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Nove Noites - literaturaufalarapiraca.files.wordpress.com · violência assustadora. Que se maltratou, a despeito das súplicas dos dois índios que o acompanhavam na sua última

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Na noite de 2 de agosto de 1939, um jovem e promissor antropólogo americano, Buell Quain, se matou, aos 27 anos, de forma violenta, enquanto tentava voltar para a civilização, vindo de uma aldeia indígena no interior do Brasil. O caso se tornou um tabu para a antropologia brasileira, foi logo esquecido e permaneceu em grande parte desconhecido do público. Sessenta e dois anos depois, ao tomar conhecimento da história por acaso, num artigo de jornal, o narrador deste livro é levado a investigar de maneira obsessiva e inexplicada as razões do suicídio do antropólogo. Em sua busca obstinada pelas cartas do morto ou pelo testamento de um engenheiro que ficara amigo do antropólogo nos seus últimos meses de vida, o narrador é guiado por razões pessoais que não serão reveladas até o final do romance, mas que dizem respeito à sua experiência de criança na selva, à história e à morte de seu próprio pai. Nove noites narra a descida ao coração das trevas empreendida pelo jovem expoente da antropologia americana, colega de Lévi-Strauss e aluno dileto de Ruth Benedict, às vésperas da Segunda Guerra. A história é contada em dois tempos, na tribo dos índios krahô (interior do sertão brasileiro) e na combinação progressiva entre a busca pelo testamento do engenheiro e a pesquisa que o narrador vai fazendo em arquivos, atrás das cartas do antropólogo e dos que o conheceram na época. Para escrever o livro, Bernardo Carvalho travou contato com os Krahô, no estado do Tocantins, e foi aos Estados Unidos em busca de documentos e pessoas que pudessem saber algo sobre o antropólogo. A história de Buell Quain revela as contradições e os desejos de um homem sozinho numa terra estranha, confrontado com os seus próprios limites e com a alteridade mais absoluta, numa narrativa que faz referências aos romances de Joseph Conrad e aos relatos do escritor inglês Bruce Chatwin.

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1.Istoéparaquandovocêvier.Éprecisoestarpreparado.Alguémterá

quepreveni-lo.Vai entrarnuma terra emquea verdadee amentiranãotêmmaisossentidosqueotrouxeramatéaqui.Pergunteaosíndios.

Qualquercoisa.Oqueprimeirolhepassarpelacabeça.Eamanhã,aoacordar, façadenovoamesmapergunta.Edepoisde amanhã,maisumavez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia receberá uma respostadiferente. A verdade está perdida entre todas as contradições e osdisparates. Quando vier à procura do que o passado enterrou, é precisosaberqueestaráàsportasdeumaterraemqueamemórianãopodeserexumada,poisosegredo,sendooúnicobemqueselevaparaotúmulo,étambém a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, àesperadeumsentido,nemquesejapelasuposiçãodomistério,paraacabarmorrendodecuriosidade.Viráescoradoem fatosqueatéentão terão lheparecido incontestáveis. Que o antropólogo americano Buell Quain, meuamigo,morreunanoitede2deagostode1939,aosvinteeseteanos.Quese matou sem explicações aparentes, num ato intempestivo e de umaviolência assustadora.Que semaltratou, a despeitodas súplicasdosdoisíndiosqueoacompanhavamnasuaúltimajornadadevoltadaaldeiaparaCarolina eque fugiramapavoradosdiantedohorror edo sangue.Que secortou e se enforcou. Que deixou cartas impressionantes mas que nadaexplicam. Que foi chamado de infeliz e tresloucado em relatos que eumesmotiveainfelicidadedeajudararedigirparaevitaroinquérito.Passeianosàsuaespera,sejavocêquemfor,contandoapenascomoqueeusabiaemaisninguém,masjánãopossocontarcomasorteedeixardesaparecercomigooqueconfieiàmemória.

Também não posso confiar a mãos alheias o que lhe pertence edurantetodosestesanosdetristezasedesilusõesguardeiasetechaves,àsuaespera.Meperdoe.Nãopossomearriscar. Jánãoestouemcondiçõesouidadededesafiaramorte.AmanhãpegoabalsadevoltaparaCarolina.Mas antesdeixo este testamentoparaquandovocê vier edeparar comaincertezamaisabsoluta.Sejabem-vindo.Vão lhedizerquetudofoimuitoabruptoe inesperado.Queosuicídiopegoutodomundodesurpresa.Vãolhe dizer muitas coisas. Sei o que espera de mim. E o que deve estar

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pensando.Masnãomepeçaoquenuncamederam,opretonobranco,ahoracerta.Teráquecontarapenascomo imponderáveleaprecariedadedoqueagoralheconto,assimcomotivedecontarcomorelatodosíndiosea incerteza das traduções do professor Pessoa. As histórias dependemantesdetudodaconfiançadequemasouve,edacapacidadedeinterpretá-las. E quando vier você estará desconfiado. O dr. Buell, à sua maneira,tambémeraincrédulo.Resistiuoquantopôde.Precisamosderazõesparaacreditar.

Estareiabusandodasuapaciênciaeboavontade,sejavocêquemfor,se lembrarquemorremos todos?Me lembrododiaemqueele chegouàcidadeque chamoudemortanas cartas, emmarçode1939,desconfiadocomovocêagora,aprimeiravezqueovi.

Todos conheciam o ronco do hidroavião da Condor quando seaproximava da cidade, anunciando a sua chegada. Ninguém mais nosvisitava.Muitagentecorreuparaorio.Euestavaocupadocomumaobra,masaindapudevislumbrarno chãoda casa sem tetoa sombradoavião,quesobrevoavaasmangueirasacaminhodorio.

Termineioserviçoedesciatéoporto.Eleposavaparao fotógrafoqueo representantedaagênciaCondorhavia contratadopara registraroacontecimentoeque,comacâmerasobreumtripé,fixavaparasemprenassuaschapasachegadado ilustreetnólogo,ao ladodos índiosedopiloto,todosdepé sobre a asado avião. Sua vindaprovocouuma sensaçãoquecinco meses depois todos já tinham esquecido, se é isso que você quersaber.Nósnosacostumamosmuitodepressacomoextraordinário.

Sóeuguardoamemóriadele.Masnaqueledianemeunemninguémpodíamos imaginaroquerecebíamos.Veiocomumchapéubranco,comosefosseocapitãodeumnavio,camisabranca,bombachasebotas.Nemeunem ninguém podíamos ver nada por trás da elegância tão altiva eimprópria para o lugar e a ocasião, ainda mais para quem agora olharetrospectivamente. Ninguém podia prever a desgraça que emmenos decincomeses lhe arrancaria a vida.Me aproximei da cena a que a cidadeassistia muda, sem entender a missão que recebia e que nenhuma almahumana seria capaz de recusar. Eu fui essa alma. O representante daCondornosapresentou,masoetnólogonãomeviu.Apertouaminhamãocomo a de qualquer outro e sorriu, sorria para todos, mas não notou aminha presença.Mal ouviu omeunome. Se o tivesse entendido, teria nacertacaçoado,porqueapesardetudonãolhefaltavahumor.Omeunomeémotivodechacotaforadaqui.Eeletinhaacabadodechegar.Sómaistardeéqueentenderiaascircunstânciaseasvantagensdeterumaliadoemmim.

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Sóentãoaceitariaaminhaamizade,afaltadeoutra.Possoserumhumildesertanejo,amigodosíndios,mastiveeducaçãoenãosoutolo.Nãoguardorancor de ninguém,muitomenos do dr. Buell,meu amigo, a despeito detudo o que possa ter pensado ou escrito e a que só tive acesso pelaincerteza das traduções do professor Pessoa a procurar nos papéis domorto uma explicação que eumesmo fiz o que pude para esconder. Eraprecisoqueninguémachasseumsentido.Éprecisonãodeixarosmortostomaremcontadosqueficaram.

Desdeoinício,emboranãopudessepreveratragédia,fuioúnicoaver nos olhos dele o desespero que tentava dissimularmas nem sempreconseguia,ecujarazão,quechegueiaintuirantesmesmoqueelamefosserevelada, preferi ignorar, ou fingir que ignorava, nem que fosse só paraaliviá-lo. Acho que assim eu o ajudei como pude. Tendo presenciado ospoucos momentos em que não conseguiu se conter, eu sabia, e o meusilêncioeraparaeleaprovadaminhaamizade.Assimsãooshomens.Ouvocêachaquequandonosolhamosnãoreconhecemosnopróximooqueemnósmesmos tentamos esconder?Não há nadamais valioso do que aconfiançade umamigo. Por isso aprecio os índios, comos quais convivodesdecriança,desdeo tempoemqueomeuavôosamansou. Sempreosrecebinaminhacasa.Sempresoubeoquediziamdemimpelascostas,quemeconsideravamumpoucolouco,aliáscomoatodososbrancos.

Mas amim importava apenas quepudessem contar comigo. E quesoubessemqueeunãoesperavanadaemtroca.Demimteriamtudooquepedissem,eDeussabequeseuspedidosnãotêmfim.Fiztudooquepudepor eles. E também pelo dr. Buell. Dei a ele o mesmo que aos índios. Amesmaamizade.Porque,comoosíndios,eleestavasóedesamparado.E,adespeitodoquepensououescreveu,nãopassavadeummenino.

Podiasermeufilho.Nadameabaloutanto.Nemmesmoquandofuidestituído das funções de encarregado do pos-to indígena Manoel daNóbregapelosr.CildoMeireles,inspetordoServiçodeProteçãoaosíndios,três anos depois da tragédia, quando ele me recomendou que dali emdianteeudeixasseomeucoraçãoacincoléguasdedistânciadopostoemeafastasse para sempre dos índios—não queriame ver pela frente.Nemmesmoahumilhaçãodetersidodispensadodocargoqueocupeiporpoucomaisdeumanoequeoprópriodr.Buelltinhameajudadoaconquistaremdefesadosíndios,graçasàscartasderecomendaçãoqueenviouaoRiodeJaneiro.EnemmesmoomassacredaaldeiadeCabeceiraGrossa,queodr.Buell talvez tivesse podido impedir se ainda estivesse vivo e entre elesquando os fazendeiros prepararam a emboscada um ano depois do seu

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suicídio. Nada me entristeceu tanto quanto o fim do meu amigo, cujamemória decidi honrar. Eu o acolhi quando chegou. Nada do que tenhapensadoouescritopodemecausar rancor,nuncaespereinadaemtroca,porqueseique,nofundo,fuiaúltimapessoacomquemelepôdecontar.

Saída casa sem teto ao cair da tarde, quando uma nuvem demorcegos também saiu do tronco oco de umamangueira e se canalizoupelasruas,numaenxurrada,emvôorasanteecego,a ignorarbicicletasepedestres, que também os ignoravam naquela cidade morta, como ele adescreveu,seformosconfiarnastraduçõesdoprofessorPessoa.Possoserignorante, mas nunca fui supersticioso. Podia ter visto um sinal demauagouronanuvemdepequenosvampirosqueorecebiam.Mastudooqueviforamosseusolhosquandochegueiaorio,aexpressãoqueassumiam,pordistração e cansaço, entre uma fotografia e outra, quando se esquecia dequetambémoolhavam.Queriapartirparaaaldeia.Estavaexausto.Queriaficar longe dos olhares. Só você poderia terme dito o que ele veio fazeraqui,seveiorealmenteparamorrer,comoacabeisuspeitandoaoreceberanotíciadosuicídio.Fazanosqueoespero,emvão.

No dia 9 de agosto daquele ano, cinco meses depois de ele terchegadoaCarolina,umacomitivadevinteíndiosentrounacidadenofinaldatarde.Traziamatristenotíciae,nabagagem,osobjetosdeusopessoaldodr.Buell, queeumesmorecebi e contei, com lágrimasnosolhos:doislivrosdemúsica,umaBíblia,umpardesapatos,umpardechinelos, trêspijamas, seis camisas, duas gravatas, uma capa preta,uma toalha, quatrolenços, dois pares de meias, um suspensório, dois ternos de brim, doisternos de casimira, duas cuecas e um envelope com fotografias. O seuretratonãoestavaentreelas.

Haviaafotodeumacasademadeiranapraia;haviaosretratosdosnegrosdoPacíficoSul,que lhecontaram lendase canções;havia retratosdosTrumaidoaltoXingu,masnãohavianenhumafotodefamília,nemdopai, nemdamãe, nemda irmã, nemde nenhumamulher. E possível quetivesse queimado esses retratos junto comas outras cartas que receberaantesdesematar.Osíndiosnãotocaramemnada.Foramàminhacasasemparar nem falar com ninguém pelo caminho — estavam com medo,achavam que pudessem ser incriminados —, o que não impediu que anotícia logo se espalhasse, e em pouco tempo uma pequenamultidão decuriosos cercava a minha modesta morada. Mandei chamar o professorPessoaàspressas,quedepoisde lerumadascartasdeixadaspelo infeliz,em inglês, acalmou os índios e garantiu a todos que eles não tinhamnenhumaresponsabilidadenatrágicaocorrência.Eledeixoucartasparaos

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EstadosUnidos,paraoRiodeJaneiro,paraMatoGrossoeduasparaCaroUna, uma para o capitão Ângelo Sampaio, delegado de polícia, e a outraparamim.

Desde então eu o esperei, seja você quem for. Sabia que viria embuscadoqueeraseu,acartaqueelelheescreveraantesdesematareque,porsegurança,medesculpe,guardeicomigo,desconfiado,jáquenãopodiacompreenderoquealiestavaescrito—emborasuspeitasse—nemcorreroriscodepediraoprofessorPessoaquemetraduzisseaquelaslinhas.FoiaúnicaquenãoremetiaoRiodeJaneiro.Hoje,malsepassaramseisanosdamorte do dr. Buell, e o próprio professor já se diz etnólogo e seautoproclamaestudiosodosKrahô,comosenuncativessepassadonenhumetnólogo por Carolina, como se bastasse a sua autodeterminação para seequiparar aohomemqueo ignorou e de quemele diz também já não selembrar,poissóalembrançajálhefariasombraedariaosparâmetrosquelhefaltamparareconheceraprópriamediocridadeeignorância.Possoserumsimplessertanejo,masnãosoutolo.Dosenvelopesfechados,aqueleeraoúnicocujodestinatário,atéondeeusabia,nãoeradafamíliadodr.Buellnem tampouco outro antropólogo oumissionário. Peço queme entenda.Eramtemposdifíceis.Tudooquefizfoiporami-zade,paraprotegê-lo.Vocênão pode imaginar, seja lá quem for. As cartas seguiam para o Rio deJaneiro antes de serem remetidas aos Estados Unidos. Nadame garantiaquenãofossemabertaselidas,comofizeramasautoridadesmaranhensesao submetê-las aoprofessorPessoa embuscadeumaexplicação, ouquenãoseextraviassem.Aindamaissefosseinstauradooinquérito.

Guardeicomigoestaúnicacarta,paraprotegê-lo,eaosíndios.Jureiqueninguémalémdevocêporiaosolhosnela.Mandei-lheumbilhetenolugarda carta, umbilhete cifrado, é verdade, em código, queoprofessorPessoameajudouaredigireminglês,semsaberaquemmedirigiaoucomqueobjetivo,pensandoque se tratavadeumparentedomorto, umavezqueanteriormentejálhepediraajudaparaescreverumacartadepêsamesque decidira enviar à mãe. Nunca pudeme certificar de que você tenharecebidoessebilhete,ouqueotenhacompreendido,jáquenãoveioatrásdoquelhepertencia.Fazanosqueoespero,masjánãopossomearriscaroudesafiaramorte.Estemêscomeçamaschuvas.Amanhãpegoabalsadevolta para Carolina, mas antes deixo este testamento para quando vocêvier.

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2.Ninguém nunca me perguntou. E por isso também nunca precisei

responder.Nãopossodizerquenuncativesseouvidofalarnele,masaverdadeé

quenãofaziaamenoridéiadequemeleeraatéleronomedeBuellQuainpelaprimeiraveznumartigodejornal,namanhãde12demaiode2001,umsábado,quasesessentaedoisanosdepoisdasuamorteàsvésperasdaSegundaGuerra.Oartigosaiumesesantesdeoutraguerraserdeflagrada.Hojeasguerrasparecemmaispontuais,quandonofundosãopermanentes.Li várias vezes omesmoparágrafo e repeti o nome emvoz alta paramecertificardequenãoestavasonhando,atéentender—ouconfirmar,jánãosei — que o tinha ouvido antes. O artigo tratava das cartas de outroantropólogo, que também havia morrido entre os índios do Brasil, emcircunstâncias aindahojedebatidaspela academia, e citavadepassagem,emumaúnica frase,poranalogia,ocasode"BuellQuain,quesesuicidouentre os índios krahô, em agosto de 1939".Procurei a antropóloga quehavia escrito o artigo. A princípio, foi seca no telefone. Deve ter achadoestranhoquealguémlhetelefonasseporcausadeumdetalhedotexto,masnão disse nada. Trocamos alguns e-mails, que serviram como umaaproximaçãogradual.

Preferianãomeencontrarpessoalmente.Queriatercertezadequeosmeusobjetivosnãoeramacadêmicos.Masmesmosedeiníciochegouadesconfiardomeuinteresseporaquelehomem,nãoperguntouasminhasverdadeiras intenções. Ou, pelo menos, não insistiu em saber as minhasrazões. Supôs que eu quisesse escrever um romance, quemeu interessefosseliterário,eeunãoacontrariei.Ahistóriaerarealmenteincrível.Aospoucos,conformemeembrenhavanaquelecasocomasminhasperguntas,passou a achar natural a curiosidade que eu demonstrava pelo etnólogosuicida.Talvezpordiscriçãoeporsentirque,dealgumaformaeporumaexperiência que ela não teria podido conceber, eu tambémhavia intuídonaquelecasoalgoquemais tardeelaprópriamerevelaria ter suspeitadodesde sempre,quandopor fimnosencontramoseelame fezapergunta.Foielaquemmeindicouasprimeiraspistas.

Os papéis estão espalhados em arquivos no Brasil e nos EstadosUnidos. Fiz algumas viagens, alguns contatos, e aos poucos fuimontandoumquebra-cabeçaecriandoaimagemdequemeuprocurava.Muitagente

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meajudou.Nadadependeudemim,masdeumacombinaçãodeacasoseesforçosqueteve inícionodiaemque li,paraomeuespanto,oartigodaantropóloga no jornal e, ao pronunciar aquele nome em voz alta, ouvi-opelaprimeiraveznaminhaprópriavoz.

BuellQuainsematounanoitede2deagostode1939—nomesmodia em que Albert Einstein enviou ao presidente Roose-velt a cartahistórica em que alertava sobre a possibilidade da bomba atômica, trêssemanasantesdaassinaturadopactodenão-agressãoentreHitlereStalin,o sinal verde para o início da Segunda Guerra e, para muitos, uma dasmaiores desilusões políticas do século XX. Topei com uma referência àcarta de Einstein, pormera coincidência, logo que comecei a vasculhar amortedeQuain.Elenão chegoua vernada.Omundodelenãofoi omeu.Nãoviuaguerra,nãoviuabomba—aindaque,naloucurafinaldassuasobservações sobre os Krahô, e com base nas lembranças das revistascientíficas que lia na adolescência, tenha tentado aplicar "os mesmosprincípios matemáticos que governam os fenômenos atômicos" aosfenômenos sociais, detectando nos índios "síndromes de comportamentocultural" análogas às leis da física. Tinha um fascínio quase adolescentepela ciência e pela tecnologia. Não podia ter pensado que quantomais ohomem tenta escapardamortemais se aproximada autodestruição, nãopodia lhe passar pela cabeça que talvez fosse esse o desígnio oculto etraiçoeiro da ciência, sua contrapartida, embora muito do que observouentreos índioseassocioupor intuiçãoàsuaprópriaexperiênciapudessetê-lo levado a alguma coisa muito próxima dessa conclusão. Quando sematou,tentavavoltarapédaaldeiadeCabeceiraGrossaparaCarolina,nafronteiradoMaranhãocomoquenaépocaaindafaziapartedeGoiásehojepertence ao estado do Tocantins. Tinha vinte e sete anos. Deixou pelomenos sete cartas, que escreveu, aos prantos, nas últimas horas queprecederam o suicídio. Queria deixar o mundo em ordem, a julgar peloconteúdodasquatroaquetiveacesso,endereçadasasuaorientadora,RuthBenedict,daUniversidadeColumbia,emNovaYork;adonaHeloísaAlbertoTorres,diretoradoMuseuNacional,noRiodeJaneiro;aManoelPerna,umengenheiro de Carolina de quem se tornara amigo, e ao capitão ÂngeloSampaio,delegadodepolíciadacidade.

Queria isentar os índios de qualquer culpa, constituir seusexecutores testamentários e instruí-los sobre a disposição de seus bens.Sãocartasemquedáinstruçõesaosvivossobrecomoprocederdepoisdasuamorte.Entreasquenãoconseguiencontrar,noentanto,seiquehaviapelo menos uma endereçada ao pai médico, dr. Eric P. Quain, recém-

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divorciadoehospedadonoAnnexHotel,emBismarck,naDakotadoNorte;outraaoreverendoThomasYoung,missionárioamericanoinstaladocomamulheremTaunay,emMatoGrosso,eumaterceiraaocunhadoCharlesC.Kaiser, marido de sua irmã, Marion. E nessas é muito possível que nãotenha deixado apenas instruções.Quain chegou ao Brasil em fevereiro de1938.DesembarcounoRiodeJaneiroàsvésperasdoCarnaval.Foimorarnuma pensão da Lapa, reduto de todos os vícios, da malandragem e daprostituição.Umanoecincomesesdepoisestavamorto.

Ao receberem a notícia, alguns colegas da Universidade Columbia,emNovaYork, chegarama especularque a sua vinda aoBrasil já fizessepartedeumprocesso suicidadeliberado, outros suspeitaramque tivessesidoassassinado.Vieraemprincípiocomopropósitodeestudarosíndioskarajá, na mesma expedição que acabou sendo realizada por outroantropólogodeColumbia,WilliamLipkind,esuamulher.Quainmudoudeplanosao chegar aoRio.Os inacessíveis índios trumai, do rioColiseu,noaltoXingu,estavamemviasdeextinçãoerepresentavamumdesafiomuitomaior que os conhecidos e aculturados Karajá, um desafio cujasconseqüênciaso jovemetnólogo, intrépidoeambicioso,nãopodiapreverou aquilatar ao transformá-los no objeto da sua vã obstinação. SuaexpediçãosolitáriaaosTrumaiaolongode1938foimarcadaporpercalços,imprevistos, frustrações e contrariedades, que terminaram, com ainterrupção da sua pesquisa de campo, a indisposição com os órgãosgovernamentais do Estado Novo e a volta forçada ao Rio de Janeiro, emfevereirode1939.Umgolpequeabalouaindamaisoseujáinstávelestadodeespírito.

SeuretornocontrariadoàcapitalcoincidiucomachegadaaoBrasilde um colega da Universidade Columbia, Charles Wag-ley, que vinha denavio dos Estados Unidos para estudar os Tapi-rapé, e também com apassagem de Ruth Landes pela cidade— a jovem antropóloga de NovaYorkestavanopaíshaviamesescomoobjetivodeestudarosnegroseocandomblédaBahia.OstrêseramalunosdiletosdeRuthBenedict,umadasprincipais representantes da corrente antropológica que ficou conhecidapor associar Cultura e Personalidade, na tentativa de explicar ocomportamento pela inserção social e assim relativizar os conceitos denormalidade e anormalidade no que diz respeito aos indivíduos. Emmeados dos anos 30, na esteira do New DeaL o Departamento deAntropologiadaUniversidadeColumbia,di-rígidoporFranzBoas,acolheuestudantesatraídosporumpensamento liberalquesepropunhaacortarcientificamenteasraízesdospreconceitossociais.Depoimentosdealunose

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colegasatribuemaBenedictumapreferênciaporestudantesemdesacordocomomundoaquepertenciamedealgumaformadesajustadosemrelaçãoaopadrãodaculturaamericana.Épossívelquereconhecessenelesalgodesimesma,eosprotegesse.

Aoreceberanotíciadosuicídiodoaluno,recém-isoladanafronteirado Canadá, na região das montanhas Rochosas, para onde havia serecolhido,dando início a seuano sabático,Benedict esboçouumacarta àmãedeQuain:"Minhasecretáriaacabademetelegrafar,eemmeioàminhaprópriador só consigopensarna senhora. Ele foi um filhoque sempre apreocupou. É desolador. De todos os meus alunos, guardo no coração olugar mais caloroso para Buell, e neste momento só consigo pensar naperda pessoal e chorar o seu sofrimento, cujos motivos ainda nãoconhecemos.Nuncaesquecereiasuadedicaçãoaotrabalhoeficocontentedepoder,aopublicá-lo,ajudarapô-lonavanguardadapesquisadecampo.Ele realizou muita coisa, e eu acredito que, no íntimo, ainda quisesserealizarmuitomais.Estouparalisadapelador.QueDeuspossaconfortá-lanoseusofrimento".

Buell Quain foi aceito na pós-graduação do Departamento deAntropologiadeColumbiadepoisdeseformaremzoologia,em1934,pelaUniversidade deWisconsin, emMadison. Durante seus anos de bacharel,tambémseinteressouporváriosoutrosassuntos,acomeçarporliteraturaemúsica.NoprefáciodolivroTheflightofthechiefs,queo jovemetnólogode Columbia escreveu com a transcrição das lendas e canções que haviacoletadonumaaldeiadeVanuaLevu,nasilhasFiji,noPacíficoSul,aolongodo seu primeiro trabalho de campo, quando tinha apenas vinte e quatroanos,equefoipublicadoem1942,apósamortedele,seuantigoprofessorde inglês emMadison,William Ellery Leonard, autor de uma versão eminglês do poema épico babilônico Gilgamesh, cujo tema da amizade, damorteedabuscadeimortalidadeatraiuemespecialaatençãodeBuellnosanos de faculdade, exalta o espírito aventureiro e faz o inventario dasviagens do ex-aluno pelo mundo, ao mesmo tempo que lamenta a suamorteprematuranointeriordoBrasil.Aoterminaroginásio,aosdezesseisanos,BuelljátinhaatravessadoosEstadosUnidosdecarro.Em1929,antesdeentrarparaauniversidade,passouseismesesnaEuropaenoOrienteMédio,percorrendoEgito,SíriaePalestina.Nasfériasdoanoseguinte,foipara a Rússia. Depois de prestar os exames, em fevereiro de 1931,embarcounumaviagemdeseismeses,comomarinheiro,numvaporparaXangai.Em1935,estavaemNovaYork, enoanoseguinte, emFiji.NumacartaàmãedeBuell,mesesdepoisdamortedoetnólogo,HeloísaAlberto

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Torressediziaespantadacomtantacoisafeitaemtãopoucotempo:"Eratãomoçoetinhavistotanto.Quevidaextraordinária!".

Omais incrível,nosnascimentos, é aeuforia cega comqueospaisencobrem o risco e a imponderabilidade do que acabaram de criar, aesperança com que o recebem e que os faz transformar em augúriopromissor a incapacidade de prever o futuro que ali se anuncia e aimpotênciadetodasasmedidasdeprecauçãonessesentido.Seassimnãofosse,ébemprovávelqueoserhumanojátivessedesaparecidodafacedaTerra,pelasmãosdemãeszelosaseassassinas.BuellHalvorQuainnasceuem31demaiode1912,às1lh53danoite,nohospitaldeBismarck,capitaldaDakotadoNorte.A certidãodenascimentodiz que foram tomadas asdevidas precauções contra oftalmia neonatal, àquela altura umprocedimento de praxe contra a transmissão de doenças venéreas aosrecém-nascidos.Quasecincoanosdepoisdosuicídio,numacartade31demaiode1944,diadoaniversáriodele,suamãeescreveuaHeloísaAlbertoTorres: "Faz trinta e dois anos esta noite que ele nasceu. Em pequeno,semprerespondiaàspessoasquelheperguntavamquandotinhanascido:'A dez minutos de junho'. Há cinco anos, ele me escreveu de Carolina aúltimacartadeaniversário".

EricP.Quain,opaideBuell,tinhaquarentaeumanosquandoofilhonasceu. Era médico e cirurgião. Nascido na Sué-cia, foi um pioneiro damedicinanoMeio-Oeste. Formou-se em1898e levoumétodos cirúrgicosmodernosparaBismarck,alémdoprimeiroaparelhoderaiosX.Aclínicaque fundou em 1907 ainda é um dos principais centros hospitalares daregiãoesómuitorecentementedeixoudesechamarQuainandRams-tadClinic.

FannieDunnQuaintinhatrintaeoitoanos.Foioseuterceiroparto,o segundo bem-sucedido. O casal já tinha uma filha, Marion. Fannie eramédica, comoomarido, formada tambémem1898,pelaUniversidadedeMichigan,emAnnArbor.FoiaprimeiramulherdaDakotadoNorteaobterumdiplomaemmedicina.Aosecasar,em25demarçode1903,abandonoua profissão e passou a cuidar da casa. Durante toda a vida, porém, teveparticipação ativa no serviço público, especialmente nas questõesfilantrópicasrelacionadasàsaúdeeàeducação.EramembrodoconselhodeeducadoresdoGinásiodeBismarckquandoBuellnasceu,militoupelaimplantaçãodeumsanatórioparatuberculososnoestadoeparticipoudaconvençãodoPartidoDemocrataem1936.

FannieeErícQuainsesepararampoucoantesdosuicídiodo filho.Aparentemente inconformadocomamortedeBuell—adespeitodoque

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depois revelaria a filha Marion a Ruth Be-nedict, numa carta estranha echeiadeamargura—,opailançoumãodeseusconhecimentoseapelouaum influente senadordaDakotadoNorte,GeraldNye,paraqueentrassecom um pedido de investigação junto ao Departamento de Estado. Oprocesso não foi adiante, uma vez constatadas as provas irrefutáveis dosuicídio.

Depoisdamortedo filho, EricQuain semudoupara a costa oeste,paraondetambémcostumavairafamíliadafilha,pelomenosduranteasfestasdefimdeano,emborahajaindíciosdequepaiefilhanãosedessembem.Casou-sedenovoecontinuouexercendoamedicinaatéasuamorte,em Salem, Oregon, em 1962. Fannie Quain tentou vencer a solidão, aslembranças do filho e a dificuldade de viver "entre as coisas que eletrouxeraparacasadevárioscantosdomundo".No início,procuroufi-carlonge de casa para não ter de conviver com o silêncio eloqüente dessesobjetos,acomeçarpelopiano,queera"acoisadequeelemaisgostavaeagoraestácalado".Em1939,estevecoma filhaemChicagoenoOregon,onde passou o Natal perto do monte Hood, nos arredores de Portland.VisitouparentesnaCalifórnia.Mas, sobretudo, imbuiu-sedeumamissão,empe-nhando-se, comoauxíliodeRuthBenedict edo fundodeixadoporBuell,napublicaçãodasnotasqueeletomaraemFiji(alémdeFlightofthechiefs,foipublicado,em1948,comotítuloFijianvillage,outrorelatosobreos dezmeses que ele passara, entre 1935 e 1936, entre os indígenas deVanua Levu). Também estudou lingüística para poder preparar osmanuscritosqueofilhohaviaelaboradosobrealínguadosKrahô.Emsuacorrespondência comHeloísaAlbertoTorres, dá para notar que era umamulher aflita. Descontando-se a dificuldade do momento, em que derepenteseviusozinhanomundo,recém-divorciadaecomofilhomorto,hánessascartasumaestranhaansiedade,comose,maisdoquequerersaberarazãodosuicídiodofilho,temessequealguémjáaconhecesseouviesseadescobri-la.Morreuem1950,aossetentaeseisanos.

Dois meses antes de se matar, o antropólogo mencionou em suascartas"questõesfamiliares"queoobrigavamainterromperotrabalhocomosíndiosevoltaraosEstadosUnidos.AdonaHeloísa,eleescreveuem5dejunho de 1939: "Os dois contos que a senhora mandou podem tornarpossívelomeuretornoaNovaYorkpelaBahiaouporBelém.Pormaisquequisesse voltar ao Rio de Janeiro, questões familiares exigem a minhapresença nos Estados Unidos. Eu havia mencionado alguma coisa sobredoença na família, mas também não é isso queme preocupa. Meus paisacabamdepassarporumprocessodedivórcioquedurouseismeses.Estão

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com quase setenta anos, e se odiaram por trinta anos oumais. Meu paisofredeumaformaatenuadadedegenerescênciasenil—talvezsejaoqueo tenha levado a escarafunchar o passado nos últimos seis meses. Asenhora podeme acharmaterialista ao extremo,mas tenho que voltar àAmérica na esperança de salvar uma pequena proprie-dade e pô-la aserviçodaetnologia.Temo,entretanto,quesejatardedemais".

HeloísaAlbertoTorreseraumasenhoraativaepoderosa.Eragordae muito pálida, com os cabelos tingidos de azul, segundo descrição deAlfredMétraux,antropólogofranco-suíçoespecialistaemAméricaLatinaecomalgumaspassagenspeloBrasil.Deviatersidoumamulherinteressantena juventude.Vinhadeumafamíliadaaltaburguesia fluminense.Sempreconviveu com o poder. Como diretora doMuseuNacional, soubemantersua influênciaeasseguraroseucargodurante todooEstadoNovo.Eraaprincipal responsável pelos quatro jovens antropólogos americanos queàquela altura trabalhavam no Brasil, graças a um acordo entre aUniversidade Columbia e o Museu Nacional — além do próprio Quain,estavamnopaísosseuscolegasCharlesWagleyeRuthLandes,eWilliamLipkind, com quem originalmente ele deveria ter seguido na expediçãokarajá.EntreascartasqueBuellQuainescreveunashorasqueprecederamo seu suicídio, uma era endereçada a dona Heloísa. Até então ela agiracomouma espécie demãe protetora, e às vezes dominadora, em relaçãoaos jovens etnólogos de Columbia. Não é difícil imaginar o que deve tersentidoaoreceberaquelacarta:

"PrezadadonaHeloísa,"Estou morrendo de uma doença contagiosa. A senhora receberá

estacartadepoisdaminhamorte.Acartadeveserdesinfetada.Pediqueasminhasnotaseogravador(medesculpe,semnenhumagravação)fossemenviadosaoMuseu.Porfavor,remetaasnotasparaColumbia.

"Nãopenseopiordemim.Apreciei a suaamizade.Masnãopossoterminaro catálogoda coleçãoqueos índiosvãoencaixotare lheenviar.Pediquedoiscontoslhefossemremetidosporcontadomeufracasso.Noentanto,seasenhorareceberalgumapeçadacoleção,porfavor,lembre-sedos índios e mande o que achar adequado para Manoel Perna, deCarolina."EsperoqueLipkindeWagleycumpramcomassuasexpectativas.

"Sinceramente,"BuellQuain"Chamavam-se João e Ismael. Os dois índios que o acompanhavam,

doisrapazesqueelehaviaarregimentadoparaguiá-loaosairdaaldeianodia31dejulho,contaramaManoelPerna,oengenheirodeCarolinaeúnicoamigodoetnólogona cidade,que como cairda tardedo segundodiade

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caminhada,aindacomcercadenoventaquilômetrosdemarchapelafrente,segundoaversãooficial,QuainBuele,comoelesochamavamnalínguadosbrancos,ouaindaCãmtwyon,comootinhambatizadonalínguakrahô,quispernoitarpertodeumbrejo,pediuparaparar,dissequeestavacansadoenãopodiaprosseguir.Segundoosíndios,oetnólogonãomostravanenhumsintomadedoença física.Aprostraçãoerapsicológica e já seprolongavapordias,desdequereceberaaúltimacorrespondênciadecasa.

NacartaquemandouparadonaHeloísa,em12deagostode1939,paraconfirmarotelegramaquejálheenviaranavésperacomanotíciadosuicídio de Quain, Manoel Perna escreve a propósito do antropólogo: "Élamentável que o seu desaparecimento tenha sido de um modo tãodoloroso. Ainda ignoramos os motivos que o levaram a tal atitude. Mas,segundo notícias colhidas de fontes que reputamos certas, podemosadiantar que tenha sido por questões familiares. Segundo relataram osíndios, ultimamente, quando recebera cartas de seus pais e família,mostrara-semuito contrariado,dizendomesmoqueasnotícias recebidasnãohaviamsidonadaagradáveis,tendoemseguidadilaceradoasmissivasequeimado".

3.Istoéparaquandovocêvier.Foramapenasnovenoites.Seagicomo

se ignorasse os motivos que o levaram ao suicídio foi para evitar oinquérito. A polícia tomou conhecimento do caso e fez o inventário dosfatosedoespólioapedidodosamericanos.Nãome julguemal.Nãoteriapodido responder a nada. O silêncio foi um peso que carreguei duranteanos, enquanto estive à sua espera. Já não possome arriscar a que tudodesapareçacomigo.Eclaroque,seeusoubessedoconteúdodascartasqueele recebeuantesde sematar, não teriamandadomeu irmãoà aldeia sóparalheentregarasmissivasquechegaramnoiníciodejulho,quandoodr.Buelljá havia partido de volta para os índios, semanas depois de suasegunda passagem por Carolina, quando esteve na cidade para recolherdinheiroemantimentosmas,sobretudo,emboranãotenhamedito,porquetemia passar o aniversário sozinho na aldeia. Teria ido eu mesmo, sesoubesse que, entre aquelas cartas, eu lhe enviava a sentença demorte,teria ido sozinho e a pé se fosse preciso, para trazê-lo de volta emsegurança para a cidade. Ele me fizera prometer que lhe remeteria as

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cartasporumportadorassimquechegassem.Esperava uma resposta. E já não tenho dúvidas de que era sua a

respostaqueeleaguardavacomtantaansiedade.Peçoquemedesculpe.Seiqueodeixeicomadúvida,maspossolhegarantirqueelearecebeu.Antesdeentregá-losaomeuirmão, lientreosenvelopesdoúltimocorreio,quechegounoiníciode julhopeloaviãodaCondor,onomedeumremetenteque depois eu iria reconhecer entre os destinatários das cartas que eleescreveunashorasqueantecederamasuamorte,justamenteaquelacartaentre todas as outrasquedecidi guardar comigo, a despeitodoque vocêpossapensar,emnomedamemóriadodr.Buell,eparaprotegerosíndios,acartaqueelelhedeixara.Osíndiosdisseramqueelepassouavivernumestado de absorção terrível depois de receber a última correspondênciaque eu havia mandado pelo meu irmão, um retraimento desconhecidoduranteasuavidapregressanaaldeia.ForamascartasqueelequeimounasuaúltimajornadadevoltaaCarolinaecomasquaisobteveofogoealuzde que precisava para escrever as que deixou, chorando copiosamente,antesdesesuicidarnomeiodanoite.Dasuacarta,todavia,ninguémnuncasoube nada. Quando ele decidiu que não podia mais ficar na aldeia ecomunicouaosíndiosasuadecisão("Jápediàsnuvensquemetiremdaquienadaaconteceu",eleteriaditoaumaíndia,masnãolhepeçoqueacrediteemmaisnada—averdadedependeapenasdaconfiançadequemouve),alegou ter recebidomás notícias de casa. Para uns, disseque o pai tinhaabandonadoasuamãe,idosaesemrecursos—mas,sejahaviamefaladodaquilo da última vez que estivem emCarolina, não podia ser essa amánotícia que o deixara naquele estado. Para outros, disse que amulher otraíracomo irmãodele—maseusabiamuitobemquenãohavia irmãonenhum.Nãofalouaosíndiossobrenenhumadoença.Nãoqueriaassustá-los.Preferiureservaraosbrancosomotivodadoençacontagiosa,pedindoquedesinfetassemascartasantesdelê-las.FoiaomenosarazãoquedeuadonaHeloísae,peloqueeusoube, tambémasuaprofessoranosEstadosUnidos.Foiarazãoquedeuamimnacartaquemeendereçou,sabendoqueeu me calaria. Ninguém além de mim nunca soube da carta que ele lhedeixou.Estiveàsuaesperaportodosestesanos.Aopesodosilêncioveiosomar-se o da culpa.Mas naquelemomento não tive escolha. Em algunsdias tudo já tinha sido esquecido e a cidade voltava à calma habitual. Eincrível pensar que os mesmos homens que, ao saberem da chegada doetnólogo americano cinco meses antes, logo o assediaram e mandaramconvidar para a festa de fundação da Casa Humberto de Campos, a quechamavamAcademiaSertanejadeLetras,agoramalselembravamdoseu

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nomeoudesuapassagempelacidade.OsilustresdeCarolina.Quemsoueuparadizeroquepenso?Achamquesouignorante,masnãosoutolo.Seéparadeixá-losfelizes,presto-lhesasreverênciasquemepedem.Ohomemque chegou naquela tarde modorrenta de março era um homematormentado. Na véspera de sua partida para a aldeia, ele estavaapreensivo. E já não sei se era por não saber o que o esperava oujustamenteporsaber.Asvezes,meperguntoemquemomentoelepassouaimaginaroqueninguémali seria capazde imaginar, eatéquepontonãoteriavindoparamorrer.Ofatoéquecompareceuàfestadosintelectuais.Estava com uma expressão perturbada, constrangido pela pequenamultidão.Todaa cidadehavia sido convocadaparaouvirosdiscursosdafestade inauguraçãodasociedade literária.Elenãopodiameverentreamassaapinhadanointerioreemvoltadoprédiodaescola,espremendo-sepelasportasenasjanelas,tentandoouvir,semcompreender,oquesedizialádentro.Masfoiali,pelasegundavez,queeuviosolhosdele.

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4.Ninguém nunca me perguntou, e por isso também não precisei

responder. Todo mundo quer saber o que sabem os suicidas. No início,deixei-me levarpela suposição fácil deque aquela sópodia ter sidoumamortepassionaleconcentreiaminhabuscanessesvestígios.Deviahaveroutra pessoa envolvida. Ninguém pode estar totalmente só no mundo.Tinha que haver uma carta em que ele revelasse os seus desejos esentimentos. Na manhã de 8 de março de 1939, enquanto esperava asmulas e os mantimentos para a caminhada de seis dias até a aldeia deCabeceira Grossa, Quain aproveitou para pôr em dia a correspondência,sentado à máquina de escrever. Pretendia isolar-se na aldeia por umperíodoinicialdetrêsmeses.Nãopodiacontarcomaeventual idadeummensageiro ou portador nesse meio-tempo. Não pensava em voltar aCarolinaantesdejunho.Litrêsdessascartas.AmaislongaeraendereçadaaRuthLandes, sua colegadeColumbiaqueestavanoBrasil estudandoocandomblé. Nas outras duas, ele se dirigia a dona Heloísa e à assistentedela,MariaJúliaPourchet,queconheceraaopassarpeloRiodeJaneiro.Na

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carta para a diretora do Museu Nacio-nal, Quain tratava de questõespráticas, de seu registro junto à polícia de São Luís, de remessas dedinheiro e dos gastos com os presentes para os índios. A Maria JúliaPourchet,eledescrevia,commesuras,asprimeirasimpressõesdeCarolina.

Eu não soube da existência dessa carta até me aconselharem aprocurar uma professora de antropologia da Universidade de São Paulocujatia,tambémantropólogaefalecida,teriavisitadoamãedeQuain,nosEstadosUnidos,em1940,poucodepoisdamortedoetnólogo.Conseguiotelefone e liguei para a professora, que embora ignorasse uma supostavisitadatiaaFannieQuainlogodepoisdosuicídiodofilho,nãohesitouemmerevelaroqueeumalpodiasuporeoquemaisqueriasaberquandolhefaleipelaprimeiravezdeBuellQuainedomotivodomeutelefonema."Eleteve um flerte commamãe,muito antes de eu nascer, é claro", ela disse,assimqueouviuaquelenomepeculiar.

A resposta me deixou mudo, ainda mais porque àquela altura euvinha tentando descobrir, em vão, o nome de uma eventual mulher dojovem antropólogo, desde que havia batido comos olhos numa carta emqueelesolicitavaaopresidentedoConselhodeFiscalizaçãodasExpediçõesArtísticas e Científicas no Brasil a autorização para a sua pesquisa decampo,aochegaraopaís,emfevereirode1938,enaqualseapresentavacomo"casado",emboranãohouvessenenhumoutroindíciooureferênciaamulheralgumaemnenhumoutrodocumentooucorrespondênciaanteriorouposterioràsuamorte.

Fiqueisemaçãoporuminstante."Maseleeracasado!",arrisquei.Aoqueaprofessorareplicou,entreofendidae indignada:"Não,nãoera.NãoeraassimqueeleseapresentavaàsociedadedoRiode Janeiro.Enão foiassimqueseapresentouàminhamãe".

Euachavaqueumahistóriadeamorexplicariatudo.Marcamosumencontro na universidade, onde elame confirmou o que já havia dito notelefonee,antesqueeupudessetocarnacarta,fezquestãodelê-laemvozalta, em inglês, intercalando a leitura de pausas e entonações paraassinalar, enquanto olhava paramim e arqueava as sobrancelhas, coisasqueaelapareciamsignificativaseamimnãodiziamnada:"PrezadadonaJúlia,

"Este é apenas um bilhete. Parto nas próximas duas horas para aaldeiakrahô.Estamosesperandoalgumascalçasecamisas.Eueumgrupode índios krahô que estava em Carolina quando cheguei. As calças ecamisassãoparaeles.Nãogostodelhesdarroupas,poisficambemmelhorsemelas—maselesinsistem.

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"Ontem à noite, fui a uma festa em homenagem a Humberto deCampos.Houveunsdezbrevesdiscursossobresuavidaesuaobra.FiqueiespantadocomointeressequeopovodeCarolinademonstraportópicosliterários. As pessoas se aglomeravam nas portas e se amontoavam nasjanelas para ouvir o que era dito. Só entendi metade, mas fiqueiimpressionadopelosériointeressedaaudiência."

A professora tambémmemostrou a reprodução de um retrato deQuain que eu já conhecia dos arquivos de Heloísa Alberto Torres e cujacópiaeleteriadadodepresenteàmãedela.Nafoto,eleestádefrenteparaa câmera, sentado numa cadeira, de camisa branca. Tem uma expressãoirônicaedesafiadora."Háumadedicatórianoversodooriginal.Nadaquepudesserevelaroflerte,éclaro.Naqueletempo,eraassimqueelesdiziam.Mamãe falavamuitodele.Eraumhomemmuitobonito,alto,moreno,umtipodiferentedoamericanonormal.Quandosedespediram,antesdetomaro avião, ele garantiu a ela que ia pensar no assunto. Você sabe o que euquero dizer, não é? Ia pensar seriamente na possibilidade de umcompromisso",eladisse,aindasemmedeixartocarnacarta.

Aprofessoranãopodiasuspeitaroquetinhamedeixadotãoávidoporumacópiadodocumentoecomumsorrisoirrequietonoslábiosdesdequeelacomeçaraaler.Éque,seporumladoo"bilhete"eraparamimumadecepção — ao contrário do que ela tentava me fazer acreditar, nãoprovavanenhumahistóriaamorosa—,poroutroeuacabavadedescobrirquemeraadonaJúliadequeelefalavanumaoutracartaescritanamesmamanhã, antes de partir para a aldeia, enquanto esperava as muIas e osmantimentos, e cuja cópia uma pesquisadora canadense me haviagentilmente cedido cerca de um mês antes. Na carta a Ruth Landes, osmesmos fatos narrados a Maria Júlia Pourchet eram vistos com outrosolhos,esobretudocomoutraspalavras,maissarcásticas,maisverdadeirasemaishonestas,comaintimidade,acumplicidadeeodesesperodequemseabrecomumaamiga:

"QueridaRuth,"Carolina é um lugar tedioso — analfabetos e intelectuais. Os

intelectuaissãoosqueusamternosbrancosegravatasepertencemaumasociedade literária. Me juntei a eles numa reunião para homenagearHumberto de Campos, grandepoeta doMaranhão.Havia dez oradores: avidadopoetaemdezpartes.Entreelas:Humberto,omoralista;Humberto,ohumanitário;Humberto,ohumorista,efinalmenteHumberto,ofilósofo.Tudoissopodiasermuitosimpáticosenãofossepelapomparidícula.Eporfim foi .um tanto decepcionante ouvir um jovem advogado do Rio de

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Janeiro (provavelmente formadonoRiooualgoassim;achoqueeleédoNorte) dizer que 'não se pode falar de Humberto enquanto filósofo semlembrar que ele era um grande sofredor. Humberto, o sofredor...'. E aírevela-se que ele era um estóico, pois sorria o tempo todo. Este últimooradorfoiaclamadocomoomelhordetodos.

"Encontreiumgrupodeíndioskrahôeelesparecempavorosamenteobtusos.Têmcortesde cabeloengraçados, furamasorelhase continuamsemusarroupasnascidades.

"Háummontedecoisassobreosbrasileiroseascidadesbrasileirasquemedãovontadedetirararoupaememasturbarempraçapública.Mastentomecontrolar.Seriamente,nãodáparaserhonestonemmesmocompessoasdotiporelativamentesofisticado,comodonaJúlia.Eestoufuriosocomvocêporterfaladotantodemimparaela."

OqueBuellQuainqueriatantoesconder?

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5.OprofessorLuizdeCastroFariamerecebeuemNiteróinofinalda

tarde.EuvoltavadosarquivosdeHeloísaAlbertoTorresemItaboraí.Faziaum calor de matar. Castro Faria é uma das últimas pessoas vivas queconheceram Quain em sua passagem pelo Brasil. Conversamos nabibliotecadoseuapartamentoemIcaraí.Em1938,aosvinteequatroanos,ele participou, como antropólogo do Museu Naetonal e membro doConselhodeFiscalização,dahistóricaexpediçãoàserradoNortequelevouLévi-Strauss porMato Grosso até Porto Velho, entre 6 de junho e 14 dedezembro, e está em grande parte documentada emTristes trópicos, quelogo se tornou um clássico da antropologia. O Estado Novo exigia apresençadeumcientistabrasileironasexpediçõesestrangeirascomoumaformade controle, figuraqueopróprioLévi-Straussdefiniu, comalgumaantipatia, comoum "inspetor fiscal".Háuma foto, de1939, emquedona

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Heloísa aparece sentada no centro de um banco nos jardins do MuseuNacional, entreCharlesWagley,RaimundoLopeseEdsonCarneiro, à suadireita, e Claude Lévi-Strauss, Ruth Landes e Luiz de Castro Faria, à suaesquerda. Hoje, estão todos mor-tos, à exceção de Castro Faria e Lévi-Strauss.Mas havia já naquele tempo uma ausência na foto, que só noteidepoisdecomeçaraminhainvestigaçãosobreBuellQuain.Aquelaaltura,ele ainda estava vivo e entre os Krahô, e a imagem não deixa de ser, decerta forma, um retrato dele, pela ausência. Há em toda fotografia umelementofantasmagórico.Masali issoéaindamaisassombroso.Todososfotografados conheceram Buell Quain, e pelo menos três deles levarampara o túmulo coisas que eu nunca poderei saber. Na minha obsessão,cheguei ame flagrar várias vezes com a foto namão, intrigado, vidrado,tentando em vão arrancar uma resposta dos olhos de Wagley, de donaHeloísaoudeRuthLandes.

Aos oitenta e oito anos, Castro Faria é um homem lúcido, muitoarticuladoe comumamemóriaàsvezesmelhordoqueaminha, emborasujeita às distorções das impressões subjetivas, como a de qualquer um.FaloudeQuaindurantemaisdeumahora,semsecansar.Noinício,foimaisreticente.Nãochegaramaseramigos:"Asminhasrelaçõescomeleforamsuperficiais.Sempremetratoumuitobem.Nãotivemosintimidade.Comonãoconviviacomele,apenasnosencontrávamos,nãoseinadadasuavidaparticular. O Quain tambémnão era especialmente amigo doWagley. Euacho. Foram contemporâneos. Sendo ambos alunos de Columbia, eramnecessariamentesolidários.TodoseleseramalunosdeFranzBoas,oquedavaumtraçodepersonalidade.OBoasdistinguiaosbonsalunos.Eleeraoorientador da pesquisa antropológica feita no Brasil pelos americanos. OWagleyeradaminhaidade.Estivemossemprejuntos.

Era meu amigo, amigo mesmo. Estava sempre no Brasil. Casou-secom uma brasileira. Nós o chamávamos Chuck. Ele fez o serviço militarduranteaguerra,comotécnicodoserviçopúblico.NinguémficouabaladocomamortedoQuain.NementreoscolegasdeledeColumbia.Issoépoucocomum na América, onde as pessoas são muito individualistas. Heloísaficou, porque era ela, no Brasil, a responsável pela pesquisa dele. Serresponsávelporalguémnaquelaépocaeraumacoisamuitoséria,porquevocê tinha que prestar conta aos órgãos oficiais, que tinham um vastocontrole sobre o espaço brasileiro e a pesquisa. Os órgãos de repressãoerammuitoativos".

Enquanto ele falava,me lembrei de ter visto horas antes, entre ospapéis que dona Heloísa havia deixado nos arquivos de sua casa em

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Itaboraí, uma carta em que, semanas depois da morte de Quain, elarepreendia o delegado de polícia de Carolina, capitão Ângelo Sampaio,comosefosseseualunoousubordinado.Estavamuitoirritada,exasperadacom a própria impotência diante da incompetência e do atraso de seuscompatriotas. Seus pedidos insistentes para reaver o espólio de Quain,retido pela polícia doMaranhão, não tinhamproduzidonenhumefeito, oque a deixava numa situação aindamais delicada diante das autoridadesamericanas e do Departamento de Antropologia de Columbia. Suaautoridadeestavasendopostaàprova.Nacarta,elaexigedeumavezportodasomaterialdeixadoporQuainedizaocapitãoqueocaso jáestásetornando"umavergonhanacional".

Fazendo-medetonto,pergunteisobreaaparênciafísicadele,sobreoquenogeraleujásabia,naverdademaisinteressadonasimpressõesquehaviadeixadoenasreaçõesqueasuafigurapodiaterprovocadodoquenaimagem real: "Não tinhanadade especial. Ele eramoço, bastantemoço".Gordooumagro?"Gordoelenãoera,dejeitonenhum.Nemmuitomagro.Eraumapessoadeaspectocomum,digamos."Lourooumoreno?"Nãoeralouro claro, não. Era mais para o moreno. Não tinha nenhuma marcaespecial." Diante da dificuldade de arrancar alguma coisa do velhoprofessor,decidiperguntarocontráriodoquequeriasaber.Erafeio?"Não,eramaisparabonito,umafigurasimpática."

Aos poucos, Castro Faria foi ficandomais à vontadepara falar das"excentricidades"docolegaamericano,echegouacitarmaisdeumavezaolongo da nossa conversa um jantar que Buell Quain lhe oferecera numrestaurante de luxo em Copacabana e quemuito o havia impressionado:"Vou lhe contar uma história cuja veracidade talvez nunca se possacomprovar. O Wagley disse-me numa ocasião que, quando eramcontemporâneosnaUniversidadeColumbia,algumasvezespagoualmoçosparaoQuaincomabolsaqueele,CharlesWagley,recebia.Sómuitomaistarde é que foi descobrir que quem lhe dava a bolsa era o próprio BuellQuain.Odinheirovinhadele. IssoécomumnosEstadosUnidos,vocêdoarecursos.Essaeraamarcadele.Segundosedizia,eramuitorico.Erafilhodemédicos. Tinhamuito dinheiro.Mas detestava usar dinheiro. Era umaobsessão.Essapreocupaçãodenãodeixartransparecerquetinharecursos,e de viver sempre em condições que escondessem a sua verdadeiracondição.Umavez,paravocêteruma idéia,elemepagouumjantarnumrestaurantedeluxoemCopacabana,quandomoravanumhoteldeterceiranaruadoRiachuelo.Paranãogastardinheiro.Eledetestavaserrico".

Aquestãododinheirodariaumcapítuloàparte.Emprimeirolugar,

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nada na história familiar indica que Quain viesse de um meioespecialmenteabastado,embora tambémnão fossempobres, longedisso.Erammédicosbem-sucedidosdoMeio-Oeste.

DuranteseutrabalhodecamponoBrasil,ojovemetnólogochegouapassar por momentos de real dificuldade. Fala disso numa carta a donaHeloísa,datadade27demaiode1939,quandovoltaaCarolinaparabuscardinheiro: "Agoraqueodinheiro chegou,mesinto tolode terenviadoumpedido tão desesperado a Ruth. As pessoas em Carolina têm sidomuitosolícitaseeutivetodoocréditodequeprecisei.Masprefironãoacumulardívidas.Voltei a Carolina sem sapatos eme sentia inseguropor causadaminha aparência pobre. A única desculpa que tenho parame ver nessassituações é o fato de achar importante dedicar todo o tempopossível aotrabalho etnológico. Mas devo à senhora e ao dr. Othon [Leonardos,geólogodoMuseuNacional]umaexplicaçãopornãoterhonradoaposiçãosocialquesuascartasmeproporcionaram.Mantenho-meembonstermoscom os amigos do dr. Othon—mas aminha pobre figura e omeumauportuguês me intimidam diante deles. Tenho certeza de que me achamrudeporcausadomeucomportamento".

Oprincipaldo legadodeQuainvinhadeumseguroedasprópriaseconomias. Mas é incrível como depois da sua morte quase toda acorrespondênciaentredonaHeloísa,ManoelPerna,RuthBenedict,amãeeairmãdoetnólogotenhagiradoemtornododinheiroquedeixou,semquequisessemtocarnele,masestivessemimbuídos,pelasinstruçõesdomorto,de passá-lo adiante, de fazê-lo chegar ao seudestino.Anos depois, numaabsurda intrigadedepartamento,RuthBenedict foiacusadapor inimigosdetermandadoQuainparaoBrasiljácomaidéiadeherdaroseulegado,como se previsse a morte do aluno e tivesse o conhecimento prévio dadecisão dele de doar seus bens para um fundo de pesquisa por elaadministrado, o que era totalmente inverossímil. Boa parte das cartasdeixadaspelomortonãotratadeoutracoisa.NocasodabolsadeWagleyemColumbia,porém,épossívelqueCastroFariatenhaseconfundidoemrelação às datas, pelomenos, uma vez que o fundode auxílio à pesquisaantropológicanauniversidadefoicriadoapenasdepoisdamortedeQuaineseguindoassuasinstruções.

Quantoàhistóriadorestaurantede luxo, curiosamente, foi sóbemmais tarde que a referência a outro jantar, num restaurante também emCopacabana,masdessavezcomoantropólogoAlfredMétraux,merevelouuma dimensão da personalidade de Quain que ninguém nem nenhumdocumentoqueeuhouvesseconsultadoatéentãotinhaousadomencionar

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diretamente.Alguns tentaram explicar amorte deQuain por suasmiragens.No

final de 1938, ao anunciar a chegada de CharlesWagley ao Rio,WilliamLipkind escreveu a dona Heloísa: "Ele é um ótimo rapaz. Não o deixeperseguirmiragens comoBuell". Lipkind se referia à expedição frustradadocolegaentreosTrumaidorioColiseu.Cincoanosmaistarde,em30deabrilde1943,aprópriadonaHeloísafoiobrigadaaresponderàindagaçãodisparatadadeumtalJohnJ.Feller,deSt.Louis,Missouri.Suarespostadáumaidéiadopontoaquepodemchegarasmistificações:

"PrezadoSenhor,"Sintodesapontá-locomestacarta,masainformaçãoqueosenhor

recebeusobreabuscadodr.BuellQuainporumalendáriaCidadedoOuroéabsolutamentedescabidaenãopossuiamenorprovaconcebível.

"Buell Quain foi um antropólogo que empreendeu seu trabalho decampoentrealgumastribosdosafluentesdorioXingu,noestadodeMatoGrosso.Seusrelatórioseanotaçõesdecamposãodeinteresseestritamentecientífico, sem nenhuma referência a tais assuntos como errâncias embuscadeourooudecidadesperdidas,enãotêmoutrautilidadesenãoadepropósito científico. Sua segunda expedição no Brasil o levou aos índioskrahô, que vivem no sul doMaranhão. O dr. Quain chegou ao Brasil em1938, e portanto falta fundamento à sua afirmação de que ele teriaempreendidoumaexpediçãoem1927."

"Aúnicamiragemqueeupossoadmitirqueele tivesseeraessadeummundosemricos,porqueerarealmenteumaideologia.Elenãoqueriaparecer rico.Era seu traçode carátermaismarcante.Não tenhodúvidas.FoiumaexperiênciacuriosaelemeconvidarparajantarnumrestaurantedeluxoemCopacabanaquandomoravanumapensãodeterceiranaLapa.Ficava essa oposição entre a vida pública e a vida privada, porque eleinsistia emnegar a possibilidadede viver tranqüilamente como ricomasgarantiaessasituaçãoparaosamigos.Elesempreviveuessaobsessão:nãoparecer e na realidade ser. Ele tentava preservar a vida privada de todocontatoexterior",medisseCastroFaria.

Quandoembarcou,emCorumbá,nofinaldeabrilde1938,noEolo,onaviozinhoqueolevaria,subindoorioParaguai,atéCuiabáeaoencontrodeLévi-Strauss,CastroFariasesurpreendeuaoentreversobreacamadeuma cabine cuja porta tinha sido deixada aberta um livro do etnólogoalemão Von den Steinen, Unter den Naturvolkern Zeniral-Brasiliens, quenarrasuaexpediçãonasegundametadedoséculoXIXaoaltoXingu.Aindanão havia tradução para o português desse que é considerado um

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precursoreumclássicodaetnografianoBrasil.Opassageiroqueocupavaaquelacabinesópodiaserdaárea. "Euoencontreiabordodeumbarcoque fazia a viagemde Corumbá a Cuiabá. Registrei assim nomeu diário:'Etnólogoabordo'."BuellQuainestava indodePortoEsperançaaCuiabá,deondepretendiachegaraosTrumai.EmCuiabá,paraespantodeCastroFaria,ojovemetnólogoamericanoajudouadescarregarumcaminhãocomabagagemdeLévi-Strauss,oqueapenasreforçounacabeçadobrasileiroaidéia de que Buell Quain tinha "a preocupação constante de demonstrarquenãoeraninguém,comosefossesóumserviçal".

Diante daminha insistência sobre a vida pessoal de Quain, CastroFariaterminouporadmitirquedefatoouvirafalardasexcentricidadesdojovemamericano,masapenaspararepetirque,atéondetinhapodidover,elas se resumiamao fatodequeeraumrico fazendoquestãodenão seridentificadocomotal.EuqueriasaberatodocustoseQuaineracasado.Adúvidaforadespertadapelaúnicamençãoaseuestadocivil(nopedidodeautorização ao Conselho de Fiscalização) que constava entre todos osdocumentos a que tivera acesso. Procurava qualquer indício queconfirmasseounãooquemeparecia oponto crucial. Perguntei a CastroFaria se aquilo podia ter sido uma artimanha do etnólogo ou do MuseuNacional para conseguir a autorização, já prevendo os problemas edificuldades que de fato teve de enfrentar durante a sua expedição aosTrumai."NotempodoRondon,haviatodaaquelaideologiadenãotocaremíndio,denãoterrelaçõessexuaiscomosíndios,demorrerseprecisofosse,matarnunca.HaviamuitoserrosdoServiçodeProteçãoaos índiosnessetipo de contato. Deve ter pesadomuito o fato de ele ser um estrangeiro.PodeserquenaideologiadoSPI,queeradeumpurismotolo,fossemelhorelesercasado.OsalunosdoBoaseramaconselhadosatrazerasmulheres,porquecertasáreasdaculturaindígenanãoestavamabertasaoshomens.Eraprecisohaverumamulherparaconversarcomasíndiassobreassuntosque eram vedados aos homens. Se ele fosse realmente casado, acho queteria trazido a mulher", Castro Faria concluiu, mas sem conseguir meconvencer.

Nãoseiseporefeitoacumuladodaminhainsistência,lápelastantaso velho professor retomou o tema espontaneamente, só que agora parafalar pela primeira vez da "instabilidade" deQuain: "Até onde eu sei, elenãoeracasado.Talvezfosse.Vejabem,eraumamericanodaclassemédiaalta,podiatersidocasadoedepoissedivorciado.Aliás,sempreouvidizerqueospais eramdivorciados, oque talvez fosse a razãoda instabilidadedele.Parecequetambémbebiammuito.Nãodavaparaverificarseeleera

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instável.Tinhafamadeserinstável.EmCuiabá,aprimeiracoisaquefezaochegar foi procurar um piano, o que não é fácil, e acho que acabouencontrando.MasCuiabáeraumfimdemundo.Ouvialusõesaofatodequeeleeraumvirtuose.Eraummusicólogo.Peloquesempreouvidizer,olivroqueescreveusobreFijicuidademúsicaedança,queeraaáreaemqueelese sentia mais à vontade. Ele era pianista. Aonde ia, logo procurava umpiano.Eassim foi emCuiabá".Euo imaginei correndode casaemcasaàprocura de um piano sob o calor mormacento daquela cidade morta,encravadanocoraçãodoBrasil.Quandorelateiahistóriaàantropóloga,emretribuiçãoàsprimeirasinformaçõesquehaviamepassado,elaexclamouqueaquilodavaumfilmeequejáconseguiaatéveracena.DeviaestarcomumaproduçãodotipoFitzcarraldonacabeça.

"Tivemos um pequeno convívio em Cuiabá. Depois, perdemos ocontato. Nossos destinos eram outros. Ele ia para o Brasil central, e nósfaríamos a travessia deMatoGrosso até oAmazonas", prosseguiu CastroFaria. Perguntei se Lévi-Strauss e Buell Quain tinham se conhecido oumesmosenãoteriamficadomaispróximosemCuiabá,afinalamboseramantropólogos e estrangeiros numa terra estranha, e eu supunha quepudesseterhavidoalgumtipodecumplicidadeentreosdois.Eleriu."Não.Isso era uma coisamuito difícil. Estivemos juntos, eu, o Lévi-Strauss e oQuain, mas só em ocasiões sociais. O Lévi-Strauss não privava dacompanhiadeninguém.Vocêprecisa compreender, ele é um francês, umnormalien,umfrancêsdeformaçãofilosófica.Éumsujeitoretraído,eessaéuma postura comum aos filósofos, como se eles fossem diferentes. Estãosemprepensandoemcoisascomplexas.EfoiissoprovavelmentequefezoLévicairdoburro.Elecometeuumerroqueninguémhabituadoaviajareao trabalho de campo cometeria: atirou decima do burro. Ora, ficou semburroeperdido.Éumhomemmuitosilencioso.Emtodasasocasiõesemque encontrei o Quain, as nossas relações foram muito formais, quemmandavaemtodosnóseraHeloísaAlbertoTorres.Elesempremepareceumuito simpático. Mas nunca deixei de perceber também um certoisolamento."

Amim,parecia improvávelque, adespeitodoquemediziaCastroFaria,Lévi-StrausseBuellQuainnãotivessemestabelecidoalgumvínculonessa ocasião, uma vez que ficaram hospedados no mesmo hotel, oEsplanada, que pertencia a um libanês. Os dois preparavam suasrespectivas expedições.O que aconteceu, na verdade, comodepois vim asaber,foiquelogosimpatizaramumcomooutro.Norelatórioquefariaumano depois sobre os índios krahô, Quain diz que sua opinião foi

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influenciada "pelo contato com Lévi-Strauss". Passaram noitesconversando, em Cuiabá, o que explica o fato de o jovem americano terprocurado o antropólogo francês para desabafar quando mais precisou.Estavamuitoangustiadonaocasião.A julgarporcertossintomasnapele,achavaquetinhacontraídosífilisemconseqüênciadeumaaventuracasualcomumamoçaque teriaencontradoduranteoCarnavalnoRio.Segundoele, a moça em questão havia lhe inspirado confiança ao se dizerenfermeira. Lévi-Strauss o aconselhou a voltar ao Rio para confirmar odiagnósticoesetratar,masQuainnãolhedeuouvidos.Anosmaistarde,emNova York, o antropólogo francês fez o relato desse encontro a RuthBenedict.

Quain deixou Cuiabá, no dia 17 de junho, rumo ao Xingu e aosTramai,depoisdemuitosatrasos,emboaparteporcausadeumainfecçãonoouvido.Navéspera,escreveuadonaHeloísa,anunciandoasuapartida:"Asenhorateránotíciasminhasantesdachegadadaschuvas".

Quase um ano depois do encontro com Lévi-Strauss em Cuiabá,enquantoesperavaasmulasemCarolinaantesdepartircomumgrupodeíndioskrahôparaaaldeia,QuaindescreveuaRuthLandes,deumaformamuito peculiar, as primeiras impressões sobre os seus companheiros deviagem: "O pai do chefe da aldeia para onde estou indo era um escravofugitivo.Todososdentesvisíveisdaarcadasuperiorsãolimadosdeambosos lados. Esse corte dos dentes que você havia mencionado como umacaracterística dos negros (os cantos interiores desbastados dos incisivossuperiores) também é um sintoma comum de sífilis congênita; sãochamados'dentesdeHutchinson'.

Vocêvêumcasoououtroentreosbrasileiros,devezemquando.Jávi três desde que cheguei ao Brasil. Não pensei nisso na época em quefalamossobretraçosnegros.Melhorteriasidoprestaratenção.Oueramoscantosexterioresdosincisivosqueeramdesbastados?".

Landes era umamoça judia deNovaYork que, depois de convivercomosnegrosnoHarlem, começou a estudar antropologia e veioparaoBrasil pesquisar o candomblé da Bahia. É verossímil que tenha seinteressadoportraçosraciaisnegros.Oestranhoéaassociaçãoumtantoperturbada que Buell Quain faz desses traços com sinais de umadeterminadacondiçãopatológica,ofatodereconhecê-losvezporoutranavida cotidiana e de lamentar não ter dado maior atenção àquelasinformações,comosedepossedelastivessepodidomelhorsedefenderouevitaralgumacoisa.

"Nuncaouvinenhumahistóriasobreocomportamentosexualdele",

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disse Castro Faria. "Falaram um monte de coisas depois do suicídio,inclusivequeeletinhalepra.Nãosetemprovadecoisanenhuma.Quandochegouanotíciadosuicídio—eessesdadostodossemprecausammuitaimpressão—, acharam que talvez fosse uma doença. Foi uma coisa tãoinesperada.Umavez elemedisse: 'CastroFaria, eunão tenhomaisnadapara ver nomundo'. Tinha sido embarcadiço, o trabalhomais grosseiro,maishumildede todos, numnavio ao redordomundo.Elemedissequetinha andado pelo mundo todo, não tinha mais nada para ver. Era umapessoasolitária.Eramuitofechado.Essaexpressãodealguémquejátinhavistotudonomundoerarealmentedequemjánãovianenhuminteressede estar presente. O convívio dele era muito reduzido. Acho que nãoaprendeu português, nem se interessava pelo Brasil. Aliás, nunca vi umlivrodele.Oqueelemedisseeu repito: 'CastroFaria, eunão tenhomaisnadaafazernomundo.Jávitudo'.Realmentefoiumacoisaabsolutamenteinesperada. Ninguém podia esperar que um antropólogo americano damelhor escola, trabalhando no Brasil, fosse se suicidar aqui, moço e jáconsagrado,porquecorriaa famadequeeleeraumdosmelhoresalunosdoFranzBoas,equeoBoasodistinguiamuito.EdonaHeloísatinhaumaespecial deferência com todos os que eram indicados porBoas e vinhamparaoBrasil."

6.Isto é para quando você vier e sentir o temor de continuar

procurando,mesmojátendoidolongedemais.Eledeveterlhefaladodosportos que visitou, do que viu pelomundo, sempreumpoucomais alémnumabuscasemfimecircular,edoquetrouxeparacasa,nãoosobjetosque passaram a assombrar a mãe depois da sua morte, mas o que lhemarcou os olhos para sempre, deixando-lhe aquela expressão que eletentavadisfarçaremvãoequeeuapreendiquandochegouaCarolinanadistraçãodo seucansaço,osolhosque traziamoqueele tinhavistopelomundo,amortedeumladrãoachibatadasnumacidadedaArábia,oterrordeummeninooperadopeloprópriopai,aentregadosquelhepediamqueos levassecomele,paraondequerque fosse,comosedeleesperassemasalvação.Elemedissequeninguémpodeimaginaratristezaeohorrordeser tomado como salvação por quemprefere se entregar semdefesas aoprimeiroqueaparece,quemsabeumpredador,a terquecontinuaronde

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está. E eu imaginei. Ao contrário de você, a única coisa que ainda mepergunto é sobre o momento em que ele entendeu que estava perdido,quando passou a sentir que alguém pudesse ver nele a salvação, omomento em que entendeu que tudo podia ser ainda muito pior e quehaviagenteabaixodelenasuaescaladeaviltamento.Porquetalveztenhasidoesseo instanteemqueeledecidiuquedesceriatambém,sempreumpoucomais,nemquefosseparalhesdaramão.Equandoprecisouqueeulheestendesseaminha,jánãoestavaaomeualcance.Pensoemcomosãoformadasaspersonalidadespeculiares.Sesãocomoasoutras,sesãocomonós. O que pode ter passado um homem na infância para trazer umacicatrizdaquelasnabarriga?Queespéciedesofrimentoopôsemsintoniacomummundopiorqueoseu?

7.AsituaçãodosestrangeirosnoBrasildoEstadoNovoeradelicada.A

impressão era que estavam sob vigilância permanente. Dos jovensantropólogosdeColumbiaque trabalhavamnopaísno finaldosanos30,Ruth Landes foi provavelmente a que mais sentiu na pele o clima deignorância e o horror, uma vez que estava envolvida pessoal eprofissionalmente com os intelectuais baianos perseguidos, presos eintimidadospeloregimesobaacusaçãodeseremcomunistas.Foramelesque facilitaram o seu acesso aos rituais de candomblé, objeto da suapesquisa.A correspondênciadela comRuthBenedict é reveladora.Numacarta de maio de 1938, Landes menciona à orientadora ter recebido"notícias pesarosas" de Quain— que estava retido em Cuiabá com umainfecção no ouvido — mas que ele próprio revelaria mais detalhes aBenedict em carta a ser remetida pela Bolívia por razões de segurança.Landessedesculpapelalinguagem"umtantocanhestra",explicandoqueéobrigada a escrever dessa maneira também por razões de segurança. Aprostração deQuain se devia em especial às dificuldades que enfrentavaparachegaraoXingusemasdevidasautorizações.Suaexpediçãosolitáriaaos Tramai terminaria comuma convocação expressa de volta aoRio deJaneironos seguintes termos: "De conformidade coma recomendaçãodoSenhorTenente-CoronelVicentedePauloTeixeiradaFonsecaVasconcelos,ChefedoServiçodeProteçãoaosíndios,venho,porestemeio,vosconvidarpararetirardesdaaldeiadosíndiostramaiondevosencontrais,vistocomo

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avossapermanênciaaliconstituiinfraçãoaoregulamentodaqueleServiço.Saúde e fraternidade, Álvaro Duarte Monteiro, Inspetor Regional doMinistério do Trabalho, interino". Em carta a Ruth Benedict, HeloísaAlbertoTorres se explica: "Certos equívocos da parte do sr.Quain foraminterpretados pelo Serviço como infrações à lei e levaram este órgão aimpor-lhecondiçõesestritasseeledesejarprosseguircomsuaspesquisasnasaldeias indígenas".CastroFariadizqueessaeraapraxe:"Atéeu,queeramembro-delegadodoConselhodeFiscalizaçãona expediçãodoLévi-Strauss,precisavadeumsalvo-conduto".

Numacartademarçode1939aRuthBenedict,Landesdizquevivenum"estadodeabsoluta solidãoemocional"depoisde "duas semanasdehorror".Mencionaumacartaanterioremqueteriarelatadoàorientadoraa"históriadeespionagemnaBahia":"Sevocênãoarecebeu,eladeveterse'extraviado',maisoumenosdeliberadamente".

Às vésperas da guerra, havia também um forte sentimentoantiamericanista no ar, e os jovens antropólogos de Columbia, já muitodesconfiadosesuscetíveisaosmétodosdoregime,sesentiamaindamaisacuados,desamparadosesolitários.Landescontaque,noRio,apressãoeotemorchegaramaumpontoemque"nóstrês(Buell,Chuckeeu)tivemosdeircomdonaHeloísaàpolíciaparaconseguiralgumtipodeidentificaçãoparaosrapazes".

Se é que Buell Quain já tinha alguma coisa a esconder, a situaçãopolíticasólhedavaaindamaisrazõesparaadissimulaçãoeapreservaçãoquaseparanóicadasuavidapessoal.NacartaqueescreveuaRuthLandes,namanhãemquesepreparavaparadeixarCarolinarumoàaldeiakrahô,ele a aconselha a desconfiar de tudo: "Estou preocupado com as suasrelaçõescomdonaHeloísa.Vocêprovavelmentevaidizerqueeunãodevomemeterondenãosouchamado.Masachoquevocêdevelheretribuirosfavores fazendo-se de humilde na frente dela, evitando dizer coisas quesoemcomocríticaantipáticaaoBrasil,fingindoseinteressarpelotrabalhodos acadêmicos brasileiros, e até mesmo deixando-a pensar que é aorientadora da sua pesquisa. É claro que daria para você passardespercebida no Rio de Janeiro e dar andamento ao seu trabalho semprestarcontasaninguém.MasumavezquedonaHeloísajáaconhece,elavai continuar curiosa em relação a você. E se você vier a ter maisproblemas, ela pode ser útil. Ela realmente tem influência. Há muitoantagonismo aos Estados Unidos por aqui. As pessoas es-carnecem dapolíticadeboavizinhançadeRoosevelt.UmintelectualaquemfuiindicadopordonaHeloísaescrevepanfletos.Umdelestemasserçõesdotipo: 'Sea

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AlemanhainvadiroBrasil,osEstadosUnidosnosdefenderão,masnãoháninguém para nos proteger do imperialismo americano'. É muito difícilparamim refutar essas coisas em português. Normalmente, faço cara deestúpidoedeixoparalá".

Perguntei a Castro Faria sobre a repercussão do suicídio de umjovemetnólogoamericanoemmeioaesseestadodecoisas."Nãocreioqueo suicídio dele tenha tido alguma repercussão nacional. Não sei nemlocalmentequais foramas reações.Amorteno interiorémuitodiferentedoqueaqueaconteceaqui.Foiinteiramenteimprevisto,apesardetodasasexcentricidadesdele,queeram faladas.Sobretudoacoisadodinheiro,deocultar a possibilidade que ele tinha de resolver todos os problemaseconômicoscomrecursosdeleedafamília.Osuicídionãofoitraumatizantepara nenhum de nós. Foi surpreendente. O Quain foi um acidente nahistória da antropologia e nas relações entre o Museu Nacional e aUniversidadeColumbia.Masasrelaçõescontinuaramsemproblemas."

O clima de desconfiança nas relações com os antropólogosamericanosganhoucontornosmaisespecíficosnocasodeWilliamLipkind.DonaHeloísa preferia abertamente Quain eWagler. "Eles sãomais bem-educados,mais bonitos emais charmosos", explicava Ruth Landes numacartaaRutliBenedict.Paracompletar,Lipkinderacheiodesiechegouafazer barganhas com dona Heloísa por um melhor preço pelo materialindígenaquetraziadasaldeiasgraçasàajudadela,oqueobviamentemuitoairritou."Falava-sequeoWilliamLipkindtinhadeixadoonomebastantecomprometido, porque ele fazia relatórios políticos para os americanos.Issoédeouvirfalar,masparecequenumdosrelatóriosqueescreveusobreos Karajá havia uma menção a informações que ele deveria prestar aoDepartamento de Estado. Parece que ele desempenhou — e muitosamericanosdesempenharam—uma funçãode observador", disseCastroFaria.

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8.Isto é para quando você vier. Se é que realmente quer saber. Ao

sairmosdafesta,eumeadianteieconvideiodr.Buellapassaremcasa.Elemalme reconheceu.Perguntei seestavaapreensivocomapartidanodiaseguinte.Tentourecusaromeuconvite.Euinsisti.Aceitouporcerimônia,pornãodominaros códigosdo lugar,pornão saberquemeuera.Estavacansado.Bebemoseconversamos.Eraprecisoquenosconhecêssemos.Foiaprimeiranoite.Pergunteiseeraaprimeiravezquevisitavaumaaldeia.Eleriu.Aquiloserviudeprovocação.Sentiu-seofendidoenãoparoumaisdefalar.FaloudosTrumai,eeuosimaginei.Tudooqueelecontoudaíemdianteeuprocureiimaginar.Sefaçoascontas,vejoqueforamapenasnovenoites.Masforamcomoavidatoda.Aprimeira,navésperadesuapartidaparaaaldeia.Depois,mais setedurantea suapassagemporCarolinaemmaioe junho,quandovinhaàminhacasaembuscadeabrigo, eaúltimaquandooacompanheipeloprimeiro trechodesuavoltaàaldeia,quandopernoitamos nomato, debaixo do céu de estrelas. A última noite foi porminhaconta.Elenãohaviarequisitadoaminhacompanhia,massentiquedeviaacompanhá-loacavalo,nemquefosseapenasnoprimeirotrechodopercurso, como se de algumamaneira soubesse o que àquela altura nãopodiasaber,quenuncamaisoveria.Oqueagoralhecontoéacombinaçãodoqueelemecontouedaminhaimaginaçãoaolongodenovenoites.Foiassimqueimagineioseusonhoeoseupesadelo.Oparaísoeoinferno.Naprimeira noite, eleme falou de uma ilha no Pacífico, onde os índios sãonegros.Mefaloudotempoquepassouentreessesíndiosedeumaaldeia,quechamouNakoroka,ondecadaumdecideoquequerser,podeescolhersuairmã,seuprimo,suafamília,etambémsuacasta,seulugaremrelaçãoaos outros. Uma sociedade muito rígida nas suas leis e nas suas regras,onde,noentanto,cabeaosindivíduosescolherosseuspapéis.Umaaldeiaonde a um estranho é impossível reconhecer os traços genealógicos, asfamílias de sangue, já que os parentes são eletivos, assim como asidentidades.Oparaíso,osonhodeaventuradomeninoantropólogo.Queriaestudar zoologia, mas bastou um semestre na universidade para ter arevelaçãodavidaporvir.Nãoseioquantovocêconheceudele.Serádemaislembrá-lo de que, em março de 1931, depois de passar pelos primeirosexames,eparacomemorarofinaldosemestre,elepegouumônibuscomalguns colegas até Chicago, onde beberam até cair e foram ao cinema?

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ComoumapalavradeDeus,elenãopodiaesperarporaquilo.Eatéanoiteemquemecontouaindanãosabiaoquantohaviadoefeitodabebidanoqueviu.Naescuridãodasaladecinema,aluzdeprataseacendeunatelaeumavidaimpensadasedescortinoudiantedele,umanovapossibilidadeeumasaída, comoseumcaminho inexploradoseabrisseàsua frente.Nãofaziaidéiadofilmeaqueassistiriaquandoentrounocinema,assimcomonão fazia idéiadodestinoque ali lhe era apresentado.Assistiu vidrado aumahistóriadeamornoPacíficoSul.Aumamorproibidopelasleisdeumasociedade de nativos. Um amor condenado pelos deuses. Um tabu. Até anoite em que me contou suas lembranças, não sabia o quanto havia doefeito daquele amor proibido na própria vocação. Ao sair do cinema,lembrava-seapenasdoscorposdosnativosdelineadospelosolepelaágua,asgotasdeprata,comopérolas,noscorposrefletidosdesolcontraocéu.Iria ao encontro deles. Saiu do cinema determinado. Já não falava comninguém.Seuscolegasnãoviamoqueelevia.Omundoficoudiferente.Omundojánãoeraali.Estavaemoutro lugar.Eprecisoentenderquecadaumverácoisasqueninguémmaispoderáver.Equenelasresidemassuasrazões.Cadaumveráassuasmiragens.Trancouamatrículadafaculdadeeembarcou,comoaprendizdemarinheiro,numcargueiroparaXangai.

Passou seis meses fora. Deu duro. Voltou como "marinheiro deprimeiraclasse".

QueriaverasilhasdoPacíficoSul,ailhaencantadadeumfilme,asgotasdepratadeumamorproibido.Nãoseioquantoconheceudele,muitomaisqueeu,nãotenhodúvidas,masseriademaislhedizerqueodr.Buell,meuamigo, bebeu comigo eme contouqueprocurava entreos índios asleisquemostrariamaomesmotempooquantoasnossassãodescabidaseummundonoqual por fim ele coubesse?Ummundoque o abrigasse?Agota de prata de um tabu. EmXangai ele conheceu um rapaz chinês quequeriadeixaraChinaparasempre.Odr.Buell lhefaloudaAméricacomodeumsonho.E,nasuaingenuidade,achouquepudesseajudarochinêsarealizarosonhodele,comoeleprópriojáestavadecididoarealizaroseu.Prometeuoquenãopodia.O sonhodeunsé a realidadedosoutros.Eomesmo pode ser dito dos pesadelos. Conseguiu fazer com que o rapazembarcasse clandestinamente no navio.Mas não que chegasse àAmérica.Foi descoberto, expulso e castigado no primeiro porto, sob os olhoshorrorizadosdoseujovembenfeitoramericano.Nãodescartavaahipótesedequeotivessemmatado,portersemisturadocomosbrancos.Osonhoéum ponto de vista. E um lugar de onde se vê.Mas pormais que elemefalassedeFijiedeVanuaLevu,asuailhanoPacíficoSul,eunãoconseguia

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ver.Eracomoseosdezmesesqueele tinhavividopor lánãopassassemmesmo de um sonho. O que ele me contava se desmanchava como asnuvens.Eeunãoconseguiaimaginar.Nãopodiaconceberqueaaldeiaemque morou, por estar situada numa ilha, não fosse à beira-mar, mas nointerior, a caminhodasmontanhas.Os olhos nãopodemver.Quando elemostravaaosjovensnativosdailharevistasocidentaiscomfotografiasqueosmaisvelhosnãoteriampodidonemaomenoscompreender,semprelheperguntavamseaspessoasretratadaseramhomensoumulheres.Parameajudaraver,quandovoltouaCarolinaemmaio,trouxeumafotografiaeumdesenho que havia feito de próprio punho. Eram retratos de dois negrosmuitofortes,queposavamparaelecomotorsonueoolhardistante.

Posso não ter imaginado o paraíso, mas o inferno eu pude ver. Opesadeloéumjeitodeencararomedocomolhosdequemsonha.QuandomefalavadosTrumai,euoouviafalardomedo.Passouquatromesesentreeles, entreagostoenovembrode1938.Até ser chamadodevoltaaoRio,em dezembro. Foi de Cuiabá a Simões Lopes de caminhão, e depois pormaisseisdiasemlombodeburropelamata,edepoispormaisumasemanaem três canoas pelo Coliseu até a missão mantida por um casal deamericanos, o reverendo Thomas Young e a mulher, cujos nomes eureconhecientreascartasqueeledeixouaosematar.Doishomensbrancoseummeninooajudaramcomascanoas.Odr.Buellremavaumadelas.Nofinaldosegundodia,comocairdanoite,umadascanoasseencheudeáguaeelestiveramqueparareestenderabagagemmolhadasobreumapedra.Sónodiaseguintesederamcontadequeosolmalatingiaapedra.Estavamdentrodafloresta.Mas,apesardovento,sónoquintodiaéquetiveramdeenfrentar verdadeiras correntezas. Uma das canoas bateu contra umapedra,eosmantimentosforamcarregadospelorio.

9.Emcartade1ºdenovembrode1940aHeloísaAlbertoTorres,amãe

de Quain conta a história dos missionários do rio Coliseu. A falta dequinino,ecomoshomensmorrendodemalária,osamericanoscomeçarama rezar. "Foi quando viram um homem com a cabeça raspada, calçasesfarrapadaseumavelhajaquetavindodorionasuadireção.Acharamquefosse um prisioneiro em fuga, até que ele lhes sorriu." No delírio do seupesadelo, devem ter visto um condenado com correntes nos pés e nas

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mãos,saindodedentrodealgumpântanodaLouisianaoudoMississippi.Ou pelomenos foi assim que imaginei as visões febris e apavoradas dospobresmissionários quando li a carta damãe do etnólogo. Segundo ela,Quain lhes teria dado um novo remédio, que, como pormilagre, logo ostiroudaqueleestado—oque,aosolhosdessagente,fezdelenaturalmenteuma espécie de salvador enviado em resposta às preces e à fé dosdesesperados.Ojovemantropólogoteriaobtidoomedicamentoeporsorteoincluíranasuabagagemdepoisdeamãeterlidoumartigonumarevistamédicae lhemandadoo recorteparaoRiode Janeiro.Dealguma forma,nemquefosseàdistância,elatentavaserútileacompanharosdesígniosdofilhoemsuadescidaaosinfernos.Nofinalde1940,aindaatormentadapelamortedeBuell e tateandonoseu lutoembuscadeumaresposta,FannieDunnQuainfoiaChicagoassistiraumapalestradosmissionáriosThomaseBettyYoungnoMoodyInstitute.ApalestrafoiilustradaporfotostiradasporBuellentreosTramai.Omaisprovável,porém,éque,aoseapresentare cumprimentá-los entre os outros convidados, ela não tenha lhesperguntadonada,emparteporconstrangimento,emparteportemerquelhe revelassem o que não podia ouvir. E possível que, dez anos depois,tenhamorridosemchegaraperguntarnadaaninguém.Preferiaacreditarquenãosoubessemoqueelatambémnãopodiasaber.Depoisdamortedofilho,manifestoumaisdeumaveznacorrespondênciacomdonaHeloísaavontade de recompensar os índios, ajudá-los com o dinheiro que Buelldeixara.Suainsistênciaatormentadadáaimpressãodequetentava,aindaqueinconscientemente,sobumvéudefi-lantropia,comprarosilênciodosíndiosousubornaraprópriaconsciência.

Quainpassoutrêssemanascomosmissionáriosantesdecontinuarrioabaixo,porterritóriodetribosinimigas,atéaaldeia.OsTrumaiqueoacompanhavamcantavamduranteanoiteesecalavamcomonascerdosol.O clima de animosidade e terror entre as diversas tribos da região osobrigava a acender fogueiras sempre que entravam em "territórioestrangeiro", para anunciar a sua presença. As surpresas e os encontrosinesperados deviam ser evitados a todo custo, sob pena de provocartrágicos incidentes e mal-entendidos. Na viagem pelo Coliseu, a simplesvisãodeumacanoakamayuráeramotivodepreocupação.Quainchegouàaldeia trumai emmeadosde agosto.A região eradasmais inacessíveis eisoladas,àsmargensdorioCuluene,naconfluênciacomoColiseu.Oacessoà área pelo rio Xingu é impossível devido às cachoeiras. Temidos nopassado pelo número e pela coragem guerreira, os Trumai estavamreduzidosaumaúnicaaldeiadequatroocaseumaquintaemconstrução.

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Eramdezessetehomens,dezesseismulheresedezcrianças.Instalaram-seali fazia dois anos, basicamente porque tinham medo, acuados, com oobjetivodeseafastaremdetribos inimigas,emespecialdosKayabiedosNahukwá,cujochefeeraumpoderosoxamã.SeusantepassadosjáhaviamsidoexpulsosdessamesmaregiãopelosSuyá.MasagoraosTrumaitemiamsobretudo os Kamayurá, seus vizinhos mais próximos, que no passadochegaram a raptar todas as moças da aldeia e que também tentaramamedrontarQuain,dizendoqueopoderosoxamã,chefedosNahukwá,viriapegá-lo.Na realidade, quandopor fim se encontraram, o chefe kamayurátratou Quain com despeito e aparente indiferença. No fundo, estavaressentido pelo fato de o antropólogo ter escolhido permanecer entre osdesprezíveisTrumaienãonaaldeiakamayurá.OsKamayurá inventavamhistóriaselendasparaacirraroclimadeterror.Tinhamumasensibilidademuitoaguçadaparaamaldadepsicológica.Edealguma formadevemterpercebido a vulnerabilidade psíquica do antropólogo, tanto que jogavamcomasuasolidãoecomoseuequilíbriodelicado,dizendoqueopaideleestavachegandodeaviãocommuitospresentesparaosTrumaiouqueumaviãocheiodebrancoshaviapousadonamissãodeThomasYoungnorioColiseu.Poroutro lado,osTrumai tambémpioravamoestadodehisteriacom as próprias lendas. Acusavam os Kamayurá de, entre outras coisas,torturarseusprisioneirosedepoiscomerseusmiolos."HáumaexpectativapermanentedequeosSuyáeosKamayuráataquemànoite—bastaumgalho quebrado depois do cair da noite para levar os homens a seagruparem,comseusarcoseflechas,trêmulos,nocentrodaaldeia",QuainescreveuaRuthBenedict.

Duas vezes entrevistei Lévi-Strauss em Paris, muito antes de mepassarpelacabeçaqueumdiaviriaameinteressarpelavidaepelamortedeumantropólogoamericanoqueeleconheceraemsuabrevepassagemporCuiabá,em1938.MuitoantesdeeuouvirfalaremBuellQuain.Numadasentrevistas,apropósitodeumapolêmicasobreoracismoeaxenofobiana França, em que tinha sidomal interpretado, Lévi-Strauss reafirmou asuaposição:"Quantomaisasculturassecomunicam,maiselastendemaseuniformizar,menoselastêmacomunicar.Oproblemaparaahumanidadeéque haja comunicação suficiente entre as culturas, mas não excessiva.Quando eu estava no Brasil, há mais de cinqüenta anos, fiqueiprofundamente emocionado, é claro, com o destino daquelas pequenasculturas ameaçadas de extinção. Cinqüenta anos depois, faço umaconstatação que me surpreende: também a minha própria cultura estáameaçada".

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Dizia que toda cultura tenta defender a sua identidade eoriginalidade por resistência e oposição ao outro, e que havia chegado ahoradedefenderaoriginalidadeameaçadadasuaprópriacultura.Falavadaameaçadoislã,maspodiaestarfalandoigualmentedosamericanosedoimperialismoculturalanglo-saxão.

OquemaisameaçavaosTrumaiquandoQuainosvisitounãoeramos brancos. Já não tinham a disposição de resistir aos demais gruposindígenaslocais.Ficavamacuadosdiantedooutro.Apesardetodoomedo,amaioria dos contatos entre as tribos da região era amistosa,mesmo sepontuados por eventuais intimidações e roubos por parte dos visitantes,sobretudo quando os anfitriões eram os enfraquecidos Trumai, que nãoreagiam. Os Trumai sempre tentavam agradar seus visitantes,mesmo osque os ameaçavam e desprezavam, como os Kamayurá. Travaram oprimeirocontatocomosbrancosem1884.PorocasiãodesuaexpediçãoaoBrasil central, Von den Steinen foi alertado por outras tribos sobre osperigosos Trumai do alto Xingu, na época considerados belicosos emrelaçãoaosestrangeiros,jáqueviviamemguerracomseusvizinhos.Mas,assim como ocorreu com o pioneiro explorador alemão, não foi essa aexperiênciadeQuain.Umavezestabelecidososprimeiroscontatos,ambosforamrecebidoscomtodaaamabilidadepelosmirradosetemidosTrumai.Narealidade,essahospitalidadeeracausadamaispelotemordosvizinhosdoqueporalgumcódigodeetiqueta.Noinício,aconvivêncianãofoifácilparaojovemetnólogodeColumbia.

Chamavam-no Capitão. Ao chegar, raspou a cabeça e assobrancelhas, para a perplexidade dos seus anfitriões, já que a prática éconsiderada um costume suyá. Logo roubaram todas as suas roupas,cobiçadas como proteção contra os mosquitos, e ele teve de improvisar"trajessumários"comummosquiteiro.Malfalavaalíngua,enãoentendiaasrelaçõesdeparentescoeaorganizaçãosocialdaaldeia.(Alémdonúcleofamiliar consangüíneo, os índios estabelecementre si relações simbólicasdeparentesco,queservemparaorganizarasociedade,suas interdiçõeseas obrigações de cada indivíduo. Nessas relações de "parentescoclassificatório" se manifestam a lei e a lógica dessas sociedades. Oparentescopassaaserumcódigoextremamentecomplexo,cujoprincipalobjetivo é evitar o incesto em comunidades predominantementeendogâmicas e às vezes reduzidas a algumas dezenas de indivíduos.)Quando Quain tentava conversar com os índios, eles lhe pediam quecantasse as canções com as quais os entretivera no início, antes quesoubesseexatamentecomosecomportarouoquefazer."Elesserecusama

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expressartermosdeparentesco—oqueimpedeomeuentendimentodaregulaçãodoincesto",relatounamesmacartaaBenedict,massóbemmaistarde, nas minhas conversas com os Krahô a propósito do suicídio doantropólogo,équeeuiriaatrelaraessafraseopesodasminhassuspeitas,infundadasounão.

O fato é que no começo Quain achou os Trumai "chatos e sujos"("Essagenteestáentediadaenãosabe"),ocontráriodosnativoscomquemconviveraemFijiequetransformaranummodelodereservaedignidade.Julgava os Trumai por oposição a sua única outra experiência de campo:"Dormemcercadeonzehoraspornoite(umsonoatormentadopelomedo)eduashoraspordia.Não têmnadamais importante a fazer alémdemevigiar.Umacriançadeoitoounoveanosparecejásabertudooqueprecisanavida.Osadultossãoirrefreáveisnosseuspedidos.Nãogostodeles.Nãohá nenhuma cerimônia em relação ao contato físico e, assim, passo pordesagradável ao evitar ser acariciado. Não gosto de ser besuntado compintura corporal. Se essas pessoas fossem bonitas, não me incomodariatanto,massãoasmaisfeiasdoColiseu".OetnólogocomparavaosmirradosTrumai aos homensmusculosos de Fiji, que ele havia retratado em seusdesenhose fotografias.Aindana cartaaBenedict, elediz: "Minhadoençamedeixaespecialmenteangustiadoeinseguroemrelaçãoaofuturo",semespecificardoqueestáfalando.

Doismesesemeiodepois, jáestava integrado.Eassimsepermitiarecusarospedidosincessantesdosíndios,comoquandoestavadeprimidoe queriam que cantasse. A violência física não era permitida na aldeia,sobretudocontraas crianças, eQuainporduasvezesquasedesencadeouuma comoção social ao bater na mão de um menino que lhe roubavafarinhaeaopisarsemquerernopédeoutro.Osconflitos,emgeralligadosaosexoeaoadultério,oueramsubstituídosporpráticasdefeitiçariaouseresolviam em representações catárticas, em que os envolvidosdescarregavam suas diferenças emocionais pormeio de ações simbólicasnuma espécie de teatro improvisado no centro da aldeia. Volta emeia oetnólogoviaosmaisjovensemabraçosoujogossexuais.Paraevitarqueosíndiosdeitassememsuarede,diziaatodososqueoprocuravamcomessepedidoquesua"mulherficariazangada"sesoubesse.Nãohaviavirgensnaaldeia.Paraafastarasmulheresqueovisitavam,ameaçavaestuprá-las, eelaslogofugiam,emgeralàsgargalhadas.Estavacompletamentesó.

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10.Isto é para quando você vier. A ele, só restava observar, que em

princípio era a única razão da sua presença entre os Trumai. Quandochegouaqui,estavacansadodessepapel.Mastambémtinhahorrordaidéiadeserconfundidocomasculturasqueobservava.Mecontouque,entreosnativoscomqueconviveranasuailhadaMelanésia,nãopodiahaverpiordesgraçaparaumrapazdoqueseracusadodeespreitarasmulheres.Eraum sinal de infantilidade: diziam dos que espreitavam que não eramcapazes de alcançar a satisfação sexual pelas vias de fato. Ele estavacansadodeobservar,masnadapodialhecausarmaiorrepulsadoqueterquevivercomoosíndios,comersuacomida,participardavidacotidianaedos rituais, fingindo ser um deles. Tentava manter-se afastado e, numcírculo vicioso, voltava a ser observador. Me falou das crianças Trumaicomoexceção,dasquaisseaproximounatentativadecompreenderosseusjogos,eentreelas,talvezporumaestranhaafinidadedecorrentedolugarincomodoqueelepróprioocupavanaaldeia,justamentecomoobservador,logopercebeuumórfãodedezoudozeanosqueeramantidoamargem.Era um desajustado. 0 único ali que, como ele, não tinha família. Nuncaparticipavadaslutasqueosoutrosmeninosorganizavam.Comonãohaviameninasadolescentes,osjogossexuaisaconteciamentremeninosouentremeninos e homens, quase sempre por iniciativa dos primeiros, que osadultosnãoreprimiam.Observouqueoórfãotinhauminteresseespecialpor esses jogos. Costumava procurar os homensmais velhos, que não orechaçavam. Não sei se esse menino também o procurou e por isso mecontava a história, mas outro garoto, logo depois da primeira ereção,compareceu uma noite a casa do dr. Buellpara se vangloriar e certa vezchegou a copular com uma menina, sob os olhos do antropólogo, depropósito,parasemostrar,sabendoqueeraobservado.0sexoassombravaa solidãodomeuamigo.Tambémparece ter ficado impressionado, tantoquemecontou,aindanaquelaprimeiranoitedepoisdafestaemCarolina,que na passagem para a idade adulta, como um rito de iniciação, osmeninos trumai tinhamo corpo inteiro esfolado comumapata afiadadetatu. Era uma prova de coragem, uma recompensa e umahonra, emboramuitos,apavoradosehorrorizados,chorassemdedorduranteosacrifício,cobertosdesangue.EntreosTrumai,ascicatrizeserammuitoadmiradas.Os meninos de sete anos expunham com orgulho as marcas que as

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cerimôniaslhesdeixavampelocorpo.Foiquando,paraminhasurpresa,eleabriu a própria camisa e me mostrou uma cicatriz que ia da barriga aopeito.Sorriueesperouaminhareação,maseunãosabiaoquedizer.Comosetivesseficadodecepcionadocomaminhaexpressãoatônita,oucomoseomeuespantootivessedespertadooutrazidodevoltadepoisdeumlapsode consciência, abotoou a camisa e me disse, lacônico, que tinha sidooperado na infância e que já era tarde, precisava ir embora. Nuncamaistocounoassunto.Tudoissoelemecontounaquelaprimeiranoitequandonemnosconhecíamos.Ehoje,aolembrardaspalavrasdodr.Buell,sómevem á cabeça a imagem do seu corpo enforcado, cortado com gilete nopescoço e nos braços, coberto de sangue, pendurado sobre uma poça desangue, que foi como os índios o encontraram e o descreveram aochegaremàminhacasa.Me lembroaindadeeletercomentado,perplexo,que os Trumai, apesar de estarem em vias de extinção, continuavamfazendo abortos e matando recém-nascidos. E que, talvez sem saber,estivessemcometendoumsuicídiocoletivo,vivendoumprocessocoletivodeautodestruição,jáque,aocontráriodeoutrastribos,nãotinhamquasenenhumcontatocomosbrancos,nãoconheciamnadaalémdosriosColiseueCuluene,enãosofriamnenhumprocessodeaculturação,emborafossemsubjugadospelosKamayuráeemparteassumissemaculturadeles.Alémdessa forma coletiva e inconsciente, ele me disse que não observounenhum caso de suicídio propriamente dito durante a sua breve estadaentreosTrumai.Ocuriosoéque,aoserobrigadoainterromperotrabalho,tivesseseesquecidodelhesfazerjustoessapergunta:sehouveraalgumavezumsuicídio entre eles.Em todo caso, ficou como sentimentodequetinham o temperamento suicida e estavam prontos para se matar. "Oimportante",elemedisseaindanaprimeiranoiteemCarolina,semqueeupudesse entender do que realmente falava, "é que os Trumai vêem namorte uma saída euma libertação dos seus temores e sofrimentos." Umavezemquehaviacaídodoente,umdeseusamigosíndiosseofereceuparaesfaqueá-locomointuitobeneficentedelivrá-lodadordadoença.Nãoeraãtoaquematavamosrecém-nascidos.Pioreranascer.Elemedisse:"Umaculturaestámorrendo".Agora,quandopensonassuaspalavrascheiasdeentusiasmo e tristeza,meparece que ele tinha encontradoumpovo cujacultura era a representação coletiva do desespero que ele próprio viviacomo um traço de personalidade. E compreendo por que quisesse tantovoltaraosTrumaieaoinfernoquemerelatou.Comoseestivessecegoporalgum tipo de obstinação. Queria impedir que desaparecessem parasempre. O livro que escreveria sobre eles seria uma forma demantê-los

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vivos,easimesmo.Quando ele falava da coragem dos índios, eu só o ouvia falar do

medo. Ele falava coragem e eu ouviamedo.Duas semanas depois de suachegadaaosTrumai, elepresenciouumacerimôniade cura.Amulherdochefe da aldeia estava doente e ate' então nenhum remédio tinha sidoeficaz.Osíndiosdecidiramfazeroritual.Oshomenssefecharamnumadascasas,emtornodadoente.Acerimôniaeraproibidaàsmulheres.

Quandoodr.Buelltentouentrar,airmãdochefelhedisseque,comoelas, elemorreria sepisassealidentro.Maselea ignoroueentrouassimmesmo. Houve outra ocasião em que lhe falaram da morte, deixando,porém, que tirasse as próprias conclusões. Durante uma caçada em queprocuravamavesparatirar-lhesaspenas,disseram-lhequeumpássarodecabeçavermelhaaquechamavam"lê"eraoanúnciodamorteparaquemovisse.Poucodepoiseledeparoucomaapariçãofatídicaepreferiuacreditarque lhe pregavam uma peça. Não disse nada, embora no íntimo tenhaficadomuitoimpressionado,apontodetersonhadomaisdeumavezcomamesma ave dali para a frente. Acordava ofegante e coberto de suor.Perguntouoqueeuachavadossonhos.Eantesqueeupudesseresponder,dissequeosTrumaiconsideramossonhosumaformadeverdormindo.Ecomum que as crianças acordem aos berros no meio da noite. Seuspesadelossãoestimuladospelasangústiasdospaisaesperadeumataqueinimigo. Numa noite, logo no primeiro mês depois de sua chegada, eleacordoucomosgritosdasmulheres.Todascorreram,comsuascriançaseredes,paraumdosladosdaaldeia.Eleachouqueestavamsendoatacadospor outra tribo. Na correria, alguém lhe disse — ou foi assim que eleentendeu — que uma mulher fora baleada. Quando assentou a poeira,descobriuquehaviasidoumtorrãodeargilaqueaassustara.Asmulherestinhamaindamaisrazõesdoqueoshomensparatemerosataques.Sabiamqueumdosprincipaismotivosdaguerraeracapturá-las.OsTrumaiviviamnumestadodeterrorpermanente.Eudisseaodr.Buellquealgunsíndiostêm o costume de jogar pedras quando se aproximam das casas dasfazendas,oquepodeserumsinaldeamizade.Elemerespondeuquetalveztivessem realmente sido visitados naquela noite pelos Suyá, que eramtemidospelaferocidadesemigual.SegundoosTrumai,osolcrioutodasastribos,aexceçãodosSuyá,descendentesdascobras.Todaaaldeiatrumaiquisdormirnapequenacasaqueconstruíramemumasemanaparaodr.Buell,porqueele tinhaumapistola.Voltaemeia lhepediamqueatirassecontraaescuridãoquecercavaaaldeia,paraafastarosinimigos.MesmoseaintençãodosSuyáfosseboa,omedodosTrumainãoosdeixariapercebê-

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lacomoamistosa.BastavafalarnosSuyáparaqueosTrumaientrassemempânico. A vida era insegurança, que sempre aumentava à noite. Omenorestalidonoescuroprovocavaverdadeirocaos.Numdiadetempestadecujaescuridãoseconfundiucomanoite,acometidodefebre,elesentiuohorrorque afligia os Trumai. Apesar de eles não ligarem para o sobrenatural,comoosKamayurá, temiam raios e trovões. Achavamque alguémestavacontrariando a chuva. Durante a primeira tempestade tropical quepresenciounaaldeia,odr.BuellrecebeuavisitaesbaforidadeAloari,seuassistentee cozinheiro,quevinha lhe implorarqueapagasseo lampiãoeparasse de trabalhar, pois assim estava irritando a chuva. Foi diferentenaquele dia de febre emque a tempestade fez o dia virar noite. Viudoisolhosàportadasuacabana.NãoeramosolhosfundosdeAloari,comseuslábiosgrossoseoscabelosdesgrenhadoscortadosemformadecuia.Eramolhos ardentes soltos no nada, como se boiassem na matéria viscosa daescuridãoedachuva.Eeledisseapenas:"Osolhosdeumapessoaqueeuconheci".Paramim,opesadeloeraimaginaraviagemdevolta,ostrintaeoito dias de barco a subir os rios por terras inimigas na apreensão deflechas traiçoeiras, e depois a pé e de caminhão por quilômetros emaisquilômetrosdepoeiraeterra.Eraoqueeleteriaqueenfrentar,dei-xandopara trás aquele fim de mundo, embora só quisesse ficar e seguissecontrariado, coagido pelo Serviço de Proteção aos Índios a sairimediatamentedasterrasindígenas.Duranteaviagemdevolta,'quandoelesubiaosrios,nodia7denovembrode1938,umeclipsedepoucomaisdeumahorafezaluadesaparecerdocéulogodepoisdetersurgido.Osíndiosqueoacompanhavamdisseramquenãopodiamprosseguirenquantonãoespantassemomalqueestavacomendoalua.

Primeiro,pediramqueeleatirasseparaoalto.Depois,dançarameatiraram flechas para o céu. Um dos índios decidiu voltar, temendo serassassinadopelosbrancos.Porfim,ochefeficoudepéefaloulongamentecomalua,atéelareaparecerdonada.

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11.De volta a Cuiabá, Buell Quain sofreu um ataque de malária.

Enquanto convalescia, escreveu a Ruth Benedict o relato da suaconvivência com os Tramai: "Toda morte é assassínio. Ninguém esperapassar da próxima estação das chuvas. Não é raro haver ataquesimaginários.Oshomensse juntamaterrorizadosnocentrodaaldeia—olugarmais exposto de todos— e esperam ser alvejados por flechas quevirãodamataescura".

Ninguémnuncameperguntou,eporissonuncapreciseiresponderquearepresentaçãodoinferno,talcomoaimagino,tambémfica,ouficava,noXingudaminhainfância.Eumacasapré-fabricada,demadeirapintadadeverde-vômito,suspensasobrepalafitasparaaproteçãodosmoradorescontraoseventuaisanimaiseataquesnoturnosdequeseriampresa fácilnorés-do-chão.Éumacasasolitárianomeiodonada,erguidanumaáreadesmaiadaeplanadafloresta,cercadadecapim-coloniãoedemorte.Tudooquenãoéverdeécinzento.Ouentãoéterraelama.Háumaestradadeterra que chega até a escada à entrada da casamas que dali não parecelevaranenhumlugarconhecido.Amaneiramaisfácildechegarédeavião,que não deve ser grande, nomáximoumbimotor, para poder pousar napistadeterraabertaaoladodacasa.Doalto,quandonosaproximamosemvôorasante,ésóoquevemos:acasasolitáriacomapistadepousoaolado,numa grande clareira de capim alto, cercada por todos os lados de umafloresta a perder de vista. A estrada de terra leva da casa ao campo depousoedepoisseguediretoparaamata,ondedesaparece,comotudoali,àprocuradeumcaminho—outalveznumimpulsosuicida.Dizemquehojetudo mudou e que a região está irreconhecível. A floresta tropical setransformou em campos de fazendas. A mata desapareceu, caiu e foiqueimada, mas na época impunha-se como uma ameaça aterrorizante, apontodeserdifícilparaumacriançaentenderoqueoshomenspodiamteridobuscarnaquelefimdemundo.AcasaeraasededeumafazendaaquechamavamVitoriosas,senãomeengano,porqueofazendeiro,oChiquinhodaVitoriosas,justamente,comoeraconhecidonaregião,eradonodeumaempresadeônibusquelevavaomesmonome.Eraafazendamaispróximadaqueomeupaitinhadecididofundar,em1970,noXingu,equebatizoudeSantaCecília,emhomenagemàprimacomquemvivianaqueletempoequelogooperseguiriacomadvogados,humilhadapeloengododaprópria

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paixão,parareaverodinheiroquelheemprestaraequeelehaviaenfiadonaquelas terras, supostamente em gado, ao mesmo tempo que saía comoutrasmulheresdemaneiracadavezmaisdescarada.AsededaVitoriosas,suspensanomeiodonadaeda floresta,eraparadaobrigatóriaquandoomeupairesolviaavaliaroestadodasobrasdaestradaquepretendiaabrirnomeiodaselvaentreasterrasdoChiquinhoeaSantaCecília,equeteriaconcluído não fosse o literal mar de lama que a engoliu depois daderrubada das árvores e da passagem resfolegante dos tratores,niveladorasecaminhõesdacivilização.

NãomelembronemdacaradoChiquinhodaVitoriosas,masguardeia notícia da sua morte num acidente de avião. Não sei se agora apenasimagino,mas tenho a impressãode ter visto omeupai debruçado sobrealguém, talvez a viúva, a lhe dar esperanças, a lhe dizer que ainda haviachancesdeencontraremoaviãozinhodesaparecido faziadias.Lembrodeumacasaescura,degentearmada,demulheresrecolhidasecaladas,edeumcéu carregado, comraios enuvensnegras, semprequevisitávamosaVitoriosas.IssoquandoosolnãoestavaescondidoporumanévoaquefazialembraraatmosferadeumplanetainóspitoemPerdidosnoespaçoouemalgum filme de ficção científica. Também lembro de um clima doentiodentrodacasa,degenteacometidademaláriaedobarulhodasbotassobreo chão poeirento de tábuas de madeira, por cujas frestas se via a terravermelhado ladode fora.Entrenós,meupai comentavaqueamortedoChiquinho era resultado da imprudência de pilotos que preferiam voarbaixo,entreasnuvenseafloresta,aterdepassarpordentrodoscúmulos-nimbos,pelomeiodastempestades,comoelefazia,servindo-seapenasdosinstrumentos, uma vez que aqueles aviões não tinham autonomia parasubir além das nuvens, por falta de pressurização. O problema de voarbaixo era surgir de repente uma montanha pela frente, uma elevaçãoinesperadadorelevo,eoaviãoacabarseesborrachandocontraasrochaseasárvores.Meupaisempresevangloriavadesuacautela,tantoquehaviamandado pintar na fuselagem do Cessna 310 uma tartaruga — a qualchamava,comoosíndios,detracajá—comumatrouxinhanascostaseosdizeres:"Devagaresempre".

Masnãoerabemassim.Háváriashistóriasque,passadoopavordomomento,entraramparaofolclorefamiliareque,senãodepõemcontraaperícia aeronáutica domeu pai, denunciando a sua própria imprudência,também não deveriam ser vistas como prova da sua bravura,mas antescomoresultadodeumadosedeatabalhoamentonaconduçãodasquestõesaéreas.Segundorelatodomeucunhado,queumavezvinhacomomeupai

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sem enxergar quase nada adiante do nariz, por dentro de um cúmulo-nimbo, um "CB", que era como ele chamava os pesadelos arroxeados emformadecatedraisnomeiodocéu,derepenteforampegosdesurpresaporum morro mais à frente, a algumas centenas de metros, e o meu paiimediatamente arremeteu com o bimotor numa subida vertical eapavorada para fora da nuvem. Os dois saíram daquele mundo opaco echeioderaiosparadentrodocéuazuleensolaradodasalturas,efoisóaí,com o coração saindo pela boca, que o meu cunhado pôde constatar otamanhodopavordomeupaitrêmuloecalado,comasalivagosmentanoslábioseressecadanoscantosdaboca.

Também ficou famosa a vez em que, preocupado em chegar antesdasseisdatardeaoaeroportodeCuiabá,jáqueseubrevenãolhepermitiapilotar à noite com instrumentos, meu pai entendeu que o operador natorredecontrolefalavadahoraedanecessidadedeseapressar,quandonarealidadeapenasoalertavasobreofatodequeumadaspistasestavaemobras. Foi justamente para essa pista que o meu pai dirigiu o avião, napressadenãocometerumainfraçãoeperderobreve.Acabouaterrissandosobre um trator num canteiro de obras esburacado, onde militaresarmados jáoesperavamdepoisdeveremoaviãodespontarnohorizonteemdireçãoàpistaqueatorredecontrolelhedisseraparaevitar.Meupaifoipresoassimquepôsospésnochão.

Oavião,cheiodeavarias,foiapreendido.Erainíciodosanos70,eosmilitares chegaram a aventar a possibilidade de que, sendo área desegurança,oaeroportoestivessesofrendoumataqueterrorista.

Eu mesmo participei, como espectador e vítima, de duas dessashistórias, sendo que a menos grave foi quando meu pai se esqueceu defazer uma mistura de óleo, um procedimento de praxe que devia serrealizadoduranteovôo,enquantoatravessávamosjáfaziaquaseumahoraumatempestadedegranizoeraios,entreSãoMigueldoAraguaiaeGoiânia,eomotordireito congelou.Eleestava tão tenso coma situação todaquenãochegouaverahéliceparandoaospoucos,fazendotoe,toe,toedomeulado,e fuieuquebatinobraçodele, semconseguirdizernada,eaponteipelajanela.

Imediatamente,lívido,eletratoudemexernasalavancasaoseuladoeomotorvoltouapegar.Passouporoutrosapuros.Essenãofoioprimeiro,nemseriaoúltimo.

EudeviaterdezanosquandopresencieiumataquedemaláriaqueeleteveaochegarumavezaBarradoGarças,aondeforareceberdinheiroda Sudam. Tremia descontroladamente. Achei que fosse morrer e me

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deixarsozinhonaquelefimdemundodeondeeumalsabiacomosair.Nãosó não morreu, como escapou de outro ataque que acabou sofrendoenquanto pilotava sozinho o bimotor sobre a selva. E eu prefiro nãoimaginaroseupavoredesespero.

Buell Quain também havia acompanhado o pai em viagens denegócios. Quando tinha catorze anos, foram a uma convenção do RotaryClubnaEuropa.VisitaramaHolanda,aAlemanhaeospaísesescandinavos.Edaíemdiantenuncamaisparoudeviajar.MasseparaQuain,quesaíadoMeio-Oesteparaacivilização,oexóticofoilogoassociadoaumaespéciedeparaíso,àdiferençaeàpossibilidadedeescaparaoseuprópriomeioeaoslimitesquelhehaviamsidoimpostospornascimento,paramimasviagenscom o meu pai proporcionaram antes de mais nada uma visão e umaconsciênciadoexóticocomopartedoinferno.Sempretivequeacompanhá-loaMatoGrossoeaGoiás,porqueporleidevíamospassarasfériasjuntos(meuspaiseramseparadosetinhamchegadoaumacordosobreaminhaguarda e o meu sustento na justiça) e ele precisava visitar as fazendas.Haviaduas:umanocerrado, entreo riodasMorteseo rioCristalino,naregiãodoAraguaia,naalturadeSãoMiguel,próximaàilhadoBananal,eaoutra no Xingu, em plena floresta virgem. A primeira viagem que fiz àfloresta foi em 1967, quando tinha seis anos e meu pai ainda estavaprocurandoumafazendaparacomprar.Eraesseoobjetivodaviagem.Háuma foto desbotada em que apareço ao lado dele diante do CongressoNacional, em Brasília, onde fizemos escala antes de prosseguir para oAraguaia. Meu pai está com um terno amarfanhado pela viagem, e eu, àalturadacinturadele,maispareçoestarfantasiadodecaubóiparaumbailede Carnaval, com colete e botasmarrons. Ele articulava desde 1966, emBrasília, a compra de dois latifúndios no sertão, por meio de títulosdefinitivos do governo. Era um negócio da China. Não só pagou umaninharia pelas terras, como passou a receber subsídios para o projetoagropecuárioqueimplantouapartirde1970.

Apráticafoiestabelecidacomoprogramapelogovernomilitar,quesob o pretexto de desenvolvimento da Amazônia não só subvencionou acompradecentenasdemilharesdealqueiresapreçodebanana,comoemseguida financiou nababescamente os projetos de ocupação pelosfazendeiros—emgeral,bastavaderrubaramata,plantarcapimeencherasfazendasdegado.Meupaideviateroscontatoscertos.Afinalidadedaviagem era achar as terras. Originalmente, pretendia se concentrar nocerrado.AchoquesódepoissurgiuaoportunidadedoXingu,umamiragemqueelenãoconseguiurecusar.FicamosnailhadoBananal.Naépoca,meu

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paiaindapilotavaummonomotor.Viajávamososdoissozinhossobreofimdomundo,eeumedistraía

afolhearummanualdeprimeirossocorrosesobrevivêncianaselva,ondesetratavadospioreshorroresnocasodepousoforçadoouquedadoavião,como a descrição de um peixe minúsculo que me atormentava só deimaginarquepudesseentrarpeloorifíciodopênise,umavezinstaladonauretra,abrirsuasescamasouseiláoquê,demaneiraanãopodermaisserremovido,tudocomfartailustração.OcampodepousodailhadoBananalficavaaoladodeumaaldeiakarajá,equemchegavaerarecepcionadopelosíndios aculturados. Era um espetáculo deprimente. Havia naquele tempoumhotelque,segundoasmáslínguas,foraconstruídoporJuscelinoKubits-chekcomopretextoparapromoverencontroscomassuasamantes.Apistaserviaaoshóspedes.Emjulhode1967,ohotel tinhasetransformadoemcenário de uma fotonovela exótica da revista SétimoCéu. Era um prédiomoderno, de dois andares, que lembrava Brasília à beira do Araguaia.Dizem que foi abandonado pouco depois e que pegou fogo. Deve estarcaindoaospedaços,seéqueaindaexiste.Quandochegamos,algunsatoresda fotonovela estavamsentadosnobar ao ladoda recepção.E entre elesestavaocaciquekarajá.

Tentava convencerobarmana lhedarmaisumcopodeuísque.Obarmanrecusava-seefaziatroçadocacique.Osatoresdafotonovelariam.MeupaimefezofavordeanunciarqueeuerabisnetodomarechalRondonporpartedemãe.Umainformaçãoque,daliemdiante,eleusariasemprequeachassenecessário,comocartãodevisita,todavezquemelevavaparaaselva.Arevelaçãoteveumefeitoquaseimediato,eantesmesmoqueeupudesseentenderoqueestavaacontecendo,ocaciquebêbadojátinhaidoàaldeia,tomadodoprópriofilhováriospresentesquelhehaviadado(melembro sobretudodeum tacapeedeumcocar)eagora insistia, contraavontadedogerentenaportaria,emsubiraonossoquartoparaoferecê-losamimemsinaldeboas-vindas.

NumadascartasquenuncamandouaMargaretMead,escritaem4dejulhode1939,Quaindiziaoseguinte:"Otratamentooficialreduziuosíndios à pauperização. Há uma crençamuito difundida (entre os poucosquese interessampelos índios)dequeamaneiradeajudá-losécobri-losdepresentese'elevá-losànossacivilização'.TudoissopodeseratribuídoaAugusteComte,queteveumaenormeinfluêncianaeducaçãosuperiorlocale que, através do seu espetacular discípulo brasileiro, o já velho generalRondon,corrompeuoServiçodeProteçãoaos índios.Aindanãoconseguiestabeleceraconexãológica,masseiqueelaexiste".

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Meupailogoseengraçoucomumadasatrizesdafotonovela,quenoverãoseguinteeureencontrariaemPetrópolis,numfimdesemanaemqueele apareceu parame visitar, com ela e os dois filhos (o pai deles e ex-marido da atriz também tinha uma casa de veraneio na cidade), e mecomprou um forte apache de plástico para aplacar a decepção que meprovocou aquele reencontro. Na ilha do Bananal, enquanto a atrizfotografava para a revista, meu pai e eu, com o meu chapéu de Jim dasSelvaseummauhumormaisdoquecompreensívelnumacriançadeseisanosquesevê forçadaapassarosdiasa rondarpelamata,de jipeeemvoadeiras, sob um sol escaldante, saíamos à procura das terras que elepretendiacomprar.Houveumfinaldetardeemque,aovoltarmosàilhadoBananal, todaaequipeda foto-novelaea famíliadogerentedohotelnosesperavam para atravessarmos o rio até uma praia paradisíaca, de areiabranca, onde quem estivesse machucado (ou de calção vermelho— eraesseofolclore)ficavaproibidodenadar,paranãoatrairaspiranhas.Aindaassim,haviacardumesdepeixesmínimosquemordiscavamaspernasdosbanhistas e que a mim os adultos disseram ser filhotes de piranha,provavelmente parame assustar. Quando não estava com omeu pai, eubrincava com o filho do gerente do hotel, que devia ser um poucomaisvelhodoqueeu.Naocasião, estava sendoorganizadapelos irmãosVillasBoas, no posto Leonardo do Parque Indígena do Xingu, umaconfraternização entre tribos inimigas que se mantinham em estado deguerrahavia anos.OsVillasBoas tentavamatrairos índios txikãoparaoparque,paraterrordosWauráeYawalapíti,quejáestavamláfaziaanos.

Todos esperavam um acontecimento sem precedentes, umacerimôniaqueseriatransformadaemespetáculoexóticoparaumaplatéiade brancos. Equipes de jornalistas e fotógrafos nacionais e estrangeiroseram esperadas no posto Leonardo, assim como autoridades militares edemais convidados, todos transportados num DC-3 da FAB. Não sei dequemfoia idéia.Fomosdepenetras.Outalvezogerentedohotel tivessesido convidado. Saímos da ilha do Bananal bem cedo pela manhã, nomonomotordomeupai,eseguimosrumoaoXingu,sobrevoandoaflorestaeaserradoRoncador.Ogerentedohotel iana frente,noassentodoco-piloto;eueofilhodeleíamosnobancodetrás.AosobrevoarmosopostoLeonardo,vimosíndiosquenosapontavamecorriamparaapista.

O avião da FAB já estava lá. Quando pousamos, o monomotor foirodeadoporíndios,namaioriacriançasque,aoveremummeninodaidadedelas,imediatamentecomeçaramametocareaarrancarasminhasroupas,encorajadaspelomeupavor.Pormaisqueeugritasseouapelasseparao

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meupai,elenadapodiafazer,porquetambémestavaimobilizado,cercadode índios, e no fundo achava muito engraçado que eu estivesse sendolevadoembora—erabemprovávelqueestivessecheiodemimedomeumauhumor.Osindiozinhosmecarregaram.Eracomoseestivessenomeiode uma correnteza. Não adiantava resistir. Pelo que pude entender,queriamme ver nu,medeixar igual a eles. Fomos recebidospor umdosirmãosVillasBoas,jánãoseiseOrlandoouCláudio,quepediuaomeupaique dormisse comigo no avião. Já não tinham mais onde abrigar osvisitantesetemiamumareaçãoimprevistadosTxikão,quevinhamdeforapara o encontro. Apesar de baixinhos e franzinos, eram muito temidospelos robustos índios locais. Eram considerados traiçoeiros. Atacavam asaldeiasànoiteeroubavamasmulheresdosgrandalhões.AmulherdeumdoschefesdosTxikãotinhasidoroubadaaindameninadeumatribodosWaurá. Voltava depois de anos de ausência, casada. Era possível quehouvesseumconfrontoseafamíliadecidisserecuperá-la.

BastouanotíciadequeosTxikãoestavamseaproximandoparaqueosgrandalhõespintadosdeurucumecomoscabeloscortadosemformadecuia, entre Yawalapíti eWaurá, debandassem apavorados. Foi uma cenagrotesca.Osraquíticosvinhamarmadospelafloresta,saíamdomato,eosgrandalhõesfugiamouseagarravamunsaosoutroseseescondiamatrásdosbrancos.Naquelanoite, eu eomeupaidormimos,por segurança,nomonomotor, e na manhã seguinte acordei completamente molhado nobancotraseirodoavião.Aterrorizadocoma idéiados índiostraiçoeirosede uma onça que supostamente estaria rondando a aldeia, não tivecoragemdelevantarduranteanoite.Nãomelembrosetenteiacordarmeupai.Quandofomosemboranodiaseguinte,elesaiudecuecaserelógio.Osíndios ficaram com o resto. Não deixei nada meu. Estava farto daquelagente,nãoqueriadarnadadepresenteaninguém,emboratenhasaídodemãos cheias, depois de receber os indefectíveis tacapes, arcos, flechas ecocaresemhomenagemaomeubisavô,graçasmaisumavezàintervençãodomeupai.

Comosinaldedespedida,eleresolveudeúltimahorafazerumvôorasante sobreoposto.Naminha inconsciênciade criança,nemcheguei aficarcommedo.Eracomoseestivessenamontanha-russadeumparquedediversões. Eu pedia mais, para horror e constrangimento dos outrospassageiros,ogerentedohoteleseufilho.Sómelembrodeumamassadeíndios correndo para todos os lados, aterrorizados, e do frio na barrigaconforme descíamos de bico na direção do centro do posto. Imagino otemorcontroladodogerentedohoteleairritaçãodosirmãosVillasBoas,

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em terra, obrigados a aturar todo tipo de gracinhas e imbecilidades dosvisitantes.

A consciência do perigo só veio cinco anos depois. Eu estava comonzeanos.MeupaijátinhaoCessna310,umbimotor.Jáeraproprietáriode uma fazenda de sessenta mil alqueires no cerrado, ao sul da ilha doBananal,noriodasMortes,àqualdeuonomedeTracajá,edaSantaCecília,com mais de vinte mil alqueires, em plena floresta virgem, a cerca dequarentaquilômetrosdorioXingu,nomunicípiodeSãoJosé.OChiquinhodaVitoriosasaindanãotinhamorrido.Meupaiestavatentandoabrirumaestrada da Vitoriosas até a Santa Cecília. Saímos de caminhão paraexaminarasobras,levandoummecânicodeGoiâniaparatentarconsertarum dos tratores. Seguimos na caçamba de um caminhão que derrapavapeloatoleirodaquelemardelamaquechamavamcommuitaboavontadede estrada e subia e descia em ondas enormes no meio da floresta. Aestradaterminavanumaclareiradefrontedeumaparededematavirgem.Conforme nos aproximávamos, fomos aconselhados a fechar a gola e asmangas da camisa e a enfiar a bainha das calças dentro das botas. Odesmatamentodeixavaaselvaempolvorosa.Animaisepássarosgritavamportodaparte,ehaviaenxamesdeabelhaspretas,quecobriamosbraçosdos homens. Meu pai tinha me dito para não me mexer, tentar não meincomodarcomelasetorcerparaquenãoentrassemporbaixodacamisaouda calça. Eu só queria sair dali. O que estávamos fazendonomeio doinferno, por um trabalho inglório, que seria engolido empoucos anos?Agritarianaflorestaeraassustadora.EsperamosomecânicodarumjeitonotratorevoltamosparaaVitoriosas,comoobjetivodeseguirdeaviãoatéaSantaCecília.

Naquela altura, a fazenda não passava de uma pequena clareiracercada de selva, com uns poucos barracos e uma pista de pousomuitovagabundadeterra.Passamosanoitenumacabanaquenãochegavaatrêsmetrosquadrados, feitade troncos finosdeárvoreespetadosno chãodeterrabatida,quesustentavamumtelhadodefolhassecasamenosdedoismetrosdealtura.Haviaduascamas—naverdade,doisestradosdegalhosdeárvoresapoiadosemquatro forquilhas fincadasna terra.Porentreostroncos finosque formavamasparedes, podiamentrar cobras, lacraias eescorpiões.Anoite,faziaumfriodocão.Meupaidecidirapartirbemcedona manhã seguinte. Acordamos antes de o sol nascer, tomamos café eembarcamos com a bagagem. Já estava claro quando o meu pai deu apartida nos motores, mas o sol ainda não tinha despontado por trás dabarreiradeárvores.Opára-brisaestavaembaçadoecobertodeorvalho.Na

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sua imprudência, meu pai achou que bastaria o movimento do aviãocorrendopelapistaparadesembaçarovidro.Não foioqueaconteceu.Omecânico estava no lugar do co-piloto, e eu no banco de trás, distraído,lendoumgibi.Oaviãocorreupelapistade terraederepentecomeçouatrepidarmaisdoqueonormal.Meupai arremeteu.Nãopercebinadanahora.AidéiaerairmosatéaTracajáedeláatéGoiânia,ondedeixaríamosomecânicoeseguiríamosdevoltaparaSãoPaulo.Masmeupailogoavisouque, ao contrário do planejado, desceríamos na Suiá Miçu, uma fazendagigantesca, um verdadeiromundo, na época sob o controle acionário doVaticano,segundooquediziam,ameiocaminhoentreoXingueoriodasMortes. Perguntei ao meu pai o que era aquele barulho de uma coisaestalando na cauda do avião. Ele disse que devia ter batido contra umpássaroqualquerememandoucalaraboca.Nãose faloumaisduranteaviagem. Só ao nos aproximarmos da Suiá Miçu, quando a pista, talvez amelhordaregião,jáaparecianadistância,foiqueomeupaisevirouparaomecânico e paramim e anunciou que ia desligar osmotores para que ocombustível ficasse nos tanques na ponta das asas. Pediu que não nospreocupássemos.Recomendouaomecânicoqueabrisseaportaantesdeoavião tocar o solo e disse que, assim que batêssemos no chão, nós doisdevíamos nos atirar, porque o avião podia explodir. Larguei o gibi earregalei os olhos. Eu aindanão sabia oque tinha acontecido.Ao sair daSanta Cecília, quando tentava decolar, meu pai fez uma barbeiragem.Contava desembaçar o pára-brisa e não percebeu que já tinha saído dapistaeentradonafloresta.Foiquandoarremeteu.Jáestavacomotremdepousoavariadoenomeiodasárvores.Osfiosdasantenasderádioforamcortadospelascopasdasárvores.Obarulhonacaudadoaviãoeradosfiosquebatiamaovento.Porpouconãonosestraçalhamosdentrodafloresta.Agora, o bimotor descia planando, com os motores desligados e o bicolevantado.Nãomelembroseomecânicoabriuaindanoaraportasobreaasa.Euestavaempânico.Oaviãobateudebarriganochão,jáqueotremdepouso estava solto. A asa esquerda foi arrancada com o impacto, eacabamos entrando de bico num barranco de terra do lado esquerdo dapista. Ninguém se jogou. Ninguém se machucou. O mecânico desceu. Eudescicomaspernasbambas.Sóquandojáestavanochãoéquecomeceiachorareagritar,numacrisehistérica,pedindoaomeupaique saíssedoavião.Omais incríveléque,naminha lembrança,elesaiude lásorrindo.Eraumsorrisoamarelo,talvezdealívio,talvezparaencobriromedo.Logochegaramoscarrosdoadministradordafazenda,quedepoisdeconstatarqueninguémtinhasemachucado,nosconvidouparaalmoçar,medeuum

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calmante e mandou um dos empregados nos levar até um povoadopróximo, onde poderíamos pegar um táxi aéreo. Levamos umas quatrohoras,senãomais,porumaestradadeterra,eoúnicoaviãodisponívelnopequeno campodepousoeraum fatídicoBonanza, comsua caudaemV,reputado pela falta de estabilidade. Nunca vomitei tanto como naquelaviagem até Goiânia, onde dormi por vinte e quatro horas ininterruptas,graçasemparteaosefeitosdocalmante.Quandoacordei,meupaimedisseque por pouco não tinha chamado um médico. Achou que eu estavamorrendo.Nodiaemqueacordei,amanchetedosjornaiseraatragédiadeumaviãodaVarigque se incendiaramisteriosamentena rotadedescidapara Orly, matando boa parte dos tripulantes e todos os passageiros, àexceção de um. O jornal trazia as fotos das celebridades mortas. E dealgumaformaassocieiagrandetragédiaaonossopequenoacidente,comose houvesse alguma conexão incompreensível entre os dois. O Xingu, emtodocaso, ficouguardadonaminhamemóriacomoa imagemdo inferno.Nãoentendiaoquederanacabeçadosíndiosparaseinstalaremlá,oquemepareciadeumaburriceincrível,senãoummasoquismoemesmoumaespéciedesuicídio.NãopenseimaisnoassuntoatéoantropólogoqueporfimmelevouaosKrahô,emagostode2001,meesclarecer:"VejaoXingu.Porqueosíndiosestãolá?Porqueforamsendoempurrados,encurralados,foramfugindoatéseestabeleceremnolugarmaisinóspitoeinacessível,omais terrível para a sua sobrevivência, e aomesmo tempo a sua única eúltimacondição.OXingufoioquelhesrestou".

ComeceiaprocurarinformaçõessobreosKrahôpoucodepoisdeterlido pela primeira vez sobre o suicídio de Quain no artigo de jornal. Namadrugada de 25 de agosto de 1940, um domingo, um ano depois dosuicídiodoetnólogo,aaldeiaemquehaviapassadoosseusúltimosmesessofreuumataquedeonzehomensarmadoscomrifles,sobocomandodedois fazendeiros, José Santiago e João Gomes, do município de PedroAfonso, na época pertencente ao estado de Goiás, que arquitetaram aemboscadacomminúciasde traiçãoeperversidade, comovingança,paradar uma lição aos índios que roubavam seu gado. No côm-puto final dachacina, que também teve por alvo outra aldeia, morreram vinte e seisíndios,entrehomens,mulheresecrianças.Antesdeatacar,osfazendeirosofereceramumboiàaldeiadeCabeceiraGrossa,prevendoqueosíndiossereuniriam para dividir a carne. Era uma armadilha. Atacaram aoamanhecer,quandohomens,mulheresecriançascomiamdistraídos.Pegosde surpresa, os índios tentaram fugir pelo mato. Alguns passaram diasdesaparecidos. Foi o caso do velho Vicente, que ainda era um rapaz e

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conseguiuescaparnacorreria.QuandovisiteiosKrahô,emagostode2001,eleme contou a sua versão da história (não havia conhecidoQuain, poisestava trabalhando para os brancos, no Pará, durante os meses que oamericanopassounaaldeia).Mulheres foramtrucidadascomcriançasaopeito.Aoserematacados,ochefeLuísBalbinoaindapediuparafalarcomosfazendeiros,masfoiassassinadopelosagressores,quepilharamaaldeia,levandotambémosobjetosdadosporQuain.SobpressãodoEstadoNovo,os fazendeiros foram julgadose condenados, embora tenhamcumpridoapenaemliberdadecondicional.Oepisódioacaboulevandoàdelimitaçãodoterritório krahô e à criação do posto indígena Manoel da Nóbrega peloServiçodeProteçãoaosÍndios.Osreflexosdotraumadomassacreforamimensos e po-dem ser detectados até no movimento messiânico que sedesenvolveu entre os Krahô por volta de 1952, em outra aldeia. Umvidente, ao que tudo indica sob efeito damaconha, passou a profetizar odesaparecimentodosbrancoseatransformaçãodosíndiosemcivilizados,acontecimentos que lhe eram anunciados em experiências sobrenaturaispelodeusdachuva.Omovimentoperdeucredibilidadequandoasprofeciasnãoserealizaram.

Na minha busca por informações sobre os Krahô, acabeiencontrandoumcasaldeantropólogosque,tendoestudadoevividoentreelespormaisdedoisanos,decidiucriarumaorganizaçãoindependentedeassistênciaaosíndios,comsubsídiosnacionaiseinternacionais.Marcamosumencontro na sede da organização em SãoPaulo. Eu lhes contei o queprocuravae,paraminhasurpresa,medisseramqueconheceram,jáidoso,umdosdoisíndiosqueacompanhavamBuellQuainnanoitedosuicídio.

NotempoemqueviveramentreosKrahô,osdoisantropólogosmaisde uma vez foram abordados pelo velho João Canuto Ropkà, a lhesperguntar se não tinham ouvido falar do dr. Quain Buele, o etnólogoamericanocujamorteelehaviapresenciado.

Demoraramparagravaronome.Ouviamashistóriasdovelhosemlhe dar muita atenção, o que o deixava ao mesmo tempo espantado econtrariado com a ignorância dos brancos a respeito de um dosacontecimentos mais extraordinários e traumáticos de sua vida. Para ovelho,eraincrívelquebrancosnãosoubessemquemtinhasidoodr.QuainBuele,me disse o casal de antropólogos quando nos encontramos, numasalarepletadepilhasdepapéis,arquivosedemapascomdemarcaçõesdeterrasindígenasespalhadospelasparedes.

Aquelaaltura,eujáestavacompletamenteobcecado,nãoconseguiapensaremoutracoisa,ecomotodososqueeuhaviaprocuradoantes,eles

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tambémnãoquiseramsaberporquê.Ninguémmeperguntavaarazão.Eudiziaquequeria escreverumromance.Diantedomeuentusiasmo,queaoutros podia parecer doentio e inexplicável, acho que os dois de inícioficaram apenas um pouco ressabiados. Eu queria visitar os Krahô e,sepossível, o localdo suicídio.Elesouviramaminhahistóriaemsilêncio,trocando de vez em quando olhares que podiam ser de desconfiança ousimplesmente de cumplicidade. É possível que a princípio quisessem seassegurardasminhas intençõesemrelaçãoaos índios.Oantropólogomedisseque,porcoincidência,estavacomumaviagemmarcadaparaCarolina.Organizavaumencontroentreosrepresentantesdeváriosgrupostimbiradaquelaárea—nãosóosKrahô,mastambémosCanelaeosGavião.Disseque eu podia ir com ele, se quisesse. Tinha prometido aosKrahô levar ofilhomais velhopara a aldeia quando acabasse a reunião emCarolina.Orapaz,devinteepoucosanos, sobreviveraaumaoperaçãopara resolverumproblemacongênitonocoração.Depoisdeváriosadiamentosaolongodainfânciaedaadolescência,resolveramporfimoperá-lo.Acirurgia,quenão era simples nem sem riscos, foi bem-sucedida, e os índios, emagradecimento, queriam comemorar o renascimento do menino, queconheciamdesdepequeno.

Porumaestranhacoincidência, jáqueaassembléia timbiraacabousendomarcadaparaosdias31dejulhoe1ºdeagosto,anossaidaparaaaldeiateriaqueficarpara2deagosto,omesmodiaemqueBuellQuainsesuicidara, sessenta e dois anos antes, quando tentava fazer o caminhoinverso.Oantropólogoeo filho jáestavamhaviaalgunsdiasemCarolinaquando cheguei, depois de um vôo com escalas em Brasília, Palmas eAraguaína,ondemeesperavaummotoristadetáxiquenãoparoudefalarumsegundoduranteopercursodepoucomaisdeduzentosquilômetros,porumaestradaquase inteiramente asfaltada, que cortavao cerrado emmeioachapadas,sobosolinclementedasduasdatarde.

Carolina é um lugar morto, como disse Quain ao desembarcar alipela primeira vez, mas que tem a sua graça, ainda mais hoje, por serresultadodeuma tranqüiladecadênciaeabandono, comose tudo tivesseparado e sido preservado no tempo. A estrada que vem de Araguaínadesembocaemfrenteàcidade,dooutroladodoTocantins,noquearigornão passa de umpovoado, nãomais que umas poucas ruas,mas ao qualderam o nome extraordinário e inverossímil de Filadélfia. Quando o rio,caudalosomesmonaestiagem,seabriuànossafrente,conformedescíamosparapegarabalsa,eeupudeveropequenoportonamargemopostaeoestaleiro Pipes, fui imediatamente tomado por uma sensação sinistra de

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reconhecimento,comoseeujátivesseavistadoaquelapaisagemantes.Eraexatamente o mesmo cenário de fundo que eu tinha visto na foto dachegadadeQuainàcidade,publicadanaprimeirapáginadaediçãode18deagostode1939d'0Globo, quenoticiavacomalgumatrasoamortedoetnólogo: "Flagrantes sensacionais do cientista suicida nas selvas doBrasil".

Quem sobe do porto tem que passar pela avenida Getúlio Vargas,umaalamedademangueirasqueterminanaigrejamatriz.Apousadaondemehospedei ficaapoucosmetrosdaantigacasatérreadeManoelPerna,hojedesfiguradapelosazulejoseesquadriasdealumínio.Nofinaldatarde,osmoradoresacaloradospõemascadeirasnacalçadadefrontedascasaseficamconversandonoite adentro. Foi na casadeManoelPernaqueBuellQuainencontrouuminterlocutoratentonasnoitesquepassouemCarolinaaodesembarcaremmarço,edepoisemsuapassagempelacidadenofinalde maio e início de junho, quando veio buscar cartas, dinheiro emantimentos,ecomemoraroseuaniversário.Foiparaláqueacomitivadeíndios se encaminhou dois meses depois, para anunciar a tragédia eentregarospertencesdomortoaoengenheiro.

Mal vi o antropólogo no dia em que cheguei. Ele estava muitoocupadocomosíndios.Combinamosnosencontrarnodiaseguinteàhoradoalmoço,nosarredoresdacidade,ondeestavamreunidososKrahô.EleprometerameapresentarumvelhoquehaviaconhecidoQuain.Fiqueicomamanhãlivreparairatrásdaspistasdeumaeventualinvestigaçãosobreamorte do etnólogo, algum documento que tivesse restado arquivado noscartórios ou no fórum da cidade. Não achei nada entre os papéis que seesfacelavam como pó entre os dedos, processos de homicídios, crimespassionais e por dinheiro, brigas familiares e suicídios, esmagados empastas empoeiradas no alto de estantes esquecidas em cômodos semjanelas, verdadeiras fornalhas nos fundos de casas antigas e térreas nomeiodosertão.Perambuleipelacidadedeserta.Faziaumcalordequarentagraus. Acabei na igreja matriz. A porta estava fechada, mas alguém quepassavadebicicleta,aomevertentandoentrar,sugeriuqueeuprocurasseo padre numa casa verde do outro lado da rua. Fui recebido por umassistentedaparóquia.Pergunteiseerapossívelvisitaraigrejaesubirnatorre.Queriatirarumafotopanorâmicadacidade.Orapazmedeuachavedeumaporta lateralepediuqueadeixassependuradanumprego logoàentradadaparóquia, seporventuranãooencontrassealinaminhavolta,aoterminaravisitaàigreja.Eleestavaprestesasairparaoalmoço.Anaveestavaemobras,eointeriordatorrepareciainacabado.Haviapedaçosde

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madeira por todos os lados. As paredes eram de tijolo aparente, semrevestimento, e havia uma escada de cimento que subia por elas,contornandoovãodecercadedoismetrosdelargura.

Comecei a subir semmaiores problemas. Sempre senti uma certaafliçãodealtura,que,noentanto,nuncatinhachegadoaassumircontornosdefobia.Conformeeusubia,noteiqueaespessuradosdegrausdecimentoiadiminuindocomaaltura.Umtrabalhoporcodealvenaria.A impressãoeraquenoaltoaescadafininhanãosustentariamaisopesohumano.Nãohaviacorrimão,eeucomeceiameesgueirarpelasparedes,suandojásemsabersedecaloroudemedo.Evitavaolharparaovãocentraleparabaixo.Derepente,levantarapernaparaalcançarodegrauseguintepassouaserum esforço, e aos poucos eume vi engatinhando pelo cimento irregular.Quandoporfimchegueiaocampanário,descortinou-seàminhafrenteumapaisagemextraordinária.HaviaaavenidaGetúlioVargas,comascopasdesuasmangueirascentenáriase,àdireita,oTocantins,quecorriacaudalosopela mata na direção das chapadas ao longe. Volta e meia uma figurasolitáriapassavaláembaixo,escondidasobumasombrinha.Euestavasó.

Nãoseouvianadaalémdovento.Nuncahaviasofridodevertigem,eeracomoseagorativessepelaprimeiravezaconsciênciadaminhafaltadecontrolesobreomeucorpo,comoseumaforçaexterioràminhavontadepudessemeatirardeumahoraparaoutradeládecima.Emalgumlugaraosuldaquelavastidãotoda,estavamenterradososrestosdeBuellQuain.Fizasfotosedescisentadopelasescadas,umdegrauporvez.Devolviachaveaoassistentedopadre,queaindaestavanacasaparoquialenãoesperavame rever tão cedo. Não contei a ninguém sobre aminha ida à igreja. Aomeio-dia, como combinado, peguei um táxi e fui à assembléia timbira,organizadanumcaramanchãoadezoitoquilômetrosdacidade,depoisdeumareaiàdireitadequemseguepelaestradaquevaiparaImperatriz,numlugarchamadoUrupuxete.MinhaidéiaeraconversarcomovelhoDiniz,oúnico Krahô vivo que conhecera Quain, quando ainda eramenino, e quepodiamefalarsobreolocalemqueoetnólogoforaenterrado.Ovelhonãovivianaaldeiaparaondeoantropólogoestavame levando.Aassembléiaeraaúnicaocasiãoqueeuteriaparaentrevistá-lo.

Chegueicomosíndiosalmoçando.OvelhoDinizestavasentadonumbanco comprido, à extremidade de uma mesa grande em que uns vintecomiam macarrão com arroz e feijão. O filho estava a seu lado. Era umsujeitodecaramarcada,alto,queoacompanhavaportodaparte.Osdoisestavamsemcamisa,deshortesandáliahavaiana.

Assim que o velho terminou o almoço, o antropólogo aproveitou

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para nos apresentar. Sentamos num canto do caramanchão e logo fomoscercadosporoutrosíndioscuriososedesconfiados.Nocomeço,acheiquejásabiamoqueeuqueriaeestavamaliparameintimidaredarapoioaovelho, mas aos poucos fui compreendendo que não sabiam de nada.Estavam tão curiosos quanto eu. Eram jovens, sabiam que alguma coisaséria,quepodiaprejudicá-los,tinhaacontecidonumpassadoremoto,masnão sabiamexatamenteoquê. Se o cercavam, era aomesmo tempoparaprotegê-loecontrolá-lo,paragarantirquenãorevelariacoisanenhuma,seéquehaviaalgoaserrevelado.Tireiogravadordobolso.Foiotempodeovelho apontar para o aparelho e dizer sem a menor cerimônia: "Estouprecisando de um desses". Fiquei sem ação. Olhei para o antropólogo,desamparado.Malacabavadechegarejánãosabiacomoreagir."Eoúnicoque eu tenho, e eu preciso dele para traba-lhar", respondi, seguindo osconselhos que o antropólogo haviame dado sobre como agir em relaçãoaosbenspessoaisdetrabalhoqueeunãoquisessedeixarpelocaminho,jáque teria de abrir mão de todos os outros que me pedissem, para nãoparecergrosseiroeevitaromal-estardeeventualmenteserroubado.MasovelhoDiniz,percebendoomeuconstrangimento,nãosedeuporvencido:"Você não entendeu. Não quero o seu gravador. Quero um igual a esse".Tenteimemanterfirme:"Eoúnicoqueeutenho".Aoqueovelhorebateu:"LáemSãoPaulovocêcompraumigualzinhoemandapelocorreio".

A conversamal tinha começado e já começavamal. O antropólogoveioemmeuauxílio. Interrompeuaquelediálogoquedeoutromodonãoteria fim— jáque tantoeu comoovelho sabíamosoqueooutroestavadizendoenãoqueríamosentender—eperguntouaoDinizsobreahistóriado "etnólogo americano", como quem não quer nada, como se aquilotivesselhepassadoderepentepelacabeçaenãofosseomotivodaminhapresençaali.Oiníciodaqueleencontroeaevidênciadaminhafaltadetatomedeixaram tão semaçãoquenão consegui ligar ounãome lembrei deligar o gravador quando o velho Diniz respondeu: "Cãmtwyon". O quê?Olheiparaoantropólogoàcatadeumatraduçãoedepareicomseusolhosigualmente cheios de surpresa, cumplicidade e algum entusiasmo. "E onome!",elemedisse,excitado."Ecomoeleschamavamoamericano."Pediqueelerepetisse.Ovelhorepetiu,eoantropólogoescreveunomeublocode anotações. "O que significa?", eu queria saber. Mas ninguém sabia aocerto.Ovelhosórepetia:"Cãmtwyon,Cãmtwyon".Passeiorestodaviagemtentandoencontraralguémquemedecifrasseosignificadodaquelenome.Dois dias depois, quando chegamos à aldeia, Sabino Côjam e CreuzaPrumkwyi,queentreosjovensformavamocasalmaisativoeinteressado

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no estudo da própria língua, "os intelectuais da aldeia", como tinhabrincado o antropólogo ao apresentá-los a mim ainda em Carolina, medisseram que "twyon" queria dizer lesma, o caracol e seu rastro. Oantropólogo jáhaviameditoque "cãm"eraopresente,oaqui eoagora,mas ninguém conseguia saber o sentido da combinação daquelas duaspalavras.O antropólogome explicou que, ao contrário do que costumampensarosbrancos,osnomesdosíndiosnemsemprequeremdizeralgumacoisaesobretudonadatêmavercomapersonalidadedapessoanomeada.

Fazempartedeumrepertórioesãoatribuídosaoacaso.Euteriaquevoltarpara SãoPaulo sem saberoque significava aquelenome.Masnãoconseguia aceitar que não revelasse alguma coisa sobre o próprioQuain,quenãohouvessenenhumarelaçãoentreonomeeapessoa.Decidi-meporumainterpretaçãoselvagemeumtantomoral:"Cãmtwyon"passouaser,paramim,aomesmo tempoa casado caracol eo seu fardonomundo, acasca que ele carrega onde quer que esteja e que também lhe serve deabrigo,oprópriocorpo,doqualnãopodeselivraranãosercomamorte,oseuaquieoseuagoraparasempre."Cãmtwyon"passouaserparamimorastrodocaracol:nãoadiantafugir,aondequerquevocêváestarásempreaqui. A imagem me fez lembrar um texto de Francis Ponge sobre oscaracóis:"Aceita-tecomotués.Deacordocomosteusvícios.Naproporçãodatuamedida".

"FoiCraviroquemlhedeuonome",completouovelho.LuísBalbino,ochefedaaldeiaqueseriaassassinadonomassacreum

anodepoisdamortedeQuain,estavaprovavelmenteentreos índiosqueposaramaoladodoetnólogosobreaasadohidroaviãodaCondornodiadasuachegadaaCarolina.Foielequemolevouparaaaldeia.QuaincomproumuitacoisaemCarolina:comida,brinquedosdepresente,armaemuniçãona loja do comerciante e fazendeiro Justino Medeiros Aires, um dos"intelectuais"aqueoantropólogohaviasereferidonacartaqueescreveuaRuthLandesnamanhãdesuapartidaparaaaldeia.Justinotinhasidovice-presidentedoGrêmioLiterárioCarolinensenajuventude.Eradeleumdosdiscursos em homenagem a Humberto de Campos na cerimônia a que oetnólogoassistiuem8demarçode1939:"Humberto,oadolescente"."FoiJustino quem deu amunição para omassacre dos Krahô", disse o velhoDiniz.Aochegaremàaldeia,Balbinoindicouaoantropólogoqueficassedeinício na casa de Mundico, até que erguessem uma cabana para ele. OamericanofalavamaiscomBalbinoeMundico,porqueeramosquemelhordominavam o português. Mundico tinha sido levado por um pastor paraIta-cajá,ondeforaeducadoantesdevoltaràaldeia.Fiqueinadúvidasenão

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eradele(dopastoroudopróprioMundico)queBuellQuainestavafalandonorelatórioquedeixousobreosKrahôaomencionar"a influênciadeumhomem particularmente sofisticado de trinta e cinco anos que ensinavadanças brasileiras aos índios". Diniz era apenas um menino queacompanhavaospassosdoantropólogocomcuriosidade.

Observava tudo. A aldeia tinha se instalado fazia pouco temponaquelelugar,quechamavamCabeceiraGrossa.Quainrecenseouduzentosedezindivíduos.Nodiaseguinteàsuachegada, foiaoriotomarbanho,eDiniz,queoespreitava,oviurasparacabeça.Oetnólogonãocomiacomosíndiosenãoaceitavaacomidadeles.Nãocomiabeiju.Tinhaoseupróprioarroz. Uma vez, ajudou numparto, deu nome ao recém-nascido e trouxepresentes. Mas não costumava participar de nada. Escrevia por diasinteiros. "Fumava feito um doido. Fumo de corda", disse o velho. Bebia?"Não.Nãobebia."Tocavadiscosparaaaldeiaecantava.Haviaummeninoque cantava para ele as canções da aldeia. "Chamava-se Zacarias. Estámorto",disseovelho.PergunteiseelesabiaporqueBuellQuainhaviasematado."Achoqueficouloucodepoisquerecebeuumascartas.Dissequeamulher tinha traídoele como irmão.Daíparaa frente sóarrumava suascoisas,nãofaziamaisnada,nemfalavacomninguém.Umdiadissequeiaembora,nãomuitotempodepoisdeterrecebidoascartas.Contratoudoisrapazes,JoãoCanutoeIsmael—estãotodosmortos—,foiatéopátioesedespediu. Saíram de manhã." As contradições entre a versão oficial e orelatodovelhoDinizdizemrespeitosobretudoàsdataseàsincroniadosacontecimentos.Segundoovelho,ostrêschegaramnofinaldatardeaumbrejo,umlugarondehaviaágua,umcórregoprovavelmente,eoetnólogopediu para parar. Disse que não podia seguir emfrente, estava cansadodemais.

Achouapaisagembonita,"umlugarencantadorparaasuamorada",segundorelatodeManoelPernaadonaHeloísa,combasenoqueosíndioslhecontaramaochegaraCarolinaumasemanadepois,apreensivos,eoqueorepresentante localdoBancodoBrasil,CarlosDias, confirmounacartaquemandoupara oRiode Janeiro, comadiferençadequena versãodovelhoDiniz tudo teriaacontecido logonaprimeiranoite.Seéquesaírammesmodaaldeianodia31,eajulgarpelosnoventaquilômetrosqueaindatinhampelafrenteatéCarolina,jáhaviamandadotrêsdias,contandocercade trinta quilômetros diários. Segundo a versão oficial, o antropólogo sematounanoitedodia2,emboraemumadesuascartasamãefaledamortedofilhonofinaldeumatentativainglóriadechegaràcivilizaçãodepoisdequatrodias de caminhada. "Eles pousaramnomato. Ele disse que já não

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agüentava continuar. Os dois rapazes fizeram para ele uma barraca depalha", disse o velho Diniz. Foi aí, no final da tarde e noite adentro, queBuellQuainescreveuasúltimascartas,sempre"chorandocopiosamente",segundo o relato deManoel Perna. Entregou um bilhete a João Canuto emandouqueeleolevasseatéafazendamaispróxima.Oíndioobedeceu.Ooutro rapaz teria ficado com o etnólogo, dormindo. Tambémhá algumascontradiçõesinternasnorelatodeDiniz,oqueénormalparaalguémqueapenasouviuahistórianainfânciaearepetemaisdesessentaanosdepoissem nada ter presenciado. Segundo ele, por exemplo, Quain "foi secortando todo, ainda de dia, descendo sangue" e depois "queimoudinheiro", enquanto escrevia suas cartas, o que o faz concluir que oantropólogo tenha ficado louco. Na versão oficial, o etnólogo teriaqueimado todasas cartasque recebera,nãodeixandonenhumapistadassupostas razões que o teriam levado ao suicídio. "Da correspondênciarecebida e que tanto mal lhe causou, nada disse a ninguém e nunca arevelou aos índios, e depois de lida, queimou-a, reduzindo-a a cinzas",escreveuCarlosDias,obanqueirodeCarolina,aoprestarcontasaHeloísaAlbertoTorres.Quainsecortounopescoçoenosbraços.Massecomeçouasemutilaraindadedia, comomedisseovelhoDiniz, comoéquenão foivistopeloíndioIsmael,queteriaficadoaoladodeleenquantoooutrotinhaido levarseubilheteà fazendamaispróxima?Nosrelatosoficiais, Ismaelestava dormindo e fugiu ao acordar e deparar com a cena dantesca deQuain todo ensangüentado. João Canuto não sabia o teor do bilhete quelevava para Balduíno, proprietário da fazenda Serrinha. Balduíno tinhasaídoquandooíndiochegou.

Ninguémnafazendasabia ler.Nobilhete,oantropólogopediapáeenxadaparacavarumasepultura,poisqueriaserenterradoalimesmo,"nolugar onde ficasse morto". Ao voltar para o acampamento sem pá nemenxada, João Canuto o encontrou todo cortado com navalha eensangüentado. Horrorizado, implorou ao etnólogo que parasse de semaltratar,quenãofizesseaquilo,quenãomorresse.Ficouatônitodiantedoestado deplorável do jovem americano. Perguntou por que ele estava secortando,eotresloucadorespondeuque"precisavaamenizarosofrimento,extinguirasuadorcruciante",jánãopodiaseguiremfrente,nãotinhacaraparachegaraCarolina.

Nenhumdos relatosdeixa claro se a vergonhaaque se referia emseu desespero dizia respeito ao fato hipotético de ter sido traído pelamulher ou se não podiamais encarar omundo agora que já estava todocortado,depoisdasuatentativaintempestivadesuicídio.Comose,aovero

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índio de volta, por um lapso tivesse recuperado a consciência, depois doseuatodeloucura,epercebessequejánãopodiavoltaratrás.

Assustado, João tambémfugiu.Voltouà fazendaSerrinhaembuscade ajuda. Quando retornou na manhã seguinte, acompanhado pelofazendeiro Balduíno e por outros vaqueiros, encontrou o etnólogopendurado numa árvore arqueada, sobre uma poça de sangue. "Ele seenforcoucomacordadaredenumpaugrosso,inclinado,quandoosíndiosfugiram",disseovelhoDiniz.Foienterradoalimesmo,comohaviapedido.Abrirama covae, depoisde fechada,marcarama sepultura com talosdeburiti.

Nuncanenhumapolícia ou autoridade foi ao local.O corponão foiexumado.Nãohánenhum inquérito arquivado emnenhumdos cartóriosou no fórum de Carolina ou Pedro Afonso. Na delegacia de Carolina, osprocessos anteriores a1980 foram queimados. Os pedidos de HeloísaAlberto Torres para quemarcassem a sepultura no caso de algum dia afamíliaquererprestarumahomenagemaomortonuncaforamatendidos.Peloquesesabe,ninguémnuncavoltoulá.

Quain não tinha nenhum irmão. Antes de viajar para Carolina, noinício de agosto, tentando localizar a família de Manoel Perna, acabeiachando na lista telefônica a filha mais velha, Raimunda, que vivia emMiracemadoTocantins.Elamedisseque,peloqueosíndiosrelataramaoseu pai, a razão do suicídio de Quain tinha sido a descoberta de que amulher o teria traído com o cunhado. Foi um choque ouvir aquilo pelaprimeiravez,eaindamaisquandotiveemmãosainformaçãodeque,entreas cartasquedeixouao sematar, haviaumaparaomaridoda irmã—enenhuma para a própria ou para a mãe. Quando relatei o caso àantropólogaquemedespertaraparaahistóriacomseuartigodejornal,elamealertousobreofatodeostermos irmãoecunhadopoderemter,entreos índios, umsentido simbólicoou classificatório, ou seja, estar ligadosàtransmissãodonome,enadateremavercomoparentesco.consangüíneo.Irmãooucunhado,segundoela,poderiaserapenasumamigo,alguémdocírculoderelaçõesdeQuain.Eeutivedelembraraelaque,parainíciodeconversa,atéondenóssabíamos,nãohavianenhumamulher.Quainpodiasedizercasadoparaalcançarseusobjetivospráticoseprotegerasuavidaprivada(sópodiaseresseocasodamençãodoseuestadocivilnopedidode autorização de pesquisa que enviou ao Conselho de Fiscalização dasExpediçõesArtísticaseCientíficas logoquechegouaoBrasil, assimcomodo que dizia aos índios, para evitar perguntas ou situaçõesconstrangedoras),masnoíntimotambémpodiaestarsereferindoaoutra

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pessoa—eporquenãoàprópriairmã?Um amigo descrente a quem acabei narrando a história me diria

mais tarde, rindo: "É impossível. Seria muito rodriguiano", fazendoreferênciaàssituaçõesincestuosasdaspeçasdeNelsonRodrigues.Defato,a sobrinha e o sobrinho de Quain nasceram em 1928 e 1932,respectivamente, o que significa que a irmã já estava casada desde aadolescênciadofuturoetnólogo,ouseja,ocunhadojáfaziapartedafamíliahavia mais de dez anos quando Buell se matou, e dificilmente algumanovidadenocomportamentodelepoderiaservirdemotivoparaosuicídiodoantropólogo.A idéiadequeo cunhado tivesse traídoa irmãdeQuaincom outra mulher nessa época, ainda que não possa ser descartada,também não é das mais plausíveis, pelo menos como motivo para osuicídio.

Logo após a morte de Buell, sua mãe vai passar as festas com afamíliadafilhanoOregon,enadaparecetranspareceremnenhumadesuascartas, embora também não seja umamulher determinada a enxergar averdade do que a cerca ou a deixar que os outros a vejam. De qualquerjeito, é difícil pensar que tentaria se refugiar da tristeza e da solidão seaproximandodapresumidacausadosuicídiodofilho.Nãoépossívelque,se havia alguma coisa, nada tenha transparecido em nenhum gesto, emnenhumapalavra.

Nãodeixade serummistérioqueentreas sete cartasescritasporQuain nas horas que precederam o suicídio uma fosse endereçada aocunhado.Oetnólogonãoescreveuàmãeouàirmã.Apenasaoshomensdafamília. E possível também que fossem cartas em que pedia ao pai e aocunhadoquecuidassemdamãeedairmã,agoraqueelenãopoderiamaiszelar por elas.Mas a idéia de uma relação ambígua com a irmã, emboraimaginária, nuncamais me saiu da cabeça, como uma assombração cujaverdadenuncapodereisaber.

No dia 13 de setembro de 1939, Marion Quain Kaiser, a irmã deBuell, escreveu,deChicago,uma carta estranhíssimaaRuthBenedict. "Jáqueminhamãetemsecorrespondidocomasenhora,nãosentiquehavianecessidadedelheescrever.Masasuacartaquechegouhojeendereçadaàminha mãe me convenceu de que preciso esclarecer a questão dotestamento de Buell, se eu puder. Em primeiro lugar, meu pai, que lheescreveu de Seattle, logrou afastar-se mais ou menos da família ao sedivorciardaminhamãedemaneirainsensatanoúltimoinverno.Nuncaseinteressou pelo trabalho ou pelos objetivos de Buell. Temo que essatragédia não o tenha atingido como a nós. Entretanto, o fato de Buell

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desejarqueseusinvestimentosfossemrepassadosàsenhorapreocupouomeupai,jáqueelesempreseimportoumuitocomDINHEIRO."

Maisumavez,depoisdamortedeQuain,aquestãoeraodinheiro.Na carta que deixou para Ruth Benedict ao morrer, pedindo ao mesmotempo que por segurança ela a desinfetasse antes de lê-la, assim comoalertoudonaHeloísanacartaque lheescreveunamesmacircunstânciaeocasião("Estoucomumafebrequepodesercontagiosa.

Esterilize esta carta"), o etnólogo dizia: "Voumorrer. Desculpe-meporterfracassadotãodesafortunadamentenoprojetobrasileirodepoisdetantotê-lapreocupado.Mastenhocertezadequehámalesquevêmparabem.Muito trabalho aindapode ser feito noBrasil—desejo boa sorte etodoomeuafetoavocêpessoalmente.Precisolhepedir(medesculpeporisso) que, à exceção dos quatro mil que desperdicei no Brasil e que lhepertencem,meudinheirosejaentregueàminha irmãeàminhasobrinha,queestãoquebradaseprecisamdele.Vocêreceberáestacartabemdepoisdaminhamorte.Osíndiosestãoasalvo,peloqueficomuitofeliz".

Asalvodequê?Oudequem?Boa parte do que o etnólogo deixou vinha de um seguro.Na carta

queescreveuaBenedict,Marion semostrava irritada coma idéiadequealgo em sua correspondência com o irmão o tivesse levado ao suicídio:"Não posso entender o que deu em Buell para achar de repente que euprecisava do dinheiro dele. Só espero que o relato sobre as cartas quereceberaequeodeixaramtranstornadosejafalso.Masanotaqueelelheenvioudáaentenderquefuieuacausaqueolevouadecidirqueeleseriamaisútilatodosseestivessemorto.SeiquenormalmenteBuellnãoseriatão tolo. Fico doente só de pensar que alguma bobagem que eu tenhaescrito possa ter desencadeado tudo. O fato de que nenhum de nósprovavelmente jamais conhecerá os fatos torna ainda mais difícil nosdesembaraçarmos deles. Não estou quebrada e certamente não estoudesesperadamente necessitada de fundo nenhum. E Buell também sabiadissomuitobem".

MarionexortavaRuthBenedictaficarcomodinheiroeausá-lonapesquisa antropológica, como queria o irmão. "Pelomenos, o trabalho deBuellserápublicado,etalvezoutraspesquisaspossamserrealizadascomodinheirodele."AnexouàcartaumdocumentomanuscritoemquecediaaRuthBenedict todoodireitodebeneficiáriados investimentosdo irmão."Meupaiébemcapazdeforjarumsofrimentoprimorosoemsituaçõesemque haja algo a ganhar. Por favor, não deixe que ele ou qualquer outrapessoamudeorumodalei."

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SaímosdeCarolinapelamanhã,numacaminhonetecomtraçãonasquatrorodas.Oantropólogoianafrente(eraelequemdirigia),aoladodeum Krahô cafuzo e de sua mulher branca, os três na cabine coberta,protegidosdosoledapoeira.Atrás,nacarroceriaaberta,íamoseu,ofilhodo antropólogo e um grupo de dez índios, entre mochilas, malas,mantimentos,sacosplásticoscompedaçosdecarneexpostaaosoleoutrastraquitanas.Eu ia empé, emsilêncio, comosolhos fixosnohorizonte, jáqueemalgumlugarváriosquilômetrosànossadireita,aseguiromapanãomuitoprecisooudetalhadoqueeutinhatrazido, ficavaotúmulodeBuellQuain,esquecidonomeiodocerrado,deondeosol,osventoseaschuvashaviamuitodeviamtervarridoostalossecosdeburiti.

Viajamos durante cinco horas pelo cerrado, atravessando rios eareais. A certa altura, a trilha de terra começa a seguir paralela ao rioVermelho,quenofinaléprecisocruzarapé,comáguaacimadacinturaeas malas na cabeça. Mas aí já estávamos a quinhentos metros da aldeiaNova.Aaldeiainteiranosesperavanamargemdorio.

Ouviramobarulhodocarro.Osíndiosouvemtudo.OrioVermelhoéverde. Os índios costumavam beber aquelas águas, pescar e se banharnelas,atéodiaemquecomeçaramacairdoentes,umdepoisdooutro,eforammorrendosemexplicação.

Algunsconseguiramchegaràcidadeemorreramnohospital,dianteda perplexidade e incompreensão dos médicos. Foi quando decidiramparardeusaraáguadorioVermelhoepassaramasebanharebeberemum córrego que passava do outro lado da aldeia e a pescar numa lagoadistante. Com o tempo, descobriram a causa do envenenamento do rioVermelho. Um hospital, construído rio acima, em Recursolândia, estavadespejandoo lixohospitalarnaquelaságuas.Foioquemecontaram logoquechegueiedepoisficarammeolhandocalados,comolhosmendicantes,comoseeutivesseopoderderesolveralgumacoisa.

AntesdesairmosdeCarolina,pergunteiaoantropólogoondeéqueeu ficaria alojado e ele me disse que os próprios índios decidiriam aochegarmosàaldeia.Antesmesmodecruzarmoso rio,umdosKrahôquevinhamnacarroceriadacaminhoneteseadiantouedissequeeuficarianasuacasa.Chamava-seJoséMariaTeinõetinhaalgumacoisadeguerrilheiromexicanodocomeçodoséculoXX,debigode,pelemuitoescurae cabeloonduladoatéosombros.Ummeninofranzinocomosolhosmuitovivosoesperava.Eraseufilho.Nuncasoubeonomedomeninoouaidade(deviaterporvoltadedezanos),embora tenhasidoelequemdealguma formachegoumaispertodemedizeralgopróximodaverdade.Quandomedei

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conta,elejátinhapegadoaminhamochilapesadaeatravessadoorio,comelanacabeçaeáguaquaseatéopescoço,edepoisribanceiraacimaatéabicicletaquedeixaranoaltodamargemoposta.Agiasobasordensdopai,meuanfitrião,eapesardasminhasreclamaçõesaoveracenagrotescadomeninomagroefranzinocarregandoaminhamochilaeeu,ummarmanjo,semnadanasmãos.Paraeleseraumamaneiradenosagradar.Estávamoscercados de dezenas de índios e índias que diziam coisas que eu nãoentendiaeriam,entrepudicosecuriosos.

Doaltodamargemopostaàdaestrada,sãounsquinhentosmetrosatéaaldeia,formadaporvintecasasdeadobeetetodepalhadispostasemtorno de um pátio circular. O desenho é solar, com caminhos de terrabatidaqueligam,comoraios,opátiocentralàscasas.Haviapoucasárvores,que elesmesmosplantaram. Estavamali fazia apenas oito anos. A aldeiaanteriortinhasedesmembradoquandoumgrupodecidiusemudarparaaaldeiaNovaeoresto,discordandodosítioescolhido,juntou-seàaldeiadoRioVermelho,quetínhamosavistadodelonge,nocaminho.Osítioanteriorfoi abandonado por ter se tornado infértil. Não sei o quanto havia desuperstição naquilo. Diziam que a terra não prestava mais. Falavam donúmerodeíndiosquealiestavamenterrados.Aomever,amulherdeJoséMaria, Antônia Jàtcaprec, fez cara feia. Depois me disseram que não eranada pessoal. Parecia brava e mal-humorada. Era uma mulher muitomagra, com as bochechas chupadas e os lábios finos. A minha visitasignificavaqueteriamqueremanejaraocupaçãodacasa,liberandoumdosquartosparamim.Quandoentrei,sentiocheiropestilencialdopeixesecopendurado num barbante no meio da sala. Era um cheiro que seentranhavaemtudo.Eque, jánosegundodia,emvezdemeacostumaraele,eunãopodiamaissuportarnemdelonge.

Nove pessoas dormiam na casa. Como era tempo de seca, o verãodeles,ocasaldormianumjiraudebaixodeumalpendrelateral.Ascriançasficavam em redes na sala, onde também estavam pendurados os peixessecos com cheiro de podre. Sobravam mais dois quartos. Num deles,ficavamasduasfilhasmaisvelhascomsuascriançasdecolo.Nãoentendidireitoondeestavamosmaridos,seéquehavia.Pendureiaminharedenooutroquarto.Ochãoeradeterrabatida.Asnoiteseramumfestivaldesonsíntimos,roncos,peidosechorosdecrianças.Nasala,osmeninosnasredessedebatiamempesadelos.Naúltimanoite,outrafilhadocasaleogenro,queestavamemviagemquandocheguei,juntaram-seàsduasirmãseseusfilhos de colo, amontoados no quarto ao lado do meu. E ao choro dascriançassomaram-seosgemidosdosexo.

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Nofinaldatardeemquechegamos,logodepoisdemeinstalar,saíàprocura do antropólogo e do seu filho, que ficaram em outra casa.Encontrei-os de short e sandália havaiana (emRoma como os romanos),com os corpos pintados de urucum, sentados em frente à casa do pajé,AfonsoCupõ,umsujeitoenorme,sempresorrindo,comcaradebonachão,equeemgeralnãodizianadamasque,nodiaseguinte,bêbado,acaboumeencurralandonumcantoeme fezprometerque lhedariacinqüentareaisantesdeirembora.Umdiadepois,paraminhasorte,jánãoselembravadenada.Amulher,Cajari, estavadeitadanumaesteiraestendidanochãodeterrabatida.Eracomoseestivesseconversandocomosamigosnapraia.EosfilhosLeusipoPempxàeNenoMãhi,doishomensfortesdevinteetantosanos, ouviam a conversa em silêncio, chutando os cachorros sarnentos eesqueléticos que às vezes se aproximavam. Chutar cachorros é um doscostumesmaisnotáveisdavidacotidiananaaldeia,reproduzidoportodosdesdeamaistenraidadeatéavelhice.OsKrahôsãoaprovavivadequeocãonãoéomelhoramigodohomem,masumdosbichosmaisimbecisquejásurgiramnafacedaTerra.

Por mais que sejam maltratados pelos donos, que os usam paracaçar,oscãesnãovãoembora.Quandolevamumchuteouumapedrada—o que acontece sempre que se aproximam mais do que meio metro dealguém—, saem ganindo, mas logo voltam para mendigar os restos dealguma comida. Neno havia sido atropelado por um caminhão emcircunstânciasumtantonebulosaseusavaumatalaplásticaquelheserviade colete ortopédico. A filha mais velha do pajé estava internada nohospíciodeumacidadepróxima.Tinhaenlouquecido.Acheigraçadeveroantropólogoeo filhopintadosdospésàcabeça.Rideles,masomeurisonãoduroumuito.Pareiassimquepercebiaexpressãodeperplexidadecomque reagiram. No fundo, estavam surpresos com a minha ingenuidade.Ficaramcompenademim.Nãodisseramnada.Nãoqueriammeassustar.Aquiloerasóocomeço.Nodiaseguinteseriaaminhavez.

Assetedanoite,omeninodabicicletaveiomechamarparajantar.Cadaconvidadocomianacasaemqueestavahospedado,oquesignificava,parameudesespero,quejantariaseparadodoantropólogoedoseufilho.Oprimeirojantarnaaldeia(umpratodearrozcobertocompedaçoseocaldodo peixe seco que eu tinha visto pendurado no interior da casa) foi umanúncio.Enquantoestávamossentados,JoséMaria,amulher,asduasfilhascomosnetosde colodo casal, omeninodabicicleta e eu, nos fundosdacasa, um tipo de quintal em torno de um fogareiro em que rescaldavamaquelasubespéciesecadetraíradefundodelagoa,Antôniamedirigiupela

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primeira vez a palavra.Me entregou umprato de ágata cheio de arroz epeixeeperguntouseeunãotinhaachadoaaldeiafeia.Elaestavainfelizdeviver ali, preferia a aldeia anterior, e queria conhecer São Paulo. Eumalouvia, tentava mastigar a carne pestilenta do peixe, na verdade umemaranhado de espinhas e barbatanas que terminei por engolir, dizendoque estavaumadelícia e pedindo a deusparanão vomitar na frentedosmeusanfitriões,quenãoficavabemlogonoprimeirodia.Respondiqueaaldeia era linda. Desconversei quanto a São Paulo, perguntei o que elaqueria fazernum lugar tão feio e violento.E comiomáximoquepude, oquenão foimuitoe logodespertoua inquietaçãodosmeusanfitriões.Alicomeçava a via-crúcis da alimentação. Só consegui engolir o peixe maisumavez,nocafé-da-manhãseguinte,jáqueamesmadietaestavapresenteem todas as refeições. Preocupado, José Maria acabou procurando oantropólogo,porqueeusócomiaarroz,e foi instruídoameserviroutrascoisas além do peixe seco, legumes, por exemplo, que segundo oantropólogo eu adorava. No jantar seguinte, me puseram um prato debatatas-doces na frente. Confesso que por um momento cheguei a ficarcontenteealiviado.Pus-meadescascaraprimeirabatata(haviacinconomeu prato) e dei a primeiramordida, sob os olhares ansiosos dosmeusanfitriões.Minhabocaseencheudeterra.Sóentãopercebiqueasbatatasestavamseccionadasetinhamsidocozidastalcomoforamdesenterradas,com a terra que agora se entranhava na massa amolecida do tubérculo,comoumbolocomcamadasdechocolate.Eumastigavaasbatataseaterrae dizia: "Humm! Que delícia!",mas bastoume darem as costas para quecomeçassea jogarnomatoquasequeatotalidadedoquehavianoprato,paraalegriadoscachorros,quenasuasanhapelosmeusrestosacabarampormedenunciar. "Nãoestavabom?",perguntouAntônia. "Estavaótimo.Mas é que não estou com fome. Não estou acostumado a comer muito.Estou precisando emagrecer", respondi, devolvendo-lhe o prato com asduas batatas que restavam intactas, ainda com casca, e que o JoséMariadevorou num instante.Eu tinha levado barras de cereais para umaeventualidadedessas,asquaisescondinofundodamochila.LogoquandochegueieoJoséMariaeofilhodebicicletasejuntaramàminhavoltaparaveroqueeuhaviatrazidoetiravadamochila,meadianteiedissequetudoo que estivesse ali dentro ficaria para eles de presente quando eu fosseembora. Queria evitar todo tipo de constrangimento. Mas as barras euescondi.Sótinhadez.Nomeiodaprimeiranoite, levanteidaredepéantepé, abri a mochila e peguei uma barra. Havia mil barulhos à noite, masquandorasgueiaembalagem,foicomoseosilênciomaisabsolutotivesse

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baixado sobre a aldeia e só eu, com a crepitação irritante daquelaembalagem, pudesse ser ouvido. Dei a primeiramordida e foi como se obarulhodaminhamastigaçãofosseumatro-voadasemfim.Enfieiabarrainteiranabocaeespereiquesedissolvesse,mordendoaquiealidevezemquando.Nodiaseguinte,aomereuniraosmeusanfitriõesparaocafé-da-manhã, me perguntaram se eu tinha dormido bem, se não estranhara arede.Enquantomeserviaobenditopeixe,Antôniadissequehavia ficadopreocupada,achandoqueeuestavacomfrioquandomelevanteinomeiodanoite,masqueseacalmouaoverqueeutinhaacordadoparacomer.

Eu já não tinha escolha. Fui lá dentro, peguei as nove barras decereaisquemerestavameastrouxeparaocafé-da-manhã.Elesdevoraramtodas em menos de cinco minutos, repetindo "chocolate" enquantocomiam.

Entredezdamanhãeduasdatardeeraimpossívelficardoladodefora.Quasenãohaviasombra.Resolvimeinstalarnasala,debaixodovaralde peixes secos, e ler um livro.Mas aminha paz durou pouco. Primeiro,apareceuofilhomaisnovodopajé,orapazdataladeplásticoqueeuviranavéspera,NenoMãhi.Agoraestavasematala.Veiocontarahistóriadoatropelamento. Disse que precisava de um advogado para processar omotorista do caminhão. Contou que foi atropelado e abandonado naestrada,comosetudotivesseacontecidonavéspera.Ocaminhoneirofugiu,mas ele sabia quem era. Eu mal tinha chegado à aldeia. Fiqueiescandalizadocomahistória,mesolidarizeicomele.Nenodissequenuncamais ia poder trabalhar. Queria indenização.Mais tarde, quando repeti ahistóriaaoantropólogoeelemefalouquenãoerabemassim,entendique,porserorecém-chegado,eutambémeraobobodaaldeia,oalvomaisfácildas histórias em que ninguém mais acreditava. Fiquei horas ouvindoaquela lengalenga, sem saber exatamente o que o índio queria comigo.Como ele não ia embora, chegou uma hora em que decidi voltar a ler, edepois de uns minutos, diante do meu silêncio e imobilidade, ele selevantou e saiu. O silêncio não durou mais do que uns minutos mesmo,porqueaíentrouo irmão,LeusipoPempxà.Entrounacontraluzdaporta,como um vulto. Seu rosto lembrava o dos índios sul-americanos mal-encaradosdasaventurasdoTintim.Onarizadunco,atestaavançadasobreos olhos fundos, as faces encovadas entre os cabelos pretos e lisos quecaíam até os ombros. Era difícil entender o que aquela gente queria.Leusipoperguntouoqueeutinha ido fazernaaldeia.Preferiacharqueotomeraamistosoe,nomeupaternalismoingênuo,comeceialheexplicaroque era um romance. Ele não estava interessado. Queria saber o que eu

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tinha ido fazerna aldeia.Os velhos estavampreocupados, queriam saberporqueeuvinharemexernopassado,eelenãogostavaquandoosvelhosficavam preocupados. Eu tentava convencê-lo de que não havia motivoparapreocupação.Tudooqueeuqueriasaber jáeraconhecido.Eelemeperguntava:"Então,porquevocêquersaber,sejásabe?".

Tenteilheexplicarquepretendiaescreverumlivroemaisumavezoqueeraumromance,oqueeraumlivrodeficção(emostravaoquetinhanas mãos), que seria tudo historinha, sem nenhuma conseqüência narealidade.Eleseguiaincrédulo.Fazia-sededesentendido,masnaverdadesó queria me intimidar. Eu estava entre irritado e amedrontado. Tinhavontadedemandaroíndioàputaqueopariu,masnãopodiameindisporcom a aldeia. Se é que havia alguma coisa a descobrir (e Leusipo a meintimidar punha aindamais lenha nessaminha fantasia), era preciso serdiplomático.Elequeriaporquequeriasaberarazãodaminhapresençanaaldeia.ComonaassembléiatimbiraemCarolina,nãodavaparaconcluirseno fundoele sabiade alguma coisaou senão sabiadenada e estava tãocuriosoquantoeu.Leusiponãodavaobraçoatorcer.

Não sorria, não demonstrava nenhum gesto ou expressão desimpatia.Tinhaumolharimpassíveledeterminado.Omotivodasuavisitaerameencurralar.Repetia: "Osvelhos estãopreocupados".E eupensavacomigo: "O idiota deve ter ouvido alguma coisa e resolveu tomar ainiciativademepedirsatisfação".Asminhasexplicaçõessobreoromanceeraminúteis.Eutentavadizerque,paraosbrancosquenãoacreditamemdeuses,aficçãoserviademitologia,eraoequivalentedosmitosdosíndios,eantesmesmodeterminarafrase,jánãosabiaseoidiotaeraeleoueu.Elenão dizia nada a não ser: "O que você quer com o passado?". Repetia. E,diantedasua insistênciabovina, tivedemerenderàevidênciadequeeunãosabiaresponderàsuapergunta.Nãoconseguiafazê-loentenderoqueeraficção(nofundo,elenãoestavainteressado),nemconvencê-lodequeomeu interesse pelo passado não teria conseqüências reais, no final seriatudoinventado.FuisalvopelafilhamaisvelhadoJoséMaria,quedeviaterporvoltadedezoitoanoseapareceucomumabolabesuntadadeurucumnas .mãos, paramepintar. Emoutra ocasião, eu teria resistido comoumporco diante da degola. Mas a minha contrariedade diminuiu bastantegraças às circunstâncias. Ainda que a contragosto, concordei em tirar acamisa.Estavadispostoamesubmeteraqualquercoisa,atémesmoaserpintadodospésàcabeça,sefosseparamelivrardoLeusipo.E,defato,coma entrada damenina, que o ignorou e lhe deu as costas como se ele nãopassasse de um animal, omeu inquisidor imediatamente se levantou do

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banco em que tinha sentado aomeu lado (sem ter sido convidado) e seafastou, contrariado com a interrupção, saindo da casa como um cãoenxotadoquandooJoséMariaentrouparaadmirarapinturaqueafilhameespalhava pelo corpo com as mãos oleosas e tingidas de vermelho.Acharam uma graça enorme de me ver todo vermelho. Tudo o que eutocava também ficava vermelho: o livro que estava lendo, a bermuda, amochila, o chapéu. O toque do urucum. Mas isso não era nada secomparadoàtinturadejenipapoaqueseriasubmetidonodiaseguinte.Daíem diante, tentei evitar o Leusipo e o irmão. Evitava ficar sozinho comqualquer umdos dois. E, quando saía para tomar banho demanhã cedo,rezavaparaquenãoaparecessemderepente.Nuncamaismeamolaram.Amaioriadosíndiosnãofalavacomigo.Oumeignoravamoumeobservavamàdistância. Podiam estar desconfiados ou simplesmente não ter nenhuminteressenaminhapresença.

Quandoseaproximavam,eraouparapediralgumacoisaouporqueestavambêbados.Sóascriançasriamdemim,easmulheres.Ascriançaseasmulhereserammaisvivas.Diziamcoisasentresiqueeunãoentendiaese divertiam.Me chamavam de branco: "Cupen, cupen". Faziam troça demim. Aos poucos, fui descobrindo que, à exceção da minha anfitriã, asmulheres da aldeia eram muito mais espirituosas, bem-humoradas einteligentesdoqueoshomensqueasmantinhamàmargemdasdecisões.

Elasriamecontavampiadasotempointeiro,enquantooshomensasobservavam calados, sem entender ou achar graça, incapazes de contarumapiadaporcontaprópria,invejososdetantavivacidade.Eununcasabiaquando estavam bêbados. Na verdade, quase todos ali tinham laços desangue. Aos poucos, fui descobrindo que a aldeiaNova era praticamenteumaúnicafamília,queeramquasetodosirmãoseirmãs,tiosesobrinhos,eque o parentesco simbólico, classifica-tório, em grande parte apenasmaquiava relações, se não incestuosas, pelo menos muito viciadas. Nãoconsegui entender nem os laços de sangue nem o parentesco simbólicoentreosmembrosdatribo.

Eramuitocomplicado,emeusobjetivosnãoeramantropológicos.Opróprio Quain teve dificuldades em entender essas relações. Eu nãocompreendianada.Nãosabiaqualseriaopróximopasso.Viacoisassendopreparadas,masnão fazia idéiadoque seriam,nemdopapel que amimestavareservadonaquelascerimônias,oquesóaumentavaaexpectativaeo temor. O antropólogo tinha comprado um porco para a festa emhomenagemao filho.Os índiospreparavamumpaparuto,umaespéciedebolo de mandioca recheado com banha e pedaços de porco. A tarde,

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enquantoeuobservavaotrabalhodasmulheres,queestendiamfolhasdebananeirapelochão,sobreumtrançadodegalhosdeárvore,eascobriamcomumapastademandiocaquevinhamfazendodesdeavéspera,sobreaqual iam espalhar a carne e a banha do porco, senti uma presença, umasombra àsminhas costas, uma ligeira vibração do ar, uma respiração nomeu pescoço. Quandome virei, a figura fantasmagórica do velhoVicenteHintxuatyc, patriarca da aldeia e irmão classificatório de João Canuto,estavacomorostoquaseencostadoaomeu,comosemecheirasse,comomesmo olhar indecifrável e ameaçador com que o Leusipo tinha meintimidado pelamanhã. Tomei um susto,mas por um controle interior eumapresençadeespíritoqueemgeralnãotenho,nadademonstreialémderevidarcomumaexpressãoinquisidora.Olheiparaovelhoenrugado,comoscabelosgrisalhoseesfiapados,epergunteioqueelequeria,comosenãoestivessenemaí.Ele continuoumeolhandoemsilêncioe seafastou semdizernada.VicenteeraumrapaznotempoemqueBuellQuainviveuentreosKrahô,masnãochegouaconhecê-lo.

Nãoestavanaaldeianaépoca.Passoumuitotempoentreosbrancos,com idas e vindas, e sónavelhicevoltoudefinitivamentepara .osKrahô.Estava na aldeia durante o massacre de 1940 e escapou por pouco. Dealgumaforma,todostentavammeintimidar,nemquefosseapenasparasedivertirem,eaquilosófaziaaumentaromeumedoeadesconfiançasobrealgumacoisaquepudessemestarrealmenteescondendodemim.

Opaparutocomeçouaserassadonaquelanoite,enquantoofilhodoantropólogoerapreparadopelasmulheres,emsegredo.Nofinaldatarde,cortaram-lhe o cabelo àmoda krahô, com duas riscas paralelas nos doisladosdacabeçaeumafranjinhanatesta.

Pintaramseucorpodejenipapo,espalharamumaresinapelotronco,pelaspernasepelosbraços,eemseguidaocobriramdepenascinzentasebrancas.Aomesmo tempo,oshomens cavavamumburacona terraparalhes servir de forno. Por volta das oito da noite, depois de terem jogadopedaçosdecarneedebanhadeporcosobreapastademandioca,asíndiasfecharam o paparuto com as folhas de bananeira, e os homens ocarregaramatéoburacoeocobriramdepedrasembrasaedeter-rasobosolhares de toda a tribo, do filho do antropólogo, já paramentado, do pai,que o fotografava, e de mim. Intuí pela primeira vez com dados maisobjetivos,aoverorapaztodoempenadoepintadodepreto,queaminhahora tambémpoderia chegar.A tarde, asmulheres já tinham tentadomepintardejenipapo.Eeurecusei,alegandoqueourucumerasuficiente.Elasapenasriramentresiedisseramcoisasquenãopudeentender.Adespeito

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daapreensãocrescente,anoitefoiumadasmaislindasqueeujávi.Aluacheiaclareavaaaldeiacomumbanhodeluzprateada.Ninguémprecisavadelanternasouvelas.Haviaumafogueiranocentrodopátio,emtornodaqualoshomensficaramconversandoatétarde,enquantoumvelhocantorkrahô, que fora chamado de outra aldeia especialmente para a festa,entoava canções e era acompanhado pelas mulheres sob os olharesmalemolentes dosmaridos, pais e irmãos sentados no chão. Aos poucos,conformeacerimôniaavançavanoiteadentro,osíndiosforamseretirandoparasuascasas,aténãosobrarmaisninguémnocentrodaaldeiaalémdocantor. Fui dormir por volta das onze, sabendo que o paparuto seriadesenterradoantesdonascerdosol.DormiembaladopelocantodovelhoKrahô,quevoltaemeiaretornavaaopátiocentraleentoavasuascanções.Haviaalgumacoisamaravilhosaeencantadoranaqueleritual.Porvoltadastrêsdamanhã,aoouvirdenovoovelhocantor,resolvimelevantareirver.Edeparei comumdosespetáculosmaisdeslumbrantesdaminhavida.Ovelhocantavasozinhonocentrodaaldeiaimóveleadormecida.Depoisdealgunsminutos,umamulherdespontavaàportadeumacasaevinhaemsilêncio,umvultoao longe,porumdoscaminhosqueconvergiamparaopátio. Era uma figura solitária, que se aproximava devagar, enrolada empanosparaseprotegerdo frio.Aochegaraopátiocentral,elasepostavadiantedocantorepassavaaacompanhá-lonacanção,comosefossemumadupla.Minutosdepois,outramulhersurgiaàportadeoutracasaetomavaocaminhosolitárioquealevavaaocentrodaaldeia.Umamulherdepoisdaoutra,detodasascasas,comintervalosdeminutos,vinhamemdireçãoaovelho cantor e se punham enfileiradas diante dele, para acompanhá-lo,atraídaspelas canções.Eleas chamava,umaauma,atéquenocentrodaaldeia um coral demulheres estava formado sob a sua liderança e a luacheia.Conformeelas iamchegandoe tomandoposiçãono coral, as vozescresciam e invadiam as outras casas. Lá pelas tantas, despontou de umadelas umhomem comum carrinho de bebê. E pelomesmo caminho queantes havia tomado a suamulher, ele veio até o centro da aldeia, paroudiantedamãe,jácomopeitoparaforadospanos,elheentregouacriança.Depoisvoltouparacasacomocarrinhovazio.OsKrahôtratamascriançascomumadeferênciaespecial.Emesmoquandoasrepreendem,écomosefossesódebrincadeira.

As cincodamanhã, começaramadesenterraropaparuto.Eu tinhavoltado para a rede e fui acordado pelomovimento na casa. De todas ascasas, saíam adultos e crianças em direção ao centro da aldeia, onde opaparuto seria dividido. Cada família teria o seu quinhão e voltaria para

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comê-loemcasa.Aindanocentrodaaldeia,enquantodistribuíamasfatiasdopaparuto,ovelhocantorgentilmentemeofereceuumpedaço.Abanhado porco havia derretido durante a noite e se embebido na camada demandioca, que agora era uma massa gordurosa sobre a qual estavamdepositadosospedaçosdecarnedeporco.Eumordiobolocintilante,emqueapareciavezporoutraumpelinhodeporco,comabanhaescorrendopelosmeusdedos,disse:"Hummm!"edevolviafatia.

Ocantorriueperguntouseeunãotinhagostado,insistindoparaqueeu comesse mais. Comi o pedaço inteiro, que caiu como uma pedra noestômagovazio.Foiquandocomeceiapassarmal.Nãocomiaquasenadadesde que chegara à aldeia, e agora aquele naco de banha de café-da-manhã.Cadaumpegouasuaparteevoltouparaasuacasa.Osoljátinhadespontadoecomeçavaaficarquente.Nopátiosórestaramoscachorrossarnentos,àprocuradeumasobraqualquer,lambendoabanhamisturadacomaterranasfolhasdebananeira.Osmeusanfitriõessereuniramatrásdacasaparaseregalarcomopaparuto.Mechamaram,maseudissequejánãopodiacomermaisnadaemedeiteinarede.Estavaenjoadoebastavame levantar para tudo começar a girar. Omeu estado era agravado pelaapreensãodeque, terminadaa cerimônia como filhodoantropólogo, euseria o próximo. Não tive como resistir quando as índiasme cercaram àtarde para me pintar de jenipapo. A tintura do jenipapo é um líquidotransparentecompedacinhosdofruto,eumavezaplicadaàpeleterminapor tingi-la de preto. Quanto mais maduro o jenipapo, mais escuro oresultado da pintura. Ao contrário do urucum, o jenipapo nãomancha aroupa.Oquenãomedisseramnahora,equeeudeviaterconcluído,équese não mancha a roupa é porque também não sai da pele. Não adiantaesfregarcomnada.O jenipapo ficanapeleporummês.Comoa tinturaétransparente,eunãofaziaidéiadosdesenhosquemepintavamportodoocorpo. Ao terminarem, me deram uma vareta de bambu no caso de euquerermecocarouespantarosmosquitosatéatinturasecar.Sobretudoeunãodeviatocarocorpocomasmãosnasprimeirasdozehoras,enquantoatintura ainda estivesse ativa, para não ficar com os dedos pretos. Aoacordarnodia seguinte, euestava tododesenhadodepreto.Eram traçoslargos,geométricoseemziguezaguepelocorpo.Semqueeutivessenoção,cederao jenipapo tinha sido como fazerumprimeirogestode respeitoeamizadeemrelaçãoaosíndios.

Ainda não eram oito da manhã quando vieramme chamar. Só aochegaraopátioéqueentendiquesetratavadeumareuniãoparadecidiraminha sorte. Apenas os homens estavam lá. Discutiam coisas na língua

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deles. Tentei ficar do lado do antropólogo e do seu filho, em busca dealguma tradução, mas de repente, sem que eu entendesse, formaram-sedois grupos, comodois times de futebol, e o antropólogo e o filho foramseparados um de cada lado do pátio. A minha sorte se configurava adespeitodemim.Fiqueisozinhonomeio.Foiquandoentendiqueeraeuoobjeto da disputa. De um lado ficava a família do verão ou da estiagem(Wakmêye),dequefaziaparteoantropólogo.

Dooutro,afamíliadoinvernooudaestaçãodaschuvas(Katamye),de que fazia parte o JoséMaria e o filho do antropólogo. Os dois gruposalternavam-senopoderenaadministraçãodaaldeia,comodoispartidospolíticos.Ovelhocantorseaproximoudemimedissequeagoraeutinhaqueescolheremqualclãpreferia ficar.Dosdois ladosos índiosgritavamcoisasque eunão entendiamasque supunha significaremque se eunãoescolhesse o time deles, eles me trucidavam, me esfolavam vivo, mearrancavamtodosospêlosetc.Elesgritavameriam.OJoséMariagritavaqueeuestavanacasadeleequetinhaobrigaçãodeficardoladodele.Eunãosabiaoquefazer.Oantropólogotambémgritavaquemetrouxeraparaaaldeiaeeutinhaqueficardo ladodele,e foipeloqueeucovardementeacabei optando. Sempre preferi o verão, não gosto de chuva, eu tenteiexplicar ao José Maria, enquanto voltávamos para casa. Mas nada erasuficienteparaaplacarasuadecepção."Daquiparaafrente,nãofalomaiscomvocê.

Vocêmetraiu.Vocêescolheu,agoravocêsevira",elerespondeu.Eutentava me convencer de que eu era apenas o objeto de uma grandebrincadeiraentreeles,masissonãoajudavaemnada.Nomeiodatarde,osdoisgrupossaíramparaomatoembuscadetorasparaacorrida.Tudooqueeuqueriaeranãoterqueparticipardenada.AcorridadetoraséumdosrituaismaistradicionaisdosKrahô.Éumacorridaderevezamentocomuma toradeburiti, quedevepesaruns cinqüentaquilos, nosombros.Eumalconseguialevantá-ladochão.Cadagrupocarregaumatora.Osíndiosvêmcorrendodeforadaaldeia,descalçospelomeiodomato,comastorasnosombros.Oprimeirogrupoaatingirocentrodopátioganhaacorrida.Omeutemoraumentouaindamaisquandodepoisdacorrida,dequesóviadisputa final, jádentrodaaldeia, resolvi tomarumbanhono riachoe fuiimpedidopelosmeusanfitriões:"Não!Vocênãopode!Hoje,vocêvaitomarbanho no pátio". Fui correndo procurar o antropólogo para esclarecer oquemeesperava.Maseledesconversouedissequeeuiaver,eraumafesta"divertida".

Voltei para casa aterrorizado, e tudo só ficou ainda pior quando o

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meninodabicicleta,filhodoJoséMaria,seaproximoufurtivamentedemime conseguiu dizer apenas: "Eles estão mentindo para você". Teve queinterromper pelametade o queme revelava, para logo sair pedalando edesaparecer, quando percebeu que o pai se aproximava desconfiado dacena de cumplicidade do filho comigo. A frase ficoumartelando aminhacabeça.Eraomaispróximodealgumaverdadeaqueeutinhachegado.

EunãosabiasediziarespeitoaoquepreparavamparamimnaquelanoiteouaoqueescondiamdemimsobreopassadoeamortedeQuain.Emambos os casos, era péssimo. Agora, eu estava com uma dor de cabeçaterrível.Minha cabeça latejava como se estivesse prestes a explodir. Nãohaviameiodeeuficarsozinhocomogarotodabicicletaoutravez,paraquemeesclarecesseoquesignificavaaquelafrase.Euestavafebril,deitadonarede,quandonoiníciodanoiteoJoséMariaveiomechamarparaocentrodaaldeia.Fuiacontragosto,tontoeaterrorizado,semsaberexatamenteoquemeesperavaeoque significavaexatamenteo tal banho.Porviadasdúvidas,vestiumcalçãoporbaixodabermuda.Jáestavabemfrio,eeunãoqueria ficar com as roupasmolhadas. Encontrei os homens reunidos emtorno da fogueira no pátio. A impressão era que todos sabiam o que iaacontecer,menoseu.OvelhoVicentemechamouparasentaraoseuladoecomeçou a falar espontaneamente sobre Quain, que ele na verdade nãoconhecera. Não disse nada que eu não soubesse. Mas ao menos já nãoparecia desconfiado. O queme dizia nãome interessavamais. Eumal oescutava, estava trêmulo e fraco, não sei se de fome ou de medo.Finalmente, apareceu o antropólogo, e eu, que não devia estar com aaparêncialámuitoboa,lheimploreiparaquemerevelassedeumavezportodasoqueiaacontecerali."Vocêescolheu,hojedemanhã.Agoravaiserapresentadoàsuafamília,àsmulherescomquemnãopoderátransar",eledisse.Eunãoqueriaserapresentadoaninguém.Estavaquasedesmaiandoquando apareceram as mulheres, com baldes e garrafas cheios de água.Formou-seumcírculodehomensquedançavamdemãosdadasemvoltadafogueiraecantavam,comandadospelovelhocantor.Euestavatentandomeprotegeraoladodoantropólogo.Derepente,ovelhocantormepuxoupara a roda de homens. Relutei, disse que estava com febre, não podiatomarumbanhocomaquelefrio.Eleriu,dissequeobanhocuravaafebre.Eunão tinhamais como resistir. Sópedi que antesmedeixassem tirar abermuda,acamisaeassandálias.Bastoueuentrardecalçãonarodaparaasmulheresseaproximaremporfora,comseusbaldesegarrafas,cercandoo círculo dos homens. Nós dançávamos em torno da fogueira de mãosdadas.Osíndioscantavam.Euesperavapelopior.Derepente,arodaparou

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eacantoriatambém.Algumasmulherescombaldesegarrafasdeáguanasmãos se aproximaram, escolheram alguns homens e os levaram para ocentroda roda,pertodo fogo,ondeelesabaixaramacabeça, comonumareverência,eelaslhesdespejaramosbaldeseasgarrafas,rindoavaler.Foiquando eu entendi o ritual, embora continuasse sem compreender a suarazão.Asmulheres jogavamáguanoshomens a que estavam ligadasporlaços de parentesco simbólico, classificatório, com os quais não podiammanter relações sexuais. O banho era uma cerimônia de explicitação edelimitaçãodainterdiçãodoincesto.Aprimeiralevadehomensbanhadosvoltouparaaroda,asmulheresse juntaramàsoutrasdo ladode foradocírculo,enósretomamosadançaeacantoria.Quandoveioanovaparada,umadasmulheresmepuxouparapertodofogo,enquantooutraspuxavamoutroshomens,edespejouumbaldedeáguanaminhacabeça.

A febre passou, a cabeça parou de doer. Se era só isso, ótimo. Aproximidade do fogo diminuía o frio e ajudava a secar. Tomeimais doisbanhosearodasedesfez.Estavaaliviado,acheiquetudoacabavaali,ejáestava pronto para voltar para casa, quando o cantorme puxou de voltaparaofogo.Umanovacerimôniaiacomeçar.Opavorvoltou,eafantasiadeque em algum momento, quando eu estivesse mais distraído, quandomenos esperasse, todos pulariam em cima de mim. Havia uma novaconfiguração em torno do fogo. Os homens formavam fileiras quecomeçavam no centro, na fogueira, e se estendiam para fora. Já nãoestavamde frente para o fogo,mas de lado. Avançavam emmovimentoscirculares,sóqueagoraumafileiraatrásdaoutra,oranosentidohorário,orano sentido anti-horário. Formavamcoma fogueiraumdesenho solarem que eles eram os raios. Cantavam canções comandados pelo velhocantoremorriamderir.Eu,nomeiodaquilotudo,perguntavaaosíndiosaomeuladooquequeriadizeraqueleritual."Vocênãosabe?",respondiam,ecaíamnagargalhada.Sómaistardemeexplicaramquecadacançãocontavaahistóriadeumbichodanaturezaeque todas tinham fortesconotaçõessexuais.Acadanovacanção,omovimentoemtornodafogueiramudavadesentido.Nadaaconteceucomigonaquelanoite,masprevendoa iminênciadobatizadoquemepreparavam(afinal,paraque teriammeapresentadoàs mulheres da minha "família" se não fosse para me dar um nome emseguida?), procurei o antropólogo e deixei bem claro que não estavadispostoasercobertodepenasouaterocabelocortadoàmodakrahôequelutariaatéofinalparamedefender.Eledeveterficadosurpresocomaminha reação e a falta de espírito esportivo. Só depois de ver o queaconteceria com ele no dia seguinte é que me dei conta de que talvez

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tivesseseentregadoemsacrifícionomeulugar.A terceira noite foi um inferno. Fazia um frio do cão e eu não

arrumavaposiçãona rede.Qualquermovimentomedescobria.Quandoodia raiou, comecei a ouvir um grupo de homens cantando. Eles seaproximavam da casa. Gelei. Aproximavam-se e se afastavam e depoisvoltavammais uma vez. Eu tinha certeza de que estavam atrás demim.Vinhammepegar.Mefizdemorto.Deixeitodosselevantaremecontinueina rede, fingindo que dormia. Quando por fim resolvi me levantar, acerimônia já estava avançada. Tinham pegado o antropólogo. Ele estavacobertodepenas,eos índiosocarregavamnosombrosatéoriachoparaumbatismomatinal.Eraestranhoqueoestivessembatizando, jáqueelefora batizado anos antes. Demorei a entender que ele provavelmenteassumiraolugarquereservaramamim,sóparanãodecepcioná-los.Eleosconvencera a não me batizar, temeroso de qual seria a minha reação.Quando o trouxeram de volta do riacho, ele foi cercado por homens emulheresnocentrodaaldeia.

Foiquandoasíndiascomeçaramafazertroçadaminhacovardia.Amais debochada, Gersila Kryjkwyi, estava inconformada com a minhadesfeita.Eurespondiaquenãomesentiaàvontadeparaserbatizado, sóestavanaaldeiahaviatrêsdias,mas jureiquedapróximavezasdeixariafazeroquebementendessemcomigo.Gersilagritavaquesabiamuitobemque não haveria próxima vez, eu era um frouxo. Creuza Prumkwyisentenciouqueentãoelaiaesperar,porquedapróximavezqueeupisassenaaldeiaiamebatizarcomomandaofigurino,iamearrancarcadaumdoscílios,alémdassobrancelhas,iatirarsanguedemim.Todasmorriamderir.Modéstia à parte, acho que nunca se divertiram tanto às custas de umbranco.Antesdeirmosembora,amulherdovelhoVicente,amatriarcadaaldeia, FrancelinaWrãmkwyi, amãe de todas, umamulher corcunda, aomesmo tempo frágil e forte, curvada para a frente, a quem só restavaesperar amorte e queme lembrou aminha avóde cento e sete anos, seaproximou para dizer que no começo tinha ficado desconfiada, mas queacabou simpatizando comigo, sabia que eu não ia esquecer os índios. Separamim,comtodoo terror, foidifícilnãomeafeiçoaraelesemapenastrêsdias, ficopensandonoquedeve tersentidoQuainao longodequasecincomeses sozinhoentreosKrahô.No caminhodevolta, no interiordacabine da caminhonete, o antropólogo tentou dissipar a minhadesconfiançaquandolhefaleidomeninodabicicletaedoquemedisserafurtivamente na segunda tarde, antes de ser surpreendido em flagrantedelito pelo pai. O antropólogo me garantiu que eles lhe teriam dito se

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houvessealgumacoisasecretaaserreveladasobreoetnólogoamericano,mas ele não podia imaginar o tamanho reservado para esse segredo naminhacabeça.Naverdade,nemeupodiaimaginar.

NascartasqueescreveuparaMargaretMeadnoiníciodejulhoequeforamencontradas emmeio ao espólio levadopelos índiosparaCarolinadepois de sua morte, Quain reclama da dificuldade de trabalhar com osKrahô:"Émuitodifíciltreinarnativosporaqui.Aúnicaformademeimpora eles é ficando bravo, e então, por vinte e quatro horas, tenho todos osduzentos e dez deles aos meus pés, tentando desajeitadamente mesatisfazer. Eles ignoram a idéia de se esforçar para ganhar ou receberalguma coisa, já que de hábito podem ganhar muito mais quando ficamemburrados. Venho trabalhando no último mês com um jovem (que édefinitivamente um anormal, já que parece gostar de trabalhar comigo)sobrea língua.Hojeelemecomunicouquenãopodemaistrabalhar,poisestá cheio de ser ridicularizado pelo resto da aldeia. Nem mesmo ascriançasorespeitam".OvelhoDiniznãosabiaquempoderiatersidoesseinformante.

Lembrava do menino Zacarias, que cantava para Quain, mas nãodessehomemdesprezadopelaaldeiaquandocomeçoua trabalharcomoetnólogo.

Assim como os índios o adotam quando o recebem na aldeia, elesesperamquevocê tambémos adotequandovão à cidade. Euma relaçãoaparentemente recíproca, mas no fundo estranha e muitas vezesdesagradável.Nãoéumarelaçãodeigualparaigual,masdeadoçãomutua,oquefaztodaadiferença:naaldeia,vocêéacriançadeles;nacidade,elessãoasuacriança.Nuncavininguémtratarascriançascomtantocarinhoeliberdade. De volta a São Paulo, depois da minha passagem pela aldeia,comeceiarecebertelefonemasacobrar.OsíndiosmeligavamsemprequepassavamporCarolina.

Pediam coisas. Em geral, dinheiro. Não faziam amenor cerimônia.Como se agora fossemmeus filhos.Ospedidosnão tinham fim.Agora euera o eterno devedor. De criança eu tinha passado a pai relapso a quemfinalmenteédadaachancederepararseuserrospassadosesuaausência.É difícil entender a relação. São os órfãos da civilização. Estãoabandonados.Precisamdealiançasnomundodosbrancos,ummundoqueelestentamentendercomesforçoeemgeralemvão.Oproblemaéquearelaçãodeadoçãomutuajánascedesequilibrada,umavezqueafreqüênciacomqueosKrahôvêmaosbrancosémuitomaiordoqueafreqüênciacomque os brancos vão aosKrahô. Uma vez que omundo é dos brancos.Há

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neles uma carência irreparável. Não querem ser esquecidos. Agarram-secomo podem a todos os que passam pela aldeia, como se os visitantesfossem os pais há muito desaparecidos. Querem que você faça parte dafamília.Precisamquevocêsejapai,mãee irmão.NumadascartasadonaHeloísa depois da morte do filho, Fannie Quain dizia que os Krahô ochamavam de "grande irmão" — o que é desmentido em outrosdocumentos — e que pediam às autoridades que lhes enviassem umsubstituto à altura comamaior urgência, alguém comuma alma tão boaquantoadele.Essarelaçãopaternalistaédasmaisincômodaseirritantes,eopróprioQuainsofreuesseconstrangimento.Háquemtiredeletra.Nãofoiomeucaso.Nãosouantropólogoenãotenhoumaboaalma.Fiqueicheio.Apartirdeumdadomomento,decidiquenãoresponderiamaisaosrecadosqueme deixavam, pedindo que eu ligasse sem falta na noite seguinte. Aculpaprovocadaporessadecisão tambémme irritou,masmenosdoqueme ameaçava a idéia de que de uma hora para outra pudessem bater àminha porta. Antes de sair da aldeia, diante da minha recusa em serbatizado,Gersilaseaproximoudemim,entreofendidaeirônica,emejogounacaraqueeueracomotodososbrancos,queosabandonaria,nuncamaisvoltaria à aldeia, nunca mais pensaria neles. Jurei que não. Estavaapavoradocomoquepudessemfazercomigo(nadaalémdemecobrirdepenas eme dar umnome e uma família da qual nuncamais poderiamedesvencilhar).Omeumedoeravisível.Fizumpapelpífio.Eelesriramdaminhacovardia. Jureiquenãomeesqueceriadeles.Eosabandonei,comotodososbrancos.

Segundo o relato do velhoDiniz, corroborado pela carta queBuellQuain escreveu a Ruth Benedict em 15 de setembro de 1938, o jovemetnólogo também não queria participar ou se envolver nesse tipo derelação("Nãogostodaidéiademetornarnativo.Asconcessõesquefazianessesentido,emFiji, aquinãosósãoaceitas comosãoesperadas"),nãoqueria outra família. Já tinha uma. Ao que parece, tinha razões de sobrapara evitar os laços de parentesco. A julgar por algumas de suas últimascartas,elesforamarazãodasuamorte.

Porummomento,depoisdaentrevistacomovelhoDiniz,chegueiasuspeitarda forma incisivapelaqualos índios insistiamqueoamericanonão sofrerá de doença nenhuma. Como podiam saber? Tanto os que naépocafizeramorelatodamorteaManoelPernacomoagoraovelhoDiniz,que àquela altura era apenas uma criança, foram enfáticos em rechaçartoda e qualquer dúvida sobre uma eventual doença contagiosa, como senessecasoelesestivessemdiretamente implicadosnamortedoetnólogo.

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Nas notas que deixou sobre os Krahô, Quain se refere a "doençasintroduzidas": "O estado de saúde na aldeia requer atenção urgente dogoverno.Alémdegripescomuns,asdoençassériassãotuberculose,lepraeprovavelmentesífilis.Aminhaincertezaquantoàsífilissedeveàausênciademanifestaçõesavançadasdadoença,taiscomomaldeParkinson,ataxiaou paresia. A maioria dos sintomas que observei pode ser causada portuberculose".Nasuaobsessão,nãoéimpossívelquejávisseasimesmoportodaparte.

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12.Vocêquersaberoqueodr.Buellfeznaaldeia.Êprovávelquenada.

Esehouvessealgumacoisa,nãoseriadosíndiosquevocêiriaarrancarumaresposta. Também não sei de nada.Mas posso imaginar, e você tambémpode imaginar, como imaginei a cada vez que ele me contou as suashistórias, pela intensidade da sua solidão, que na noite do suicídio eleestivessefugindo.

QuandovoltouaCarolina,maisdedoismesesdepoisdeterpartidocom os índios e mais de dois meses antes de se matar, achava-se numestado deplorável. Preferia se esconder. Disse que não confiava emninguém.Masnãopodiadesconfiardemim,tantoquemeprocurou.Deviaselembrardaprimeiranoiteemqueveioàminhacasa,logoquechegouàcidade, quandome falou dos Trumai. Chegou sujo e sem sapatos. Estavaenvergonhado,intimidadopelosbrancosqueanteshaviadesprezadoeaosquaisjánãoousavasedirigiremportuguês,commedodenãoconseguirseexpressar.Eusóoouvia.

Tanto que veio áminha casa. Comos outros, preferia ficar calado.Quandome procurava, era para falar. As vezes, quando bebia, não diziacoisacomcoisa.Achavaqueestivessematrásdele,queaondefosseelesoencontrariam.Nãovia saídas.Euperguntava,maselenãomediziaquemeram eles. Me contou que tinha vivido sob vigilância no Rio de Janeiro.Queriadizerqueeravigiadoondequerqueestivesse.

Sabiamde tudo o que fazia, pormais que se escondesse, pormaisqueagisseemsegredo,pormaisquenãocontassenadaaninguém.Eentãosecalava,bebiamaisumtragoederepenteretomavaoqueinterrompera.AchavaqueexistiaumarededeinformaçõesnoBrasil.Nãoerasóapoliciano Rio ou os inspetores do SP1 na selva que o assombravam. Dizia quetodos os seus passos eramobservadosdesde que havia pisadonoBrasil.Nuncavininguémtãosó.DuranteasuaestadaemCarolina,vinhaàminhacasa no final da tarde e conversávamos noite adentro. Muitas vezes nãoentendioquedizia,masaindaassimcompreendiaoqueestavaquerendodizer. Eu imaginava. Ele só precisava conversar com alguém. Numa dasvezesemquemefaloudesuasviagenspelomundo,pergunteiaondequeriachegar e elemedisse que estava embuscadeumpontode vista. Eu lheperguntei:"Paraolharoquê?".Elerespondeu:"Umpontodevistaemqueeujánãoestejanocampodevisão".Eupoderiaterditoaele,masnãotive

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coragem,quenãoprecisavaprocurar,quese fossepor issonãoprecisavateridotãolonge.Porqueelenuncaestarianoseuprópriocampodevisão,onde quer que estivesse, ninguém nunca está no seu próprio campo devisão,desdequeeviteosespelhos.Asvezesmedavaaimpressãodeque,adespeitode tervistomuitascoisas,nãoviaoóbvio,epor issoacreditavaqueosoutrostambémnãoovissem,quepudesseseesconder.Oqueeuvi,nuncafalei.Fiqueiàsuaespera.Oqueeuouvi,jánãoseisefoifatooufrutodeumconjuntode imaginações,minhaedele, a começarpelas visõesdequemefalava.

Tambémtemiaqueamortefosse,aocontrário,adescobertadoqueatéentãonãotinhaconseguidover,emboranãotivessepoupadoesforçospara tanto, e que essa descoberta fosse ainda pior do que tudo o que opudesselevaràmorte.Ocertoéque,aodeixaraaldeiapelaúltimavez,eleestavafugindo.Eissoeujálhedisse,masrepito,porquequeroqueguardebem.Quandomuito, haverá um lugar para umaúnica causa e umaúnicaimagem na sua cabeça. Terá que aprender a se lembrar dele como umhomemforadoseucampodevisão,seéquepretendevê-locomoeuovi.Tambémdemoreiaentenderoqueelequeriadizercomaquilo,oquehaviademaisterrívelnassuaspalavras:que,aocontráriodosoutros,viviaforadesi.Via-secomoumestrangeiroe,aoviajar,procuravaapenasvoltarparadentro de si, de onde não estariamais condenado a se ver. Sua fuga foiresultadodoseufracasso.Decertomodo,elesematouparasumirdoseucampodevisão,paradeixardesever.

13.AsaídadeBuellQuaindaaldeiapelaúltimavez lembrauma fuga.

Sua caminhada pela mata acompanhado de dois rapazes que haviacontratado para guiá-lo até Carolina se parece com uma luta contra otempooucontraalgumacoisanoseuencalço.Seestavarealmentelouco,eadespeitodoclichêpsicológico,eraentãoumafugadesimesmo,doduploque o mataria na eventualidade de uma nova crise, que se aproximava.Devetersentidoaiminênciadeumanovacriseedecididoiremboraantesquefossetardedemais.Nasolidão,viviaacompanhadodosseusfantasmas,via a si mesmo como a um outro de quem tentava se livrar. Arrastavaalguém no seu rastro. Carregava um fardo: Cãmtwyon. "Toda morte éassassínio", ele escreveu a Ruth Benedict, sobre os Tramai. "Não é raro

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haverataques imaginários.Oshomensse juntamaterrorizadosnocentrodaaldeia—olugarmaisexpostodetodos—eesperamseralvejadosporflechas que virão da mata escura." A aceitar a explicação da doença, noentanto,deumpontodevistaexterioremaisobjetivo,essefardoeraagoraoprópriocorpoleprosoousifilítico.Simplesmentenãopodiamaissuportaro sofrimento do próprio corpo castigado pela doença. Em carta de 2 desetembrode1939,FannieDunnQuainescreveadonaHeloísaembuscadeuma explicação para o suicídio do filho: "Acho que ele estava doentequando voltou à aldeia em junho, pois disse que ia tentar 'agüentar atédezembro'. O mais doloroso nisso tudo é que tenha chegado a cerca dequarenta milhas do avião que o teria levado ao Rio de Janeiro, onde hárecursosmédicosquepoderiamtê-losalvado.Achoquetentouporquatrodias,naânsiadevoltarparacasasobofortecalor,masacabouperdendoaluta—ficodecoraçãopartido".

Houve momentos em que, talvez por causa da inutilidade daobsessão de entender o que o guiava nas suas últimas horas, e com issotentando entrar também na sua loucura, cheguei a cogitar que pudesseestarfugindonãosódeumfantasmapessoal,masdealgumacoisaobjetivaeconcreta,dealguémdecarneeosso.Quandonosencontramos,pergunteià antropóloga que tinha escrito o artigo no jornal se ela aventava apossibilidadede ele ter sido assassinado. E ela foi taxativa.Medisse quenão havia nenhuma chance de que ele não tivesse se matado. Tudocontradiziaahipótesedohomicídio,acomeçarpelascartasquedeixou.Eeu sabia. Tanto que não insisti. TalvezQuain tivesse as suas razões paranão deixar transparecer que estava correndo perigo de vida. O que euqueriadizernãofaziamuitosentido,estavacontaminadopelaloucuradele.Oqueeuqueriadizereraquetalvezeletivessesidocompelidoaosuicídio,talvez tivesse se matado, em pânico, ao entender que não conseguiriaescapar não só da culpa, mas de uma ameaça real, antes que fosseassassinado.Talvezhouvesse razõespara ele ser assassinado.Talveznãoquisessequeessasrazõesviessemàtona."Osíndiosestãoasalvo,peloqueficomuitofeliz."Talvezpreferissesematar.Tudodependiadoquetivessefeitona aldeia. Paramim, a resposta sópodia estarnumadas cartasqueescreveu antes de morrer, as quais desapareceram com os seusdestinatários. Ainda assim, me parecia pouco provável que, se houvesseumaexplicaçãonumadascartasqueoetnólogodeixouaopai,aocunhadoouaomissionárioThomasYoung,elapudessenãotervindoapúblico.Foiquandocomeceiaacalentarasuposiçãodequedeviahaver(outerhavido)umaoitavacarta.

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Cadaumlêospoemascomopodeenelesentendeoquequer,aplicaosentidodosversosàsuaprópriaexperiênciaacumuladaatéomomentoemqueoslê.Numfimdesemananapraia,duranteumanoitedeinsônia,semanasdepoisdecomeçarainvestigaramortedeQuain,eomistérioqueameuvertinhaficadoadormecidoporsessentaedoisanos,abriaoacasoumaantologiadoDrummondnapáginada"Elegia1938":

"Trabalhassemalegriaparaummundocaduco,/ondeasformaseasaçõesnãoencerramnenhumexemplo./Praticaslaboriosamenteosgestosuniversais,/sentescalorefrio,faltadedinheiro,fomeedesejosexual./[...]Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota/ e adiar paraoutroséculoafelicidadecoletiva./Aceitasachuva,aguerra,odesempregoe a injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha deManhattan".

14.Istoéparaquandovocêvier.ElevoltouaCarolinasemsapatos.Queria

passar o aniversário na cidade. Naquela noite, me falou de outra ilha. Medissequeeunãopodia imaginar.Eu jánão tinha imaginadoantes,quandomefalaradailhaondehaviapassadodezmesesentreosnativosdoPacífico,jáfaziaquatroanos,dooutroladodomundo.Agora,jánãofalavadamesma.Nãoeraailhaemqueadormecerasobasestrelas,embaladopelashistóriasque um nativo lhe contava do crepúsculo à aurora, ao longo de semanasininterruptas.Melembrodevê-lorindopelaprimeiravezdaprópriahistória,quando chegou a Carolina, quandome falou da ilha no Pacífico, ainda naprimeiranoiteemquebebemosjuntos,faziamaisdedoismeses,comentandoas cutucadas que o nativo lhe dava, em vão, paramantê-lo acordado, e decomofiqueisem,graçaquandoelederepenteparouderirparaassumirumaexpressão grave e prosseguir o relato, dizendo que o nativo, diante dainutilidadedas tentativasdemantê-lodesperto, terminavapor sedeitaraoseuladotambém.Fiqueiconstrangidocomaidéiadequepudessepensarqueeu estava cansado de suas histórias e de que, sem, perceber, ele insinuassealgumacoisaaomecontaraquela.QuandooetnólogoacordavanasuailhadoPacífico,o sol jáestavaaltoeocontadordehistórias tinha idoembora.QuandovoltouaCarolinanofinaldemaio,memostrouorgulhosoafotoeodesenho que fizera de próprio punho, retratos de negros enormes e fortes,para que eu pudesse ter uma idéia do que me dizia. Eu não podia ter

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imaginado que a aldeia não ficava na praia,masmorro acima, até elemefalardaFlorestaInterior,governadaporumchefequemantinhaumdentedebaleia penduradonopeito como símbolo de poder.Na ilha, os chefes eramsagrados,assimcomotudoemqueelestocavametodososqueostocavam.As aldeias na costa foram aculturadas pelos invasores de outras ilhas, quepor sua vez foram influenciados pelos europeus. Só os nativos do interiormantinham intacto aquilo que ele procurava: uma sociedade em que, adespeito da rigidez das leis, os próprios indivíduos decidiamos seus papéisdentrodeumaestruturafixaedeumrepertóriopredeterminado.Haviaumlequedeopções,emborarestrito,eumamobilidadeinterna.Foioqueelemedisse. Sempre teve fascínio pelas ilhas. São universos isolados. Arrumou oprimeiroempregocomapenasquinzeanosefoitrabalhar,duranteasfériasde 1928, como ucon-trolador do tempo e das horas" —foi nesses termoscanhestrosqueeletentoumeexplicar,comoauxíliodegestos,asuatarefano canteirodeobrasdeumaestradade ferronuma região inexploradanocoração do Canadá, com a poesia involuntária dos que não conhecem alínguaemquetentamseexprimir.Aproveitavaosdiasdefolgaparaexplorarasilhasdaregião,rascunhandomapasquemandavaparacasanolugardecartasequemostravamasuaposiçãonomundo.Avançavaporrochedoseflorestasdeabetos,horasafioadesbravarregiõesdesérticasemsuafantasiade pioneiro solitário, a embrenhar-se na natureza até não restar outrafronteiraparaa sua liberdadealémdos limitesdopróprio corpo,aténadaalémdocorpo impedira fusãocomapaisagememque já sedissolveraemespírito.Eramterritóriosque trilhavasozinhonoverãoártico, infestadodemosquitos, e cujos mapas eram uma indissociável combinação da suaexperiência e da sua imaginação. Assim como o que tento lhe reproduziragora,evocê teráqueperdoaraprecariedadedas imagensdeumhumildesertanejo que não conhece o mundo e nunca viu a neve e já não podedissociara suaprópria imaginaçãodoqueouviu.Masnão foi denenhumadessasilhasqueelemefalouquandovoltouaCarolinadescalçoehumilhadonofinaldemaio.Foideumaoutra,àqualsechegavadebalsa,depoisdeduashorasdetrem,vindodacidade.Umailhaqueconheceuadulto.Faloudeumacasa com vários quartos, todos ocupados por amigos. Já não se expressavacom tristeza nem com alegria. E eu não saberia dizer que sentimentosguardavadaquelalembrança.Contoudeumatardeemque,voltandodeumacaminhada solitárianapraia, ondeabandonaraos colegas,deparoucomacasaexcepcionalmentevaziaeumhomemsentadonacozinha.Eque,antesdepoderseapresentar,oestranho,saindodasombra,sacoudeumamáquinafotográficaeregistrouparasempreoespantoeodesconfortodoantropólogo

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recém-chegado de um passeio na praia, surpreendido pelo desconhecido.Numa das noites em que veio à minha casa durante a sua passagem porCarolina, no final demaio, o dr. Buell confessou que viera aoBrasil comamissãodecontrariaraimagemreveladanaqueleretrato.Comoumdesafioeumaapostaque fizeraconsigomesmo.Havia sido traídopelo intrusoe suacâmera.Nãopodiaadmitirqueaquelafosseasuaimagemmaisverdadeira:aexpressãodeespantodiantedodesconhecido.Haviasidopegodesurpresapelofotógrafo,antesdepoderdizerqualquercoisa.Eemboradepoistenhamsetornadoamigos,pormuitotempooestranhonãoconseguiriatiraroutrafotodele.Até irromperumdiaemseuapartamento, semavisar,decididoafotografá-lodequalquerjeito,depoisdetersabidoqueeleestavadepartidapara o Brasil. Queria uma lembrança do amigo antes de embarcar para aselvadaAméricadoSul.Eusóseiqueesseestranhoeravocê.

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15.Em outubro de 1939, aos sessenta e cinco anos, Fannie Quain

mandoutrêsfotosdofilhoparaHeloísaAlbertoTorres.AmaiordelastinhasidofeitanumestúdiodeMinneapolis,em1935,antesdeeleirparaFiji.Osoutros dois retratos, um de perfil e o outro de frente, foram tirados em1937, quando Buell Quain estava trabalhando no seu apartamento, emNovaYork,provavelmentenosúltimosretoquesdosdois livrossobreFijiqueseriampublicadosapósamortedele,graçasaosesforçosdesuamãeede Ruth Benedict. "Um amigo, um artista de Nova York que tinha comohobby esse tipo de coisas, fez Buell prometer que um dia o deixariafotografá-lo.Oamigo se cansoudeesperare foi aoapartamentodeBuellsemlhedarachancedesebarbearoutrocarderoupa",esclareciaamãe,sempre tão zelosa da imagem do filho. Foram esses os retratos que oetnólogotrouxeparaoBrasileaquideixoucomolembrança,nasmãosdequemoconheceu.

Em dezembro de 1939, por ocasião do primeiro Natal depois damorte de Quain, Heloísa Alberto Torres responde à mãe do etnólogo,agradecendo as fotos: "A maior delas de início me causou uma certasurpresa,nãosabiaqueeletinhacabelostãobonitos,jáqueoscortaratãocurtosaovirparaoBrasil.Masaexpressão,embora triste, éexcelente, amesmaquemantinhaemsuasreflexões".Eracomoseumdiálogoforjadodeauto-enganosestivessesendotácitaemutuamenteincentivadoentreasduas.Algumacoisamedavaa impressãodequeambassabiame fingiamnão saber. Namesma carta em que agradece as fotos, no entanto, talvezparaacalmaraansiedadedamãe,donaHeloísadizcoi-sasque,nomínimo,contradizemumacartaestranhíssimaquetinhaenviadoaopróprioQuainpoucosmesesantesdosuicídio.

Dona Heloísa escreve à mãe do etnólogo: "Ele parecia tão bem-disposto e feliz quando deixou o Rio", e completa dizendo que nem oscolegasdeColumbiapodiamimaginartaldesfecho.

Vários outros elementos desmentem a afirmação. Por exemplo:numacartade12demarçode1939,RuthLandesescreveaRuthBenedict:"BuellpartiuhácercadeumasemanaparaoNorte.Pareciasaudável,masnofinalcomeçouasecomportardeumamaneiramuitonervosa".Quando,cincomesesdepois,Quainsemata,Benedict,preocupadacomoefeitoqueanotíciapoderiacausarsobreCharlesWagley, isoladoentreosTapirapé,

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emMatoGrosso,pedeao"bomamigo"dele,CarlWithers,quelheescrevauma carta de apoio. Withers escreve de volta a Benedict: "Fiquei muitotocado com a sua preocupação de impedir que Chuck sofresse um abalodemasiadograndecomanotíciadamortedopobreBuell.Cáentrenós,ajulgarpelascartasquehaviamemandadodoRio,creioqueelenãodeveterficadomuitosurpreso".

MasomaisperturbadorecontraditórioemrelaçãoàimagemserenaquedonaHeloísapretendepassaràmãedeQuainsobreosúltimosdiasdofilhonoRiode Janeiro, nemque seja apenaspara acalmá-la, surgenumacartaenigmáticaqueelaprópriaescreveuaoetnólogo,eminglês,em7demaiode1939,enquantoeleestavaentreosKrahô,apretextodelheproporumfuturoempregodeprofessornoMuseuNacional:

"Eumeperguntooqueolevouarasgaraúltimapartedasuacarta.Antes que apareça a oportunidade de se pensar em você ficar no Brasil,gostariaquetivéssemosumaconversaséria.Temojánãopoderesperarelhepeçoquemepermitafalaràcoeurouvert.Estoucertadequevocênãoficarámagoadocomnadadoquevouescrever.

Preciso ter total confiança emvocê e fico ressentida aopensar emcertascoisasqueseiquevocêandavafazendonoRio.Muitasvezesquisterfaladocomvocêsobreisso.Talveztivessepodidoajudá-lo.Estoucertadequesabeoquequerodizer.Alémdomais,vocênãodeveesquecerque,sealgodesagradávelocorrernaaldeiaoumesmonascidadescivilizadas,issoserádoconhecimentodoServiço [deProteçãoaos índios],eeurecebereiqueixas a respeito dos meus amigos. Pode estar certo de que serei aprimeiraasofrerasconseqüênciasdequalquercoisaerrada.Buell,seiquevocênãovailevarpingaparaaaldeia.SeiquenãovaibeberdemaisquandoestiveremCarolina.Seiquenãovaitocaremnenhumaíndia.Escrevaemedigaquepossoconfiaremvocê.Tenhodeconfessarqueàsvezesvocêmedámedo;acho-omuitoinstável,etemopeloseufuturo.

Gostaria de que você tivesse confiado mais em mim e me faladosobre o que andava fazendo. Espero que a sua estada no Brasil lhe façamuitobem,eacreditoquequantomaistempoficar,melhor.Ficareimuitofeliz em ajudá-lo e quero que esteja certo de que esta sua velha amiga ébemmaiscompreensivacomasmisériashumanasdoquepodeparecer.Mepergunto se você vai compreender exatamente o que quero dizer, masesperoquea sua inteligênciaea suasensibilidadesuplementemaminhapobrezadeexpressãonasualíngua."

Por um tempo, quebrei a cabeça para compreender o que elarealmenteestavadizendonaquelacarta,oquequeriadizercom"misérias

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humanas".Falava,emcódigo,deumacoisaquesóopróprioQuainpodiasaber.

Em 27 de maio, durante a sua visita a Carolina, depois de tomarconhecimento dessa carta, Quain aproveitou para responder a donaHeloísa: "A senhora temrazãoquandomepedeque tomecuidado comaminhareputação.Poisestejacertadequelevoumavidasexualimpecávelequeabebidaestárestritaaumdrinqueououtro,emencontrosocasionais.Nãopossotrabalharebeberaomesmotempo".

Em4de julho,menosdeummêsantesdesematar,eleescreveuaMargaret Mead uma carta abruptamente interrompida, que não foienviada:"Duvidodequeemalgumoutrolugarnomundoexistamculturasindígenastãopuras.Mas,adespeitodetodasasvirtudesdoXingu,gostariade deixar o Brasil definitivamente e limitarmeu trabalho a regiões...".Namesma carta, encontrada entre seus pertences levados pelos Krahô paraCarolina,Quainreclamavadasdificuldadesde trabalharcomos índiosnoBrasil:

"Acredito que isso possa ser atribuído à natureza indisciplinada einvertebradadaprópriaculturabrasileira.Meusíndiosestãohabituadosalidar como tipo degeneradode brasileiro rural que se estabeleceunestavizinhança— é terra marginal e a escória do Brasil vive dela. Tanto osbrasileiros como os índios que tenho visto são crianças mimadas queberramsenãoobtêmoquedesejamenuncamantêmassuaspromessas,umavezquevocêlhesdáascostas.Oclimaéanárquicoenadaagradável.Asociedade parece ter se esgarçado. Minha dificuldade aqui pode seratribuídaemgrandeparteàinfluênciabrasileira.OBrasil,porsuavez,semdúvida absorveu muitas das marcas mais desagradáveis das culturasindígenas com as quais teve contato inicialmente. Um engenheiro deCarolinaentranaáguaparasebanhardomesmojeitopeculiardosKrahô,etambémdosíndiosdoXingu.NinguémnoRiodeJaneiroobedeceaosavisosdeproibiçãodefumar,porque'noBrasilnãoprestamosatençãoaessetipoderegulamento'.

Ascriançasbrasileiraspedematodososviajantesuma'bênção'.Issopode não ter origem indígena, mas está totalmente adequado aotemperamento dos índios. Os brasileiros se contentam em fazer seuspedidosàsorte".Quain,aocontrário,nuncapretendeudeixaraodestinoasuachance.Nemnahoradamorte.

Isto foi o que ele viu. Chegou ao Rio de Janeiro às vésperas doCarnaval de 1938 e se hospedou numa pensão da rua do Riachuelo, naLapa.Obairroeraconhecidoporsuas"pensõesdoamorbarato",comoas

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definiu Luís Martins, àquela altura célebre cronista do bas-fond e daprostituição carioca. Ao pé da carta de apresentação que trazia, assinadaporFranzBoas,ojovemetnólogoescreveuàmãooseunovoendereçonoRio:"B.H.Quain,107RuaRiachuelo(PensãoGustavo)".Namesmaépoca,Banana da terra, filme em que Carmen Miranda foi imortalizada combananasnacabeçaenquantocantava"Oqueéqueabaianatem?",entrouemcartaznocineMetro-Passeio,nocentrodacidade.Ofilmeinspirouosfoliões,quesaíramàsruasdaLapa,emblocos,travestidosdebaianas,comacabeçacobertadefrutas.AindanoCarnavalde1938,umdosprincipaispersonagensdamitologia local,expoentedamalandragem,docrimeedahomossexualidade do bairro, ganhou o concurso do baile do teatroRepública, próximo à praça Tiradentes, com uma fantasia de lantejoulasinspiradanummorcegodoNordeste,deondevinha,edaíemdiantepassouaserchamadoMadameSatã,porassociaçãoaofilmehomônimodeCecilB.DeMille.

16.Istoéparaquandovocêvier.Oqueeuseiéoqueelemecontoueoque imaginei.Vocêsabede

coisasdessailhaqueeumesmonuncapodereisaber.Esóporissoquemedouo trabalhode contaropoucoque sei. Se as coisasque tenhoadizerestãotodaspelametade,epodemsoarinsignificantesaosouvidosdeoutrapessoa, é porque estão à sua espera para fazer sentido. Só você podeentenderoquequerodizer,poistemachavequemefalta.Sóvocêtemaoutrapartedahistória.Espereiporalgunsanos,mas jánãopossocontarcomasorte.Oqueeutenhoadizersópodefazersentidojuntocomoquevocêjásabe.Tambémteriamuitoalheperguntar.Sobreaslembrançasqueeleguardavadailhaaduashorasdacidade,porexemplo.Elemefaloudacasanapraiaeeuprocureiimaginar,efoiassimqueviumaconstruçãodemadeiraevidroentreasdunasnafrentedomaredoisvultosnumajaneladosótãoaocairdeumatardedechuva,depoisdarevelaçãoquemodificouparasempreavidadeambos.Sóvocêpodesaberdoqueestoufalando.Sópodetersidonacasadapraiaqueelelhefaloudelapelaprimeiravez.Senão,porqueteriaassociado,bêbado,numadasnoitesemquemeprocurouemCarolina,omareachuvaàdecepçãoqueinfligiaaosqueoamaram?

Devemterdiscutidosobreaquelamulher.Elepensavaquevocênão

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soubessedela.Efoiquandoserevelouatraição.Poisnaquelanoitechuvosavocê lhe disse não apenas que sabia de tudo, mas que também estavaenvolvidocomela.Eparaelefoiumchoquecujasconseqüênciasvocênãopodia imaginar.Tenho caparamimqueno fundonadapode surpreenderquemsepermiteouvirnosoutrosaprópriavoz.Elemefalavadevocêsemmedizeroseunome.Elemefalavadohomemqueohaviatraído.Mas,seisso puder ajudá-lo, saiba que ele reconheceu a sua amizade. O que elechamou de traição era no fundo o que o atormentava nos seus própriosatos. Saiba que, de ummodo ou de outro, ele reconheceu que tambémohaviatraído.

Inverteram-seospapéis: ao contráriodonegroque lhe cantava ascançõesdeumailhadoPacíficoatéadormecê-lo,equeelenãoencontravaaseuladoaoacordarcomonascerdosol,foivocêquemacordousozinhonodiaseguinte,quandoeledeixou inadvertidamenteacasadapraiapelaúltimavez.Osdoisvultosdiscutiramsobreumamulherduranteanoitedechuva.Oqueelenãosabiaatéentãoéquevocêtambémestavaenvolvidocomela.Suponhoquaisforamassuasrazões.Vocêpensavaqueassimeleaabandonaria. Não queria perdê-lo. E ele sumiu. Quando você acordou, acasa estava vazia. Talvez já suspeitassequenão se veriammais senãooprocurasse,mas foi preciso ouvir a notícia de amigos comuns, descobrirque ele estava de partida para o Brasil — o que ele já devia estarprogramando, emsilêncio, durantemeses,parapor fim sedecidirdepoisdaquela noite de chuva na praia —, enfim, foi preciso entender que adiscussãotinhasidoumadespedida,àmaneiradele,paraquediasdepoisvocêcorresseàcasadodr.Buellnacidade,determinadoafazerosretratosque ficariam como a única lembrança dele, a marca que deixou na suabrevepassagemporestaterra.

Quando,nosmomentosdistraídosdemaiormelancolia,elefalavadamulher, semdeixar claro se era a própria esposa, eu sempre a associavaàquela sobre quem vocês teriam discutido na casa da praia e que teriamarcadoofimdeumaamizade.Eusópodiasupor.Elemefalouapenasdeumamulher, dohomem,queo traiu edemaisninguém, se é oque vocêquersaber.Nocomeço,acheiquesópodiaseramulherdele,amesmadequemfalouaosíndiosantesdesematar.AmulherqueoteriatraídoequelhedesobedeceraaoaceitarumempregonumjornaldaAméricadoNorte.Oestranhoéquehaviameditologonaprimeiranoitequenãoeracasado.Chegueiaacharquepudesseestarfalandodaprópriaesposaquandofalavadela,massóatéelemecontardeumanoitenacidadequando,devoltaparacasa—paradizeraverdade,nãofalouemcasamasemhotel—,amulher

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que o acompanhava ficou tão perturbada diante da visão de uma moçapequeninanovagãoemqueestavam—umamoçaquenãochegouavê-losentreosoutrospassageiros—,enfim,ficoutãoatordoada,queoobrigouadescer quatro estações antes de chegarem ao destino e continuar a pé.Estava lívida como se tivesse visto um fantasma. Epor mais que ele lheperguntasse,elanãodizianada,nãorevelavaarazãodoseupânico.Sódiasdepois,aoacordardeumpesadelonomeiodanoite,gritandoonomedamoçapequeninaquenãotinhavistopelosúltimostrêsanoseque,porumainfelizcoincidência,reapareceracomoumaassombraçãonomesmovagãoemque ela estava comodr. Buell, só então, enquanto ele a acalmavanacama, é que ela se viu obrigada a lhe contar o que a levara a descer àspressas daquele trem.A história datava de um tempo emque eles aindanãoseconheciam,elaeodr.Buell.Amoçadotremeraumamulherzinhaesdrúxula, comumnomeesdrúxulo, segundoele.AochegaraNovaYork,vinda do sul dos Estados Unidos para estudar e vencer no mundo damúsica,amoçasehospedarainadvertidamentenumprostíbulo,agradecidaàsorteporacreditar,namaiscompletaingenuidade,queeraaceitanumapensão de moças. E foi ali que as duas se conheceram, a sulista recém-chegadaeaveterana,queentreos índioselechamoudeesposanosseusúltimosdias.Percebendoaingenuidadedasulista,elaseofereceranãosóparalhemostraraconduçãoquedeviapegaratéaescolademúsica,mastambémparaserguardiãdoseudinheiro,eneméprecisodizerque,aodarpor si, a pobre moça entendeu ao mesmo tempo que a companheira depensão havia desaparecido com todas as suas economias e que o queacreditaraserumapensãoeranarealidadeumprostíbulo.Asduasnuncamaisseviram.Aquelaqueodr.Buellchamavademulhernuncapodiaterimaginadoquereencontrariaaoutranumacidadetãogrande,atévê-lanovagãodo trem, comoumaaparição, entreosoutrospassageiros.Efoiporessapassagemdescabidae aparentemente semnenhuma importânciaousentido, narrada comdisplicência, comoele costumava fazer semprequequeria revelar alguma coisa importante, que eu entendi o que ele queriadizer. Falava da mulher para que eu entendesse que andava comprostitutas.

Era ambíguo no que dizia. Desde a primeira noite, eu sabia dacicatriznabarriga,queelesórevelouaosíndios,entreoutrasbarbaridades,nashorasdedesesperoqueprecederamasuamorte,eéestranhoquenãoa tenham visto antes, em alguma das vezes em que se banharam juntos.Disse-lhes que era conseqüência de uma doença antiga, uma doença queestavavoltandoeseresolviana febre.Comoagoraa febrenãovinha,era

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sinal dequeos seusdias estavamcontados, e elepreferia se adiantar aosofrimentodamorteinevitável.NaprimeiranoitequefoiàminhacasaemCarolina, em março, ao levantar a camisa num gesto impensado ecompulsivo, para me mostrar a cicatriz enquanto falava dos Trumai,mencionouentreosdentesaprofissãodopai,queeramédico-cirurgião.Naminha lembrança horrorizada, sem que ele jamais tenha realmente ditoaquilo, entendi que o meu amigo tivesse sido operado na infância peloprópriopai.

Combinamosqueeuoacompanhariaacavaloaolongodoprimeirodiadesuajornadadevoltaparaaaldeia.Aviagemeracansativa,eeufaziaoqueestavaaomeualcanceparaajudá-lo.Meofereciparaacompanhá-loao longo da primeira parte, um dia inteiro no lombo de animais.Pernoitamosnomato.Passamosanoiteconversando.

Talvez eleja soubesse, ou intuísse, o que estava por vir. Talvezquisesseseenganar.Osíndiosconheciamumbrejoondepodíamospassaranoite.Nofinaldoprimeirodia,cortaramtalosdeburiti,construíramumachoupana que nos servisse de abrigo e fizeram fogo. Depois de comer,foramdormir,e ficamossónósdoisaconversar.Océuestavacobertodeestrelas.Eleme faloudeváriasdelasedecoisasqueouviusobreelasnotempoemquepassouemFiji.Asestrelasnão têmnenhuma importância.Osíndiosacreditamquesejamfogueirasacesasànoiteporaldeiaseíndiosqueficarampresosnocéu,nooutromundoquenoscobreeenvolvecomoum chapéu ou um espelho, quando lhes retiraram a escada que ligava aesfera celeste à Terra. Tanto faz o que são as estrelas para nós, para osíndiosouparaosnativosdoPacífico.Naquelanoite,elebebeumaisdoquedevia.Ficouembriagadomuitodepressa.Nãotenhodúvidadequeestavamais fraco e tinha menos resistência ao álcool. Já vinha bebendo pelocaminho.Traziapingacontraaminhavontade.Nofinaldatarde,teveumataque de neurastenia com os índios, que não conseguiam construir achoupanado jeitoqueelequeria.Começouassimqueosviu surgindodomato com os talos de buriti, que não lhe pareciam adequados ousuficientes. Ninguém entendeu. Parecia estar falando em inglês, teresquecidoondeestava.Observei tudoemsilêncio.Arrancoudasmãosdeumdos índios, comumsafanão, abagagememqueesconderaa cachaça,quandoopobrekrahôtentavaacomodá-laaopédeumembaré,amesmabagagemquelhehaviaconfiadohorasantes,quandonãoconseguiramaiscarregá-la.Nuncaotinhavistoassim.Osíndiosficaramacuados.Elegritoucomelesaté secalarde repente, comose tivessedespertadoaturdidodeumsonoprofundo.Calou-seesaiuparaobrejo.Quandovoltou,estávamos

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ao redor do fogo. Voltoumais calmo. Comeu em silêncio e, assim que osíndiosforamdormir,mepediudesculpas.Masfoisó.Comosenadativesseacontecido,começouafalarsobreapaisagemdolugardeondevinha,nosEstadosUnidos,queàsvezessepareciacomaschapadasdocerradoquenoscercava.Continuavaabebersentadoemfrenteao fogo.Medissequedona Heloísa o proibira de levar pinga para a aldeia e que por issoprecisávamosterminaragarrafaalimesmo.Tentavasorrir.Tomeialgunstragos, para não lhe fazer desfeita. Me disse que estava esperando umacartamuito importantedosEstadosUnidoseme fezprometerqueassimqueoaviãodaCondorchegassecomasuacorrespondênciaaCarolina,euaremeteriaparaaaldeiapelasmãosdeumportador.

Prometiquemandariaomeupróprioirmãoacavalo.Nãosabia,eujádisse,quenaquelaúltimacorrespondênciavinhaasuasentençademorte.Me contou uma história que o pai cirurgião lhe contara quando foram àEuropa pela primeira vez, quando ainda era adolescente, e que diziarespeito aumnavio assombradoque jamais conseguia chegar aoporto epercorria os mares, à deriva, desde tempos imemoriais. A cada vez quecruzavam, outros navios, os membros da lúgubre tripulação seaproximavam em botes para implorar aos marinheiros das outrasembarcaçõesquelevassempacotesdecartasparaterrafirme.Aochegaremaosportosdedestino, porém, osmarinheirosdescobriam sempreque ascartas eram endereçadas a homens que ninguém conhecia ou que jáestavammortos fazia muito tempo. O dr. Buell tambémme falou de tervisto uma vez, em suas andanças pelo Rio de Janeiro, entre a Lapa e oCatete, um templode colunas em cujo portão estava inscrita a frase: "Osvivossãosempreecadavezmaisgovernadospelosmortos".Perguntouseeu já tinhapensadonaquilo, se eu fazia idéiadoque aquiloqueriadizer.Perguntou se eu já estiveranoRiode JaneiroduranteoCarnaval. Estavacadavezmaisbêbado.Eutambémnãoestavasóbrio.Enemseitudooqueouvi.

Imagineioseusonhoeoseupesadelo.MedissequechegouaoRionoCarnavalde1938equeconheceu,numblocoderua,umanegraaltaevistosa,fantasiadadeenfermeira.Vestiauniformebranco,chapéubrancoesapatosbrancos,querealçavamasuapeledebreu,cintilantedesuor.Elemal falava português. Não entendia nada do que ela lhe dizia. Estavabêbado. Levou-a para o seu quarto de pensão, dormiram juntos, masquandoacordounodiaseguinte,ela jánãoestava lá,comoocontadordehistórias de Fiji, que o abandonava antes donascer do sol, e no lugar daenfermeira havia um homem na sua cama, um negro forte e nu, como o

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nativodos retratosquememostrara. Jánãose lembravadenadadoqueacontecera,nemdecomoaquelehomemtinhaidopararali.Eleseexprimiapordenegações.

Istoéparaquandovocêvier.Entreascanções,lendasehistóriasqueonegro lhecontaradebaixodasestrelasdasua ilhanoPacífico,dooutroladodomundo,houveumaqueodr.Buelldeixouparamerelatarnanoiteemquenosseparamos.EraahistóriadeumchefedeVanuaLevuque,àsvésperas de visitar outra aldeia, ouviu falar de um homem que seduziatodasasmulheresqueporalipassavam.Comaintençãodepregar-lheumapeçaxantesdechegaràaldeia,pediuaseusantepassadosquelhedessemaaparênciadeumamulher.Entrounorioeumaenguiafezdeleumamoça.Seguiu para a aldeia e, ao chegar, logo foi abordado pelo sedutor, que oconvidou a dormirem sob o mesmo teto. O chefe em forma de mulherrechaçou todas as investidas e propostas, até o sedutor, contrariado, e àfalta de outros recursos, terminar por lhe pedir em casamento. No diaseguinte,enquantoochefeemformademulherfingiaestarsearrumando,o homem tentou seduzi-lo de novo.Mas, dessa vez, o chefe não ofereceuresistência.Quandoosedutorsubiuemcimadele,osdoispêniseretossetocarameosedutorfugiuenvergonhado,perseguidopelochefe,queagoraexigia que dormissem juntos. Ao terminar a história, o dr. Buell virou-separamim,sorriuedissequeestavamuitodoente.Depoisbalbuciouentreosdentesalgumacoisaqueeuentendicomo:

"Todamorte é assassínio",mas ainda sem compreender o que elepodia estar querendo dizer com aquilo, e caiu no sono como se tivessedesmaiado. Também dormi pesado naquela noite. Tanto que, quandoacordei no dia seguinte, sem saber o que tinha ouvido, se ele havia mepregadoumapeçaou se falara a sério, odr.Buell e os índios já estavampreparadospara apartida.Tomavamcafé.Haviadeixadoparame contartudonaúltimanoite,entreumtragoeoutro,acaminhodaaldeia,enquantoosíndiosdormiam.Eraaherançaqueelemedeixavaparaomeucaminhode volta, sozinho com os cavalos. Pois dali em diante ele e os índiosseguiamapéeeuvoltavaparaCarolinasó, levandocomigooqueelemedissera a ecoar no fundo da cabeça. Ao vê-lo partir com os índios pelamanhã,virando-separatrás,ameacenarcomamãopelaúltimavezantesde desaparecer entre os arbustos, não queria imaginar, embora por ummomentoopensamento tivessemepassadopela cabeça,quenuncamaisnosveríamos,queaquelaeraanossadespedida.

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17.Emfevereirode1939,aostrintaeseteanos,oantropólogofranco-

suíço AlfredMétraux, especialista em América Latina, encontrou CharlesWagleyabordodonavioqueotraziadeNovaYorkparaoRiodeJaneiro.Em Barbados, os dois travaram conhecimento e passearam porBridgetown.Devoltaaonavioeaomar,WagleycontouaMétrauxahistóriada sua vida. Tinha um irmão deficiente. O menino de quinze anos tinhacorpodeonze.Wagleyestavadecididoadarpartedesuaseconomiasparatentarcuraroirmãomenor,queeleadorava.Emcontrapartida,parecianãogostar damãe. Contou que foi dançarino de cabaré, professor particular,quetrabalhouemrestaurante.

Dizia não se sentir à vontade com as falhas na sua educação. Aconfissão comoveu o antropólogo suíço, que até então havia deplorado a"simplicidade enfadonha" do jovem colega americano. "Também fiqueiimpressionadocomamaneiradesprendidacomoelefaladapederastia.Elepróprio confirma a impressão que tive a respeito desse assunto. Ele merelata seus sucessos amorosos: novo mergulho nos arcanos da vidaamericana",escreveuemseudiário.

AodesembarcarnoRio,em9defevereiro,MétrauxfezumavisitaaHeloísaAlbertoTorresemseuescritórionacapeladaimperatrizdoMuseuNacional. O prédio estava caindo aos pedaços. Em suas anotações, oantropólogo suíço relatou o seu encontro com um homem misteriosochamado "Cowan", sobrequemnãohá registrosemnenhumoutro lugar:"Rosto enérgico, traços regulares e bem delineados, um ligeiro ardor,ombroslargos".

De volta ao hotel Belvedere, em Copacabana, Métraux jantou comumaamericanaquevieranomesmonavioecomquemelevinhaflertandofazia dias. A eles se juntaram Wagley e "Cowan". É nessa passagem dodiárioque a identidadedomisteriosopersonagempor fim se revela, pordedução:"CowannosrelatasuaviagemaoXingu,edepoisseestendesobreotemadasuasífilis.Nafranquezabrutaldoseudiscurso,nasbrincadeirasque ele faz sobre a sua própria condição, creio descobrir uma bravatadesesperada.Cowanestámuitobêbadoeencheasalacomotrovãodasuavoz.Wagleyoacalmacom'psit,psit'delicadosegentis".Ficaóbvioque,aoser apresentado a Quain, o franco-suíço não entendeu o nome do jovemetnólogoamericano.Quain,Cowan.Nojantardanoiteseguinte,Wagleylhe

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pareceumuitodeprimido.Em1947,emnovapassagempeloRio,MétrauxjantoucomBernard

Mishkin, jovem antropólogo da Universidade Columbia, que eleconsiderava rancoroso, pretensioso e fofoqueiro. Mishkin aproveitou aocasião para lhe contar sobre a juventude de Wagley: "Mãe divorciada,infância pobre e negligente". Em seguida, deu a ficha completa deQuain,mortohaviaoitoanos:"Filhodepaialcoólatra,masrico,edemãeneuróticae dominadora. Obriga-se à homossexualidade com negros, dos quais eletem horror. Garoto de talento, poeta". Métraux não se conteve em suasnotas:"Comocaluniador,nãoháninguémmelhordoqueMishkin".

18.Oqueelequeriadizereraoutracoisa.Nãoseisevocêsedácontadas

conseqüências do que ele me contou, do que aquilo podia provocar sechegasse aos ouvidos das autoridades. Imaginariam o pior, tudo seriapretextoparaconcluirqueeleteriacometidoatosnaaldeiaque,contráriosànaturezahumana,justificavamqueosíndiosomatassem.0maisfácileraperseguirosíndios.Vocênãopodeimaginararesponsabilidadequeelemepôsnosombros:porviastortas,medeixouaincumbênciadefazerchegaràsmãosdosdestinatáriosascartasqueescreveuàbeiradamorte,comoosmarinheirosque levavamacorrespondênciadosmortospara terra firme,nahistóriadonavioassombradoquemecontounaquelanoite.Elesónãopodia imaginar o tamanho do meu medo. Não podia imaginar que, portemor, eu acabaria preferindo a segurança de guardar uma das cartas acorreroriscodeenviá-la.Porpuradesconfiança.

O que ele me contou com displicência diante do fogo, entre umahistória e outra, tornava os índios suspeitos de um crime presumido devingança ou autodefesa. Você não pode entender o que eram aquelestemposouoqueéestepaís,ummundoabsurdogeridopeladesconfiança.Tentemedesculpar.Tudomelevavaacrerqueacartaqueelelhedeixouaomorrer podia revelara verdade, qualquer que ela fosse.A verdade e amentiranãotêmossentidosqueotrouxeramatéaqui.Eeunãopodiamearriscar.Eraaúnicacoisaqueeunãopodiadeixarviràtona.Seosíndiostemiam tanto ser acusados, não era certamente porque omataram, masporquepodiamterrazõesparatanto.

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Embora nada tenham feito e ele tenha sido bastante enfático emagnânimo para deixar isso bem claro. Ele se matou para que nãopairassemdúvidassobreasuamorte.

Epara inocentá-los,porquesóasuaexistência—easuapresençana aldeia— já os incriminava. Foi o que terminou por entender na sualoucura.Entreascartasquedeixou,sóestavamfechadasasqueendereçaraaopai,aocunhadoeavocê.Asoutrasnãoisentamapenasosíndiosdetodaresponsabilidade;elaseximemoetnólogodaprópriaculpaeopõemacimade qualquer suspeita. O suicídio elimina não apenas a hipótese dohomicídio,masosmotivosdequemtivesserazõesparamatá-lo,umpaiouumamãevingandoofilho,ummaridovingandoamulher,irmãosvingandoumirmão.

Saemtodoshonrados.Sãotodosinocentes.Estoucertodequeoqueelemecontouaospoucos,aolongodaquelasnovenoites,foiumaconfissão,masdealgumacoisa alémdoqueparecia confessar. Foi apreparaçãodasuamorte.Nãoachoquetenhafeitonada.Oqueelequeriamedizeréqueera capaz de fazer e que já não podia se controlar. Sempre foi muitoambíguonoquedizia.Nãomerestaoutraopção.Decididarumfimaestacarta que lhe pertence e cujo conteúdo desconheço, em parte porignorância, em parte por precaução {não podia pedir a ninguém que atraduzisse),equeatéagoratinhaguardadocomoúnicointuitodeprotegê-los, a ele e aos ín-dios, fazendo-a chegar intacta ao seu destinatário. Sópodiaentregá-laemmãos.Foiaherançaqueelemedeixou.SouumhomemsobsuspeitadesdequemedestituíramdocargoderesponsáveldopostoManoel da Nóbrega. Desde então que o espero, mas já não posso mearriscar.Omeumedoeraque,nasualoucura,eletivesseusadoacartaquelheendereçara, fechada,para lherevelaroquepasseiasuspeitarnofinalde nove noites de conversas, suspeita que aumentou ainda mais com anotícia damorte dele: que ele se adiantara ao assassinato, que não quisdeixar nenhuma chance ao destino. Hesitei em acreditar que estivessemorto, como você também deve ter hesitado. Por alguns dias achei queaindaoveria,queele tivesse fugido, trocadode identidade.Atéentender.Foiquandosobreveioomedodeque,nasualoucura,eletivessesidocapazde revelar naquela carta coisas que pudessem levantar suspeitas. Coisasquenãodiriaaopaieaocunhado,masavocê,sejaláquemfor.Coisasquenãofaziampartedarealidade,masdasualoucura.Eque,senãocometeu,tambémjánãoeracapazdeevitar.

Istoéparaquandovocêvier.Eprecisoqueestejapreparado.Quandose sentir só e abandonado, quando achar que perdeu tudo, pense no dr.

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Buell, meu amigo. Em algum momento, todos se sentirão sozinhos eabandonados.Sóumteste incessanteaos limitesdocorpopodenosdaraconsciência de que continuamos vivos. Se pomos o corpo à prova, não épelo capricho fútil de saber até onde podemos ir, não é para desafiar oslimites,masparasaberondeestamos—emboraaosoutrospossaparecerque cometemos um ato contra a natureza. E muitas vezes, quandodescobrimos,jáétarde.

Nodiadoseuvigésimosétimoaniversário,elemedissequesabiaoqueeraamorte:umexcessoqueseanula.E ficarmaiscansadodoqueocansaço permite, exceder as próprias condições, reduzir-se amenos quezero, ultrapassar as vinte e quatro horas de um dia sem chegar ao diaseguinte.Odiabonocasodelefoinãoterninguémporpertoparaampará-lonessamalfadadahora.Quandoentendeuqueprecisavavoltar,que foralongedemais, jánãotinhaforçasparaacaminhada.Todobicho,nemqueseja cobra rastejante,nemque sejauma lesma,umcaracol,nemque sejaumaveznavida,quandoolhaparaumaárvoreouparaumapedraouparaum pedaço de céu, vê a totalidade do universo e compreende por uminstanteoqueé,ondeestáeoquesepassaasuavolta.Depoisdamortedele, saí a procura dessa árvore, tentando compreender. Os índios melevaram até o túmulo cercado de talos de buriti. Podia estar diante dequalquerárvore.Tivequeacreditarquehaviasidoali.Acomprovaçãoeusóteriaseexumasseocadávercomasprópriasmãos.Muitacoisanãosepodedesenterrar.Sozinhoeunãotinhaforças.

Somos todos cães de beira de estrada, pegos de surpresa, sementenderque é sempreomomento erradode atravessar. Ele foi pegodesurpresa por si mesmo. Eu teria feito qualquer coisa para salvá-lo, setivesse entendido que eleja estava no fim de suas forças quando voltouparaaaldeiadaúltimavez,emborahojecompreendatodososindíciosqueelemedava,assimcomoasatribuiçõeseresponsabilidades.Teriatentadoimpedi-lo, mas o que aconteceu entre nós na ocasião me deixou seminiciativa,nofundoporrespeitoaodr.Buell.Eraumhomemorgulhosoeeusabiaqueiriaatéofim.Maseunãopodiainterferir,aindamaisdepoisdanossa última conversa, depois da última noite nomato. Talvez por já terpercebido a sua instabilidade, decidi acompanhá-lo a cavalo durante oprimeirotrechodopercurso—massóisso—,quandoelemedisseoquehojeeuteriapreferidonãoouvir,poissópodeaumentaromeuremorsoeoarrependimento de tê-lo deixado seguir em frente. Tenteme entender. Aconsciência que ele me deu sobre o seu estado foi também o que meimpediu de intervir. A minha ação teria sido uma ofensa e uma traição.

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Seriacomotornarrealo fantasmadohomicídioqueoassombrava.Oqueelemecontoueraparaeuguardarcomosenãotivesseouvido.Efoioquefiz. Era a minha herança. Peço que procure me entender e me perdoarassim conto entendi que você não podia imaginar os efeitos que a suaúltimacartateriasobreumhomemnaqueleestadodesolidãoedesamparo.

Oque lhecontoéumacombinaçãodoqueelemecontouedoqueimaginei.Assimtambém,deixo-oimaginaroquenuncapodereilhecontarouescrever.

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19.Ninguémnuncameperguntou.ManoelPerna,oengenheirodeCarolinaeex-encarregadodoposto

indígenaManoeldaNóbrega,morreuem1946,afogadonorioTocantins,duranteumatempestade,quandotentavasalvaranetapequena.OEstadoNovoeaguerratinhamacabado.Deixousetefilhos,trêshomensequatromulheres.

Voltava de Miracema do Tocantins para Carolina. Quem conta ahistória são os dois filhos mais velhos, que me garantiram que ele nãodeixounenhumpapeloutestamento,nenhumapalavrasobreBuellQuain.FranciscoPerna,deMiracema,dissequeopai"voltavaparaCarolinapelorio, houve uma tempestade e a balsa virou. Ele já estava doente dosintestinos.Ocoraçãonãoagüentou.Tentounadaresalvaranetasobreumamala, mas o corpo dele afundou. A neta foi salva por um amigo queconseguiu nadar até a margem". Só dias depois do acidente os filhostiveramnotíciadequeo corpodopai, levadopela correnteza, tinha sidoachadoeenterradoemalgumlugarrioabaixo,quenãosabemondeé.FoienterradoeesquecidocomoBuellQuain,nomeiodomato.Franciscoeraummeninoquandooantropólogofreqüentouacasadopai:"Eleeraalto,vermelho e muito querido. Era amigo do meu pai. Era muito calmo eeducado. Foi uma surpresa o seu suicídio". A filhamais velha, RaimundaPerna Coelho, também se lembra do etnólogo, das vezes em que ele.visitavaopai emCarolina: "Eles conversavammuito.Ousaíama cavalo".Hoje,comoo irmãoFrancisco,RaimundaviveemMiracema.Pediquemedissesse o que sabia sobre amorte de Quain: "Ele não quis mais comerdesdequerecebeuasúltimascartasdecasa.Edisseaos índiosquehaviasidoabandonadopelamulher,queelaoteriatraídocomocunhado.Queelalhe teria desobedecido, indo trabalhar num jornal da América do Norte.Antes de morrer, para poder escrever as últimas cartas, queimou tudo,roupasepapéis,jáquenãotinhaluz.

EraorumorquecorriaemCarolina".Nofinaldascontas,eupensei,enquanto falava comelano telefone, erabempossívelquea "traição"docunhado tivesse a ver com o dinheiro, que era um dos pontos cruciais erecorrentes em todas as cartasdeixadasporQuain: adistribuiçãodo seuespólio entre Ruth Benedict e a família, o que devia em Carolina ou aoMuseuNacionaleoquehaviaprometidoaosíndios,acomeçarpelosdois

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queoacompanharamnaúltimaviagem.Oetnólogochegouaatribuiroseusuicídio às dificuldades da família.Nesse caso, era possível que, aos seusolhosperturbados,ocunhadootivesse"traído"simplesmentepordeixarairmãeasobrinhaemmásituaçãofinanceira,emboraMarionKaisertenhanegado qualquer dificuldade, não sem uma ponta de orgulho ferido, nacarta que escreveu a Ruth Benedict depois do suicídio do irmão.ManoelPernanãodeixounenhumtestamento,eeuimagineiaoitavacarta.

Ninguém nunca me perguntou. E por isso também não preciseiresponder.Meupaimorreuhámaisdeonzeanos, às vésperasdaguerraqueantecedeuaatualequedecertaformaaanunciou.Hoje,asguerrassãopermanentes.EunãomoravanoBrasil.

Minha irmã me ligou, pedindo que me preparasse para o pior. Ahistória não é simples. A certa altura, meu pai começou a andar comdificuldade.Comotinhabebidomuitoavidainteira,apontodeváriasvezester levado um copo de uísque na mão quando saía sozinho de carro,achamos que era o efeito acumulado do álcool. E aí começou a terdificuldade de se expressar. Falava mal, enrolava a língua. Deixou deassinar cheques. Vivia com uma libanesa que conhecera na piscina doprédio emquemorava, emSãoConrado.Meupai teve váriasmulheres ealgumas vezes mais de uma ao mesmo tempo. Caía por amantes, e poralgumacoisavagabundatambém.E,emboranãofosseumhomemliberal,sempre tive a impressão de que no fundo havia nele algum tipo decompreensãoesolidariedadepelosquesedeixamcarregarpelodesejo,porcaminhos que não escolheram e que muitas vezes os levam à própriadestruição. A mim, quando pequeno, sem que nada pudesse justificar ocomentário(anãoserumaintuiçãofabulosaouumacapacidademágicadeprognose,queelenãotinha),umavezeledisse,semmaisnemmenos,que"os homens não amam sozinhos, sem as mulheres". E eu fiquei com aimpressão de que só podia estar falando por experiência própria,provavelmentedepoisdetermeobservado,enquantofingiadormir,amemasturbarporbaixodoslençóis,jánaquelaépocasemomenordomparaoautocontrole, nomeiodeumadasnoites emquedividimosumquartodepensãonumacidadequalquerdointeriordeMatoGrosso,BarradoGarças,senãomeengano,acaminhodasfazendas,enessecasosópossoacharqueocomentárionãofosserepressor,masfrutodeumsentimentoprotetoreprevidente. Falava com conhecimento de causa. Ele se entregou a umdesejo que, se tinha alguma coisa de sádico, também tinha muito demasoquista.Podeparecersimplista,masoquetiroudasmulheresaolongodasuavidaativatevedepagardevoltaàsqueocercaramnavelhice.Eu

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nuncasoubeaocertooqueeleaprontoucomaprimacomquemviviafaziaanoseque investiuumasomaconsiderávelnas fazendasdegadoqueeledecidira abrir na selva. Ao que parece, pegou o dinheiro dela, aomesmotempo que passou a ser visto, sem nenhum constrangimento aparente esemfazernenhumesforçoparaevitarahumilhaçãoàprima(aocontrário,tudo pareciamuito deliberado), com umamulher vinte anosmaismoça,miss alguma coisa, que deve ter encontrado num bar para solteiros ouexecutivos, oquemuitas vezesdánamesma, e comquemme levoupelaprimeira vez na vida, sem que eu soubesse aonde estávamos indo, a umterreiro de macumba numa das visitas que me fez no Rio durante esseperíodo. Aomesmo tempo que não conseguia resistir aos apelos de umaputa,precisavafazeramulhercomquemviviaàquelaalturasesentircomotal.Meupaipassouum fimde semanacomamissna casaquemantinhacom a prima na praia. Os amigos dela o viram com a moça. Foi umescândalo. A prima contratou advogados para reaver o dinheiro queperdera com o meu pai, já que ninguém poderia ajudá-la a recuperar oorgulhocomquehaviadesafiadooirmãoqueaalertaraanosantessobreoprimo, quando ela resolveu viver com ele, contrariando o bom senso,porqueestavaapaixonada.

Oirmãohaviacortadorelaçõescomela.Osfatosacabaramlhedandorazão.Meupai tinha fama. Perdeu o equilíbrio da suaperversão, entre osadismoeomasoquismo,nodiaemque,sempreatraídopelomaisbaixo,acabouseaproximandodegentepiordoqueele.Passoudealgozavítima,desádicoamasoquista.Eraoriscoquecorriadesdeoinício,efoiquandocomeçouapagar.Viveualgunsanos comumamulherque,para surpresadele,quandoomeupaideu inícioao tradicionalúltimoatodoseu teatrosádico,mostrou que não era puta só na cama e distribuiu por São Paulointeiraumacartaemquerevelavatodosospodresfinanceirosdoamantequeagoratentavalhepassaraperna,deixando-asemnada.Nãoseisefoiessa a razão principal, mas o fato é que ele decidiu sair do Brasil.AproveitandoaescaladoaviãonoRio, foiàcasadaminhamãe,comoardesiludido de quem acabou de tomar uma surra, e passou a tardeconversandocomagente, e comela, oquenão faziahaviaanoseamimparecia espantoso. Nos Estados Unidos, terminou se casando de novo,ingênuaouinadvertidamenteparaumhomemcomasuaidadeebagagem,comamulherquecuidavadasuacontabancária,umafuncionáriacubanaqueconheciacadatostãodoqueeleguardavanobanco.Paramim,essefoio passo definitivo, o sinal determinante de que o equilíbrio da suaperversãoseperderacomaidade.Semperceber,haviacaídonaarmadilha

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doprópriodesejo.Nãoqueacubananãotenhasofridonasmãosdele.Parase ter uma idéia, meu pai comprou um veleiro de trinta e tantos pés eobrigou a mulher, que não sabia nadar, a fazer com ele, que não sabiavelejar, e um velho marinheiro aposentado, travessias noturnas entre aFlóridaeasBahamas,atéodiaemqueforampegosporumatempestadeinesperada eporpouconãomorreramos três.Desde então, cessaramastravessias. Quando os visitei em Treasure Cay, uma ilha remota dasBahamas,obarcojánãosaíadoancoradouroeastorturasqueeleinfligiaàmulher se limitavamàs brigas e ao sexo, de que, pelo quedepois elemecontou,elarealmentenãogostava,pelomenoscomele.Quandoascoisasjánãoestavamnadabem,osdois forammorarnoRio.Equandoomeupaicomeçouaaprontardemais,elavoltouparaMiamieentroucomumpedidodedivórcioepartilhadosbens.Nuncanenhumaoutramulhertinhaousadofazerissocomele.Foipegodesurpresa.Parapiorarascoisas,haviapostotudo o que comprara nos Estados Unidos (um apartamento, um barco edois carros), além dos investimentos, no nome dela. Tinha a ver com osimpostosecomotipodevistoderesidênciadele.OadvogadobrasileirooaconselhouanãocompareceràaudiênciaemMiamiedeixarqueelaficassecomosbensamericanosparaevitarperderametadedetudooquetinhanoBrasil.EmeupainuncamaispôsospésnosEstadosUnidos.SozinhonoRio, ele passou a beber e tomar antidepressivos e calmantes ao mesmotempo.Umdia, depoisde seismeses sem falar comigo,pordesaprovaromeu modo de vida (queria que eu trabalhasse, como ele, em vez determinar a faculdade), me ligou pedindo ajuda. Não sabia onde estava(estava em casa), não sabia onde estava a mulher (que o abandonara etinhavoltadoparaosEstadosUnidos),nãosabiaquemera(eraomeupai).Passou a sair commais de umamulher por semana, às quais de vez emquandome apresentava orgulhoso. Gastava o que não tinha e varava asnoites comoumplayboyzinhodevinte anos.Tinhamaisde sessenta.Umdiaconheceuumavizinhadomesmoprédio,alibanesa,eaparentementeseacalmou.

Oumelhor,seuestadocomeçouadeteriorar.Eleabotavaparaforadoapartamentoeelavoltavaumasemanadepois.Eleaexpulsavadenovoeelavoltava,eassimacabouporseimpor,semqueeleconseguisseresistir.Elapassoua tomar contade tudooqueeradele, equandoeueaminhairmãnosdemosconta,eratarde:meupai jánãofalava,nãoandava,eelaconseguira arrancar dele uma procuração em que, à falta de assinatura,constavam as impressões digitais do polegar. Por um tempo, ninguémsoube que doença ele tinha. Fizeram muitos exames e não constataram

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nada,atéqueporfimummédicopediuumatomografiaedeuodiagnósticocombasenamorfologiaesponjosadocérebro:eramgrandesasevidênciasde que meu pai sofria da síndrome de Creutzfeld-Jakob, uma doençararíssimae fatal.Seucérebroestavasetornandoumaesponja.Decidimosque era preciso interditá-lo, por razões práticas e objetivas. Foi quandodescobrimos, por acaso, a existência da procuração, que a libanesa tinhanos omitido. E uma coisa levou a outra. Descobrimos que ela haviaprocurado o advogado do meu pai em São Paulo, atrás da lista daspropriedades que lhe sobravam. Já tinha passado o apartamento do Rioparao seunome.Tinhadesaparecido comas ações aoportador e tudoomais que ele guardava num cofre a que só ele e eu tínhamos acesso, emprincípio. Tinha raspado o tacho de todas as contas e investimentos.Quandopedimosumaexplicação,elanosproibiu,comasuavozrouca,deentrarnacasadeleounoprédio.Erainstruídaporumadvogado.Acenafoidantesca.Quandonosconfrontamoscomela,começouagritarnafrentedomeupai,decama,queacompanhavatudocomosolhosarregalados,mudoeimóvel.Elagritavaquenósqueríamosroubá-lo,queseestávamosalierapararoubá-lo.Nãoseioquantoeleaindaentendia.

Num esforço sobre-humano, ele olhou para mim com os olhosesbugalhadoseconseguiubalbuciar,maisdeumavez,umaúnicapalavra:"Sem-vergonha!".Foiaúltimacoisacomalgumsentidoqueouvimeupaidizer. Entramos, eu eminha irmã, com um processo de interdição. Tudoduroumeses.Nessemeio-tempo,meofereceramumtrabalhoemParis.Aoportunidade era única e irrecusável. Viajei enquanto o processo corria.Três meses depois, minha irmã me telefonou e disse que eu devia meprepararparaopior.Opiorera terdeentrarà forçanoapartamentodomeupai(depossedeummandadojudicial),acompanhadodeumoficialdejustiça(e,sepreciso,dapolícia),deummédicoededoisenfermeiros,tirarmeupaidacamacontraasuavontade(seéqueeleaindatinhaalguma—nãodavaparasaber),metê-lonumaambulânciaelevá-loparaSãoPauloàspressas.ChegueiaoRionumvôodiretodeParis.

Jantei com a minha irmã e um médico amigo dela que tinhaarrumado tudo para a internação num hospital pouco reputado de SãoPaulo,oúnicoqueaceitariaomeupainaqueleestado,enamanhãseguintefomoscomaambulânciaeooficialdejustiçaatéoprédioemSãoConrado.Alibanesajáhaviasidointimadaesabiaoqueiaacontecer.

Elanosesperavacomofilhoeumadvogado.Quandotiramosomeupai do apartamento, ela ainda tentou gritar e chorar, mas quando iacomeçarafazeracena,foiinterrompidapelofilhoepeloadvogado,quea

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convenceramdequenão adiantava, erapior, e elanãodeumaisumpio.Nãoseioquantoomeupaientendia.Aexpressãodosseusolhospodiasertantodeincompreensãocomodepavor.Àsvezesnãoseioqueeufizenãoseisemearrependo.Nãoseicomquemestavaarazão.Eseantesdeperdera consciência, se é que ele a tinha realmente perdido, omeu pai tivessedecididomorreraoladodaquelamulher,naqueleapartamento?Setivessedecididodar tudooque tinhaa ela?Levamos cincohorasde ambulânciaatéSãoPaulo.Eueminha irmã íamosao ladodele.Eu tentavaacalmá-lo,dizendo que tudo ia acabar bem,mas só conseguia ouvir a falsidade dasminhas próprias palavras enquanto ele me fitava imóvel, com um olharperquisidor que eu não podia saber se era de incompreensão ou dereprovação resignada. Devia estar vendo a verdade no fundo dos meusolhos: que, ao contrário do que eu dizia, nada ia acabar bem, não podiaacabarbem.Quandochegamosaohospital,omédicoamigodaminhairmãjá nos esperava. Meu pai foi levado para um quarto duplo, no setor deurgências.Eraumsistemadesemi-UTl,comquartosdedoisleitos.Ejáeraummilagrequeoaceitassem.Osujeitonoleitoao ladoestavaàmorte.Omédicohaviaomitidoodiagnósticodadoençadomeupaiparaque fosseaceitonohospital.

Ninguémsabiaoqueeraaqueladoençanemoseugraudecontágio.Ninguémteriasearriscadoarecebê-lo,aindamaisporquenãohaviaoquefazeralémdeesperaramorteeessaesperapodiasearrastarpormeses.Nãosabiamacausadoqueeletinhaenãodescartavamahipótesedequefosse uma doença hereditária, a que eu e minha irmã ainda estamossujeitos.IssofoilogoantesdeestouraracrisedavacaloucanaInglaterra,queserevelouumavariaçãodomaldeCreutzfeld-Jakob,pelomenosnosseus efeitos e sintomas, embora seja totalmente diferente no que dizrespeito ao contágio; foi antes de começarem a suspeitar de que umavariantedadoençapodiasercontraídapelaingestãodecarnecontaminadapor uma proteína disfuncional. Logo na primeira noite, as enfermeirascomeçaramadesconfiardequealgumacoisanãoestavacerta,peloquadrodadoençaepelaausênciadediagnóstico.Evitavamseaproximardomeupaiou tomavammaioresprecauçõessemprequeentravamnoquarto.Eutinha vindo de Paris especialmente para aquela operação de resgate eestava coma voltamarcadaparadali a três dias. Combinei comaminhairmã que eu passaria as três primeiras noites no hospital e que ela viriaduranteodia.Comoooutropacientenoquartoeraumhomemsozinhoeraramente recebia visitas, me deixaram passar as três noites numsofazinho ao lado do meu pai. O ar da noite era irrespirável. Havia um

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cheiro acre no quarto, que as enfermeiras diagnosticaram como sendoefeitodeumainfecçãonabocadomeupai.

Todos os paliativos eram insuficientes. Sua morte seria a maisterrível, coma falência progressiva das funções e dos órgãos, trêsmesesdepoisda internação.As enfermeirasviamoqueo esperava.Maseunãofazia idéia. Minha irmã arcou sozinha com a responsabilidade e o ônusemocional desses meses de espera. Quando afinal me telefonou paracomunicar amorte, na vésperado enterro, elamedisseque, nasúltimashoras,eletinhachoradosangue.Eeuprocureinãoimaginar.Tambémnãovolteiparaoenterro.

Passeiaprimeiranoitepraticamenteacordado.Osofrimentodomeupai não me deixava dormir. Ele estertorava, gemia de vez em quando,queriadizeralgumacoisa.Eutentavaacalmá-loemvão.Quandochegamos,as cortinas do leito ao lado estavam fechadas. Nomeio da noite, o outropaciente também começou a resmungar. Volta e meia uma enfermeiravinhaaplicar-lhealgumainjeção.Sódemanhãéqueeuovipelaprimeiravez. Tinha os cabelos totalmente brancos, os olhos azuis aguados e eramuitomagro.Lápelasdezdamanhã,umrapazentrounoquarto,medeubom-dia, cumprimentou o velho, puxou uma cadeira, sentou-se ao pé doleito,tirouumlivrodeumasacolaecomeçoualer.Minhairmãaindanãotinhachegado.Orapazliaeminglês.

Para meu espanto, logo reconheci as primeiras linhas de "Ocompanheiro secreto", de JosephConrad,umdosmeus contospreferidosde adolescência. O rapaz não tinha nenhum sotaque. Nem em portuguêsnem em inglês. Era bilíngüe. Falava como um americano doMeio-Oeste."Aindapudevislumbrarum lampejodomeuchapéubrancodeixadoparatrás,marcandoolugarondeocompanheirosecretodaminhacabineedosmeus pensamentos, como se fosse omeu segundo eu, havia imergido naágua para cumprir a sua pena: um homem livre, um nadador orgulhosodando braçadas rumo a um novo destino." Quando terminou o conto,levantou-se, disse ao velho—que, comoeu, o havia escutado impassívelpormaisdeduashoras—quevoltavanodiaseguinte,despediu-sedemimcom um gesto de cabeça e foi embora. Fiquei perplexo. Quando aenfermeira voltou, perguntei-lhe quem era o companheiro de quarto domeu pai e ela respondeu que não fazia idéia, era nova naquela ala. Aenfermeira da noite certamente poderia me dizer. Naquela noite, euprocurei a chefe de enfermagem do andar. E elame contou o que sabia.Meupaidividiaoquartocomumamericanodeoitentaanos,quemoravanoBrasilhaviamuitotempo."Elenãotemninguémaqui,nenhumparente,

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nenhum amigo." Estavam tentando encontrar o filho nos Estados Unidosantes que elemorresse. O velho tinha sidomandado de um asilo para ohospital,quandocomeçouapiorar.Estavacomcâncer.Seusdiasestavamcontados.Pergunteiquemeraorapazqueeutinhavistonaquelamanhã,seeradafamília.Tratava-sedeumacompanhante,contratadopelainstituiçãode caridade quemantinha o asilo de onde viera o velho, uma sociedadecriadapormissionáriosamericanos."Parecequeorapazoacompanhaháanos",medisseaenfermeira-chefenocorredor.

Nodiaseguinte,láestavaele,pontualmente,àsdez.AbriuomesmolivroedessavezcomeçoualeroprefáciodeLordjim:"Porumamanhãdesol, na banal decoração de uma praia do Oriente, eu o vi passar,impressionante, na nuvem do seumistério, perfeitamente silencioso. E ébemassimqueeledeviaser.Competiaamim,comtodaasimpatiadequeera capaz, procurar as palavras adequadas a sua atitude. Ele era umdosnossos".Durante duas horas, leu para o velho impassível.Nãodavaparasaberseodoenteoentendiaounão.Comonodiaanterior,nofinaldeumcapítulo,orapazselevantou,despediu-sedovelhoedemimefoiembora.Eu saí atrás dele. Alcancei-o antes que entrasse no elevador. Perguntei oquantoovelhoentendiadaquelassessõesde leituraemvozalta todasasmanhãs—euqueriasaberoquantoomeupaipodiaentenderdoqueeulhedizia."Leiosempreasmesmascoisas.Ostextosdequeelemaisgostava.Eomínimoquepossofazer",orapazrespondeu,efoiembora.

Minha irmã chegou na hora do almoço, como na véspera. Saí paradarumavolta,arejaracabeça.Elamedissequetinhaumcompromissoàscincohoras,precisavasairnomeiodatarde.Quandovoltei,fiqueisozinhocom o meu pai e o velho, que de repente, pela primeira vez desde quetínhamoschegadoaohospital,começouaseagitar.Falavacoisaseminglêsqueamimpareciamdescabidasesemnexo.Chameiaenfermeira,quelheaplicouumainjeçãodemorfina.Eledormiuanoite inteira.Pelamanhã,orapazvoltounahoradesempreeprosseguiunasualeituradeLordjim.Aocontrário dos dias anteriores, porém, lá pelas tantas, o velho voltou a seagitareadizercoisasincompreensíveis,obrigandoorapazainterromperoqueestavalendoeaseaproximardoleitoparaacalmá-lo.Oamericanosedebatia,queriaselevantar.Dopoucoquepudeentender,diziaqueestavaesperandouma visita, umapessoa quepodia chegar a qualquer instante,sem avisar, alguém que ele havia esperado por muitos anos. Queria porforça ir até a porta. O rapaz tentava mantê-lo deitado. Perguntei seprecisavadeajuda.Pediuqueeuchamasseaenfermeira.Elaveioeaplicouumanovadosedemorfinaaovelho,quelogoserenou.Pergunteiaorapazo

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queovelhoqueria,maselenãomedeumuitaconversa.Repetiuoqueeujátinha compreendido: "Semprediz amesmacoisa.Está esperandoalguémquepodechegar, inadvertidamente,deumahoraparaaoutra.Eumesmoacaboficandoaflitocomessaexpectativa,começoaolhartodahoraparaaporta, achando que alguémvai entrar a qualquer instante, e não consigomaisler".

Faziaduasnoitesqueeuestavasemdormir.Porisso,demoreiparaacordar na terceira madrugada. Demorei para entender que aquelaspalavras não faziam parte domeu sonho. Quando abri os olhos, o velhoestava falando sozinho. Tinham-no amarrado, já não podia sentar oulevantar.Meupaicontinuavaimóvel,deolhosabertosearregalados,comosesólherestasseoterroremaisnenhumaoutraopção.Jánãopodianemmesmodarumfimàprópriavida.Passeiamãonasuatestasuada.Elemeolhoucomosseusolhoshorrorizados,mascomojáfaziadiasquenãotinhaoutraexpressão,nãodavaparasaberseerarealmentehorroroquesentiaou se aquela havia sido apenas a última contração dosmúsculos do seurosto antes de perderem os movimentos. Passei a mão nos cabelosmolhados do meu pai e me aproximei do leito ao lado. Quando abri ascortinas,ovelhoolhouparamimcomolhosvidradosesecalou.Pergunteise estava tudo bem. Ele continuou me olhando em silêncio. Repeti eminglês.Pergunteiseprecisavadealgumacoisa,sequeriaqueeuchamasseaenfermeira.Elenãosemexia,maschegouabalbuciaralgumsom,comosequisessedizerqueestavabem,oupelomenosfoiassimqueeuoentendiouquisentendernoinício:"Well...".Quandofecheiacortina,noentanto,ouviumnomeàsminhascostas.Elemechamavaporoutronome.

Abriascortinasepergunteidenovoseprecisavadealgumacoisa.Eelerepetiuonome.Mechamava"Bill",oupelomenosfoiissoqueentendi.Tentava estender o braço na minha direção. Segurei a mão dele. Eleapertouaminhacomaforçaquelherestavaecomeçouafalareminglês,comesforço,masaomesmo temponum tomdevozdequemestá feliz eadmirado de rever um amigo: "Quem diria? Bill Cohen! Até que enfim!Rapaz, você não sabe há quanto tempo estou esperando". De repente,começou a respirar de uma maneira estranha. Eu estava nervoso comaquilo tudo que não entendia direito. Continuava perguntando se eleprecisava de alguma coisa, se estava se sentindo mal, se queria que euchamasseaenfermeira,eelerepetia:"BillCohen!BillCohen!Quemdiria!Quantotempo!",cadavezdeumamaneiramaisroucaeininteligível,comoseavozviessedasentranhas,comosealguémfalasseporele.Eleapertavaaminhamãoerepetia:"BillCohen!Quepeçavocêmepregou!".Eiaficando

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cadavezmaisofegante."Eusabiaquevocênãoestavamorto!"Foiaúltimacoisaqueconseguiudizerantesderevirarosolhoseentraremconvulsão.Saícorrendodoquartoparachamaraenfermeira.

Quando voltamos, às pressas, ele já não falava nada, era só arespiração estertorosa. A enfermeira me pediu que a ajudasse. Nós odesatamosda cama.Ele respirava comaboca aberta, cada vez commaisdificuldade e com um som mais assustador. Os olhos entreabertos. Eununcatinhavistoumhomemmorrer.

O corpo foi levado demanhãzinha. O rapaz deve ter sido avisado,pois não apareceu como de costume. No dia seguinte eu já não pensavamaisnovelhoounoquemedissenasuaagonia.Eraodiadaminhapartida.Minhavidaseguiuoseurumo.Meupaimorreutrêsmesesdepois.Fiqueitrêsanosfora.JáfaznoveanosquevolteiparaSãoPaulo.Masfoisóaoleroartigodaantropólogaháoitomeses,eaorepetiremvozaltaaquelenomequeeunãoconheciaeaindaassimmepareciafamiliar:"BuellQuain,BuellQuain",quederepentemelembreideondeotinhaouvidoantese,fazendoadevidacorreçãoortográficanaminhacabeça,descobridequemfalavaovelhoamericanonohospital,quemeraapessoaaqueelesereferiaequehavia esperado por tanto tempo. Fiquei na maior inquietação. Precisavafalar com a antropóloga. Ao mesmo tempo que procurava encontrá-la,ligueiparaaminhairmãeemseguidaparaomédicoquehaviaconseguidointernar o meu pai e agora era diretor do hospital. Eu tinha que acharalguémda instituiçãode caridadequehavia cuidadodo velho americanoduranteasuadoença,precisavasaberquemeleera.Omédicomedeuoscontatos da diretora do asilo onde o americano passara os seus últimosanos. Ficava a cinqüenta quilômetros de São Paulo. Era uma casa térrea,cercada por uma varanda de arcos. O chão era de cimento queimado,enceradodevermelho.Tudoeramuitosimples.Umasenhoramuitomagra,brancaealtameesperavado ladode foradacasa.Tínhamosconversadopor telefone, embora eu não tivesse lhe dado maiores detalhes do queprocurava.Disse-lheapenasqueerajornalistaequeprecisavafalarcomelapessoalmente. Chamava-seMavis Lowell. Estava com um vestido ver-de-mostardaatéosjoelhoseumcintinhodamesmacor.Mecumprimentouemeconduziuàadministraçãono interiordacasa.Tinhaumsotaque forte.Haviaunsquatrooucincovelhossentados,espalhadospelavarandaepelojardim.Apenasumolhouparamimquandopassamos,emesmoassimcomindiferença.Paraosoutros,eracomoseeunãoexistisseoucomosejánãoestivessemali.Estavamalheios.Eutentavaimaginaroqueteriasidoavidadeles,oqueteriamsidoquandojovens,asmulheresqueteriamamado,os

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primeiros amores, que é o que eu sempre tento imaginar, por queacabaramali.Tentavaimaginarondepodiamestarosqueosamaramequejánãoosamavamouestavammortos.Pergunteiseeramtodosamericanos.Mrs.Lowellmerespondeuquenocomeço,quandooasilo foicriado,sim,masqueagorasóunspoucos.Numcantodogramado,umamoçaliaparaum velho à sombra de um jatobá.Mrs. Lowell percebeu omeu interessepela leitora. "São jovens interessados em literatura. Aprendizes deescritores.Eumtrabalhovoluntário.Ajudamosidososeparaeles—querodizer, para os jovens— tambémémuito bom.Afinal, os velhos são umafontedehistórias.Éoqueotrazaqui,nãoé?"

"Maisoumenos",respondi,semsabercomocomeçar,aoentrarmosnacasa.

"Masosenhoréjornalista..."Concordei com a cabeça. Entramos na sala. Ela me indicou uma

cadeira, tomou o lugar atrás damesa demadeira eme perguntou afinalcomopodiameajudar.Disse-lhequeestavaprocurandoinformaçõessobreumvelhoquetinhamoradoaliemorridofaziaonzeanos.Ebastoueudizeroquehaviame trazidoparaelamudarde tomese levantar, seca. "Seeusoubesse, teria lhe poupado a viagem. Vocês no Brasil são muito mal-acostumados.Avidadaspessoasdeve ser respeitada, éde foro íntimo.Eassuntodelas,esócabeaelasouaseusfamiliaresdecidirtorná-lapública.Não temos dinheiro, mas não é por nos faltar recursos que vamosdesrespeitaraprivacidadedosnossosvelhos.Nãoprecisamosnosrebaixarporumespaçonamídia."Tenteiargumentardetodasasmaneiras,emvão.Mrs.Lowelljámeesperavacomamãonamaçanetadaportaaberta.Eumaltinha chegado e já estava sendo posto para fora. Ela estava ofendida edecepcionada. Compreendi naquele instante que talvez ela pudesse terachadoqueeuqueriaescreversobrea instituição, jáquemeapresentaracomojornalistanotelefone,comopretextoparaconseguirumaaudiência.Estavamfalidos,precisavamdedoações.

Tinham sido esquecidos. Deve ter achado que eu poderia ser ummeio de ajudá-la, até dizer o que me trouxera. Me perguntou se euprecisavaquealguémmeacompanhasseatéocarro.Eusabiaocaminho.Saí de lá chateado com a minha falta de sensibilidade para enredá-la econvencê-laamerevelaroqueeubuscava.Tudooqueeupodiatersabidosedissolveraempoucossegundos.Passeidenovopelovelhonavarandaquehaviameolhadoquandoentrei.Jánãomeolhava.Caminheiatéocarroe já estava pronto para entrar, com a porta aberta, quando, virando-meparaogramado,viameninaqueliaparaumsenhordebaixodojatobá.Foi

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comoumavisão.Batiaportaecaminheiatéela.LiaumcontodeMachadodeAssis,emportuguêsmesmo,paraovelhodepijamaazul-claro,sentadonumaespreguiçadeira,comumcobertorsobreaspernas.Quandopercebeua minha presença, interrompeu a leitura e levantou o rosto, como seperguntasseoqueeuqueria.Nãopareciamuitosimpática.Tinhaocabelocastanho-escuro escorrido até omeio das costas. E namesma hora, semquetivesseplanejadonada,eulhedissequeestavaprocurandoalguémquepudesselereminglêsparaumvizinhoinválido.Dissequeovizinhoestavadispostoapagaroquefossenecessário.Pergunteiseelafaziaessetipodeserviçoouseconheciaalguémqueofizesse.Elaficoumeolhandoporuminstanteedepoisrespondeuquepodiaveremetelefonava.Deixeiomeutelefone.Nãomedeuodela.Tudoagoradependiadasorte.

Recuperei um pouco de esperança quando ela me ligou no diaseguinte e disse que podia fazer o serviço. Combinamos no meuapartamento. Preferia não falar por telefone, agora que estava escoladodepoisdareaçãodeMrs.Lowell.Sóquandoabriaportaéquenoteicomoera baixinha. Havia prendido o cabelo numa trança. Dessa vez, estavadecidido a não perder nenhuma chance. Não ia arriscar. Inventei tudo,dissequeovizinhoestavadormindonaquelemomentoequeelaoverianasemanaseguinte,quandocomeçariamassessõesdeleitura,trêsvezesporsemana, como acabamos combinando (na véspera do dia marcado, euligaria para ela e diria que o vizinho tinha morrido durante a noite).Acertamos o preço. Disse-lhe que eu mesmo pagaria, era um ato desolidariedade,me cortava o coração ver o velho estrangeiro abandonadonumaterraestranha.Eassimfuidesdobrandoaconversaatéchegaraondeeuqueria.Dissequenuncatinhamerecuperadodavezemqueumvelhoamericano morrera nos meus braços, no hospital, ao lado do meu pai.Contei mais ou menos a história, sem dar detalhes ou revelar os meusverdadeirosobjetivos.Conteiquehaviaumrapazqueliaparaovelhotodasas manhãs e que fiquei muito impressionado por aquelas cenas. Antesmesmodeeuperguntarquempoderiatersido,elamurmurouonomedorapaz:

"EraoRodrigo.Pegueiolugardelenoasilo.Foielequemmedeuadica.Eramonitordeumcursoqueeufiznafaculdadedeletras".Fiz-mededesentendido,eelaarrematoucomonomecompletodorapaz,dizendoqueagoraele trabalhavadetradutorparaumacompanhiaquímica.Guardeionomedacompanhiaenosdespedimos.

Eunãooteriareconhecido.Tinhamudadobastante.Tambémnãoselembravademim,emborativesseumamemóriavagadocompanheirode

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quartodehospitalquechegoutrêsdiasantesdamortedovelhoamericano,"um sujeito com uma doença no cérebro", o meu pai. Eu não podiareconhecerorapazentreosclientesdobaremquemarcamosoencontro.Emonzeanos,otempotinhasidoingrato.Estavamaisgordoecareca,comcabelosgrisalhosnastêmporas.E,noentanto,nãodeviatermaisdetrintaecincoanos.Disse-lhenotelefonequeestariacomumacamisavermelha,efoi o suficiente para que, ao me ver perdido e hesitante, me acenassediscretamente de umamesa ao fundo. Não fiz rodeios. Contei-lhe toda ahistória. Precisava confiar em alguém e que ele confiasse emmim. Ficoulogomuitointeressadoquandolhefaleidoartigodaantropóloganojornal,tantoqueimediatamentemedisseoquesabiasobreovelhoamericanoquemorreranoleitodehospitalaoladodomeupai.Erafotógrafo,chamava-seAndrew Parsons e tinha vindo para o Brasil provavelmente antes daentrada dos Estados Unidos na guerra, por volta de 1940. Nunca maisvoltouparacasa.Emmaisdeumaocasiãoovelhohavialhemostradofotosantigas,dosanos30e40,deumapraiapertodeNovaYorkedeumatribodeíndios,provavelmentenointeriordoBrasil.

"Quandocomeceialerparaosvelhosnoasilo,eraaoladodelequeeumesentiamaisconfortável.Eraumhomemaltoecalado,umapresençaimponente.Não tinhaninguémaquinemem lugarnenhum.Sódepoisdamortedeleéqueofilhoapareceu.

Um empregado havia deixado o velho no asilo e desaparecido,provavelmentecomodinheiroquelherestava.Elesomantiveramaliporcaridade,porquenãotinhamoquefazercomele.Quandoficoudoente,osmissionáriosconseguiraminterná-loquasequeporfavor.Comoosoutros,falavapouco.Euliaeeleouvia.Jábemnofim,quandoestavanohospital,voltaemeiameinterrompiaeapontavaparaaporta:'Elejáchegou?'.

Comdelicadeza,mesmo sabendo que não haveria nenhum sentidonaresposta,euperguntava:'Quem?',nemquefossesóparamantê-lovivoeinteressado, que era a razão daminha presença ao lado dele. Eramuitotriste. E ele, que não falava nunca ou falava com tremenda dificuldade,reunia todas as forças que lhe restavam para dizer com a mais perfeitadicção: 'Estouesperandoháanos.Váavisá-losquepodemdeixá-loentrarquandochegar'.Eu ficavasemação,eele insistia: 'Vá,vá logo.Nãoqueroqueodeixemesperando'.Depoisseesqueciadoquehaviadito,fechavaosolhosevoltavaaoestadodealheamento,outalvezfosseresignação.Entreosseusúnicosbensnoasilo,haviaumamaladefotografias.Deinício,eusósabiadaexistênciadamaladeouvirfalar,porqueovelhoaguardavaasetechaves e só a abria quando lhe dava na telha, nunca para atender a um

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pedido. Só depois de váriosmeses lendo sempre asmesmashistórias, assuaspreferidas,'Ocompanheirosecreto'eLordjim,deJosephConrad,ouotrechoemqueMelvillediscorresobreobranco—sobreacorbranca—,emMobyDick,équeeleporfimmepediuqueoajudasseatiraramaladecima de um arma-rio. Não sei o quanto aquele livro e aquela digressãosobre o branco podem ter contribuído para lhe despertar a vontade dereverasfotos.Nãomedeixouvertodas(edequalquerjeitoerammuitas).Fezumaseleção,mepassousóalgumas.Eramfotosde índios."Pergunteiqualeraatribo,maselenãosabiaresponder."Haviatambémfotosdeumgrupo de jovens numa praia. Os rapazes estavam com pedaços de panoenroladosna cintura.Numadasvezesemquememostrouaquelas fotos,balbucioualgumacoisaeminglês,como'ascriançasmaisbelasdomundo',masposso ter entendidoerrado.De fato, eram fotosmuito atraentes.Elememostrouosretratosdeumasenhora—épossívelquefossesuamãe—edeumamoça,queeu imaginei sera suamulher, emborapudesseserafilhaoumesmoamãenajuventude.Nãoeramfotosconvencionais.Eramasfotosdeumartista.

Quando, logo no início, perguntei se era ele o fotógrafo, ficouofendido comaminhadúvida.Dissequeeramretratosmuito antigos, deummundoquenãoexistiamais.Umavez, ficouparadocomafotodeumrapaznamão.Eraummoçodecalçãodebanho,comumsaco.nascostas,os cabelos molhados e os olhos arregalados de susto na soleira de umaporta, a emoldurar um fundo claro. Foi a primeira vez que o vi sorrir,enquanto segurava a foto e repetia: 'Well, well, well'. Ele me deu umdaquelesretratos.Eraumacriançadecolo.Pergunteiquemera,eeledissequeeraeu",orapazinterrompeuasuahistóriaesorriuparamim,comosolhos baixos, enquanto tomava um gole de cerveja. Até onde se sabia, ovelhofotógrafotinhadeixadoapenasumfilhonosEstadosUnidos,quesóapareceudepoisdamortedopai,para tratardaparte legale recolherosbensqueovelhodeixara,naverdadenadaalémdamalacomfotografiasepapéis.

Pergunteiseelesabiaquetipodedocumentoseleguardavanamala.A pergunta era tola, mas eu precisava descobrir qualquer coisa. Atiravapara todos os lados. Tudo havia sido entregue ao filho. Perguntei se elefaziaalgumaidéiadecomoeupoderiaencontrá-lo.E,paraminhasurpresa,ele me respondeu que ainda devia ter o endereço em casa, numa velhacaderneta, já que tivera de remeter ao filho, um ano depois damorte dofotógrafo,afotodacriançadecolo,queovelhofizeraquestãodelhedardepresentequandojánãoestavabemdacabeça,dizendoqueeraele,equeo

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rapaz esquecera entre as páginas de uma edição popular deMoby Dick,comomarcador.Sóumanodepoiséque,abrindoolivroaoacaso,deucoma fotografia e achou que pudesse interessar ao filho em Nova York.Conseguiuo endereço comosmissionáriosdoasilo.Dissequeme ligariaquando chegasse em casa e quemepassaria o endereço.Não sabiamaisnada.

Depossedainformação,escreviumacartaaofilhodofotógrafo,emNovaYork,natentativadeesclarecerarelaçãoentreovelhoeBuellQuain,seéquehaviaalguma,porqueemmomentonenhumdeixeidedesconfiardapossibilidade,aindaquepequena,deumaconfusãooudeumdelíriodaminhaparte.Podiaterouvidoerrado,osmesesqueprecederamamortedomeu pai foram especialmente tensos, e eu não andava com a cabeça nolugar.Espereiemvãoumaresposta.Nessemeio-tempo,minhapesquisamelevouparaoutras frentes: vasculhei o arquivodeHeloísaAlbertoTorres,fui a Carolina e visitei os Krahô. Ao voltar sem respostas da aldeia, emsetembro, achei que só a família de Quain poderia me esclarecer o quefaltavanomeuquebra-cabeça.Tudooqueeuprecisavaeradoteordeumasuposta oitava carta, além das que o etnólogo enviara ao pai, a ummissionárioeaocunhadoantesdemorrer(porquenãoteriaescritoantesàirmã?Outeriaescritoumaoitavacartaàirmã?),edeumeventualdiárioque, segundo a mãe, ele sempre mantinha. A oitava carta e o diárioexplicariamtudo.Tantoumacoisacomoaoutra,seéqueaindaexistiam,sópodiam estar com a família. Alémdo pai e damãe, que estavammortos,haviaa irmãmaisvelha,Marion,o cunhado,Charles, eosdois sobrinhos,cujosnomeseudesconhecia.Seairmãeocunhadoaindaestivessemvivos,oqueeraimprovável,teriammaisdenoventaanos.Eosfilhos,a"menina"e o "menino", setenta e três e sessenta e nove anos, respectivamente, acontarpeloqueeutinhalidonumacartadamãedeQuaindatadade1943.A"menina",setivessesecasado,jánãoteriaonomedopai,oquediminuíaemmuitoasminhaschancesdeencontrá-la.

O sobrinho era o meu alvo mais certeiro, ou seus filhos e netos.Tentei encontrá-los por todos os meios. Em sites genealógicos, emprogramasdebuscadepessoasnainternetefinalmente,depoisdeváriastentativas frustradas,pelométodomaisarcaicodetodos:enviandocartasparatodososassinantescomosobrenomeKaiserdaslistastelefônicasdeChicago, Seattle ou do estado do Oregon, as três pistas sobre o possívelparadeirodeMarionQuainKaiseresuafamíliaquepudeapreenderaolerascartasdamãeadonaHeloísa.NãohaviamaisnenhumQuainnaDakotadoNorteemnenhumadaslistasaquetiveacesso.SelecioneialgunsQuain

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em Chicago, Seattle e no Oregon também, por via das dúvidas, e lhesmandeiamesmacarta.Antesdessaempreitadaarcaica,porém, ligueiemdesesperodecausaparaumaamigaemNovaYorkeelamepôsemcontatocomumaprodutoradetelevisãoreputadapordesenterraroqueninguémmais conseguia descobrir. Tinha um nome exótico. Exa filha de indianosque haviam imigrado para o Canadá. Trocamos alguns e-mails e játínhamoschegadomaisoumenosaumacordosobreocustoeotempodapesquisa(comoeraempregadadeumagranderededetelevisão,teriaquetrabalharparamimnashorasvagas),quandodoisaviõesdepassageiros,diante dos olhos atônitos de todo o planeta, atingiram e derrubaram asduastorresdoWorldTradeCenter.Osjornaisdiziamqueomundonuncamais seria o mesmo. O fato é que nunca mais consegui falar com aprodutora.

Nãomerestavaoutraopçãoourecursosenãoascartas.EscrevimaisdecentoecinqüentaeasenvieiparatodososKaisereQuainqueencontreina lista telefônica de Chicago, de Portland e arredores, no Oregon, e deSeattle.Eporuma infelizcoincidência, todaessacorrespondênciachegouaos destinatários justamente no momento em que os Estados Unidosentraramempânicoporcausadasremessasdeantrazemcartasanônimasenviadaspelocorreioapersonalidadesdamídiaedapolíticaamericanaeaté mesmo a pacatos cidadãos.Ainda tentei um último contato com aprodutoradeTV,inutilmente.Paracompletar,aredeemqueelatrabalhavafoi a primeira grande cadeia demídia a receber uma carta contaminada,aberta justamenteporumaprodutora, cuja identidadenão foi reveladaequeagoraestavaemtratamento.Dasmaisdecentoecinqüentacartasquemandei, recebi apenas umas vinte respostas, todas por e-mail, algumasmais simpáticas, outras menos, mas todas negando qualquer tipo deparentesco com os Kaiser que eu procurava. Não sei se algum dosindivíduos aquemenviei asminhas cartas chegou a suspeitardeumatoterrorista ao ler o nome desconhecido e exótico do remetente e medenunciouaoFBI.Nãoseisealgumdelesdeixoudeleraminhacartaporcausadisso.NãoseisealgumeradefatoparentedeQuainesimplesmentepreferiu me ignorar por razões que eu também desconheço mas possosupor— uma desconfiança em relação aosmeus verdadeirosmotivos, adeterminaçãodepreservaraprivacidade familiarouomerodesinteressepor um caso encerrado havia sessenta e dois anos e que um estranho eduvidosojornalistadaAméricadoSultentavareviver.Oqueeuseiéque,quando começaram a surgir as cartas com a bactéria assassina nasredações das redes de televisão e nos escritórios de deputados e

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governadores americanos, entendi que não poderia mais recorrer aocorreio,comohaviapretendidonumasegundafase,paratentarlocalizarosparentesdeQuaintambémemoutroscantosdosEstadosUnidos.Estavademãosatadas.Porumainfelizsincronia,oterrorismoafastouparasempreapossibilidadedequeeumeaproximassedeamericanosquenãoconheciaporrazõesqueagoralhespareceriamaindamaissuspeitaseinverossímeis.

Foiquandocomeceiareceberascartasdevolta.Vinteeumaforamsendodevolvidaspoucoapouco.Aúltimachegoudeumaformaumtantoinusitada,depoisdedoismesesede tersido"enviadaporenganoparaaMalásia", segundo um carimbo estampado ao lado do endereço dodestinatário. Para completar, tinham guilhotinado a parte inferior doenvelope com uma cortadeira, como se em algum ponto do percursoalguém tivesse resolvido examinar o que havia no seu interior. Confessoque por um instante, ao averiguar perplexo a carta devolvida, cheguei acogitar,naminhamenteparanóica,apossibilidadedequeocortecirculareuniforme na base do envelope tivesse sido feito não para se examinar oconteúdo,masparaseintroduziralgumacoisa,ecorriparalavarasmãoseassoaronariz.

Emcontrapartida,tudopareciaseafunilaremeconduzirnovamenteao filho do fotógrafo, que eu havia deixado temporariamente de lado,depoisdenãoterrecebidonenhumarespostaàminhacarta.Porumtempoeu tinha privilegiado as pistas que a antropóloga me dera e que mepareceram de início mais promissoras. Foi só quando esgotei todos osmeiosdeacharoquemefaltava—oquechameideaoitavacarta,supondoquepudesserealmenteexistir,equedariaumsentidoa todaahistóriaemais especificamente ao suicídio, depois de já ter encontrado um vastomaterialquemeaproximavaemcírculosdeBuellQuain,semnuncadefatodecifrá-looumedeixaralcançarocentrodoseudesespero—quedecidiretomar a minha busca pelo filho do fotógrafo, dessa vez pessoalmente.Cheguei a lhe escrever mais uma vez, perguntando se podia visitá-lo. E,dessavez,apesarde todaaparanóiaquereinavanosEstadosUnidos,eleme respondeu. Eme pareceumuito razoável, embora se recusasse amereceber.DissequesabiaapenasqueopaitinhavindoparaoBrasilpoucoantes de os Estados Unidos entrarem na Segunda Guerra, sem maioresexplicações,enuncamaisderanotícias,peloqueafamíliahaviaconcluídoquesetratavadeumatodeloucuraouquehouvessedesertado.Sóveioasaber do pai quando ele já estava à morte, quando os missionáriosresponsáveis pelo asilo lhe escreveram. Pediam que se ocupasse dasquestões legais e burocráticas. Nunca tinha ouvido falar de nenhum

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etnólogo,nãofaziaamenoridéiadequempodiaserBuellQuain,eportantonãopodiaajudarnaminhapesquisa.Nãotinhanenhumdocumentoquemeinteressasse. Não tinha mais nada a dizer e pedia que eu não mais oprocurasse. Aquela altura dos acontecimentos, depois de meses lidandocom papéis de arquivos, livros e anotações de gente que não existia, euprecisavaverumrosto,nemquefossecomoantídotoàobsessãosemfundoesemfimquemeimpediadecomeçaraescreveromeusupostoromance(oqueeuhaviaditoamuitagente),quemedeixavaparalisado,comomedode que a realidade seria sempremuitomais terrível e surpreendente doqueeupodia imaginarequesóserevelariaquando já fosse tarde,comapesquisaterminadaeolivropublicado.Porqueagoraeujáestavadispostoa fazerdela realmenteuma ficção.Eraoqueme restava, à faltadeoutracoisa. O meu maior pesadelo era imaginar os sobrinhos de Quainaparecendodanoiteparaodia,gentequesempreestevedebaixodosmeusolhos sem que eu nunca a tivesse visto, para me entregar de bandeja asoluçãode todaahistória,omotivorealdosuicídio,oóbvioque fariadomeu livro um artifício risível. O único indício de que a família tambémdesconhecia essas razões era a carta da irmã a Ruth Benedict, um mêsdepoisdosuicídiodeQuain:"Ofatodequenenhumdenósprovavelmentejamais conhecerá os fatos torna aindamais difícil nos desembaraçarmosdeles", e ainda assim nadame garantia que também não tivesse as suasrazões para esconder a verdade, ou que não tivesse eventualmentedescobertoosfatosdepoisdeterescritoacarta.Euprecisavadeumrostoreal, de alguém que tivesse alguma relação, ainda que remota, com ospersonagensdahistóriaeque,mesmosemmerevelarnadadoqueeu jánão soubesse, pudesse servir como uma âncora que me impedisse decontinuaràderivanaquelelimbo,alguémquemeacordassedaqueleestadodifuso, queme tirasse daquele poço de suposições não comprovadas. Naverdade,nadameprovavaqueovelhofotógrafotiveraalgumarelaçãocomBuellQuain,oumesmoqueotivesseconhecido,alémdofatodeterfaladoonome dele antes de morrer — se é que realmente falou. Ele podiasimplesmente ter ouvido falar de Buell Quain e se interessado, como eu,pela história, a ponto de ter vindo ao Brasil para investigá-la, como euagora ia aos Estados Unidos. Tomei o avião para Nova York com pelomenosumacerteza:adeque,nãoencontrandomaisnada,poderiaporfimcomeçaraescreveroromance.Noestadodecuriosidademórbidaemqueeutinhameenfiado,acreditavaqueafiguradofilhodofotógrafopodiaporfimmedesencantar.

AficçãocomeçounodiaemqueboteiospésnosEstadosUnidos.A

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edição do The New York Times, de 19 de fevereiro de 2002, quedistribuíram a bordo, anunciava as novas estratégias do Pentágono:disseminar notícias — até mesmo falsas, se preciso — pela mídiainternacional; usar todos os meios para "influenciar as audiênciasestrangeiras". Faziadezmesesque eunãovoltava aNovaYork.Aúltimavezhaviasidocincomesesantesdoatentadode11desetembro.Nãotinhavisto a cidade sem as torres. Não podia abordar o filho do fotógrafo dechofre. Já deixara claro que não pretendiame receber. Eu não podia lhetelefonar e dizer que estava na cidade para vê-lo. Era preciso pegá-lodesprevenido. Tinha que ter paciência. E eu estava preparado para isso.Estavadispostoa ficaro tempoque fossenecessário.Nãopodiaperderachancenahoraemqueelasemanifestasse.Sónãopodiaimaginaréqueelase manifestaria tão depressa e que seria tão fácil. Arquitetei mil planos.Antesdemaisnada,precisavareconhecê-lo,eatéentãoeununcao tinhavisto.Sabiamaisoumenosaidadedele,havianascidoantesdeofotógrafopartirparaoBrasil, antesdaguerra,devia ternomínimosessentae trêsanos. Logo na primeira tarde, fui até o prédio onde elemorava, que nãotinhaporteiro.

Fizoreconhecimentodobairro,passeeidisfarçadamentepelaruae,depoisdemuitahesitação,toqueiointerfoneparamecertificardequeeleestavaemcasa.Penseiemtocareficarmudo,nemquefossesóparaouvirasua voz. Atendeu a voz de um homem, que não parecia especialmentevelho,podiaserdeleounão,quemsabedeumfilhodele,efoiquandomeocorreu inventar uma história qualquer, que tinha uma encomenda paralheentregar,porexemplo.Precisavavê-lo,nemquepara isso tivessequefazê-lodescerpara em seguidameesconder atrásdeumcarro. Ficaria aobservá-lo do outro lado da rua. Eu não podia perder a oportunidade.Perguntei pelo sr. Schlomo Parsons. Era o próprio. E antes que pudessedizer qualquer outra coisa, ele abriu a porta ememandou subir. Fiqueiatônito por uns instantes, segurando a porta aberta, sementender o queestava acontecendo, sem conseguir avançar. Por fim, entrei no prédio etomei o elevador. Meu coração batia no pescoço. Ao chegar ao sétimoandar,fuiatéaportaentreabertanofinaldocorredor,deondevinhaumaluz.Eleouviuobarulhodosmeuspassosegritouládedentroqueeupodiaentrar.Eraumapartamentoatulhadodeobjetoselivros,tapetesemóveis.Trêsjanelasaltasdavamparaaruaeasárvoresdoparque,nadiagonal.Umlabrador amarelo veio me receber, abanando o rabo. O dono gritou doquartoqueprecisavadaminhaajuda.Eraumquartobranco,semnadanasparedes. No centro havia um grande colchão coberto de lençóis brancos

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desarrumados,queocupavaquasetodooespaço.Pelajanelaentravaosolde fim de tarde. Schlomo Parsons estava sentado num dos cantos docolchão, debruçado sobre uma caixa de papelão esturricada, tentandofechá-la comuma fita adesiva. Sem levantar a cabeçaouolharparamim,perguntouseeutinhatrazidoocarrinho."Estámuitopesado.Vocênãovaiconseguirdescersemocarrinho",eledisse,antesdepedirqueoajudassecom a fita adesiva. "Deixe comigo", eu respondi, tomando a dianteira. Sóentãoelemeolhou,emsilêncio.Eselevantou.Eraumsujeitoaltoemagro,com o cabelo branco encardido, o rosto anguloso e a pele queimada,marcadadesol,emboraestivéssemosemplenoinverno.Agoraolabradorestavasentadoaoseulado.Passeiafitaemvoltadacaixa.

Reforceios ladosmais frágeis. "Vocênãoéamericano,é?"Virei-mepara ele. Não tinha os olhos claros e aguados do fotógrafo. Eu nãoconseguiadecidiramelhortática.Podiabancaroagressivo,oespirituoso,rebater a pergunta com uma piada se ao menos tivesse a presença deespírito para isso, a única coisa que eu não podia era ser honesto. Nãopodiadizerquemeuera,nemdeondevinha."Vocêvemdeonde?"Eaí,semter tempo de pensar, como se alguém tivesse se adiantado e falasse pormim, em vez de mentir, eu disse a verdade. E ele arregalou os olhos:"Brasil?".Euconfirmeicomacabeça,jáumpoucoarrependido.Nãosabiaoque tinha dado emmim. Achei que tinha posto tudo a perder. Continueilacrandoacaixa.Passadosunssegundosdesilêncio,queamimpareceramminutos, ele finalmente arrematou: "Parece brincadeira!". Havia ficadoperplexo. "Brasil! Esse país me persegue." Sorri, me fazendo dedesentendido.PergunteioqueelequeriadizercomaquiloeseconheciaoBrasil. "Conheço. Infelizmente", retrucou. Em outra ocasião, eu teriadesistidosemedissessemumafrasedaquelas,masagorasabiaqueestavano caminho certo. Perguntei se tinha ido ao Brasil a negócios. Ele meencaroucomosolhosarregaladose sarcásticos.Deve ter ficadosurpresocomaminhainsistência."Negócios?Essaéboa!"Euestavadeterminado.

Afinal tinha conseguido entrar, sem ser convidado, na casa dohomem que eu procurava fazia meses e falar com ele ainda na minhaprimeiratardenacidade.PerguntouporqueeuvieramoraremNovaYork,e enquanto eu inventava uma resposta longa, com pausas para fazerreforçosnacaixa, simulandoumahabilidadeprofissionalqueobviamentenão tinha, percebi que ele era um sujeito sozinho e estava de fatointeressadonoqueeupudessedizer.Aspalavrasdaliemdiantenãoteriamnenhuma importância. Eu podia dizer o que quisesse, podia não fazer omenor sentido, só não podia dizer a verdade. Só a verdade poria tudo a

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perder. Em cinco minutos, ele já tinha me contado um monte de coisassobre o que pusera naquela caixa, traquitanas que devolvia a um velhoamigo que havia se mudado para Chicago. Deu a entender que viveramjuntos.Achoqueestavametestando.Lápelastantas,meestendeuamão,se apresentou (como se eu não soubesse) e perguntou o meu nome.Inventeium.Desdequehaviaescritoaprimeiracartaaofilhodofotógrafo,faziamaisdenovemeses,aquelenometinhaficadonaminhacabeça.Haviauma incongruência. Soava errado, se é possível um nome soar errado.Schlomo é um típico nome judeu, e o sobrenome Parsons, até onde eusabia, não tinha nada de judeu. Ele riu e me explicou: "E a minha vida.Parecequeaminhamãetinhaumaquedaporjudeus.Dequalquerforma,nãoaconheci.Morreuunsmesesdepoisdomeunascimento.Achoqueafamília dela era judia, imigrantes ucranianos. Mas também não tenhocerteza.Nãoosconheci.Fuicriadopelosmeusavóspaternos".Aospoucos,ahistóriacomeçavaasedescortinaràminhafrente.

Disse que tinha cinqüenta e sete anos, mas eu sabia que não erapossível, tinhanascidoantesdaguerra,devia tersessentae trêsoumais.Mentia a idade. Pela aparência, não dava para dizer que estivessementindo. Era até verossímil. Tinha uma presença forte e o rosto bemdesenhado.Devia ter sido umhomembonito. Faloudos velhos emgeral.Deveternotadoomeuconstrangimento,tantoqueresolveumeprovocar.Medissequetudoerarelativo.Contouqueelepróprio,aosairdecasaaosdezesseteanos, tinha idovivercomumhomemmaisvelho,quenaépocadevia tera idadequeeu tinhaagora.Perguntouaminha idade.Fez-sedeespantado.Dissequeeuaparentavabemmenos.Ohomemmaisvelhocomquemeletinhaidoviveraosdezesseteanoserabemmaisnovonaépocadoqueeuagora.Tudoérelativo.Acabeide fecharacaixa,eelemeajudoualevá-laatéaporta.Antesqueeusaísse,meconvidouparatomarumcafé.Euoseguiatéacozinha.Enquantolavavaasmãosnapia,poruminstanteele fechouosolhosparaseprotegerda luzqueentravapelas janelas,eomaisestranhofoique,pelaprimeiravez,aovê-lodeolhosfechadoscontraaluzdosoldeinverno,tiveumaespéciedealucinação.Deumcertoângulo,acheiqueelesepareciacomBuellQuainnumadasfotosqueamãetinhaenviadoadonaHeloísa,omesmoretratoqueoetnólogoderaaMariaJúliaPourchet com uma dedicatória no verso. Ele abaixou a persiana e sorriuparamim.Perguntouquecaraeraaquela,eupareciatervistoumfantasma.Eunão sabiamaisoque fazer.Aomesmo tempoquequeriadesaparecerdali, não podia ir embora sem acabar o que tinha ido fazer. Precisavaprolongar aminhapermanência—queparamim já era insustentável—

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mesmosenãofaziaomenorsentidopermanecernaqueleapartamento.Ao notar omeu incômodo, enquanto eu estava sentado àmesa da

cozinha,eledissequehaviaumacoisaquepodiameinteressar, jáqueeuerabrasileiro.Foiatéasalaevoltoucomumapasta,queabriuemcimadamesa.HaviaummontedefotosdoBrasilnosanos50e60:balsasnumrioquepodiaseroTocantins;blocosdoCarnavalcarioca;a festade IemanjáemSalvador;ocasariodeSãoLuís;umapanorâmicadoRiodeJaneirovistodoPão-de-AçúcarquandoaindanãohaviaoAterro;osindefectíveispilotisdoprédiodoMinistériodaEducaçãoeSaúdenocentrodacidade;oedifícioItália eoCopan, emSãoPaulo etc.Elememostrouos retratosde algunsíndios.

PareciamKrahô,maspodiamserdequalqueroutratribo."Meupaiera fotógrafo.PassouavidanoBrasil. São índiosbrasileiros.Vocênãoosreconhece?"Eunãopodiameindisporcomele,nãosabiaseestavasendoirônico,masofatoéquehaviaumtompaternalistanasuaconversa.Preferiignorar as provocações. Examinei as fotos, aomesmo tempo que tentavarefrear a minha curiosidade. Não podia deixar transparecer o meuinteresse.Sentiqueeleprecisavafalaremeesforceiparacolaborar.

"SeupaiviveunoBrasil?",perguntei,enquantoexaminavaasfotos."Éumalongahistória.Naverdade,nãooconheci.Elenosabandonou

logodepoisdamortedaminhamãe.""Nosabandonou?""Fuicriadopelosmeusavós.Pelospaisdele.Nãogostavamdaminha

mãeeportabelatambémnãogostavamdemim.Fuiimpostoaeles.""PorqueoseupaifoiparaoBrasil?""Ninguémnuncasoubedireito.Meusavósnuncaquiseramfalarno

assunto.Eletrabalhavaparaumjornal.Podeteridofazerumareportagem.Como desapareceu às vésperas da guerra e nunca mais voltou, corria ahistória de que tinha desertado, que tinha decidido não voltar quando aguerraestourou.Minhamãemorreumenosdeumanodepoisdeeunascer.Teve uma leucemia galopante, uma doença muito rara. Foi o que medisseram. Também não a conheci. Meu pai foi embora logo depois", eledisse.Eaí foiatéasalaevoltoucomumretrato. "Veja.Aquiestáela.Eaúnicafotoqueeutenho."Eraumamulhermagra,comolheiras,orostofino,muitomaquiado, eo cabelopreso.Nãoeraespecialmentebonita.Onarizerapontudo.Tinhaumolhoparacada ladoeumarestranho,queeunãoconseguidefinir.Umaexpressãotriste.Eleprosseguiu:

"Meupaimeentregouaospaisdeleedesapareceu.Sempreodieiosmeusavós.Quandofizdezesseteanos,meuavômechamouedissequeeu

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tinha que saber algumas verdades. Minha avó era muito passiva. Ficavasempreàsombradele,ouvindooqueomaridodizia.Meuavôestavacomumpapelnamão.Nuncaentendi se tinhamesperadoatéaquelediaparame revelar o que sempre souberamou se também tinham sidopegosdesurpresa, como eu. Meu avô chamou minha mãe de puta, disse que elasempre tinha sido uma vadia, que eu não era filho do meu pai e que,portanto, não havia nenhuma razão para continuar vivendo comeles. Euera o filho da puta. Podia esperar qualquer coisa deles, mas nunca teriapensado numa história daquelas. Não achei que fossem capazes de meexpulsar. Ele estava com muita raiva, transtornado e trêmulo. Tambémfiquei sem palavras. Me estendeu o papel. Era uma carta do meu pai, aprimeira que elemandava emdezessete anos. Estava endereçada amim,maselesatinhamabertoelido.

Não havia envelope nem data. Achei que pudessem ter forjado acarta.Eunãoconheciaaletradomeupai.Queriamseverlivresdemimesabiamqual seriaaminhareação.Fuiemboradaquelacasaparasempre.Nuncamaisosvi.Nacarta,omeupaidiziaquenãoerameupaiemepediadesculpas.Achavaqueagoraeu já eraumhomenzinhoeprecisava saberdascoisas.Diziaqueeunãotinhasidoabandonadoporele,queomeupaideverdadetinhamorridonocoraçãodoBrasil,quandotentavavoltarparame conhecer. Nunca entendi o que queria dizer exatamente com aquilo.Falavacomosefosseduaspessoas.Falavadesimesmocomosefosseumoutro". O filho do fotógrafo falava enquanto preparava o café. Eu já nãoconseguiaolharparaas fotosquetinhanasmãos.Nãopodiaacreditarnoqueestavaouvindo.Nãosãosóosíndiosquedizemoquevocêquerouvir,achandoqueassimpodemagradá-lo,comosenãohouvesserealidade.Elecontinuou:"MinhateseéqueeleenlouqueceucomamortedaminhamãeefoiemboraparaoBrasil.Aquiloeraumaformadedizerquenãopodiamaisme ver. Quando dizia que o meu pai tinha morrido, era uma formadesesperada de me pedir para esquecê-lo, de se livrar de todaresponsabilidade".

Sem que eu pudesse me controlar, deixei escapar um murmúrio:"Não".

"Oquê?",elesevirouparamim,segurandoacafeteira."Não, nada", eu disse, desviando os meus olhos vidrados daquele

rostoemqueporuminstanteeuchegueiaverodeBuellQuainmasqueagora já não tinha nada a ver com o do etnólogo. Eu fingia que estavainteressadonasfotosdosíndios.Eleprosseguiucomahistóriadasuavida,maseujánãoqueriasaberque,depoisdesairdecasa,eletinhaidoviver

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com um homem mais velho que encontrara numa leitura de poemasbeatnik num bar do Village; não queria saber que passou a acompanharessepoetaemtodososencontros,exposiçõesegalerias,emtodososbarese em todos os estúdios de artistas em que se reuniam para declamarpoemas;nãoqueriasaberonomedopoetaqueelechamavasódeFrank;jánãoqueriasaberdenadadavidadele.Ele recitouumpoema: "Daquiemdiantevouandardoladodosol...Estouvirandoarua...",enquantoserviaocafé.

"Vocêachaaminhahistóriatriste?""Não,nãoéisso",respondicomasfotografiasnasmãos."Oquevocêachadasfotos?""Comoassim?"Eleficouirritado:"Sãoboasounãosão?"."Sãoótimas.Eincrível...""Espere aí. Se você não gostou dessas, tenho outras mais

interessantes.Jávolto",eledisse,impaciente,enquantopunhaumpratodetorradasnamesa.Olabrador,queestavasentadoaosmeuspés,saiuatrásdodono.Ofilhodofotógrafovoltoucomoutrapasta."Vejasóqueincrível.Diziaquenãoerameupai,masparainfelicidadedeleagenéticanãodeixadúvidas."

Apastaestavacheiadefotosdehomensnus,brancosenegros,aoarlivre, numa praia ou em estúdio. Havia umas poucas no Brasil, mas amaioriatinhasidotiradanosEstadosUnidos.EentreessasnãoestavamosdoisretratosamareladosdeBuellQuain,defrenteedeperfil,queeutinhavistonosarquivosdeHeloísaAlbertoTorres.NãohavianadaqueprovasseumaligaçãoentreQuaineofotógrafo.

"Talpai,talfilho",eledisse,eriu."Nofundo,elegostavamesmoerade fazer fotos de homens pelados. Na carta que me mandou quando fizdezesseteanos,elefalavadoBrasilcomouma'terradesgraçada'.Seeratãodesgraçada, por que tinha ido parar lá? Por que ficou? Nuncamais ouvifalardele.Não sabia comoencontrá-lo.Não tinhanenhumendereço.Nãopodiapediraosmeusavós.Eueraumrapazorgulhosoerevoltado.Preferiesquecê-lo.Sóoviquandojáestavamorto."

Eunãodiziamaisnada.Elesesentouàminhafrente.Faziabarulhosinfantis ao tomaro café.Emvezdegolesnormais, ele aspiravao cafédaxícara.Comiadebocaabertaefalavadebocacheia.Devezemquandodavaumpedaçode torradaparao cachorro. "E você?Até agora só eu falei demim..."

"Eunada."

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Paraminhasorte,quandodescicomacaixa,ohomemdacompanhiade transportesestavachegandocomocarrinhoparapegaraencomenda.Antesqueelepudessetocaro interfone,eu lheabriaportaeentregueiacaixadosr.Parsons.

Resolviadiantaraminhavoltaparaodiaseguinte.Queriairemboranoprimeiroavião.Não tinhamaisoque fazer ali.A realidadeéoque secompartilha.OsvôosparaoBrasilcostumamsernoturnos.Omeusaíaàsdezdanoite.Chegueicedoaoaeroportoefuiumdosprimeirosaentrarnoavião. Faltavam dez minutos para a decolagem quando um rapaz ruivo,muito alto e magro, entrou esbaforido, a mochila esbarrando pelosencostos das poltronas, conforme avançava para o fundo do avião.Acomodou sua mochila no compartimento de bagagens acima da minhapoltronaepediulicençaparasentaraomeulado,najanela.Tinhaocabelocacheado,onarizaduncoeumolharsimpático,emborafossemuitofeio.Oavião decolou às dez em ponto. Voamos mais de seis horas sem nosdirigirmos a palavra.Eu não conseguia dormir. O rapaz ao meu ladotambémnão.Liaumlivro.Eradeleaúnica luzacesaentreasdetodosospassageiros.Estavamtodosdormindo.Eunãoconseguialernada.Ligueiovídeo no encosto da poltrona à minha frente. Por coincidência,sobrevoávamosaregiãoondeQuainhaviasematado.Foiquandoorapaz,pela primeira vez, fez uma pausa e me perguntou se estava meincomodandocomaluzdeleitura.Respondiquenão,dequalquerjeitonãoconseguiadormiremaviões.Ele sorriuedisseque comeleeraamesmacoisa. Estavamuito excitado com a viagempara poder dormir. Era a suaprimeiraveznaAméricadoSul.Pergunteisevinhaaturismo.Elesorriudenovo e respondeu orgulhoso e entusiasmado: "Vou estudar os índios doBrasil".Nãoconseguidizermaisnada.E,diantedomeusilêncioedaminhaperplexidade,elevoltouaolivroquetinhaacabadodefechar,retomandoaleitura.Nessahora,melembreisemmaisnemmenosdetervistoumavez,num desses programas de televisão sobre as antigas civilizações, que osNazcadodesertodoPerucortavamaslínguasdosmortoseasamarravamnumsaquinhoparaquenuncamaisatormentassemosvivos.Vireiparaooutroladoe,contrariandoaminhanatureza,tenteidormir,nemquefossesóparacalarosmortos.

FIM

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OAUTORBERNARDO CARVALHO nasceu em 1960 no Rio de Janeiro. É escritor,

jornalista e colunista. Publicou o volume de contos Aberração e osromancesOnze, Os bêbados e os sonâmbulos, Teatro, As iniciais, Medo deSadeeMongólia,todospelaCompanhiadasLetras.

SeuúltimoromanceéReprodução,lançadoemsetembrode2013.TemlivroseditadosnaFrança,emPortugal,naItáliaenaSuécia.