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No Caminho dos Encantantes

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Livro que trata sobre as manifestações da cutura tradicional e popular brasileira e suas influências junto a jovens da classe média urbana na cidade de Londrina, interior do Paraná.

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“(...)que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças

nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo

encantamento que a coisa produza em nós”Manoel de Barros

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© Kennedy Ferreira Piau

© Eduel, 2012

Coordenação Editorial FULANO DE TAL

Conselho editorial FULANO DE TAL, SicrANO E BELTrANO

Revisão FULANO DE TAL

Projeto Gráfico e capa chicO MAciEL

Fotos Equipe do projeto e acervos pessoais

EDUEL

Rua Tal, xxx

CEP xxxxx-xxx Londrina PR

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Bolsa Funarte de Produção Crítica sobre as Interfaces dos Conteúdos Artísticos e Culturas Populares - 2009. Com o apoio do Programa AlBan - Programa de Bolsas de Alto nível da União Europeia para América Latina. Bolsa nº E07D400595BR – 2007/2010.

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PATrocÍNio APoio

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Eles viajaram. E se encantaram. 25.000 quilômetros de puro mergulho no Brasil, uma coluna Prestes, como a realizada pelo lendário Cavaleiro da Esperança, junto com centenas de combatentes, que não per-deram uma só batalha e abalaram os alicerces da opressão, fincando raízes no imaginário do povo. Agora uma Caravana que faz da arte e da sensibili-dade a sua arma. Anos de sonhos, meses de estrada, dias de magia. O desejo de um professor universitário que quis ir além. Estudou arte, estética, con-ceitos, teorias... deu aulas, estudou, deu aulas novamente, estudou... foi para fora do país e, a distância, olhou sua terra com mais proximidade. Voltou. Queria ir além. Foi para dentro. Depois de muito sonhar e economizar (mer-gulhar para dentro tem custo), junto com Bruna, sua companheira de jorna-da, e outros bons amigos, jogaram-se em nosso Brasilzão. Este é um livro que fala de povo e de suas habilidades, seus sentidos e sentimentos. Um povo que não faz separação entre trabalho e arte, razão e magia. Está tudo em-bolado. Neste livro está expresso um pouco deste sentimento de povo, des-ta fala que sai do fundo de nossa alma e diz para nós mesmos o que vem a ser povo. Um povo para além de estereótipos e folclorizações. Um povo que se mira no espelho e se reconhece como tal. Li este livro em uma taca-da só e, de imediato, coloquei-me a escrever, isso para ser fiel à própria nar-rativa de Piau, uma narrativa ágil e honesta, que coloca o leitor no turbilhão

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de suas necessidades e desejos, assim como suas reflexões filosóficas e des-cobertas reais. Descobertas de vidas vividas, vidas que vão além das subor-dinações dos sistemas, que se recusam a ser coisa e assim se fazem vivas. A cada página lida vamos descobrindo as aflições do autor, suas inquietações teóricas, trajetória de vida, compromissos políticos e, para além da política tal qual se pratica institucionalmente, compromissos de humanidade. E assim somos apresentados a pessoas extraordinárias, como em outro livro de Eric Hobsbawm, historiador que tanto nos inspira, desde quando desnuda a “in-venção das tradições” até quando retrata a “vida de pessoas cujos nomes são usualmente desconhecidos de todos”, mas que são as pessoas que realizam, pensam e fazem a diferença. Diferença que se sente diretamente em suas co-munidades, mas que vão além, como pequenas pedras jogadas em um lago. Foi em busca destas pedras que geram ondas que eles viajaram. E agora po-demos ver neste livro um pequeno apanhado desses Pontos que se espalham por todo o Brasil. Pontos de Cultura, Pontos de Potência de um povo que se desesconde.

Célio Turino é historiador, escritor e gestor de políticas públicas. Autor, entre outros livros, de Na Trilha de Macunaíma - ócio e trabalho na cidade (Ed. SENAC-2005) e de Ponto de Cultura - o Brasil de baixo para cima (Ed. Anita Garibaldi-2009).

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Uma viagem.Uma viagem que nos possibilitasse viajar.

Redundante?

Não necessariamente, nem toda viagem nos permite viajar e nem todo viajar se faz numa viagem. Mas... é tão bom viajar numa viagem.

É o que nos propusemos fazer e fi zemos: viajar, prosear, tocar, pensar, dan-çar, ruminar o pensamento, fotografar, chorar, cantar, fazer vídeos, aprender, suspirar, escrever, comer coisas gostosas, beber pinga das boas, abraçar, levar a sério, ensinar, trocar de lugar, dirigir e digerir, rir, poemar... Enfi m, pesqui-sar encantando-se nos caminhos dos encantantes.

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Quem somos?

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Tateio, tá? ... Um projeto coletivo em um percurso previsto para ser de 14.000 quilômetros que se transformaram em mais de 25.000. Prosas, cantorias e dancerias. Diários de viagem. Viagens diárias. Uma vivência in-vestigativa sobre manifestações artísticas de tradição oral. Bruna, Camila, Fiorela, Lucas, Maíra, Piau [...]. Seis curiosos - e um pouco atrevidos - sensi-bilizados pela arte tradicional. Doutorado, mestrados, investigações avulsas. Beijos e abraços virtuais nos amigos que lá(s) deixamos. Vontade de escambo. O desígnio do desejo que gerou um projeto de pesquisa que cresceu, cresceu, cresceu, virou borboleta, voou, pousou fecunda gerando outros casulos e ou-tros causos. Uma abordagem a bordo de um Doblò. A saudade dos amigos que não pudemos levar. Um trajeto: Norte do Paraná, São Paulo (sul, norte e capi-tal), Brasília, Chapada dos Veadeiros, GO, Tocantins, de sul a norte e de nor-te a sul, sul do Maranhão (Carolina), semiárido nordestino, Recife, Olinda, Belém, Lençóis Maranhenses... Ilhas: Itamaracá, Marajó, São Luiz. Oito me-ses. Fotos, vídeos, um blog, poemas, crônicas... Artigos acadêmicos sobre pro-dução, circulação e uso das artes de tradição oral. Possibilidades de diálogos: Muitas, infinitas e enfeitadas de fitas.

Vontades - mais que obrigação - de agradecer! À Funarte, ao Programa AlBan da Comunidade Europeia, à UEL, à UAB, às meninas Flavia Mielnik, pelos de-senhos, e Adriana Lopes Vieira pela primeira revisão, ao povo simples do nos-so país - com sua alegria e generosidade - aos novos e velhos amigos, dos no-vos e antigos caminhos, às famílias, aos mestres (com carinho especial), guar-diões e difusores de um saber hoje tão necessário e, claro, aos Encantados que tanto nos encantaram. Eles existem.

É, foi vida na veia.

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A forma-conteúdo deste livro foi se estruturando a partir de um projeto maior, cha-mado Tateio, tá? No Caminho dos Encantantes. Com a Bolsa Funarte de Produção Crítica sobre as Interfaces dos Conteúdos Artísticos e Culturas Populares, con-seguimos resgatar ideias que tínhamos antes mesmo da viagem: analisar como e por que jovens da clas-se média urbana de Londrina utilizam elementos das artes tradicionais nordestinas em seus processos de produção artística e estudar as percepções de mestres da cultura popular do Maranhão e de Pernambuco sobre o uso de sua cultura na criação artística de ar-tistas de outras regiões e classes sociais. A Bolsa da Funarte forneceu as condições materiais para com-plementar as entrevistas, apurar os sentidos, perce-ber as contaminações estéticas de/pela cultura tradi-cional, articular as ideias, desenvolver raciocínios e tentar expressá-los melhor.

Nos últimos 16 anos tenho dividido minha vida pro-fissional entre o mundo acadêmico – como pro-

fessor do Departamento de Arte Visual da UEL (Universidade Estadual de Londrina) – e o traba-lho como gestor em órgãos públicos de Cultura, primeiro na Secretaria de Cultura de Londrina e depois na Casa da Cultura da Universidade. Neste período também fui membro do Conselho Municipal de Cultura, compondo, por indicação deste conselho – e por vários anos – comissões de seleção de projetos culturais a serem implantados na cidade. A dupla experiência profissional colo-cou-me diante de um fenômeno cultural que me intrigava: o envolvimento crescente de jovens da classe média urbana com a arte tradicional. Com o tempo passei de intrigado a instigado. Refletir com um pouco mais de profundidade sobre tal fe-nômeno passou a me estimular. Na condição de membro das comissões de avaliação de projetos ouvi várias críticas em relação à aprovação de pro-jetos apresentados por esses jovens. As críticas vi-nham no sentido de questionar o uso de recursos públicos com propostas, por exemplo, de organi-

Pré-fácil

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zação de um grupo de bumba meu boi ou de ma-racatu. Causava-me estranheza a falta de funda-mentação dos argumentos. Geralmente alegavam que estas manifestações não faziam parte da tra-dição cultural da cidade, que eram ações ingênuas, românticas e descontextualizadas. Enfatizavam que as manifestações da cultura nordestina não se encaixavam bem numa cidade do sul do país, e mais, que estavam (ou estávamos) impondo arbi-trariamente uma cultura alienígena à população de Londrina. Diante destas afirmações, pergunta-va-me sobre o sentido da expressão “tradição cul-tural”, numa cidade de pouco mais de 60 anos, cuja formação incluía dezenas de etnias, vindas de vá-rias partes do Brasil e do mundo. De uma maneira ainda pouco sistematizada (ainda não havia para mim Hobsbawm e “a sua mais completa tradução”) me indagava sobre o processo de formação das tra-dições, como se consolidam e ou desaparecem. Ainda há espaços no mundo atual para determi-nados graus de ingenuidade e romantismo? O que pensam tais críticos quando se referem ao pensa-mento e a uma postura de vida “romântica”? Num mundo globalizado, o que significa estar dentro ou fora do contexto? O movimento hip-hop, que mo-bilizava centenas de jovens da periferia da cidade, era afinado com a “tradição cultural” de uma cida-de de sul do país? Por que um movimento cultu-ral de matriz afro-norte-americana, difundido e impactado fortemente pela indústria cultural, era menos questionado como “alienígena” do que al-gumas manifestações oriundas do Nordeste do Brasil? Que concepções de arte, cultura e política

Eric Hobsbawm, historiador inglês e

organizador de A invenção das tradições.

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cultural norteavam tais argumentos? Quais pos-síveis desejos e interesses inconfessos impulsio-navam este tipo de crítica? Estas questões se tor-navam ainda mais instigantes em decorrência do meu trabalho como professor de estética e história da arte, que ministrava uma disciplina de História da Arte Contemporânea cujo conteúdo, entre ou-tros, abordava os conceitos de modernidade, pós--modernidade, diversidade e globalização.

O exercício de teorização, a prática administrati-va, o trabalho no Conselho e nas comissões de ava-liação de projetos exerceram um forte impacto na minha vida profissional, inclusive induzindo-me a fazer um mestrado focando as relações entre arte, sociedade e Estado. No entanto, as tarefas que as-sumi não ofereceram as condições para aprofun-dar e sistematizar tais questionamentos, naquele momento. O foco nos processos de apropriação, reinterpretação de elementos da arte tradicional não estava ainda em primeiro plano para mim. A produção artística a partir da apropriação reinter-pretada dos elementos da arte tradicional por par-te de segmentos sociais não pertencentes às co-munidades tradicionais não havia se consolidado como um objeto prioritário de estudo. Isso ocorre-ria um pouco depois.

Ao término do mestrado, centrado no estudo de políticas públicas para as artes no âmbito de admi-nistrações progressistas, retornei ao meu trabalho docente em sala de aula, ao Conselho de Cultura e à militância cultural em Londrina. No início de 2000, pude observar que o impulso inicial dos jo-

vens fascinados pela cultura tradicional se am-pliava, agregando mais pessoas, diversificando-se. Estava em vias de se consolidar como parte efeti-va e importante da cena artística da cidade. E meu envolvimento neste processo foi intenso.

O presente estudo decorre, portanto, das preo-cupações relacionadas ao trabalho de professor do Departamento de Arte Visual da Universidade Estadual de Londrina - UEL, aliadas às preocu-pações teórico/práticas vivenciadas no exercí-cio da função de Diretor da Casa de Cultura da Universidade, de Assessor da Secretaria Municipal de Cultura de Londrina, de membro do Conselho Municipal da Cultura de Londrina e de delegado da Primeira Conferência Nacional de Cultura. Suas  origens podem ser encontradas nos estudos desen-volvidos no mestrado e também nas reflexões sur-gidas em uma disciplina de Ecologia Humana ofe-recida pelo INPA – Instituto Nacional de Pesquisa Amazônica – em 2003. O contato com as culturas tradicionais amazônicas provocou muita inquie-tação e levou-me a uma dedicação mais atenta às manifestações artísticas de tradição oral. Cada passo vivenciado e reflexivo rumo ao universo das artes tradicionais foi – e é – um desvelar dos arbí-trios que envolvem o campo restrito da arte cha-mada erudita. Tem sido também uma forma de re-encontro com o encantamento das Folias de Reis, Congadas, Catiras e Causos que impregnaram meu imaginário no interior de Minas Gerais, onde nas-ci e cresci. Desde 2003, minha produção como ar-tista, teórico e gestor público tem buscado uma ar-ticulação entre o campo restrito da arte (erudita),

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as manifestações artísticas de tradição oral, a in-dústria cultural e as políticas públicas de cultura.

A partir de tais interesses e direcionamentos me propus a montar uma equipe de trabalho forma-da por jovens talentosos, interessados e despoja-dos, amigos/profissionais para uma expedição, ou melhor, um mochilão acadêmico pelas entranhas do Brasil. A proposta de realização do presente estu-do, assim, se insere em um contexto mais amplo de investigação, voltado ao estudo das políticas públi-cas para as artes. Penso que o desenvolvimento de políticas públicas para as artes tradicionais e para os grupos sociais urbanos que dialogam com tais tradições passa pelo entendimento das especifici-dades artísticas destes dois grupos e de suas atuais relações, como também pela compreensão do im-pacto destas relações no desenvolvimento de seus processos e produtos artísticos.

De um modo geral, a ideia foi fazer uma aborda-gem das relações entre os processos de produ-ção artística e o consumo/fruição de manifesta-ções artísticas de tradição oral em grupos urba-nos que não pertencem às comunidades tradicio-nais. Buscou-se analisar a influência de Pontos de Cultura na produção artística de mestres da arte tradicional e como estes mestres se relacionam com jovens artistas de classe media urbana do sul Brasil. Para isso, analisa-se o processo de traba-lho de quatro mestres diretamente vinculados a Pontos de Cultura do nordeste e de quatro grupos de jovens artistas da cidade de Londrina (vincula-dos ao Promic), que recebem a influência dos tra-

balhos destes mestres. Nesta perspectiva, são tra-balhados os seguintes temas: concepções sobre o papel do Estado, processos de legitimação, ideias de autenticidade, parâmetros de qualidade, rela-ção entre fé e prazer (sagrado e profano), relação dos mestres com outros campos (jovens artistas de classe média urbana). A abordagem destes te-mas se dá a partir das perspectivas dos mestres e dos jovens artistas. Assim espero contribuir teo-ricamente com a elaboração de políticas públicas de cultura para as manifestações artísticas de tra-dição oral e para os grupos urbanos que dialogam com esta tradição.

Como professor e pesquisador (sei que dizer pro-fessor e pesquisador é redundante), penso que é importante buscar atingir os objetivos expostos. No mestrado dediquei-me ao estudo das políticas públicas e o sistema das artes, analisando os limi-tes e as possibilidades de uma ação institucional orientada para o desenvolvimento da arte como crítica da cultura. Abordei as dificuldades de reali-zação de uma ação administrativa que funcionasse como elemento perturbador ou problematizador do sistema das artes (FERREIRA, 2005).

Posteriormente, as várias atividades que desenvol-vi como professor e gestor cultural indicaram que as manifestações artísticas de tradição oral podem contribuir como elemento perturbador ou proble-matizador do sistema das artes. Mas não só isso, também podem contribuir para a construção (e/ou manutenção) de outra lógica sociocultural que não necessita ser balizada pela lógica de estruturação e

O que chamo de sistema se parece muito à

definição de Bourdieu para o campo restrito da arte ou campo da

arte erudita. Entendo o sistema das artes como

“conjunto de indivíduos e instituições responsáveis

pela produção, difusão e consumo de objetos e

eventos por eles mesmos rotulados como artísticos

e responsáveis também pela definição dos padrões

e limites da ‘arte’ de toda uma sociedade, ao longo de um período histórico”

(GARCIA, 1991, p. 29).

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funcionamento dos sistemas das artes atuais.

O foco nas relações entre arte erudita, indústria cultural e manifestações artísticas de tradição oral apoia-se também em algumas tendências mais atuais do ensino da arte que trabalham com enfo-ques multiculturais, ampliando o olhar sobre o fe-nômeno artístico para além daquilo que tradicio-nalmente denominamos como arte (RICHITER, 1999).

Em relação à delimitação do objeto de estudo, en-tendo, a priori, que a complexidade da relação en-tre os campos da arte e a sociedade pode ser ana-lisada sob vários aspectos. O interesse desta pro-posta, porém, é investigar as relações e entender as interações que ocorrem entre campos distin-tos das artes. Pois, como afirma Canclini, “o objeto de estudo da estética e da história da arte (e tam-bém da crítica de arte) não pode ser a obra em si, mas o processo de circulação social em que os seus significados se constituem e variam” (CANCLINI, 1979). Neste sentido, este trabalho centra foco nas relações, em uma análise sistêmica. É um estudo interdisciplinar com fortes vínculos com a socio-logia e a antropologia da arte. Procura investigar o processo artístico, entendido como interações entre artista-obra-intermediário-público, em cam-pos distintos, mas relacionados.

A aproximação das artes tradicionais por artistas de outros campos não configura nenhuma novida-de. Artistas como Picasso, Villa-Lobos, Guimarães Rosa, passando por Goguin, Stravinsky, Hélio

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Oiticica, Jorge Amado dialogaram com a cultura popular. O modernismo brasileiro identificou-se com a questão nacional, ressignificando a cultura popular na busca da construção de uma identida-de brasileira. No mesmo modernismo ganha vul-to a ideia de antropofagia cultural. Na década de 1960, a tropicália coloca alguns temperos e reme-xe o caldo cultural. Mais recentemente, na década de 1990, o movimento manguebit, como uma nova grande onda, impulsiona este diálogo. Talvez a no-vidade agora seja a forma como esse diálogo está acontecendo, atingindo amplos setores de jovens da classe média urbana. Hipoteticamente, a forma e o conteúdo do atual diálogo passam pela necessi-dade pessoal e coletiva de garantir uma identidade num mundo globalizado, pela apropriação massiva das novas tecnologias digitais – que barateiam os custos de produção e difusão cultural – e pelo de-sejo de um prazer mais espontâneo. E esse fenô-meno parece não ser localizado, manifesta-se em várias cidades onde esse segmento jovem apren-de a tocar rabeca, choro, samba de roda e fandan-go ou cantam e dançam carimbó. Mesmo fora do Brasil, como em Barcelona, por exemplo, é visível o fascínio de jovens brasileiras e brasileiros e de ou-tras nacionalidades não só pela capoeira, mas tam-bém pelo samba, pelos ritmos baianos, pelo mara-catu, pelo candombe uruguaio, pelos ritmos africa-nos e outras manifestações culturais oriundas das comunidades tradicionais.

Este trabalho foi desenvolvido por meio de pes-quisa bibliográfica de caráter interdisciplinar, tra-balho de campo, produção de registros fotográ-

Há uma controvérsia em relação ao nome

do movimento. Alguns afirmam que é beach de praia, outros que é uma

referência ao movimento beatnik americano (ou simplesmente

beat) e outros que está relacionado ao bit, termo

usado no campo da informática. As evidências

maiores são as que se referem a bit – abreviação

para dígito binário, “BInary digiT”, termo

usado na Computação e na Teoria da Informação. Uma junção da realidade

cru do mangue com a tecnologia digital.

ficos e videográficos, análise de dados e redação. As fontes documentais foram jornais, sites e ou-tros materiais disponíveis nos arquivos dos gru-pos. Na pesquisa de campo foram adotadas meto-dologias de pesquisa qualitativa, por meio de ob-servação participante e entrevistas semiestrutura-das gravados em vídeo, concedidas pelos artistas escolhidos e mestres com relevância em manifes-tações artísticas de tradição oral em Pernambuco e Maranhão. Nesse sentido, busca compreender o processo de produção da perspectiva do artista, mas também procura suas referências, tenta se-guir passos, dá voz aos mestres da cultura popular que os influenciam. Busca, ao mesmo tempo, tor-nar audível e visível este diálogo, para compreen-dê-lo criticamente.

Entendo que, para uma melhor análise das rela-ções entre diferentes campos artísticos e as mani-festações artísticas de tradição oral, é importante estudá-las a partir da observação do contexto em que se manifestam. Esta estratégia permite perce-ber a intrincada rede de significações que correla-cionam tais manifestações e a organização social das comunidades a que pertencem. Nesse sentido é que definimos na pesquisa de campo vistas a São Luis do Maranhão e Pernambuco.

A escolha de jovens artistas de Londrina foi orien-tada por vários motivos. A cidade tem pouco mais de 70 anos, mais de 500.000 habitantes e se inse-re em um processo histórico de formação muito particular, devido às especificidades do processo de colonização, aos fluxos migratórios e ao rápi-

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do crescimento. Apontada como umas das quatro maiores cidades do sul do país, a cidade é consi-derada um polo cultural efervescente, com mar-cante acento na diversidade cultural. Possui várias instituições culturais, públicas e privadas, e rea-liza anualmente eventos artísticos, reconhecidos nacional e internacionalmente. Suas universida-des e faculdades mantêm diversos cursos nas áre-as das artes, aglutinando estudantes de diferentes estados brasileiros. Anualmente promove a feira nordestina, grande festa popular que é uma refe-rência para quem aprecia a cultura popular e prin-cipalmente para os milhares de nordestinos que vivem no município e região. Já há alguns anos o município mantém uma política cultural de gran-de expressão, sendo inclusive indicado como refe-rência para outras cidades.

O processo histórico de colonização, que mesclou no mesmo espaço/tempo etnias tão distintas, foi capaz de gerar uma base “oswaldiana” na qual co-mer o outro é um tipo de desejo latente e muitas vezes uma necessidade. Para várias pessoas envol-vidas com a ação cultural na cidade, a identidade londrinense é a diversidade, uma mestiçagem cul-tural na qual o gosto por nutrir-se daquilo que ain-da não é seu é relevante. Existe, para muitos o de-sejo e um impulso de construir uma representação da cidade como lugar no qual a mestiçagem é um valor a ser preservado e ressaltado. O desejo im-pulsivo de apropriação cultural voluntária e praze-rosa da cultura dos outros se expressa atualmente em várias propostas de ação cultural desenvolvi-das na cidade, dentre elas várias referenciadas na

FILO - Festival Internacional de Teatro de Londrina, Festival de Música, Semana de Arte, Festival Demo Sul, Mostra Londrina de Cinema, Londrix, entre outros.

O Promic - Programa Municipal de Incentivo à Cultura - é um reconhecido exemplo de política cultural desenvolvido na cidade de Londrina. Em 2003 o Programa foi considerado modelo mundial pelo Observatório Cultural de Montevidéu, parceiro da UNESCO.

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arte tradicional, inclusive nordestina. O maracatu no distrito de Lerroville, as Vilas Culturais Alma Brasil e Vila Brasil, os projetos Baques e Batuques, Viola de Coité, Chá de Chocalho, Quizomba, o Boi de Mamulengo e o Grupo L.A.T.A. são exemplos de ações que expressam o fenômeno de revaloriza-ção da arte e da cultura tradicional, mobilizando um grande e crescente número de pessoas.

Devido às especificidades de Londrina, trabalha-mos com quatro grupos de artistas que residem há algum tempo na cidade e que usam elementos da cultura popular em seus trabalhos artísticos. São eles:

1) Vila Cultural ALMA BRASIL: realiza traba-lhos de comunicação comunitária e memória dos moradores do bairro e atividades de ação cultu-ral, com uma biblioteca viva e atividades de vídeo. Mantém um núcleo fixo de cultura popular, orga-niza o Bloco da Burrinha, com foco no carnaval tradicional, organiza vários cursos e oficinas rela-cionadas às artes tradicionais, como jongo, coco, cacuriá, bumba meu boi, ciranda entre outros. Parte de seus membros participa de espetáculos com marcadas referências no teatro, na música e na dança popular.

2) Vila Cultural VILA BRASIL: além de desen-volver várias atividades relacionadas à capoeira Angola, mantém um grupo de teatro, um sarau mensal e atualmente desenvolve o projeto Boi da União, com um vínculo direto com o bumba meu boi do Maranhão.

O projeto Vilas Culturais é uma iniciativa da

Secretaria de Cultura de Londrina e consiste em disponibilizar recursos

públicos para que grupos de artistas e produtores

culturais desenvolvam um plano de ação cultural.

É como um pequeno centro cultural que recebe

dinheiro do município, mas é gerenciado por

segmentos da sociedade civil. Os recursos são

destinados ao pagamento de aluguel, à reforma e adequação dos imóveis

e ao financiamento de um conjunto de

atividades culturais previamente aprovadas.

Os proponentes se comprometem a

desenvolver um trabalho com a população do

entorno. Todas as vilas são selecionadas a partir

de edital público.

3) Grupo LATA: formado a partir de um projeto de extensão do Departamento de Arte da UEL, este grupo de percussão com mais de 40 membros, dedica-se ao estudo e à difusão de ritmos tradi-cionais brasileiros como baião, coco e macule-lê. Atualmente vem se dedicando ao maracatu de Baque Virado.

4) Oficina ARUBATÁ: é uma oficina onde também se ministram cursos de construção de instrumen-tos tradicionais como alfaias, pandeiros, caixas de guerra, zabumbas, caixas de cacuriá e pandeirões. Seu coordenador é uma referência do movimen-to de valorização e difusão das artes tradicionais do nordeste em Londrina. Foi fundador do grupo Retalhos de Cultura Popular, participou do proje-to Baques e Batuques e participa de espetáculos montados a partir de elementos da cultura popu-lar. Sua oficina virou um espaço de aglutinação para jovens interessados nas artes tradicionais.

Tais grupos são bem representativos deste cam-po na cena artística Londrinense, estão envol-vidos neste processo há quase dez anos, traba-lham coletivamente, buscam vínculos mais in-tensos com a cultura tradicional e possuem um reconhecimento público em relação ao trabalho que realizam. Todos têm projetos aprovados pelo Promic. Os grupos escolhidos se referenciam for-temente em algumas manifestações emblemáti-cas do Maranhão (bumba meu boi e cacuriá) e de Pernambuco (maracatu, coco e ciranda). Tais refe-rências justificam a escolha de mestres da cultura popular destes dois estados.

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" ... incita a um abandono do individualismo, quando pede proteção mágica contra um mundo que, ao contrário do que assegura o credo burguês, não é nem linear, nem racional [...] porque as festas negam o poder do mercado, do dinheiro, e da racionalidade capitalista que constrói os preços e o mundo."

Da Matta

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...Pois as experiências que pudemos vivenciar estes meses, acompanhando um cortejo de Folia de Reis, em Carolina, partici-pando da Festa da Batata com os Krahô, na sam-bada do Coco de Umbigada em Olinda ou acompa-nhando o Bumba meu Boi do Maracanã na véspera de São João, em São Luis, confirmam esta citação de Da Matta.

O que vivenciamos ali era algo que ia muito, mui-to além da lógica comercial a que estamos acostu-mados. Além desta relação com o encantado, o que observamos é que os valores de troca, da solidarie-dade, do respeito à natureza e aos ancestrais são, definitivamente, os valores predominantes.

Criar e fortalecer políticas públicas de produção, valorização e de conservação da cultura tradicional do nosso país significa, portanto, fortalecer tam-bém os valores que essas manifestações carregam e que são antagônicos à lógica do individualismo, do consumo e da depredação ecológica, predomi-nantes na lógica racional capitalista hegemônica. Célio Turino, Secretário de Cidadania Cultural do Minc, respondeu a Piau, quando este per-guntou qual teria sido sua maior alegria com re-lação à implantação dos pontos: “[...] então essa abertura eu acho que foi... entender, as-

sim, que tem outras formas de sensibilida-de, inteligência, não só puramente racionais...”. E é isso mesmo. As mudanças vão aconte-cendo, aos poucos, mas vão acontecendo. Quebrando paradigmas, preconceitos... Quando uma mãe evangélica, da comunidade ao redor do ponto, para de ter medo do “batuque” e deixa “até” a filha ir participar das atividades, há uma trans-formação. E quando um rapaz da classe média pau-listana, acostumado a raves e discotecas, vai batu-car um coco ao lado do mais velho ogãm de Olinda, também. Ou um diplomata do Itamaraty batendo matracas madrugada adentro junto a senhores do bumba meu boi, compartilhando com eles um vi-nho São Tomás... E também quando um professor universitário, um pesquisador, cheio de títulos vai num terreiro e quase morre de susto quando sen-te que tá “incorporando”! E quando, literalmente, nos despimos “pra banhá” no rio com os “kraré”, as crianças krahô...

Pequenos, pequenininhos exemplos que pudemos ver e viver, mas que com certeza estão se multipli-cando por aí, gerando um fluxo contínuo de trans-formações, um ciclo sem fim, intercâmbio de valo-res e ideias onde a abertura para este que é “outro” e que também somos nós, nos engrandece, emo-ciona, modifica...

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Este texto busca analisar as razões e explicitar parâmetros para o apoio público de manifestações artísticas da tradição oral no Brasil. Alguns leitores poderão se incomodar pela opção de manter alguns textos, digamos, mais áridos. Poderão questioná-lo, alegando ser desencan-tador adotar um viés sociológico na abordagem da temática política em um livro que se propõe ir ao encontro do encantamento. Concordamos, em par-te. É importante pensar e ruminar o pensamento sobre o tema, na medida em que nos propusemos também ajudar a construir políticas públicas para as culturas tradicionais, adequadas ao contexto brasileiro. As relações de po-der, as leis, a formação de valores e a economia vinculadas às decisões do Estado têm impacto nas formas de produzir arte nas comunidades tradicio-nais. Precisamos entendê-las. É difícil falar de apoio público às artes tradi-cionais sem ter claro que modelo de Estado – e sua respectiva política cultu-ral – viabiliza tal apoio. Por isso optamos por pensar tais assuntos desta for-ma. Sempre na perspectiva de contribuir de uma maneira efetiva para uma boa política cultural. Ficaremos encantados se vocês continuarem a ler tam-bém os raciocínios desencantantes. Com o texto, esperamos que mesmo em face do maior desencanto dele se encante mais seu pensamento.

Portanto, mãos à obra! Discutamos as possíveis relações entre os campos eru-ditos das artes (que passaremos a chamar somente de campo da arte), a arte de tradição oral e o Estado. Considerando a posição ideológica dos autores e que nos últimos anos o Brasil foi administrado por um governo reconhe-

arteS tradicionaiS...vale a pena?

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cido como de esquerda, nossa análise quase sem-pre terá os paradigmas da esquerda como referên-cia. Esquerda aqui se refere ao conceito desenvol-vido por Norberto Bobbio (2001), quando diz que, em política, a ideia de esquerda está ligada à ideia de direita, ainda que seja uma ligação de contra-posição. Elas, direita e esquerda, são polos opos-tos. Para o autor, tanto a extrema esquerda como a extrema direita recusam liberdade. A direita de-fende a liberdade, mas não defende a igualdade. Já a esquerda defende tanto a liberdade quanto a igualdade. Segundo esta perspectiva, a esquer-da pode e deve sempre unir liberdade e igualdade. Geralmente, a direita pensa a desigualdade social como uma coisa natural, ao contrário da esquerda, que vê a desigualdade como fenômeno socialmen-te construído e que deve ser erradicado. Assim, procuraremos neste contexto uma abordagem crí-tica dos próprios discursos adotados pelos setores da esquerda brasileira que governam o país.

Buscaremos agora definir com maior precisão al-guns dos conceitos utilizados neste livro. A pro-posta é abordar separadamente alguns tópicos e depois relacioná-los de maneira gradativa.

Sobre a arte e o campo da arte

Como se define se uma coisa é ou não arte? A de-limitação do campo da arte é sempre difícil de se estabelecer devido principalmente à sua imensa abrangência. É difícil delimitar o campo de arte levando-se em conta os aspectos temporais, ge-

ográficos, dimensionais ou conceituais. Uma in-finidade de obras muito diferentes entre si, seja em relação às dimensões técnicas, categorias ma-teriais ou aos conceitos, pode ser definida como arte.

Referindo-se às artes visuais (e podendo-se es-tender a outras manifestações artísticas), Argan afirma que “uma obra é uma obra de arte somen-te na medida em que a consciência que a percebe a julga como tal” (ARGAN, 1994, p. 14). A obra de arte é uma coisa, um produto do trabalho huma-no que se pode perceber por meio de sua forma; a arte é um sistema de ideias que cria as condi-ções para a formulação dos juízos de valor sobre as obras. Os critérios que tornam possíveis estes juízos são historicamente condicionados. Em ou-tras palavras, os gostos estéticos são subjetivos, cada experiência estética é única, pois cada pes-soa (consciência que percebe) é única. Cada pes-soa possui uma maneira peculiar de perceber e simbolizar essa percepção. Porém, esta subjetivi-dade é construída socialmente nas relações que as pessoas estabelecem com seu contexto histó-rico. Assim sendo, para um determinado grupo de pessoas um artesanato indígena pode ser arte e uma escultura do Rodin não. Uma obra sinfô-nica do Stravinsky pode não ser considerada arte e a gravação de ruídos da rua pode ser considera-da arte. Não há nada, a princípio, que emane de uma obra e garanta a ela o status de obra de arte. A definição se uma determinada obra é obra de arte não está baseada em leis naturais e univer-sais, é uma definição arbitrária. Cada sociedade

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em cada época estabelece os valores/critérios que possibilitam julgar se uma obra é ou não arte.

Pois bem, de um modo geral quando falamos em arte pensamos em museus, salas de espetáculos, teatros, obras literárias... Por quê? Grande par-te da cultura brasileira está alicerçada na cultura europeia ou, se preferirmos, na cultura ociden-tal. Para entender melhor como essa herança nos afeta, vamos trafegar um pouco pela história da formação da arte moderna no Ocidente.

Os fatores sociais que influenciam a produção, circulação e consumo de arte nas sociedades oci-dentais modernas estão relacionados com o con-texto histórico do desenvolvimento do capitalis-mo. A partir do Renascimento, observa-se um gradativo processo de autonomização de campos do pensamento em relação à religião. O desen-cantamento do mundo está relacionado à ascen-são da burguesia como classe dominante. Ao ins-taurar outra maneira de compreender o mundo que não era baseada em dogmas religiosos o pen-samento burguês da época fez ruir alguns dos principais pilares de sustentação do poder da igreja e dos senhores feudais. Assim, no princípio da modernidade, o desenvolvimento do conheci-mento científico e a estruturação de campos ju-rídicos e filosóficos independentes cumprem um papel político de transformação.

Com a revolução francesa, a burguesia se consoli-da como poder dominante, acentuando-se a auto-nomia de várias áreas do conhecimento. Os pro-

cessos de autonomização ou especialização dos campos científicos, jurídicos e estéticos são umas das principais características da modernidade.

Há dois aspectos em relação à autonomia da arte que estão interligados: a maior liberdade no pro-cesso de criação da obra e a maior independência financeira do artista. O artista passa a ter uma ampla escolha de temas, de formas de compo-sição e de uso de técnicas. Ele também assume maior responsabilidade e maior controle do seu próprio trabalho, passando a produzir, de manei-ra mais acentuada, a partir de parâmetros ine-rentes ao campo específico da arte. Esse fenôme-no só é possível porque, em consequência da fle-xibilização do mercado de arte, o artista passa a ter uma maior independência financeira. Com o aumento do poder econômico da burguesia, há uma maior diversificação do público consumidor, que busca na arte, além de um investimento, uma forma de conquistar prestígio social. A flexibili-zação do mercado, o aumento e diversificação dos consumidores possibilita aos artistas uma maior autonomia em seu processo de criação. Esse pro-cesso acelera-se com a revolução industrial, con-solidando-se de maneira efetiva com a estrutu-ração da sociedade urbano-industrial a partir da segunda metade do século XIX.

Assim, a arte moderna ou a tradição moderna na arte busca a constituição de um campo próprio. O modernismo transformou a autonomia da arte em bandeira de luta. Essa autonomia passa a ser um objetivo a ser alcançado, como forma de ga-

Ver Pierre Bourdieu (1987) e Maria Amélia Bulhões Garcia (1997).

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rantir um espaço próprio num mundo marcado pelas especializações. É exatamente neste proces-so histórico de especialização e autonomia que se estruturam os critérios (ou parâmetros/valores) norteadores da definição do que significa obra de arte para a grande maioria de nós. Para compre-ender melhor este assunto é importante abordar a ideia de campo da arte.

Aqui, quando nos referimos ao campo da arte, não estamos nos referindo a toda a produção ar-tística, de todas as sociedades, em todos os tem-pos. A referência é aos campos restritos das ar-tes ou campos das artes eruditas ou simplesmen-te ao que se convencionou chamar de arte erudi-ta. Estamos no referindo sim ao que hoje a maio-ria reconhece como arte, às formas de sua produ-ção, circulação e consumo, bem como ao estabe-lecimento de critérios para sua valoração. O que é denominado arte representa uma parcela da pro-dução artística que o campo da arte, a partir de critérios por ele estabelecidos, define como arte, recebendo o consentimento, como tal, da maioria da sociedade. Ou seja, o campo da arte funciona como um circuito restrito (artista, promotores, críticos, editores, instituições culturais, mídia etc.) que define suas formas de produção e os cri-térios de avaliação destas produções. No interior deste campo se desenvolve uma luta em que cada membro, indivíduo e/ou instituição busca o reco-nhecimento dos demais participantes, estabele-cendo-se uma hierarquia na qual, quanto mais re-conhecido ou legitimado, mais alto é o posto ocu-pado pelo referido membro e maior é seu poder.

O conceito de campo da arte é similar ao conceito de sistema das artes, citado na introdução deste livro.

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Como vimos, o processo de diferenciação da produção e a constituição de campos restritos das artes iniciam-se no Renascimento, com a valorização do trabalho intelectual em detrimento do trabalho manual, com a separação en-tre arte e artesanato e com a constituição, por meio das relações entre artis-tas, mecenas e filósofos, de mecanismos de legitimação de determinados ar-tistas. Esse sistema de relações se aprimorou, exigindo daqueles que dele par-ticipam um determinado capital cultural que não está à disposição de todos.

Desta forma, um grupo bastante reduzido de pessoas elabora os parâmetros do que deve ser considerado arte e impõe tais parâmetros para o restante da sociedade. Se o pensamento dominante de uma época tende a ser o pensa-mento da classe dominante desta época, a ideia de arte tende a ser a ideia que a classe dominante quer que se tenha de arte. Desse modo, as exigências impos-tas para se produzir e consumir/fruir adequadamente a arte promovem exclu-são social. Aqueles que têm acesso ao campo da arte impõem uma

[...] dominação simbólica sobre os de-

mais, excluídos desta participação.

Marginaliza-se, assim, a elaboração sim-

bólica dos estratos sociais não integra-

dos no sistema, estabelecendo-se meca-

nismos de distinção que legitimavam a

dominação social pré-existente, da qual

o sistema era também resultante. Esta

distinção passou a funcionar, [...] como

estratégia de poder político dentro da

sociedade: uma estratégia que se torna

mais eficiente, na medida em que é mais

mascarada, aparecendo como legítima

(GARCIA, 1991, p. 29).

Como a arte tradicional é produzida pelos grupos marginalizados e não pela classe dominante, tende a ser menosprezada, subvalorizada, entendida com algo exótico e estático.

Mas antes de entrar nas especificidades da arte tradicional, vamos analisar o conceito de Estado numa perspectiva de esquerda e depois as relações entre três tipos de Estado implantados no Brasil e suas respectivas políticas culturais.

Conceito desenvolvido por Pierre Bourdieu, capital cultural é o conjunto de recursos que uma pessoa dispõe para a apropriação de obras culturais, como também os produtos, instrumentos e equipamentos necessários para a produção de uma obra, neste caso uma obra de arte. Ver Coelho (1997) e Bourdieu (1983;1987).

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Mais de 15 horas de uma jorna-da que começa em um arraial e depois vai pas-sando por diferentes praças e bairros de São Luis. Tem benzedura do boi na igreja, no meio da ma-drugada, e já pela manha o Exército distribuin-do água e caldo de feijão pros brincantes, que fi-nalizam a “brincadeira - promessa - religiosidade” no bairro do João Paulo, onde todos os bois (que também fizeram seus percursos) se apresentam. Um contínuo desfilar de matracas, índias e cabo-clos, uma “rave” da cultura tradicional onde os mais animados são senhores e senhoras para além dos seus 80 anos, que, “incorporados” à maneira do candomblé, como afirmam alguns, ou não, se-guem firmes e fortes tocando e dançando madru-gada adentro, sob roupas que pesam quilos e sob um sol que, pelas 11 horas da manhã do dia seguin-te, beira os 40 graus.

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Pode-se dizer que o Estado Moderno (poder legislativo, judiciário e executivo) é condi-ção e expressão das relações e contradições funda-mentais do mundo em que vivemos. Para a esquer-da, o Estado é entendido como instrumento domi-nação política. Entretanto, não pode ser apresen-tado assim, pelo contrário, deve aparecer aos olhos das pessoas como uma instituição neutra que se coloca acima dos conflitos sociais e representa o desejo geral da sociedade. O Estado é a forma fun-damental da defesa dos interesses de uma classe que domina e seu poder é poder político organiza-do da classe privilegiada para dominar as classes subordinadas.

No entanto, a classe dominante não precisa ne-cessariamente ocupar todos os espaços do Estado para defender seus interesses. Ele, o Estado, pode continuar sendo um órgão a serviço da classe do-minante ainda que alguns de seus dirigentes per-tençam a outras classes.

Esta abertura de espaços no Estado a outras classes é necessária, uma vez que as formas de dominação precisam destes espaços de participação para sub-

Ver Otávio Ianni (1998).

jugar, sem no entanto destruir totalmente as ou-tras classes. Assim, o Estado como uma expres-são desses conflitos não pode ignorar totalmente os interesses da classe trabalhadora, por exemplo, sob o risco de perder uma das ferramentas mais importantes para a construção da hegemonia po-lítica. A conciliação de interesses divergentes fun-ciona, portanto, como um meio de subjugar outras classes aos interesses dominantes, ao mesmo tem-po que permite amenizar os efeitos dos conflitos, enquadrando-os aos limites convenientes para a manutenção do sistema.

Desse modo, é compreensível que em uma demo-cracia formal seja possível a partidos de esquer-da assumirem posições no Estado, como é o caso do Brasil nos últimos anos. Devemos lembrar, no entanto, que o executivo é uma pequena par-te da estrutura do poder do Estado. Conquistar o governo não é conquistar o poder, e sim con-quistar uma parcela do poder. Além de existirem outros poderes no Estado, como o legislativo e o judiciário, é importante ressaltar que o verda-deiro poder sempre está nas mãos dos donos dos meios de produção.

Os meios necessários para produzir as coisas da vida

tal qual vivemos: donos das fábricas, fazendas, bancos...

o eStado

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Essa percepção crítica do Estado brasileiro por parte de setores da esquer-da que o veem como uma instituição que defende os interesses de uma elite minoritária em detrimento da maioria da população tem vinculação, por um lado, com o pensamento marxista e, por outro, com as especifici-dades da formação histórica do Estado brasileiro e com suas críticas mais contundentes, incluindo as críticas elaboradas por Raimundo Faoro que veremos adiante.

patrimonialiSmo no braSil

A partir das formulações de Max Weber, Faoro (2001) afirma que o atraso do desenvolvimento econômico e social do Brasil está relacionado a algumas características da sua estrutura burocrática, herdeira da administração colo-nial portuguesa. Em seu trabalho Os donos do poder faz uma análise do pro-cesso político do país, desde o período absolutista português até a era Vargas (1930-1945).

De D. João I a Getúlio Vargas, numa

viagem de seis séculos, uma estrutu-

ra político-social resistiu a todas as

transformações fundamentais, aos

desafios mais profundos, à travessia

do oceano largo. O capitalismo poli-

ticamente orientado – o capitalismo

político, ou o pré-capitalismo –, cen-

tro da aventura, da conquista e da

colonização moldou a realidade es-

tatal, sobrevivendo e incorporando

na sobrevivência, o capitalismo mo-

derno, de índole industrial, racional

na técnica e fundado na liberdade do

indivíduo – liberdade de negociar, de

contratar, de gerir a propriedade sob

a garantia das instituições. A comu-

nidade política conduz, comanda, su-

pervisiona os negócios, como negó-

cios privados seus, na origem, como

negócios públicos depois, em linhas

que se demarcam gradualmente. O

súdito, a sociedade, se compreen-

dem no âmbito de um aparelhamen-

to a explorar, a manipular, a tosquiar

nos casos extremos. Dessa realidade

se projeta, em florescimento natural,

a forma de poder, institucionalizada

num tipo de domínio: o patrimonia-

lismo, cuja legitimidade assenta no

tradicionalismo – assim é, porque

sempre foi (FAORO, 2001, p. 819).

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O Estado absolutista estava condicionado aos inte-resses pessoais do Rei. Esta forma de ação político--administrativa se manteve ao longo da história do Brasil, sempre favorecendo uma relação promíscua entre o campo público, controlado pela burocracia, e o campo privado, que não é mais que um esta-mento que controla a burocracia. Nesse caso, ha-veria uma apropriação do Estado por um grupo de altos funcionários públicos que dominariam a ad-ministração e teriam como aliados um patronato político. A partir de interesses comuns, ambos os grupos construíram um sistema de relações, com ramificações em todo o país, que tem como lógi-ca o acúmulo privado de riqueza da nação e a ma-nutenção da estrutura de poder. Ao longo de toda a história do nosso país, os representantes desses grupos buscaram consolidar a expansão da rique-za do grupo. Eles entendem o Estado como um pa-trimônio pessoal, eliminando as fronteiras entre o público e o privado. Estes setores se colocam longe do controle geral da sociedade, garantindo assim a manutenção e a ampliação dos seus privilégios, em detrimento do bem social.

Para Faoro, apesar das alterações sofridas ao longo da história – de um território colonizado para uma monarquia independente, de uma monarquia para uma República – uma coisa não muda muito até metade do século XX no Brasil: o exercício político e administrativo patrimonialista sob controle do estamento burocrático.

A prática patrimonialista instaurou um Estado excludente, que garante os privilégios de alguns

Grupo de pessoas que desempenham a mesma

função ou exercem influência em um

determinado campo da vida social.

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e priva os direitos de uma maioria. Este tipo de Estado possui uma política cultural também ex-cludente, que Teixeira Coelho denomina “políticas de dirigismo cultural”, geralmente praticada por Estados fortes e partidos políticos com pouca to-lerância aos questionamentos.

Teixeira Coelho explica que o dirigismo cultu-ral se divide em dois subtipos: a política cultu-ral Tradicionalista Patrimonialista e a Estatismo Populista. A primeira promove de “[...] modo par-ticular, a promoção do folclore como núcleo da identidade nacional a ser defendida e difundida de modo preferencial. Neste caso, a cultura derivada desse patrimônio dito autóctone é usada como es-paço não conflitante onde todas as classes sociais se identificam”. A segunda afirma “[...] o papel cen-tral da cultura dita popular na manutenção de um Estado de tipo Nacional-Popular” (COELHO, 1997, p. 299). Nos dois casos não se privilegia a arte de vanguarda e outras manifestações da arte erudita. Um olhar apressado pode enxergar neste tipo de política cultural um apoio incontestável à arte tra-dicional, porém é um apoio questionável. Primeiro porque a produção artística, seja erudita, de van-guarda ou tradicional, deve ser entendida como patrimônio da humanidade e como tal merecem seu espaço. Segundo, porque pode levar a uma idealização da cultura tradicional como algo cris-talizado, inerte, como um fóssil a ser preserva-do em um museu. O não entendimento da cultu-ra tradicional como algo dinâmico e contraditório pode reuduzi-la a algo exótico a ser apreciado es-poradicamente e com certo distanciamento. Algo

Aquilo que é natural da região que se encontra.

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para ser visto numa redoma de vidro, exaltado e pouco vivenciado nas suas múltiplas dimensões. Se por um lado o discurso é de apoio e valorização, por outro a prática tende ao isolamento e empobrecimento dos diversos sentidos destas manifestações.

Se, por um lado, tais críticas ao Estado patrimonialista brasileiro serviram à esquerda como reforço na denúncia de um tipo de Estado elitista, dominador

e excludente, por outro também foram usadas por setores que tinham inte-resse em continuar se apropriando da riqueza gerada pelo país. Tais setores afirmavam que era preciso romper com a tutela exercida pelo poder burocrá-tico do Estado para desmontar o modelo de Estado Patrimolialista e as políti-cas de dirigismo cultural.

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o neoliberaliSmo como uma alternativa ao patrimonialiSmo

Em meados da década de 1980 e na década de 1990, esse discurso reformula-do é ressaltado. A argumentação de Faoro passa a ser usada como justificativa para a implantação de políticas neoliberais.

A crítica do autor ao estamento burocrático e às práticas patrimonialistas foi publicada em um momento histórico (1958), quando se acreditava que o Estado deveria desempenhar um papel importante no desenvolvimento eco-nômico e social. Sua crítica é retomada quando o Estado passa a ser entendi-do não como uma solução, mas como um problema. Isso a partir da metade da década de 1980.

[...] a situação político-intelectual

teria se invertido, pois as mutações

ideológicas na cultura capitalista

mundial, o fracasso do socialismo

como alternativa de modo de vida, a

perda de capacidade hegemônica da

cultura de esquerda, o esgotamento

do nacional-desenvolvimentismo, a

memória do comprometimento de

boa parte do conservantismo com

o estatismo e com o autoritarismo,

a consolidação de uma sociedade de

consumo de massas e a internaliza-

ção dos valores individualistas pos-

sessivos na condução da vida coti-

diana, abriram a possibilidade de

que o liberalismo [...] se torne final-

mente uma ideia dominante na for-

mação social brasileira (BRANDÃO,

2007, p 66).

O discurso de Raymundo Faoro é valorizado de forma enfática num contex-to internacional de expansão do neoliberalismo como modelo de desenvol-vimento e ideologia. Tal modelo é adotado no Brasil no início de 1990, bem como em grande parte da América Latina, por meio da pressão de organismos financeiros como o FMI e o Banco Mundial. No entanto, a adoção deste mode-lo, longe de garantir a inclusão social, marginalizou grande parte da popula-ção, mantendo a desigualdade social. O neoliberalismo não foi capaz de resol-ver problemas sociais, entre outras coisas porque no Brasil sua implantação foi feita em aliança com os setores sociais que historicamente se beneficiaram das práticas patrimonialistas.

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Durante os anos 1990, a doutrina neoliberal se impõe como concepção orientadora do governo federal por três mandatos, entre 1988 e 2002, sem no entanto resolver grande parte dos problemas sociais. Pelo contrário, com o neoliberalismo veio: privatização com transferência das riquezas nacionais para grandes empresas privadas, precarização dos serviços pú-blicos, redução dos direitos trabalhistas, desigualdade social, ajuste fiscal e desemprego.

Voltando a Teixeira Coelho, podemos afirmar que o modelo neoliberal adota, no âmbito das políticas públicas de cultura, o que o autor denomi-na políticas de liberalismo cultural. Estas não defendem modelos únicos de produção artística e não entendem que seja dever do Estado garantir o direito de acesso da população à produção e à fruição artística.

Entre seus subtipos estão as polí-

ticas culturais adeptas do mecena-

to cultural: o apoio à cultura fica na

dependência maior da iniciativa pri-

vada ou das fundações privadas ou

semiprivadas das quais o poder pú-

blico pouco participa. A implantação

desta política pode ser precedida de

uma vasta operação de liquidação

dos órgãos públicos voltados para a

cultura, como ocorreu no Brasil sob

o governo Collor, e de privatização

da iniciativa cultural. O objetivo é

um só: enquadrar a cultura nas leis

de mercado. Entende-se, neste caso,

que a cultura deve ser uma atividade

lucrativa a ponto de poder, pelo me-

nos, sustentar-se a si mesma. Em

geral, este mecenato tende a apoiar

as formas de alta cultura e aquelas

veiculadas pelos meios de comuni-

cação de massa. Não tem preocupa-

ções nacionalistas (pelo contrário,

seus princípios são, em geral, os da

globalização) e apoia, também em

princípio, não grupos comunitários

mas indivíduos e empresas cultu-

rais. Não raro, a promoção da cultu-

ra é feita aqui, como suporte para a

divulgação de produtos ou da ima-

gem institucional dos patrocinado-

res (COELHO, 1997, p. 299).

Como podemos observar, a política de liberalismo cultural tem impacto ne-gativo na arte tradicional, pois além de privilegiar a arte erudita e a cultura de massa (vinculada à indústria cultural), este tipo de política reduz as obras

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de arte à mercadoria, a um produto para ser ven-dido e dar lucro. As manifestações da arte tradicio-nal estão relacionadas a uma série de dimensões da vida das comunidades: religiosas, sociais, polí-ticas, de lazer e não podem ser reduzidas aos as-pectos mercadológicos. Voltaremos a este tema em outros textos do livro.

Até aqui abordamos duas concepções de Estado, suas correspondentes políticas culturais e fizemos uma primeira aproximação com as relações entre políticas públicas e artes tradicionais. Cabe abor-dar também o modelo atual.

Como uma reação ao modelo neoliberal, vários países do continente escolheram partidos de es-querda a partir de 1990. No caso brasileiro, se-tores de esquerda orientados pelo Partido dos Trabalhadores, criticam o Estado Patrimonialista tradicional e o modelo neoliberal. Para eles, se o Estado funciona numa lógica de dominação políti-ca, como reverter esta situação? Para tais setores, o desafio deve se dar na perspectiva de democrati-zação do Estado mediante a participação popular: a partir de uma ação no interior do Estado, seria possível questioná-lo e alterá-lo.

Percebemos, portanto, que uma concepção de Estado que prevê a democratização dos processos decisórios, busca justiça social e atua efetivamente no crescimento econômico, por meio da distribui-ção de renda, deve adotar como modelo de política cultural o que Teixeira Coelho chama de “políticas de democratização cultural”. Segundo o autor, esse

Começando com a eleição de Hugo Chávez,

Venezuela, em 1998, seguida pela de Lula,

Brasil, em 2002, de Tabaré Vazquez e José Mujica,

Uruguai, em 2003 e 2009, de Nestor e Cristina Kirchner, Argentina, em 2003 e 2007, de

Evo Morales, Bolívia, em 2005, de Rafael

Correa, Equador, em 2006, de Daniel Ortega, Nicarágua, também em

2006, de Mauricio Funes, El Salvador, em 2009 e

Fernando Lugo, Paraguai em 2008.

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modelo ideológico busca, por um lado, difundir todas as formas de cultura e, por outro, por influência das classes que geralmente estão no poder “acabam forçando o privilégio às formas da cultura superior.”

A democracia participativa é considerada como um subtipo deste modo de po-lítica cultural,

[...] cujo objetivo é a promoção das for-

mas culturais de todos os grupos so-

ciais segundo as necessidades e desejos

de cada um. Procura incentivar a parti-

cipação popular no processo de criação

cultural e os modos de autogestão das

iniciativas culturais. Tem metas clara-

mente políticas a alcançar e apoia-se

fundamentalmente em partidos ditos

progressistas e em movimentos po-

pulares chamados de independentes

(COELHO, 1997, p. 298-300).

A ideia de relação entre arte, Estado e sociedade civil colocada em prática em 2001 na cidade de Londrina (2001-2008), e a partir de 2002 no governo fede-ral, parece próxima da ideia de democracia participativa definida por Teixeira Coelho, pois, além de entender a arte como força social de interesse coletivo que não deve ser balizada pelo mercado, mas democratizada sem privilegiar modelos predeterminados, o modelo vigente aposta na participação popular e na autogestão dos processos artísticos.

No entanto, parece-nos que nem o conceito de políticas de democratização cultural nem o de democracia participativa são adequados para situar a políti-ca cultural em Londrina e no governo federal. Há especificidades que não ca-bem nesses conceitos. Segundo Teixeira Coelho,

[...] inevitavelmente, diz-se desta

[política da democracia participativa]

que, também ao contrário do que pre-

ga, acaba privilegiando determinados

modos e versões culturais – no caso

os de origem popular... É tênue, como

se pode depreender, a separação que

se estabelece entre este último tipo

de política cultural [da democracia

participativa] e o primeiro aqui abor-

dado, o dirigismo cultural (COELHO,

1997, p. 300).

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Para compreender melhor essa afirmação é impor-tante retomarmos o conceito de dirigismo cultu-ral. Praticada por “Estados fortes e partidos polí-ticos que exercem o poder de modo incontestado”, esse tipo de política promove “uma ação cultural em moldes previamente definidos como de interesse do desenvolvimento ou da segurança nacionais.” Como vimos anteriormente, o dirigismo cultural possui duas subdivisões: a política cultural tradicionalis-ta patrimonialista que promove especialmente “a preservação do folclore como núcleo da identidade nacional, a ser defendida e difundida de modo pre-ferencial. Neste caso, a cultura derivada deste pa-trimônio dito autóctone é usada como espaço não conflitante onde todas as classes sociais se identi-ficam”; e a política cultural do estatismo populista que afirma “o papel central da cultura dita popular na definição de um Estado de tipo nacional-popu-lar. Os modos culturais ditos de elite (arte de van-guarda, habitualmente contestatória, e outras ver-sões da cultura erudita) são, neste caso, confinados quando não eliminados” (COELHO, 1997, p. 299).

Vejamos. Se, por um lado, o conceito de política cultural da democracia participativa, ao apostar na democratização da arte por meio da participa-ção popular e da autogestão nos processos artís-ticos, aproxima-se da ideia de relação entre arte e Estado preconizada pelo atual governo, a sua se-paração tênue ou aproximação com a denominada política de dirigismo cultural, proposta pelo autor, acaba por distanciá-la das posições dos setores de esquerda que hoje governam. Isso porque a políti-ca de dirigismo cultural é semelhante ao que esses

setores definem como relação ditatorial entre arte e Estado, e à qual eles se opõem. Ou seja, tais se-tores de esquerda não defendem um Estado forte que promova arte a partir de “moldes previamen-te definidos como de interesse do desenvolvimen-to ou da segurança nacionais”, nem defendem “a preservação do folclore como núcleo da identida-de nacional” e, sobretudo, não afirmam “o papel central da cultura dita popular na definição de um Estado de tipo nacional-popular.” Pelo contrário, buscam substituir a oposição entre cultura elitis-ta e popular pela oposição “entre o experimental--inovador-transformador e o repetitivo-conserva-dor-imobilizado” (BITTAR, 1992, p. 206).

Nas formulações destes setores da esquerda pare-ce ficar clara a intenção de não se privilegiar a cha-mada arte popular em detrimento da arte erudi-ta. Desse modo, a concepção de relação entre arte e Estado adotada em Londrina e no Brasil possui uma característica híbrida: mescla aspectos do que Teixeira Coelho denomina “política de democratiza-ção cultural” com elementos do seu subtipo, chama-do por ele de “política da democracia participativa”.

A atual concepção de relação entre arte e Estado no Brasil poderia ser elaborada da seguinte manei-ra: a arte é uma produção social de interesse coleti-vo que não deve ficar à mercê da lógica de mercado. Por ser de interesse coletivo, o acesso à arte (produ-ção e consumo) deve ser democratizado sem privi-legiar modelos predeterminados, sendo a participa-ção popular e a autogestão dos processos artísticos elementos centrais para a democratização da arte.

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Cabe ao Estado criar condições, estimular, enfim, garantir a participação popular e a autogestão dos processos artísticos.

Nas viagens que fizemos pelos quatro cantos do país durante o trabalho de campo tivemos a oportuni-dade de vivenciar estimulantes experiências de im-plantação desta política de ação cultural no campo das artes tradicionais. Era evidente a força, o dina-mismo, as contradições, a riqueza e a complexidade das manifestações artísticas tradicionais apoiadas nesta ideia de política cultural.

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“Em uma de suas histórias, muito ilustrati-va de como as atividades cotidianas do interior assumem outras carac-terísticas além da função em si, Dorothy Marques nos contou uma his-tória que era mais ou menos assim: quando morava numa cidadezinha lá no interiorzão do Mato Grosso, todas as mulheres, inclusive as per-tencentes ao “alto escalão” da cidade, lavavam suas roupas no rio. Todos os dias lá ia a mulherada com as trouxas de roupa na cabeça... Cansada de lavar e torcer, uma senhora, autoridade do governo municipal da ci-dade comprou uma máquina de lavar. Durante certo tempo ela aban-donou o cotidiano do rio e aproveitou a praticidade do novo brinquedo. Pouco tempo depois, Dorothy vê, entre tantas outras mulheres, novamente a senhora, autoridade, rumando ao rio com sua trouxinha de roupa a tira-colo. Perguntou:

– Ô, mulher, porque você não usa a máquina novinha que comprou? Quebrô, é?

A senhora responde:

– Ah, Dorothy... pro inferno aquela máquina... Num cunversa com a gente, num fofoca, num sei mais da vida do povo, tá loco! Como é que eu vô podê fazê meu trabaio assim?

Eu não, tô vortando é pro rio memo...”

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Antes de discutir o apoio do Estado às artes tradicionais, cabe perguntar por que os governos devem fazer investimentos em arte. Vejamos adiante como distintos autores justificam a necessidade de políticas públicas para as artes.

Robert J. Saunders (1997) ressalta a importância da arte para o desenvolvimento da percepção, da imaginação criativa, da flexibilidade na resolução criativa de problemas de todo tipo, como também para a formação de valores estéticos que se refle-tem tanto no entorno humano e urbano como nas obras de arte. Bales e Pinnavaia (2001) alegam que o financiamento público das artes é qualitativa-mente diferente do financiamento privado, pois apoia várias atividades críticas que provavelmen-te nunca atrairão a filantropia privada. DiMaggio (1986) aponta como objetivos da política cultural para as artes a conservação, o acesso, a inovação (com pluralismo e diversidade) e a participação. Propõe dois princípios para a política cultural: a incerteza e a limitação. A partir destes princípios

e objetivos, propõe um modelo compartilhado de financiamento como uma divisão natural de traba-lho em que cada setor de apoio faça o que estiver mais está inclinado a fazer. Neste modelo, o go-verno deveria identificar  valores que nenhum dos outros setores quer financiar, animar o apoio dos fundos e, quando possível, financiar os programas vinculados a esses valores. Segundo DiMaggio, os recursos privados não podem apoiar todos os cam-pos, daí a necessidade de combinar diferentes ma-neiras de financiamento.

Referindo-se ao contexto norte americano, DiMaggio ressalta que a cultura erudita é somen-te uma parte da cultura nacional e deve ser vista no marco de uma visão global da cultura. Afirma que não devemos nos preocupar pela sobrevivên-cia da cultura, pois a cultura sempre sobrevive, o que deve nos preocupar é que tipo de cultura é a que vai sobreviver. Aí perguntamos, as manifes-tações artísticas de tradição oral no Brasil mere-cem sobreviver? Os governos, principalmente de

Sobre o apoio público

àS arteS tradicionaiS

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esquerda, devem se preocupar com esse tipo de arte? Por quê?

O próprio DiMaggio oferece uma pista ao falar de determinados valores que a política para as artes deve maximizar: excelência, conservação, inovação e participação. Apesar de saber que muitas artes de tradição oral estão relacionadas com os quatro valo-res, vamos nos centrar nos dois últimos. Parece que as ações de pessoas e grupos que trabalham com as manifestações artísticas de tradição oral são por-tadores dos valores de inovação e participação. No caso das artes tradicionais brasileiras, estes valores aparecem de maneira bastante particular.

Darcy Ribeiro (1995), em seu livro O povo brasileiro, afirma que o processo de mestiçagem no Brasil criou um homem novo e diferente de qualquer outro já existente no mundo. Por este processo de transfigu-ração étnica – por meio do qual um povo, entidade cultural, nasce se transforma e morre – passaram, em território brasileiro, as três etnias básicas for-madoras de nosso povo: a indígena, a portuguesa e a negra africana. Ao longo do tempo, tais etnias ser-viram para a formação desse novo homem, esse ou-tro que já não é mais o índio autóctone, o negro afri-cano, o colonizador português, o que gera a neces-sidade de afirmação de uma nova identidade, que Ribeiro define como brasilidade.

Essa brasilidade está relacionada às manifestações artísticas de tradição oral. As comunidades tradicio-nais, formadas principalmente pelas classes margi-nalizadas, produzem o que comumente chamamos

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de arte tradicional, caracterizada por ser uma manifestação popular dinâmica, que exerce uma função no contexto em que está inserida e que se transmite por meio das gerações pela oralidade. Várias manifestações culturais destas comu-nidades – que geralmente não são entendidas como arte – relacionam-se com modelos de produção econômica de caráter pré-industrial, predominantemente artesanal, que agregam e difundem valores como a solidariedade, a humildade, o espírito coletivo e o respeito à natureza, próprios deste tipo de economia. Esta arte não se especializou, não adotou a forma pela forma, não se transformou em algo cujo único sentido é o de ser produzido para o desfrute estético ou para o mercado, como acontece nos campos das artes eruditas (FERREIRA, 2005).

É importante ressaltar que a tradição moderna no campo da arte erudita tem certa tendência formalista. Com o processo que relatamos anteriormente – de especialização das atividades artísticas, que por sua vez está relacionado à am-pliação e diversificação dos artistas e consumidores de arte – criaram-se as con-diciones favoráveis para a autonomização da arte, o que favoreceu o desenvol-vimento da teoria pura da arte.

Essa teoria, segundo Merquior, está relacionada ao desenraizamento social da arte:

[...] voltando as costas à verdade do

vínculo entre arte e cultura, o for-

malismo quer especializar a arte.

No entanto é precisamente com isso

que trai a falsidade de sua pretensão

de fugir a todo nexo com a cultura:

pois o mito da especialização não é

“acultural”; ao contrário, é uma das

marcas mais problemáticas da civi-

lização contemporânea. O ideal de

especialização absoluta da arte pura

e das teorias estéticas isolacionistas

reproduz de modo deploravelmen-

te mecânico e acrítico, as tendências

mais cegas da cultura vigente. Longe

de livrar-se do cultural, o formalismo

se rende ao automatismo da cultura;

imita servilmente aquilo mesmo que

se nega a reconhecer e a enfrentar

(MERQUIOR, 1974, p. 216).

Assim, a autonomia criou as condições para o desenvolvimento da arte pela arte, para a constituição de um formalismo exacerbado, da forma pela forma, que ten-Ver Brandão (1982).

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de ao isolamento de outras dimensiones da vida so-cial. Isolada do mundo, a arte fragiliza-se como agen-te crítico da cultura, contribuindo de certo modo para a manutenção da ordem social vigente.

Com a arte tradicional é diferente. Ela satisfaz uma função social, compõe o imaginário popular, relaciona-se com os demais aspectos da vida social das comunidades. Nesse tipo de manifestação ar-tística, a forte relação entre a natureza e cultura cria uma lógica própria diferente da lógica raciona-lista, na qual predominam os interesses do capital (DA MATTA, 1998).

A relação com as lendas e os mitos seria uma das maiores características da cultura e da arte popu-lar. Segundo Roberto da Matta, a presença forte dos elementos não míticos neste tipo de manifes-tação demonstra a visão “holística” (mais global e integrada) do mundo, no qual a natureza e a cultu-ra, os mortos e os vivos, o mundo do real e o mun-do do imaginário se relacionam de forma intensa. As festas e as manifestações folclóricas reafirmam um mundo mágico, opondo-se, desta forma, à ló-gica racionalista da sociedade capitalista na qual predomina o interesse do mercado e a busca pelo lucro, evidentes, por exemplo, nas festas oficiais e nos grandes acontecimentos criados pela indús-tria cultural. Segundo o autor, o popular reintro-duz, no mundo individualizado capitalista, a “ve-lha generosidade da troca”, na qual os seres hu-manos, como pessoas, filhos, amigos e parentes, têm a obrigação de dar e receber. “Eis uma tradição que resiste tanto em se transformar em cultura de

massa, quanto protesta contra a visão aristocráti-ca que vem de cima [...] (DA MATTA, 1998, p. 77).

No entanto, a imposição do modelo tradicional de desenvolvimento baseado nos valores dominantes da cultura ocidental, na ideologia do progresso, na busca de lucros imediatos e na imposição da in-dústria cultural tem alterado, radicalmente, a pro-dução material e simbólica destas comunidades e suas manifestações artísticas.

Cada vez mais, as leis do capital que ditam a cons-trução dos preços e do mundo se intensificam com o processo de globalização. Esta globalização, fal-samente apresentada como um intercâmbio eco-nômico e cultural equilibrado entre todos os países do mundo, seria, em realidade, uma tentativa de mundialização da cultura do consumo. Como afir-ma Renato Ortiz (1996), esta cultura do consumo, ao tornar-se impositiva, levaria a um desmantela-mento dos modos de vida que ainda trazem em si elementos que não formam parte da lógica capi-talista. Este desmantelamento se daria principal-mente por meio da indústria cultural e dos meios de comunicação de massas.

Segundo a investigadora Maria Nazareth Ferreira, os meios de comunicação de massas atuariam, por um lado, na desintegração dos “valores culturais, históricos, morais, éticos e estéticos dos povos la-tino-americanos e, por outro, globalizam, homo-geneizando gostos e costumes (FERREIRA, 1995b, p. 6-7). Em outras palavras, a cultura hegemônica se impõe cada dia mais, “mundializando” a cultu-

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ra do consumo e do modo de vistas capitalista. Há, neste sentido, um desmantelamento dos modos de vida tradicionais e a desintegração de valores culturais que trazem em si formas de explicação, compreensão e vivência diferentes daquelas de-fendidas pela cultura hegemônica. Enquanto nes-ta última está presente o individualismo, a con-corrência e a depredação da natureza, nas culturas tradicionais encontramos valores como a recipro-cidade, o respeito ao outro e a biodiversidade, que podem nos ajudar na busca por um novo parâme-tro de construção social.

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“[...] Agora, ninguém pensou como essa grana vai interferir no dia a dia deste mestre, o que ele vai fazer com isso. Porque muita coisa da cultura popular vem em função de suprir necessidades que o dinheiro também supre. Então, a partir do momento em que ele tem a grana ele deixa de fazer, de elaborar, o tiozinho do fandango faz a viola lá no mato, com a caxeta que ele colhe. Não é porque ele gosta, é porque ele não tem aces-so a um instrumento de qualidade. E não foi ensi-nado pra ele. Ele aprendeu daquele jeito e não tem a grana pra ir lá em São Paulo buscar. E sabe fazer. Agora... a partir do momento que ele receber a gra-na pra comprar, uma coisa que ele sempre admi-rou, não sei. Que nem o pessoal do boi de sobradi-nho em Brasília,e a pilha da galera de sobradinho, que faz um boi tradicional, típico do Maranhão, a pira deles era o boi de Parintins. Que pra gente, pseudointelectuais, é um boi que já está... não é mais a tradição, é um boi que virou um megaeven-to, um boi bumbódromo, super atração, pra trazer turista, gringo. Mas pra galera que tem essa tra-dição, tem ...vê e admira, aquelas luzes, encanta. Então, será que a chegada da grana não vai destruir os princípios mais básicos da tradição? Ao mesmo tempo é justo deixar o cara sem ter acesso? Não, pelo contrário, né? Então, tudo isso é uma gran-de... ninguém sabe o que vai dar, a gente tem que tocar o barco e fazer, procurando as referências”.

Fernando GoesAlma Brasil

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reSumindo...

A falta de compreensão sobre a existência de simi-laridades entre os campos restritos das artes e o campo político (Estado) pode dificultar a elabora-ção e a implantação de políticas culturais mais pro-gressistas. A esquerda que governa o Brasil hoje percebe teoricamente o Estado como poder políti-co organizado da classe dominante, expressão das relações e contradições capitalistas. Nesse sentido, o Estado cumpriria um papel excludente e opres-sivo. A crença de que o Estado é neutro, represen-tando harmonicamente os interesses de toda so-ciedade, é uma construção ideológica que ajuda em sua manutenção como instrumento de classe. O Estado é um espaço de conflito, de disputas políti-cas entre as classes e as frações de classes. Quando se afirma que os campos restritos das artes são ho-mólogos ao Estado é porque esse conjunto de pes-soas e instituições que controlam a produção, a cir-culação e o consumo daquilo que eles mesmos de-finem (com o consentimento do restante da socie-dade) como arte, possui um funcionamento e uma lógica de dominação e exclusão muito parecidas ao Estado. Tal qual o Estado, os campos das artes são espaços de conflito, de disputas políticas dos gru-pos pela manutenção ou alteração dos mecanis-mos de poder no interior de cada campo específi-co, de luta pela preservação ou substituição de va-lores artísticos.

Para determinados setores da esquerda há, em re-lação ao Estado, uma estratégia de, a partir de uma

ação em seu interior, explicitar seu caráter segre-gacionista e seus limites institucionais (seja no modelo de Estado patrimonial ou neoliberal). Há claramente uma perspectiva de democratização que aponta para o controle social do Estado como forma de sua superação como instrumento de po-der político dominante.

Se tivermos em conta que as políticas públicas de cultura são, de modo geral, um espaço constitutivo da relação entre campos com lógicas de distinção – campo político/Estado e campos da arte – chega-mos à conclusão de que as políticas públicas tradi-cionais para as artes tendem a manter a distinção. Para garantir a coerência, dever-se-ia adotar es-tratégias semelhantes às propostas para o Estado: uma estratégia de, a partir de uma ação no inte-rior dos campos (via políticas culturais), explicitar seu caráter segregacionista, seus limites, usando o poder que o governo tem para a democratização, tendo como objetivo também sua superação como forma de poder excludente e elitista.

Nesse sentido é importante a incorporação das ar-tes tradicionais como objeto de políticas públicas. Elas possibilitam uma oxigenação dos campos res-tritos das artes e ao mesmo tempo provocam per-turbações. Como pudemos ver anteriormente, as artes tradicionais não estão sujeitas ao formalis-mo, dialogam com o mundo, com outras dimen-sões simbólicas, ao mesmo tempo são uma forma de relação estética que inclui e não opera somente pela lógica do mercado.

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Sobre o ponto de cultura do coco de umbigadaNem bem havíamos assimilado a incrível ex-periência vivida na aldeia Krahô e já estáva-mos comendo tapioca e dançando o coco e o afo-xé em Recife e Olinda! Ainda com os corpos pin-tados de jenipapo, cruzamos o Maranhão e o Piauí e chegamos no estado de Pernambuco, onde está o Ponto de Cultura Coco de Umbigada, coordenado por Mãe Bete de Oxum e próxi-mo objeto de estudo desta pesquisa itinerante. Aqui, o “Ponto” é constituído por uma Rádio Livre,

um Centro Digital e o trabalho com a tradição do coco. Com uma programação diária bem diversificada, mas que prima pelas músicas de tradição afro (co-cos, sambas, rumbas) a Rádio Livre Amnésia - 88.5 surgiu há um ano e meio atrás, quando um grupo de amigos da área da Comunicação se uniram pra gravar os mestres de coco do entorno. A experiên-cia deu certo, a verba pública entrou e hoje a rádio está se expandindo.Também se expandem as ati-vidades do Centro Digital, onde o pessoal da co-

munidade aprende desde o básico da computação e da internet mas também se aprofundam em dis-cussões mais ousadas como o uso do software livre. Quanto às atividades relacionadas ao coco, ofici-nas de percussão, de música e dança, assim como encontros de mestres e “brincantes” acontecem semanalmente. Delicioso foi participar de um dos batuques da terça onde, além da Mãe Bete, tive-mos o privilégio de ouvir cantar Mestre Pombo Roxo, um dos ogãs (os tocadores de tambores das casas de candomblé) mais velhos de Olinda. Segundo Mãe Bete, o coco tem sua origem na tra-dição religiosa afroindígena chamada Jurema, onde entidades africanas como Iemanjá e Oxalá se misturam a caboclos. O coco, conhe-cido também na Jurema pelo nome de “mazu-ca”, seria o lado mais cultural, mais profano da Jurema sagrada. Inclusive uma das entidades da Jurema, o Mané Quebra Pedra, quando “des-ce”, pede que toquem um coco pra ele dançar. Já aquela pisada forte que caracteriza a dan-ça do coco, teria surgido do movimento de pi-sar o barro, numa época em que toda a comu-nidade era convidada a pisar o barro que ser-viria de base para a morada de algum casal Historicamente criminalizado pelas autoridades brasileiras, como tantos outros elementos das tra-dições afroindígenas, o coco é considerado uma brincadeira de velhos, adultos, e crianças, que Mãe Bete, e outros tantos “brincantes”, vêm tentan-do fortalecer. O termo “brincante”, explica ela, é a denominação para aquela pessoa que resolve le-var uma tradição popular como missão de vida. É o mestre, é o cantador...

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como fiZemoS

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Além das informações so-bre as origens deste trabalho fornecidas no “Pré-fácil”, gostaria de relatar um pouco do processo da pesquisa. Falar das idas e vindas, das angústias, das felicidades, das surpresas, dos vários encon-tros com o acaso, das muitas encruzilhadas que apareceram e dos caminhos escolhidos. No mundo acadêmico este tópico poderia ser chamado de me-todologia. Mas, como a ideia é ampliar abrangên-cia, seduzindo leitores de fora dos muros das uni-versidades arrisco chamá-lo de “Como fi zemos”.

A forma de um depoimento pessoal pode ajudar a estilhaçar a imagem que possivelmente se tem do pesquisador como um ser neutro, distante, dota-do de uma racionalidade fria e de uma capacida-de de planejamento que não dá margem ao im-proviso. Se todos os bons pesquisadores possuem este perfi l, creio que não devo ser um bom pes-quisador, pois me comprometi e me envolvi mui-to com meu objeto de estudo. Em alguns momen-tos fui passional, deixei-me levar também pelas emoções e me deparei com situações inusitadas que solicitavam improvisações. O inusitado e o improviso também geraram ótimos resultados. Entendo que a vida é um fl uxo constante e o tem-po todo você se defronta com bifurcações tendo que optar para onde seguir. É importante saber por que optamos por um caminho ou outro, ava-liar e assumir responsabilidades pelas opções. No meu caso, nas decisões que tomei – e tomo – pro-curo uma convergência de um saber-sentido e de um sentimento-sabido (nem sempre encontro). como fiZemoS

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O desejo de mostrar quanto é humano o trabalho de pesquisa é um convite ao mundo da curiosida-de desejada (pesquisa) que no âmbito acadêmico pode ser rigorosa, cativante, séria, divertida, di-fícil e prazerosa. Como a vida.

No papel de professor de artes sempre afi rmo que criar é resolver problemas com limites de recur-sos. Quanto menos recursos, mais criatividade. Na metodologia de investigação creio que é um pouco assim: queremos entender alguma coisa e inúmeras vezes os meios para se construir tal en-tendimento são escassos, o que nos leva a buscar ou criar os meios adequados para essa construção.

oS primeiroS acaSoS e aS primeiraS alteraÇÕeS de planoSQuando terminei o mestrado na UFRS, em Porto Alegre/1999, tinha a convicção de que iria fa-zer o doutorado em estética dois anos depois, em Paris. Retornando ao meu trabalho docente na Universidade Estadual de Londrina (UEL), tudo mudou. A participação no movimento sindical e nos conselhos superiores da universidade, as ati-vidades na Coordenação do Curso de Arte Visual e na direção da Casa de Cultura adiaram meus planos por vários anos. Em 2003 fi z um curso de ecologia humana no INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) em Manaus e depois um curso so-bre metodologia de campo para estudos de quelô-nios (tartarugas) na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. O que me levou à Amazônia?

O coração, minha companheira naquela época fazia um mestrado em Manaus.

Fiquei encantado com aquele mundo e com a cul-tura indígena e cabocla. O INPA pretendia criar um doutorado em humanidades para estudar a relação entre homem e natureza. Fui instigado por um professor a tentar este doutorado. Voltei para o sul pensando em comprar um barco e fi car um ano viajando pelas águas da Amazônia. Que Europa que nada, para mim, naquele momento, as possibilidades de algo novo, criativo, instigante es-tavam na América Latina, especialmente na região amazônica. A sensação era de que tínhamos mais a oferecer à Europa do que receber dela. No entan-to, amigos da universidade me aconselharam man-ter o foco na Europa, diziam-me que eu ainda teria muito tempo para minhas aventuras na selva.

Apesar da vontade de mergulhar naquelas águas cul-turais, priorizei a razão e em 2004 fi z uma viagem com uma grande amiga ao velho continente. Ela su-geriu um roteiro: França, Itália com uma passada rá-pida por Barcelona. Mais uma vez meus planos mu-daram. Conhecer Barcelona e depois Paris foi de-terminante. Poucos dias em Barcelona foram sufi -cientes para eu ser seduzido e desistir da cidade luz. Queria ter a experiência de viver na cidade de Antoni Gaudí. Encontrei um doutorado em escultura bem interessante, que priorizava intervenções no espaço público. Como sou professor de escultura e trabalho com intervenções, achei que a fome tinha encontra-do a vontade de comer: um doutorado em escultura em Barcelona! Tudo certo. Mais ou menos...

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Em 2006 tive que ir a Brasília legalizar meus diplo-mas no Ministério das Relações Exteriores e apro-veitei a oportunidade para visitar outra vez São Jorge (Alto Paraíso - GO) e conhecer o Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros. Uma nova crise! Quinze dias no meio do cerrado vi-vendo com grupos de artes tradicionais de todo o país, pesquisadores e mestres da cultura tradicio-nal, membros do Ministério da Cultura e gente dos Pontos de Cultura recém-implantados me desestru-turaram. Fazia tempo que não sentia a arte tão for-te, tão viva, tão presente, tão inserida no mundo. De novo a pergunta: o que vou fazer na Europa? As coisas estão acontecendo aqui. Voltei determinado a estudar as artes tradicionais em alguma universi-dade brasileira, especifi camente Pontos de Cultura que trabalham com arte tradicional. Já pesquiso po-líticas de cultura há vários anos, o Programa Cultura Viva/Pontos de Cultura me pareceu um ótimo obje-to de estudo, pois se constitui em uma política cul-tural muito inovadora.

Porém, mais uma vez recebi vários conselhos de amigos professores para que eu não deixasse de fa-zer o doutorado na Europa. Um dia, velejando pela internet, entro no site da Universidade Autônoma de Barcelona e vejo um link – Doutorado em Humanidades. Que será? Entro e leio que o curso se propunha “estudar as relações entre arte, sociedade e indústria cultural, visando subsidiar a elaboração de políticas culturais”. Pronto, criava-se a possibili-dade-síntese, viver em Barcelona e fazer o trabalho de campo no Brasil estudando Pontos de Cultura.

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Europeia, que não cobria o trabalho de campo. Se saísse da Europa, a bolsa seria suspensa. O jeito foi economizar bastante. Um ano e três meses viven-do em Barcelona em uma república precária, num quarto de 1,40 por 3 m e lavando roupa na mão em uma banheira. Além disso, meus companheiros de piso não eram exemplos de limpeza e organização – levando-se em conta o padrão brasileiro – mas eram muito queridos e o preço do quarto era bem em con-ta para Barcelona (250,00 euros – 675 reais na épo-ca). Precisava de dinheiro, sobretudo para comprar um carro e equipamentos para registrar a viagem. Apesar da necessidade de fazer economia, no geral, foi um período produtivo e em vários momentos divertido. Mas também tivemos muitos momen-tos de solidão, de angústia, principalmente no in-verno. Várias vezes fiquei deprimido, chorava e me perguntava: o que estou fazendo aqui? Faz senti-do? Compensa? Como posso estar deprimido com uma bolsa, fazendo o doutorado que escolhi e vi-vendo em uma das cidades mais cobiçadas do mun-do? Mesmo em tais circunstâncias, fiquei em alguns momentos bem deprimido, como qualquer pessoa longe da sua terra natal, da família, dos amigos, dos seus costumes e da sua cultura. Triste como qual-quer imigrante.

Esse tipo de relato pode parecer irrelevante no con-texto, ou não. Lembro-me de quando dava aula de metodologia de pesquisa e de meus orientandos. A angústia de ter que montar e desenvolver um pro-jeto de pesquisa pela primeira vez, o desespero che-gando à beira da desistência, a vontade de abando-nar tudo e querer ir plantar tomates na chácara dos

O que estou querendo dizer é que muitas vezes as coisas não são totalmente claras desde o início. A construção do objeto de estudo é um jogo constante entre aquilo que sabemos, queremos saber e as con-dições de que dispomos para saber. É um processo de amadurecimento, às vezes angustiante e muito prazeroso quando conseguimos juntar prazer, ne-cessidade e vontade. Quando fui para Barcelona es-tava impregnado de prazer, necessidade e vontade. Já tinha um projeto de pesquisa bem definido, mas as leituras, as disciplinas cursadas e as discussões enriqueceram muito a base teórica para o estudo das artes tradicionais.

Junto com as disciplinas realizei a primeira etapa do levantamento dos dados secundários, via inter-net, sobre arte tradicional e políticas públicas de cul-tura. A web hoje é um importante instrumento de pesquisa e deve ser bem usada, tanto para obtenção de dados como para buscar artigos acadêmicos.

outroS cauSoS de acaSoS que levaram a Ser como foi.Iniciei o doutorado com uma ideia fixa: fazer uma viagem de carro durante vários meses visitando Pontos de Cultura em todas as regiões do Brasil. Lugares que gostaria de conhecer e ainda não havia tido oportunidade, outros que conhecia e onde de-sejava voltar. Um grande desejo de me embrenhar pelo interior e descobrir o país. Os recursos eram escassos para a empreitada, meu salário da UEL e uma Bolsa do Programa AlBan da Comunidade

Metodologia de Pesquisa Qualitativa, Direito da Cultura, Política Cultural, Consumo da Cultura, Produção e Gerenciamento da Cultura na Era Digital e Produção da Cultura.

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pais. Eu sempre dizia: “Calma, com o andar da car-roça ajeitam-se as abóboras!” Quando nos senti-mos angustiados, achando que o trabalho não vai dar certo, que somos incompetentes e burros, que não vale à pena tanto sacrifício, que não damos pra essa coisa (mundo acadêmico), às vezes cremos que seria melhor ser jogador de futebol, cantor pop ou padeiro, podemos estar cobertos de razão. Ser jo-gador, cantor ou padeiro pode ser uma boa opção, ou não. Temos uma tendência a achar que somen-te nós passamos por esses momentos. E não é ver-dade, creio que quase todos investigadores passam por isso em algum momento. O mais difícil é a pri-meira vez. Depois que se descobre que há luz no fim do túnel, que aquele momento de desespero é só um simples momento, uma fase, o fardo torna-se mais leve. O frio e a escuridão tornam-se mais suportá-veis. O importante é não se desesperar além do li-mite e ter bons amigos.

Mesmo porque, depois do inverno vem a prima-vera! Com ela, os parques, os tambores, as aves e as ávidas pessoas em busca de amizade. Foi quase sempre em clima de primavera que montei a equi-pe de trabalho. A ideia inicial era viajar com mais uma pessoa. Comecei a procurar alguém conheci-do, competente, divertido, solidário e sensível. A primeira pessoa definida era formada em ciências sociais, envolvida com a relação entre o mundo da arte e da sociologia. O segundo membro do grupo eu conheci num parque em Barcelona, trabalhava com foto, design e tinha produzido um documen-tário sobre arte tradicional.

Parecia que a equipe estava de bom tamanho, mas ficamos pensando: se iríamos investir tanto recur-so, seria bom fazer um melhor investimento em registro, principalmente na compra de equipa-mentos de vídeo. Por outro lado, aplicar em bons equipamentos justificava agregar mais uma pes-soa, capacitada tecnicamente para operá-los, prin-cipalmente na captação de imagem e som. O pro-jeto começava a adquirir outra dimensão. Procurar uma pessoa com conhecimento técnico em vídeo, com disponibilidade de tempo, que trabalhasse só pelo prazer da viagem (pois não havia recur-sos para salário) e que, além disso, fosse conheci-da, competente, divertida, solidária e sensível pas-sou a ser nossa tarefa coletiva. Não encontramos. Simultaneamente, naquela época fizemos a sele-ção e os contatos com os Pontos de Cultura que pretendíamos visitar. Decidimos que um membro da equipe assumiria as tarefas videográficas e que iria ser formado pra isso. Fechamos a equipe, pen-sei. No entanto, uma pessoa bem amiga, da área de história, que estudava gestão do patrimônio ima-terial acabou sendo incorporada ao grupo.

Com a equipe formada, passamos a primeira eta-pa do trabalho de campo em Londrina, no final de 2008, que envolveu a pré-produção, cursos de ví-deo e nivelamento teórico da equipe, como também testes de formas de trabalhar entrevistas, já que tí-nhamos um bom equipamento de vídeo digital de alta definição, mas não havia nenhum especialis-ta da área de vídeo. A fase de pré-produção foi bem problemática do ponto de vista financeiro. Parte de minhas economias ficou indisponível por motivos

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ção do equipamento de vídeo, verifi cação da lumi-nosidade, enquadramento, captação de som. Mas, sobretudo, a capacidade de trabalhar em equipe e viver juntos 24 horas por dia.

Uma boa equipe é fundamental para esse tipo de trabalho. Como a arte tradicional é um objeto de estudo complexo – na medida em que se articula com outras dimensões da vida social das comuni-dades – é fundamental um olhar interdisciplinar. Aspectos sociais, políticos, econômicos, religiosos estão intimamente vinculados aos aspectos esté-ticos. É tudo junto ao mesmo tempo. Uma equipe com pessoas de várias áreas do conhecimento, des-de que envolvidas e comprometidas, enriquece a investigação. Possibilita uma refl exão mais abran-gente e complementar.

Porém, não é nada fácil trabalhar com tanta gente durante tanto tempo. Isso exige de cada um mui-to desprendimento, sensibilidade para perceber o companheiro e, além disso, respeito ao outro. Exige certa habilidade de ceder, de lidar com sau-dades, de perdoar, de fazer autocrítica, de despen-der energia no que é essencial e de manter o foco. Ao mesmo tempo, é necessária a capacidade de rir das situações, dos outros e de si mesmo, de chorar para poder voltar a rir, de se encantar com o alvo-recer, as prosas, os cheiros, os sons da noite e os sabores de cada refeição. Capacidade de celebrar e ter prazer. Aprendi que neste tipo de projeto faz bem cativar e deixar ser cativado por um olhar, um sorriso e um cafuné. No entanto, lamento dizer: é muito difícil manter todas essas capacidades e ha-

alheios a minha vontade, no momento em que eu ti-nha planejado dar um lance defi nitivo no consórcio para pegar o carro. Para garantir o transporte tive que fazer um empréstimo bancário e dar um lance muita acima do previsto. Não era possível arriscar fi car sem o veículo. Além disso, gastei mais do que o previsto na compra de equipamentos, no restante da estrutura para a viagem e tive que aumentar os recursos para a manutenção da equipe que passou de duas para quatro pessoas. No total foram inves-tidos mais de oitenta mil reais de recursos próprios. Neste sentido, a bolsa da Funarte foi fundamental para custear as viagens que faltavam para comple-mentar a coleta dos dados, pagar novos técnicos de vídeo e garantir as condições de dedicação para no-vas leituras, análise dos dados e redação dos textos.

Aliás, a ideia do projeto aprovado pela Funarte surgiu na fase de pré-produção do projeto Tateio, tá?. Na época, estava aberto um edital no Promic (Programa Municipal de Incentivo à Cultura de Londrina) e elaboramos uma proposta que foi o embrião do estudo de que agora apresentamos os resultados. Apesar de não sabermos o resultado da avaliação e sem ter certeza se o projeto seria aprova-do no Promic, resolvemos iniciar a coleta dos dados.

Além do tema (envolvimento de jovens artistas ur-banos com a cultura tradicional) despertar meu in-teresse já há algum tempo, fazer as entrevistas era uma forma de capacitar a equipe, pois exigia traba-lho de produção, elaboração do roteiro de entrevis-tas, domínio do conteúdo, capacidade de envolver o entrevistado e questões técnicas como confi gura-

O projeto não foi aprovado pelo Promic, mas conseguimos produzir uma quantidade razoável de material de pesquisa.

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bilidades o tempo todo, durante tanto tempo e em tanta gente. Em alguns momentos perdi todas es-sas capacidade e habilidades. Somos incompletos com nossas virtudes e defeitos: humanos.

Sim, tivemos desfalques. O primeiro antes mesmo de iniciarmos a viagem. A pessoa responsável pela parte do vídeo desistiu um pouco antes da saída. A solução foi chamar outra pessoa, amiga e especia-lista em vídeo, que já havia entrado em contato an-tes perguntando se ainda precisávamos de alguém da área de vídeo e afi rmando que gostaria de parti-cipar do projeto. Aos quatro meses de viagem uma nova desistência. A área de história foi substituída por mais uma pessoa de ciências sociais. O último desfalque ocorreu faltando três meses para termi-narmos a viagem. O campo das ciências sociais fi -cou com um só representante. Completamos a via-gem com três mosqueteiros tateando territórios do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

No início, pensei mesmo que seria difícil um Big Brother a bordo de uma Doblò. Previ uma para-da estratégica no meio da viagem, em Belém. Descanso, férias de dez dias. Cinco meses vivendo quase 24 horas juntos cansa qualquer ser humano. Achei que seria necessário um tempo para não es-garçar as relações. E era necessário sim. Alguns de nós estávamos cansados e estressados. Mas a chu-va impediu. Não havia como ir do Tocantins para o Pará. Estava tudo inundado. Mudamos o rumo, resolvemos ir para Recife. Dois mil km pela frente. Esta não foi a primeira grande mudança de rotei-ro, já havíamos desistido de ir para Itajaí, em Santa

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meio da realização de entrevistas semiestrutura-das específicas.

Por outro lado, as fontes secundárias geralmente não conseguem captar certas sutilezas importantes para compreender a complexidade das relações que nos propusemos estudar. Elas podem ser mais bem percebidas quando estamos no local, falando, inte-ragindo com as pessoas (na universidade chama-mos esse procedimento de técnicas de observação participante). A intenção sempre foi compreender as relações, o que pressupõe compreender os com-ponentes destas relações. Neste sentido, foi funda-mental estudar a partir da observação do contexto sociocultural em que os jovens artistas de Londrina produzem e, sobretudo, o contexto em que os mes-tres das artes tradicionais atuam. A investigação di-reta nas comunidades neste caso  foi, sem sombra de dúvida, um fator determinante para o trabalho.

Outra coisa que gostaria de ressaltar é que a pro-dução de material audiovisual de alta qualidade pôde viabilizar – além de melhores registros que estão sendo utilizados no trabalho estritamen-te acadêmico – a obtenção de uma série de mate-riais disponíveis para serem utilizados na criação de livros, cd-roms, documentários em vídeo digi-tal de alta definição, programas de rádio e expo-sições de fotos. No entanto, tudo isso custa bas-tante dinheiro.

Tinha perspectiva de conseguir algum tipo de fi-nanciamento para o projeto, como não foi pos-sível, informei à equipe que havia recursos para

Tipo de entrevista em que se elabora um roteiro prévio, com perguntas direcionadas para temas específicos sobre que se deseja obter informações, mas que ao mesmo tempo possui um nível de flexibilidade que possibilita incorporar outras informações de acordo com o andar da entrevista.

A observação participante é uma técnica de investigação na qual o pesquisador compartilha, na medida do possível, as atividades, os interesses e os sentimentos de um grupo de pessoas ou de uma comunidade.

Catarina, também devido às inundações, a maior dos últimos anos. Não controlamos muita coisa, muito menos o clima, assim é sempre bom ter um plano B. Folgas no calendário e roteiros alternati-vos são bem-vindos.

Apesar de a falta de recurso criar dificuldades de in-fraestrutura para a pesquisa, a carência possui pon-tos positivos. O primeiro é a autonomia, que nos permitiu mudar rotas, objetivos, cronogramas, sem ter que dar satisfação a ninguém. Como quase a to-talidade da viagem (antes do projeto ser aprovado pela Funarte) foi autofinanciada, não existia um cronograma aprovado externamente e muito me-nos a obrigação de cumprir metas a ferro e fogo. Isso nos deu liberdade de mudar de rumo sempre que entendemos que era conveniente. Podíamos as-sumir os riscos que levassem a desfrutar melhor da viagem. A liberdade nos levou, por exemplo, a tro-car um Ponto de Cultura indígena por outro que não estava nos planos. E foi talvez a experiência mais extraordinária que tivemos: passar vários dias na Aldeia Nova, em plena festa da batata. O acaso nos doou vários causos. A falta de recursos nos induziu também a algumas opções metodológicas.

Aquilo que na academia chamamos de fontes se-cundárias (relatórios, entrevistas, reportagens e outros documentos já existentes) são referências limitadas, uma vez que na maioria das vezes não contemplavam questões pontuais de interesse do projeto, como as ideias sobre legitimação, auten-ticidade e qualidade artística. Tais ideias pude-ram ser mais bem identificadas e analisadas por

Aldeia do povo Krahô, situada perto da divisa do estado do Tocantins com o sul do estado do Maranhão.

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cinco meses de viagem em condições mais con-fortáveis ou oito meses em economia de guerra. Unanimidade, todos optaram por oito meses sem comodidades. A casa seria o carro. Uma Doblò Adventure, cujo bagageiro comportou quatro en-gradados (para mantimentos, utensílios de cozi-nha, minibiblioteca e equipamentos), além das mochilas, sacos de dormir, pandeiro, cavaquinho, clarinete, barracas, lonas, cordas... e atrás, depen-duradas, duas bicicletas. Era possível nos garantir em qualquer lugar.

Procurávamos viajar sempre de dia e por volta das seis horas começávamos a buscar um lugar onde passar a noite. Essa estratégia nos possibilitou fi-car em cidades e povoados inimagináveis, princi-palmente no Tocantins, semiárido nordestino e no Maranhão. Tivemos possibilidade de conhecer lugares e pessoas simples que nos acolheram sem ter nenhuma referência, por pura generosidade. Lugares onde ficaríamos horas e acabamos ficando dias ou onde ficaríamos dias e permanecemos se-manas. Lugares e gente que quando tínhamos de deixar nos debulhávamos em lágrimas comovidas. Em alguns desses lugares tínhamos contatos pré-vios, amigos ou amigos de amigos que também ca-lorosamente nos acolheram. Raras vezes ficamos em hotéis.

O contato direto foi uma opção metodológica, uma necessidade e uma dádiva. Fomos sendo amacia-dos. Alguns de nós introduzidos e outros reintro-duzidos num universo no qual a lógica do capital ainda não se impôs de forma avassaladora, onde o

individualismo é mais ameno, o cotidiano mais se-reno e o terreno da solidariedade dá flores vistosas de cheiro colorido. Lugares onde a pimenta ainda é amassada com sal na horinha de servir e cuja uti-

lidade é tirar a ardência da cachaça artesanal que acompanha o pirão de frango. Dormir onde e como dorme o povo, comer sua rica, variada e saborosa comida, trocar um dedinho de prosa tomando café ou aguardente é uma experiência de sensibilização importante para esse tipo de trabalho. Permite-nos adaptar nossa postura, gestos, tom de voz, lin-guajar, para poder compreender melhor e melhor ser compreendido. Diminui a distância e gera con-fiança. Muitas vezes é nesses momentos mais in-formais que extraímos as melhores informações. Quando nosso parceiro de prosa (informante) está mais relaxado, a conversa corre solta e percebemos riquezas e sutilezas que a intimidação da câmara de vídeo inibe. Nem tudo dá pra ser registrado

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e Se vale pra vida, já valeu o projeto

em aparelhos. Aquilo que foge das máquinas pode ser gravado no coração e na mente simplesmente. Aproveitei para não aproveitar tudo para o traba-lho. Nem tudo é para ser instrumentalizado. É im-portante superar a relação utilitarista. As pessoas são seres com que interagimos, não devem ser re-duzidas a simples objetos de estudo. Há coisas que devem ser aproveitadas desinteressadamente. São para a vida e não para o projeto que algumas situa-ções nos são apresentadas e se tornam válidas.

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Algo constatado nessas andanças com os brincantes: o prazer como elemento fundamental para o “fazer cultu-ra tradicional”. Mais que a religiosidade, mais que o fato de ser promessa, mais que por respeito à memória dos antepassados, é o prazer – do can-tador, do puxador, da comunidade – o maior motivador dos mestres en-trevistados. “É a minha vida, me dá prazer”, diz Seu Amaral, mestre de um dos Tambores de Crioula de São Luis. Também Mãe Bete de Oxum, quan-do entrevistada, dizendo que a importância do Coco de Umbigada era tra-zer alegria pras pessoas. E mestre Amaral, do bumba meu boi Sotaque de Zabumba de Guimarães, que afirma: “Se a vida for só trabalho, aí não presta!”. Para grande parte das pessoas que trabalham com cultura tradicional, a mani-festação cultural é, quando não a única, uma das coisas que mais dão sentido às suas vidas. É o que os move, o que os faz querer viver, o que dá orgulho e o que os tornam importantes neste mundo maluco e desigual.

Isso que dá sentido, isso que dá tesão, tem que ser muito valorizado e consi-derado realmente algo digno de preocupações. Preocupações que gerem ocu-pações, que gerem mais políticas públicas, cada vez mais consistentes e fun-cionais. Porque o já batido refrão dos Titãs (que apesar de batido ouso re-petir aqui) “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte” só tem sido confirmadíssimo nesta nossa jornada pelas manifestações culturais Brasil adentro, e na convivência com aqueles que as vivenciam e produzem.

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Política cultural de

londrina

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Vários estudos publicados (Ortiz, Ferreira, Chauí, Bitar) indicam que a concepção de política cultural que possibilitou a implan-tação dos pontos de cultura e do Promic é uma construção coletiva que foi se formando nas ex-periências do Partido dos Trabalhadores e seus aliados em modernos governos municipais e es-taduais a partir da década de 1980. Neste senti-do, os programas são parte do mesmo processo de ascensão deste grupo de esquerda, já que a ci-dade de Londrina foi administrada pelo PT por 12 anos nas últimas décadas. Tanto o Promic se aproxima do programa Cultura Viva, como as Vilas Culturais (onde atuam os jovens estudados) assemelham-se aos Pontos de Cultura. As Vilas Culturais – financiadas pelo Promic – consistem em dispor estruturas, por meio de recursos públi-cos, para que grupos de artistas e produtores cul-turais desenvolvam um plano de ação cultural. É como um pequeno centro cultural que recebe di-nheiro do município, mas é gestionado por seg-mentos da sociedade civil. Os recursos são des-tinados ao pagamento de aluguel, à reforma e à adequação dos edifícios, bens de capital (equipa-mentos eletrônicos, de luz e som, instrumentos musicais) e o financiamento de um conjunto de atividades culturais previamente aprovadas. As pessoas e instituições responsáveis pelas Vilas Culturais se comprometem a desenvolver um tra-balho com a população ao redor. Todas as Vilas são selecionadas a partir de concursos públicos e, até pouco tempo, ou passavam a compor duas redes coordenadas pela Secretaria de Cultura, a

Rede da Cidadania - com foco na formação cultu-ral e a Rede da Alegria, com foco na circulação e desfrute cultural

Acredito que para complementar a fundamenta-ção de que o Programa Cultura Viva/Pontos de Cultura é, em grande parte, consequência de um processo coletivo deste grupo de esquerda que governa o Brasil, a partir de experiências empí-ricas desenvolvidas em governos locais (cidades e estados) e também para melhor justificar sobre o porquê do estudo da relação entre jovens artistas de Londrina (financiados pelo Promic) e mestres da cultura tradicional do nordeste (vinculados aos pontos de cultura), é importante apresentar alguns aspectos da política cultural de Londrina e o processo histórico de sua implantação.

Como citado anteriormente, a atual política cultu-ral de Londrina foi considerada modelo mundial pelo Observatório Cultural Montevidéu – vincu-lado à Unesco – em 2003, ano em que o presiden-te Lula toma posse em seu primeiro mandato.

Na constituição brasileira de 1988, o campo da cultura ganha um novo status e o país passa a ser considerado como um Estado Moderno de Cultura, onde a cultura passa a ser entendida como direito constitucional. O novo marco cons-titucional, que define uma ação compartida entre os governos Federal, Estaduais e Municipais para a promoção da cultura, exige maiores responsa-bilidades das municipalidades. É neste contexto

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que se inicia o processo que culminará com o atu-al modelo de Política Cultural de Londrina.

No mesmo ano da promulgação da constituição foi criado, por lei municipal, o primeiro Conselho de Cultura da Cidade, com uma composição muito tra-dicional, privilegiando a representação das corpora-ções artísticas vinculadas as belas artes. Mas, ja nes-te momento, o conselho teria um caráter deliberati-vo, normativo, consultivo e fiscalizador. A secreta-ria Municipal de Cultura foi criada em nove de mar-ço de 1992 e no mês de dezembro do mesmo ano foi promulgada a lei para a realização de projetos. Com estas três ações, a criação do conselho e da secre-taria e a promulgação da lei, constrói-se a base so-bre a qual se pode construir a atual política cultural. Cabe ressaltar que a iniciativa desta lei Municipal de Incentivo Fiscal foi de um parlamentar do PT, que no fim de 1992 seria eleito prefeito.

No transcurso de 22 anos (1988 a 2011) é possível di-vidir a construção da política cultural da cidade em três fases. A primeira (1988-1996) é de criação e con-solidação das estruturas institucionais. Depois das três ações básicas citadas anteriormente, em 1993 assume o novo prefeito (que anteriormente havia proposto a lei de incentivo). É um período de regu-lamentação e implementação da lei, de reestrutura-ção da Secretaria da Cultura e de um trabalho mais integrado da Secretaria e no Conselho, que não teve no período nenhuma alteração substancial. A se-gunda fase (1997-2000) pode denominar-se como período de resistência. A Secretaria de Cultura se burocratiza, dificultando o trabalho dos produtores

Governo liderado pelo PT. Em 1991 fui convidado pelo vereador Luiz Eduardo Cheida do PT para ajudar na formulação de uma lei de incentivo à cultura para a cidade, que foi aprovada e sancionada no fim de 1992. No inicio do mesmo ano, o PT me indica para coordenar a elaboração do programa de Governo na área da cultura. A proposta apresentada é quase uma cópia de um texto elaborado por membros de órgaos culturais de cidades administradas pelo PT, a partir de suas experiências, e publicados no livro O modo petista de governar, editado pela Secretaria Nacional de Asuntos Institucionais do Partido, com o objetivo de ajudar nas formulações de políticas setoriais. Em 1993 este mesmo parlamentar toma posse como prefeito e eu vou trabalhar na reestruturação da Secretaria Municipal da Cultura e da lei de incentivo à cultura. O texto do programa de governo é reformulado com poucas alterações e aprovado como política cultural do município ainda no mesmo ano.

Governo de caráter populista que foi retirado do cargo acusado de corrupção.

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culturais, o Conselho de Cultura se extingue, crian-do obstáculos à participação cidadã e a lei sofre al-terações que, por um lado, possibilitou uma maior capacidade de captação de recursos e por outro au-mentou o poder de intervenção da iniciativa priva-da na definição de quais projetos seriam implemen-tados na cidade. Isto porque era possível que uma empresa pudesse descontar, no pagamento de seus impostos, 100% do valor invertido em projetos cul-turais. A terceira fase (2001 até hoje) é a implanta-ção do modelo atual. Neste período o Conselho é criado com as mesmas funções, mas com uma nova composição, extingue-se a lei de incentivo baseada na renúncia fiscal e se cria uma lei de incentivo fun-damentada no fundo público e há uma nova estru-turação da secretaria da Cultura. É esta terceira fase que pretendo fixar mais detalhadamente.

Durante a campanha eleitoral de 2000, o candida-to do Partido dos Trabalhadores (que ganharia as eleições) apresentou uma proposta chamada “Rede da Cidadania” que teria como objetivo articular as políticas sociais de uma maneira transversal tendo como eixo a cultura. Esta proposta exigia uma con-cepção alternativa de relação entre Cultura, Estado e Sociedade Civil; uma nova forma de organização administrativa da Secretaria de Cultura; outro mo-delo de financiamento público, os projetos cultu-rais e novos mecanismos de participação. Como fo-ram (e estão sendo) enfrentadas estas demandas? Comecemos pela primeira.

Parece haver, de fato, uma concepção alternati-va de relação entre cultura, estado e sociedade ci-

vil neste caso. Algumas formulações (FREY, 1999; COELHO, 1997) ajudam a compreender esta con-cepção alternativa de relação entre as três esferas. A atual política cultural em Londrina se aproxima do modelo democrático e descentralizado apre-sentado por Bruno Frey e do modelo definido por Teixeira Coelho como políticas de democratização cultural.

A ideia de relação entre cultura, Estado e socieda-de civil adotado pela política cultural de Londrina possui uma característica híbrida que mescla as-pectos do que Teixeira Coelho denomina de polí-tica de democratização cultural com elementos de política da democracia participativa, já que a ideia de que a produção e consumo cultural são de in-teresse coletivo e devem ser democratizados sem privilegiar modelos predeterminados, sendo a participação popular e a autogestão dos processos culturais elementos centrais para a democratiza-ção da cultura.

A segunda demanda – uma nova forma de orga-nização administrativa da Secretaria da Cultura – é importante para materializar uma nova con-cepção de relação entre governo, sociedade e cul-tura. Principalmente para garantir a estrutura bu-rocrático-administrativa para um ou outro mode-lo de financiamento, para os mecanismos de parti-cipação e para as ações transversais relacionadas. Apesar de a estrutura oficial ainda adotar um mo-delo administrativo tradicional, a Secretaria tem definidos setores para a gerência de novas tarefas, cabendo destacar a Direção de Incentivo à Cultura,

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que fortalece o suporte administrativo ao processo de subvenção aos projetos culturais apresentados à comunidade.

Uma nova forma de financiamento, a terceira de-manda, foi uma mudança radical e é fruto da Primeira Conferencia Municipal da Cultura de Londrina (2001). A comunidade foi chamada para debater a política cultural do município e estabele-ceu um novo modelo de Conselho de Cultura, re-formulando a lei Municipal de Incentivo a cultura que passou de um modelo de renúncia fiscal para um modelo com fundo público. A partir desta deli-beração foi criado o Promic – Programa Municipal de Incentivo à Cultura. Aqui é importante des-tacar duas informações. Uma é que a Primeira Conferência Nacional de Cultura só se realizaria em 2005, quando Londrina já havia realizado duas conferências municipais, antecipando e ajudando a consolidar esta forma mais democrática e parti-cipativa de tomada de decisões. A outra informa-ção é que a mudança de um financiamento basea-do em renúncia fiscal para um modelo baseado em fundo público não foi tranquilo. Como eu já havia estudado no mestrado a política cultural da cidade de Porto Alegre (administrada durante anos pelo PT), que trabalhava com fundo público, fiz, duran-te a I Conferência de Londrina, uma proposta de mudança que não foi bem aceita em um primei-ro momento, mas que contou com a compreensão e apoio do prefeito. A resistência inicial era inclu-sive dos próprios artistas e produtores culturais, que seriam os principias beneficiados com a nova proposta. Atualmente não há nenhuma outra for-

ma de renúncia fiscal para a implantação de proje-tos culturais e ninguém quer voltar ao que era (re-núncia fiscal).

O Promic incentiva dois tipos de projetos: Os Projetos de Produtores Independentes são aqueles que se orientam para o circuito cultural tradicional ou cuja inserção seja comunitária e busque esti-mular a produção artística e cultural nos bairros e regiões da cidade. Em ambos os casos, os projetos devem nascer da iniciativa independente dos pro-dutores culturais. Na apresentação do projeto cul-tural independente, fica o proponente obrigado a oferecer à comunidade uma contrapartida na for-ma de atividades culturais destinadas a universali-zar o acesso à cultura. Já os Projetos e Programas Estratégicos são aqueles que visam a realização das diretrizes da política municipal de cultura, alimen-tando, ativando, potencializando circuitos cultu-rais em benefício da comunidade.

Em todos os casos os projetos são apresenta-dos por pessoas físicas ou jurídicas e avaliados por duas comissões. A comissão que seleciona os projetos independentes é formada por 4 mem-bros titulares e dois suplentes, indicados pelo Conselho Municipal de Cultura; e três membros titulares e um suplente, indicado pelo Secretário Municipal da Cultura. Já a comissão de avalia-ção dos projetos estratégicos é composta por cinco membros de reconhecida idoneidade e ca-pacidade, sendo três indicados pelo Secretário Municipal de Cultura e dois pelo Conselho Municipal de Cultura.

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Depois de aprovados os projetos, assina-se um convênio e dois proponentes recebem os recur-sos diretamente em suas contas bancárias. Ao fi-nal da execução é realizada uma rigorosa presta-ção de contas.

Finalmente a quarta demanda, os novos mecanis-mos de participação popular. Além das possibili-dades de participação da comunidade nas comis-sões de seleção de projetos, que tem, inclusive, o poder de deliberar sobre destinações de recursos, duas instâncias de participação se destacam. A pri-meira é o Conselho Municipal de Cultura, “instru-mento democrático e participativo da comunida-de, com atribuições normativas, deliberativas, consultivas e fiscalizadoras de questões relacionas a cultura”, cuja composição conta com dezenove membros da sociedade civil e um do poder públi-co. Observa-se que grande maioria dos represen-tantes é da sociedade civil e a composição é bem representativa, incluindo não apenas os represen-tantes das tradicionais belas artes, como também de outras áreas da cultura. Cabe ressaltar ainda a possibilidade de apresentação dos consumidores de cultura, por meio dos representantes comuni-tários (sete membros).

A segunda instância é a Conferência Municipal de Cultura, que acontece a cada dois anos (até o mo-mento foram realizadas quatro), a última confe-rência – agosto de 2007 – teve como saldo 60 pré--conferências, envolvendo os segmentos culturais e as comunidades de várias regiões da cidade, para debater e eleger os delegados. Foram habilitados

LEI Nº 8871/2002 (disponível em: http://

migre.me/9l28g)

180 delegados que definiram as diretrizes da polí-tica cultural para Londrina para os próximos dois anos seguintes.

Em resumo, a política pública de cultura de Londrina está baseada na história de organiza-ção e articulação dos agentes culturais da cidade e em um conjunto de outros fatores interrelacio-nados. O modelo de gestão cultural desenvolvido tem enfoque nas necessidades da população a par-tir de um entendimento da cultura como política pública. Os principais pontos deste modelo são: a gestão compartida, que possibilita à comunidade e aos produtores culturais decidirem em conjun-to com o governo; uma estrutura administrativa razoável; uma boa quantidade de recursos (para os parâmetros brasileiros), com financiamento di-reto aos agentes culturais. Além disso, destaca-se um trabalho de inclusão sociocultural que articu-la a produção, circulação e consumo cultural ten-do como orientação a ideia de direito cultural. Esta concepção de política cultural e sua implantação tem relação com outras experiências administra-tivas do PT, que formaram a base da formulação e implementação do programa Cultura Viva/Pontos de Cultura.

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eSPera aí, e o eStado?

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No texto “Artes Tradicionais, Vale a Pena?”, afirmamos que uma relação entre arte e Estado no Brasil, numa perspectiva progressista, pode se entender a arte como uma produção social de interesse coletivo que não deve ficar à mercê da lógica de mercado. Assim, o acesso à arte deve ser democratizado por meio da participação popular e da autogestão dos processos artísticos. Em relação às artes tradicionais, discutimos sua incorporação como objeto de políticas públicas, na medida em que poderiam provocar perturbações nos campos das artes eruditas, estimulando renovações nestes campos.

A proposta deste tópico é identificar e analisar as possíveis relações entre a concepção de política cultural formulada no parágrafo anterior e as vi-sões dos jovens artistas de Londrina e dos mestres de Recife e São Luis sobre a função do Estado, no que diz respeito às artes de tradição oral.

O envolvimento dos jovens estudados com a cultu-ra tradicional ocorreu a partir de uma origem co-mum e por meio de um processo específico de me-diação. O artista Tião Carvalho parece ser o princi-pal elo de conexão destes jovens com a cultura tra-dicional nordestina. Tião Carvalho nasceu no esta-do do Maranhão em uma comunidade tradicional, foi criado por uma família de classe média da capi-tal maranhense, onde iniciou sua formação artísti-

eSPera aí, e o eStado?

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ca. Posteriormente, ampliou essa formação em contato com grupos do cená-rio cultural de São Paulo. Vejamos sua influência.

Com exceção de Marcelo Pinhatari, que em 1994 conheceu algumas manifes-tações culturais do Maranhão, todos os demais jovens artistas entrevistados se envolveram efetivamente com a cultura tradicional do Nordeste a partir de Londrina. O processo de envolvimento inicia-se com a edição do projeto Consertos Matinais da Universidade Estadual de Londrina/UEL, que promo-veu um show com Tião Carvalho, em 2000. A partir deste momento torna-se a principal referência para os artistas londrinenses pesquisados.

O Tião é mestre. Você já esteve perto de um mestre?

Ele é, né? Ele respira isso. [...] Ele é mandingueiro na-

quele sentido, sabe, a capoeira que fala, que só mostra

o jogo conforme o outro vai pedindo? O Tião é assim.

Engraçado que todos estes anos de convívio com o Tião,

2001, quando você fala ‘ah, eu já aprendi o que o Tião

tem pra ensinar...’, ele te ensina o ponto que você preci-

sa, não o que ele sabe. Quando você acha que aprendeu,

tem mais um ponto. E daí você vai vendo que o conhe-

cimento dele é muito grande, só que se eu não chegar

lá eu não vou saber do conhecimento dele, porque ele

Daniela FiorucciAlmaBrasil

Tião Carvalho é de fundamental importância, tanto que

as pessoas que têm este contato com o Tião criam esta

história de ele virar mestre. Ele é uma pessoa muito sá-

bia, vivida, com um talento incrível, e que tem muita fa-

cilidade pra trabalhar com as pessoas. Então a importân-

cia dele é vital. Uma pela bagagem dele. Então você fala,

‘Tião, que é o lelê?’ ‘Ah, o Lelê é lá do Maranhão’, que ele

já conviveu, sabe? E a gente percebe isso porque quando

trazíamos ele uma vez por mês, nesta época tinha um me-

nino de Cabo Verde que fazia intercâmbio, o Antônio, e o

José Luiz (Peixe)Arubatá

Tião perguntou pro Antônio, conta como é Cabo Verde.

E o Antônio explicou e falou sobre o funaná, uma mani-

festação de lá. Tião pegou este funaná, quis aprender o

ritmo, falava com o Cabo Verde, quis aprender o ritmo,

como era a coisa toda, aprender... E você via o interes-

se da pessoa, era uma coisa nova, que ele não conhecia.

Depois de um tempo, o Tião tava cantando funaná, com-

pondo funaná... Então você vê que a pessoa é aquilo, né?

Vive, pesquisa vivendo, é muito legal. Até hoje, sempre

que a gente pode, traz ele, é uma pessoa assim...ímpar.

só vai ensinar pra mim um pouco a mais do que eu sei.

Olha, vou falar uma coisa, no fuá do Retalho... teve dias

de sair chorando de alegria do Tião, de pensar ‘será que

ele tem consciência’, é uma dúvida que eu tenho, se o

Tião tem a consciência do que ele faz, ou se ele faz sem

consciência. De mexer com você. De conseguir falar do

seu problema sem te expor de jeito nenhum, sabe? E to-

car lá fundo, na sua ferida, sem ninguém saber que é de

você que ele está falando. Não sei se ele tem esta consci-

ência ou se é espiritualmente, que é soprado no ouvido

dele, porque é o tempo todo assim.

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O Tião tem alguma coisa de especial, parece que ele é

um mensageiro, designado pra isso, ele veio e plantou

uma semente que brota com toda a força e todo vigor.

Tem que ter uma coisa na maneira de ser, na manei-

ra de passar, ou é uma delicadeza, ou é um cabedal de

conhecimento que joga tudo junto, qual a maneira de

ensinar? Que ele ensina você a brincar brincando. Na

escola não. A gente quer ensinar a brincar da maneira

certa! Ensinando. Sentado. Faz assim, assado. O Tião

tem este talento, além de artista. Você não espera tudo

isso daquele neguinho, né, e o cara vem...é generoso. De

igual pra igual.

Fernando GoesAlma Brasil

O Tião Carvalho, por exemplo, é um mestre que a gente

valoriza muito. Eu, pelo menos, procuro valorizar mui-

to quando a gente traz ele pra cá, divulgar o trabalho

dele como mestre de boi, como músico.

Marcelo PinhatariVila Cultural Brasil

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Como podemos notar é impressionante a admiração e a influência exercida pelo artista maranhense nesse grupo de artistas. No entanto, não chega a ser surpreendente, pois com um pouco mais de atenção podemos perceber que ele contribui com o desencadeamento do processo em Londrina de forma si-milar ao que já havia feito em São Paulo, no Morro do Querosene, no bairro do Butantã, próximo ao campus da USP. Em meados da década de 1980, Tião Carvalho e o violeiro Paulo Freire, os dois músicos do Teatro Vento Forte, alugam uma casa e vão morar no Morro do Querosene. A casa vira um ponto de encontro e de festas que ultrapassam o espaço interno e ocupam a rua. O bumba meu boi, cacuriá e outras manifestações botaram fogo no Queresone. Segundo Tião:

Isso há 21 anos. Então essa coisa com

a comunidade foi tendo esse processo,

acho que é isso aí, foi um processo mui-

to natural, eu diria até inconsciente, a

gente não tinha essa preocupação que a

gente tem hoje. A gente não tinha tanta

certeza que a gente, colocando instru-

mento nas mãos das crianças, adoles-

centes, esse convívio, a música, a arte

ia ser tão forte pra gente lidar com toda

uma situação de risco, porque o Morro

do Querosene nessa época, há vinte e

poucos anos atrás, era tido como um

dos lugares mais violentos da cidade de

São Paulo. Você conhecia o Morro por

questão de violência. Por isso o Morro

era conhecido na cidade. E a gente

transformou tudo isso, eu, a minha ge-

ração transformou tudo isso, através

de música, da arte, do bumba meu boi.

Mas antes a gente não tinha tanto essa

clareza, sabia que era legal, mas essa

clareza a gente não tinha, que ia trocar

os instrumentos pelas armas. Mandar

as armas embora e colocar os instru-

mentos nas mãos deles. Mas foi isso

que aconteceu. Essas mazelas foram se

afastando, através dos instrumentos,

dos pincéis, da palavra, do aconchego,

do carinho, da sinceridade.

Quando Tião vai a Londrina em 2000 já tem um trabalho consolidado. Mais de 14 anos de atividades artísticas no Morro exercitando a habilidade para o trabalho comunitário criativo e o convívio salutar com pessoas de distintos perfis. De imigrantes maranhenses à classe média paulistana universitária. A partir do reconhecimento crescente de suas atuações, ele é convidado para se apresentar no projeto da UEL. Ou seja, é exatamente uma instituição pública

Entrevista concedida em dezembro de 2008.

Page 95: No Caminho dos Encantantes

94 95

de cultura que desencadeia o processo. Neste sentido, há, por parte dos jovens artistas de Londrina, um reconhecimento da importância das políticas públi-cas para garantir o acesso às manifestações artísticas tradicionais do nordes-te. A seguir alguns posicionamentos deles sobre o papel do Estado:

Não tem que existir o Estado e o povo, o Estado tem que

existir para o povo e vir do povo. (O Estado) Trabalha

com dinheiro da população, e a maior parte da popula-

ção não tem dinheiro, então tem que voltar pra popula-

ção, e isso já deveria ter voltado há muito tempo atrás.

[...] O Estado sempre se voltou muito pouco pra cultura

popular, falava, vamos valorizar as artes, mas valorizar

o quê? Valorizava outro tipo de arte, teatro como se fa-

zia na Grécia, musica erudita principalmente.

Daniela FiorucciAlmaBrasil

[...] A gente gostou muito do que viveu e quer que as

outras pessoas também passem pela mesma coisa,

pode ser uma mera... satisfação do ego, né? Mas acho

que a cultura popular tem uma função. Acho que algu-

ma coisa aí ela vai mexer, vai tirar, vem com uma vi-

bração boa, legal, uma coisa que a gente tá carente e

que de uma maneira... a gente acha também que o po-

der público trabalha com o dinheiro desta população,

né, a gente acha que é uma obrigação do poder público

propiciar este momento.

Fernando GoesAlma Brasil

Inúmeros fatores podem

acabar com teu trabalho.

Por exemplo, uma coisa

que está acontecendo ago-

ra é o lance da transição

política, por exemplo, se

a gente pega um político

que não vê o trabalho de

política cultural com bons

olhos, ele pode sabotar

este trabalho, entendeu?

Marcelo PinhatariVila Cultural Brasil

Eu acho que... como o Tião, que é de vital importância,

eu acho que o poder público também. Porque eu tive

acesso a estas manifestações populares através do po-

der público, através de projetos, da universidade, da

Secretaria de Cultura, do Governo do Estado... O meu

acesso foi através deles.

José Luiz (Peixe)Arubatá

Page 96: No Caminho dos Encantantes

A UEL foi importante por possibilitar grande parte do acesso inicial a esse tipo de arte por meio de seus projetos, inclusive do Festival de Música e por atrair um grande contingente de estudantes que foram e/ou são protagonis-tas desse movimento. Porém, se a universidade desempenhou tal papel, a pre-feitura, por intermédio do Promic, é citada como instituição importante para a consolidação e ampliação das ações.

Isto (os vários projetos ligados à cultura tradicional) é

uma consequência de uma política cultural muito avan-

çada, tanto que Londrina é uma referência de política

cultural pro Brasil inteiro e até no mundo, se você for

parar pra pensar.

[...] eu tive sorte, de cair, despertar pra cultura popular

em Londrina, porque aqui esta política cultural funcio-

na, Secretaria, Universidade, Casa de Cultura, então...

acho que o caminho é este, sem este apoio, a coisa não

estaria no pé em que está não. Estaria muito aquém.

Tanto esta onda que a gente viu, todo mundo brinca-

va ciranda, não era só a gente, quanto esta coisa do po-

der público, acho que tem um momento histórico den-

tro disso, você vê desde o Ministério se abrindo pra cul-

tura popular de alguma forma, as leis municipais, então

acho que é um momento que casa muitas coisas.

Então a gente começou a colocar projetos culturais do

Promic, de montagem com ele (Tião Carvalho), pra

conviver com ele e trazer ele de volta também, botar

ele na área.

Daniela FiorucciAlmaBrasil

Fernando GoesAlma Brasil

Marcelo PinhatariVila Cultural Brasil

José Luiz (Peixe)Arubatá

Page 97: No Caminho dos Encantantes

96 97

Da mesma forma, os mestres, de um modo geral, reconhecem a importância do apoio do poder público, porém ressaltam várias dificuldades e têm uma po-sição bem crítica sobre a relação que mantiveram e atualmente mantêm com os vários governos com os quais têm se relacionado.

[...] Tô achando é que (o governo) deve incentivar mais

a cultura, ol har mais o lado de quem não tem con-

dições de manter a cultura, que é muito forte e mui-

to boa, e apoiar. Incentivar e ter um capital de giro pra

que a pessoa possa se dirigir. Eu mesmo sou uma pes-

soa que não tem condições de manter este espaço cul-

tural. Compramos, com esforço, junto com Beto, se tem

o local porque não ajudarem? [...] Porque eu não tenho

mais condições de colocar o meu dinheiro neste espa-

ço cultural.

Lia de Itamaracá

Page 98: No Caminho dos Encantantes

Mãe Bete de Oxum, referindo-se ao apoio do Ministério da Cultura para a im-plantação do telecentro do Ponto de Cultura do qual é coordenadora, afirma que na perspectiva da apropriação das tecnologias e das redes foi e é impor-tante o apoio recebido. No entanto, alerta que agora, apesar de entender que é possível construir muita coisa com o Estado, não quer depender dele, pois não se pode ficar refém dos governos, é preciso criar corpo, na medida em que não se consideram Estado e sim sociedade civil organizada.

[...] essa coisa do edital é muito bom, por um lado, mas

ela vicia por outro. Por exemplo, em relação à música.

Tenho discutido aqui com os mestres... É bem da ver-

dade que a gente tem que ter edital, (para o) universo

da cultura e da música de raiz. Mas... e acredito muito

mais, num estúdio que a gente tem aqui. A gente gravou

10 CDs no ano passado, o Pombo Roxo cantando Zeca

do Rolete, um grupo de coco lá do Alto de Moura de

Caruaru. Pé quente, Coco de Mazuca, só voz e o ganza-

zinho. Afoxé, a ciranda de acalanto. A gente cantou nes-

ta perspectiva de entender a dimensão desta música, da

memória que a gente carrega, gravar isso. Claro que não

com as condições ideais, mas... E eu joguei também, e

aí a gente vai ficar refém eternamente dos grandes es-

túdios? É um mercado tão grande. Quando você vai pra

determinados editais, aí tem lá, banca, que vai avaliar

o critério (técnico). Por exemplo [...] esse CD aqui não

tá esteticamente no nível que este pessoal que faz a

avaliação... tá entendendo o gargalo que é isso aí? Mas

essa música tem valor estético também, só que em ou-

tro contexto. E a gente vai ficar refém dos grandes estú-

dios, a música só e boa quando tem esse recorte, tá nes-

se universo? Porque se for assim, também a gente não

vai gravar nada nunca. Nem a nossa memória mesmo a

gente vai gravar. Aí você fica refém de edital, agora, aos

poucos, três, cinco anos pra cá tem gravado (uns CDs

com o pessoal de uma produtora), [...]. Então por um

lado é bom, a gente precisa de uma política pública aí

que garanta a valorização desta cultura, tem que ter um

CD de qualidade, gravado num estúdio, sabe? Que não

fique aquela coisa que você não escuta a pegada [...]. E o

que a gente pode buscar dentro de casa como memória

do futuro, como é que fica? Então é um gargalo aí que

eu deixo pra nós refletirmos um pouco. Mas concreta-

mente aqui, depois que a gente recebeu os recursos, a

gente montou as oficinas, hoje a gente tem 10 pesso-

as trabalhando aqui, ganhando salário. Dez, numa crise

dessa, a gente tem 10 pessoas aqui segurando a onda, e

com a autoestima grande, não é brincadeira. Mudou. E

tem que mudar.

Mãe Beth de OxumCoco de Umbigada

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Page 100: No Caminho dos Encantantes

Mestre Humberto do Boi Maracanã (Maracanã/São Luis) indagado sobre qual o papel de uma prefeitura ou governo de estado em relação às manifestações como o bumba meu boi diz que é necessário ter “brio, vergonha” e criar uma secretaria, um ministério de cultura e órgãos de cultura popular.

Mestre HumbertoBoi de Maracanã

E o compromisso de fazer, não é ajudar, (que) já par-

te pra esmola. E apoiar com sinceridade, substancial-

mente. Eles pensam que pagar o cachê é o suficiente

e não é. Eles têm compromisso demais. O turista che-

ga, olha essas brincadeiras bonitas, cada uma no seu

estilo, mas todo mundo caprichando. Mas eles deve-

riam dar apoio, além de um cachê digno. Apoio é criar

uma verba. Quanto custa o boi pra sair, 100.000 reais?

Olha, 100.000 nós não temos condições, mas temos 80.

Pronto! Já era um apoio. E pagar o cachê. O cachê que

eles pagam hoje, dois mil e seiscentos reais, custava há

A crítica do Mestre Afonso do Maracatu Leão Coroado também é bastante contundente. Quando questionado sobre o que os governos deveriam fazer pra dar melhores condições dos Maracatus, afirma:

cinco anos atrás, quando o ônibus custava 90 reais, até

60 [...] Hoje eles pagam este cachê e o transporte custa

600 reais, o ônibus! Com a quantidade de ônibus que

tem, toda vez fico com débito. Por quê? Porque o que

leva todo o dinheiro é o transporte. Ficamos devendo às

lojas onde compra a indumentária... e eles (o governo)

não têm isso. O papel deles é esse: cria. Eles não criam

dinheiro pra roubar? Encher os canecos? Milhões e mi-

lhões? Por que não cria esta secretaria, não cria o di-

nheiro que dá pra manter isso (os bois)? Onde é que tá

a cultura do Brasil?

Rapaz... a intenção deles (governo) é acabar, não é de

preservar, porque se quisesse preservar tinham poder

pra preservar e criar em outras coisas. Então querem

acabar com o tradicional pra criar o estilizado. E a pró-

pria prefeitura aqui hoje que obriga a mudar. Porque se

eles mantêm um concurso onde tua agremiação é obri-

gada a desfilar, se você tá num concurso, é pra ganhar.

Aí vem seu coirmão, muda as coisas e é campeão. Você

que vem do tradicional perde. Aí você tá na guerra da

competição, vai lá e se iguala a ele. Outro que vem atrás

vai querer se igualar a você. E taí... é isso que eles tão

fazendo e tá acabando. Você encontra maracatu com

timbau, atabaque, até com odalisca. E são os campeões.

Então é uma prova de que a Prefeitura quer acabar. A

gente achou que não devia participar destes concursos,

então tirei o grupo. Eles que são os culpados disso. Não

é ninguém não. Tudo que eles fazem, dá aquela jogada

pra dizer que deu, que fez, aí o pobre todo se anima com

aquilo, só que embaixo tem uma casca de banana que

vai te puxar.

Mestre AfonsoMaracatu Leão

Coroado

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100 101

Todos esses mestres, com exceção de Mãe Beth de Oxum, têm uma idade mais avançada e uma vivência de luta para manter suas atividades artísticas que permitiram relacionamentos com governos – nos níveis municipal, estadual e federal – de vários matizes ideológicos e em épocas muito distintas. Eles pos-suem histórias de vida muito diferente das histórias dos jovens de Londrina. Os mestres, de um modo geral, viveram o exercício de seus ofícios transitando em modelos de Estado de caráter patrimonialista (com políticas de dirigismo cultural) e neoliberal (com políticas de liberalismo cultural). Atualmente vi-vem, no âmbito federal, um modelo de Estado e uma política cultural em ges-tação. No entanto, nos âmbitos estaduais e municipais eles se relacionam com governos de matrizes ideológicas diferenciadas.

Já os jovens de Londrina iniciaram seu envolvimento com a cultura tradicio-nal nordestina no momento em que o Partido dos Trabalhadores assumiu, pela segunda vez, o governo da cidade. O mesmo grupo político é reeleito em 2004 e o PDT, com o apoio do PT no segundo turno, assume a prefeitura em 2008, sem alterar substancialmente a política cultural do município. Ou seja, a relação desses jovens com o Estado, na esfera municipal e federal, é quase que integralmente vinculada à mesma concepção de Estado e política cultural. Um modelo de Estado que propõe a democratização dos processos decisórios, busca justiça social e atua efetivamente no crescimento econômico por meio da distribuição de renda, e que busca implantar um mescla de política de de-mocratização cultural com política da democracia participativa.

As diferenças apontadas podem explicar o posicionamento marcadamente mais crítico dos mestres. Quase todos relatam processos de perseguição de agentes do Estado contra as manifestações artísticas que participam.

Ver primeiro capítulo.

Mestre AfonsoMaracatu Leão

Coroado

Você quer ensinar um grupo dentro da comunidade,

quer repassar as coisas, tá lá com o vizinho tocando. E

quando você vê, para o carro da polícia na tua porta que

diz “encerra aí que tá incomodando.

Page 102: No Caminho dos Encantantes

O mestre do Boi de Maracanã, depois de discorrer sobre a falta de apoio ins-titucional adequado, alega que apesar das dificuldades continua fazendo boi porque a resistência faz parte da história.

A gente tem que mudar esta sociedade que ela tá de bo-

beira, a gente tem que mudar muita coisa, principalmen-

te no universo da cultura popular de matriz africana, né?

Já conviveu com muita intolerância pública, muita into-

lerância do Estado, da lei inclusive, que proibiu. Então

hoje a gente tem que estar inclusive no Estado mesmo,

[...] se faz, porque tá no sangue da gente, não tem como

não fazer, e é em nome de nossos antepassados que a

gente faz. Teve uma época que o boi foi proibido de ir na

cidade, de existir. Os grandalhões daquela época, não sei

que época, mas existe no arquivo da Secretaria da Cultura

um jornal que foi de um jornalista da época, quando o go-

verno, os mandantes, proibiram o boi. Porque era uma

ameaça, preconceito.Vinha daqui, se hoje isso aqui ainda

rural, e naquela época? Era muito rústico, caboclo de pé

no chão, ninguém ia pra cidade calçado, não tinha nem

dinheiro pra comprar sapato. Então brincava boi descal-

ço. Pisava mesmo. Eles acabaram com o boi, “negros, su-

jos, fedorentos, não têm que existir”. Primeiro acabaram

com o boi. Passou uns anos e eles ficavam todos os anos,

quando chegava na época de São João, todo mundo fica-

va... ‘E aí, vai ter boi?’ ‘Não... não se faz’. Depois resolve-

ram, vamos fazer. Não existia a matraca, a matraca veio

como arma. Então vamos fazer e vamos armados, cada

um procurou fazer sua matraca. Se eles vierem pra cima

da gente agora dizer que o boi não sai nós arrebentamos

eles com as nossas matracas. Tá lá no jornal, registrado

não sei que século. Tenho uma amiga, Joila Moraes, in-

telectual dessa área de cultura, trabalhou muito junto,

ela que me deu esta informação. Eles voltaram com as

matracas, com este propósito de lutar. E ficou até hoje.

Depois houve um chefe de polícia que proibiu o boi en-

trar na cidade. Esse eu ainda alcancei. E depois entrou

um prefeito, senador, governador do estado, prefeito, ele

proibiu que o boi brincasse no dia depois de São Pedro.

Veja bem o quanto era safados!

Mestre HumbertoBoi de Maracanã

Mãe Beth de OxumCoco de Umbigada

compartilhando a política pública e dizendo como é que

têm que ser as coisas também. Porque essa coisa do com-

partilhar às vezes está muito distante, né? Essa coisa do

Estado compartilhar e tal, mas às vezes fica distante. Se

o cara não tiver, por exemplo, a compreensão da religio-

sidade e da cultura, ele não vai entender certas coisas.

Esta última frase dita por Mãe Beth revela outra preocupação dos mestres com a relação das artes tradicionais e os governos. Muitas pessoas que traba-lham nos governos não têm sensibilidade, formação ou boa fé (defendem ou-tros interesses) para entender as muitas dimensões que perpassam tais ma-

Page 103: No Caminho dos Encantantes

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nifestações culturais. Nas entrevistas, dois aspectos a esse respeito são bem realçados. O primeiro pode ser identificado nas condicionantes burocráticas que exigem um nível de institucionalização para o apoio governamental. Tais condicionantes na maioria das vezes confrontam a lógica, os interesses e a tradição das artes tradicionais. Isso pode ser, por exemplo, observado na se-guinte fala:

Queriam tornar os terreiros de candomblé inteiros fi-

lantrópicos. Negócio de raiz, tradicional: aquela batalha

vem dos teus pais, teus avós, aí cria..., ficaram arretado

comigo. E aí, mestre? Meu terreiro não vai não. Porque

não? Vai não. Pra eu fazer isso aí vou ter que criar esta-

tuto, fazer assembleia, criar uma diretoria. O diretor do

meu terreiro é os orixás! Não sou eu! Eu sou emprega-

do deles. Então quando for fazer um toque, o presiden-

te que vai dizer que tem que fazer, o santo não mais.

Faz a assembleia, o pessoal decide que vai tocar naquele

dia, aí não vai consultar os orixás nem nada. Ou então,

quando fizer reunião, chama Xangô, que é o patrão, pra

assinar ata, né? É um meio de acabar. Porque mesmo

sendo filantrópico, você tem que declarar, que estar em

dia com FGTS, mesmo que não pague nada, se você es-

queceu de declarar, ferrou-se, vai ser multado.

Mestre AfonsoMaracatu Leão

Coroado

Page 104: No Caminho dos Encantantes

Quando eu fui assinar, eu vi que o projeto (para ser

Ponto de Cultura), não tinha nada a ver. Ela queria que

eu fizesse coco na Casa da Cultura, e disse “Tá vendo

que não tem sentido você fazer o coco lá no terreiro, lá

em Guadalupe, lá em Olinda? O Ministério não vai en-

tender esta dimensão, na Casa da Cultura vem muito

gringo, turista, e você vai mostrar o coco e tal”.

O segundo aspecto se refere à perspectiva de instrumentalização da cultura para as atividades de turismo.

Fizeram uma prévia da Noite dos Tambores (Silenciosos)

agora aqui em Recife. Aí na segunda-feira eu disse, da-

qui a pouco vai ter prévia da Sexta-feira Santa, do Natal.

É a imposição do rico. Eles não querem ficar ali porque

não tem camarote, se tivesse camarote com uísque fi-

cava. Mas não tem. Aí foram, buzinaram no ouvido do

Conselho de Cultura, o pessoal da Prefeitura, aí então

bora fazer uma prévia pros turistas verem e o pessoal de

classe média alta. Foi um sucesso. Cinco horas da tarde,

na praça. Aí me ligam, eu falei ‘não vou não’. E não fui

não. Mestre! É mil e duzentos e cinquenta reais... Não

vou não. Aí começam a me pisar por conta disso, né? Eu

não aceito mesmo. Se for pra massacrar a minha cultura

e a minha religião hoje eu não aceito. Não vendo mes-

mo. Vê se tem cabimento isso?

Mestre AfonsoMaracatu Leão

Coroado

Mestre HumbertoBoi de Maracanã

Eles pensam que pagar o cachê é o suficiente e não é.

Eles têm compromisso demais. O turista chega, olha es-

sas brincadeiras bonitas, cada uma no seu estilo, mas

todo mundo caprichando [...] Que é um problema tam-

bém, cada dia três apresentações, vai a mesma quanti-

dade de transporte.

Mãe Beth de OxumCoco de Umbigada

Page 105: No Caminho dos Encantantes

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Aqui aparecem bem claras as influências da política de liberalismo cultu-ral. A arte tradicional deve ser valorizada com meio de atração turística. Toda dimensão de fé, religiosidade, resistência política contra a históri-ca opressão, identidade cultural e dos valores simbólicos deve ser redu-zida para que prevaleça o espetáculo descontextualizado como produto de entretenimento palatável ao gosto medíocre dos turistas, que, por sua vez, se sentem no direito de usufruir de “um serviço cultural” condi-zente com seu status de turista. Tudo deve ser bonitinho e confortável para que as fotos e os vídeos possam ser mostrados com satisfação aos familiares e amigos.

Cabe frisar que os jovens artistas de Londrina, apesar de desenvolverem suas atividades em um contexto no qual a política cultural é diferencia-da, têm consciência destas dificuldades e contradições, seja por meio dos estudos acadêmicos, das viagens que fazem ou pelos contatos que passa-ram a ter com os mestres. Além disso, Londrina não está, e nem poderia estar, imune às contradições do mundo capitalista e da política

Aqui, a cultura tradicional, ela é por etnia, por guetos.

Japoneses, alemães na warta, gaúchos no CTG. E na rua

não rolava nada. Pra gente é o principal espaço onde as

coisas devem acontecer, e foi aí que a gente procurou

usar a política cultural do município pra isso. Porque

alguém bancando isso você pode trazer com melhores

condições. A gente não poderia trazer Tião Carvalho se

alguém não pagasse passagem, hospedagem, alimenta-

ção e o preço que ele cobra pra fazer isso. Não é impres-

cindível, o Estado não é imprescindível nem pra fazer

nem pra manter a cultura tradicional, pelo contrário.

Aliás, isso é uma coisa que a gente está vivendo agora

e vai sofrer as consequências daqui a algum tempo. Faz

muito pouco tempo que o Estado começou a bancar as

manifestações da cultura popular. Isso é bom por um

lado e ruim por outro, estes dias vi o depoimento de um

cara questionando, um kalunga, lá de perto da Chapada

dos Veadeiros... O Estado estava começando a chegar na

terra deles, com luz, com água, tudo. Então eles tinham

a cultura deles independente do Estado, tudo precário,

sob o ponto de vista da civilização. Econômico, do bran-

co. A única coisa industrializada que eles tinham den-

tro da casa era uma lata de azeite. O resto, barro, pedra,

pau. Aí... agora, depois de alguns anos, isto estava che-

gando [...] Agora vi um comentário de um cara na mídia,

dizendo que a tiazinha lá do kalunga não estava mais

utilizando a erva medicinal, porque ela recebe o Bolsa

(família) e vai na farmácia comprar. Não está mais fa-

zendo a farinha, o pão. Quer dizer, no que isso vai dar

eu não sei.

Fernando GoesAlma Brasil

Page 106: No Caminho dos Encantantes

Os fragmentos dos discursos dos jovens artistas de Londrina e dos mestres de Pernambuco e do Maranhão revelam coincidências sobre o papel do Estado, que são corroboradas pelas várias situações que vivenciamos ao longo de nos-sa viagem. Todos apontam a necessidade de apoio do Estado às manifestações das artes tradicionais, ainda que seja no sentido de não criar obstáculos ao de-senvolvimento do trabalho.

A segunda coincidência refere-se às críticas, em geral às formas como os go-vernos têm tratado as manifestações artísticas tradicionais. Ou seja, os jo-vens e maestros têm a percepção de que a intervenção do Estado tende a ini-bir a inovação e a diversidade na produção.Os conteúdos e as formas das crí-ticas direcionadas aos governos apontam, a nosso ver, para o modelo de po-lítica cultural esboçada no início deste texto: a arte é uma produção social de interesse das pessoas que não deve ser submetida à lógica de mercado. Neste sentido, o acesso à sua produção e ao seu desfrute deve ser democratizado sem privilegiar modelos predeterminados, ou seja, incluindo a arte tradicio-

Então se você quer participar de um ritual indígena

você participa, fazer boi , faz, capoeira, faz. Tudo é coisa

de trabalho e verdade, verdade que você tem dentro de

ti, se você faz com o coração você faz. E a discussão era

essa: ‘Pô, mas vamos trazer uma coisa de fora pra tra-

balhar num ambiente cultural que não tem nada a ver

com isso?’ Eu falava que nós estamos trabalhando ele-

mentos de dança, música, que são elementos da cultura

brasileira, que as pessoas vão assimilando com o tem-

po. (O pessoal) batia de frente [...] também, essa coisa

do... como era o termo mesmo? Resgate. A gente falava

de resgate de cultura popular, eles falavam que não era

resgate, que resgate seria trabalhar uma coisa que já es-

tava ali, no União da Vitoria e tal. Então... Isso foi um

processo de desgaste do grupo, acabou meio que esva-

ziando o debate. Marcelo

União da Vitória é um bairro periférico de Londrina, escolhido por várias pessoas ligadas à cultura tradicional para montar uma brincadeira de Bumba Meu Boi.

Marcelo PinhatariVila Cultural Brasil

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nal. E mais, as pessoas devem ter o direito de participar das decisões e das atividades, inclusive para garantir a autogestão, sem tutela, dos processos ar-tísticos. Estas são condições fundamentais para o exercício da cidadania cul-tural, bem como para a potencialização das artes tradicionais para além dos reducionismos verificados nas políticas de dirigismo e liberalismo cultural. Afirmamos anteriormente que cabe ao Estado criar condições, estimular, ga-rantir a participação popular e a autogestão dos processos artísticos.

Ah, faltou discutir incorporação das artes tradicionais como objeto de políti-cas públicas e de que forma elas poderiam provocar perturbações em outros campos das artes. Tudo bem, vamos tratar de alguns assuntos que podem nos ajudar nesta tarefa.

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AT 109

É necessário considerar que o atu-al fenômeno urbano de revalorização e ressignifi-cação das artes tradicionais formam parte de um contexto mais amplo que denominamos nova or-dem econômica mundial. Na atualidade, acelera--se o processo de globalização econômica que, por sua vez, está relacionado ao desenvolvimento das novas tecnologias e à expansão dos meios de co-municação de massa que propiciam a circulação da informação à uma velocidade jamais antes imagi-nada. Este processo, como vimos, aparentemente cria, ou melhor, amplia as possibilidades de inter-câmbios culturais.

Entretanto, isto se assemelha à aparência. Na re-alidade, o que mais se impoe é uma tentativa de “mundialização” da cultura do consumo. Os inte-resses do mercado para estabelecer um gosto mé-dio, bastante propício ao consumo de bens cultu-rais produzidos e distribuídos em massa, geram a reação contrária: a valorização das experiências particulares e diferenciadas, da diversidade cultu-ral e daquilo que se aproxima mais ao artesanal.

Dialeticamente se intensifica a luta pela proteção do que ainda não foi totalmente alcançado pela

lógica do capital, tanto no que se refere ao mun-do natural quanto ao mundo cultural: o ambiente natural menos modificado e as culturas tradicio-nais. Parece que o atual interesse dos jovens de classe média urbana de Londrina pelas artes tra-dicionais não é alheio a este contexto. Estes jo-vens possuem recursos (capital cultural específi-co) que possibilitam o acesso a algo que é escasso em seus contextos: experiências pessoais e esté-ticas que estão mais além dos interesses da in-dústria e dos mercados culturais convencionais de seus grupos sociais.

Estes setores atuam a partir do que Néstor García Canclini defende como culturas híbridas. Segundo o autor, este é um conceito que busca expressar o atual movimento cultural em que se dá uma dissolução das fronteiras entre formas de cultura antes vistas como distintas. Os limi-tes entre a cultura erudita, popular, e de massas, a artesanal e a industrial, a tradicional e a tecno-logia de ponta, a que possue uma identidade e a globalizada, tornam-se permeáveis. Neste senti-do, a hibridação refere-se ao processo pelo qual uma manifestação cultural, ou fragmentos desta manifestação, desprendem-se de seus contextos

AutenticidAde

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originais, migram até outros contextos culturais e interatuam com outras manifestações ou frag-mentos culturais de origem distintas.

A nova combinação de manifestações e fragmen-tos culturais origina novas práticas culturais. “Uma conseqüência da hibridação é a desterrito-rialização, fonêmeno onde as expressões culturais se desvinculam de seus espaços e tempos originais e são transplantados em outros espaços e tempos, mantendo aproximadamente as mesmas caracte-rísticas iniciais” (COELHO, 1997, p. 125). Quer di-zer, desterritorialização é o processo pelo qual

Os modos culturais se separam de seus territó-rios de origem, eventualmente apagam todos os traços distintivos relacionados com um territó-rio em particular, e incorporam traços de outros territórios dos quais se propõem representações adequadas (ou ao menos são assim consideradas). Denomina-se desterritorializado tanto o modo cultural que incorpora um território de aportação como o modo cultural assim deslocado (COELHO, 1997, p. 150).

Em resumo, a indústria e o mercado cultural, inse-ridos no processo de globalização, condicionaram o surgimento de culturas híbridas que geram fenô-menos de desterritorialização.

Grande parte das características de tal fenômeno não é novidade, pelo contrário, é a dinâmica da cultura em si mesma. Não existe cultura sem inter-câmbio. A mudança da cultura ocorre por meio dos

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intercâmbios culturais. O que hoje chamamos arte tradicional foi, em determinado momento, dester-ritorializado e recombinado no território brasilei-ro. Foi inovadora e transgressora em suas origens. Fragmentos da cultura ibérica e africana cruza-ram o Atlântico, rearticularam-se e interatuaram com fragmentos da cultura indígena, originando o bumba meu boi do Maranhão. Coroações de reis africanos e portugueses se recombinaram nas ori-gens do maracatu. Danças medievais europeias encontraram, no movimento das ondas do mar de Pernambuco, o pretexto para se transforma-rem em um belo balé circular que move e ameni-za a espera pelos homens que se lançam ao oceano buscando peixes todos os dias: ciranda. Indígenas e negros, provavelmente, em franca sinergia, dan-çaram juntos desde e por muito tempo, para que muitos de nós possamos “cocar” hoje. Neste senti-do, a novidade não é o fenômeno dos intercâmbios culturais na contemporaneidade, se não a forma, o sentido, o volume e a lógica dos intercâmbios culturais na contemporaneidade, redimensiona-das pela globalização econômica e pelo desenvolvi-mento das novas tecnologias de registro e difusão da informação.

Como afirma Eric Hobsbawn (1997), a tradição é uma construção social que responde a interesses de determinados grupos em determinados contex-tos sociais. Nada é autêntico ou tradicional a prin-cípio. São as forças sociais que atribuem o selo de autêntico ou tradicional a determinadas manifes-tações culturais, e o fazem porque existem interes-ses em campo. Hobsbawn faz, inclusive, uma im-Tocar, dançar e cantar Coco.

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portante distinção entre costume e tradição, so-bretudo as “inventadas”. Para ele, tais tradições são “reações ou situações novas que, ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou es-tabelecem seu próprio passado através de uma re-petição quase obrigatória.”

A “tradição” neste sentido deve ser nitidamente diferenciada do “costume”, vigente em socieda-des ditas tradicionais. O objetivo e a característi-ca das tradições, inclusive das inventadas, é a in-variabilidade. O passado real ou forjado à que se referem impõem práticas fixas (normalmente for-malizadas), tais como a repetição. O “costume” nas comunidades tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, se bem é certo que por exi-gência deve parecer compatível ou idêntica ao que a precede. Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sensação de que o que a precede, de continuidade histórica e direitos conforme o expressado pela história [...]. O “costume” não pode dar-se ao luxo de ser invari-ável, porque a vida não é assim, nem as sociedades tradicionais (HOBSBAWM, 1997, p.10).

Qualquer tentativa artificial de manter nossa arte tradicional imutável está destinada ao fracasso, pois a imutabilidade é a origem da desaparição. As artes tradicionais se manterão vivas, encantadoras e com capacidade de encantar sempre que tenham sentido para os grupos que a mantém. Quando não tenham, desaparecerão ou se transformarão em outras manifestações, como sempre aconteceu.

Em geral, os jovens artistas de Londrina e os mes-tres com o qual temos entrado em contato têm concepções que se aproximam à interpretação so-bre a tradição e a autenticidade que acabamos de expor: o tradicional e autêntico cantador de bumba meu boi, por exemplo, é uma inovação (na forma e no conteúdo) das maneiras de atuar dos canta-dores indígenas. Com exceção de um dos mestres de Pernambuco que defende de maneira enfática a manutenção das formas de fazer arte tal qual fo-ram sendo herdadas, todos os outros, de uma ma-neira ou de outra, percebem que existe relação en-tre a inovação e a preservação e com isto ampliam a diversidade.

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legitimidAdes

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Em seus pronunciamentos, todos indi-cam, com maior ou menor ênfase, que existem muitas disputas de poder, em diferentes esferas, e tomam uma posição. É possível perceber o que querem manter, como e por que querem fazê-lo, e como são construídas as legitimidades daqueles que terão papéis destacados na luta para garantir os aspectos da tradição que desejam manter. Os mestres atuam como um tipo de guardião da tra-dição e muitos jovens da classe média urbana, de-pendendo do nível de proximidade que mantém com os mestres e as comunidades tradicionais, consagram-se como tipos de “embaixadores” da cultura tradicional.

Por outro lado, os jovens podem oferecer aos mes-tres o reconhecimento e a valorização dos sabe-res e costumes que muitas vezes não recebem por parte dos jovens da mesma comunidade tradicio-nal. Assim, terminam por fomentar o comprome-timento dos jovens das comunidades tradicionais com as suas tradições. É o processo equivalente ao que ocorre nas relações entre os Pontos de Cultura

estudados, os mestres vinculados a eles e os jo-vens das comunidades tradicionais. Os Pontos de Cultura, ao valorizar o trabalho dos mestres (de forma equivalente ao que fazem também os jovens de classe média), realizam um processo de legiti-mação junto aos jovens das comunidades tradicio-nais que (como no caso dos jovens de classe média) passam a relacionar-se melhor com os mestres.

Os processos de legitimação também ocorrem em relação aos governos de esquerda que apoiam as artes tradicionais, cuja gestão passa a ser reconhe-cida como uma ação democrática que dá priorida-de às formas culturais e aos seguimentos sociais que quase sempre foram marginalizados econô-mica, social e culturalmente. Simultaneamente, o apoio governamental, além de contribuir com seus recursos para financiar as ações, significa o reconhecimento público por parte dos represen-tantes da sociedade, da importância daquele tipo de manifestação. Existem negociações nos inter-câmbios de conhecimentos. Aquele que legitima é também legitimado.

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Outro aspecto que desejávamos compreender quando inicia-mos a investigação é a avaliação da qualidade das manifestações artísticas. Nos campos da arte erudita, a qualidade de uma obra de arte geralmente se avalia desde o ponto de vista estético, que a maior parte das vezes se reduz aos aspectos formais.

No primeiro capítulo, apresentamos a formulação de Giulio Carlo Argan (1994, p.14) de que a obra de arte é um produto do trabalho humano e de suas técnicas, construído por meio de uma relação entre uma atividade mental e uma atividade operacional cujo valor artístico (ou qualidade artística) se evi-dencia na forma (coisas possíveis de “se perceber”). Este produto perceptível é considerado uma obra de arte (e uma obra de boa qualidade) quando a pes-soa que desfruta a julga como tal. Embora os gostos estéticos possam ser con-siderados subjetivos, os critérios ou parâmetros incorporados pelos sujeitos que fazem possíveis estes juízos estão historicamente condicionados, ou seja, constroem-se socialmente por meio das relações que as pessoas estabelecem com seu contexto histórico. Assim, os parâmetros para a formulação de juí-zos estéticos (de qualidade) sobre as obras variam de uma época para outra e de um lugar para outro. Argan, quando discute a função dos críticos e dos historiadores da arte, afirma que o juízo (de valor), além de declarar “que uma determinada obra é uma obra de arte e tem valor artístico” deve situar a obra “no espaço e tempo, coordenando com outras obras com as quais tem uma re-lação, explicar a situação em que foi produzida e as consequências a que deu lugar.” O autor declara que cada sociedade estabelece os critérios para avalia-ção e estes geralmente estão vinculados à ideia de verdade. Como a sociedade moderna ocidental está baseada na ciência (a ideia de verdade está hegemoni-camente relacionada ao conhecimento científico) e se

considera a história a ciência que estuda

as ações humanas, o parâmetro de juízo

seria a história. Uma obra é vista como

obra de arte quando tem importância

na história da arte e contribuiu para a

formação e desenvolvimento de uma

cultura artística. Enfim: o juízo, que

reconhece a qualidade artística de uma

obra, reconhece ao mesmo tempo sua

historicidade (ARGAN, 1994, p.18-19).

QuAlidAdeArtísticA

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É interessante que em determinado momento Argan estabelece uma relação entre autenticidade e qualidade. Para ele, a qualidade de uma obra de arte relaciona-se com a sua autenticidade, cuja no-ção é histórica. Autêntico é antônimo de falso, que “na arte, é uma coisa que passa por ser pelo que não é”. E adiciona que a história da arte “é proces-so: tudo aquilo que marca o passo e não faz avan-çar o processo, nem modifica a situação, está isen-to de autenticidade” (ARGAN, 1994, p. 20). Quer dizer, as obras de arte que não tem influência na história da arte, que não modificam os campos das artes, não são autênticas.

É conveniente observar aqui que a concepção de au-tenticidade é diferente da ideia de autenticidade re-lacionada com a tradição, abordada anteriormente. Na primeira compreensão (de Argan), a autenticida-de está relacionada com a inovação, com aquilo que modifica a situação. E na segunda (de Hobsbawn), a autenticidade está relacionada com a tradição. Ou seja, como vimos anteriormente, está relacionada com a invariabilidade, com a concepção do passa-do que “impõe práticas fixas (normalmente forma-lizadas), tais como a repetição”. Para a primeira con-cepção, autêntico e de qualidade é aquilo que muda, para a segunda é o que se mantém, que se repete. No caso deste estudo, existem manifestações nos dois sentidos. Minoritariamente, em relação aos mestres, está a compreensão de que a “verdadeira” (autêntica e boa) arte tradicional é aquela que man-tém as “raízes”, a “origem”. Para os jovens e para a maioria dos mestres deve haver inovação, mas não mudança total. O segundo caso se aproxima mais à

ideia de costume adotada por Hobsbawm. Ou seja, os dados o indicam, no caso da arte tradicional os dois significados são utilizados para certificar a qua-lidade das manifestações. Neste sentido, o conceito de autenticidade como certificação da qualidade das manifestações artísticas tradicionais não é o mais adequado.

Além disso, a discussão proposta por Argan situa--se no contexto da história da arte ocidental, que por sua vez está relacionada com a própria história da constituição dos campos da arte no mundo oci-dental, engendrados no processo de especialização do conhecimento desenvolvido pelo capitalismo. A autonomia relativa dos campos artísticos construí-da no processo histórico permitiu avaliar as obras a partir de parâmetros inerentes aos campos artís-ticos. As histórias da arte citadas por Argan estão inseridas nas histórias dos campos restritos (eru-ditos) da arte, tal como discute Bourdieu. É o jogo, as disputas pelos capitais artísticos específicos na perspectiva de eliminar a concorrência (de produto-res e de produtos), que levaram ao estabelecimento do formalismo como teoria e como prática artística que volta-se para o interior do campo. Assim, regras e valores intrínsecos aos campos passaram a orien-tar a avaliação da qualidade artística. Neste senti-do, a forma orienta a produção artística e o discurso sobre ela. É uma produção e um discurso para den-tro, que dificulta o diálogo da arte com o resto do mundo.

Como a arte tradicional se desenvolve em outro contexto, com outra lógica e estrutura de funcio-

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namento, é necessário outro enfoque na discussão da qualidade artística. Neste sentido, propusemos compreender as manifestações artísticas tradi-cionais a partir da observação do contexto em que surgem. Esta estratégia permite perceber a intrincada rede de significações que correlacionam tais manifestações com a organização social das comunidades a que pertencem.

Kabengele Munanga, ao fazer referência aos dilemas metodológicos e às con-trovérsias sobre a dimensão estética da arte africana, afirma que

A abordagem etnológica busca saber

o que são os objetos de arte africano

para esta sociedade e o que signifi-

cam. Ou seja, determinar o que estes

objetos representam, os símbolos que

contêm e os mitos que evocam. Tal

abordagem provoca um sério proble-

ma epistemológico. É possivel captu-

rar o significado independentemente

das formas e viceversa, seria possível

analisar a forma sem considerar o

conteúdo? (MUNANGA, 2006, s/p).

Para o autor, a etnoestética surge deste questionamento, dando forma a uma abor-dagem que estabelece uma “confrontação dialética entre a observação dos objetos em seu contexto cultural e a análise conceitual.” (MUNANGA, 2006, s/p).

Essa confrontação que consiste

em fazer uso dos dados objetivos e

mensuráveis, e estudar os objetos

em seu meio, corresponde ao que al-

guns chamam de mestiçagem cultu-

ral ou união. Esta abordagem reme-

te ao que foi, desde então, chamado

Antropologia da Arte, cujo objetivo

era solucionar a velha oposição en-

tre os defensores do funcionalismo

e os defensores do formalismo. De

fato, pela adoção de uma demarché

contraditória consistindo em exa-

minar o objeto não apenas segundo

os dados culturais do observador,

se não também segundo os dados

culturais da sociedade estudada,

realiza-se de maneira incontestável

a contradição entre os que privile-

giam o estudo das formas e os que,

pelo contrário, tomam partido pelo

conteúdo. Esta conciliação é, além

disso, a prova de que qualquer estu-

do da arte das civilizações não oci-

dentais que se fundamentasse uni-

camente sobre o funcionamento ou

o formalismo não seria adequado

(MUNANGA, 2006, s/p).

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120 121

Em outros termos, os parâmetros para avaliar a qualidade das manifestações como o bumba meu boi, maracatu, ciranda, coco, seja em seus contextos ori-ginais ou suas reinvenções urbanas, devem estar re-lacionados com as múltiplas dimensões da vida nos grupos sociais nos quais se manifestam. Que sig-nificam tais expressões culturais para nós, investi-gadores com determinados saberes e valores estéti-cos? Por outro lado, o que representam os símbolos que contém e os mitos que evocam no contexto dos grupos que as produzem? Partindo destas questões, como avaliar a qualidade destas expressões artísti-cas? Parece-nos que a articulação de parâmetros re-lacionados com as ideias de celebração, prazer, ludi-cidade (caráter lúdico) e imaginação são mais ade-quados para avaliar a qualidade deste tipo de produ-ção do que o conceito de autenticidade.

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Neste momento nos introduziremos um pouco no campo da especulação, porque os dados obtidos estão direcionados a um aspecto que nos parece fundamental: a relação entre fé e prazer, que podem conver-gir com a ideia da celebração. Inicialmente não havíamos previsto tal aspecto que, portanto, merece uma atenção maior.

A religiosidade, a fé, estão presentes no discurso de todos os mestres. Não de maneira periférica, mas central. Tudo indica que a dimensão religiosa se colo-ca como um importante nó em meio a uma rede que articula e organiza tam-bém as dimensões de caráter político, social e econômico. Se considerarmos que o catolicismo português era, por assim dizer, algo profano, dado a festas e celebrações e que teve intercâmbios com manifestações religiosas, indígenas e africanas, de aspecto ainda mais aclamativo, encontraremos formas de sin-cretismo em que a fé pode ser prazerosa e o prazer sagrado. À diferença do ca-tolicismo mais dogmático e de outras formas de cristianismo, em que a culpa tem um papel destacado, as religiões afro-brasileiras e indígenas possuem um forte sentindo de celebração da vida.

Tudo indica que, para os mestres, a conjunção de fé/prazer na tradição religio-sa com a que estão envolvidos orienta as brincadeiras (jogos e manifestações artísticas) em que participam: são brincantes de fé.

No caso dos jovens artistas de Londrina, tudo indica que o prazer é o guia, ao menos a princípio. Questionados pela razão de seu interesse pelas artes tradi-cionais, de alguma maneira todos citam o prazer. Depois, muitos acabam re-lacionando-se com as dimensões religiosas das manifestações artísticas, mas o impulso inicial é o prazer. São interesses por formas de lazer que jamais ha-

Fé e prAzer

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viam conhecido. Porque existe algo que seduz e encanta. Neste caso, isso tam-bém pode ser entendido como um tipo de reação às restritas opções de ocu-pação do tempo livre oferecidas no mundo atual, que transformam o lazer em entretenimento.

Este processo está relacionado ao desenvolvimento das sociedades industriais que passaram a reconhecer o lazer como valor social que outorga ao indivíduo o direito à desfrutar de um período de tempo conforme a sua vontade. Este tempo livre está garantido depois do cumprimento das obrigações. É um tem-po livre ocupado com atividades que propiciam o descanso e o divertimento. No entanto, a partir da década dos 1950, o lazer passa a ser questionado na medida em que o mercado se organiza para transformá-lo em um aspecto da atividade econômica que busca fundamentalmente a obtenção de lucros.

[...] colocando fortemente em cheque

o caráter ou a possibilidade liberatória

que essa atividade [o lazer] devia ter.

A indústria cultural, a sociedade do

espetáculo, a globalização, [...] deram

às atividades de lazer uma face extre-

mamente padronizada e superficial

que levou a críticas incisivas sobre a

possibilidade real de apresentarem-se

essas atividades como alternativas

eficazes à esfera das obrigações quase

sempre alienadas e alienantes em que

o indivíduo circula na maior parte do

tempo (COELHO, 1997, p. 127-129).

Deste modo, o desenvolvimento artístico de jovens de classe média urbana, concebido como opção de complementação cultural na ocupação do tempo li-vre passa a sofrer os efeitos da mercantilização do lazer, deixando de se cons-tituir como alternativa às obrigações alienadas e alienantes. A participação em movimentos de recriação da arte tradicional cria novos espaços de so-ciabilidade, ampliando as possibilidades de ocupação do tempo livre, crian-do condições de participação em atividades artísticas que provocam o ques-tionamento, a reflexão, oportunizando a apropriação de um capital cultural para esses grupos. Ou seja, propiciando “às pessoas aquilo que o lazer visava conquistar: uma libertação do tédio cotidiano que nasce das tarefas repetiti-vas, das rotinas e dos estereótipos, permitindo-lhes o acesso à dimensão do imaginário e daquilo que é normalmente interditado pela sociedade ou pelo Ver Ferreira (2005).

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124 125

grupo” (COELHO, 1997, p. 127-129). As artes tradi-cionais acabam, assim, cumprindo uma função li-bertária em relação à indústria cultural e de entre-tenimento, cujas opções são, na maioria das vezes, conformistas e alienantes. Segundo Maria Celeste Mira, muitos jovens de classe média urbana, a par-tir do envolvimento com a arte tradicional, pas-sam a ter uma maior preocupação ambiental, a reavaliar seus padrões de consumo e a desenvol-

ver modos de religiosidade diferentes dos de sua família, com destaque para aqueles vinculados ao candomblé. No caso dos jovens de Londrina, todos passam a ter uma relação com o candomblé. Em re-lação ao grupo LATA, em seu processo de transfor-mação em Grupo de Maracatu Semente de Angola, há inclusive um ritual de batismo que segue as tra-dições do candomblé com situações impactantes para os padrões dos jovens de classe media urbana. Ver Mira (2009, p. 592).

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incOnclusÕes

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126 127

Compreendemos que, mesmo que experiências como o Promic/Vilas Culturais em Londrina e o Programa Cultura Viva/Pontos de Cultura no âmbito fede-ral hajam convergido em uma concepção de política cultural, constituindo um avanço considerável, são modelos em processo de maturação que vão exigir ajustes sistemáticos e constantes para consolidar-se como uma política cultu-ral adequada às manifestações artísticas de tradição oral e para os jovens das cidades que também desejam e têm o direito de encantar-se com as manifes-tações artísticas de tradição oral.

incOnclusÕes

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AT 129

Depois de uma viagem tão fascinante, de encontros para lá de encantadores, fica difícil colocar um ponto final. Mesmo porque há muita água para passar por debaixo da ponte no que se refere à formulação e à implantação de po-líticas públicas para as artes tradicionais e para os grupos urbanos nelas referenciados. Um dos gran-des desafios é a construção coletiva de indicadores que possibilitem em boa avaliação de programas e projetos voltados para tais atividades. Não temos dúvidas que a construção destes instrumentos de avaliação tem que estar em conformidade com as especificidades deste tipo de produção artística.

O processo de avaliação para qualificar as políticas públicas para as manifestações artísticas de tradi-ção oral e para os grupos urbanos recriadores deve ser estruturado com urgência e determinação para evitar os inúmeros equívocos verificados ao longo

da história das políticas públicas implantadas pelo Estado brasileiro. Principalmente porque entende-mos que as relações entre Estado e os grupos de jo-vens da classe média urbana, “recriadores” das ma-nifestações da arte tradicional podem e devem au-xiliar na consolidação e divulgação da riqueza e da complexidade da produção artística tradicional para um público mais amplo. Deve contribuir para valo-rizar o sentido dessa produção artística, não como algo congelado no tempo, fossilizado ou como um conjunto de elementos dispersos a serem coletados descontextualizadamente e usados pelos demais campos da arte, e sim como dimensão viva, dinâ-mica e contraditória, como manifestação estética e forma de expressão das complexas redes simbólicas vinculadas aos modos de vida destas comunidades. Ainda como resultado e motor de nossa mestiça-gem, capaz de impactar de forma tão decisiva esta gama enorme de manifestações artísticas atuais.

pós-difícil

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Há mar aracatu

abá

Há Mandacaru maracatu, abá Maracatuaba

Amar

aracatu abá

Amar maracatuAmar Mandacaru

Amar

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Referências

fotografias

bibliográficas

Capa - Esconde-esconde. Crianças brin-

cando no Centro de Cultura Caiçara

da Barra do Ribeira (Juréia). Barra

do Ribeira-Iguape (São Paulo). Ja-

neiro de 2009. Foto de Lucas Kiler.

Pg. 2 - Criança da Aldeia Nova durante

a Festa da Batata. Ponto de Cul-

tura Cultura Viva Timbira. Aldeia

Nova/etnia krahô (Tocantins), maio

de 2009. Foto de Lucas Kiler.

Pg. 3 - Vermelho. Criança na Festa da Bata-

ta. Ponto de Cultura Cultura Viva Tim-

bira. Aldeia Nova/etnia krahô (Tocan-

tins), maio de 2009. Foto de Lucas Kiler.

Pg. 4 - Sitio com obras de Mãe Roma-

na. Natividade (Tocantins), julho

de 2009. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 5 - Ruína de igreja. Nativida-

de (Tocantins), julho de 2009.

Foto de Kennedy Piau.

Pg. 7 - Brincantes da festa do Bumba-

-meu-boi. São Luis do Mara-

nhão (Maranhão), junho de

2009. Foto de Kennedy Piau.

Pgs. 8 e 9 - Preparação para um cortejo da

festa do Bumba-meu-boi. São Luis do

Maranhão (Maranhão), junho de 2009.

Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.

Pgs. 10 e 11 - Ao sol, a sóis, una duna,

una Bruna: Lençóis. Lençóis Mara-

nhenses/ Atins (Maranhão), Julho

de 2009. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 12 - Inicio da viagem, agora motori-

zados. Bauru (São Paulo), Janeiro de

2009. Foto de Eric Tristão Schmitt.

Pg. 13 - Acima: Hospedados por novos

amigos comprometidos com as cau-

sas indígenas. Carolina (Maranhão),

maio de 2009. Arquivo do Projeto

Tateio, tá? Abaixo: Momento de des-

canso e de degustação na Praia de Boa

Viagem. Recife (Pernambuco), junho

de 2009. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 15 - Caixeiras do Divino no Pon-

to de Cultura Tambores do Mara-

nhão. São Luis (Maranhão), junho

de 2009. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 16 - Mãe Beth de Oxum no Ponto de

Cultura Núcleo de Memória e Produ-

ção Popular Coco de Umbigada. Olinda

(Pernambuco), junho de 2009. Foto

de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.

Pg. 18 - Centro de Iguape. Sede do mu-

nicípio onde está localizado o Cen-

tro de Cultura Caiçara da Barra do

Ribeira. Iguape (São Paulo), Janeiro

de 2009. Foto de Lucas Kiler.

Pg. 20 - Grupo Baque de Maracatu Man-

dacaru atuando no 6º Concurso

de Grupos de Percussão de Barce-

lona. Barcelona (Espanha), julho

de 2011. Foto de Kennedy Piau.

Page 133: No Caminho dos Encantantes

132 133

Pg. 22 - Mestres e aprendiz da cultura tra-

dicional do Marajó no Ponto de Cultura

Música e Artesanato Marajoara/Museu

do Marajó (também chamado de Ponto

de Cultura Giovanni Gallo). Cacho-

eira do Arari – Ilha de Marajó (Pará),

Julho de 2009. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 23 - Os meios de transporte alternativos

e as condições particulares de tráfego.

Lençóis Maranhenses entre Atins e Bar-

reirinhas (Maranhão), Julho de 2009.

Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.

Pg. 24 - Carimbó, música e dança

em Salva Terra. Ilha de Marajó

(Pará), julho de 2009. Foto de Bru-

na Muriel Huertas Fuscaldo.

Pg. 25 - Tambor de Crioula no Encon-

tro Nacional de Pontos de Cul-

tura. Fortaleza (Ceará), abril de

2010. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 26 - Ambientação da Vila Cultural Alma

Brasil. Londrina (Paraná), dezembro

de 2010. Foto de Kennedy Piau..

Pg. 28 e 29 - Apresentações de várias

manifestações das culturas tradicio-

nais no Encontro Nacional de Pontos

de Cultura. Fortaleza (Ceará), abril

de 2010. Fotos de Kennedy Piau.

Pg. 30 - Calunga, a boneca sagrada do Mara-

catu Nação, na apresentação do Maraca-

tu Leão Coroado no Encontro Nacional

de Pontos de Cultura. Fortaleza (Ceará),

abril de 2010. Fotos de Kennedy Piau.

Pg. 32 e 33 - Tambor de Crioula no En-

contro Nacional de Pontos de Cul-

tura. Fortaleza (Ceará), abril de

2010. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 35 - Cazumbá, personagem do Bumba-

-meu-boi de sotaque Pindaré ou de

Baixada. Ele é fusão entre humano e

o animal e o feminino e o masculino.

Ser do universo do lúdico e da magia.

São Luis do Maranhão (Maranhão),

junho de 2009. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 36 - Danças Portuguesas, uma das

manifestações da arte popular pre-

sente nas festas juninas do Mara-

nhão. São Luis (Maranhão), junho

de 2009. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 38 e 39 - Idem

Pg. 40 e 41 - Ritual de batizado do Boi, Boi

de Maracanã, sotaque de Matraca ou

da Ilha, em Maracanã, bairro na zona

rural. São Luis (Maranhão), junho

de 2009. Fotos de Kennedy Piau.

Pg. 43 - Tambor de Minas, manifestação

equivalente ao Candomblé. Celebra-

ção de batizado do Boi e celebração

pra Xangô. Ponto de Cultura Tam-

bores do Maranhão. São Luis (Ma-

ranhão), junho de 2009. Foto de

Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.

Pg. 44 - A capital do Maranhão em épo-

ca de festas juninas. São Luis (Ma-

ranhão), junho de 2009. Foto de

Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.

Pg. 45. Brincante do Boi de Maracanã às

onze da manhã. O inicio da brinca-

deira (dança) foi às vinte três horas

do dia anterior. Maracanã, São Luis

(Maranhão), junho de 2009. Foto de

Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.

Pg. 48 e 49 – Pátio do Ponto de Cultura

Coco de Umbigada, onde são realizadas

oficinas de percussão e dança. Olinda

(Pernambuco), junho de 2009. Foto

de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.

Pg. 50 e 51 - Cavalo Marinho, folguedo

da cultura tradicional da zona da

mata de Pernambuco no Ponto de

Cultura Estrela de Lia. Itamaracá

(Pernambuco), junho de 2009. Foto

de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.

Pg. 52 e 53 – Passeando de barco em um

dos muitos momentos de lazer e

Page 134: No Caminho dos Encantantes

prazer. Praia próxima a São Luis. São

Luis (Maranhão), julho de 2009. Foto

de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.

Pg. 54 - Encontro de Folias de Reis em

Brasília (Distrito Federal), mar-

ço de 2009. Foto de Lucas Kiler.

Pg. 56 - Idem.

Pg. 59 - Ibidem.

Pg. 60 e 61 - Pintura corporal nas crian-

ças. Preparação para mais um dia

da Festa da Batata. Aldeia Nova/

etnia krahô (Tocantins), maio de

2009. Fotos de Lucas Kiler.

Pg. 62 e 63 - Apostando corrida no pátio da

aldeia. Festa da Batata. Aldeia Nova/et-

nia krahô (Tocantins), maio de 2009. Fo-

tos de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.

Pg.64 - Demonstração sobre Coco no Ponto

de Cultura Coco de Umbigada. Olinda

(Pernambuco), junho de 2009. Foto

de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.

Pg. 65 - Almoço no Mercado Municipal

da Madalena. Recife (Pernambu-

co), junho de 2009. Foto de Bru-

na Muriel Huertas Fuscaldo.

Pg.66-77 - Desenhos de Flávia Mielnik.

Pg. 69 - Doroty Marques ensaiando as crian-

ças no Ponto de Cultura Cavaleiro de

Jorge. São Jorge /Alto Paraíso (Goiás),

abril de 2009. Fotos de Camila Pierobon.

Pg. 76 - O carro como um hotel na beira

da praia. Soure/Ilha de Marajó (Pará),

julho de 2009. Fotos de Kennedy Piau.

Pg. 77 - Caminhando nas dunas de

Atins. Lençóis Maranhenses (Ma-

ranhão), Julho de 2009. Foto de

Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.

Pg.78 - Maracatu Semente de Angola em

Festa de Erê no Ilê Axé Ogum Mêge/

Mãe Mukumby. Londrina (Paraná),

outubro de 2011. Foto de Kennedy Piau.

Pg.80 - Apresentação do espetáculo San-

teria no Projeto Quizomba: o samba

e outros batuques. Londrina (Pa-

raná), dezembro de 2007. Foto do

arquivo do Projeto Quizomba.

Pg. Idem

Pg.86 e 87 - Roda Saia. Oficina de dan-

ças tradicionais, ministrada por

Tião Carvalho na Vila Cultural Alma

Brasil. Londrina (Paraná), outubro

de 2011. Foto de Kennedy Piau.

Pg.88 e 89 - Tião Carvalho em apresentação

de Bumba-meu-boi na Vila Cultural

Alma Brasil. Londrina (Paraná), outu-

bro de 2011. Foto de Kennedy Piau.

Pg.91 - Fernando Goes e Tião Carvalho em

apresentação no Projeto Quizomba.

Londrina (Paraná), dezembro de 2005.

Foto de arquivo do Projeto Quizomba.

Pg.94 - Grupo de Maracatu de Lerroville,

distrito de Londrina. Grupo estrutu-

rado por Danilo, jovem estudante de

medicina da UEL, oriundo de Recife.

Londrina (Paraná), dezembro de 2005.

Foto de arquivo do Projeto Quizomba.

Pg. 95 - Lia de Itamaracá em entrevista

no Ponto de Cultura Estrela de Lia.

Itamaracá (Pernambuco), fevereiro

de 2010. Foto de Milene Moura.

Pg.97 - Idem página 16.

Pg.101 - Mestre Afonso concedendo entre-

vista no Ponto de Cultura Maracatu

Leão Coroado. Olinda (Pernambuco), fe-

vereiro de 2010. Foto de Milene Moura.

Pg. 102 - Mestre Humberto de Maraca-

nã no ritual de batizado do Boi, em

Maracanã/Luis (Maranhão), junho

de 2009. Fotos de Kennedy Piau.

Pg. 105 - Grupo de Bumba-meu-boi Anjo

Page 135: No Caminho dos Encantantes

134 135

da Guarda de Maringá em apresen-

tação na Vila Cultural Alma Bra-

sil. Londrina (Paraná), outubro de

2011. Fotos de Kennedy Piau.

Pg. 106 - Contemplando a Festa de Erê no

Ilê Axé Ogum Mêge de Mãe Mukum-

by. Londrina (Paraná), outubro de

2011. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 108 - A classe média urbana na cultura

tradicional. Oficina de Maracatu de

Baque Virado na Vila Cultural Alma

Brasil. Londrina (Paraná), dezembro

de 2010. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 109 - Festival de Cultura Popu-

lar na Vila Cultura Alma Brasil.

Londrina (Paraná), outubro de

2011. Fotos de Kennedy Piau.

Pg. 110 - Grupo L.A.T.A. em apresentação

no Projeto Quizomba, na Vila Cultural

Usina Cultural. Londrina (Paraná), no-

vembro de 2006. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 111 - Samba de Roda no Projeto Qui-

zomba, em Comemoração ao Dia da

Consciência Negra, na Usina Cultu-

ral. Londrina (Paraná), novembro

de 2005. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 112. Edgar de Abreu e Mauricio Werner,

coordenadores, respectivamente do

Grupo L.A.T.A e do Grupo de Maracatu

Semente de Angola. Ministrando oficina

de percussão na Vila Cultural Alma

Brasil. Londrina (Paraná), abril de 2010.

Foto de acervo do Projeto Tateio, tá?

Pg. 114 - Oferendas feitas para o batiza-

do do Grupo de Maracatu Semente

de Angola. Ilê Axé Ogum Mêge/Mãe

Mukumby. Londrina (Paraná), dezem-

bro de 2010. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 117 - Apresentação do espetáculo

Santeria no Projeto Quizomba. Londri-

na (Paraná), dezembro de 2007. Foto

de arquivo do Projeto Quizomba.

Pg. 119 - Detalhe da ambientação da

Casa de Cultura Cavaleiros de Jorge/

Ponto de Cultura Cavaleiro de Jor-

ge. São Jorge /Alto Paraíso (Goiás),

abril de 2009. Fotos de Lucas Kiler.

Pg. 120 - Oferendas feitas para o batiza-

do do Grupo de Maracatu Semente

de Angola. Ilê Axé Ogum Mêge/Mãe

Mukumby. Londrina (Paraná), dezem-

bro de 2010. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 121 - Jovens de classe média no Projeto

Quizomba: o samba e outros batuques.

Londrina (Paraná), dezembro de 2007.

Foto de arquivo do Projeto Quizomba.

Pg. 122 - Instrumentos consagrados no

batismo do Grupo de Maracatu Semente

de Angola no Ilê Axé Ogum Mêge/Mãe

Mukumby. Londrina (Paraná), dezem-

bro de 2010. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 123 - No samba de Roda. Projeto Qui-

zomba. Londrina (Paraná), novembro

de 2005. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 124 - Jovens com Mãe Mukumby,

participando do batizado do Grupo de

Maracatu Semente de Angola, no Ilê Axé

Ogum Mêge. Londrina (Paraná), dezem-

bro de 2010. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 126 - Moenda de mandioca para a

feitura de farinha em Grajauna, re-

gião da Estação Ecológica da Juréia-

-Atins. Visita com membros do Cen-

tro de Cultura Caiçara da Barra do

Ribeira. Juréia (São Paulo), Janeiro

de 2009. Fotos de Camila Pierobon.

Pg. Idem página 18.

Pg. 128 - Final de tarde nos Lençóis. Len-

çóis Maranhenses/ Atins (Maranhão),

Julho de 2009. Foto de Kennedy Piau.

Pg. 136 - Fiorela, Camila, Piau e Lucas,

travessia de balsa na Barra do Ribeira,

rumo ao primeiro ponto da viagem.

Iguape (São Paulo), Janeiro de 2009.

Page 136: No Caminho dos Encantantes

Foto de arquivo do Projeto Tateio, tá?

Pg. 137 - (Esquerda) Bruna Muriel no

Carnaval no Carnaval de rua. São

Luiz do Paraitinga (São Paulo), feve-

reiro de 2009. Foto de Lucas Kiler.

Pg. 137 - Camila Pierobon com crianças

do Centro de Cultura Caiçara da Barra

do Ribeira. Iguape (São Paulo), Janei-

ro de 2009. Fotos de Lucas Kiler.

Pg. 140. Fiorela Bugatti no Centro de

Cultura Caiçara da Barra do Ribei-

ra. Iguape (São Paulo), Janeiro de

2009. Fotos de Camila Pierobon.

Pg. 141 - Lucas Kiler gravando entrevista

no Centro de Cultura Caiçara da Barra

do Ribeira. Iguape (São Paulo), Janeiro

de 2009. Fotos de Camila Pierobon.

Pg. 144 - Idem página 2

Pg. 146 - Idem capa.

Pg. 147 - Tecendo a rede para a lida. Barra

do Ribeira. Iguape (São Paulo), Janei-

ro de 2009. Fotos de Kennedy Piau.

Kennedy Piau: pg. 31 (Artes tradicionais...

Vale a pena?); O pg. 37 – 48 (Estado/

Sobre a arte e o Campo da Arte); pg.

55 (Sobre o apoio público às artes

tradicionais); pg. 62 (Resumindo...);

pg. 66 (Como Fizemos); pg. 80 –127

(Política Cultural em Londrina/

Pós-Difícil); pg. 129 (Poema);

Bruna Muriel Huertas Fuscaldo: pgs.

27, 35, 53, 65,79 (Crônicas)

Camila Pierobon: pg.138 (Uma

Noite na Chapada)

Fiorela Bugatti: pg. 140 (Museu

Vivo do Fandango)

Lucas Kiler: Pg. 142 (Londrina e

o inicio da viagem)

textos

ilustrações

Todas por Flavia Mielnik

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Page 138: No Caminho dos Encantantes

Kennedy Piau

Sou um que, mesmo depois dos 40, como diz a Ana Joaquim - via Alice Ruiz - ainda anda com o co-ração na cabeça. Nas horas vagas professo, con-fesso. Professo porque sou bobo, porque acredito na resistência da simples bondade e no cultivar da teimosia da decência. Acredito no claricelispectar da existência. Sou contraditório, ambíguo, seguro e inseguro, ágil e lerdo, desorganizado e ordena-do, misterioso e transparente, vago e preciso, ge-miniano de 31 de maio. Sou mineiro, acredito nos Santos: o Dumont, por insistir em voar, e o Milton, pelo humanismo. Professo na UEL porque gosto de professar, principalmente sobre arte. Aprendo com o professar dos estudantes. Como professam! Sou um dos que quer um mundo diferente e tenta, às vezes sem saber direito, mudá-lo, muito mais por paixão e indignação do que por obrigação mili-tante. Sou daqueles que gosta de navarandaolhar. Gosto da arte que instiga os desejos, a sensibili-dade e a inteligência. Gosto de sentir e entender. Creio que educação rima com desejo e curiosidade. Mas, também, tem que rimar com ética e dignida-de. Sou um aprendiz que diz: me encante!

iMPReSSÕeS e aPReSenTaÇÕeS dOS CaÇadOReS de enCanTOS

Page 139: No Caminho dos Encantantes

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BRuna MuRieL HueRTaS

Nasceu na megalópole paulista, mas cresceu em uma ilha, bela. Virou pé vermelho, retornou à Espanha ancestral, aportou no Pará dos irmãos. Cursou Ciências Sociais, abandonou jornalismo, dissertou sobre as Relações Internacionais. Teve que atravessar Gibraltar para ir lá, pisar o chão da Marrocos materna. Dançou e pesquisou o carimbó e depois adentrou, in-vestigando, analisando, saboreando e vivenciando aquilo que “ faz do Brasil, Brasis”. Em um caos ordenado apenas pela intuição, vai do micro ao macro ao micro... Retornando ao macro. É ChucKuy entre os craré dos Krahó. Percorreu a Venezuela, a Colômbia, o Equador, o Peru, a Bolívia... E optou por doutorar sobre a América Latina. Buscando, talvez, entender um pouco mais esta iden-tidade fluida, de múltipla cidadania, caiçara/cigana, brasileira/latina/cosmo-polita que traz em si. Segue (tal qual a descreveu seu pai, duas décadas atrás) “letra, na busca da forma (...)” . Forma esta que não chega, tal qual “camiño que no hay”... E por aí vai...

CaMiLa PieROBOn

(Esta crônica é dedicada a Camila, minha melhor ami-ga, e ela saberá que é uma pequena homenagem a ela - Antônio Edmilson Martins Rodrigues)

É encantadora e feliz. Anda de um jeito que faz in-veja. A leveza de seu andar revela a vida despoja-da e livre. A alegria estampada no seu rosto indica que possui um extremo gosto pela vida. Tudo isso combinado faz com que todos se apaixonem por ela, por seu sorriso franco e aberto, que cativa por-que se anuncia pelo cantinho de sua boca.

Por vezes, essa paixão foi traduzida por controles e limitações que a desencantaram e a fizeram triste.

Page 140: No Caminho dos Encantantes

Vi suas lágrimas um dia e desejei nunca ter vivido aquele momento. Mas isso por muito pouco tem-po, pois a vontade de viver, sua dignidade e a força de ser livre a deixaram novamente encantadora e feliz, mostrando que ela sabia se defender dos po-bres de espírito.

Eu cá comigo a admiro ainda mais, em especial quando ela exerce o seu direito de ser livre.

Uma noite na chapada

Não lembro exatamente o dia, lembro-me apenas que era um fim de semana de feriado prolonga-do. Carros transitavam pelas ruas da vila de São Jorge/chapada dos veadeiros-GO. Nas trilhas, pe-netravam turistas ávidos a consumir quatro dias d’uma natureza de incrível beleza e fragilidade. Pousadas que, construídas com a compra barata dos terrenos antes pertencentes aos garimpei-ros, convidavam o dinheiro dos brasilienses a en-cherem o bolso dos donos que moram em outras localidades.

Era sábado e a vida calma dos mais de vinte dias que estávamos naquela vila incomodava quem não suportavam mais a convivência consigo mesmo. Nós esperávamos aquele fim de semana como se fosse a salvação de algo que nem sabíamos o que era, mas esperávamos. A ideia era ficarmos o iní-cio da noite na Casa de Cultura, dançando músicas brasileiras típicas de bares que querem agradar os turistas que se dizem amantes da cultura nacional.

Erraram, e o que os visitantes quiseram foi a ban-da de reggae seguido de uma rave no meio do cer-rado. Lucas e eu iríamos as duas, claro.

Passei na casa em que estava hospedada para es-crever uma das longas mensagens de celular que foram enviadas naquela noite, Lucas entra no quarto e me convida insistentemente a conhecer o bar que ele encontrara. Eu, com a grosseria que nunca me falta, respondi:

-Já vou moleque, espera um pouco.

Ele disse-me para procurá-lo onde estivesse o som, e apenas estas palavras bastaram para que eu pu-desse encontrá-lo.

Demoro uns dez minutos e quando começo a me si-tuar, ainda do lado de fora, vejo pela janela o Lucas dançando com os olhos fechados na sala de uma casa onde fora montada a pista de dança. Entro e percebo as paredes cor-de-rosa desbotado, não sei se pelo tempo ou pela qualidade da tinta; a luz não era suficientemente clara para inibir aqueles que sentem vergonha em dançar em público nem escu-ra a ponto de possibilitar contatos mais ofegantes entre os adolescentes.

Nas noites de festa, retiram-se os sofás, colocam--se as mesas de lado e enchem a geladeira com be-bidas a serem vendidas durante a noite. Tentou-se um balcão para apoiarem os cotovelos. Na porta do banheiro uma cortina feita de miçangas azuis e no chão um mosaico colorido que desenhava uma

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flor, o rosa na parede continuava.

Na porta, em que se dá o trânsito entre a sala e o interior da casa, uma senhora de blusa bran-ca, saia azul, coque despenteado e pés descalços. Certamente era a proprietária.

À frente da sala estava o músico com seu teclado e o microfone. Um sujeito simples, mas aclama-do pelo público a cada música. O repertório, pou-co variado, trazia em ritmo de forró músicas como “créu”, “cada um no seu quadrado” e outras da mes-ma categoria, todas interpretadas por “Robinho dos Teclados”.

Os adolescentes, com a energia que lhes são ca-racterísticas, pulavam e gritavam com suas rou-pas justas, curtas e de cores vivas; nos pés, ves-tiam sandálias pretas com fivelas douradas, como aquelas vistas nas prateleiras de brechó ou as en-contradas entre as poças depois da madrugada. Os dedos, sempre com esmaltes cintilantes, saiam e abraçavam as palmilhas chegando quase a to-car o chão, sobra sempre sandália no calcanhar. Em seguida começavam as músicas românticas. Lucas e eu decidimos tirar um par para dançar. Ele tirou uma garota de estatura baixa, um pouco in-chada, não chegava a ser gorda, pele queimada de sol, cabelo escuro preso e laranjado nas pontas. Eu tirei um rapaz alto, bem moreno, corpo desenvol-to e cheiro forte de suor. No fim da primeira mú-sica romântico-cafona nossos pares nos soltaram, a impressão que deu foi que estávamos infringin-do alguma regra, éramos os únicos turistas, e al-

gumas pessoas nos observavam de canto de olho.

Terminou a apresentação, e, ao mesmo tempo em que os adolescentes gritavam pedindo a volta da mú-sica, aparece uma senhora bem velhinha que carrega-va um cestinho de palha, como aqueles que existem nas igrejas católicas para os devotos doarem dinhei-ro, recolhendo o mísero pagamento do músico.

Volta a música, agora um techno-brega daqueles que ficam gravado no teclado, e os adolescentes canta-vam gritando e pulavam incansavelmente. Ficamos em dúvida se a aclamação era mesmo para o Robinho ou apenas para a música. Dançamos o rit do momen-to “não vale mais chorar por ele, ele jamais te amou...”

Caminhamos para a rave.”

FiOReLa BuGaTTi

Nasci em um Porto de adjetivo Alegre. Era o início dos anos 80. Inicinho mesmo: segundo dia do pri-meiro ano da então nova década. Foi ancorada nes-se porto de rio chamado Guaíba que vivi boa parte da minha vida. Um tanto pela conjuntura (um na-moro acabado e uma faculdade de história conclu-ída) e outro tanto pela vontade plantada em mim desde pequena de “ampliar horizontes” - grande Seu Marconi! - resolvi cruzar oceanos e conhecer outros portos. O ano era 2004. Parti em busca. De paisagens, experiências, pessoas, mas principal-mente, em busca de mim mesma. Fui para bem longe. Primeiro Itália e depois Espanha. Durante

Page 142: No Caminho dos Encantantes

todo esse tempo acumulei bons e verdadeiros ami-gos, o grande amor, algumas línguas, umas tan-tas histórias para contar e um (quase) mestrado em gestão do patrimônio cultural. Foi o encontro com um peixe pequeno de nome Piau e seu convite para mergulhar por esse Brasil se encantando com a cultura popular que me trouxeram de volta. Sou a seta na reta, direta. Prezo por sinceridade, inte-gridade e respeito. Tudo o que foi, tudo o que já não é e tudo o que está por vir a ser.

Museu vivo do Fandango

Iguape, litoral sul de São Paulo, Brasil. Região de praias, mangue, vegetação de restinga e muita Mata Atlântica. Fusão do índio com o português e, em menor medida, com o negro que se eviden-cia no cultivo da mandioca, na arquitetura colonial das ruas do centro histórico, na produção de cesta-ria, no uso do pilão e na confecção de instrumen-tos musicais. Elementos que compõem um modo de viver baseado na agricultura e pesca de subsis-tência e no artesanato.

Uma das principais formas de expressão cultural dessa região é o fandango, manifestação de música e dança que tem sua origem nos mutirões organiza-dos entre os vizinhos para o trabalho na roça ou na construção de casas. O baile de fandango era ofere-cido como forma de pagamento pelo serviço presta-do. Música e dança como elementos indissociáveis de um modo de viver em comunidade. Foram as transformações decorrentes do crescimento urbano

e das alterações no estilo de vida que fizeram com que o fandango de certa forma perdesse sua força, sendo mantido apenas por algumas famílias e gru-pos que ficaram à margem desse processo.

De uns anos para cá, diversas iniciativas levadas à cabo por associações de moradores, universidades,

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artistas, poder local e governo federal vêm sendo realizadas com o objetivo de registrar, preservar e difundir o fandango enquanto forma de manifes-tação artística, identidade e memória. A criação em 2005 do Museu Vivo do Fandango faz parte desse movimento.

Idealizado pela Associação Caburé em conjun-to com uma série de lideranças locais, o Museu se estende na faixa litorânea que vai do norte do Paraná ao sul de São Paulo - Morretes, Paranaguá, Guaraqueçaba, Cananéia e Iguape – área onde se concentra a tradição fandangueira. Como o pró-prio nome diz, a vontade nasce da ideia de se criar um museu vivo, que tem o território como sede, os saberes e memórias como coleção e a própria co-munidade como sujeitos do processo de documen-tação e transmissão do seu patrimônio.

Cada uma das localidades que compõe a rede do Museu Vivo tem uma maneira particular de fazer fandango – certo modo de tocar a rabeca, de de-nominar a viola, de entoar a voz. Aqui na Barra do Ribeira, em Iguape, conhecemos o Cleiton do Prado Carneiro - menino mestre construtor de ra-beca – membro ativo do Museu e importante fi-gura que trabalha pela difusão e afirmação do fan-dango e da identidade caiçara como um todo.

LuCaS KiLeR

Nasci em Cordeirópolis, cidade de nome curio-so, numa noite de quinta-feira de outubro. Filho

único, de uma mineira que veio cedo pro interior de São Paulo e de um dos gêmeos que tocavam na banda da cidade. Na infância, brinquei muito. Sozinho, com primos e na rua de casa. Na adoles-cência, fiz música. No colegial, um intercâmbio. Na faculdade, artes em Londrina, onde descobri a paixão por fotografia, por vídeo, a paixão pelo in-visível. Fiz amigos diversos que guardo até hoje. Já trabalhei em locadora, aula de inglês, monito-ria, com edição, com fotografia, assistência de di-reção. Já tive amor platônico e também interné-tico. Já tive amor eterno e paixões diárias. Várias

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caras, vários nomes, vários quases. Tenho sobre-nome Kiler, mas tenho Silva também. Às vezes quieto, me calo. Coletivamente paciente, indivi-dualmente complicado. Acredito com curiosidade. Desacredito com dor. Tenho várias dúvidas e mui-tos sonhos e ainda existe espaço em mim para en-chê-lo com mais saudade.

Londrina e o inicio da viagem

De volta a Londrina após quatro anos? Não lembro direito. Já faz algum tempo. Passear pela cidade foi “labirintinoso”. Revi rapidamente Kadu, amigo que tanto amo, fui me reencontrar com a Tatu, após anos no silêncio. Acredito ter sido uma das melho-res coisas desse meu retorno à cidade. Ela e suas eternas plantas, o mesmo jeito, as ideias incríveis, borbulhantes. Depois revi a Jack, cheia de apare-lhos agora, mas ainda assim linda e amando, e toda ¨jeca¨ como ela mesmo fala, o que dá toda a graça. Londrina tem cheiro de juventude, a eterna Terra do Nunca continua adolescente, e a cada es-quina que dobrava meu coração apertava, uma memória renascia, nostálgica Londrina, onde tudo começou. Nas ruas repetia em voz baixa: Como gosto de você, como gosto de você, como gosto de você.

Finalmente a sensação da estrada chegou. Deixar Londrina não é ruim, visto o que me aguarda ser muito mais instigante do que qualquer memória. Dirigimos o dia todo e não paramos momento al-gum para comer. Me empanturrei dessas bolachas

social club. O primeiro pacote ok, mas quando se chega ao quinto causa certo enjoo. A vontade de chegar logo é tanta que não nos incomodamos com a fome. Só estrada, estrada, estrada. Resolvemos descer pela Serra de Paranapiacaba. Que escolha sábia. Quanto verde, quanto cheiro de mato, es-trada de terra. E em certas curvas vinhedos sem fim e um cheiro macio de uvas que invadia o carro. Revezamos o volante e a direção quando me per-tencia fazia com que esquecesse todas as coisas não resolvidas ou as dúvidas ainda existentes. Fui largando tudo lá pra trás ao som de um rockezi-nho, ora eletro, algo moderninho pra no fundo no fundo me reconhecer em referências não reconhe-cidas. É engraçado como as coisas se tornam pe-quenas na estrada. A chegada a Iguape foi linda. Em um final de tarde atravessamos a balsa e ao chegar em um vilarejo tive uma imagem de algo escondido do mundo, o mundo frenético de Sampa ou mesmo Londrina. A cidadezinha é pequena, uma vila, as ruas são de grama, e o mar duas qua-dras da casa. Tomei banho de lua, nu, eu e Fiorela. Ainda me entrego ao escuro, mas com essas pes-soas sinto que a claridade chegara mais rápido do que imagino.

FLavia MieLniK

Nasci em São Paulo. Vivi até meus 23 anos na mesma casa de tijolos, vidros, madeiras e jardim. Alimentada por lápis de cores, cresci tropeçando em papéis, agarrando em livros, réguas e esqua-dros para não cair. Fui estudar arte e descubri que

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o desenho é minha ferramenta de reconhecimen-to do mundo, dos ruídos das cidade, das formas das pessoas, da organização da minha casa e com ele me sinto segura para rascunhar meu caminho. Na IV Bienal de Arquitetura de São Paulo, com a elaboração da obra “Lâminas”, fui despertada pela magia da arquitetura e as histórias que podemos criar a partir dela.

Com o projeto “Quarto Plano”, que venho traba-lhando desde 2004, mergulhei no estado de trans-formação das estruturas físicas do meio urbano, buscando formas de aproximar o espaço arquite-tônico ao espaço da memória, como resposta ime-diata ao tempo que vivimos e o ritmo acelerado em

que nossas cidades se modificam. O amor por mi-nhas raízes convive com a apaixonada e impulsiva curiosidade de percorrer outras realidades. Guiada por um motor - às vezes mais forte, às vezes mais frágil - distancio-me de São Paulo para voltar a descobrirlo e me encanto pelo misterioso silêncio festero que me guia nas andanças e itinerâncias da vida. Em cada viagem e nos cinco anos que passei na Espanha repousam a infinita motivação em ta-tear memória-tempo-lugar nutrindo meu proceso de criação e minha paixão por gerar leituras e re-gistros de nossa sociedade.

CHiCO MaCieL

Navci em São Paulo. Aperum, samus nobis aut aut rem qui optatis maio cum que doloruptate non-sendis rem sam, optatis aut ad quatam nonsed ut facepro del inciae perore omnist, non remque eum lacipsam aut doloriam que cusdand anduntis unt eatur auditatia dolore doluptam, eum quiae aper-cia qui con ratium que reriberum, qui volupta do-lorio volutem quid expe voluptatur a simaion ra-tios pro ipid estendi od quis alitia dolora sandeli quodis ad etur re pa apero magnis volorit, que enia qui di dolo excea volorum non est, omnieni omnis volorpo rehenti atest, oditam fugiaep eratis ut ad et, occat laut latis aut doluptatem quaspe nusant poribus, odigene ssincit atibus quae. Nam con co-net pratemquam ex ex excerio omnis nim sunt.

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Agora uma Caravana que faz da arte e da sensibilidade a sua arma. Anos de sonhos, meses de estrada, dias de magia. O desejo de um professor universitário que quis ir além. Estudou arte, estéti-ca, conceitos, teorias... deu aulas, estudou, deu aulas novamente,

estudou... foi para fora do país e, a distância, olhou sua terra com mais pro-ximidade. Voltou. Queria ir além. Foi para dentro. Depois de muito sonhar e economizar (mergulhar para dentro tem custo), junto com Bruna, sua compa-nheira de jornada, e outros bons amigos, jogaram-se em nosso Brasilzão. Este é um livro que fala de povo e de suas habilidades, seus sentidos e sentimen-tos. Um povo que não faz separação entre trabalho e arte, razão e magia. Está tudo embolado. Neste livro está expresso um pouco deste sentimento de povo, desta fala que sai do fundo de nossa alma e diz para nós mesmos o que vem a ser povo. Um povo para além de estereótipos e folclorizações. Um povo que se mira no espelho e se reconhece como tal.

C T

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