiscursivo vigente.

    A noo de espao pblico apresentada aqui em conformidade com

    Charaudeau (2008, p. 118), que a descreve a partir da noo de um discurso

    circulante, caracterizado como soma emprica de enunciados com visada

    definicional sobre o que so os seres, as aes, os acontecimentos, suas

    caractersticas, seus comportamentos e os julgamentos a eles ligados.

    Tal espao tem atribudo, a si mesmo, trs funes distintas, a saber: (I)

    instituio do poder/contrapoder; (II) regulao do cotidiano social; (III)

    dramatizao. De maneira resumida, a primeira diz respeito aos discursos que

    se impem a partir de uma posio de autoridade, que se coloca acima da

    sociedade como um todo, guiando suas aes e se cristalizando no discurso

    poltico. A segunda se manifesta na forma de discursos que circulam

    corriqueiramente pela sociedade, atuando no sentido de determinar os padres

    comportamentais atravs das quais os grupos constroem suas visibilidades.

    Por fim, as funes de dramatizao relatam os problemas da vida dos

    homens (CHARAUDEAU, 2008, p. 119), tratando-se aqui das obras ficcionais,

    mticas, entre outras que registram o destino humano. Essas funes, que se

    entrecruzam de maneira contnua, objetivam um espao pblico que no

    permanente, homogneo ou universal, uma vez que resultam, pois, da

    conjuno das prticas sociais e das representaes, afirma Charaudeau

    (2008, p. 120).

    Por outro lado, a mquina miditica desempenha um importante papel

    nos processos de abastecimento desse espao, selecionando quais discursos

    iro circular. Particularmente, nos interessam os papis de poder/contrapoder,

    manifestos na construo de um discurso poltico-miditico. Por sua vez, este

    entendido como aquele visa persuadir o outro a atribuir poder a uma

    determinada instncia enunciante, na forma de votos, mobilizao, ativismo,

    militncia, dentre outras. De modo paralelo, tambm aquele que atribui

  • 9

    legitimidade aos discursos de contrapoder, entendidos como aqueles que

    questionam o funcionamento da ordem estabelecida.

    Com base nos estudos de Dahlet (2014), Chomsky (1999), Bourdieu e

    Wacquan (2001) e Miotello (2001) sobre a formao de um discurso global que

    atua no sentido de naturalizar o funcionamento da ordem estabelecida,

    expressa na forma de um iderio mais ou menos neoliberal, percebe-se, ento,

    uma preferncia generalizada pelos discursos de poder aqueles que visam

    manter o status quo em detrimento dos de contrapoder. Porm, essa

    preferncia no se manifesta, simplesmente, no sentido de no veicular ou

    ignorar esses discursos. Muitas vezes, se cristalizam em processos que visam

    situar essas instncias enunciadoras, no mbito da esfera pblica, de modo

    que sua percepo pela sociedade como um todo seja negativa, neutralizando,

    dessa forma, a validade de seus argumentos.

    Devido ao poder que tem de influenciar a esfera pblica, esse sistema

    se torna capaz de legitimar tambm a si mesmo e seus interesses particulares

    sejam eles quais forem. Dessa forma, no que diz respeito a chegada de

    novos fatores que alteram seu funcionamento ou de grupos que buscam

    colocar em cheque sua atuao, no so raras as vezes em que atua

    simultaneamente como juiz e ru, ao mesmo tempo em que exclui seus

    acusadores do debate. O resultado a perpetuao de seu funcionamento,

    garantindo que as presses por mudana sejam implantadas, bem ou mal, no

    ritmo e intensidade que deseja. No caso da crise miditica do Fora do

    Eixo/Mdia Ninja, como discutiremos nos captulos seguintes, trata-se de uma

    disputa de poder pelo domnio do discurso e do territrio jornalsticos.

    No se pretende contribuir, atravs desse apontamento, para o

    entendimento maniquesta ou simplstico acerca da atuao das organizaes

    miditicas. Faz-lo seria ignorar a complexidade de foras presentes dentro da

    sociedade, reduzir seus (as) profissionais a simples peas numa engrenagem

    com anseios prprios.

    Contudo, tais apontamentos especficos sobre o modo como a mdia, em

    geral, lida com os discursos de contrapoder, sero essenciais para o

    entendimento questes que sero trabalhadas mais adiante tanto no mbito

    especfico do gerenciamento de crises quanto nas questes relativas ao modo

    como essas tecnologias foram incorporadas ao fazer jornalstico.

  • 10

    1.2 Territrio do jornalismo

    Adentramos agora uma breve discusso acerca do entendimento do

    jornalismo enquanto rea dotada de um territrio institucional prprio. Essa

    ideia parte da noo de que o territrio no necessariamente uma barreira

    geogrfica. Para Berger e Luckmann (apud BELOCHIO, 2009), o conceito pode

    ser compreendido como a delimitao objetiva de um universo simblico, que

    unifica e d significado a uma determinada poro da vida humana.

    Dentro dos limites do presente trabalho, buscamos chamar ateno para

    a presena de uma srie de prticas, profissionais ou no, que ajudam os (as)

    integrantes desse territrio a se reconhecerem a si mesmos enquanto tal. A

    partir da, podemos compreender, como afirma Belochio (2005), esse conceito

    de maneira anloga ao que Bourdieu (1997) define o de campo social:

    [...] um espao social estruturado, um campo de foras - h dominados e dominantes, h relaes constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espao - que tambm um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de foras (BOURDIEU, 1997, p. 15).

    No interior desse espao, encontra-se o capital simblico, a partir da

    qual os atores sociais definem normas, assumem papis e funes e

    organizam as suas relaes, estruturas e atividades, define Belochio (2009)

    com base em Klein, Kuschick Berger e Miranda. Dessa forma, as dinmicas

    que se estruturam dentro dos campos atuam no sentido de organizar

    socialmente seu funcionamento. Contudo, no que diz respeito ao jornalismo,

    como se formam e a que funo essas dinmicas servem?

    Belochio (2009) nos lembra que o territrio, nesse caso, formou-se

    historicamente baseado em mtodos de produo e transmisso de

    informaes que evoluram conforme o desenvolvimento tecnolgico. Sousa

    (2014) refora esta ideia ao apresentar alguns postulados que guiam sua

    anlise com relao histria do jornalismo no ocidente. Destacamos para um

    em especial, que trata da maneira como as mudanas macroestruturais da

    sociedade impactam na prpria natureza produtiva do fenmeno em questo:

  • 11

    A gnese do jornalismo situa-se na Antiguidade Clssica, havendo uma retomada na Idade Moderna, graas ao Renascimento, ao desenvolvimento do esprito iluminista da Ilustrao e satisfao das necessrias condies tcnicas (tipografia de Gutenberg, fbricas de papel...) e scio-econmicas (alfabetizao, capital, iniciativa privada e empreendedorismo...) (SOUSA, 2014, p. 3).

    Nesse mesmo sentido, a relao entre a tecnologia e seus efeitos no

    fazer miditico foi abordada por Briggs e Burke (apud Belochio, 2004). Para os

    autores, cada etapa da evoluo tecnolgica traz consigo questionamentos

    acerca das relaes entre a propriedade da mdia e seu contedo, entre o

    contedo e a estrutura e entre a estrutura e tecnologia, principalmente a

    tecnologia nova (BRIGGS; BURKE apud BELOCHIO, 2004, p. 267).

    Compreende-se, a partir da, que as mudanas que afetam o territrio

    institucionalizado do jornalismo no so recebidas de maneira passiva por

    parte de seus atores. Ao contrrio, tal processo marcado justamente pela

    discusso acerca da funo que essas inovaes iro exercer dentro da nova

    rotina profissional. Um caso particularmente ilustrativo se deu com a chegada

    do telefone nas redaes jornalsticas e as facilidades trazidas por ele.

    O que antes s era possvel na forma presencial, num espao estabelecido, adquiriu novas perspectivas. A partir disso, foram modificadas a mentalidade e a organizao dos indivduos em diversos ambientes. As geraes que nasceram familiarizadas com essa tecnologia podem achar muito difcil viver sem seus benefcios (BELOCHIO, 2009, p. 24).

    Ao longo da histria, a prtica jornalstica foi se organizando e

    modificando a partir da delimitao das novas fronteiras de seu territrio e de

    seu campo, os quais se alteram conforme o estabelecimento de novas

    dinmica na sociedade. Esses processos de evoluo dentro do contexto de

    determinado territrio so apresentados, no que diz respeito aos marcos

    tericos utilizados por Belochio (2009), tomam trs formas distintas:

    desterritorializao, re-territorializao e des-re-territorializao.

    Os processos de des-territorializao ocorrem quando a chegada de

    novas foras dentro de determinado territrio acarreta mudanas em seu

    funcionamento. Como coloca Belochio (2009, p. 25), corresponde a renovao

    de processos, hbitos e prticas dentro de contextos estabelecidos [...]

    capazes de alterar a atuao, funo e objetivos de determinados campos.

    Essa etapa marcada por um intenso processo de debate acerca do papel a

  • 12

    ser desempenhado pelas novas prticas e valores ou mesmo sua legitimidade,

    em processos marcado tanto por dinmicas de resistncia quanto de defesa.

    Em seguida, tem incio o processo de re-territorializao pelo qual essas

    novas formas de atuao so institucionalizadas e os limites do territrio so

    novamente estabelecidos. Esses dois movimentos, quando ocorridos em

    sucesso do origem dinmica de des-re-territorializao, que se d dentro

    de uma perspectiva sociohistrica ao longo do tempo, ora com maior e ora com

    menor intensidade.

    Por meio dessa perspectiva terica, em consonncia com o que afirma

    Belochio (2009), entende-se aqui que a chegada das novas tecnologias de

    informao e comunicao desencadeou a acentuao desse movimento de

    des-re-territorializao em dcadas recentes e na atualidade. Os efeitos desse

    processo j podem ser sentidos na forma de uma maior aproximao entre

    profissionais da rea e amadores; no crescimento da influncia e credibilidade

    de blogs especializados em determinados temas; entre uma infinidade de

    outros fatores que seguem surgindo e sendo incorporados sob a gide da des-

    re-territorializao.

    1.2.1 O jornalismo e o discurso neoliberal

    Para se compreender melhor o processo de des-re-territorializao do

    jornalismo, cabe pontuar o funcionamento de tal dinmica, a qual est inserida

    no campo discursivo do sistema neoliberal.

    O neoliberalismo diz respeito a um conjunto de prticas, ideias e

    convices econmicas que tem como base o pensamento liberal clssico.

    Dessa forma, representa uma releitura contempornea, em grande parte, do

    que foi teorizado por Adam Smith (1988) durante o sculo XIII. De forma

    resumida, o filsofo argumenta que a busca de cada sujeito pela satisfao de

    suas necessidades, atravs da troca do excedente produtivo, leva ao

    enriquecimento de uma nao como um todo.

    Com isso, a presena de um Estado que regulasse as trocas, atravs da

    imposio de impostos, tarifas, taxas e afins, vista como um empecilho para o

    desenvolvimento econmico. Deriva da uma srie de implicaes, tais como o

  • 13

    princpio da oferta e demanda; a especializao do trabalho visando o aumento

    da produtividade; a livre-concorrncia; dentre outros.

    Contudo, importante ressaltar que a doutrina neoliberal deixa de lado

    certos pontos da teoria clssica. Estudos mais atuais mostram que Adam

    Smith, ao contrrio do que prega a cartilha neoliberal, no enxergava a

    desigualdade de renda como ocorrncia natural do enriquecimento de um pas.

    Conforme esclarece Boucoyannis (2013), se levado a cabo conforme descrito

    em A Riqueza das Naes, o modelo liberal implicaria no aumento dos salrios

    e em lucros menores para as empresas; no fortalecimento da fora de trabalho;

    na no-formao de monoplios e de alta concentrao de capital. Tal fato se

    daria atravs da ao dos governos, de modo a mitigar os efeitos negativos do

    livre comrcio, contribuindo assim para uma sociedade mais justa e igualitria.

    No entanto, o que se v a criao de polticas que se baseiam no

    iderio liberal clssico, mas com ressalvas que garantem os privilgios de

    determinados grupos. Em seu tempo, o filsofo j compreendia que as polticas

    que guiavam a interveno do estado na economia deveriam ser analisadas

    levando em conta onde se estabelecia e de que forma era exercido o poder.

    Sobre essa questo, Chomsky (1999) nos lembra de que o prprio Adam Smith

    apontou que os principais arquitetos da poltica na Inglaterra eram

    mercadores e manufatores que usavam o poder do Estado para servir aos

    seus prprios interesses, no importa o quo graves fossem os efeitos nos

    outros, incluindo o povo da Inglaterra (CHOMSKY, 1999, www.)2.

    Esse movimento de aparelhamento do Estado pelas foras produtivas

    privadas, de modo a intervir de maneira favorvel aos prprios interesses,

    compreendido por Chomsky como uma caracterstica importante do

    neoliberalismo. O autor caracteriza os mecanismos usados pelos Estados

    Unidos para promover e, no raramente, impor fora a adoo de

    polticas neoliberais ao redor do mundo. Entretanto, o pas sistematicamente

    rejeita medidas de livre mercado que possam ter impacto negativo na

    economia americana, ironicamente graas presso das grandes empresas

    que pressionam pela abertura de mercados no exterior.

    2 No original: pointed out that the principal architects of policy in England were merchants and manufacturers who used state power to serve their own interests, however grievous the effect on others, including the people of England. (CHOMSKY, 1999, www.).

  • 14

    Outro ponto importante que deve ser destacado com relao ao

    funcionamento do modelo neoliberal sua pretenso a globalidade. Os

    Estados Unidos, que emergem da II Guerra Mundial como potncia absoluta,

    buscam, atravs de uma srie de polticas internas e externas, tomarem para si

    o papel de porta-vez da democracia. A questo que, na maior parte dos

    casos, conforme mostra Chomsky (1999), essa ideia de democracia se resumia

    a adoo de polticas de abertura de mercado. Essas, por sua vez, em sua

    maioria, beneficiavam muito mais os EUA do que a populao local.3

    Indiferente a esse fato, o pas segue operando no sentido de implantar seu

    iderio neoliberal nos quatro cantos do mundo. Porm, para que esse modelo,

    com todas as suas contradies e injustias gritantes, consiga se manter

    vivel, necessrio que os sujeitos, ao menos dentro das naes

    democrticas, consintam com seu funcionamento.

    Fica, ento, a pergunta: por que via se d esse processo?

    Eminentemente pela via discursiva, que organiza, significa e naturaliza o

    discurso neoliberal nas diversas partes do mundo. Afinal, como afirma Dahlet

    (2014, p. 126), mesmo o mais cnico dos sistemas necessita de procedimentos

    retricos e de justificaes ticas para viabilizar seus empreendimentos.

    Nesse sentido, ele aponta para dois processos-chave que fundamentam de

    modo cada vez mais profundo do mundo enquanto mundo naturalizado em

    sistema neoliberal (DAHLET, 2014, p. 125): a eufemizao e a redistribuio

    semntica.

    O primeiro diz respeito s palavras usadas para descrever o

    funcionamento do sistema neoliberal. Eufemismos so figuras de linguagem

    que funcionam como uma forma de suavizar o peso de determinadas palavras

    ou ideias. Um exemplo comum quando dizemos que algum faleceu ou

    partiu e no que a pessoa morreu. No caso do discurso neoliberal, essa

    ferramenta lingustica utilizada no sentido de maquiar as relaes de poder e

    dominao inerentes ao sistema em questo. a partir da que surgem termos

    como modernizao para se referir a privatizao; enxugamento da

    3Os exemplos so abundantes. Um dos citados por Chomsky (1999) diz respeito ao envolvimento dos Estados Unidos no golpe que derrubou o primeiro governo democrtico da Guatemala, em 1954. A razo, segundo um oficial, citado pelo autor, foi a ameaa estabilidade (threat to stability, no original) de Honduras e El Salvador devido s reformas polticas feitas pelo governo guatemalteco reforma agrria, programas sociais etc.

  • 15

    mquina pblica para se referir a diminuio de benefcios sociais; reviso do

    fator previdencirio para se referir ao aumento no tempo de contribuio

    necessrio para a aposentadoria e colaborador ao invs de empregado, para

    citar alguns exemplos.

    Com relao aos mecanismos de redistribuio semntica, so

    compreendidos por Dahlet como:

    uma alterao de sentido historicamente atestado, resultante de uma explorao/repetio incessante das palavras em questo [...] e resultando na possibilidade de empregar essa palavra para caracterizar novos objetos e fenmenos, a priori sem relao com ela, mas permitindo assim transferir-lhe por contaminao o dinamismo transformador do sentido histrico (DAHLET, 2014, p. 132-133).

    Um dos casos mais interessantes citados pelo autor seja, talvez, o da

    palavra social. Antes, aponta, servia para descrever tudo que podia ser feito

    para levar o povo ao poder e constituir um governo de polticas pblicas

    destinadas a satisfazer igualmente as necessidades de todos (DAHLET, 2014,

    p. 131). Entretanto, no panorama atual, usado para designar medidas ou

    polticas que visam a reproduo do prprio sistema neoliberal, analisa o

    referido autor.

    O mesmo acontece com o termo ideologia que, segundo Dahlet (2014,

    p. 133), num primeiro momento diz respeito a cincia das ideias nas suas

    relaes com os signos (p. 133). Num momento seguinte, passou a descrever

    conjuntos de ideias e doutrinas de todo tipo [...], caractersticas de uma

    determinada poca: ideologia crist, conservadora, reacionria, liberal,

    revolucionria, marxista, socialista. No entanto, na prtica, virou um termo de

    conotao negativa usado, principalmente, para caracterizar as ideologias de

    esquerda ou, como explica Dahlet (2014, p. 134), para caracterizar tudo que

    contribui, mais ou menos violentamente, para reduzir a renda dos mais ricos e

    a liberdade do povo. Quando no utilizada nesse sentido, a palavra parece

    ser usada como oposio a valores como realismo, pragmatismo ou eficcia

    ou seja, se opondo a valores-chave que o discurso neoliberal tomou para si.

    Esse fenmeno ganha fora, como argumentam Bourdieu e Wacquan

    (2001), ao circular por todas as partes do mundo atravs de instituies de alto

    prestgio, que, em teoria, possuem senso crtico e neutralidade intelectual em

    relao aos rumos da poltica global.

  • 16

    Alm de universidades e escolas de negcio, os grandes veculos de

    mdia desempenham tambm um papel essencial nesse processo, uma vez

    que funcionam segundo a lgica de mercado, naturalmente auxiliam na

    reproduo do sistema neoliberal. s vezes, de forma sutil, eufemizando

    termos e jogando com as palavras, como apontou Dahlet (2014); em outras, de

    forma francamente golpista, como ocorreu na Venezuela, em 2002.4

    O fato que o Jornalismo, uma vez tratado enquanto atividade

    empresarial vivendo, em grande parte, dos lucros obtidos com publicidade

    entra em uma espiral produtiva do prprio sistema neoliberal, em que se perde

    muito daquilo a que se prope: servir como mecanismo de circulao de

    informaes relevantes por todas as partes da sociedade.

    1.3 Redes colaborativas

    Atualmente, muito se fala sobre processos, trabalhos ou plataformas

    ditas colaborativas, o que, algumas vezes, pode passar a impresso de que

    essa ideia algo recente. Entretanto, h sculos as pessoas vm colaborando

    entre si para o desenvolvimento das civilizaes humanas. O que muda, na

    contemporaneidade, a possibilidade de mudar a maneira como os recursos e

    atividades so ordenadas de forma a atingir determinado objetivo.

    Como lembra Castells (2005, p. 17-18), antes da ascenso das redes, o

    mundo foi marcado por organizaes grandes e verticais, como os estados, as

    igrejas, os exrcitos e as empresas que conseguiam dominar vastos polos de

    recursos com um objetivo definido por uma autoridade central. O motivo para

    isso era a grande dificuldade de reunir e gerenciar grandes contingentes de

    pessoas e recursos em rede, restringindo o uso desse arranjo principalmente

    ao mundo privado grupos de amigos, familiares.

    No entanto, essas dificuldades vo sendo deixadas para trs com a

    possibilidade de conexo direta e instantnea, tomando corpo em das

    principais caractersticas da sociedade em rede, conforme descrita por Castells

    4Na ocasio, os principais veculos de comunicao da Venezuela participaram ativamente da tentativa de golpe contra o ento presidente, Hugo Chvez. Uma fonte interessante sobre a participao da mdia no processo Lemoine (2002), para o jornal Le Monde Diplomatique. Disponvel em: . Acesso em: 1 dez. 2014.

  • 17

    (2005): um aumento exponencial na capacidade humana de se organizar em

    redes. Nas palavras do autor:

    [...] em termos simples, uma estrutura social baseada em redes operadas por tecnologias de comunicao e informao fundamentadas na microelectrnica e em redes digitais de computadores que geram, processam e distribuem informao a partir de conhecimento acumulado nos ns dessas redes (CASTELLS, 2005, p. 20).

    especialmente interessante atentar, no trecho acima, para a questo

    dos ns que acumulam o conhecimento que distribudo. Ns so pontos

    individuais dentro de uma rede que, por sua vez, esto conectados, direta ou

    indiretamente, a todos os outros ns que compe essa rede. Como isso se d

    em um ambiente virtual, que no limitado pelas fronteiras geogrficas, um

    dos efeitos decorrentes dessa estrutura que ela permite que diversas

    pessoas possam colaborar num mesmo projeto, dentro da rede, sem que

    necessariamente estejam presentes.

    Ao levarmos em conta esse aspecto para o caso especfico do

    jornalismo, cuja matria-prima a informao, nos deparamos com um

    mecanismo que tem grande potencial de auxiliar no seu funcionamento e na

    contribuio para a democracia. Essas caractersticas se tornam ainda mais

    interessantes quando se considera a proliferao, nos ltimos anos, das

    plataformas de publicao/difuso de contedo e as novas formas de

    socializao que derivam diretamente da interao com esses contedos. No

    espectro mais popular, tomam forma em sites como Facebook, Twitter, Tumblr;

    mas h tambm outros, como o Reddit, 4Chan, CraigsList, 9GAG.

    A possibilidade de colaborar em temas altamente especficos possibilita

    ainda o surgimento de sites como a UltramanWiki: dedicada exclusivamente

    franquia japonesa Ultra Series, famosa no Brasil pela srie Ultraman, exibida

    durante os anos 60 e 80.

    O exemplo propositalmente extremo, pois visa dar conta do seguinte

    panorama: como, na era pr-internet, seria possvel empreender um esforo

    para reunir tais informaes, alm de torn-las pblicas, atravs apenas de

    trabalho voluntrio? Provavelmente no. A quantidade de pessoas que se

    interessam por esse tema no grande e o projeto envolveria gastos que, no

    geral, no tornariam essa empreitada financeiramente vivel. Entretanto, ao

  • 18

    reunir fs de diversas partes do mundo que podem facilmente inserir, checar e

    conferir informaes em um mesmo local, a ideia torna-se vivel. Em outras

    palavras, tornou-se possvel graas a organizao em rede e s

    particularidades da internet.

    No tocante ao modo pela qual se organiza o trabalho, Shirky (2008) nos

    oferece algumas reflexes importantes, em especial, no que diz respeito ao

    funcionamento miditico. O autor nos lembra que, em essncia, as

    organizaes surgem para atender uma determinada demanda da sociedade.

    Na medida em que crescem, a tarefa de administr-la torna-se cada vez mais

    complexa, surgindo da sistemas hierrquicos, processos, valores, setores - um

    corpo burocrtico que visa racionalizar seu funcionamento, j que os recursos

    so limitados e necessrio manter a sustentabilidade do sistema. Dessa

    forma, cada sujeito tem papis bem definidos: no caso do jornal, por exemplo,

    um reprter coleta e redige informaes; um editor decide o que ou no

    publicado; diagramadores montam os textos na pgina e assim por adiante,

    seguindo uma lgica da linha de produo.

    Durante boa parte dos sculos XIX e XX, no haviam muitas sadas para

    esse modelo. O custo dos meios de produo relativos aos veculos de

    imprensa tambm contribua em muito para esse cenrio. Contudo, como

    vimos, isso muda conforme a internet comea a dar seus primeiros passos.

    Paralelamente, instrumentos de captao do real gravadores, filmadoras,

    mquinas fotogrficas vo se tornando mais acessveis a uma parcela

    crescente da populao, com a transio dos modelos analgicos para os

    digitais aumentando drasticamente a capacidade de armazenamento.

    Dessa forma, chegamos ao panorama contemporneo. Na era pr-

    Internet, para fazer circular informaes relevantes atravs da sociedade, era

    necessrio criar uma organizao que pudesse arcar com os custos dessa

    tarefa altamente onerosa. Contudo, atualmente, o mesmo trabalho pode ser

    feito por um grupo muito menor e com oramento proporcionalmente nfimo,

    sem que necessariamente seja necessrio criar uma organizao ou contar

    com profissionais. Ao invs disso, o trabalho se divide ao longo de uma

    extensa rede de colaboradores (as), que se organizam de maneira autnoma e

    orgnica atravs de uma plataforma especfica. Outra vantagem que ao abrir

    a participao para qualquer pessoa, passam a ser includas tambm as

  • 19

    contribuies pontuais, uma vez que no necessria vinculao formal a uma

    organizao. Em grande parte, pelo atual funcionamento colaborativo da

    internet, com milhes de pessoas produzindo e fazendo circular contedos por

    toda a sua extenso.

    1.3.1 Jornalismo colaborativo

    No que diz respeito ao jornalismo colaborativo, Madureira (2009) aponta

    que o fenmeno surge nos Estados Unidos e na sia no fim dos anos 1990,

    ganhando maturidade ao longo dos anos 2000. O autor exemplifica algumas

    iniciativas que foram pioneiras nesse tipo de atividade, como o IndyMedia,

    criado por ativistas e organizaes independentes para cobrir o Frum da

    Organizao Mundial do Comrcio (OMC). Esta terminou por dar origem a

    diversas outras aes parecidas ao redor do mundo. No Brasil, se cristalizou na

    forma do Centro de Mdia Independente (CMI), uma das primeiras desse tipo

    no pas. O stio (http://www.midiaindependente.org) foi fundado em 2001 por

    ativistas que participaram da organizao (em So Paulo) do protesto contra a

    reunio do Fundo Monetrio Internacional (FMI), [] atravs da troca de

    informaes por uma lista de discusso (RIGITANO, 2003). Atualmente,

    existem outros coletivos5 que operam em diversas outras cidades, com

    endereos online prprios, mas vinculados ao portal principal que rene uma

    quantidade considervel de textos.

    Outra iniciativa de destaque no cenrio jornalstico atual o portal

    Outras Palavras

    (www.outraspalavras.net), onde esto reunidos tanto textos

    produzidos pela prpria equipe, que mantm o site atravs de doaes, quanto

    de diversos outros autores e autoras independentes. A linha editorial preza por

    artigos que discutem o que o site descreve como ps-capitalismo - como tal,

    todo contedo oferecido gratuitamente. O espao se faz valer, assim, das

    contribuies de diversos (as) colaboradores (as) para agregar valores e

    5 Existem pontos em Braslia, Curitiba, Goinia, Fortaleza, etc. Para uma lista completa, ver: .

  • 20

    credibilidade tanto aos indivduos quanto a organizao como um todo, alm da

    rede de pessoas que se interessa pelo jornalismo alternativo6.

    Caso semelhante o do Estdio Fluxo, fundado por Bruno Torturra, um

    dos principais articuladores da Mdia Ninja e importante ativista do jornalismo

    independente brasileiro. A base fsica do projeto mantida atravs de doaes

    voluntrias, visto que todo contedo gratuito; a moblia utilizada foi oferecida

    por pessoas que se interessaram pelo projeto atravs da web; usurios so

    convidados a participarem de live streams, debates e no envio de informaes

    atravs da internet.

    Esses fatores apontam e ao mesmo tempo contribuem para a formao

    de um universo informativo que independente do territrio tradicional da

    mdia. De modo correlato ao processo de des-re-territorializao do jornalismo,

    nota-se tambm o surgimento de uma rede de informaes que a prpria

    Internet, na forma de um simulacro de estrutura miditica7 que marcada por

    dinmicas, valores e linguagem prprios. Entre estes, destacam-se a

    neutralidade das informaes; organicidade; colaboratividade em rede;

    altssimo ndice de entropia; funcionamento mimtico; entre outros. Funcionam,

    neste sentido, tanto para o bem quanto para o mal: se por um lado inclui as

    pessoas no abastecimento da esfera pblica, por outro lado oferece espao

    para circulao de rumores e factides; se por um lado oferece uma variedade

    vertiginosa de contedo, perde por outro na qualidade do mesmo; assim

    sucessivamente.

    6Compreendido aqui, dentro da perspectiva terica apresentada com base em Charaudeau (2008), como aquela que prioriza a circulao dos discursos de contrapoder 7 Compreendido aqui como conjunto de mecanismos que promovem a circulao de informaes sobre a sociedade como um todo, do nvel macro ao nvel micro.

  • 21

    CAPTULO 2 CRISE MIDITICA

    A crise do Fora do Eixo e da Mdia Ninja se deu, em parte, como

    resultado de uma disputa de poder dizer dentro do territrio institucionalizado

    do jornalismo. Ao propor uma desterritorizaliao radical, atravs do uso das

    redes, ao mesmo tempo em que atacava de forma muito contundente a

    atuao das mdias tradicionais, desencadearam uma reao dessa ltima.

    Esta se deu na forma da crise que, como veremos mais adiante, foi ainda mal

    administrada e resultou em uma imensa perda de reputao por parte de

    ambas as iniciativas. Por sua vez, isso resultou na anulao de sua capacidade

    de atuao poltica do coletivo.

    Com isso em mente, precisamos analisar de maneira mais aprofundada

    o contexto em que se deu sua criao, levando em conta tambm suas

    particularidades. Em meio aos avanos recentes na comunicao digital, a

    sociedade vem, pouco a pouco, repensando seus modos de organizao.

    Atualmente, tornam-se cada vez mais comuns organizaes abertas,

    estruturadas em rede, principalmente, no setor criativo. A facilidade de

    transmitir informaes para qualquer parte do mundo, em tempo real, tem sido

    o motor principal dessas profundas transformaes no modo como

    trabalhamos, nos relacionamos e consumimos.

    Na era pr-Internet, para fazer circular informaes relevantes pela

    sociedade, era necessrio criar uma organizao que pudesse arcar com os

    custos dessa tarefa altamente onerosa. Atualmente, com a drstica queda nos

    valores para se veicular informaes via web, o mesmo trabalho pode ser feito

    por um grupo muito menor, sem que necessariamente seja necessrio criar

    uma organizao formal ou contar com profissionais.

    Esse o caso do Fora do Eixo, uma rede que rene cerca de 200

    coletivos culturais, sediados de norte a sul do Brasil. A iniciativa, que comeou

    reunindo coletivos de Cuiab, Londrina, Uberlndia e Rio Branco, tinha o

    objetivo inicial de fortalecer a cena musical independente no pas em

    especial, a que se localizava fora do eixo Rio de Janeiro So Paulo, da a

    origem do nome. Entretanto, conforme foi crescendo, passou a abarcar uma

  • 22

    vasta variedade de linguagens, projetos e pautas, a exemplo da fotografia, do

    audiovisual, da poltica, da economia criativa, entre outros.

    Todas as aes do grupo so planejadas e executadas de forma

    descentralizada, via web, atravs de listas de e-mail, chats, fruns, IRC, Skype,

    Google Hangouts etc. Na base, esto os coletivos locais, no geral, abertos a

    qualquer um que queira participar; esses so auxiliados por coletivos maiores,

    que, em alguns casos, j possuem sede prpria, onde os integrantes vivem e

    trabalham com dedicao exclusiva.

    Os recursos financeiros so arrecadados de vrias formas: atravs de

    leis de incentivo a cultura, prestao de servios (design grfico, fotografia,

    vdeo, redes sociais), realizao de eventos, doaes e diversos outros meios.

    Entretanto, muito do que feito s possvel graas aos milhares de

    voluntrios que, muitas vezes, oferecem sua fora de trabalho pela experincia

    comunitria proporcionada pela vivncia dentro da rede. O dinheiro que essas

    pessoas abrem mo de receber passa a ser revertido para a prpria

    organizao, que mantm casas coletivas, compra equipamentos, investe em

    formao, realiza eventos.

    A Mdia Ninja surgiu dentro desse contexto, sendo um brao jornalstico

    do Fora do Eixo. Idealizada, principalmente, por Bruno Torturra, o nome uma

    sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ao. A proposta, lanada

    durante o encontro nacional da rede em 2012, era no sentido de consolidar a

    figura do jornalista ninja, capaz de desempenhar mltiplas funes ao mesmo

    tempo, mesmo sob condies adversas. Este seria responsvel tambm por

    mostrar o que a mdia tradicional no mostra ou releva, seja por

    constrangimento poltico, seja por presso financeira ou editorial. A produo

    desse material ficaria a cargo de pessoas comuns, de modo que pudessem

    retratar elas mesmas as suas realidades locais; esse contedo seria, ento,

    reverberado em rede.

    Esse projeto editorial no , de modo algum, indito na histria. H

    vrias dcadas que veculos impressos, rdios e televises legalmente

    estabelecidos ou no buscam fazer um contraponto ao discurso miditico

    neoliberal. Entretanto, a grande dificuldade estava situada na capacidade de

    manter a sustentabilidade de tais veculos sem abrir mo dos princpios

    editoriais ou ideolgicos.

  • 23

    Na atualidade, os meios de produo e difuso jornalstica, como vimos,

    se tornaram acessveis a um grande nmero de pessoas. O mesmo vale para a

    capacidade de oferecer colaboraes individuais, sem a necessidade de se

    vincular a uma organizao ou corpo profissional. Esses fatores so o que

    possibilitam que projetos jornalsticos mais cvicos e democrticos, como a

    Mdia Ninja, disputem territrio discursivo com grandes veculos tradicionais.

    Contudo, as mudanas em um determinado campo social dificilmente

    so aceitas de maneira passiva. Ao contrrio, quase sempre so articulados

    movimentos contrrios a esse processo, com o objetivo de preservar a

    essncia do campo. O fato verdadeiramente especial quando diz respeito s

    prticas neoliberais, uma vez que, conforme aponta Dahlet (2014),

    perceptvel a formao de um globo discurso que visa naturalizar as

    desigualdades inerentes a esse modelo.

    No mbito especfico da batalha entre as formas mais novas e mais

    tradicionais de atuao da mdia, geralmente, um dos lados detm o monoplio

    da comunicao em larga escala enquanto o outro costuma atuar em uma rea

    bem mais limitada da arena pblica como veremos a seguir.

    2.1 As origens da crise miditica da Mdia Ninja

    A Mdia Ninja ganhou imensa notoriedade por sua cobertura durante os

    protestos de junho de 2013, em muito graas ao trabalho realizado da forma

    que foi descrita nos pargrafos anteriores: sempre muito prxima da ao,

    buscando dar voz a quem no se sentia representado pelas mdias tradicionais.

    Grande parte do interesse se dava pelo fato de que os ninjas faziam

    transmisses ao vivo das manifestaes, utilizando apenas um celular com

    conexo a internet e um notebook, do qual era usada a bateria para manter o

    celular carregado. Entretanto, essa no era a nica frente de atuao. Redes

    sociais como Facebook, Twitter, Flickr e YouTube eram abastecidas

    diariamente com contedo produzido por colaboradores independentes e

    pessoas que j faziam parte do Fora do Eixo.

    O pice da notoriedade se deu quando o Jornal Nacional, um dos mais

    importantes do pas, usou imagens do grupo independente em uma matria

  • 24

    que tratava justamente dos protestos. Na ocasio, um rapaz havia sido

    acusado de atirar coquetis molotov8 em um grupo de policiais, conforme

    reportagem do portal G1(2014). Contudo, em um vdeo produzido pela Mdia

    Ninja, durante o a transmisso dos protestos, mostrava que o acusado era

    inocente.

    Passado o turbilho inicial das manifestaes, Bruno Torturra (principal

    idealizador da Mdia Ninja) e Pablo Capil (fundador do Fora do Eixo) foram

    convidados ao programa Roda Viva (2014) da TV Cultura. Os dois foram,

    ento, sabatinados por representantes de diversos veculos tradicionais de

    mdia: Suzana Singer, ombudsman da Folha de So Paulo; Alberto Dines, do

    Observatrio da Imprensa; Eugnio Bucci, professor da Escola de

    Comunicao e Artes da USP, alm de colunista do Estado de So Paulo; Caio

    Tlio Costa, da ESPN Brasil; Wilson Moherdaui, da revista Informtica Hoje e o

    prprio apresentador, o jornalista Mrio Srgio Conti.

    De incio, Mrio Srgio Conti faz quatro perguntas: o que a Mdia

    Ninja?, o que faz?, como se mantm? e se consideram isso jornalismo.

    Torturra responde as duas primeiras, em seguida, confirma que o que fazem ,

    de fato, jornalismo e diz considerar curioso que exista alguma dvida sobre

    isso. Ao longo do programa, foram indagados sobre uma srie de questes,

    que vo desde a relao com partidos como o PT, qual seria o plano de

    negcios do projeto, de onde viria o dinheiro, se realmente seria independente.

    Todavia, ao fim do Roda Viva, o saldo era relativamente positivo. A batalha que

    colocaria em jogo a reputao da Mdia Ninja e, em especial, o Fora do Eixo,

    s teria incio nos prximos dias.

    Alguns dias depois, a cineasta Beatriz Seigner publicou um depoimento

    em que relatava uma srie de experincias negativas com relao ao grupo. A

    participao de Pablo Capil e Bruno Torturra no Roda Viva foi um dos fatores

    que motivou a cineasta Beatriz Seigner a publicar, via Facebook, um longo

    depoimento onde tecia profundas crticas ao movimento. No texto quase no

    h meno a Mdia Ninja, apenas ao Fora do Eixo, que, at ento, abarcava o

    projeto e o abastecia com recursos tanto tecnolgicos quanto humanos.

    8Artefato explosivo que consiste, basicamente, de uma garrafa de vidro contendo algum lquido inflamvel. A boca da garrafa vedada com uma rolha e um pano, que usado como pavio. Ao atirar a garrafa com o pano em chamas, esta se quebra ao cair no cho e espalha ocombustvel, que entra em combusto.

  • 25

    Ela relata suas experincias com base no contato que manteve durante

    cerca de um ano. Segundo Beatriz, no s Pablo Capil nutria um profundo

    desprezo pela classe artstica, como era tambm um lder autoritrio, que

    centralizava em si todo o movimento. Alega tambm que este seria contra o

    pagamento de cach aos artistas e que a Rede, como um todo, busca se

    apropriar de eventos de outros grupos para se promoverem, alm de (super)

    inflacionarem os prprios feitos tendo em vista a obteno de patrocnios e

    afins.

    O depoimento inspirou outro, escrito e publicado pela jornalista Las

    Bellini. Um dia depois, a ex-integrante que viveu cerca de trs meses na

    principal sede da organizao a Casa Fora do Eixo So Paulo, em So Paulo

    (SP) reforou o depoimento de Beatriz e denunciou outras prticas

    preocupantes. Em sua pgina pessoal do Facebook, ela detalha uma srie de

    prticas autoritrias e abusos psicolgicos sofridos por ela dentro da Casa Fora

    do Eixo So Paulo, principal sede do Coletivo. Compara o funcionamento do

    Fora do Eixo a uma seita:

    Com cara de culturalmente popular, musicalmente descolada, pessoalmente encantadora, internamente... cheia de gente incrvel que est cega como eu j estive e com um nmero contvel nas mos de quem so os controladores e administradores da rede querendo consumir uma s coisa em voc: a sua mente (BELLINI, 2013)

    De acordo com seu texto, Las era proibida de sair da casa e havia

    presso para que no conversasse com quem era de fora da Rede; sobre a

    suposta horizontalidade, diz que havia na verdade uma estrutura altamente

    engessada e que a cpula, liderada por Capil, era quem na verdade tomava

    todas as decises.

    Diria mais, ali se vive uma ditadura monrquica com toda a sujeira de autoritarismo de milhes de outras caras bonitas que possa haver num governo que se considera como tal. Monrquica porque o Pablo [Capil] um rei l dentro []. E dito ditatorial porque a nica coisa que consigo associar com o medo que existe nas pessoas em questionar o poder da cpula a ditadura (BELLINI, 2013).

    Figuram ainda as seguintes afirmaes: crticas internas eram abafadas

    e a pessoa que as fez, rechaada; comenta sobre jornadas de trabalho que iam

    das 8h s 4h da manh, durante a preparao de um congresso interno ou

  • 26

    seja, uma mdia de 19h por dia; haveria forte orientao sexista: mulheres

    eram direcionadas para certas reas e homens para outras, no geral as

    mulheres eram responsveis pelo servio domstico. Isso porque fala ainda de

    prticas como a que chama de catar e cooptar: em reunio interna, um

    membro (a) era indicado (a) para seduzir determinada pessoa que era

    considerada interessante para o Fora do Eixo.

    Las questiona tambm a legitimidade fiscal, apontado para o possvel

    uso de notas frias. Quando deixou a Casa, a rede devia a ela

    aproximadamente R$5 mil. Ao desconsiderar uma srie de questes, decidiu

    fechar a dvida em R$3 mil, dos quais recebeu apenas R$500. Isso porque

    para sair da rede tem que ter algum recurso financeiro para comear a vida do

    zero e muitos, que eu sei, ainda enfrentam longas sesses de terapia

    (BELLINI, 2013).

    Alm desses dois depoimentos, diversos outros comearam a surgir e

    circular tanto pelas redes sociais quanto nos principais jornais do pas, em um

    processo de retroalimentao: quanto mais as crticas ganhavam espao na

    mdia, mais depoimentos surgiam na web. Estado de S. Paulo, Veja, O Globo,

    O Tempo e diversos colunistas, blogueiros, msicos, se manifestaram sobre o

    tema em geral, em textos com enquadramento negativo da organizao.

    2.2 Modelo de gesto de crise de Coombs

    Antes de analisarmos uma crise, somos confrontados com a seguinte

    problemtica: como podemos defini-la, de modo a diferenciar as crises de uma

    simples turbulncia pontual? A literatura especializada nos oferece uma srie

    de contribuies.

    A Universidade de Louisville (apud FORNI, 2013), por exemplo, a

    compreende como perturbao ou desordem nas atividades da organizao

    que resulte em grande cobertura de notcias. Forni (2013) tambm apresenta a

    concepo usada pelo Institute for Crisis Management: uma ruptura

    significante dos negcios que estimula uma extensa cobertura dos meios de

    comunicao.

    J Rosa (2003), em suas anlises, parte da seguinte definio:

  • 27

    Um conjunto de eventos que pode atingir o patrimnio mais importante de qualquer entidade ou personalidade que mantenha laos estreitos com o pblico: a credibilidade, a confiabilidade, a reputao (ROSA, 2003, p. 23).

    Forni (2013, p. 8) atenta que as definies so variadas, mas possuem

    zonas de convergncia: a crise exibe duas caractersticas bem definidas: a

    ameaa e o fator do tempo. No entanto, em nosso entendimento, a atuao

    dos sistemas de comunicao em larga escala tambm um fator essencial na

    identificao de uma crise. Isso porque partimos do pressuposto de que, para

    que ocorram danos significativos na reputao de determinada organizao,

    ela precisa ser colocada em uma posio de destaque na esfera pblica.

    Com isso em mente, decidiu-se aqui adotar o conceito utilizado por

    Coombs (2007), dentro do contexto mais amplo do modelo terico formulado

    pelo autor, justamente pelo foco que dado aos aspectos comunicacionais.

    Segundo ele, as crises so:

    um evento sbito ou inesperado que ameaa romper as operaes de uma organizao e que representa uma ameaa tanto financeira quanto reputacional. Crises podem causar dano aos stakeholders de maneira fsica, emocional e/ou financeira (COOMBS, 2007, p. 163). 9

    Para Forni (2013), existem 16 tipos possveis de crise: direitos do

    consumidor, tica empresarial, meio ambiente, relaes trabalhistas ou de

    pessoal, catstrofes naturais, segurana pblica, poder pblico, danos

    patrimoniais, controle financeiro, contencioso jurdico, imagem, tecnologia,

    servio pblico, crises regulatrias, crises de gesto e crises polticas.

    Do ponto de vista dos efeitos causados pelas crises, o autor (2003) as

    classifica em duas categorias distintas. A primeira a devastadora, que

    acontece a partir de eventos como denncias, assaltos, reclamaes graves e

    afins. So, assim, eventos que tem naturalmente um alto potencial para

    reverberao na mdia. A segunda categoria da crise supostamente

    insignificante: demisses em massa, vazamentos de produtos e contaminao

    ambiental etc. Em suma, eventos que, a primeira vista, no possuem

    9 No original: a sudden and unexpected event that threatens to disrupt an organizations operations and poses both a financial and a reputational threat. Crises can harm stakeholders physically, emotionally and/or financially (COOMBS, 2007, p. 163).

  • 28

    notoriedade o bastante para serem amplificados pela atuao da mquina

    miditica.

    Em nossa viso, a classificao de Forni (2003), apesar de til, possui

    uma srie de limitaes, pois , em sua totalidade, baseada em estudos de

    caso. O problema disso que, sem uma base terica mais slida, a

    fundamentao das anlises fica restrita apenas ao que j aconteceu; da

    mesma forma, sua aplicao restrita aos casos especficos da qual trata. No

    entanto, essa lacuna metodolgica preenchida na presente pesquisa por

    Coombs (2007).

    O autor parte da noo de que so poucos os trabalhos que lidam com o

    modo como os stakeholders pessoas que, de alguma forma, afetam ou so

    afetadas pela organizao reagem s estratgias escolhidas para proteger a

    reputao de uma organizao durante uma crise.

    Nesse sentido, apresenta, ento, o modelo de Situational Crisis

    Communication Theory (SCCT) ou Teoria da Comunicao de Crise

    Situacional, em traduo livre. Segundo o autor, esse modelo capaz de

    oferecer um quadro de anlise que ajuda a maximizar a proteo reputacional

    nas aes de comunicao tomadas aps a crise. Ele ressalta que o mtodo

    SCCT se baseia no em estudos de caso, mas no mtodo experimental.

    Coombs (2007) avana tambm na noo de capital reputacional,

    usando a metfora de uma conta de banco: a reputao acumulada nessa

    conta ao longo da existncia da organizao e, em uma situao de crise, o

    que est em jogo o quanto desse capital ser perdido. Por isso, a importncia

    de manter esse saldo sempre o mais positivo possvel ou, nas palavras de

    Coombs, uma reputao favorvel - j que em uma situao de crise, esse

    capital entrar em jogo para aliviar os efeitos negativos da situao.

    Porm, antes de tratar das tcnicas oferecidas pelo modelo SCCT para

    proteger a reputao de uma organizao, Coombs refora que, antes de tudo,

    devem ser tomadas atitudes para proteger a integridade dos stakeholders. Por

    exemplo, informar ao pblico que determinado produto no deve ser

    consumido ou como proceder diante da situao de crise. Em seguida, prestar

    auxlio psicolgico para mitigar o estresse causado, informando o que

    aconteceu e o quais providncias esto sendo tomadas. Por fim, recomenda

  • 29

    tambm que sejam feitas demonstraes de apreo pelos stakeholders, mas

    no necessariamente admitindo a culpa pelo ocorrido.

    A origem da teoria de Coombs est na attribution theory, a qual parte do

    pressuposto de que, especialmente diante de eventos negativos e inesperados,

    as pessoas buscam as causas desse evento. Em seguida, atribui

    responsabilidade por tal fato a algum ou alguma coisa, ao mesmo tempo em

    que passa por uma reao emocional estas podem ser a raiva ou a simpatia

    - e tanto a responsabilidade atribuda quanto a reao emocional podem servir

    como estopins para a ao.

    Dessa forma, a resposta ser considerada negativa quando uma pessoa

    julgada com responsvel e a raiva invocada; ser positiva quando uma

    pessoa no for julgada responsvel e a simpatia invocada. Baseia-se,

    portanto, nos eventos que desencadearam a crise e a maneira como so

    percebidos/interpretados pelo pblico em geral: poderiam ter sido evitados ou

    no? Caso a organizao seja considerada culpada, ter sua reputao

    afetada.

    Com isso, o SCCT concentra suas foras na anlise da situao de

    crise, de modo que quem fica responsvel por gerenci-la possa escolher a

    melhor estratgia possvel. Presta ateno especial tambm na relao do

    gestor com a ameaa reputacional em questo. Essa ameaa representaria a

    quantidade de dano que pode ser causado na reputao da empresa, caso

    nenhuma ao seja tomada. Essas ameaas so determinadas com base em

    trs fatores: (I) a responsabilidade inicial pela crise; (II) o histrico da crise; (III)

    a reputao relacional prvia. Cabe aqui uma breve elucidao a respeito de

    cada um desses pontos.

    A responsabilidade inicial pela crise, de forma resumida, diz respeito ao

    quanto a reao dos stakeholders no sentido de atribuir responsabilidade

    pela crise a aes organizacionais. Contudo, para compreender o modo como

    esse processo est ocorrendo, necessrio entender a maneira como a crise

    est sendo enquadrada. Esse enquadramento funciona em dois mbitos

    distintos: o da comunicao, que diz respeito ao modo como a informao

    apresentada no contexto de uma mensagem e o do pensamento, que trata da

    maneira como essa informao ser processada a nvel individual (COOMBS

    apud DRUCKMAN, 2001).

  • 30

    O autor nos lembra, contudo, que a maneira como a informao

    apresentada ajuda a determinar o modo como ela ser processada, uma vez

    que possvel ressaltar certos aspectos e maquiar outros. Esse fato tem

    impacto direto na maneira como os stakeholders iro atribuir responsabilidade

    organizao. Portanto, caber ao responsvel trabalhar o enquadramento ou

    perceber este enquadramento em sua anlise dos discursos miditicos.

    No que diz respeito a esse ponto, o mtodo SCCT aponta trs nveis

    distintos de atribuio de responsabilidade. No primeiro deles, o grau de

    atribuio de responsabilidade muito baixo, como nos casos em que a crise

    resulta de desastres naturais, rumores e afins no caso, o enquadramento

    de vtima. No segundo, o enquadramento o do acidente, onde existe um

    mnimo de atribuio de responsabilidade. Incluem-se aqui eventos

    considerados no-intencionais ou que no poderiam ter sido controlados pela

    organizao, como acidentes e erros tcnicos. Por fim, no terceiro caso onde

    se encontram os eventos compreendidos, pelos stakeholders como

    intencionais, onde as atribuies de responsabilidade so muito fortes. Essas

    ocorrem em casos de erro humano, desvios morais e afins.

    O histrico de crise diz respeito a crises anteriores que sejam

    semelhantes quela com a qual se est lidando no presente. Esse ponto

    importante, pois, segundo a attribution theory, situaes de crise que se

    repetem passam a impresso de que existe um problema organizacional

    recorrente. Finalmente, por reputao relacional prvia, compreende-se o

    modo como a relao da organizao com seus (as) stakeholders, em outras

    situaes e ao longo de sua histria, percebida. Esse histrico pode ser

    favorvel (quando tratou bem esse grupo) ou desfavorvel (quando tratou mal).

    Um quadro desfavorvel indicaria que a organizao no se importa com o

    bem-estar desse grupo, no apenas em situaes de crise, mas em um

    contexto mais geral.

    A partir disso, Coombs aponta que dois passos so importantes ao

    avaliar a ameaa reputacional. O primeiro determinar o grau de

    responsabilidade inicial que foi atribudo pelos stakeholders. A ameaa ser to

    maior quanto for o grau de responsabilidade atribudo. Em seguida, o gestor

    dever analisar o histrico de crises e a reputao relacional prvia, j que

    esses so fatores que intensificam ou suavizam a situao. Por exemplo, se

  • 31

    a terceira vez que a mesma crise acontece, a perda de capital reputacional

    certamente ser maior do que se fosse a primeira vez. Essas relaes so

    apontadas pelo autor no diagrama abaixo (FIG. 1).

    FIGURA 1: Passos para se analisar a ameaa reputacional Fonte: Coombs (1993).

    Na figura, as seguintes relaes so estabelecidas: (I) A diz respeito ao

    impacto que a responsabilidade atribuda pela crise tem na reputao

    organizacional; (II) B1 e B2 esto relacionados ao impacto do histrico na

    responsabilidade atribuda e reputao organizacional, respectivamente; (III)

    B3 e B4, ao impacto da reputao relacional prvia na responsabilidade

    atribuda pela crise e reputao organizacional; (IV) C est atrelado ao

    impacto da atribuio de responsabilidade pela crise na emoo dos

    stakeholders, podendo gerar afetos negativos; (V) D retrata a relao entre

    reputao organizacional e inteno de comportamento; (VI) E relaciona o

    impacto das emoes dos stakeholders com as intenes de comportamento.

    As estratgias usadas para conter as crises so representadas pelas

    flechas: (I) F1, que diz respeito s usadas para atuar no mbito da

    responsabilidade atribuda pela crise; (II) F2 corresponde s utilizadas para

  • 32

    atuar no mbito da reputao organizacional; (III) s empregadas para conter

    efeitos negativos no mbito das emoes.

    Desse modo, essas estratgias de gesto de crises podem ser de trs

    ordens distintas: negao; diminuio e/ou reconstruo. Cada uma delas

    possui certas particularidades que buscaremos abordar aqui.

    As primeiras funcionam conforme sugere o prprio nome: no sentido de

    negar que existe uma crise ou que os eventos que a desencadearam no

    possuem relao com a organizao. Ao cortar esses vnculos, procura-se

    neutralizar tambm as perdas reputacionais. Coombs (2007) recomenda que

    estas sejam usadas em casos que a atribuio de responsabilidade seja muito

    baixa.

    Em seguida, tm-se as estratgias de diminuio, que visam,

    principalmente, mostrar que a crise no to ruim quanto parece ou que a

    organizao no tinha controle sobre os eventos. Ao contrrio da primeira, no

    busca negar uma conexo com os fatos negativos, mas enfraquecer essa

    ligao. Aqui, a recomendao de uso vale para casos onde a atribuio de

    responsabilidade j seja mais forte, como o caso das situaes acidentais e

    afins.

    As estratgias de reconstruo funcionam como uma maneira de,

    literalmente, (re)significar a reputao. Esto includas aqui aes de

    ressarcimento econmico, auxlio direto s vtimas, pedidos de desculpa

    pblicos, enfim. recomendada nos casos em que o nvel de atribuio de

    responsabilidade muito alto: quando a organizao, de forma consciente,

    colocou pessoas em risco ou agiu de forma conivente com a situao que

    desencadeou a crise, por exemplo.

    necessrio ressaltar que, do ponto de vista da proteo reputacional,

    levar em conta o papel desempenhado pelas mdias. Independentemente da

    estratgia escolhida, deve-se pensar em como fazer com que as aes

    tomadas a partir da cheguem at a grande mdia. Isso porque, conforme

    afirma Coombs (2007), ela uma das grandes responsveis por determinar a

    maneira como as pessoas enxergam a situao.

  • 33

    CAPTULO 3 ANLISE

    Para discutir as estratgias de defesa e gerenciamento de crise do Fora

    do Eixo diante de sua crise miditica em 2013, a presente pesquisa realiza um

    movimento analtico do nvel textual para o contextual, percorrendo as

    denncias na mdia e as defesas praticadas pelo coletivo.

    Em um primeiro momento, caracterizamos qual o tipo de crise. Para

    tanto, investigamos os eth projetados pelo jornal paulista Folha de S. Paulo de

    8 a 15 de agosto de 2013, quando publicou uma srie de denncias sobre o

    coletivo cultural. Essa incurso permite perceber o cenrio miditico que o

    grupo se depara, a fim de sustentar melhor as anlises de suas tticas de

    resposta.

    Posteriormente, o estudo realiza uma macroanlise da gesto de crise

    empreendida pelo Fora do Eixo, comparando-se a observao emprica das

    estratgias realizadas no Facebook com as recomendaes da literatura

    especializada de Coombs (2007). Para tanto, o corpus dessa segunda fase

    compe-se dos contedos veiculados na fanpage do coletivo no mesmo

    perodo de ataques da Folha de S. Paulo.

    O ethos um conceito que tem sua origem na retrica aristotlica, sendo

    tambm um de seus pilares, ao lado do logos (reino dos argumentos racionais)

    e pathos (emoes projetadas). Ele corresponde capacidade que um orador

    tem de se fazer crer digno de f, atravs da imagem passada ao auditrio.

    Dessa forma, determina tambm a maneira como determinado argumento ser

    recebido.

    Conforme Charaudeau (2008; 2010), a construo do ethos se d como

    resultado de uma srie de interaes que, nesse arcabouo terico, se

    sustentam no imaginrio sociodiscursivo: um universo simblico acessado

    pelas partes comunicantes, interferindo tanto no modo como as mensagens

    so concebidas quanto como so decodificadas.

    A imagem que o orador projeta de si e do outro no dizer tem base,

    portanto, nesse imaginrio, o qual por sua vez - construdo por saberes.

    Tais saberes podem ter como base tanto nos conhecimentos da ordem do

    saber, que partem do mundo para a pessoa, quanto saberes da ordem da

  • 34

    crena, os quais surgem da percepo das pessoas a respeito do mundo. O

    primeiro caso se manifesta, por exemplo, na forma da cincia: vem a partir da

    identificao de fatores a priori, sujeitos ao rigor metodolgico; ao passo que no

    segundo, tem-se a religio: originria de percepes a posteriori, que no esto

    sujeitos a metodologia e atuam no mbito da f. Esses conhecimentos se

    fazem presentes a todo o momento na dimenso discursiva da vida, que

    engloba a totalidade das interaes sociais entre pessoas. Por isso, tem

    grande influncia no modo como um percebe o outro.

    Outro ponto importante para o propsito desse trabalho o de esfera

    pblica. Para caracteriz-la, nos alinhamos aqui com o pensamento de

    Charaudeau (2010, p. 118), que a descreve a partir da ideia de discurso

    circulante. Isso diz respeito, soma emprica de enunciados com visada

    definicional sobre o que so os seres, as aes, os acontecimentos, suas

    caractersticas, seus comportamentos e os julgamentos a eles ligados.. Dito de

    outro modo, o conjunto total de discursos que organizam a sociedade em um

    determinado perodo e dentro de determinada parcela do mundo social.

    No que diz respeito a construo desse espao, a mdia assume um

    importante papel, na medida em que o abastece com informaes de maneira

    quase ininterrupta. Esses elementos colocados l pela mdia ajudam a moldar

    a maneira como a sociedade percebe determinado tema, mas , ao mesmo

    tempo, largamente influenciada pelos sistemas de pensamento dessa mesma

    sociedade.

    Se, por um lado, essa atuao da mdia , muitas vezes, louvvel, em

    outros momentos deixa a desejar. Ainda que os discursos que circulam pela

    mdia sejam muitos e diversos, o prprio poder que a mquina miditica

    adquire contribui para que, no raras vezes, ela se lance em campanhas que

    visam naturalizar o status quo independente da reflexo crtica a respeito

    desse funcionamento dado. Uma das principais maneiras pela qual esse

    processo se d precisamente atravs da desqualificao do ethos. Em

    tempo, se a mdia capaz de influenciar com as devidas ressalvas o que

    estar presente na esfera pblica, capaz tambm de organizar esses

    discursos de modo a se perpetuar no poder.

    Assim, a maneira como determinada organizao, pessoa, instituio ou

    tema retratada ir ter impacto direto na maneira como os argumentos

  • 35

    apresentados, sejam contra ou a favor determinado tema, sero recebidos pela

    sociedade como um todo atuando, portanto, no mbito da retrica. Dessa

    forma, mesmo que um argumento tenha sustentao lgica (logos) o que, em

    essncia, deveria bastar para que fosse aceito , ser possvel neutraliz-lo

    pelo ataque a quem o apresenta.

    3.1 Anlise da crise miditica do Fora do Eixo e Mdia Ninja

    Diante dos 16 tipos de crise elencados por Forni (2013), a crise do Fora

    do Eixo e da Mdia Ninja se encaixa primariamente na categoria crise de

    imagem, uma vez que resulta de uma quebra do ethos organizacional. A

    natureza desse processo pode ser atribuda a duas outras categorias

    principais, as quais, justamente, sustentam os depoimentos-chave da crise:

    relaes trabalhistas ou de pessoal e tica empresarial - ambas fortemente

    presentes nos textos publicados por Bellini (2013) e Seigner (2013).

    Com relao ao grau de intensidade, se encaixa no que Forni (2013)

    considera como sendo supostamente insignificante. primeira vista, uma

    postagem publicado em um perfil pessoal no Facebook no se apresenta como

    uma grande ameaa. Entretanto, como tudo que tornado pblico na web,

    esse contedo est sujeito s dinmicas e fenmenos naturais da estrutura em

    rede.

    No presente caso, um movimento de viralizao10 fez com que os textos

    se espalhassem como fogo na palha pelas redes sociais. Quando a grande

    mdia amplificou esse contedo, estabeleceu-se uma crise de proporo

    devastadora, segundo a tipologia de Forni (2013), uma vez que esto

    presentes denncias de desmandos ticos; explorao indevida; abuso

    psicolgico; uso indevido de recurso pblico; entre outras.

    A nosso ver, a transio de situao supostamente insignificante para

    se tornar uma crise devastadora est atrelada a dois principais fatores. O

    primeiro deles a falta de aes de gerenciamento de crise j nas etapas

    iniciais do processo. A ausncia de um posicionamento rpido em relao aos

    10 Quando determinado contedo ganha, de maneira rpida, alta notoriedade dentro da rede e se replica por ela com alta velocidade.

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    ocorridos cobrou seu preo: quando de fato foram deflagradas aes de

    resposta, a situao j havia atingido nveis crticos. O segundo fator que o

    grupo adotou uma postura, de certo modo ingnua, perante a estrutura dos

    jogos de poder exercidos pela grande mdia, em especial no que diz respeito s

    iniciativas que questionam a legitimidade de sua atuao como foi o caso da

    Mdia Ninja.

    Mediante um entendimento mais aprofundado do funcionamento das

    crises miditicas e das particularidades discursivas da mquina miditica,

    argumenta-se aqui que, a partir do momento em que foi lanada a primeira

    postagem no caso, a de Seigner (2013) em 7 de agosto de 2013 era

    possvel antecipar os desdobramentos negativos da situao. Ao participar do

    programa Roda Viva, em 5 de agosto, o grupo se colocou em posio de

    destaque temporrio no espao pblico; ao mesmo tempo, fazendo uso dessa

    visibilidade, teceu crticas que se projetavam partir de um ethos que foi

    colocado em xeque, alguns dias depois, no prprio depoimento de Seigner.

    Nesse cenrio, diversos fatores latentes que foram ignorados, a exemplo

    dos critrios de noticiabilidade ali presentes; a postura conservadora de grande

    parte da imprensa, no que diz respeito aos discursos alternativos a ordem

    estabelecida; alm da prpria questo dialtica, ou seja, a resposta da mdia

    com relao s crticas direcionadas a ela.

    No propomos que, mediante uma atuao mais presente no momento

    em que se deu o incio do proces