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Nota do tradutor - visionvox.com.br · dela e não se fixa, e ela — já a atingira uma vez a desgraça — sente de imediato, eis aí outra vez, já toca em mim, seus dedos frios

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Nota do tradutor

O hebraico é uma língua sintética e de palavras curtas, a maioria oxítona, muitasparoxítonas, quase nenhuma proparoxítona. Certas declinações nominais (a deposse, por exemplo, numa fusão dos pronomes possessivos com o substantivo ouadjetivo), assim como declinações de objeto direto ou indireto, e também as vozesverbais (que são sete), têm formas sintéticas que se reduzem a uma só palavra.Flexões de plural e de gênero têm, quase sempre, a mesma construção, comdesinências fixas, e são quase sempre oxítonas. Muitíssimas formas nominais(substantivos e adjetivos) seguem determinados padrões de combinação dasconsoantes do radical com as vogais que lhes são intercaladas (e que raramenteaparecem na escrita cotidiana e na literária em prosa). Disso e de outros aspectosresulta que o texto hebraico é composto de frases consideravelmente breves emarcadas por ressonâncias, “batidas”, ecos muito frequentes, mas que decorrem“naturalmente” da sintaxe, da gramática e do vocabulário da língua.

A fala de determinados personagens de Fora do tempo é uma prosa dramática,marcada graficamente pela quebra de linhas. Em acréscimo, há a mescla de estilos,gêneros de discurso e registros de uso (coloquialismos, formalismos, biblicismosetc.), o que por vezes confere ao texto uma estranheza muito própria, como queressaltando uma (aparência de) pouca elaboração ou depuração de linguagem. Esseselementos estão longe de ser irrelevantes nesse texto moderno que tem evocações doambiente e do drama medievais, escrito num hebraico “duro”, sem a profundidadehistórica da continuidade literária entre o bíblico e o contemporâneo (não existe umhebraico medieval recuperável).

O espírito da tradução foi de tentar preservar a carga dramática do texto e aomesmo tempo buscar aproximações ao modo como soam as frases hebraicas —considerando-se que o português é uma língua muito menos “seca” e sintética,tendendo a soar mais fluente e nuançada.

Como tradutor, muitas vezes não procurei criar ressonâncias onde o textohebraico contém ressonâncias “naturais” de uma (digamos assim) prosa escandida;

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por outro lado, introduzi ressonâncias “forçadas” — não rimas — em trechos queparecem ser nitidamente de prosa, às vezes com o sacrifício de coerências entre, porexemplo, formas de tratamento pessoal, alternando entre segunda e terceira pessoas.O objetivo foi recriar em português uma mescla linguística equivalente à do originalhebraico, entre o rude e o sublime, entre o prosaico e o (pseudo)poético, que fazecoar e ressoar vigorosamente o roteiro dramático.

Paulo Geiger

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anotador dos anais da cidade: Na hora em que estão sentados à mesa do jantar, orosto do homem de repente se transforma: num movimento brusco ele empurra oprato a sua frente. Facas e garfos tilintam. Ele se levanta e fica de pé, e parece nãosaber onde está. A mulher se sobressalta em sua cadeira. O olhar dele paira em voltadela e não se fixa, e ela — já a atingira uma vez a desgraça — sente de imediato, eisaí outra vez, já toca em mim, seus dedos frios em meus lábios. Mas o queaconteceu? Ela sussurra com os olhos, e o homem olha para ela com espanto —

— Eu preciso ir.— Para onde?— Para ele.— Para onde?— Para ele, para lá.— Para o lugar onde aconteceu?— Não, não. Para lá.— O que é lá?— Não sei.— Você está me assustando.— Para vê-lo só mais um instante.— Mas o que vai ver agora? O que restou para ver?— Talvez lá se possa ver? Talvez até falar com ele?— Falar?! anotador dos anais da cidade: E agora os dois se dão conta. Despertam.— A sua voz, mulher.— Ela voltou. A sua também.— Tive tanta saudade da sua voz.— Pensei que nós... que jamais, nunca mais —— Mais do que da minha voz, tive saudade da sua.— Mas o que é lá, pode me dizer? Não há um lugar assim, não existe lá!— Se vão para lá, lá existe.— E não voltam de lá, ninguém voltou ainda.— Porque só mortos foram para lá.— E você, como irá?— Eu irei para lá vivo.— E não vai voltar.

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— Talvez ele espere que vamos até ele.— Ele não. Já faz cinco anos que ele é só não e não.— Talvez ele não compreenda como desistimos dele assim, tão depressa, no

momento em que nos comunicaram...— Olhe para mim. Nos meus olhos. O que está fazendo conosco? Sou eu, você

vê? Somos nós, nós dois. Esta é nossa casa. A cozinha. Vem, sente aqui. Vou servir asopa.

homem:É bela —tão bela —é belaa cozinhanesta hora delaquando você serve a sopae aqui é quente e ameno, e o vaporcobre a vidraça friada janela — anotador dos anais da cidade: Talvez por causa dos anos de longo silêncio, sua voz

é rouca, extingue-se num murmúrio. Ele não tira dela os olhos. Ele a olha tanto quea mão dela começa a tremer.

homem:E mais belos que tudo seus braços,redondos, macios,a vida está aqui,querida,por um momento esqueci:a vida está no lugarem que vocêserve a sopasob o círculo de luz.Bom ter lembrado:

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estamos aquie ele lá,e há uma fronteira eternaentre aquie lá.Por um momento esqueci —estamos aquie ele —mas não é possívelmais é impossível! mulher:Olhe para mim. Não,não com esse olharvazio,contido.Volte para mim, para nós,volte. Fácil,tão fácil renegara nós, o círculode luz, essesbraços macios,a ideia de que voltamosà vida,e de que o tempoapesar de tudopõe curativosfinos — homem:Não, não é possível maisassim,não é possível maisque nós,que o sol,

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que os relógios, as lojas, os bares,que a lua,os casais, os pares,que árvores nas aleiasverdejantes, que sanguenas veias,que primavera e outono,que genteinocenteexistenteno mundo.Que filhosdos outros,que sua luze calor — mulher:Cuidado,você tem ideiastão frágeiscomo teias — homem:À noite eles chegaramtrazendo na bocaa nova.Longo caminho fizeram,graves, calados,e talvez duranteprovavam, lambiama nova, furtivamente.Num espanto de criançasconstataram que se pode retera morte na boca como

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uma balade veneno, à qual eles por milagresão imunes.Abrimos para eles a porta,esta aí, aqui estávamos,você e eu,ombro a ombro,e elesno umbrale nósdiante delese elespiedosamentecontidose silenciososali de pésopraram em nóso ventodos mortos. mulher:Era um silêncio terrível.Em volta triturava um fogofrio. Eu disse:esta noite viriam,senti-o. Pensei:venha, o caos, o vazio. homem:De algures, de longe,ouvi você dizer:não temam,quando ele nasceunão gritei, tampouco agoragritarei.

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mulher:Nossa vida de antescontinuoua brotar em nósuns minutos mais.A fala,os gestos,expressões faciais — homem e mulher:Agoranum instante, não mais,afundamosos dois. Calamoscom palavras iguais.Não por elechoramos,o canto da vidaantes vividachoramos, o admiravelmentesimples, aleveza, orostoliso esem rugas. mulher:Mas nos prometemos,juramos,ser, sofrerpor ele, ter saudadese viver.E agora, espere,

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o que houve, de repente,para que você assimse dilacere? homem:Depois daquela noiteveio um estranho e seguroumeu ombro e falou: salveo que restou.Lute,tente curar.Olhe nos olhosdela, grudenos olhos dela,todo o temponos olhos dela —sem descurar. mulher:Não volte para lá,àqueles dias não devevoltar mais,não volte seu olharpara trás — homem:Naquele escuro eu via minha frente um olhochorosoe um olhoenlouquecido.O olho de um homemterminale o olhode um animal.

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Animal já metadena boca da fera,uma presa dessangrando,desvairando,de teus olhos me encarava — mulher:A terraabriu sua boca,a nós engoliue vomitou.Não voltepara lá, parao que o seduz,não saiaum passo sequerdo círculo de luz — homem:Não pude, nãoousei olharentão seu olhar,aquele olhoenlouquecido,de você não estar — mulher:Não vi você,não vinadanem no olho do homemnem no olhodo animal. A raizde minh’alma arrancada

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num calafrio.Frio, fazia muito friotambém agorafaz frio.Venha dormir,o agora é tardio. homem:Cinco anoscalamosaquela noite.Sumiu você primeiro,depois sumi eu.Em você foi bomo silêncio, e em mimme apertoua garganta. E umaapós outra morreramas palavras, e ficamoscomo uma casaem que lentamente se apagamtodas as luzes,até que se feza escuridão da mudez — mulher:E nelade novo o achei,e a ele. Envolveunosso trioum manto sombrio,enrolados nele estávamoscom ele, e mudos estávamoscomo ele. Trêsfetos que a tragédia

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concebeu — homem:E juntosnascemosno outro lado,sempalavras, semcores, e aprendemosa vivero negativoda vida (silêncio) mulher:Olhe,de palavra em palavrao algo secreto entre nósse esgarça, se dissolvecomo um sonhoque a luz de um luzeiroilumina. Pois havia no calarum milagre,e um segredo no silêncioque nos tragou, junto com ele,em que ficamos sem vozcomo ele, em que falamosna língua dele.E o que têm as palavras —o que tem a sortedas palavrasa ver com sua morte?

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anotador dos anais da cidade: No silêncio que cai depois do grito dela o homemrecua até suas costas tocarem a parede. Em movimentos lentos, como a dormir, eleestende os dois braços para os lados e caminha ao longo da parede. Contorna apequena cozinha, em toda a sua volta —

homem:Conte,me contede nósnaquela noite — mulher:Sinto aqui algumsegredo: você rasgaas ataduras parapoder bebero seu sangue, raçãono caminhopara lá. homem:Aquela noite,me contede nósna noiteaquela — mulher:Vocêmerodeia comoum predador. Me cercacomo um pesadelo.Aquelanoite, a noite

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aquela.Você quer ouvir sobreaquela noite.Nestas cadeiras sentamos,você sentouaí, eu aqui. E vocêfumou, eu me lembrodo seu rosto vindoe indo na fumaça, e lentamenteficando um poucomenos, menosvocê, menosgente. homem:Caladosaguardamos a manhã.Manhãnãoveio.O sanguenão correuna veia.Levantei, a envolvinum cobertor,você tomou minha mão, olhoudireto nos olhos meus,o homeme a mulherque éramoscom a cabeça acenaramo adeus. mulher:

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Um nãosoprou sombrioe friodas paredese enfeixou meu corpoe fechou e trancoumeu útero. Pensei:estão lacrandoa casaque uma vezfoieu. homem:Fale, conte-memais, o quedissemos, quem falouprimeiro? Estavamuito quieto,não estava? E a respiração,eu me lembro.E suas mãos secontorcendo, umana outra, e fora issotudose apagou. mulher:Um fogo frioe quietoconsumiu em volta.O mundo de fora encolheu,suspirou, se apoucoue se foi, até restar o pontual,minimal,

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negral,terminal.Pensei — é precisodaqui fugir.Mas sabia — já não hápara onde ir. homem:O momentoem que issoaconteceu,em que issoveio a ser um fato — mulher:Num instante nos lançaramnuma terra inóspita.Vieram na noite, bateram à nossa porta,disseram: na hora tal e talno lugar tal e tal, vosso filho,assim e assim.Depressa, depressa teceramuma rede compacta, horae minuto e lugar exato,e a rede tinha um rasgo, vocêcompreende? Na redecompacta tinha,parece, um rasgoe nosso filhocaiuno abismo — anotador dos anais da cidade: E quando ela diz essas coisas, ele para de andar em

volta dela. Ela olha para ele com olhos opacos. Com os braços caídos, perdido, ele

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fica diante dela, como se nesse momento o tivesse atingido uma flecha disparada hámuito tempo.

mulher:Voltareium diaa vê-lo comovocê é, e não comoele não é? homem:Posso lembrarde você semele não estar — o teu sorriso, inocentee otimista — de mim também,sem ele não estar, eu possolembrar. Mas dele,que estranho:dele, sem a ausência dele, não possomais lembrar. E quanto maisse alonga o tempo,mais parece quequando ele ainda estavajá se exumava deleseu não estar — mulher:E às vezes, saiba você,tenho saudadedaquela mulher desvairadae seu olho injetado de sangueàs vezes acredito nelamais do queacredito em mim.

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homem:Por causa dela eu ponhominha almaem suas mãos e lhe façouma perguntaque eu mesmonão entendo:Você irá comigo?Para lá,para ele? mulher:Naquela noite pensei,agora vamos nos separar. Juntos não maispoderemos estar. Quando eu lhe dissersim,você abraçará o não,a ausência delevocê vai abraçar — homem:Como chegarmos, penseinaquela noite,como achegar-nos um ao outro?Quando eu a beijarcortarão minha línguaos cacos de vidrodo nome deleem sua boca — mulher:Como olhar em meus olhosse ele está láprimal como um fetono negror

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da pupila?Todo olhar, todotoque serãocutiladas. Como amar,pensei naquela noite,como amaremosse a elenum grande amorconcebemos? homem:O instanteem que issoaconteceu — mulher:Aconteceu? Olhepara mim, diga:isso aconteceu? homem:E issose avoluma,sobe,exubera, um poçoque não temfim. E eujá sei — enquantome restar um alento,desse poçobeberei e sangrareia trevadessemomento.

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mulher:Uma solidãosem igualdecreta o lutoao vivo,como a solidão com quea doençaenvolveo sofrido — homem:Mas na solidãoesta, em quea alma como quese separa do corpo —eu quaseme dilacerode mim, lánão estou maissó, sónão estoumais,desde então —e lá nãosou umsó, e nuncaserei umsó — mulher:Lá eu toco neleno interior delebem no fundocomo nunca

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toquei nempor um segundoem homem algumno mundo — homem:E ele,ele toca em mimde lá tambéme com toques taisnão tocou ninguémem mimjamais — (silêncio) mulher:E se lugar assim houvessecomo lá,e lugar assim não há,você sabe — mas sehouvesse,para lá já iriaum entre todos,se levantariapara ir. E quantomais longe você for,como saberá voltar,e se não voltar,e se não achar,e não vai acharporque não há,e seachar, já

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não vai voltar,não o deixarãovoltar,e se voltar,como vai voltar, talvezvolte tãooutroque nãoestará de volta,e quanto a mim,como ficarei se vocênão voltar,ou se voltartão outro, que não estaráde volta? anotador dos anais da cidade: Ela se levanta e se abraça a ele. Suas mãos

percorrem agitadas o seu corpo. Sua boca tateia e busca o seu rosto, seus olhos, seuslábios. De onde estou, nas sombras do lado de fora de sua janela, é como se ela sejogasse como um cobertor para abafar um incêndio —

mulher:Naquela noite pensei,já não nos separaremosjamais.E mesmo se quiséssemos,como poderíamos?Quem iria mantê-lo, quemo abraçariase nós doiscom nossos corposnão envolvêssemossua plenitudevazia?

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homem:Venha, o queé mais simples do que isso? Sempesar e cismare pensar: a mãee o pai delese levantame vãoaté ele — mulher:Em que olhos olharemos para vê-lodobrado no negrorda pupila,estando lámas distante?Com a mão de quemtrançaremos os dedospara tecê-loem nossa carneum instante?Não vá. homem:Os olhos,um só fulgorde seus olhos —como é possível, comoé admissível nãotentar? mulher:E o que vai lhe dizer, infeliz,insano, o que

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vai lhe dizer? Que algumas horasdepois dele veio-nosa fome?Que o teu corpoe o meu como doiscarrapatos se agarraramà vida e grudaramum no outro e nosobrigaram a viver? homem:Se estivermos com elemais um instante,talvez ele tambémestejapor maisum instante,num olhar —respirar — mulher:E o quê, após?O que serádele?E o quê, de nós? homem:De nós, um coração quebrado,talvez morramos como ele, num instante,ou fiquemos pendentesa sua frente, balançandoentre os mortose os viventes —há cinco anos cientesdo cadafalso da saudade

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que eu sinto e tu sentes — (silêncio) homem:O cheiro que exalaseu corpo, mulher,em sua dorquando de súbitomergulhae rapinao amargo olor,do qual sempre me vemo cheiro dele também. mulher:Seus cheiros —o doce, o picante,o azedo.Seu cabelo esvoaçantesua carne odorantedo corpo o temperosimples, bastante — homem:Como suava depois de jogar,você lembra?Todo ele ardente, a exultar — mulher:Ah, tinha cheiros para cada estação,cheiros de terra nos passeios do outonoe cheiro de chuva emanando do suéterde lã,

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e na primavera vocês dois labutavam no campo,e o cheiro do suor do trabalho,vapor de homens obreiros,enchia a casa inteira. homem:Mas eu gostava mais do verão,com os aromas do pêssegoe da ameixaquando o sumo lhe escorria no rosto — mulher:E ao voltar da fogueira com amigos,exalava a noite e a fumaçaem seu hálito — homem:Ou quando voltava da praiacom cheiro de salnos cabelos — mulher:E na pele.E o cheiro de seu cobertor de bebêe o cheiro de suas fraldasquando sugava o leite,e parece que sóum minutodepois — homem:— seus lençóis de rapazapaixonado... mulher:

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Às vezes, quando estamosjuntos, sua tristezase agarra à minha,minha dor em seu sanguetransfundida,e súbito se eleva de nóso eco de seu corpo intacto,curadoe um instante se pode sonhar a vidacom ele aqui, a nosso lado. (silêncio) mulher:Até o fimdo mundo eu iriase me chamasse, vocêsabe. Mas você nãovai até ele,vai a outrolugar, e para lánão vou, nãopoderei. Não irei.É mais fácil irdo queficar.Há cinco anos eumordo minha carnepara não ir, não irpara lá,não há, não existelá! homem:

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Se formospara látal lugar haverá,lá. anotador dos anais da cidade: Ela afasta dele seu olhar. Está longe dele como se

ele já não estivesse aqui, deste lado. Ele inspira profundamente e parece quereraspirar para dentro de si toda a pequena cozinha e a casa inteira, e a ela, com seurosto e seu corpo. Então ele se apruma, caminha e passa junto a ela, sua mãorepousa por um átimo em sua cintura, tocando sem tocar. Ele sai da casa, fecha aporta atrás de si.

E para: o céu está baixo e escuro, e a noite, com seu largo peito, o empurra devolta à casa. Ele olha para a porta fechada. Suas pernas hesitam, tateiam. Ele anda,estranho, circundando a si mesmo, num pequeno círculo. Devagar, com cuidado,uma vez após outra, um círculo e mais um círculo em volta dele mesmo. Seusbraços se abrem, os círculos se alargam, ele anda e rodeia o pequeno quintal, agora acasa, anda em volta da casa —

o caminhante:Eis que vou cairagora vou cair — e não caio. Eis que agorao coraçãovai parar e não para. Eis a sombrae a névoa — agora,agoracairei —

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anotador dos anais da cidade: A noite é fria e úmida. Dos grandes pântanos a lesterolam nuvens, cobrem a lua. Mais e mais ele anda em volta da casa, como a esperarque seu movimento desperte a mulher, arraste —

o caminhante:O frioem sua voz, mulher,embaraçameus pés. Como ireisem seu calor, sem a luzde seus olhos em mim? Comoirei sevocê tirousua graçade mim? anotador dos anais da cidade: Seus olhos fitam o tempo todo a persiana arriada,

ele dá voltas e voltas em torno da casa, mas a cada vez parece que vai se afastando,abrindo e se espalhando, além, mais além, caminha, seus círculos se ampliam, sealargam, está indo para lá, não existe lá, claro que não existe, mas e se alguém forpara lá? E se há um homem que vai para lá?

o caminhante:Não estou só, não estousó, murmuronum juramento jurado,e o bafo de sua bocasai de minha bocapara o espelho nublado —não estou só com ele, não estousó — anotador dos anais da cidade: Ele anda em volta de toda a aldeia, mais uma vez, e

mais uma, passa por casas, quintais, poços e campos, por estábulos e redis e pilhas de

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lenha de calefação. Cães ladram para ele e logo recuam dele num uivo, e elecaminha —

o caminhante:Não estou só, com elenão sou um,sozinho estoucom ele em tudoque me constrange,pulsa em mim, vivecomigo, juntocomigo, com ele estou,efêmero, nesse corteimensoque se criou em mimcom sua morte —comigo recrudescee esvaecenão se aquietounão se aquietoume sacodeme amargurame redimeme algemae curae purifica,não me larganão me largaesse meninosolitárioe morto. anotador dos anais da cidade: Uma noite, mais uma noite e mais uma. Coisas

estão acontecendo em vossa cidade, duque, e temo não conseguir anotar todas elaspara vós.

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Eis que agora, meia-noite, no antigo cais junto ao lago, no meio de umemaranhado de redes de pesca, algo se move. Uma cabeça se esgueira para fora eolha em volta. Um corpo pequeno, flexível, se arrasta de dentro desse emaranhado ese senta, ofegante. É uma pessoa, sem dúvida, no rosto imundo brilha a brancura dosolhos assustados, que perscrutam as colinas nos limites da cidade. A boca aberta sevira e olha firmemente como se fosse um terceiro e escuro olho.

Agora eu vejo: é a cerzidora de redes. Talvez vos lembreis, Vossa Alteza — anosatrás, em uma de vossas visitas ao porto, vos deleitastes com sua língua afiada,quando discutiu convosco acerca do imposto sobre agulhas de costura que entãobaixastes, por vossa graça. Um menininho sorridente de cabelo encaracolado estavapreso ao peito dela por um pano colorido e ele se divertiu convosco num jogo deolhares, e vós lhe destes uma moeda de ouro. Não sei qual foi seu destino. De vezem quando eu a vejo perambulando pelas ruas em torno do porto, rosnando,balbuciando para si mesma palavras sem sentido, envolta e emaranhada numaconfusão de redes de pescadores, a ponto de se poder pensar que dentro não háninguém.

Ela salta de repente como que picada por uma serpente. Suas mãos se erguem,apontando para longe, ela suspira —

E se estais desperto, duque, e se vos aprouver olhar por vossa janela, vereistambém: como que uma pequena mancha clara dando voltas em torno da cidade.Um homem está andando, subindo e descendo as colinas —

o caminhante:Um passo,mais um passo, maisum passo,caminhoe caminhoaté você.Uma pergunta lançadaeunum grito aberto meu filho

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se eu pudesseum passo,não mais,movervocê. anotador dos anais da cidade: E no terceiro turno da noite, numa ruela lateral nos

limites da cidade, numa pequena casa de um só cômodo, sentado junto à janela estáo Centauro. Assim ele é chamado na cidade, Vossa Alteza, e eu prometo tentar, embreve, descobrir por quê. Sua poderosa cabeça, coroada de cachos muito brancos,pende sobre seu peito, seus óculos escorregaram até a ponta do nariz, e seus roncosestremecem a casa. Um olhar à direita e à esquerda: não há ninguém. Eu me ergona ponta dos pés e olho para dentro do quarto. A penumbra é densa ali, mas meparece que o quarto está muito cheio, atulhado: montinhos e pilhas estranhas, quetalvez sejam de poeira, ou de lixo, ou um amontoado de móveis antigos, cercam ohomem e às vezes chegam até o teto. É difícil entender como ele pode se movernesse quarto.

Sobre a mesa à sua frente estende-se um cobertor sujo. Algumas garrafas vazias decerveja, canetas, lápis, um caderno escolar, tudo misturado. O caderno está aberto,cada página é pautada em finas linhas azuis. As páginas, até onde posso perceberdaqui, estão vazias.

“Dê o fora daqui, ou eu lhe arranco os ovos”, murmura o Centauro sem abrir osolhos, e eu fujo enquanto é tempo.

Somente quando chego na cerca da casa da mulher de quem me exilei é que meucoração volta a bater normalmente.

mulher do anotador dos anais da cidade:O tempo que passafaz doer. Perdia aptidãodo movimento simples,natural, dentro dele.Sou arrastada nelepara trás, na direção contrária

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a seu fluir, e elefurioso, vingativo —o tempo todo, todo otempocrava em mimaguilhões. anotador dos anais da cidade: E na noite do dia seguinte, numa cabana em um

dos bairros enlameados nos extremos da cidade, uma mulher jovem — parteira deprofissão — num movimento brusco não está mais de joelhos junto a uma baciacom água, e sim de pé, as mãos gotejantes. Até onde posso perceber, não há noquarto uma parturiente, nem um bebê, e na bacia flutuam apenas calças e a camisade um homem. A mulher fica imóvel, como se estivesse congelada. Seu pescoço éuma fina haste, e seu rosto é comprido e delicado. Com passos rígidos ela se virapara a janela e vai até lá. Fora está frio e tempestuoso, e como da chaminé da cabananão sai fumaça — por ela posso olhar para dentro —, imagino que dentro da cabanatambém faz muito frio.

Seu olhar varre a distância, as colinas, na linha do horizonte. Ela está calada, masseus dedos se crispam em volta da boca como num grito, até que eu também prendoa respiração. Quando ela finalmente suspira, seus ombros desabam, como se de umasó vez perdesse as forças.

E seu marido — tórax em forma de barril, crânio avermelhado e raspado, nucacom três grossas dobras —, que durante todo esse tempo ficara sentado num cantodo quarto, trabalhando num par de botas de montaria, pontuando e ritmando osilêncio com as batidas rápidas de seu martelo, logo filtra as palavras através dospregos que tem na boca —

sapateiro: Você está de novo envenenando a alma? parteira: O-on-t-tem ela com-completaria ci-cinco anos. sapateiro: Já lhe disse cem vezes que é proibido pensar nessas coisas! Chega,

acabou! parteira: Acendi uma vela em frente ao r-re-retrato dela e não disse n-n-nada. Você

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nunca pensa nela? sapateiro: O que tem para pensar em quê? Quanto tempo de vida ela teve? Um

ano? parteira: E m-mei-meio. anotador dos anais da cidade: O sapateiro, com toda a força, bate com o martelo

no calcanhar da bota, solta uma imprecação, e chupa com estranho apetite o sangueque jorra de seu dedo.

Já saio de lá cheio de pensamentos. A cidade dorme e as ruas estão desertas. Naextremidade do antigo cais eu paro, espero. As nuvens estão pesadas, e quase tocam aágua do lago. Logo virá a aurora.

E de novo, como na noite de ontem, a cerzidora de redes muda ergue a cabeça dedentro do emaranhado no qual se deita. Olha em volta, procura, como se tivesseouvido uma voz a chamá-la. Eu me escondo atrás de um poste. Ela pula de repente,corre ao longo da plataforma numa velocidade inacreditável, entre esqueletos debarcos e âncoras enferrujadas, e suas compridas redes se arrastam, esvoaçam atrásdela —

Na ponte de madeira se detém. Ouço o sibilar de sua respiração. Quem sabe oque passa na mente dessa criatura infeliz. Ela se agarra à amurada e se sacode comviolência. Quanta força e quanta raiva existem nesse pequeno corpo. Eu meaproximo com cautela, me ajoelho atrás de uma canoa emborcada. O lago estátempestuoso esta noite, e meus óculos se cobrem seguidamente de pequenasgotículas. Em momentos como este, Vossa Alteza, eu quase amaldiçoo minhaobediência cega a vossas ordens. É difícil enxergar daqui, mas me parece quealguém tenta forçar a muda a se virar para trás e olhar para as colinas, e ela lutafalando e cuspindo, e o corpo pequeno e flexível se dobra e se joga para os lados,escrevo depressa e no escuro a mão treme peço desculpas pela letra Vossa Altezatalvez ela queira se jogar no lago e o que farei então faz tantos anos que não toco emninguém e a cabeça dela num movimento brusco é lançada fortemente para trástalvez realmente alguém no escuro lhe esteja quebrando o pescoço —

Sua boca se abriu, revelando os dentes, e de repente fez-se silêncio. E assimsilenciou também o lago como se as ondas não

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mulher muda na rede:Duas migalhas de gentenós éramos,o menino e sua mãe,no eterno espaçodo mundo pairamosseis anosinteiros — anotador dos anais da cidade: E perplexa ela volta e se deixa cair no emaranhado

de redes. Estou com muito frio, Vossa Alteza. Manifestações como essas me deixamintranquilo. E isso de o lago voltar à vida de uma só vez, e as canoas novamente sechocarem umas com as outras e rangerem como se rissem de mim. Tambémzombareis de mim, duque, mas estou disposto a jurar que vi um fino traço de luzsaindo da boca dessa mulher. Talvez apenas uma ilusão causada pelo luar. Mas, naverdade, não há luar algum. E também ocorre que, por um momento, quandocantou, ela era quase bonita. Estou só relatando. E sua voz era cristalina. Eu diria,cautelosamente: celestial. Mas o que entendo eu. E também estou cansado. Tudoisso é muito confuso. Talvez tire um cochilo em uma das canoas.

Um momento —Agora, como um ágil animalzinho, ela escava em suas redes e se cobre com elas, e

já desaparece. Segundo as anotações que tenho aqui — durante mais de nove anosela não pronunciou uma palavra sequer.

E agora, Vossa Alteza, finalmente a aurora. duque:A aurora!De dentro da noiteodiosa,do teatrode seus pesadelos, euvolto, sou resgatadoe me recomponhopedaço

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a pedaço, mosaicode duque: eis minha mãoestendidapara o pão,com seu fresco aroma emorna textura,e antes, antesmeu olharà janela vai, se esvaipara dois passarinhos na poça,para o raiar da aurorapurpúrea, veja,duque, que bênção:a sua frentecomo numa bandejaum dia tenro, bebêcujos dentes ainda não nasceram — mas já há uma semana, bem longe,nas colinas, um homemcomo uma navalhaaberta andae corta o céucom a cabeça — o caminhante:Fareivocêse mover,farei se movervocê,meu filhoarrancado,gelado,

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meu filhocastrado.E cada dia é mais pungente,e a cada dia você é maisrenitente, e maise maisexigente — anotador dos anais da cidade: Toda vez que a parteira sai do quarto o sapateiro

corre à janela. Seus olhos se agitam, procuram nas colinas, seus lábios se movemcomo se mastigassem ofensas e reprimendas. O martelo está em suas mãos.

E agora ele me surpreende em seu quintal, atrás do galinheiro vazio. Ele não vema meu encontro, não me expulsa, nem mesmo me ameaça com o martelo. Eu lhemostro com cautela o caderninho e a caneta. Tenho a impressão de que ele assente.

parteira:Em frente a minha camana p-p-paredetem um relógio redondoant-t-tigo,um mecanismo fraco e veterano,ponteiros est-t-tacionados na mesmaho-ho-rae no mesmo minuto, já faz m-m-maisde um ano anotador dos anais da cidade: A sua voz chega abafada e monocórdia do quarto ao

lado. O sapateiro se afasta da janela. Anda para trás. Para trás? Estranho: pareceandar dormindo, adivinhando o percurso, até que as costas estão contra a parede. Osdois braços erguem-se devagar para os lados. A cabeça raspada, vermelha, bate comforça na parede, ao ritmo das palavras que chegam do outro quarto.

parteira:E somente —o ponteiro dos s-s-se-segundos

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silenteainda palpitasalta e insisteno tempo que restatodo o tempo que aindasubsistesalta e resisteao recuonão desisteavançae persisteem passarpara a hora zeroou somenteememem ser,ser somente um segundo inocente pleno simples não mais não menos somenteisso meu Deus somenteser. duque:E aqui, no palácio,em meu quarto,assobia a chaleira, do caféo vapor, na calma, na lentidãono torpor, não há como duvidar:é um duqueexemplar —não.Não.Não é donode si mesmo quem aqui acordoude seu sono,

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com os ossos ocos,no abandono,ah, a força do pesoda tragédia (você pensouestar defendido,duquinho, pensouque era imune. Seus batalhõespor toda a terra se espraiam, mil cavaleirossobre mil cavalos, e vocêé estilhaços de argila). Mas levante-se,enfrente seu dia,vista em silêncio a pele postiçaque é seu nome, aviveno coração a brasamortiça, convençacom toda a força asi mesmo que ainda se lembra como ésimplesmenteser; como fazer nada, por exemplo,como se faz nada? Comoalguém faz nadasem nada querer, como podeesquecer por um momentoo que está entalhado, cauterizadolá dentro?Em suma —este fingido, matreiro,que se faz de alguémrotineiro, cujo olharse deixa levarà janela aberta, cuja mãose estende convicta ao pão — E dentro disso, súbito,eu caio

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mergulho,sou apenasa sombra da sombradaquele que anda lásozinho, de quemgrava em minha terraem pesados passosa sentença:tudo que existetudo que existe(ah, meu pequenomenino, queridoperdido) —tudo existentedoravanteecoaráo ausente. anotador dos anais da cidade: “É como um balbucio”, explica o Centauro quando

passo por sua janela ao anoitecer do dia seguinte: “Um balbucio ou uma espécie defarfalhar, seco, dentro da cabeça, que jamais para”.

É sem vontade, Vossa Alteza, que ele presta seu testemunho. Só depois que lhemostro a ordem ducal com vossa assinatura e o selo com vossa imagem, para que eleos examine, ele compreende que não tem alternativa a não ser cooperar.

centauro: Minuciosamente. Você precisa saber o que se passa comigo? Realmente

interessa ao traseiro do duque saber minuciosamente o que é esse farfalhar em minhacabeça? Então vamos em frente, agarre essa oportunidade pelos colhões, barnabé:escreva que parece, digamos, com folhas secas. O que você está olhando feito umidiota? Folhas! Mas secas, certo? Esfarelando-se, mortas, anotou? E alguém pisanelas, o tempo todo, anda e pisa... e então? Isso explica minuciosamente? O duqueficará satisfeito? Seu rosto resplenderá com prazerosa excitação?

anotador dos anais da cidade: Eu pessoalmente, duque, relevo sem muito esforço

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qualquer ofensa a minha dignidade, mas não aceito de maneira alguma queofendam assim o vosso representante, e por isso virei-me para ir embora —

centauro: O que é isso? Sem um beijo? Volte aqui imediatamente! Parece-me,

barnabé, que em sua ordem está expressamente escrito “toda informação que fornecessária às autoridades, sem omitir nenhum detalhe”! É ou não é verdade? Então,por favor, abra agora mesmo seu caderninho e comece a escrever:

“Alguém caminha o tempo todo pisando nelas, nas folhas secas” — escreva! —“indo e vindo, indo e vindo, em círculo, arrastando os pés...” — anote — “hrrrsss,hrrrsss” — assim, sim, três letras s no fim... é com certeza um detalhe queesclarecerá a situação minuciosamente para o duque! Mil por cento de certeza queisso vai levantar o dele, assim! Captou, escrivãozinho? Já lhe disseram alguma vezque você tem cara de órfão inglês?

anotador dos anais da cidade: Enquanto eu faço de conta que anoto essa

parlapatice idiota, fico de vez em quando na ponta dos pés e dou uma olhada naspilhas de coisas que atulham o quarto. Organizo uma pequena e rápida lista: umberço de madeira, um carrinho de criança, uma pequena cama, muitas bolas defutebol furadas, cadeirinhas coloridas, um cavalo de pau, um barco de brinquedo,vagões enferrujados de trenzinho elétrico, um chapéu de caubói, uma faixa de penasde índio, um nunca-acabar de folhas de papel cobertas de desenhos e rabiscos...Aliás: todo esse amontoado de coisas está coberto de cocô de moscas e camadas deteia de aranha. Tudo parece estar deteriorado e quebradiço, e a ponto de se esfarelara um simples toque da mão, até mesmo do olhar. E ele lá, vejo aqui da janela,continua a tagarelar, xingar e praguejar. Eu fico na minha. Tênis, patins e sandálias,livros, livros em toda parte, uma pequena carteira escolar, estojos, um urinol verde,uma bicicleta pequena com rodinhas — que tagarele o quanto quiser, reclame,escarneça, de vez em quando eu lhe aceno assentindo, nem dez caderninhos meseriam suficientes, aqui tem todo um museu de infância, talvez o museu de ummenino. Pé de pato de borracha e óculos de mergulho, ursos de lã, leões e tigres depelúcia.

Ele parou de falar. Olha para mim por cima de seus óculos. Talvez suspeitando.Um acordeão pequeno, uma pasta, soldadinhos de chumbo, pincéis, a situação nãoestá boa, não estou tranquilo, esses olhos injetados de sangue. Já vou parar. Ei, jogosde mesa, o querido Banco Imobiliário, Serpentes e escadas, baralhos de figuras,

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apetrechos para o jovem mágico, uniformes de escoteiro, saquinhos de brindes deaniversários, arco e flechas — como é possível sequer respirar neste quarto?

centauro: É impossível. E agora, se tem amor à vida, escriturário, vá embora

daqui e não volte, tá-tá-tá! Rápido! anotador dos anais da cidade: Álbuns de fotografias, máscaras, um revólver de

brinquedo, chupetas, apitos, uma lanterna de bolso — centauro: Dê o fora daqui, carrapato, ou vou eu até você — mulher que ficou em casa:Cinco anos depois da mortede meu filho, seu pai saiupara encontrá-lo.Eunão fui com ele.Não fui. Tão intensamente nãofui que desabei. Senti, rejeitada,as pernas se dobrarem sob meu corpo. Ouçoa voz que a mim chegade longe: elecaminha, ele vai. Nãofui.Para láeu não.Para láeunão.O coração palpita, elevai. O sangue lateja,ele vai, tilintamcolheres e garfos, brilhamespelhos, lançam sinais, espelhe-senele, olhe para

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ele, de dia, de noite, elevai. Euiria com eleaté o fimdo mundo. Não para lá,nãopara lá. duque:... e ele talvez se revolte, não tenhocerteza, meus detetivesveem nele um perigo:a frieza de um rebelde, deum homem teimoso,obstinado —mas seus olhos — assim eles escrevemconcluindo o relatório — luzem de azule de inocência, como os olhosde um menino. parteira:J-j-já não saberá,minha filha, que todo homemé uma ilha,que é impossívela outro h-h-homemconhecerpor dentro. F-f-i-ilha que nem mesmo sua mãepoderá ser,e por um minutoao menos, dar-lhe vivência,nela ter sobrevivência,essência de sua es-sência.

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anotador dos anais da cidade: A neblina enche as ruas da cidade. A parteira está à

janela, o olhar nas colinas, os lábios quase beijando a vidraça, e murmura algo comose estivesse febril. Seu hálito intermitente, fragmentado, se desenha na vidraça comose fossem hieróglifos, e logo se evapora, às vezes ainda antes de eu ter anotado. Deonde estou — desta vez atrás do poço em ruínas no quintal — dá para ver seumarido, sentado na banqueta e dirigindo a ela um olhar fascinado, o martelo namão.

parteira:Também o que s-s-sou não maisse ligará ao que você é, também o que soua mim mesma não vai maisse ligar. Tudo se desligou. Dizem que hácoisas no mundo. Dizemque entre as c-c-oisas háligações. Eu o-o-lho paraos que dizem. Euvejomigalhase furos,grânulosde membros e de partes — centauro: Mais uma vez, e uma vez mais ele pisa nas folhas dentro de minha

cabeça, dando voltas, esmigalhando-as, de dia e de noite, sempre o mesmo ritmo,sem nunca mudar, já faz quinze anos, desde então, mesmo quando durmo, mesmoquando defeco, sim, escreva, para que pelo menos em algum lugar esteja escrito, etambém tem cochichos o tempo inteiro, assim: hmmm... hmmm... e então ele atacacomo um enxame de vespas, zzzzzz, perfurando o cérebro: isso aconteceu, issoaconteceu, isso aconteceu com ele, isso é para sempre, isso é para a eternidade, e elenão, ele não mais —

Ah... diga, barnabé, isso só acontece comigo lá dentro, certo? Você não pode ouvirisso, não é?

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anotador dos anais da cidade: Esta tarde, depois que dele me despedi, não sei porque dei mais uma ou duas voltas para vê-lo. Na janela, seu rosto grande e pálidoficava cada vez mais tristonho à medida que eu me afastava. É admirável a lentidãocom que se movem seus longos cílios. Uma fina faixa de luz fulgiu de repente nadireção do lago e lampejou contra o céu escuro. Corri para lá —

mulher dentro da rede:Duas migalhas de gentenós fomos,o menino e sua mãe,no eterno espaçodo mundo pairamosseis anosinteiros,e a mim pareceramum só minuto sutilem que éramos comoum poemainfantil,em que o práticorima com o fantástico Até que veio e soprouo mais leve dos levessoprosrespiroadejoabanobreve brisanas folhas — decretou e assinouvocê para cáele para lá

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se afastaram seus passos —e acabou, terminoue rompeu-seem estilhaços. anotador dos anais da cidade: Agora ela percebe minha presença e se cala. O píer

inteiro nos separa, mas ela me estende os braços como se eu estivesse a seu lado. mulher dentro da rede:Como por lâminasde tesourasfui recortadado retrato da minha vida,o gelo da solidãoe da ausênciaem meus membros,me queimo, me arraso.Pois me tocou,pois fui tocadapelo gélido toquedo acaso — anotador dos anais da cidade: E num gesto brusco ela tapa a boca com as duas

mãos. Acima delas — seus grandes olhos negros se enchem de medo. Se meperguntardes, Vossa Alteza, diria que essa pobre mulher absolutamente não entendeas palavras que lhe saem da boca! Aliás, também me parece que ela realmenteacredita que basta eu me aproximar e tocá-la para que ela se livre desse vãoencantamento, mas eu há quase treze anos não toco em ninguém. Agora devo meapressar, senhor; é quase meia-noite, e posso perder meu encontro com minhamulher.

mulher do anotador dos anais da cidade:Um corpo minúsculo transparentefúlgido havia em mim, um raiodourado, fluindo. Eu sabia: ele

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sou eu, meu alentominha seiva, o sentidode eu ser. Nasceucomigo, pensei, e tambémmorrerá comigo —sem saber que eu poderiaviver maisdo que ele, que eu seriaum exílio, alguémque é ninguém.E que mentirosa vou ser —tal que sem pejosem pestanejoousa dizer:eu. mulher que ficou em casa:Mordicom meus dentes minha carne. Nãoparti. Como uma vela meextingui. E sóele restou em mimacordado: agora elevê, agora estálembrado. Agora ele cruzao inferno. Agora se calacom o filho dele. Ouri. Ou provauma migalha de felicidadecom ele — não respirar, nãopensar, o queele vê, o que rememora,

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o que lhe devorao coração. Como é vazioseu interior. Um olho apagadoem mim se acendeu,olho de animalmetade do qual o predadorjá mordeu. O queele vêlá, pergunto, grito, batoa cabeça na parede, e quanto jáse arrastou, e quanto já se desbastou, e quantose afastoupara a escuridão — o caminhante:Pelo visto só possocompreender coisas queestão dentro do tempo. Pessoas,por exemplo, ou pensamentos, ou tristezaou alegria, cavalos, cães,palavras, amor. Coisasque envelhecem, que se renovam,se transformam. Minhas saudades de vocêtambém se encerram no tempo. O lutose faz veterano, antigocom os anos, e tem dias em que é novo,fresco.Assim também a ira por tudo que lhe foiroubado. Mas vocêjá não.Você mesmo jánão. Vocêestá fora do tempo.Como explicar avocê. Quando até a explicação

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se comprime no tempo. Contou-meuma vez um homem de uma terradistante que em sua línguase diz de quem morrena guerra, “caiu”.Assim é você: caiufora do tempo, o tempono qual eu habitopassapor você: uma figurade pé sozinhasobre um caisna noitecujo negrordela transbordouaté se esgotar.Eu vejo vocêmas não o toco.Não sinto vocênos meus sensoresdo tempo. centauro: Tome como exemplo você mesmo, anotador dos anais da cidade, ou

como quer que você se intitule. Você é um prazer para os olhos, juro! Esse chapéu,m-eu-se-nhor! E a gravata, e a pasta e o bigodinho... uma delícia! Só é pena queesteja tão desleixado e sujo, como um mendigo, juro, e também, me desculpe,fedendo como um monte de cocozinho fresco, mas fora isso —

Basta, não comece a inflar, o que você está papagueando aí? Ofensa a servidorpúblico? Pshhh! Um pouco de senso de humor, barnabé, estou brincando com você!E aliás, saiba que de minha parte é tudo por inveja. Sim, tome nota, nas maioresletras possíveis: o centauro tem inveja do escriturário!

Não, diga você mesmo: não é uma sorte incrível que você, no exercício de seutrabalho, e sem dúvida em troca de um belo salário, possa espiar quanto quiserdentro do inferno dos outros, sem precisar meter nem a ponta do seu mindinho

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branquelo? Pense! O que é mais excitante do que o inferno dos outros, diga? E nogeral, você há de concordar comigo, a dor em segunda mão é preferível à dor emprimeira mão, não é? Não é de uso mais saudável, e também mais “artística”, nosentido mais elevado, ou seja, mais castrado, da palavra? E veja, tome você comoexemplo: já faz pelo menos uma semana que você passa por aqui, assim, por acaso,diante da minha janela, três-quatro vezes por dia, ontem foram cinco, mas quemestá contando — apressado em seus afazeres, mergulhado em seus pensamentos, ede repente — Opa! Vamos dar uma freada estridente! Vamos pestanejar de surpresa!Que temos aqui? Um centauro! E ainda por cima enlutado! Dois coelhos de umacajadada só! Rápido e fácil vamos vestir uma expressão de suave condolência esolidariedade, e num instante mergulhar a ponta de nossa pena prateada em suanegra tinta, e três-quatro, vamos perguntar sobre seu filho, perguntar sobre o filho,perguntar sobre o filho! E se o interrogado não der respostas suficientes, não desistir,não desistir, vamos voltar dentro de uma hora, e de duas horas, e amanhã de manhãtambém, e novamente, novamente perguntar sobre o filho, e não vamos largá-lomesmo que ranja os dentes e morda os lábios até doer, e conte-me por favor comoele era quando bebê, e o que gostava de comer, e o que construía com o lego, e quecanção de ninar você cantava para ele... Ouça, carrapato da tinta, nem o imposto derenda da Inquisição torturava assim! E então, subitamente, pshhhh! O relógio dacidade faz soar a hora, ding-dong, até logo, até logo, muito obrigado, foi muitoagradável, a pena volta a seu estojo, o caderninho a seu bolso, e o barnabé já está acaminho de casa, abre parênteses, o que lhe importa que eu fique aqui sangrando,dilacerado, cortado em pedaços, fecha parênteses, o escriturário assobia uma cançãoalegre pensando no pernil de cordeiro que o espera no forno, e claro que tambémnos pernis dessa ou daquela senhora... O quê, hein? Peguei você naquilo — como éque se chama? —, ou não peguei?

anotador dos anais da cidade: Paro aqui, Vossa Alteza! Cheguei a meu limite!

Daqui em diante — o anotador dos anais da cidade se recusa peremptoriamente aencontrar-se com essa criatura repelente! Podeis me matar, duque, a ela eu nãovoltarei!

o caminhante:Ouvi uma vozde mulher se elevar

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da cidade:que todo homem éuma ilha,que é impossívela outro homemconhecerpor dentro — Eu fico na minha, não parode tentar: faço haurir, despertar,dividir sem pararcélulas suas que aindavivem em mim, as derradeirasimpressões do ser que aindanão se perderam nas extremidadesde meus sentidos —o toque de sua pele de menino,sua voz que ainda é fina e secretaem meus ouvidos, mas já disparaagudo estilhaçode ironia, e o registrodo movimento de seu corpo,passa tão rápido,desliza (tão contente fiqueiquando me disseram que vocêandava como eu).Uma dúvidafina e afiada lampejano franzir de seus lábios —eu continuo, eu guardo,entesouroe ressuscito, o meninoque você foi, o homemque não será —você talvez sorria: “Que é isso,

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pai? Experimentos com um serhumano?”Eu dou de ombros: não, issoé a empresade uma vida.Veja, eu súbito me inflamo,eu vou criarvocê, ou ao menos umpalpitarde vidaseu, e por que não,com os diabos,por que voltar atrás?Já fiz isso uma vez,e agora querovocêmuitomais. mulher que ficou em casa:Baixeitodas as persianas. Apaguei todasas luzes. Minha pele cobriu-sede feridas e abscessos. Obscurosilêncio. Escurosilêncio. Diase noites e eudentro dele, um fetopós-maturo, petrificado,que a tragédia concebeudepoisdo climatério.Até que súbito acordeide meu desmaio, e como que

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um ventríloquo de meu ventrefalou: eupercomeu filhomais uma vez. anotador dos anais da cidade: Debaixo de um lampião de rua que derrama uma

luz amarelada, um homem idoso escreve com giz na parede de uma casa. Seucabelo muito branco, como um halo, paira em torno de sua cabeça, seu bigode demorsa é prateado, e por um instante eu exulto, pois esse homem é o meu professor,professor de matemática no curso fundamental, um homem simpático, que hámuitos anos passou por uma tragédia, não me lembro o que foi, e depois sumiu.Pensava que tinha morrido, e ei-lo aqui de pé na noite avançada anotando na paredeimunda de desenhos pornográficos colunas de números e de exercícios numa escritapequena e organizada. Quando percebe a minha presença, não se assusta nem umpouco: ao contrário, sorri para mim com uma boca desdentada, como se durantemuito tempo tivesse esperado só por mim, e faz sinal com um dedo torto para queeu me aproxime da parede.

velho professor de matemática:Dois e dois sãoquatro. Repitacomigo: trêsmais três são seis. Deze dez — vinte. Mais uma vezvocê se atrasou, meu jovem, amanhãterá de trazerseus pais — anotador dos anais da cidade: Mas professor, o senhor não se lembra de mim? velho professor de matemática:Desculpe, senhor, desculpe,a escuridão, e também meus olhos... Vocêé o anotador-dos-anais-da-cidade,

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é claro.Então: quanto ao que foiperguntado, ou que estava a ponto de serperguntadotenho tão pouco a dizer,e eu tambémum pouco me espanto: poisjá há vinte e seis anosesta é a grande ocorrência de minha vida,a única, consumada,mas para surpresa maior,e também embaraço maior,não sei sobre elanada.“Mas como é que ela é”,as criaturas perguntam às vezes,e eu também mais de uma vez perguntoa mim mesmo:como um bloco de concreto?Uma barra de ferro?Compacta represa?Rochabasáltica?Ou talvez — como cebolacamada a camada?Não-não, eume desculpo, nemisso nem aquilo, e nãopense, meu senhor, que eume esquivo à resposta:realmente quanto a isso não seinada.Só sei que está aqui.É um fato. E ele

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com todo seu pesomeus diasdilapida. Elesugaminha vidasofrida. E basta,desculpe, senhor,mais do que isso,em suma,não seicoisa alguma. anotador dos anais da cidade: E já me vira as costas e volta a escrever números na

parede da casa em sua caligrafia miúda. Por longos minutos continuo a contemplá-lo, haurindo um estranho conforto de seus movimentos leves e rápidos. E de repenteme lembro do que lhe aconteceu, e fico surpreso de ter esquecido, quase vou denovo até ele para lhe dizer, professor, assim e assim aconteceu comigo também, e osenhor nunca me ensinou o que se deve fazer então.

parteira:Um b-bebê,se um só bebê surgissede um útero para minhasduas mãos ex-p-pectantes, minhasmãos de parteiravaz-zias,ainda coberto do orvalhodo parto, preso ao cordãoumbilical, e vagindo,sóque não seise afinalnesse instantenão vai se desfazernas minhas mãos

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em pó — Mas o q-que éisso? S-suaboca, o quevocê fezconsigo? sapateiro: Não é nada. Não é. parteira:A b-boca,a boca, a-a-a-abraa boca! sapateiro: Não, deixe, não toque, toda a minha força vem deles. parteira:E como nãop-per-percebi... como? Eup-penseique só q-quando vocêtrabalha você... e comovocê comeua-as-sim? E comovocê vai t-t-tirá-los,eu peço, euimploro, tiretudo — sapateiro: Não, não posso, quem vai cuidar que eu...? parteira: Tire-os!

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sapateiro: Para que eu não morda a mim mesmo parteira:S-s-sim, mais,tire, cuspa, temmais, e maisum, sim, me dê, namão... tem mais, meu Deus,é tão afiado... tem sangue...t-toda a suaboca é feridase ferrugem. anotador dos anais da cidade: Ela abre a janela e joga todos fora. Eu os ouço cair

em torno de mim num tilintar metálico, e o sapateiro lá está perplexo, a mão norosto e a língua a se revirar na boca, perscrutando a saliva.

sapateiro: Havia dez como esses. Pequenos, e grandes e tortos, e um grosso e sem

cabeça, era como um polegar, assim eu o chamava. Já se tinham tornado pedaços demim. Um para cada dedinho dela que eu beijava.

anotador dos anais da cidade: E ainda na mesma noite o caminhante ouve passos

atrás de si, e lá está o sapateiro, num andar um pouco encurvado, e ele perguntanum murmúrio: Você estaria precisando de sapatos? E o homem diz que não precisade nada, só de andar, e de que não o perturbem. E o sapateiro olha para seus pésdescalços e feridos e lhe diz que aqui, na mochila, ele tem ferramentas e um pedaçode couro, e que pode fazer facilmente um par de bons sapatos. E o homem nãoresponde, eles continuam a andar por algum tempo, e por fim o sapateiro lhepergunta se pode andar assim atrás do caminhante, e o caminhante não responde,tampouco interrompe sua marcha, e só dá de ombros como a dizer, se você quiser,mas eu caminho só.

Agora eles são dois, Vossa Alteza. Podeis vê-los de vossa janela. Na frente, ohomem alto e ossudo, de cabelos e barba revoltos, e atrás dele, a alguns passos dedistância, o sapateiro, braços caídos para o chão, e de vez em quando ele vira a

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cabeça para trás, para a mulher delgada, ereta, à janela da cabana. parteira:E senão,se não se des-f-fizero bebêem pó, se permanecerquente e sólidoao vagire chorar,talvez entãoo mundo todo vai voltara se irmanarem minha mão? mulher que saiu de casa:Cinco anos após a mortede meu filho, seu paisaiu paraencontrá-lo.Eu decidinão acompanhá-lo.No alto do campanáriono coração da capital regionalcem milhas distantede minha casa, eu agoracaminho sozinhaem círculos, eucircundoo espigão de uma torreférrea, lentalentamente, voltaa volta, noites,

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dias,em meu pequeno círculodiante dele,e eleque está nas colinasdiante de mim, dias,noites,traçao seu círculo. centauro: Mas se eu não escrever isso, não vou compreender — anotador dos anais da cidade: É assim, duque, como que por acaso, que o

Centauro fala ao anotador dos anais de vossa cidade, quando passo em frente a suajanela ao entardecer — passo seguindo vossas ordens, sob profundo e veementeprotesto.

centauro: Não vou compreender o que aconteceu, tampouco o que sou agora

depois que aconteceu. E o mais terrível, barnabezinho, é que, se eu não escreverisso, também não poderei compreender quem é ele agora, quer dizer, o meu filho.

anotador dos anais da cidade: Eu também não compreendo do que ele está

falando. E ele, é claro, não explica. Só ergue o nariz numa espécie de orgulhoinflado e ofendido, e vira-me as costas na medida em que seu corpo disformepermite. Mas ele também me acompanha com o canto do olho, e no momento emque dou um basta às suas encenações e me disponho a ir embora —

centauro: Assim são as coisas comigo, barnabito, é desse jeito que eu sou. É um

fato! Não sou capaz de compreender algo enquanto não escrever! Compreender deverdade, quero dizer, minuciosamente! Por que é que você fica me olhando? Denovo essa cara de órfão! Escrever mesmo, eu lhe digo, não apenas ruminar o quemastigaram e vomitaram mil pessoas antes de mim, como você gosta tanto de fazer,hein, caderneta? Incitar, citar, anotar cada perambulação delas em letrascaprichadas, hein? Então agora, por favor, escreva em letras bem grandes,gigantescas: Eu tenho de criá-lo novamente na forma de uma história! Captou?

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Ele, idiota! O fato, o que aconteceu! O que você não está entendendo aqui? Isso,essa coisa filha da puta que aconteceu comigo e com meu menino, sim, tenho demisturar tudo dentro de uma história, sou obrigado. E que haja ação! Imaginação! Evisões e liberdade e sonhos! Fogo! Um caldeirão a ferver!

anotador dos anais da cidade: Grandes gotas de suor rolam nos vincos de seu

nariz. Seu rosto é uma tempestade vermelha. Anoto febrilmente, totalmentehipnotizado por ele, sem olhar para o papel, a mão correndo sozinha.

centauro: Só assim eu posso, de algum jeito, me aproximar dele, desse isso,

maldito seja, sem morrer disso, percebe? Tenho de me mover à sua frente, medeslocar, não ficar petrificado como um rato diante de uma serpente! Tenho desentir, mesmo que por um só instante, por meio segundo, o último lugar livre quetalvez ainda tenha restado em mim, a partícula de centelha que ainda, de algummodo, cintila lá dentro de mim, que esse desgraçado não conseguiu apagar...tfu!Não tenho alternativa, compreenda: eu não tenho alternativa. E talvez não hajamesmo alternativas, hein? Não sei, e você com certeza não vai entender, então pelomenos anote, depressa: Eu quero amassá-lo, revolvê-lo, esse isso, sim, isso queaconteceu, isso que veio como um raio e queimou tudo que eu tinha, as palavrastambém, maldito seja e maldita sua lembrança, as palavras que poderiam medescrever isso ele queimou, o desgraçado. Eu preciso misturá-lo com algo de mimmesmo, sou obrigado, do mais fundo de mim, a soprar dentro dele minha pobrerespiração, tentar fazer dele um pouco, como lhe explicar, um pouco meu, meu...Eis que alguma coisa de mim, de meu, já se encontra nele, bem dentro dele, em suaprisão maldita, então talvez haja sobre o que falar, regatear... hein? Anote, facínora!Não pare de anotar. Que jeito que você tem de me olhar! Quando finalmenteconsigo dizer uma palavra sobre isso, respirar... E também quero criar figuras,preciso, tenho que, é sempre assim comigo, figuras que jorrem para dentro dahistória, que fluam, que arejem um pouco meu cárcere, e que surpreendam, a ele etambém a mim, claro, que me traiam, que o traiam, esse filho de mil putas, quecaiam sobre ele daqui e dali e de todos os lados e ao revés e com um laço, por mimpodem meter em seu traseiro, contanto que o façam se mover um milímetro, nãoprecisa mais, que pelo menos em minha página ele se mova um pouco, queesperneie, e só

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que não sejatãotão inatingívelpor nada. anotador dos anais da cidade: Ele se cala, seus olhos se arregalam de pavor, como

se de repente o chão faltasse sob seus pés e ele mergulhasse, bem à minha frente.Uma de suas mãos se ergue debilmente, como se ele tentasse se agarrar em mim. Sóagora, Vossa Alteza, começo a perceber o que todo o tempo estava bem diante demim: o caderno, as penas sobre a mesa, as páginas em branco —

Contemplo essa criatura corpulenta e grosseira. Uma como essa, nunca cheguei aimaginar.

centauro: Agora vá embora daqui. Eu lhe imploro, vá. Mas volte, sim? Voltará?

Quando? Amanhã? anotador dos anais da cidade: No dia seguinte, numa gaveta empoeirada dos

arquivos da cidade, encontro sua pasta. Ele não mentiu: até alguns anos atrás,escrevia histórias. Escrevia canções também, e baladas, e um poema. Vi que oscríticos em geral lhe torceram o nariz, embora aqui e ali dissessem dele coisas boas:“Como o José da lenda”, poetizou alguém, “sementes se projetam dos dedos de suasmãos”.

Lá estão registrados também os boatos que circulam a seu respeito, e a respeito desua estranha alcunha de “Centauro”. Histórias da carochinha, Vossa Alteza, acreditequem quiser! Eu quase sou tentado a anotá-las aqui, por divertimento, mas, quandodeparo com o olhar sarcástico que vossa imagem me envia da ordem que tenho nasmãos, sei que não devo constranger-vos mencionando tolices primitivas como essasnum documento oficial do ducado.

mulher no alto do campanário:Às vezes passantessobem à torre, observantesde pássaros, ou amantes

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de sinos, ou turistas,e mais que todos, os que põem as vistasem nossa guerraeterna, lá no vale além das colinas.Ficam horas, bebem, escarrame olham nos binóculos, e apostamresultados, e bebem de novo, gritamhurra, a plena voz, sealgum pobre soldado lá — impossíveldistinguirse é nosso ou se é deles — conseguecom grande dificuldadeerguer sua espada. Você também estevelá, meu filho, o quefazialá, o quetem a verlá com você? —e entre esses hurrase as bebidas e as piscadelas, eles olhampara mim, apontam com o dedo, riem,às vezes beliscam também. E o quepodem ver? Uma mulherda aldeia, da zona dos pântanos, com rostode aldeia e pernas grossas, e uma longatrança, cinzenta, e não se movequase, e andadevagar,devagar,três-quatro passospor hora, mulher doida.Riam, sorrio eu, riam,bom proveito, e em torno de mimgira a torre devagar, um passo,

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mais um passo, um passo mais.Meus olhos não desgrudam delenas colinas,e eles, em torno de mim, e elee eu,e eue ele,e nosso filhoé um fioentre nós. o caminhante:Um raio penetraem mim, me atingeas fendas, as profundezas,armado e tenso:onde está você?Em qual dos caminhosvirá se revelar um dia,se erguerem minha fantasmagoria? Jogando futebol?Preparando o molho do bife?Fazendo a lição,a cabeça apoiada na mão?Jogando pedrinhasna água? Há muito tempo já sei,é vocêquem decidecomo aparecer a mime quando. Você,e não eu, escolhe

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como vai falarcomigo. Mas seuvocabulário, meu filho —eu sinto — vai diminuindocom o passar dos anos.Ou pelo menos as palavras nãose renovam: futebol,bife, lições, pedras.Mas você tinha muitas mais(toda a vida, meu querido,um acervo imenso),mas você parece insistirem se entrincheirarno sucinto —bife, bola, pedras, deveres de escola,e mais dois ou três momentosbreves, aos quais você volta,fazendo voltar —a aurora à beira do rio, no norte,a história que lhe contei,o estranho nicho na rochacinzenta, onde você se aninhou,se enroscou,tão pequenoque era,e o azul de seus olhos, e o sol, e os peixinhosque saltavam na água como se também quisessemouvir a história, e o risoque rimos juntos —só isso, só essas, de novoe de novo, as lembrançasestas, e as outras que taisse esvaem, finais,cada vez mais...

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O quê?Propositalmente vocême rouba o consolo, a mercê? Então eu penso, talvezassim você me acostumeaos pouquinhosao apagarda dor? Talvez, com uma delicadezasem igual, com os perenesbons sensos tão seus,você me preparalentamentepara isso,então,para o adeus? centauro: Você voltou. Finalmente. Eu já tinha certeza de que não... de que você

se assustara comigo... Ouça, andei pensando sobre isso: você e eu formamos umestranho par, não é? Pense: já há anos não consigo escrever, nem uma só palavra saide mim — e você, dá para ver, pode escrever, na verdade anotar, quanto quiser,caderninhos inteiros, papelada sem fim! Mas, pelo visto, só aquilo que os outros lhedizem... só citações, hein? Mastigações e ruminações de outros. E você só asdescreve, assim, com a pena rápida, num esboço... estou certo? Nem uma só palavrarealmente sua? Hein? Nem mesmo uma letrinha só? Era o que eu pensava. O que sepode dizer, que dupla fantástica a nossa... Então agora anote depressa, por favor,antes que me escape: E dentro de minha cabeça o tempo todo tem uma guerra vírgulaas vespas não param de zumbir dois-pontos o que vai adiantar se

você escrever ponto de interrogação, o que acrescentaráao mundo se imaginar pontode interrogação e se realmentefor obrigado vírgula então escreva apenasos fatos vírgula o quetem a dizeralém deles ponto

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de interrogação escreva--os e cale-separa sempre dois-pontos na horatal e tal vírgula no lugartal e tal vírgula meu filhovírgula único vírgula comonze anos e meioponto o meninonão está maisponto anotador dos anais da cidade: E a estas últimas palavras, com as duas mãos e uma

força terrível ele golpeou a mesa, e seu rosto se contorceu numa dor tão intensa quepor um momento me pareceu, Vossa Alteza, que ele golpeara o próprio corpo e aprópria carne.

parteira:Meu Deus, a dor que de repentedilacera meu ventre,minha filha,se eu apenas soubesse que também l-lá,quando você chegou,quando acaboude agonizar —a receberam mãosamorosas e uma toalhamornae olorosa, e alguém,ou algo, em cujo acalentovocê descansouno primeiro momento. anotador dos anais da cidade: Junto à estação ferroviária, no escuro, ao lado de

uma casa quase a cair, está o velho professor. Sua cabeça prateada se apoia numa

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parede da casa como se ele lhe sussurrasse segredos. Num gesto autoritário, como setambém desta vez só estivesse esperando por mim, ele me convida a sentar a seus pésna calçada. Dois mais dois são quatro, eu balbucio com ele, e logo sinto um alívio.Três mais três são seis. Quatro mais quatro — oito. Parece que minha presença lheinspira vitalidade: ele rabisca exercícios na parede em movimentos rápidos, e seusolhos se iluminam. Cinco e cinco são dez, eu repito com ele, cantarolando,curvando o pescoço para trás para vê-lo ali de pé sobranceiro. As abas de seu paletóesvoaçam quando ele salta de exercício em exercício, sua voz fica suave e fina, tenhoa impressão de que meus pés não chegam até o asfalto e que posso balançá-los, dez edez são vinte, eu exclamo com entusiasmo, e da janela no segundo andar alguémjoga em nós um líquido fedorento e grita que deixemos as pessoas dormir.

Eu me levanto e fico de pé ao lado do professor. Estamos os dois molhados econstrangidos, como se tivéssemos sido pegos numa tentativa idiota de fugir daprisão. O pequeno e enrugado professor parece de repente um bebê. Se eu pudessetocar em alguém, eu o tomaria em meus braços e o acalentaria, cantando para eleaté que adormecesse. Por isso abro meu caderninho, e na voz mais protocolar quesou capaz de extrair de mim eu lhe peço que especifique.

velho professor de matemática:... e ele não tem brechas? Elespressionam, os que perguntam:ou rachadurasou sulcos? Não. E você podetocar nele? Não há como tocá-lo. Mas diga: ele é compactoou oco, da sua vidao grande fato? É relaxadoou tenso?

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Não, não, respondo contrito, eleestá aqui, estáaqui! Mas isso você já disse!Sim, estranho como é poucoo que tenho a dizerquanto a isso.Impressionantee frustrante, eu sei,mas ele, ou seja, “isso”,ou seja, a mortede meu filho, de Michael, hávinte e seis anos, num acidentebobo (uma brincadeira que se complicou,uma banheira, e uma navalha afiada,veia seccionada,enquantobrincava) —isso como que engole,põe para dentro as palavrase o bom senso,todas as chaves.E só uma coisaresta permanentee firme:ele, o fato.Aqui. Se eu for ou se eu voltar,se me levantar ou deitar —isso está aqui.Quando estou sóou me sento na praça

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ou dou uma aula sofridaisso está aquipreenchendo-me assimsem medidanão deixando às vezes lugarnem para mim.Sim, é o que eu queria dizer(e talvez o senhor deva escrever):que não tenho lugarpara mim, nem pararespirar. Sim,a questão é essa:uma respiraçãosem pressa,respirarprofundamente,completamentee simplesmente,sem o espasmo crucialde horrorabismal — Mas sobre a coisa falada(já mencionada, em suma) —coisa alguma,nada. o caminhante:E se me lampeja a memória —você faz as lições na cozinha,ou sorri na praia, numa foto antiga,ou apenas dorme em sua cama —logo eu despertopara viver

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o que era um minuto antes,o que foi um minuto depois,antes de ter capturado você na lembrança,depois que o fotógrafo a congelou.Eu lhe faço uma massagem:para que seu semblante se espraienum sorriso,e lentamente persigaum devaneio.Que os olhos se iluminem de repente,que mudem de coresna luz,cheios de irada paixãoou estupefação,ou conspiração.E assim você caminha no quartopara cá e para lá e ao sabor do dia,pequenas ondasde graçae candura e juventudemovem-se sob a sua pele,na testa se agita seu cabeloclaro.E agora vai se virar para mim e dizer:mas pai,você não compreende — Ou quando dorme, coberto com um lençolseu peito a subir e descer,sobee desce,e de novo sobe(ah,demais eu pedi.Percebi.

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Castigo eu sofri).E no entanto, meu filho,enfim,você se move,você se move,em mim. centauro:E às vezes eu faço joguinhoscom ela, com aquelamaldita, provocações verbais: “A mortemorre”, eu pisco para ela, comose fosse um joguinhode nós dois: “A morte será morrida, outalvez, se morrerá? Morrer-se-á?Morrificará?”. Conjugo com ela, pacientemente,mais e mais, tentando, repassando, “nósnos morrificamos, vósvos morrificareis, elas se morrificarão”, lutandocom ela assim, que mais posso fazer,nem escrever nemviver, pelo menosa línguaficou, pelo menos ela ainda é um poucolivre. Permitida... é sábiaa língua, verdade, meu barnabé? Cheiade mistérios e alusõese liberdade. Veja a palavra“paiei”, fui pai,“Quão tantoeu paieimeu filho” — anotador dos anais da cidade: Conte-me sobre o berço.

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centauro: Como é? O que você disse? anotador dos anais da cidade: O berço. Na grande pilha, atrás de você. centauro: De todo coração, funcionário infeliz, espero que meus ouvidos me

tenham enganado. anotador dos anais da cidade: Tem dois patos desenhados nas cabeceiras. centauro: Que pena, funcionário, você estragou tudo. anotador dos anais da cidade: Seus ombros começam a inflar. Seu rosto também.

Minha aposta fracassou. Ele se esforça por se afastar da mesa e se levantar dacadeira. É preciso dar o fora daqui, depressa. Nunca o vi a não ser junto a sua mesa.Na verdade, até este momento, nunca o vi de pé. Lembro-me das coisas que li sobreele nos arquivos da cidade. Esta é a hora de fugir, mas minhas pernas não meobedecem. Ele vai crescendo diante de mim. Vai se levantar, isso é evidente, selevantar e arrancar com ele a casa inteira, romper o telhado. Os brinquedos e asroupas e os outros sedimentos da infância que aqui estão vão virar pó e voar paratodos os lados. Pena. Pena. Estava quase começando a gostar dele. Ele suspira, orosto trêmulo. Enquanto isso eu ouço lá junto a ele, bem dentro do quarto, fortespancadas e também um rangido estranho, como uma grande unha córneaarranhando uma lajota. Fecho os olhos e digo pressurosamente para mim mesmoque é só a mesa, é só a mesa que range assim. Um pensamento lampeja em mim: elevai se levantar da cadeira, puxar-me para dentro de seu quarto e me devorar lá. Emais um pensamento: esta mesa tem ferraduras nos pés.

centauro: Para o inferno! Para o inferno. Nem mesmo ficar de pé? É uma merda!

Merda! anotador dos anais da cidade: Sua cabeça descai sobre o peito e ele chora, juro, ele

chora. É melhor eu ir embora. Assim não vou envergonhá-lo. Espero mais uminstante e vou. Seus ombros se sacodem em tremores rápidos, partidos. Ele cobre orosto com as mãos. Eu fico contando as fendas e rachaduras da calçada. Corrijo

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alguns erros em minhas anotações no caderninho. Depois, sem alternativa, começoa prestar atenção nas diferentes camadas de seu choro, até que encontro aquela queme é tão conhecida. Eis aí, se fosse eu a chorar, assim seria meu choro. Prestoatenção. Desde o momento em que aquilo aconteceu a minha filha proibi a mimmesmo qualquer tipo de autopiedade. Isso exige, evidentemente, uma certa medidade autocontrole e uma permanente vigilância. Até durante a noite. No entanto, nãoposso proibir o Centauro de chorar. É uma questão particular dele, mesmo que, poralguma razão, ele teime em chorar usando a minha voz. Tento adivinhar o que fariaminha mulher numa situação dessas. Ergo-me na ponta dos pés. Minha mão pairano ar por cima de sua cabeça. Essa mão que não tem o direito de tocar em ninguém,uma pobre mão, impura, a mão de um medroso. Respiro profundamente, fecho osolhos e acaricio seus cachos. “Shhh, shhh”, eu lhe digo.

Sobre ele desce o silêncio. O silêncio paira em toda a cidade. Não ouso memexer. Assim, enquanto minha mão pousa sobre a cabeça do Centauro, ouço derepente, muito perto de mim, exatamente no lugar em que minha mão toca em suacabeça grande e suada, a voz do homem que anda pelas colinas.

o caminhante:No primeiro anoapós, quando estava em casaa sós, eu chamava às vezes vocêpelo nome que usávamos emsua infância. Com uma força que não havia em mim,num desvario, eu injuriavaa alma, o corpo vazio, eu fundianessa palavra curta,almejada,todos os pós da magia:do lar o aconchego,o sossego,rotina, uma certaindiferença...

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e eu então chamavanum acasopremeditado:U-i? Se o fazia com esmero, assim esperava,(visionava, tramava),você não poderia deixarde responder a talsimpleza, que atravessavafronteirase mundos — eu diria “U-i”, e vocêdeslizaria até aqui e se concretizariafacilmente, ecode meu chamado,como uma pequena preamara transbordarde lápara o real. E seria estaa sua resposta,natural e factual,como a respostada expiraçãoà inspiração,reverência finaà milagrosa forçada rotina. Ah, eu lhe diria,está a fim de assistir comigoa um jogo? Talvezsair numa curtacaminhada, juntos?

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Como pôde ser, meu menino,que de todas as palavrase outras mais,existe umaà qual jamais,jamaisvocê responderá? anotador dos anais da cidade: “Mas onde fica lá?”, pergunta minha mulher no dia

seguinte, na hora de nosso passeio vespertino, ela na rua, eu seguindo atrás dela,escondido entre as sombras: “Onde está este lá para o qual ele está indo? Quemacredita que existe tal coisa, lá?”.

Assim, durante a tranquila caminhada, ela lança essas palavras ao espaço! Minhaspernas quase fraquejam de tanta surpresa. Olho em volta para ver se alguém a ouviu,mas por sorte só ela e eu estamos na rua a esta hora.

“Talvez lá já esteja há muito tempo aqui?”, ela continua, e fico ainda maisperturbado com a nota prosaica na sua voz: como se fosse uma conversa trivial nacozinha de nossa casa.

“E talvez nós talvez estejamos um pouco lá, desde que isso nos aconteceu?”, eladiz se empertigando, e tenho a impressão de que seus passos ganham um novoímpeto: “E talvez lá sempre esteve aqui e não sabíamos?”.

Um vento frio está soprando. Ela envolve o pescoço num xale, mas seus belosombros ficam desnudos. Ela faz isso para mim. Hoje é meu aniversário, VossaAlteza, e ela sabe o quanto eu gosto deles, dos ombros dela.

“E se for assim”, ela respira profundamente: “então talvez, talvez também elaesteja aqui conosco, em cada minuto?”.

Ante a força pungente dessas palavras, nós dois nos detemos.“Imagine você”, ela sussurra.Continuamos a caminhar, ela à frente, eu na sombra das casas, entre os quintais

escuros, e nada dentro de mim. velho professor de matemática:“Um pai não viverá mais do que seu filho”,

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eis uma regra cuja lógicasensata está plantadanão só na vida das pessoas, mastambém, como se sabe, na ciênciada óptica, onde(no espírito do reverenciadoSpinoza, lapidador de espelhos)achamos um teoremamuito ousado: “Jamaispoderá um objeto (a vida do filho)se encontrar no universoa uma distânciada qual o pai (‘o sujeitocontemplante’) poderiaabarcar num só olharele inteirodo início ao fim”. Pois se não for assim(e isso acrescento eu),o sujeito contemplantevai virar,de uma só vez,um blocode lignito(que também chamam, e eu abono,de “carbono”). anotador dos anais da cidade: Agora, dia após dia, o andar desse caminhante se

torna mais obstinado. Por momentos parece, Vossa Alteza, que uma forçainominada paira em torno da cidade, envolvendo-a, e como alguém a chupar umovo por um furinho em sua casca ela suga essas e outras pessoas, de dentro decozinhas e praças e píeres e camas. (E será verdadeiro o boato estrondoso,estonteante, Vossa Alteza, de que até mesmo das câmaras de um palácio?)

Também a mulher no alto do campanário — de vez em quando levanto meus

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olhos e a vejo lá, entre as nuvens, a trança desfeita e o cabelo prateado esvoaçandopara todos os lados — também ela às vezes tem de se segurar com as duas mãos nacoluna do campanário, para não ser arrastada nessa cega tempestade. Agora, porexemplo, sua boca está aberta, e não sei se está gritando em silêncio, ou engolindoavidamente palavras que lhe assomam e vêm —

o caminhante:Como quando o feto emerge do úteroe do corpo da mãe,sua morte fez de mim um paique nãofui jamais —abriuem mim um rasgo, uma feridae um vácuo, mas também me preencheude sua essência,que desde então em abundânciairrompeu em mim,nunca houve uma vivênciacomo tal —mortal, pois, ao morrer,ele me fezcapazde o conceber. Sua mortefez de mim uma pele decíduae vazia de pai, e tambémde mãe —e sua morte me desnudouum seiopara um lactente ausente,e nas paredes de meu útero quese entalhou no dia aquele

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sua morte riscou com as unhasde um prisioneiro fugitivoa contagem dos diassem ele. Sim, com um cinzel transparente,sua mortegravou, como é mister:o enlutadoserá sempreuma mulher. anotador dos anais da cidade: E na noite do dia seguinte, eu e minha mulher

estamos novamente em nosso passeio de sempre. Por entre as casas da cidadeavistamos de vez em quando a pequena caravana que percorre as colinas, na linhado horizonte.

mulher do anotador dos anais da cidade: Nos últimos dias tenho a impressão de

que sobre suas cabeças, no ar, há uns lampejos assim, avermelhados, como umacorrente de brasas flutuando acima deles...

anotador dos anais da cidade: Como de costume, é ela quem determina o ritmo

da caminhada. Quando ela se detém, eu também paro onde estou. Às vezes, quandoela está absorta em seus pensamentos, eu tenho de entrar em um dos quintais e meagachar atrás de uma cerca, rezando para que não haja ali um cão. Neste momentoela está contemplando longamente as estranhas brasas, e eu, como sempre, estoucontemplando ela. A diáfana luz da Lua cai sobre seu rosto. Ela já foi tão bonita. Ébonita agora também.

Quando chegamos finalmente a sua casa, ela abre a porta, mas esta noite, aocontrário do habitual, se detém na entrada, vira-se em minha direção e olha dentroda escuridão, como se adivinhasse onde exatamente eu me escondo. Sinto o soproque vem da casa chegar até mim, e ele é morno e oloroso. Ela abraça seu corpo comas mãos e suspira baixinho. Pode ser que eu esteja enganado, mas talvez seja seujeito de me dizer que gostaria de se atirar sobre mim aos gritos, com os dentesarreganhados, me bater com punhos raivosos, arrancar minha pele com suas unhas.

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Ela fecha a porta lentamente. Recolhe-se em sua casa. Ergo os olhos para ascolinas.

o caminhante:E ele mesmo,ele está morto,isso eu já sei,já sei dizer — emborasempre num sussurro — “o meninoestá morto”, eu compreendo,quase,o sentidodesses sons —o meninoestá morto,reconheço com isso,nessaspalavras, averdade, ele está morto,eu sei, sim.Eu reconheço, eleestá morto, massua morte —sua mortese avolumae atenuae tempestua,nãoé quietasua morte,é muitoinquieta.

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velho professor de matemática: ... com base em minhas observações eu creio, meurapaz, que só pessoas de um certo tipo podem percebê-lo, o fogo ardente. É assimque eu chamo, comigo mesmo, essas brasas misteriosas.

anotador dos anais da cidade: Eu o encontro novamente por acaso, esta noite, às

três da madrugada. Desta vez não está escrevendo exercícios no muro: cansado,quase exausto, no escuro, está sentado no banco de rua sobre o qual eu haviadormitado. Depois de alguns momentos em que ficamos os dois constrangidos, edepois que consigo fazê-lo lembrar, finalmente, que fui seu aluno na primeira série,e que na aula dele encontrei a menina que viria a ser minha mulher, subimos osdois no banco e por algum tempo contemplamos o fenômeno.

velho professor de matemática: Meu coração me diz, meu jovem, que, no

momento em que Adam percebe o fogo ardente, é seu destino levantar-se e ir até ele. anotador dos anais da cidade: Enquanto fala, seus grandes pés estremecem,

fazendo tremer o banco de madeira. Também meus pequenos pés ficam de repenteinquietos. Falo com ele de coração. Digo que houve uma vez um tempo no mundoem que minha filha não existia nele. Ainda não existia. E também não existia aalegria que ela me trouxe, e não existiam esses sofrimentos. E eu quero que ele meolhe com aquele seu olhar vago, confuso, no qual tudo é possível. E que de novo mechame à parede de uma casa e me passe um interminável exame de soma esubtração. Penso: quem sabe ele também sonha em voltar a ser um jovem e ingênuoprofessor? E quem sabe chamo minha mulher até aqui para juntos formarmos umapequena turma que não saberá o que é tristeza? E já começo a cantarolar o “dois edois são quatro”, mas ele pula de repente do banco — me admiro de quão ágil eleainda é — e fica ali um instante, olhando para seus pés agitados, depois estende asmãos para mim numa desculpa, vira-se e se afasta murmurando para si mesmo —

velho professor de matemática:Eu vou cair,agora vou cair?Não caio, é minha sina.Eis a sombra finae rala da neblina,

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e o friosobeda escura ravina —agora,agoracairei — mulher do anotador dos anais da cidade:Eis que agoravai terminar meu coração —e nãotermina —eis a sombra finada neblina —agora?Agora cairei? anotador dos anais da cidade: E ela se foi! Foi embora! De repente apareceu a

meu lado na rua, saindo da escuridão, e de repente também se foi e se afastou demim, sem ter sequer me visto, andando como uma sonâmbula atrás do professor.Deito imediatamente no banco e me encolho com toda a minha força. Estou commuito frio. Tento adormecer. Não adormeço. Não sei o que vou fazer hoje comigomesmo, e o sol ainda nem nasceu. A cidade está deserta de fazer medo. Eu vagueiopelas ruas. Não há ninguém. Corro para o cais, vasculho pilhas de redes fedorentas ede algas secas — não há ninguém. Para onde irei? Lá, nas colinas, as pequenasbrasas cintilam esta noite como se em cada uma delas batesse um coração. Numpátio escuro na extremidade do mercado está um velho burro cinzento, comendo deuma manjedoura. Aproximo meu rosto de sua pelagem, nela esfrego minha boca.Para minha surpresa ela é macia, ainda mais macia que o cabelo do Centauro. Seráque as coisas no mundo se tornaram mais macias em minha ausência? O burro parade mastigar. Ele me espera. Sobre aquilo que aconteceu com ela, com minha filha,sou proibido de falar seja com quem for — explico para ele — e para dizer a verdademe é proibido até mesmo lembrar dela, apesar de nem sempre eu resistir a isso,principalmente desde que aquele homem começou a andar em volta da cidade. O

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burro vira sua cabeça para mim. Seu olhar é inteligente e cético. Sim, sim, eusussurro, nem mesmo me lembrar dela, imagine só. Ele mexe as orelhas comespanto. É o duque, eu digo, abraçando seu pescoço, foi ele quem me ordenou, numdespacho ducal, abandonar minha casa, andar dia e noite pelas ruas e anotar ashistórias que as pessoas da cidade contam sobre seus filhos. E foi ele também quemme proibiu — numa ordem expressa! — lembrar-me dela, da minha filha. Sim, logodepois que aconteceu ele me deu essa ordem, depois que ela se afogou, quer dizer,minha filha, Chana, afogou-se diante de meus olhos, no lago, e eu não consegui,ouça, havia ondas muito altas, gigantescas, e eu não... o que poderia...

Você não acredita em mim. Você move as orelhas com descrença, até as cruza,como se descartasse a possibilidade... Sei exatamente o que está pensando agora: Oduque? Nosso bom e gentil duque? Não pode ser! Todos na cidade pensam assim, epara dizer a verdade, eu às vezes também penso assim. Pois talvez você tambémtenha ouvido, aqui e ali, que uma vez já fomos bons amigos, eu e o duque, amigosde corpo e alma de verdade, sim, eu fui seu bobo da corte, durante vinte anos, atéme acontecer a tragédia, seu bobo preferido e por ele amado... e pensar queexatamente ele, exatamente ele me deu uma ordem tão terrível... como pôde sequerpensar numa coisa assim?

Meus lábios de repente estão trêmulos, e o burro inclina a cabeça e os fitaatentamente. Temo que leia neles palavras que prefiro guardar para mim mesmo, ouque, segundo a ordem ducal, sou proibido de pronunciar até se estou sozinho, emesmo de lembrar, ainda que só por alusão, só por uma palavra, ou de pensar emquem ela seria hoje, se apenas pudesse estar aqui. Não imaginá-la de nenhum modo,e não sonhar com sua imagem. Também foram proibidas as saudades, os anelos etc.Ou palpitações súbitas do coração, ou contrações de intestinos a se revolverem, enisso está incluído qualquer tipo de lamentação, desde o pranto até um leve soluçardurante o sono. Sou um ser desmemoriado, burro, abstinente de minha filha,prisioneiro numa pequena e isolada cela na prisão de meu espírito, como no poemaque lemos uma vez juntos, o duque e eu, “Minha vida, que amava o sol e a lua,parece algo que não aconteceu”.

sapateiro:Do que haviade mim —só restou

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o movimento, só issoposso hoje lhe ofertar,minha filha,só o movimentoa se esgueirarno silêncioem que vocêestá confinada, só isso,só assim sabereihoje, minha filha,ser para vocêum pai — parteira:Eu estava na janela,minha filha, de noite,sozinha, a meesvair. Comonum sonho ouviuma v-v-vozdistante me dizersubitamente, em minha língua: Só isso,minha filha, só assim hojesaberei ser para vocêum pai.S-sab-sabia: éo sinal, s-saíde casa, fui paraas colinas, fecheios olhos, apagueio olhar, deixei o fogo ardenteme levar.Só assimhoje saberei serpara você

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um pai — apressei-mecorri para elepara o homempe-pesado,lento, indolenteque falouem minha línguade repente. anotador dos anais da cidade: Eles caminham pelas colinas, e eu atrás deles,

numa corrida ininterrupta entre eles e a cidade. Eles gemem, tropeçam e se erguem,um se segurando no outro, carregando com eles os que dormem, adormecendo elesmesmos, noites, dias, dando mais e mais voltas à cidade, na chuva e no frio e no solardente. Quem sabe até quando vão caminhar e o que vai acontecer com elesquando despertarem de sua loucura. O duque, por exemplo, quem poderia acreditar,caminha ombro a ombro com a cerzidora de redes, e mais de uma vez nele seenredam as redes esvoaçantes. E o velho professor, com o fino e branco halo de seucabelo, caminha com agilidade, como sempre, pulando de pé em pé e movendo acabeça para os lados numa curiosidade imensa, mesmo quando dorme. E o sapateiroe a parteira, de mãos dadas, caminham com os olhos fortemente cerrados, como seguiados por uma obstinada decisão. E na extremidade dessa curta procissão, minhamulher, se arrastando em suas pernas pesadas e respirando com esforço, a cabeçapendendo sobre o peito e sem ninguém a segurar sua mão.

duque:Ao caminhar, sonolento,uma visão em mim cintila, de um sonho o fragmento:uma terra árida, estéril, frio ventoe bruma, e um agônico lamentovarando a superfíciedo deserto — parteira:E ali, a f-forma

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de um p-penediomontanhoso, redondo, escorregadio,e dentro de um sonho, ou m-meiodesperta, digo a mim mesmao-olha, mulher,essa é a coisa, isso é tudo,a solução da grande charada,a sagrada,e mais do que issonão há,além dissonão há nada. sapateiro:Uma montanha-medulaescalvada,de aspecto terrível,palpita talvezuma vezem milanos — mulher do anotador dos anais da cidade:É a medula do universo,fria, geladaela é. E ele,o lamento,não é dela quevem. Eleé o caos, somente o caossurdo e mudo,indiferente a tudoele é, e vaziode lamento,de qualquer pensamento,

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e nele não háresposta, amor ousentimento — duque:E você, pegueuma enxada e prepare um canteiro,e nele plante uma luminária, um travesseiro,e uma carta, de um rosto amado o retratoe meias grossas, e um pratodepois, e luvas e uma pasta, e um lápistalvez, e um pincel, e um livro abertoou dois, e um par de óculosbons, para que possaenxergar de longee enxergar de perto. anotador dos anais da cidade: Conte-me sobre o cavalo de pau. centauro: Você outra vez? Nunca vai se calar? anotador dos anais da cidade: Conte-me sobre a bola de futebol, sobre o chapéu de

caubói. Conte-me sobre os aniversários, sobre a varinha mágica, sobre a pipa azul — centauro: Você está me torturando. anotador dos anais da cidade: Conte sobre o barquinho de brinquedo. centauro: Ferro-velho! Cascas de recordações! anotador dos anais da cidade: Conte-me ao menos algo sobre o berço. centauro: E que tal, para variar, você contar algo sobre você mesmo? Já há

algumas semanas você vem até aqui dez vezes por dia para me interrogar, me revirar

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ao avesso como uma luva, e você mesmo — nada! Funcionário! Cumpridor deordens! Escondendo-se por trás do despacho do duque, que qualquer imbecil podever a olho nu que é forjado, ainda mais com essa figura ridícula do duque, com acoroa, realmente! Você podia se esforçar um pouco, até um menino do jardim deinfância desenha melhor do que você!

Está bem. Entendi. Eu também sei ficar calado. Veja, estou calado. Pedra.Esfinge. Você também, aliás, não está com muito bom aspecto nestes últimos dias,mas eu definitivamente estou descarrilando, isso sim, não é difícil perceber. O queestá acabando comigo é essa luta com ele, maldito seja. Veja, estou reconhecendoisso. E essa coisa idiota que me aconteceu com esta mesa, ahn? Com certeza vocêouviu as histórias a meu respeito que circulam pela cidade, ahn? Só isso bastariapara você parar de me importunar com suas besteiras... Você não tem pena de umpobre centauro? E ainda por cima enlutado? Venha, olhe para mim, não, sério, subaaqui na janela, com as duas mãos, não tenha medo! O que mais eu lhe poderia fazerque você já não fez a si mesmo...

E então? Bonito, não? Estético. Alguma vez você viu um híbrido como esse, umamaldição como essa? Metade-escritor-metade-escrivaninha? É isso. Já pode descer.Finita la tragedia. O que diz você? Encantador, hein? Eu não lhe disse que não háprazer maior do que o inferno dos outros?

anotador dos anais da cidade: Seu filho um dia se deitou nesse berço. centauro: E agora ele tem outro berço. anotador dos anais da cidade: Ajude-me, Centauro. Essas pilhas que você tem aí

estão me deixando louco. centauro: Eu nunca mais sairei daqui. anotador dos anais da cidade: Há treze anos eu perdi minha filha. centauro: Nestes últimos dias, quando você já era um espinho em meu traseiro,

comecei a adivinhar algo assim. anotador dos anais da cidade: Não posso falar sobre ela.

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centauro:Eu fiz este berçocom minhas duas mãos. No dia em que elenasceu, com madeirade carvalho. Minha mulher desenhouos dois patos. Como ficou bonitoseu desenho. Era uma mulhertranquila e delicada. E ela me abandonou,três anos depois do filho. Eu também,se apenas pudesse, abandonariaa mim mesmo. Adam, era seu nome.Adam. Eu o pusno berço assim quenasceu. Ele ficoude olhos abertos, olhoupara mim como a me estudarcom seu olhar.Era tão sério! Em toda a sua vidafoi assim. Em toda a sua curtavida. Sério e tambémsolitário, um pouco. Amigosquase não tinha. E gostava de ouvirhistorinhas. E delascriávamos alegorias,ele e eu, fantasias,e máscaras. Você perguntousobre o berço. Minha mulhero forrou com panosmacios, mas adormecerele só queriacomigo, neste meupeito. Num tal aconchego, de repenteeu me lembro, não ria,do som especial que eu fazia

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para adormecê-lo em mim, um murmúrio,um canto, tranquilo, profundo, um augúrio,um acalanto, hmmmm...hmmmm... anotador dos anais da cidade: Perdão, excelência, importa-se se eu também... centauro: Pelo contrário... hmmmm... anotador dos anais da cidade: Hmmmm... centauro e anotador dos anais da cidade: Hmmmm...o caminhante:Caminho, caminho,nem desperto nemdormindo, caminhoe me esvaziode meus pensamentos,de meus arrebatamentos,de meus sofrimentos, de meu ardor,de meus segredos,do meu aguerrimento,de tudo que seja eu —me olhe, meu filho,e eis que não estou.Só um projeto de vida eu sou,que chama você, para vir,e por meio de mim existir —acontecer, e mesmo que somentepor um instante, de novo se unirao existente.Venha, sem mais demora,seja,não estou aqui agora,

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a casa é suamobiliada com todos os órgãos,jorre para dentro deles e se integre,o sangue agora é seu sangue e os músculossão seus músculos, venha,ganhe existência,estenda seus braçosde uma ponta a outra do mundo,ria de dentro de minha garganta, grite, se agitee faça bobagem,por breve instante tudo agora é possível,tudo agora é sim,ame, se inflame, deseje,transe, enfim,meus cinco sentidos famintos estãoa suas ordens como cincogaranhões espumantes,pateando, pateandopara galoparaté o seu fim, meu menino —não pare,seu tempo é curto, contado,e minhas pálpebras já começama estremecer,dentro de um instante voltarei para casa,mais um momento e minha pupila se contrairáante a lógica estrita. Depressa, provede tudo, apresse, seja profundo,triste,resoluto, gentil, grite,estremeça de prazer e de esforço,meu prazer é seu, e também minha força —encante, faça fluir sua alma,seja o impulso de quem semeia,torrente de cereais em grão

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e de moedas de ouro a jorrarcomo a luz —seja repleto como uma teta,e fortecomo o meio-dia, e também se enfureça,ferva, cerre a mão sobre o punho atéincharem as artérias em seu pescoço,e palpitante seja, como um coração, uma garota,seja aberto, de fina pele, iluminadona esplendorosa claridadedo que só acontece uma vez,quebradiço e intacto, efêmeroseja você na eternidade.E sendo assim, interrompa de repente sua corrida, respire, aspire, sinta o ar

queimar em seus pulmões, passe a língua em seu lábio superior, prove o sal de umsuor sadio, o prurido da vida, e agora diga de boca cheia: eu — (inferno, agora eupercebo:

este pronome tambémse perdeu e morreucom você, e para mim você deixousomente o “ele”, “você”, “nós”e ninguém maisvai dizer “eu”com sua voz.Isso também, isso também.)Mas depressa, meu filho,a aurora já desponta, o encantologo vai esvaecer; ame,e mesmo se for traído,mesmo se provar o venenoda humilhação, ame,tenha coragem, mas seja também covarde,seja tudo, toque na derrota,no fracasso, magoe também,

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desapontee minta —depressa, meu filho, passe por tudo isso,só há tempo para um leve roçar,tão curto o decorrer de uma ilusãoassim, mas você vai tocar, acariciarum corpo quente, uma mulher,opulência de seios em suas mãos,cabeça de um menino que nasceu,que você não teve.Depressa, depressa, eis a primeira faixade luz —veja o mundo, Nova York que você não viu,Paris, Tananarive, tantas facestem o mundoque vive — não, não, pare —já é tarde,voltepara seu descanso,depressa,o escurecimento,o esquecimento,só não vejacom meus próprios olhoso que aconteceua você.

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os caminhantes:Nossos péslentamente se destacamda terra leveslevesflutuamosentre lá e cá entre a lucideze o sono mais um breve instanteo fioserá cortado e então poderemos pairare olharpara tudo que é possíveltudo que é permitidoversomente quando se andadentrode um sonho anotador dos anais da cidade: Dormem... Já há alguns dias eles dormem quase o

tempo todo, como se adormecessem a si mesmos... dormem e andam, falam umcom o outro em seu sonho, as cabeças apoiadas em quem anda ao lado e eu não seiquem carrega quem e de onde vem a força que os faz andar —

duque:... Às vezes, quando estousozinho, em minha alcova,descalço os dois sapatose olho parameus pés, e pensoque sãoele. velho professor de matemática:Eu batinele. Ele era

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um rapaz teimoso, e atrevido,e já quando criançatinha ideiasestranhas, e eu — quem poupasua vara odeiaseu filho — fuiobrigadoa bater nele. E quando ergueua mão defendendoo rosto, eulhe batina barriga. o caminhante:Mas onde você está, por que não responde,só isso me diga, meu filho,eu simplesmente perguntoonde?Ou como um discípulo ante seu mestre(pois isso eu vislumbro agoramuitas vezes em seu rosto),eu peço, vamos, me ensine,como uma vez, não faz muito tempo,eu ensinei a vocêo mundoe seus segredos,e desculpe se minha perguntaé boba, um tanto vaga, masnão se apagapois há cinco anos me devora a almacomo uma chaga:o que é a morte, meu filho?O queé

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a morte? parteira:A morte é grande e definitiva,minha filha, sua forçanão tem l-limite, a morteé et-t-terna,imortal, e a sua,pequena, e uma só,está dentro dela — sapateiro:Na verdade eu queriaperguntar, como é,minha filha, quando a gente morre.E como está vocêlá.E quem é vocêlá. duque:É uma ideia incrível, meu filho, mase se agora você sabemuito mais do que eu?Talvez um mundo novo,maravilhoso,arrebate você em seu voo,e no ruflar de sua poderosa asaestenda a vocêsua infinitude, assim comonosso mundo aqui destilouentão sua abundânciaem sua alma, uma almajuvenile pura. De repente

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a sua frenteeu me sintotão jovem, tão pueril — anotador dos anais da cidade: De vez em quando por eles passa um tremor, em

todos, um após outro, como se uma mão invisível deslizasse uma carícia ao longo daespinha daquela pequena caravana, detendo-se um pouco sobre a cabeça de cada umdeles. Eles, em seu sono, se empertigam para ela como pintinhos cegos ao ouvir avoz da mãe, e através de suas pálpebras seus olhos brilham.

parteira:Eu a vejoa pular e dançar na cozinhaantes de ficardoente, quando aindatinha forças. E o p-paidela, meu homem, meu amado,meu sapateiro, se ajoelhaante ela e fazde suas mãos sapatospara os pés dela. sapateiro:Estou sonhando?Meu Deus, vejacomo elaquasenão maisgagueja! parteira:... e ele a levapela casa nos sapatosde suas mãos, e ri

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até quase o teto voar, e elaabraça seu pescoçoa gargalhar, só agora aprendeua falar, vocêlembra, apenas começa a dizeras primeiraspalavras dela.p-pai,m-mãeli-li-li-Lili. sapateiro:Lilizinha,Lilizinha,mi-mi-minha. os caminhantes:Caminhantes, é impossível,impossível ficar parado.O corpo não o permite. As pernasfraquejam, minha respiraçãoé curta, e o corpo assim mesmonão concorda em parar e empurrade dentro, adiante... É comoir a um doceencontro, não é, senhoraanotadora dos anais? Verdade,senhora na rede, é comoum encontrocom o ser amado. o caminhante:Este buraco,esta ausênciaque só a morte

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como tal engendra —que não édesaparecimentoou términoou nada.Onde há também um últimolugar, escancarado,como fresta de janela,onde ainda respirao ausente, ainda não consolidado,se debatendo, no qual se podetocar aquie ainda, quase, sentir,o calor da mão que tocaali —e este é o limiar, a últimalinha comum entre láe cá, e só até ela,não mais, podechegar vivo o vivente,e lá, talvez, sentir aindao fim de seu fim,ainda um sinal, a findabrasa ardenteque se esvaise apaga e extingueno morrente. velho professor de matemática:Você tanto se tornou sua morte,que às vezes penso(perdão, estou cruzando alguma linha?Melhor calar? Perguntar? Não seise você sabe, meu filho, sou um pouco

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um homem de maneiras, e de repente não estou certode como devo tratar você... Melhor em segunda pessoa?)Mas diga, fale claroe não me poupe; assim,se lhe permitissem, eles,lá —se lhe deixassemescolher —você voltaria?Voltaria para cá?Para mim? duque:Ou, como no poema de Rilkesobre Eurídice,você está todo entregue, meu filho, à mortenova, que o preenche,“qual fruto cheio de dulçor e treva”?E somente eu,Orfeumaçante cheio de saudade,arrasto vocêpara cá,contra sua vontade? velho professor de matemática:Mais uma só, permite?(perguntar a quem maissenão você, meu mestreem mistérios tais) —Diga-me só que coisa é essaem nós, a vida,por cuja tramanós sabemosestar completamente mortos

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num rompante, no mesmo instanteem que morremos. E desistimosde tudo, e somos desistidos,como uma lei das profundezas,que nos tocaia sempre, dentrode nós mesmos, e de uma vez emergee sobe como um vultoescuro dos abismos: nós ainda empoeiradosem volta dos destroçosjá ela assume o seu lugartoda orgulhosa, na euforiada anfitriã de um tempo ido,e seu olhar petrificado, do qualnão escapa nada, mas tambémenceguecido, proclamaem triunfonum fio de sorriso, aberto —“A morte, meus amigos,é que é o certo!” os caminhantes:Ao encontrá-los... o que lhes dizerao encontrá-los? Eu, meus senhores,já decidi: nãolhe falarei de seu irmão, do filho quetive depois dele. No quarto delatroquei todosos retratos. Nãoaguentávamos mais. Eu,por fim, a alma nua,dei seu cãoa um meninona rua.

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(silêncio) o caminhante:E após algum tempo,o que quer que eu faça, vocêse petrifica,e mais e mais uma vezeu tenho de entalharvocêdas crostasde pedra em que vocêse funde, e eu precisomuito me esforçarpara querer, sim —desentranharda mesma forma a mim,lutar —enquanto todo o meu serproclama, pare, melhor assim,deixe a naturezahumana decidiro que permite, você já temde aceitar deleo destino, você precisarespeitar o seu limite — — —Então, logo eu suspeitode mim mesmo: talvez no íntimoeu já deseje que vocêse petrifique?Que pare de sangrar.Que não estejatão desperto e afiado,e temperadomorto-eternizado.

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Mas não menos dolorosoé quando eu consigo:quando uma força imagináriairrompe até que o blocode pedra se rompe, se esfarela,se desprende e cai em volta de você,e então de repente —eis você:desnudo,esplendoroso, a brilhardentro da pedra, ou mesmosem brilhar, só de pé e relaxadoe em paz, olhando para cáe para lá, embaraçado, sem saberque eu olho para você: presente,tão presente,e não descumpre, e nãopromete, só palpitacom relaxada placidezo pulsar de sua existência. E quentena medida certa,e vivo —de enlouquecer. os caminhantes:Quando nos encontrarmos, senos encontrarmos,que direi a ele? Quedirei a ela? Vocêsacham que souberam?Souberam o quê? Quemorreram. duque:

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Ele morreu em agosto, e quando chegouo fimdaquele mês,pensava eu o tempo todo, como podereipassar a setembrose ele ficaem agosto? os caminhantes:Será que só vamos parardiante deles, quando nos encontrarmos,sem dizerpalavra? Talvez eleme diga que agora compreendeque foi sópara o seu bemque eu lhe bati?Talvez eu cantepara ela a cançãoque cantava quando eraum bebê? Só finalmentelá chegar, meu Deus. Tenho medode que eleme seja estranho. Só estarcom ela. “Todanoite a lua vê, enfim,as flores que brotaramno jardim...” Sóestar lácom ela. Sóestar. Tomaraeu pudesse lhe levar,como resgate, um poucode sopa de tomate.

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o caminhante: Não, não... não pode ser, não pode ser — os caminhantes: Não pode ser, não pode ser — o caminhante: Não pode ser que estas palavras estejam corretas — os caminhantes: Não pode ser, não pode ser — mulher dentro da rede: Que eu tenha visto como jogavam meu filho dentro de

um buraco na terra — parteira: Tach, tach, tach — o som da enxada que cava a terra — os caminhantes: Não pode ser que essas palavras estejam corretas, não pode ser que

elas sejam verdade — o caminhante: Simplesmente não pode ser. parteira: Queimar! Queimar essas palavras! Queimar essas falas malditas! os caminhantes:Olhamos para cima, soubemoslogo para onde olhar, para o fogo, o pequenofogo, o fogoperene, de dia e de noite caminhaconosco, já nos acostumamos, eu,meus caros, o chamo: o fogo ardente.Esqueça. São apenas pequenas brasas,doces, não mais,não mais, olhe o fogo, por dentro, estávivo, como um vivente — — —Não se movam, esperem, nãoo irritem, ele se abre,estranho, agora

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se distende, lentamenteestende as mãos, braçoscompridos, meu Deus, o queé isso,dedos estendidos — mulher dentro da rede: Na terra! Na terra apodrece seu doce corpo! os caminhantes:O ar estremeceu com um grito, as mãosdo fogo se crisparam, imóveis um instante num torrãobrilhante, ardente, e então voltarama vertiginar, a florescer como uma florselvagem, para súbito explodirlá em cima, torrente de fogo crepitante, a crescerem erupção, sobre nossas cabeçasos dedos se abriram, linhasde fogo jorraram,romperam sombras,visões de repentecomo chicote estalaram, saltaram, capturaramquem,as palavras —As palavras? As palavrasmalditas,todos os não-pode-serforam tragados, engolidospelo fogo, tudo queimouna chama, soltamosum gritoaflito, uma labaredaamarela e negrase elevou de nosso imo,escapamos —paramos —

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gritamos —gelamos —e ele — labaredas,leoas,dragões,serpentes, juramoscalare gritamos,vomitamosmistura de palavras, palavrasterríveis, não podeser, nãopodeser, e ele —se avoluma, crepitante,o fogo como uma roda atrás de nósse incendeia, e jádentro de nós seus olhos vermelhose negros se abreme perscrutam, línguasardentes, que venha,que queime, palavrasmalditas captureno ar, carbonizelembranças, quadrosque durante anos não ousamoscontemplar, que coma, devore, fogoimenso, engolindocrestando, asvíscerasconsumindo,ai, latimos, uivamosao fogo desvairado, tudo, levetudo, queime até

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as cinzas, ai,sufocamos na borralhadas palavras, na fornalhadas palavras — exaustos,vazios estamose fraquejamos, rostosenegrecidos, e ele — finalmente esfriae silencia,silêncio, a tênue chamase apaga, bem nutridashhhh...e adormecida (silêncio) O quê, o que foi?Sonhei? Estavadormitando? Olhempara mim! Estourespirando! E uma levezatal tão de repentenos membros, o corpocomo a flutuarno ar... Diga,senhora, estoumorto? Estou vivo?E o seu rosto,mulher, toque, toqueem mim, estranho, estáliso, comoera

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antes — Eu quero —eu quero —euquero, queremosdespertar,despertardisso,despertarpara a luz euquero, mergulharbanhar-metodo em luz — Vocês,vocês aí —que não escutam — que nãorespondem —que esmagamnosso coração — que sugamnosso sangue — mamam de nóscada gota de vida — cobramo imposto — imposto sobre o friode vocês — sobre todo momento de riso —de luz — olvido —distração — vocês — em cuja voz toda palavraque dizemos aqui a nós é logosussurrada de volta — de lá — e por quê? — Pensaram nisso? — Por queafinal vocês viraram mortos? — E comonão se cuidaram? — Não se cuidaram como nós —e por que se foram, e pegaram essa doença que em vocês

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se aferra? — E para a guerra,por que foram para a guerra? —e para as ondas —e para a navalha — e como é que vocêsestão mortos, e nósconseguimosficar vivos? — Pensaram alguma vezno que isso quer dizer? — Que talvez não por acasovocês estão aíe nós aqui? — E que talvez vocêstenham feito algopara estarem a-a-assim?Querem saber? Nós nemqueremos nos atribularcom tais pensamentos! — Sequer queremospensar em vocês! — Já pensamos demaisem vocês! — Já pensamos demaisem geral! — Antes de isso me acontecereu nem sabia que existiamtantos pensamentos! — Ahhh,quantos anos, meu Deus — quantas lágrimas —então peguem — peguem — peguem o pacotede seus ossos — e saiam — saiam de nossavida — ouviram? da v-v-v-ida! —Vocês,vocês aí —tomaraque morram! mulher no alto do campanário:Caiuo silêncio.A cidade

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distante emudeceu.Como se tambémládeixassemde respirar. o caminhante: Mas quem sou eu? sapateiro: Quem é você? o caminhante: Acho que eu estava procurando alguma coisa aqui. mulher no alto do campanário:E ele foi —e ele voltou,e parou, e buscounos seus rostoso quetinha perdido —e andouem círculosem volta delese de repente —caiu. o caminhante: Quem sou eu? velho professor de matemática: Pardon, meu senhor, por acaso o senhor lembra

quem sou eu? sapateiro: Diga, senhora, talvez a senhora se lembre — parteira: Havia um bebê, e mais um bebê, e mais... todos saíram de mim?

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mulher dentro da rede: Havia uma casa, havia roupas — duque: Eu brincava com cavalos... cavaleiros — mulher do anotador dos anais da cidade: E você, meu senhor, quem é você? anotador dos anais da cidade: Eu? Eu não... desculpe, senhora, eu não me

conheço. o caminhante: Quem sou eu? mulher no alto do campanário (cantando baixinho):Quando eu lhe disser sim,abraceo não,e abrace o que énele ausente, e anunciasua completudevazia — (silêncio) mulher no alto do campanário:Lá você não estámais só,não está só,e lá não éum só,e nunca mais será sóum — (silêncio) o caminhante:

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Láeu toconele?Bem dentrodele?No fundo dele? mulher no alto do campanário:E ele,ele tambémtocaráem você de láe seu toque — o caminhante:Toque como tal,mortal, não me tocou maisninguémjamais. mulher dentro da rede:Duas migalhas de gentenós fomos,um menino esuamãe — o caminhante:O que devo fazer ainda? Meus pésquase nãome carregam, e o fio de minha vidaestá cada vez mais fino, mais um instantenão mais será. Você tinha razão,

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mulher, mais razão do que eu —não existe lá, não existelá,e mesmo se por toda minha vidaeu for para lánão chegarei lá, não chegareivivo. Veja,passaram-se tantos diasdesde que deixei a casa,e em vão, e sem propósito, só restouem mim como uma praga o desejode andar mais,andar — mulher no alto do campanário:Triste razão aquelaque tive mais do que você;e você foi mais sábio do que eu,ousando mil vezes mais —levante-se,vá e se pareçacom ele em tudo que podeum vivente se parecercom um morto — sem morrer.Conceba-o, mas tambémo mate, quase.Seja como ele, como a morte dele,mas só atéque a sombra de seu fenecercubra a sombra da sombrade você ser —e lá, meu amado,entre as sombrasdo além,entre filho e pai,

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viráo descansodelee o seu também. duque:Ouça o que ela diz, meu senhor(súdito meuque a ninguémse submeteu), preste atenção:são críveis as feridas da mulherque ama. Faça isso, senão —estará me condenando, condenandoa todos nós,e de novo não seremos — nós,toda a caravana — senãoum breve intervalo da morte,só uma marca tênue, confusa,no bloco de rochaobtusa, de cujo corpoalguma vez nos fez surgir,como um sinal, um escultor sensatomas não ousado,e se ousado, não genial,e mesmo se genial, certamente nãopiedoso —vá,inverta a roda do tempo,conceba-o e com elemorra, e nasça de dentroda morte dele — o caminhante:Só o desejo não se apaga

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em mim, como uma praga,como uma chaga —caminhar, caminhar mais,e mais —talvezem alguma última fronteiraque minha razão nãoalcança, eu possa me curvare deixaressa carga pesada, e entãoandar para trás um passo,não mais, uma passadapequena que abrange o mundo,aceitaçãoe constatação: euestou aqui,e ele estálá,e a fronteira não desapareceráentre aqui e lá.E assim ficar, e divagar,e devagarsaber,e todo eu me impregnarda ideiacomo o sangue emanada ferida:que assim é a humanavida. os caminhantes:E nesse instante, com essaspalavras, o mundoescureceu: uma sombrasobre nós desceu

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num golpe,uma muralha.Uma muralha bloqueianossa estrada. Paredede rocha poderosadivide, fendeo mundo. Muralha. Elaaqui não estava antes,não estava! Milvezes circundamosa cidade, subimos e descemosessas colinas, até nelas conhecermoscada pedra e falhana rocha, e de repenteuma muralha. Talvez não tenhamos percebido?Talvez em pleno sonopassamos por ela? Ela não estavaaqui! Então como?Do céu? Como surgiu assimdo solo?Agora está aqui, está aqui,e talvez —pode ser? É possível? Mas não,meus senhores, não, a ciêncianão ratifica tal premissa! Mastalvez sim a saudade? Talveza ratifiqueo desespero? O friosúbito se espalhanos membros. Uma sombra

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gelada cai sobre nós,como um machado destroçanosso mundo,como então,é verdade, como na horada calamidade — e ele,um só,que anda,só ele, se aproximada muralha. Passoa passo, assustado, lasso,as pernas batidas, fracasso,avança e falha,e lhe volta as costas — mulher dentro da rede: Basta! Vou voltar. duque: Mas ainda não chegamos... Quem sabe lá na verdade é bem aqui, minha

senhora, atrás dessa muralha? mulher dentro da rede: Ouça o que eu digo, duque, mais longe não chegaremos

vivos. duque: Por favor, não vá. mulher dentro da rede: Deixe-me entender, duque, você me pede ficar? duque: Quando você está aqui, eu não tenho medo... mulher dentro da rede: Dê-me a mão, meu duque. os caminhantes:E ele, diante da muralha, a cabeça

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inclinada, escuta,ele esperapor uma resposta, para onde, para ondeirá, para onde iremos, ao longoda muralha? Ou só ficaremosaqui,esperando?Por quem? Pelo quê?E até quando? E como sempre lhe acontece, já sabíamos,as pernas. Um leve tremorlhe sobe das pernas, o corpose contrai, a cabeça lentamente se erguee se apruma, ele anda. Elevai. Isso é bom, assimé bom, tudo despertapara a vida juntocom ele, a perna se erguee abaixa, um passo maise maisum passo, ele anda,anda e pisa, pisae calca, ele andano mesmo lugar —no mesmo lugar?! Juro, ele andano mesmo lugar, um passo, outropasso, outro passo, seus olhosno muro, anda semandar, anda a esmoe sonha, consigomesmo eleanda, delepara ele mesmo —

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o caminhante:Vou cairagora vou cair —e não caio.Eis que agorao coração vai parar —e não para — anotador dos anais da cidade:Eis a sombra finae rala da neblina,e o friosobeda escura ravina —agora,agora cairei — os caminhantes:E nãocaie nãopara, anda, caminha junto à muralha, um passomais um passo, mais um passo, passauma hora, mais uma hora, o solse põe e o sol se levanta, grande é a fraquezanos membros. As sombras de nossos corpos são tragadasno escuro, andamos, andamospara lá — E às vezes pareceque algo nela se move, na muralha,e respira. Nós, em nossa andançanada dizemos. Mais do que tudotemos medo

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da esperança. No que nos espera alémda muralha não ousamos pensar. Na horada aurora, também no crepúsculo, nossos corposse distendem, nos tornamos como gigantesmuito finos, como sombras. E às vezesdentro de nós paira um corpúsculodourado, se apavora com este e saltapara aquele, e também sobre isso nãofalamos. Andamos. Angustiados. Adiante,num calo da rocha, uma aranha teceteias, estende sua rede, transparentee tensa —e nela faz um nicho de repentee nele se recolhe,imensa — Nossos rostosse bloqueiam, nossos pésgolpeiam, pisoteiam a terra,a terra, também uma muralhaencerra. Talvezo céu também, lá em cima. Andar,andar ainda, o tempo todoandar para não sermos esmagadosentre as muralhas. Um passo, maisum passo, um passo mais, nossos olhosembaçados enxergam sócorcovas de pedrarochificada, cicatrizesde um marrom cinzento,e a fina rede de uma aranhaa oscilarao sopro do vento —

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A luz do poente cai sobre a muralha. Por um instanteela quase é atraente. A luzé cálida, condolente. Desde o dia em que minha filhase afogou, eu juntotodo instante de belezae caridade, para ela. E eu,meus amigos,desde então,olho cada coisabeladuas vezes. Ah, juro,duque, que também eucomo você sou só um toco, só que eunão tenho as palavras que você temda educação. Mas minha senhorana rede, você me emocionatanto toda vez quefala de seu filho. Bem, meu duque,é porque magicamente, de repente,de minha boca saem os poemas. Também comigoé assim, minha senhora. Quando os escutosei também: a poesiaé a línguade meu luto. Olhem —lá — na folha verde. É um milagre ter conseguidogerminar aqui e restar, na rochanua e árida. Uma moscapousa na folha, limpaseu corpo, se esfrega, faz brilharsuas asas transparentes — Andamos, tensos, olhamosa mosca como uma charada —

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vigorosa, cheia de vida, entusiasmadaela paira,de novo pousa, estabanada, masque se cuide, certo,que se proteja daquela, alina teia,que talvez até mesmose prepara paraum rendez-vous convosco,senhora mosca? Ou ela é...Boboca!Não —ela tocou,a mosca,com a ponta da asa na teia,está perdida — Eis a tragédia, nós o sabemos, logosabemos, eisa tragédia, seus dedos friosem nossos lábios,andamos rápido, andamosforte, fiosse enredam, e elaluta, tentavoar, e zumbeaté que o céuquase se rasga, e sua bocase abre por completo,o que quer dizer? O queaprendeu agora que nãosabia desde o momentoem que nasceu inseto?

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E um ou dois dias depois,no entardecer, num meio-sonoconstatamos que nosso passomudou. Andamos, marchamosrápido, a pelese arrepia, que coisa é essa? A terra, parece,está mais macia? Se abrindoem sulcos e crateras?Os péso entendem antes de nós, pisamna terra, se afundam, colunasde poeira sobem, as costas se empertigam, os olhosbrilham — — — Cada um de nós cai de joelhos, baixaà terra, e nela cava com as mãose com os pés, unhas também. Cavamosdepressa, como animais,e ela freme a esse contatode nossas mãos. E de repente elas são leves,flexíveis, os dedosrevolvendo, cava o corpo e a alma inteirae se empoeira — anotador dos anais da cidade:Minha mulher,ela também.Sua espádua bela,se mexe, flutua.No corpo dela,de dor pesado, se modelaleve e singelauma figura, que se esgueiracomo mariposana janela... Por um momento

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se detém. Com a mão enxuga a testa.Ponho minh’alma em minhamão e sorriopara ela. Sorri. Mexopara cima e para baixoas duas sobrancelhas. Sorriainda. Voltoa cavar. Meu coração,meu coração. os caminhantes:A terra se encurva e se afundapara nós, como seesperasse há muito tempo ser cavada, que assimcavassem, que nelacavassem pessoascomo nós — finalmentenos tornamos úteis — e também sentimoso quanto ela quer, a terra,que rolemos nela, rejubilemosnela, que riamospara dentro dela — só lágrimase sangue e suorderramamos sempre dentro dela. Quando,diga, quando foi que um homemriu paradentroda terra? A sombrada muralha vaise alongando sobre nós. É durae fria a sombra, dentes de ferrosão as sombras que nos rasgam,

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e nos atiramos mais aindapara dentro da terra, a revolvemos,absorvemos seu calore seu alento, e ela — é a mãede tudo que vive, e por issotambém a mãe de todo morto, enlutada-viva,cálida e palpitante em nossas mãos, como anos implorar que continuemos,sópara mais e mais extrairde seu útero a alegria da juventudeque nela se enterrou, a doçura da infânciaque nela se tornoupó — centauro:E eu também, na prisãode meu quarto, na mesade meu corpo maldito, finalmenteescrevi. Como dedosem terra fofaescrevia história — os caminhantes:O dia se extingue,ante a muralha nos deitamosentre as covasprofundas — as cicatrizes,as marcas que nela deixamos,na terra. De tempo em tempo se nos esvaium apressado e trêmulo olharpara dentro delas —e o olhologo se retrai.

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E ele, o caminhante, se erguedo pó e nos contempla, como sóagora, pela primeira vez, para nósse abrissem seus olhos, azuis, cheios de luz,e bons. E sorri com afetopara cada umde nós, e se parecetambém com esseque cada um de nóscarregadentro de si.E só com os lábios, caladoele murmura:obrigado.E depois ele vai, e uma após umaele tira suas roupas, e eis que estánu. Tão branco, tão singeloseu corpo, tãohumano e belo. E desceao buracoque cavou, e deitade costas, os braçosfrouxos, largados,os olhosfechados. Nós nos levantamos,ficamos de pé. Chegoua hora, e de repenteé urgente: o sapateiroe sua mulher ajudam

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o velho professora descalçar seus sapatos.A mulher dentrodas redes e seu amigoduque desfazem,mão na mão, os dedoságeis — ela por dentro,ele por fora — o emaranhadoque envolve o corpo dela. E o anotadordos anais e sua mulher se ajudamum ao outro, calados, a tirarseus trajes rasgados, os doisemocionados,empolgados, e de repenteeles parecemtão jovens e revigorados. E assim ressurgimosdespidos,e nos despedimosum do outro com um olhar. E de novocada umde nósestá só.E cada um se estendeem sua vala funda,e cada umdescea sua tumba. Então,como um predadorligeiro e de surpresaa noiteabocanha sua presa.

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centauro:Só agora eu atento.Não é seu filho que o paiincita, não é meu filhoque eu alentoassim, e faço estremecer. A mim mesmoeu satisfaçocom palavras, fantasias,com espantalhos,figurascoladas com palhae barro, com o bom senso de um coitado —para não acabar, petrificado.Para eu não acabarpetrificado. É minha alma que éceifadana brancura fria entre palavrae palavra. Soueuque me debato como uma presana gargantado absoluto. Por mim mesmo,só por minh’alma lutoaqui com o que aniquila,com o que obscurecee amesquinha. Toda a minha vidaagora,

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minha vida plenaestá na pontadesta pena. o caminhante:Faz-sesilêncio.Deito-mena prisãoda solidão:tristezade um homemna terra.Das lonjuras rolamas vozes tranquilas da noite, nuvenspesadas e baixas sobre mimsopram, ocultando como um véua visão do céu. As paredesda cova se acercam, se fechamsobre mim. A terra estuda, sente,mede, interpela,avalia: comome digerirdentro dela. mulher do anotador dos anais da cidade:Seremos castigados. Tremode frio e de medo. Penso:é proibidoque pessoas façamuma coisa dessas. Pensonesse meu bobo querido,infeliz, deitadotão perto de mim nessa camade terra. E o tempo todo sinto

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sangue,de mimpinga o sangue, escorrepara dentro da terra, chegaaté ele e penetraem suas artérias, e voltaa mim e se enraíza, é o nosso sangue, pois,e agora o sangue dela, e é a nós doisa quem se aferra,de novo pais,a concebemosde sangue e terra.E fico tontae adormecida, e é fácilde repente, como se o tempo também soltassesua mordida. Respiro. Lentae lentamente respiro. Nãorespirava assimdesde então. Assim não respireijamais. Minha alma é aspiradae volta como numa dançadelicada — o caminhante:Despertei depoisde sonhos confusosque não lembrei.O céu se feztransparente, e a muralha foialçada, até parti-lo em dois.Não ouço meus vizinhosna terra, e não seise estão aqui,ou se fugiram. Eu tenho

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frio, mas as pontasde meus dedos murmuram e ardem;e-u não se-reial-gum dia,não se-rei!E desse não-serei de repenteme vem o saborde eu ser. Seiquão muitoeu fuiem minha vida, até a pontados dedoseu sei.É maravilhososabê-lo, lembrar:quão muitoeu fui,e quãomuitonão serei. anotador dos anais da cidade:Tomara esquecesse seu nome,minha filha, a melodia de seu nomeem minha boca, a doçura que então se espalhavaem todo o meu corpo.Você era tão pequenina,mas há tanta coisa sua a relegar no olvido,e não querer nada que vocêtenha tido,nem mesmo você,quem quer tenha sido. duque: Quem está aí? Acho que reconheci a voz de meu bobo.

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anotador dos anais da cidade: Sim, duque, é este seu servo. duque: Meu dileto amigo. anotador dos anais da cidade: Muito tempo passou desde então. duque: Mais de treze anos, desde que você se condenou a esse terrível exílio.

Agora fale-me de sua filha. anotador dos anais da cidade: Não posso, senhor. No dia em que aconteceu a

tragédia me ordenastes que a esquecesse. duque: Meu querido amigo, quem mais do que você sabe que tal ordem não

poderia sequer ser cogitada por mim. Conte-me sobre ela. anotador dos anais da cidade: Não, não, duque, não posso. Para mim vossa ordem

ainda está em vigor! duque: Então, seu tolo, eu lhe ordeno: Esqueça-a para mim! anotador dos anais da cidade:Esqueço seu cabelo curto e fino.Esqueço seus dedos róseos, transparentes.Esqueço que era minha filha mimada e delicada.Esqueço-me de como ela — —de como vocêse zangava quando eu esquecia e, no prato,não separava a omelete da salada.Quando na banheira eu a lavava,você ria batendo com as mãos na água,de onde eu a tirava, e embrulhavaseu corpo na toalha macia, e perguntava: que criaturaestranha é estaque está aqui dentro?

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centauro: Meu amigo anotador dos anais fala e fala. Uma fonte de esquecimentos

irrompe dele. De minha janela olho para o horizonte. Entre duas colinas vejo agrande e vazia planície onde as covas foram cavadas. No ar, estilhaços de gotasbrilham à luz das estrelas. Uma árvore solitária, gigantesca e frondosa, lentamenteoscila ao vento, como acenando boas-vindas ou uma despedida.

E então de repente um vulto se move na planície. É uma mulher, que se livra esai de dentro da terra. Caminha alguns passos, devagar, pesadamente. Para, envolvea si mesma nos braços. Sua cabeça curva-se um pouco.

mulher do anotador dos anais da cidade:Quem a sustentará,quem a abraçará,senão nós doiscom nossos corposa envolversua plenitudevazia? centauro: Ela olha em volta, contempla longamente a muralha, então desce e é

engolida pela terra, na cova vizinha. Ao cabo de um minuto ou dois vislumbro umcaderninho sendo jogado com ímpeto de lá, esvoaçando por um instante no ar, seabrindo e fazendo brilhar no escuro suas páginas brancas, e se apagando.

o caminhante:Penso nos filhos —da-terra a meu lado. Pensoem meu filho. A terracom meu corpo se aqueceu.Meu coração lhe fala, e sou eu.Pelo menos nos separamos sem raiva —eu lhe digo,e sem ressentimento.Você nos amava, e era amadoe sabia

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que era amado.As estrelas cintilamsobre mim. Eu lhe digo, seráque posso fazer um pedido?Quero aprender a separara lembrançada dor. Ao menos parte dela,o que puder, para que nem todo o passadoesteja tão impregnado de dor.Assim também poderei me lembrar mais de você,você compreende: sem temer que a cada veza lembrança me queime.E digo também — preciso me separarde você.Não me entenda mal (sintoem minha própria carnea dor pungente que ele sente) — me separarsó até uma distânciapara que o peito possa se expandirnuma sórespiraçãocompleta.E sorrio, ao lembrar que isso foio que pediu também o velho professor. E o mar do céufreme, como um sorriso emergelá, lá em cima. Alguémtalvez me entendeu, ou mesentiu.Respiro, a totalidade da noiteinspiro. O céu nãome pesa, tampoucoa terra, nem mesmoeu. E nemvocê.

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Você —onde estávocê? mulher do anotador dos anais da cidade:Talvez eu não precise mais chegarao fim doscaminhos, à última pousada?Talvez seja a própria caminhadaa solução e a charada?Talvez não exista “lá”,minha filha, talvez também já não exista“você”?Mas enquanto estou assim prostrada, no ventreda terra, e minhas mágoas por breve instantese aliviam, de repente eu sintoe sei que vida e morte, elas mesmas,lentamente em mimse igualam, numa mescla que mais amenaé impossível (ai, como pode sair de minha bocafala tão terrível?!),até que como a noitee o dia, ou comoo inverno e o verãoque em algum dia são iguais, elasse dissolvem em mim, com sensatez e precisão medida,que adquiriram, ai meu Deus, ao preçoda tua vida —Não, não!amarga e repulsivatransação,mas assim mesmo,deixe-me dizer, senãoeu enlouqueço — agora, pela primeira vez

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eu sei não só que gosto tema morte,mas o que é a vida,e ainda mais que issoeu vejo — anotador dos anais da cidade:— como se postamvida e morte e se defrontam.Como sussurramuma à outra.Como setocam, comose entrelaçamuma na outrana raiz de sua nudez.Como sem pausa elas verteme derramamde uma a outra, de umapara a outra, como um casal,como doisapaixonados,a seivade seu ser. mulher do anotador dos anais da cidade:Estão uma na outra dissolvidas,e também eu agora,como um rioem que se despejou um parde riachos,e eu não sabia disso, não assim,que a vida, em sua essência inteira,é só

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um nome, na linhada fronteira —e é como se eu nunca tivesseexistido, e como se nadado que me aconteceujamais tivesse acontecido, atéque você, ou eu,até que morri, oumorreu — os caminhantes:Amanheceu. No céunavegam nuvens finase vermelhas.Subimos das covas devagar, ficamosnusante a muralha.E de novo nos pareceque ela estremece, um frêmito que passae repassa de alto a baixoe de um extremo ao outro,como o tremor de uma onda transparente.E não conseguimos falar, está cortadonosso alento, um murode rocha mas tão cheiode murmúrio. parteira:Um rosto — mulher do anotador dos anais da cidade:Ali,na muralha,nas pedras,eu vejo

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um rosto — anotador dos anais da cidade:Não, querida,vê, bem aqui, aquiestá o rosto, o corpoquentee vivo,ao passo que lá —lá o que háé uma ilusãoque só cria nostalgia. mulher do anotador dos anais da cidade:Um rosto de mulherjovem,ou de um homem,ou de um rapaz — duque:E elese movee variae vive. parteira:Estou sonhando,certamenteestou sonhando,meu Deus, é um rapaz ali? Ouum menino?Ou talvez, sim,uma menina?Menina, me-ni-na,

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olhe por favorpara mim... sapateiro:Como que em ceraestampado,ou comoem couro. velho professor de matemática:Ou em devaneio,ou mesmo em sonho, não —não, eu nãome engano, oque eu vejo é um rostohumano. os caminhantes:Um menino, vemosum rosto de menino, num relance,indícios de sua testa, seu queixo fino... trememos,o menino tambémestremece. Em ondas,figuras fragmentadas fluemnas pedras,vivificando nelas um relevosussurrantee se movendo — anotador dos anais da cidade:Ou é só impressãode um anelante coraçãoenlouquecendo? os caminhantes:

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Será somente um leve incharna rocha,ou é o narizpequeninode um menino?E sua boca,estará se abrindo, ou se curvoucomo em caretas? Ou é fragmentode rocha entre suas gretas? Menina? Foi uma meninaque lhe surgiu em cima, e jánão está? E voltará?O cintilarde uma menina flutua, recua, comose se chocasse, a pequenina,nos portais da realidadee se assustasse... E ela ainda se evapora, e a nossos olhos agorao rosto do menino muda, transformadono rosto de um rapaz, alongado,fino e delicado.E seu perfillentamentese volta para nós,com um espantoque não temfim.E ele nosencara, seus doissobrolhossão suaves arcosno muro. Cada um de seus

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olhosé um orifícioescuro. anotador dos anais da cidade:Estão enlouquecendopouco a pouco. Atenção, amigos,vejam: é uma muralha!Blocos de pedra! E os rostosque seus olhos veemnão passam de efeitos de luz,meros jogosde pedrase sombras — os caminhantes:Mas são tão cheiosde vida! Nelesperpassam lampejosde um sorriso, espantos,tristezas, como se,tão carentes,tão descrentes, estes rostos quisessemexperimentar uma vez mais,a última,todas as expressões,e também provardessa maneiraa plenitude do sabordas emoçõesque lhes roubaram.Em nós os coraçõesbatem: nossas almasse debatem, suspirandopor sair, de sua prisão

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se livrar, passardeste lugarpara o de lá... Estão tomadasde loucura: nossas almassão como garças e cegonhasengaioladas, enquanto passano céu límpidoum bando de aves,migrando para casa. anotador dos anais da cidade:Esta é a ânsia, não tenho dúvida, éesta ânsia que também minha razãocada vez mais avassala, ouçam-me,me ouçam — é a ânsiae só ela que na pedra entalhavivos nossos amados,iluminados, sim, lá,vejam, lá! Nos relevosda pedra. os caminhantes:E mais do que tudo, as bocas.Se mexendo, se mexendo sem parar, escancaradas,se rasgando, distorcidas,e arredondando... talvezrezando?Para quem?Amaldiçoando?Quem? centauro: Com todos os demônios, se eu apenas pudesse estar com eles! Se eu

pudesse só estar lá, e não sentado aqui e escrevendo e escrevendo! Eu arremeteria decabeça e romperia a muralha, eu a atravessaria e correria para dentro, eu —

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os caminhantes:E os corpos deles tambémarremetem, investindo de lásobre a muralha: Lutam? Com quem?Com o quê? Combatem com toda a forçapara de novo irromperpara cá? anotador dos anais da cidade:Ou fazem como um meninopequeno, que só agora acordoude seu sono e aindaconfuso e envolto em seu sonho golpeiao peito da mãe, e se enlaça,e golpeia, e golpeiae a abraça... os caminhantes:Vimos um braço, um ombrofino e magro, um joelho, e outro,e dois botõesbrotaram, se altearam,seios de garotinha,apontando. E acima deles o seu rosto,que devagar se transformounum rosto sorridente de rapaz, e o parde seios se fez os rostosde bebês, meninae menino... Longasmãos ali pousaram, dezfinos dedos se espalharamcomo grinalda, em voltado rosto do rapaz.Seu nariz, assim parece,

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se espremena escuridão de uma vidraça de janela,tentando penetrarcom o olhar na espessidãodo escuro. Está tentando? Será que tentanos chamar? Ou prevenir?Talvez de lá pareçamosnós também apenas traçostênues, lutandopara nos livrar do sólido blocode rocha — Medo,o medo nos assola. Breve tudose evapora, agora, correr agora, colaro rosto na muralha, rompê-la,de lá puxá-los,arrancá-los. Mas congelamos, nãonos movemos! Se falarmoscom eles, pensamos, nós lhesdiremos o que não dissemosem suas vidas, ou clamaremosa eles por entre as bordasdo buraco em nósrasgado, pelo qualnossa vida se esvaiem grandes golfadas. centauro: O caminhante cai de repente de joelhos diante da muralha e sussurra o

nome de seu filho. Não há som algum em seu sussurro, só uma boca aberta e olhos

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arregalados, e eu, em meu quarto distante, sinto como uma lâmina afiada voa de lá eme corta aqui em dois, e no desfalecer de uma dor tão doce ouço atrás de mim, deuma pilha de objetos, a voz de um menino dizer baixinho, num suave balbucio —

menino:Temalento, temalento, dentroda dor temalento. centauro: Eu me levanto, fico de pé. Caminho pelo quarto para cá e para lá,

levanto um ou outro objeto e toco nele, e o acaricio e o levo a meus lábios. Depoisvolto e fico junto à janela. Com o binóculo que encontro em uma das pilhas possover melhor: o balbucio do caminhante parece ter retardado também os quecaminhavam atrás dele. Assim como ele, caem de joelhos a parteira e o sapateiro, ovelho professor, a cerzidora de redes e o duque, o anotador dos anais da cidade e suamulher. E cada um deles, cada um de nós, chama, sussurra para seu filho:

os caminhantes:Lili —Adam? Minhapequena Lili — Michael — ah, meu filho,meu encanto, minha perda — Chana,Chana, olhe para cá — perdoe, Michael,por eu lhe terbatido — Adam, é seupai — U-i — minha migalhade vida — — — Despertamosestendidos sobrea terra,e a muralhajá não está lá. Talvez

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jamais tenhaexistido. Talvez nadade tudo que vimostenha mesmo acontecido. Foi só uma ideiaestranha, ocultae comezinha, quenos ocorreu a todos, como acosturar cada um de nóscom a mesma linha:talvez no momentoem que o homemse pôs de péna pequena cozinhae dissepara a mulher, euprecisoir para lá —talvez nesse momentomoveu-sealguma coisa tambémlá.E quando o homemcomeçoua andarem torno de si mesmoem círculosem volta de sua casa — tambémeles, lá,começarama andarpara cá,para o lugardo encontro?

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E agoraimaginamos a todosum pouco encurvados,se apagando,voltandolentamenteao seu lugar. o caminhante:E ele-mesmoestá morto,eu entendo, quase,o significado dessessons: o menino estámorto,eu reconheço assimnessas palavras a verdadesem conforto. Ele está morto.Eleestá morto. Massua morte sua mortenão morreu. centauro:Mas meu coração se dilaceraem mim, querido meu,quando pensoque eu —que isso é possível —que encontreipara isso

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palavras.

Abril de 2009 — maio de 2011

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Notas a esta edição

Adam, em hebraico, “ser humano”, “gente”, corresponde, em português, a Adão, oprimeiro ser humano.

“Minha vida, que amava o sol e a lua, parece algo que não aconteceu” foi extraído

do poema “A clown’s smirk in the skull of a baboon”, de e. e. cummings. Importante e intraduzível (e inadaptável) construção: li, em hebraico, significa

“para mim”, e por extensão, “meu/minha”. Na pronúncia tartamuda do nome dafilha li-li-li-Lili, se está dizendo “pai e mãe meus” e também “minha Lili”. Otradutor tentou “compensar” a perda na estrofe seguinte.

Verso de Orfeu. Eurídice. Hermes (“Wie eine Frucht von Süssigkeit und Dunkel”),

de Rainer Maria Rilke, tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia dasLetras, 2012.

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Copyright © 2011 by David Grossman

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesade 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título originalNofel mi-jutz la-zman

Capawarrakloureiro

Imagem de capaPeter Marlow/ Magnum Photos/ Latinstock

PreparaçãoAna Cecília Agua de Melo

RevisãoAna Maria BarbosaMariana Zanini ISBN 978-85-8086-361-1 Todos os direitos desta edição reservados àeditora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 — São Paulo — spTelefone (11) 3707-3500Fax (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br