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Nixdorf - Capítulo 5

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Conta a história de uma jornalista recém-formada que realiza o antigo sonho de mudar para a Alemanha com a família só para descobrir que o sonho tem um quê de pesadelo.

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CAPÍTULO 5

Nixdorf ou “Como é que eu vim parar aqui”? 1ª edição, Julho/2009. 2ª Edição Maio/2013

Por: Mima Pumpkin Revisão: Noemi R. Bragança

Publicado em série no site Mima Pumpkin http://mimapumpkin.com

Contato: [email protected]

Copyright © 2013 por Mima Pumpkin. Todos os direitos reservados

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Capítulo 5

E quem disse que contos de fada se realizam?

Eu não achava que era possível ficar mais frio do que

estava. Como eu era inocente. Uma manhã acordei e notei

pequenas manchas brancas na vidraça. Abri a persiana de

madeira e dei de cara com um mundo totalmente branco-

acinzentado. As árvores estavam cobertas por uma superfície

que lembrava o gelo áspero acumulado nas paredes internas

de um refrigerador. Na verdade, era disso exatamente que se

tratava.

— Nevou? — perguntei, abrindo a porta do quarto e

cambaleando até a sala, onde meus irmãos disputavam o

computador e minha mãe assistia à TV. Meu pai já tinha saído

para o serviço.

— Não. Isso é gelo, não é neve. — Lucas respondeu sem

levantar os olhos da tela, enquanto digitava numa velocidade

que, se não é, devia ser proibida por lei. Matheus andava

impacientemente de um lado para o outro, atrás da cadeira

do Lucas, aguardando sua vez.

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Era sexta-feira e faltavam catorze dias para o Natal e eu

só estava ciente desse fato porque meu aniversário de vinte e

um anos seria em exatamente sete dias. Cortei uma fatia de

pão integral para mim e sentei no sofá com as pernas

cruzadas, em frente a varanda.

— Você quer dizer que o mundo literalmente

congelou? — perguntei e mordi a fatia quente e crocante,

recém-saída da máquina de pão que meu pai havia comprado

dois dias antes. Se havia alguma coisa que eu gostava na

Alemanha era do pão. Só.

— O mundo, eu não sei. Nixdorf, com certeza.

Até onde a vista daquela varanda alcançava era meu

mundo e até onde a minha vista alcançava o branco

acinzentado era uniforme. Nixdorf é todo o meu mundo.

— Ná... — minha mãe desligou a TV e virou sorridente

para encontrar meu olhar. Seu tom era cauteloso, como fazia

quando queria pedir um favor. — Vamos a Frankensdorf

hoje? — e como já soubesse a resposta, acrescentou, — Por

favor?

— Mãe... — choraminguei. Desde o incidente com a

bruxa quase uma semana antes eu evitava ao máximo ir para

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lugares com populações pensantes. Além disso, o gelo parecia

terrivelmente... gelado. Por que não me deixavam passar o

resto da minha vida dentro do apartamento? O que havia de

tão ruim nisso? Minha mãe mudou imediatamente o tom e o

sorriso desapareceu. A tática seguinte à simpatia era a

firmeza.

— Natália Souza! — minha mãe parou com o dedo

indicador no ar, — você precisa sair de casa, menina! E, mais

importante, eu preciso fazer compras! Essa casa não tem

nada, seu pai trabalha o dia todo e não pode ir. Eu preciso da

sua ajuda.

Eu sabia que a tática seguinte seria a da negociação.

Fiquei em silêncio com uma feição ao mesmo tempo

emburrada, determinada e teimosa.

— Eu compro alguma coisa para você, se você for! —

primeira oferta lançada.

Careta emburrada e determinada.

— Eles têm chocolate... — cantou, com um sorriso

triunfante.

Cedi.

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Eu estava extremamente decepcionada.

— Os alemães vão estragar tudo que eu gosto? —

choraminguei, a barra de chocolate inteira nas mãos, com

apenas uma falta no formato de mordida no canto superior. –

As comidas aqui não têm sal, os chocolates não têm açúcar.

Onde o mundo vai parar desse jeito?

— Bem, eu gosto. — A barra nas mãos da minha mãe já

consumida até a metade. — É mais saudável assim também.

— Hm, saudável, que delícia! — zombei. Meu humor é

diretamente proporcional àquilo que ingiro. No caso, eu

estava bem amarga. Brigadeiro, coxinha, pastel... Tudo que há

de bom na vida foi deixado para trás, constatei desolada.

Eita! Meu aniversário!

— Mãe, meu aniversário!

— É em sete dias. Eu lembro ainda. — ela riu,

amassando a embalagem agora vazia do chocolate.

— Não, mãe. Meu aniversário! Sem coxinha? Sem

brigadeiro? Sem... — engasgo — ...beijinho? — meu lábio

inferior tremeu.

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Não bastasse todas as pessoas que conhecia estarem há

um oceano de distância, os amigos do meu estômago

desertaram também. A vida não era justa.

— Seremos criativas! — minha mãe assegurou,

tentando em vão consolar-me.

— O que a gente vai fazer? Plantar um pé de

brigadeiro?! — apontei para a varanda dramaticamente e, ao

ver a camada de gelo cobrindo todo o chão, concluí por

impulso — Ih, nesse frio, ele não vai brotar, não.

A piada foi ruim, mas rimos juntas até o momento em

que sentei novamente com um suspiro forçado. Poderíamos

ser criativas.

Como? Nunca vimos leite condensado para vender, mas

a gente não entenderia o rótulo mesmo que víssemos. Mesmo

os formatos e tipos de embalagens dos produtos eram

diferentes. Passávamos horas em cada corredor do mercado,

analisando as figuras, tentando adivinhar para que serviam.

Um dia, minha mãe resolveu comprar uma escova de cabelo,

porque uma das nossas tinha sumido. Foi só semanas depois

da compra que descobrimos que a palavra Tier no rótulo

significava animal e que, portanto, aquelas cerdas macias

haviam sido destinadas ao pelo de cães e gatos.

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O sábado passou sem ideias novas para a festa e,

quando, finalmente, o domingo chegou, já não aguentava

mais ser criativa e precisava sair de casa, fazer alguma coisa,

esquecer que logo minha idade indicaria que eu era, sem

sombra de dúvidas, 100% adulta.

Obviamente, uma piada de mau gosto.

Mas, o que fazer num domingo de inverno na

Alemanha? Mercado... fechado. Shopping... fechado.

Restaurantes... fechados. Dentista... definitivamente fechado.

Levantei os olhos para os céus, quando me veio uma

luz. Corri para o notebook e abri o histórico de conversas do

Messenger.

Ei, Frankensdorf tem uma igreja brasileira. A gente se

reúne todo domingo, 18:30, se quiser ir.

Meus pais iam adorar ir para a igreja! E eu ia adorar

encontrar brasileiros! Faltavam três horas para a reunião,

muito mais que o necessário para ficarmos todos prontos e

irmos. Eu levantei e dancei enquanto anunciava para os meus

pais o plano. Eles concordaram. É claro que concordaram!

Corri para o meu quarto, mal contendo o entusiasmo.

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Português! Vou ouvir português! Obrigada, Deus! Obrigada,

obrigada, obrigada! Agora se o Senhor mandar só um

pouquinho de chocolate brasileiro no meu caminho, ficaria

muito agradecida. Não que eu não esteja agradecida agora, é

que eu ficaria agradecida meeesmo, sabe?

Três horas e meia depois estávamos meia hora

atrasados diante da porta da pequena igreja.

Era um edifício branco, térreo, cuja única indicação de

que se tratava de um local religioso era uma placa escrita

Evangelisch-methodistische Kirche. Não havia qualquer sinal

de se tratar de uma igreja brasileira, mas o endereço estava

correto. Abrimos a pesada porta de vidro fosco e entramos

no ambiente confortavelmente aquecido. Era, sem dúvida,

uma igreja brasileira e eu soube disso imediatamente porque

entendi a letra da música que estavam cantando.

Compreender era uma sensação tão linda, que senti vontade

de chorar. Mas, não curti por muito tempo a minha

realização, porque logo fui invadida por outros sentimentos.

Leia esse momento em câmera lenta, por favor:

Cerca de 12 metros distante de mim, dedilhando

lentamente as cordas de um violão, olhos fechados em

profunda reverência e cantando aquela letra que me

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provocou tamanha emoção, estava, de longe – e perdoem-me

a incontida jovialidade feminina na seguinte descrição – o

cara mais gato que eu já vi na minha vida.

Daniel! Minha mente gritou antes que eu pudesse

lembrar que o rapaz que havia me convidado não podia ter

mais que quinze anos.

Você não é tão sortuda, Natty. O rapaz tocando violão

devia ter uns 25 anos, decidi. Ele era bem alto, moreno, a

sombra de uma barba crescente acrescentava alguns anos à

sua idade talvez e, quando ele finalmente abriu os olhos,

pude ver que eram verdes... ou azuis... ou verdes. E ele era

lindo de morrer.

Fomos convidados a nos sentar na segunda fileira, logo

atrás do lugar onde o grupo de música se sentaria. Eu tentei

desgrudar os olhos do músico só a tempo de tentar procurar

pelo menino Daniel. Queria agradecer pelo convite e mostrar

que não foi em vão. Não conseguia ver nenhum pubescente

com cara de orkuteiro por perto, mas talvez ele fosse tão

baixinho que não desse para ver entre as cabeças dos

frequentadores.

Cada integrante do grupo de música largou seu

respectivo instrumento e foi para seu respectivo assento.

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Agora eu estava a uns trinta, quarenta centímetros de

distância do violonista. Antes de sentar-se, ele virou para a

nossa fileira e cumprimentou primeiramente a meus pais e

depois a mim, cada um com um aperto de mão. Eu sentia

minha pulsação nos ouvidos e agradecia silenciosamente a

Deus que eu tinha decidido vir bem vestida e maquiada

naquela dia. Não era só que ele era lindo, era que ele era

liiindo. E charmoso. E bem vestido. E tocava violão! E a voz

dele cantando... Deus, tenho que admitir que o Senhor fez um

bom trabalho. As Patrícias iam pirar.

A triste realidade é que as Patrícias pirarem era todo o

benefício que eu sabia que obteria desse encontro. Eu jamais

teria coragem de tentar inventar uma desculpa para puxar

assunto com um cara desses e, portanto, provavelmente

nunca conversaríamos. E mesmo que, digamos, num universo

paralelo, tivéssemos uma desculpa para conversarmos um

com o outro, eu gaguejaria como uma boba de qualquer jeito!

Nossa linda história de amor terminara ali. Que final triste

para nós dois, querido violonista misterioso. Era triste porque

eu sabia que, a partir daquele momento, sempre que criasse

ilusões a respeito do homem da minha vida, esse era o rosto

que ele teria. Era assim que ele andaria. Cantaria. Tocaria.

Cumprimentaria. Era esse porte, era esse olhar, era essa

seriedade e educação.

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O pastor já estava falando no microfone e eu tentei

prestar atenção. Ele anunciava os horários das reuniões

durante a semana e explicava que o prédio pertencia na

verdade à uma igreja alemã. A igreja brasileira o alugava

durante alguns dias específicos.

— Gostaria de orar agora pelas pessoas que vão viajar

para o Brasil semana que vem, para que tudo vá bem na

viagem e cheguem sãos e salvos. Quero chamar o Daniel, que

vai nessa sexta-feira. Alguém mais?

Conseguindo respirar um pouco melhor, olhei para trás

para procurar o adolescente que tão gentilmente me

convidara a estar lá. Isso resolveria o problema do

reconhecimento. Mas, infelizmente, ninguém se levantou. Ele

deve ter ido ao banheiro ou algo assim, pensei e olhei para a

frente, encucada.

Naquele exato instante, todos os meus resmungos,

lamentos, choramingos, reclamações, conclusões a respeito

do que era injusto, toda a falta de sorte que me acompanhou

durante uma vida, toda a ingratidão e incerteza, as

inseguranças, as dúvidas em relação a Alemanha, todo o

pessimismo e rebeldia do Universo se calaram

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conjuntamente num grande e sonoro estampido no meu

coração.

Porque debaixo das mãos estendidas do pastor que

suplicava pela vida do Daniel estava o violonista dos meus

sonhos.