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NOVOS E ANTIGOS CENÁRIOS DAS DISCUSSÕES SOBRE RAÇA E ETNIA: José Otávio Catafesto de Souza 1 Espero contribuir com a discussão proposta por este Curso de Extensão, que está satisfazendo uma demanda bastante antiga das Ciências Sociais aqui na Universidade. Acho oportuno, porque permite trazer à discussão, à visibilidade acadêmica, resultados obtidos, ao longo dos últimos anos, pela pesquisa científica da equipe do Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT-PPGAS-IFCH). Nossa equipe desenvolve um tipo de pesquisa social que se inclui naquilo que Júlio Cesar Melatti, Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira intitulam Antropologia engajada, algo diferente da Antropologia chamada aplicada, com fins empresariais. É sempre necessário equacionar um pouco a diferença entre engajamento e aplicação. A relação entre pesquisa antropológica e sociedade é um assunto necessário, ainda mais na atualidade, em que há a vigência de políticas públicas cada vez mais condicionadas pelas relações comerciais e subordinadas aos interesses privados. A história da pesquisa científica sobre a temática indígena na UFRGS é ilustrativa de uma transformação gradativa, demonstrando o envolvimento crescente dos pesquisadores com os problemas sociais enfrentados pelos grupos estudados. É importante relatar tal processo, para que o público em geral e os alunos de graduação e pós-graduação possam compreender o NIT pelo tipo do conhecimento antropológico produzido e sua inserção na sociedade mais ampla. Constata-se um tipo de atuação profissional que tende a se ampliar, surgindo parceiros externos, em contraste ao decrescente incentivo governamental à pesquisa científica no país. Ditadura Militar, Abertura Política e gestões neoliberais deixaram suas marcas na história e no fazer da Antropologia e da Arqueologia, que se têm feito aqui na UFRGS. De início, recorde-se que a temática social indígena iniciou na UFRGS pelos estudos arqueológicos, analisando resíduos materiais de índios mortos, grupos do passado. Vamos encontrar a origem da atividade de Antropologia na figura de dois professores: José Proença Brochado e Pedro Ignácio Schmitz. O Prof. Pedro Schmtiz, inclusive, participou 1

NOVOS E ANTIGOS CENÁRIOS DAS DISCUSSÕES SOBRE … · marcas na história e no fazer da Antropologia e da Arqueologia, que se têm feito aqui na UFRGS. De início, recorde-se que

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NOVOS E ANTIGOS CENÁRIOS DAS DISCUSSÕES SOBRE RAÇA E ETNIA:

José Otávio Catafesto de Souza1

Espero contribuir com a discussão proposta por este Curso de Extensão, que está

satisfazendo uma demanda bastante antiga das Ciências Sociais aqui na Universidade. Acho

oportuno, porque permite trazer à discussão, à visibilidade acadêmica, resultados obtidos,

ao longo dos últimos anos, pela pesquisa científica da equipe do Núcleo de Antropologia

das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT-PPGAS-IFCH). Nossa equipe desenvolve

um tipo de pesquisa social que se inclui naquilo que Júlio Cesar Melatti, Darcy Ribeiro e

Roberto Cardoso de Oliveira intitulam Antropologia engajada, algo diferente da

Antropologia chamada aplicada, com fins empresariais. É sempre necessário equacionar um

pouco a diferença entre engajamento e aplicação.

A relação entre pesquisa antropológica e sociedade é um assunto necessário, ainda

mais na atualidade, em que há a vigência de políticas públicas cada vez mais condicionadas

pelas relações comerciais e subordinadas aos interesses privados. A história da pesquisa

científica sobre a temática indígena na UFRGS é ilustrativa de uma transformação

gradativa, demonstrando o envolvimento crescente dos pesquisadores com os problemas

sociais enfrentados pelos grupos estudados. É importante relatar tal processo, para que o

público em geral e os alunos de graduação e pós-graduação possam compreender o NIT

pelo tipo do conhecimento antropológico produzido e sua inserção na sociedade mais

ampla. Constata-se um tipo de atuação profissional que tende a se ampliar, surgindo

parceiros externos, em contraste ao decrescente incentivo governamental à pesquisa

científica no país. Ditadura Militar, Abertura Política e gestões neoliberais deixaram suas

marcas na história e no fazer da Antropologia e da Arqueologia, que se têm feito aqui na

UFRGS.

De início, recorde-se que a temática social indígena iniciou na UFRGS pelos

estudos arqueológicos, analisando resíduos materiais de índios mortos, grupos do passado.

Vamos encontrar a origem da atividade de Antropologia na figura de dois professores: José

Proença Brochado e Pedro Ignácio Schmitz. O Prof. Pedro Schmtiz, inclusive, participou

1

ativamente na constituição do nosso Programa de Pós-Graduação de Antropologia. Quando

os dois iniciaram o trabalho de Antropologia na Universidade, que era a Arqueologia, foi

através de um grande programa nacional de pesquisas arqueológicas – o Programa Nacional

de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), subsidiado pelo Smithsonian Institute, uma

instituição de pesquisa norte-americana, em pleno período da ditadura militar, injetando

recursos para o desenvolvimento desse programa de pesquisa arqueológica. Muito se têm

criticado essa fase de pesquisa, porque, enfim, não há como deixar de associá-la ao

autoritarismo, à interferência norte-americana dentro do território nacional, nas diferentes

esferas da gestão do patrimônio público e nacional.

A década de 1980 representa uma nova fase, que é a consolidação do Programa de

Pós-Graduação em Antropologia, naquela diretriz das reformas universitárias da década de

1960, que levam à constituição dos programas, e é dentro desse contexto que surgem as

instâncias de fomento a pesquisa de caráter científico. Foram consolidadas políticas

federais de pesquisa através do CNPq e da CAPES, órgãos que, através dos programas,

subsidiaram a criação de especialistas, de mestres e doutores, consolidando o que hoje é o

nosso PPGAS. Nesse momento, Proenza Brochado já estava afastado da Universidade para

fazer o curso de Doutorado e Ignácio Schmitz estava atuando no programa de Pós-

Graduação, mas com a sua pesquisa mais ligada ao Instituto Anchietano na Unisinos.

Nesse período começa a participação da UFRGS, que até hoje existe, no

envolvimento com aquilo que poderíamos chamar de pesquisa de contrato. A década de

1980 representa o início de implantação de uma série de projetos de desenvolvimento,

levados dentro daquela perspectiva que os militares instauravam como desenvolvimento.

Tratava-se de grandes projetos, principalmente os hidrelétricos, não só na Amazônia e em

outras partes do Brasil, mas também sendo realizados aqui no Rio Grande do Sul,

principalmente ao longo do rio Uruguai. Foram planejadas 17 hidrelétricas e com as

transformações políticas, com a abertura política, instaurar-se uma legislação ambiental e

dá-se a criação de todo uma tramitação necessária aos licenciamentos, culminando na

aplicação das resoluções do CONAMA2, em que se vão definir os critérios dos Estudos de

Impacto Ambiental (EIA) e Relatórios de Impacto Ambiental (RIMA). Nesse contexto, eu

1 Antropólogo, Professor Adjunto do departamento de Antropologia e PPGAS/UFRGS e coordenador do NIT/UFRGS. 2 Conselho Nacional do Meio Ambiente.

2

me engajei como pesquisador na área de Arqueologia. Desde então, tenho direta ou

indiretamente participado nesse tipo de pesquisa de contrato, isso servindo de experiência a

partir de que se fazem críticas à subordinação dos critérios científicos aos empresariais

mais imediatos.

De 1995 até hoje, no NIT se realizam pesquisas do tipo apresentado pela Professora

Daisy, que é a atuação pericial, em casos de regularização de terras e áreas indígenas.

Como exemplo, tenha-se o caso da Terra Indígena (TI) Ventarra, ocupada por índios

Kaingang, localizada entre Passo Fundo e Erechim (Município de Erebango). Foi uma área

completamente perdida pela comunidade Kaingang na década de 1960, quando sobre ela

foi implantado um assentamento de colonos “brancos”. Na década de 1990, os Kaingang

desencadearam o processo de sua retomada de 753 ha., acampando no seu interior e

exigindo da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) a tramitação do processo administrativo

necessário à sua devolução e sua regularização em proveito dos mesmos. Exigiam-se

documentos técnicos e nós fomos envolvidos como peritos. Não apenas nós, pois já havia

um laudo prévio feito por outra antropóloga, a Lígia Simonian, documento que havia aberto

o processo. Aí então, nós fomos chamados como mais outros peritos, e essa é uma

característica de processos administrativos que é necessário recordar. Os trâmites políticos

quase nunca respeitam as avaliações periciais dos antropólogos, tornando bastante morosos

os processos de regularização das Terras Indígenas.

Outro caso, na mesma situação foi o da TI Monte Caseiros, municípios de Muliterno

e Ibiraiaras, a norte de Nova Prata. Também foi uma área completamente perdida, retomada

pelos índios Kaingang e tendo, hoje, regularizados oficialmente 1.004 ha., com a

contribuição de uma perícia antropológica realizada pelo NIT. Outro resultado de perícia

realizada pela equipe do NIT foi integrado, em 1997, ao processo administrativo da FUNAI

que tramita desde 1987, a reivindicação de grupos indígenas misturados do interior dos

Municípios de Salto do Jacuí, Espumoso, Jacuizinho e Campos Borges pela posse exclusiva

de 48 mil hectares. Trata-se do caso da Área da Borboleta, com centenas de pessoas

acampadas há mais de seis anos numa situação precária. Alguns alunos das ciências sociais

aqui da UFRGS até já tiveram a oportunidade de conhecer um pouco aquela realidade, pois

nós fizemos uma saída de campo para participar de um seminário sobre a Borboleta na

cidade de Salto do Jacuí em 2000. Todas estas experiências periciais serviram de base

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empírica para a elaboração de minha tese de doutorado (“Aos ‘fantasmas das brenhas’:

etnografia, invisibilidade e etnicidade de populações originárias no sul do Brasil, RS”),

convertendo-as em resultados teóricos e metodológicos mais acadêmicos.

Outra experiência pericial do NIT foi o reconhecimento de reservas estaduais aos

índios Mbyá-Guarani. Trata-se de mais uma etnia autóctone, daqueles índios que vivem na

beira das rodovias federais e estaduais e a quem os cidadãos comuns atribuem uma origem

paraguaia ou argentina. Sem dúvida, tem havido uma crescente chegada de famílias Mbyá

no Brasil, em função da dificuldade de sobrevivência nos demais países do Mercosul. Sua

fama como estrangeiros advém do seu comportamento cultural itinerante, de famílias em

constante circulação, o que tem dificultado o atendimento oficial de seus direitos étnicos.

Mesmo assim, tiveram o reconhecimento de áreas desapropriadas pelo Governo do Estado

em 2001 (Coxilha da Cruz, Água Grande e Inhacapetum) e transformadas em Reservas

Indígenas. O dispositivo de “reserva” teve que ser adotado, em função da legislação e da

regimentação indigenista brasileira, em torno da comprovação documental necessária ao

reconhecimento da tradicionalidade de ocupação de uma Terra Indígena. São critérios

advindos do Estatuto do Índio, a lei 6.001 de 1973, que foi criada no período da ditadura

militar e estabeleceu a diferença entre terra e reserva indígena. Existem esses detalhes

jurídicos que, necessariamente, nós que trabalhamos nesse campo temos que conhecer.

Em 2001, a atuação pericial do NIT continuou com a experiência de outros colegas,

realizando levantamentos documentais e etnográficos para a regularização do Capão Alto,

área contígua à TI Nonoai. Rogério Rosa fez laudo no processo de regularização fundiária

da área reivindicada e agora retomada por grupos familiares Kaingang. A participação,

também, de Ana Freitas na elaboração de perícia ambiental. Quer dizer, laudos que são

feitos não apenas na especialidade de antropólogos, mas que, junto de outros, como as

ciências naturais, podem reforçar aquilo que está sendo perciado. No mesmo ano, deu-se o

envolvimento do NIT, através de mim e do Prof. Dr. Sergio Baptista da Silva, que andou

acompanhando o Professor José Carlos dos Anjos, além de outros alunos da UFRGS, no

estudo de quatro diferentes comunidades remanescentes de quilombos, que estão sendo

trabalhadas com fins ao reconhecimento territorial. Incluindo o caso do Morro Alto

trabalhado pela professora Daisy, são cinco as situações em que há contribuição de

antropólogos desta universidade.

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Os últimos anos demonstram uma ampliação no tipo de atuação da equipe do NIT,

que é interessante saber para identificar o perfil de nosso trabalho, que é aquilo que nós

fizemos principalmente desde a última fase da gestão Olívio Dutra (PT) do Governo do

Estado. A requisição de nossa participação científica e acadêmica resulta tanto de uma

sensibilidade política, quanto pelo reconhecimento de nossa atuação engajada. Nós temos

ajudado no diagnóstico participativo e na aplicação das políticas indigenistas em diferentes

setores. Cito as políticas da Saúde Indígena, a área da Assistência Social, a área de técnicos

agrícolas. Então, a gente tem assessorado a Fundação Nacional da Saúde, a Secretaria da

Saúde, a Emater, o Centro de Aperfeiçoamento do Pequeno Agricultor (CAPA) de

Erechim, a Secretária do Trabalho e Assistência Social, a Secretaria da Administração,

principalmente, são esses os setores; mas, também, nós temos outras instâncias, como é o

caso da Fundação Palmares, o Fundo Nacional do Meio-ambiente, o Conselho Estadual dos

Povos Indígenas, a Secretária da Agricultura, enfim. Ligados a alguns desses órgãos, nós

temos feito um tipo de atuação que é a capacitação dos técnicos que são atuantes junto aos

índios.

Tudo isso é resultante de um dado óbvio, que tem sido a nossa conclusão nesses

diagnósticos, de que as políticas esbarram num impasse primário, qual seja: sobre a

incapacidade dos técnicos, que vão aplicar os projeto e os programas dirigidos aos índios,

de se isentarem da bagagem etnocêntrica que carregam desde a família. Este é um entrave

básico na aplicação das políticas diferenciadas, por melhor elaboradas e conceitualmente

corretas que elas sejam. Quem vai aplicar é o técnico que, via de regra, no caso das

comunidades indígenas, tem uma ancestralidade de embate. Quer dizer, o avô roubou terra

do índio, ou o avô foi morto pelo índio e aquele técnico é o agente de saúde, é o enfermeiro,

é o médico ou é o professor atuando dentro da área indígena. Qualquer política só deve ser

pensada quando voltada para o pessoal que atua diretamente com as comunidades atingidas,

no caso de índios e também deverá se reproduzir com as comunidades negras do Rio

Grande do Sul.

Então, esse é um panorama inicial que eu gostaria de trazer. A partir dele eu fiquei

pensando, nestes últimos dias, quando estava elaborando a minha fala, em detalhar as

opções de exercício profissional, que existem hoje para a atividade de pesquisa social e

principalmente da antropológica, com comunidades tradicionais. Fala-se em comunidades

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tradicionais para englobar quilombolas, indígenas e, também, muitas comunidades rurais. O

tradicional, aqui, entendido naquele sentido que deste Robert Redfield a gente tem na

Antropologia: o oposto ao moderno e o moderno concebido como individual, o

individualismo, a economia de mercado, a urbanização crescente, em oposição ao

tradicional que é regido, principalmente, pelas relações de reciprocidade sem a existência

de uma hierarquia sócio-econômica definida com estatutos diferenciados.

Quem trabalha com índios, negros, quilombolas e outras comunidades tradicionais,

tem algumas alternativas para realizar o seu trabalho. Em primeiro, pode se valer do tipo de

atuação inaugurado por Schmitz e Brochado no PRONAPA. Pode buscar recursos em

agências internacionais de fomento, aproveitando alternativas cada vez mais raras,

dependendo do empenho diretamente executado pelo pesquisador na obtenção de apoio.

Existem instâncias intermediárias, como é o exemplo da Fundação Ford, que tem todo um

grupo de consultores brasileiros, que vão fazer a seleção dos projetos mais adequados.

Hoje, convencionou-se colocar um grupo de mediadores nacionais, regionais e municipais

na seleção e gerenciamento dos recursos externos obtidos. Em segundo, há as agências

nacionais e estaduais de fomento à pesquisa, que estão cada vez mais conectadas aos

programas de pós-graduação. Nós teríamos ainda a FAPERGS como agência estadual de

fomento, embora ultimamente sem recursos. Antes, ela vinha apoiando pesquisas de caráter

acadêmico, mesmo fora das ciências tecnológicas. A atuação das agências de fomento está

mudando. Outrora era mais fácil você, como pesquisador individual, mesmo que tivesse

pouco vínculo com qualquer universidade, conseguir mais recursos para a realização de

pesquisas em maior prazo. Hoje, quanto mais institucionalizado estiver o projeto, quanto

maior for o número de parceiros que paguem os seus custos e quanto mais curto prazo

forem seus resultados, mais fácil será aprovado pelas agências que apoiam pesquisas

científicas. Isso representa a aplicação de políticas apenas centradas na contenção de gastos,

promovendo poupança e crescente necessidade de um campo de relações

interinstitucionais, gerando inclusive pesquisa integradas.

Nós temos uma terceira opção, quando estão envolvidos os interesses das agências

federais na implementação de políticas públicas diferenciadas. Vamos pegar o exemplo da

FUNASA (Fundação Nacional de Saúde), do Fundo Nacional do Meio Ambiente, e um

outro parceiro que se têm tornado fundamental, o Ministério Público em escala federal

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(com a Procuradoria da República) e em escala estadual, além da FUNAI, que está

responsabilizada pelos índios e do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico Nacional),

que está responsabilizado pela proteção ao patrimônio arqueológico e histórico, incluindo

agora o patrimônio imaterial (vivo). Têm surgido problemas sérios junto a essas instâncias

federais, já que muitos dos nossos colegas têm trabalhado ao custo de diárias. A política de

privatizações criou sérios impedimentos burocráticos, restringindo custos. Os cientistas

sociais, na escassez de colocação profissional, acabam aceitando trabalhar, por exemplo,

para a FUNASA, realizando atividades sem que se formalizem convênios ou contratos,

subordinados a diretrizes que buscam resolver problemas estruturais com iniciativas de

curto prazo. Vou pegar o exemplo em que participei, estabelecendo crítica agora, que é o

Diagnóstico da Manifestação do Alcoolismo entre comunidades indígenas do Estado,

acompanhando as comunidades Kaingang e Guarani. Um projeto que começou muito

interessante, mas depois do deslocamento do médico Francisco Paz (que tinha uma

mentalidade aberta e responsável, tão bom que foi destinado para a direção do Hospital

Conceição aqui de Porto Alegre) o projeto esmoreceu. No fim, nós estávamos trabalhando

apenas com o pagamento de diárias, que dependiam de toda uma tramitação administrativa

morosa, que acabava fazendo com que o trabalho não fosse implementado. Constatamos

não ser conveniente, aos burocratas da saúde, ter antropólogos circulando nas comunidades

indígenas, reconhecendo como é a implementação efetiva das ações de saúde deste órgão

aos índios. É interessante para eles que nós cientistas, como agentes críticos, não estejamos

presentes no processo de execução das políticas de saúde.

Do que está sendo dito, cabe perguntar o que resta de acadêmico nessa história toda.

A política de Estado-mínimo privatiza a ciência nas últimas décadas no Brasil. É necessário

avaliar o processo de produção do conhecimento, para que se faça uma compreensão

melhor das suas transformações atuais. Desde P. Bourdieu retenha-se a noção de campo,

equivalente ao conceito de situação em Martin Heideger. Quer dizer, não se pode pensar o

conhecimento que não seja a partir das condições que viabilizam sua produção.

Então, não adianta a gente estar falando de erudição ou de coisas politicamente

corretas, quando na prática o que está em jogo é a necessidade de cada na sua colocação

profissional, ter seu salário e ter condições para que a pesquisa se faça. A pesquisa neutra e

teórica é uma demanda, mas quem a faz é um ser histórica e socialmente condicionado,

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fazendo ciência desde uma posição, de uma situação dentro do campo. Quer dizer, está

também recebendo verbas pesquisa, embora se diga puramente teórico ou desconectado do

contágio social. Só que esta desvinculação do social é apenas ideológica e nunca se

concretiza.

A pesquisa antropológica em comunidades indígenas e tradicionais tem sofrido

muito com as políticas de desenvolvimento tecnocrático implementadas no Brasil das

últimas décadas. A vigência política do imediatismo, da razão prática e mercadológica

desmerece as minorias rurais, estando isso refletido na falta de respeito aos direitos

diferenciados e ao papel dos antropólogos no sentido de desvelá-los e lhes dar

reconhecimento social e político mais amplo.

Nesse quadro negativo, a pesquisa etnográfica do NIT tem sobrevivido com

migalhas, com parcos recursos obtidos desde múltiplas e instáveis fontes. Por isso, é

preciso valorizar os raros momentos em que o NIT tem sido chamado para dar sua

contribuição científica em processos sociais, como aconteceu na gestão de Olívio Dutra na

administração estadual. Houve, então, uma nítida diretriz política adotada em respeito às

minorias historicamente desfavorecidas. É o que explica nosso envolvimento científico com

remanescentes dos quilombos da Mormaça (Sertão), Arvinha (Sertão e Coxilha) etc. Havia

vontade política, uma secretária (STCAS) especialmente voltada para o reconhecimento

dos direitos tradicionais, contrariando aquilo que acontecia em escala nacional. Em termos

federais, nós constatamos um desleixo, um esvaziamento cada vez maior dos órgãos

indigenistas e dos que representam os direitos coletivos, com a aplicação da política

privatizadora pelo governo FHC.

Considerando a pequena amplitude do mercado de trabalho para antropólogos que

estudam minorias rurais, é necessário explorar demandas ainda amortecidas. A Constituição

Federal de 1988 gerou um processo de descentralização administrativa, colocando

atribuições concorrentes entre estados e municípios, além do federal. Muitos museus

podem voltar a ser nicho do trabalho etnográfico e antropológico, alicerçando novamente a

pesquisa. As prefeituras estão responsabilizadas pela execução de políticas diferenciadas a

índios e outras minorias existentes dentro do seu município. É o que tende a acontecer,

como se observa hoje na diretriz de saúde, por exemplo. Quem está mais distante não sabe.

A municipalização da saúde significa que o governo federal minimiza sua estrutura

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administrativa, pulverizando-se apenas em agências repassadoras de verbas e

investimentos, além de seu nem sempre eficiente papel fiscalizador na execução dos

projetos financiados. Não observamos no meio federal, iniciativas de controle eficaz nem

uma ação fiscalizadora capaz de reconhecer o retorno trazido pelo “dinheiro” que está

sendo aplicado na saúde indígena. Pessoas entrevistadas, que são os “pacientes” desse

processo, quem está recebendo essa política pública, que são os índios, fazem comentários

muito mais críticos raramente elogiosos. De qualquer forma, as políticas diferenciadas de

saúde indígena estão precariamente implementadas, havendo também um vazio na esfera

estadual.

Depois, nós temos, surpreendentemente, a presença de ONGS religiosas que tem,

dentro do Brasil, uma importância fundamental nas políticas voltadas aos pobres. Porque

pobre é quase que sinônimo de tradicional no Brasil. Você tem, por exemplo, na área

indigenista o CIMI – Conselho Indigenista Missionário da Igreja Católica, o COMIN –

Comissão de Missão entre Índios da Igreja Luterana, que atuam há décadas. Inclusive,

recentemente eles têm sido os responsáveis pela realização de muitas das políticas públicas

do país. Quer dizer, o “setor público” está se esvaziando, dando lugar ao Terceiro Setor, as

ONGS, que também se transformam em agenciadoras do trabalho dos cientistas sociais e

dos antropólogos, contratados enquanto consultores técnicos.

Quais são as formas possíveis de atuação profissional de antropólogos? Quais são os

interesses embutidos na investição antropológica? Quais são os resultados esperados da

pesquisa etnográfica e etnológica com populações indígenas e tradicionais? Eu reconheci

diferentes posições. Primeira, é o prestigio acadêmico e científico, que justifica muito do

embate teórico que a gente tem dentro da academia. Trata-se da postura erudita, praticada

por aqueles que, subsidiados por recursos de agências de fomento, conseguem reproduzir,

no Brasil, parâmetros de cientificidade que são considerados legítimos ou cópia dos

modelos adotados nos Estados Unidos, na França, ou em outros países da Europa. A

erudição defende a construção de um conhecimento afastado da realidade mundana. É um

conhecimento, que se quer fazer eminentemente teórico, não tanto fundado numa

perspectiva empírica, muito mais comparativa, perdendo aquela dimensão de campo tão

prestigiada na Antropologia. Apesar dessa busca pelo empírico, está é uma das tendências

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presentes também na Antropologia. É fácil constatar a existência de profissionais,

antropólogos, cientistas sociais que privilegiam essa linha.

Um segundo tipo de atuação, acho que o Gilberto Freire é um exemplo mais

clássico e o Darcy Ribeiro também. Muito é esse prestígio social ligado ao censo comum, à

sociedade mais ampla. Não só no circuito acadêmico, esse respaldo de conseguir escrever

obras literárias com repercussão mais ampla, no estilo de B. Malinowski, que já tinha feito

isso. Quer dizer, do pesquisador também estar preocupado com o reconhecimento,

atingindo o mercado editorial. Uma terceira modalidade é um campo em expansão, que são

projetos de Antropologia de contrato. Participar agora do processo de licenciamento de

projetos tecnológicos, como avaliar o impacto gerado por uma estrada numa comunidade

quilombola, pegando o exemplo da BR 101, que está passando exatamente pelas

comunidades estudadas pela equipe da professora Daisy Barcellos em Morro Alto.

Essa modalidade de atuação pode se dar em três tipos de vínculos: a vinculação

pública, cada vez mais difícil porque a própria função fiscalizadora tem sido terceirizada; o

vínculo privado e nós cairíamos, então, naquilo que é a Antropologia aplicada norte-

americana, que é um antropólogo dentro de uma empresa hidrelétrica, dentro de um

conselho hidrelétrico, para o antropólogo respaldar o licenciamento daquele projeto; e o

terceiro setor, que têm sido muito desempenhado pelas associações ambientalistas

ecológicas. Algumas delas, no Brasil, têm incorporado cientistas sociais, antropólogos nos

seus quadros para conseguir atuar enquanto órgãos representativos da sociedade civil. Uma

quarta possibilidade é captar linhas de crédito internacionais e nacionais, voltadas para

projetos executados por ONGS, que compatibilizem a sociedade com a natureza. Existe

toda uma linha de trabalho nesse campo. Dentro desta última modalidade, aparecem linhas

de financiamento, oportunidades de sustentação profissional e obtenção de subsídios a

projetos pesquisa selecionados em concorrências públicas. Um quinto nível também

existente é o do engajamento social e político dos pesquisadores. Estou citando esses

níveis, mas eles não são mutuamente excludentes, pois podem ser concomitantes. É difícil

encontrar um profissional que não tenha um envolvimento múltiplo, embora haja variação

na ênfase de cada uma delas. Há intelectuais que têm uma proposta explícita do

engajamento social da pesquisa.

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Nós temos heróis fundadores desse tipo de pesquisa engajada, como, por exemplo,

Curt Unkel Nimuendaju. É alguém que se empenhou extremamente pelo reconhecimento

do direito indígena. Recordando os trabalhos de Eduardo Galvão, Roberto Cardoso de

Oliveira, Darcy Ribeiro, constata-se que todos eles, na biografia, têm esse tipo de

engajamento social, que é algo marcante no perfil de trabalho do NIT. Nós temos o nível da

solicitação desde as políticas públicas, e aí eu gostaria de trabalhar o ano de 1988 como um

marco. Desde então, nós temos a definição jurídica do Brasil como uma sociedade

pluriétnica e multicultural. Este tem sido o comentário dos procuradores da 6ª Câmara da

Procuradoria de República em Brasília. A Míriam Chagas, por exemplo, teria mais

propriedade para falar desse assunto. Mas antes de 1988, as constituições e jurisprudência

brasileiras sempre foram pautadas por uma mesma idéia, qual seja: a construção de uma

nação uniforme, homogênea, uma cidadania abstrata, uma língua oficial, um credo oficial,

uma organização política oficial em todos os níveis. Aí, ocorreram transformações no

pensamento social, e muito contribuíram cientistas sociais para essa transformação, mas eu

não diria apenas cientistas sociais. Quero recordar o caso do Brasil, aquilo que Roberto

Cardoso de Oliveira, no início da década de 1980, já tinha diagnosticado. Ele tem um

livrinho que eu considero clássico, que é um livrinho entitulado: A Crise do Indigenismo.

Onde ele mostra, em artigos simples, que a abertura política começou com as assembléias

indígenas realizadas no interior de todo o Brasil. Em 1978 ocorreram as primeiras

assembléias indígenas e depois elas proliferaram ao longo da década de 80.

Os índios foram se reunindo pela busca de seus direitos e os militares deixando os

índios organizarem-se em assembléias. Isso se explica pelo imaginário rondoniano

positivista, quer dizer, havia tolerância para com os primitivos habitantes do Brasil. O Prof.

Sílvio Coelho e outros têm feito a história das Ciências Sociais, indicando que muitas

pessoas descontentes com os militares foram trabalhar com índios. Porque era onde os

militares exerciam menor repressão. Aí, é claro, estavam infiltrados ativistas da Igreja

Católica, principalmente, a instigar os índios, a dar condições de viagem, alimentação e

hospedagem, a criar espaço de reunião para eles. Até hoje isso é feito assim. Então, pode-se

questionar se tal estratégia foi legitima ou não para eles. Seguindo Roberto Cardoso de

Oliveira em seu diagnóstico sobre a crise do indigenismo, deve-se considerar que os índios

querem apoio, que eles usam todo o apoio, mas não se pense que o fato dos missionários

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católicos apoiarem os encontros fizesse com que eles manipulassem o resultado final do

processo. Acho que o exemplo mais claro disso está nos acontecimentos dos Contra-

festejos dos 500 anos lá em Coroa Vermelha, na Bahia. Não sei se alguém acompanhou, se

vocês escutaram algo sobre o que aconteceu lá? Eu posso dar um relato sumário para vocês.

Acontece que o CIMI, ligado à Igreja Católica, bancou recursos para muitas

lideranças chegarem, de todos os pontos dos Brasil, para se encontrarem e fazerem, lá em

Coroa Vermelha, junto aos Patachó, a assembléia de repúdio, a contra comemoração dos

500 anos. Só que lá pelo segundo ou terceiro dia, quando estavam reunidas, as lideranças

indígenas se acharam no direito de expulsar tudo que era não-índio de dentro do salão para

eles tomarem as decisões. O pessoal do CIMI não gostou porque eles queriam ficar dentro,

acompanhando, mas não foram aceitos. Chegou um momento em que houve confronto

envolvendo a ação violenta da polícia e aí o CIMI saiu pela Internet, por seus órgãos de

divulgação, difamando as lideranças porque, enfim, elas tinham se cooptado ao sistema.

Independente das verdades conflitantes e das acusações de todos os lados, este serve como

exemplo para mostrar que os índios agem independentes dos seus aliados mais íntimos.

Eles usam os seus aliados porque eles têm muita clareza de onde pretendem chegar.

São corriqueiras as mobilizações indígenas no sul do Brasil. Se vocês pegarem os

acontecimentos de hoje, quem está acompanhando aí essa semana na imprensa? Os índios

do município de Planalto (RS) manifestam sua indignação, não sei se alguém conhece

aquela região? São aldeias indígenas cortadas por uma estrada estadual que atravessa no

meio de uma área indígena. Onde tem lombada, e tem até um trecho que tem um pardal

(inoperante) todo mundo se comporta, mas onde não tem pardal há excesso de velocidade.

Na semana passada, uma índia de 11 anos, uma menina foi morta atropelada, e os índios

agora trancaram a estrada pedindo providências. Um juiz da região de Passo Fundo obrigou

a desobstruir a via “pública”, e como é instância federal a Polícia Federal esteve lá

executando a ordem. Quando um juiz respalda, o policial pode prender, e com aquele

mandado da justiça pegaram toda a liderança, o cacique mais quatro índios e prenderam.

Acham que resolveu e os índios se intimidaram? Os índios já estão fazendo duas ou três

barricadas diferentes, incluindo a presença de crianças. Estão todo os índios da aldeia lá,

agora, acampando na estrada. Esse é um caso concreto do que está se dando hoje.

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O que nós temos acompanhado é a existência dessa demanda cada vez maior das

comunidades tradicionais e, por outro lado, temos uma regimentação etnocêntrica. Não é a

toa que uma juíza de Passo Fundo dá esse veredicto. Está ligado ao habitus etnocêntrico

que perdura e predomina na inteligência brasileira. É o mesmo que eu estava falando dos

agentes de saúde. Você vai dialogar com um juiz desses e observa a falta de capacitação

nas Ciências Sociais. Essa pessoa está reforçando valores evolucionistas, que ela assimilou

desde a família e complementou no curso superior, em universidades que cultuam o

progresso e menosprezam os “primitivos”.

Vou buscar sintetizar um pouco toda essa discussão, relacionando-a com a

dimensão da etnicidade. O que repercute disso tudo na definição da etnicidade, que é o

tema do nosso painel? Eu vou depurar a experiência, extrair uma síntese, daquilo que tem

sido o nosso envolvimento com a questão indígena, e também um pouco do que tem sido o

recente envolvimento com a questão dos negros. Porque apenas há um ano estamos

trabalhando com isso. Estamos fechando um laudo agora. Eu tenho equacionado esse

assunto desde minha tese, identificando um fundo comum entre índios, negros, mestiços e

outras pequenas comunidades rurais. Considero que o conceito de “tradicional” é operativo

e englobante, porque onde sobrevivem comunidades indígenas, via de regra, são áreas de

refúgio, áreas que sobreviveram aos ciclos de expansão econômica da história gaúcha.

Ligadas a elas nós encontramos negros. Você vai ver os negros, as comunidades de negros,

que estão ali, elas reproduzem muito do parâmetro de ocupação ecológica e produção

indígena. Então está usando o milho, a mandioca, a coivara, a cestaria. Reproduz tal qual a

cestaria indígena. Há uma ligação muito íntima entre minorias de diferentes procedências, e

eu caracterizo isso como o resultado daquela dimensão antropofágica das culturas, das

cosmologias sul-americanas. O fato do ser estrangeiro despertar o desejo de ser deglutido,

integrado pela sensualidade da mulher, assimilado ao grupo autóctone. Só quando o

estrangeiro tem alguma barreira de identidade que isso não acontece, como no caso dos

brancos. Os brancos sabem, desde a história do Brasil, que milho e mandioca, pela elite

colonial e depois imperial, sempre foi considerada comida de animal. Até hoje, no interior,

os italianos ainda reproduzem isso nas narrativas. Milho como comida de galinha. No

entanto, a polenta já se transforma num item do cardápio. Quer dizer, polenta é uma

transfiguração cultural, uma domesticação da força contida no milho enquanto ração

13

animal. Qual é a diferença ente papa de milho e polenta? A gente não sabe muito bem

porque a polenta vem do milho, e é uma comida indígena também, mas ela muda de nome.

Então, a papa de milho, o tomate, que também é americano, é mexicano, se faz algo

tipicamente italiano.

Pensando nessa questão de etnicidades transfiguradas, acho que a experiência com

perícias nos demonstra algo que pode servir como reflexão sobre o assunto. Eu queria

trazer esse dado porque sei que a nossa atividade tem sido objeto de discussão. Alguns

colegas e alunos daqui de dentro do curso colocaram em discussão a metodologia praticada

pelo NIT, principalmente a minha. Acho que está em jogo perspectivas diferentes do que é

a atuação do antropólogo. Quer dizer, entre alguém que pensa apenas numa discussão

teórica a ser elaborada, num projeto muito bem feito, acabado, e que vai a campo coletar as

informações e que tem como proposição o afastamento com relação aos princípios

ideológicos, as motivações culturais e os valores, até políticos, dos que estão sendo

entrevistados. Então, é aquela idéia de você buscar a substância teórica do objeto que está

sendo trabalhado. Quem trabalha com índio no Brasil opta, geralmente, entre o

interacionismo, que aborda os índios em relação interétnica, e o funcionalismo ou

estruturalismo. Neste caso, os antropólogos têm por perfil fazer uma etnografia

monográfica em estado puro. Estaria lá, o índio no meio, como unidade social isolada,

desconectado de qualquer influência externa, inclusive daquela que o antropólogo

representa dentro da comunidade. Isso é abstraído em função da busca de uma cosmologia,

de uma estrutura de pensamento e coisa e tal.

Por outro lado, a corrente que advém desde Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de

Oliveira, os conceitos de fricção interétnica, então, trabalhando com aquilo que é

científicamente mais evidente na realidade negra e índia no sul do Brasil. Trata-se do tema

da construção de identidade. Ela se faz no jogo de oposições e complementaridades. Ou

melhor, ela não se faz; a etnicidade é um processo. Ela se constrói nesse diálogo contínuo

com o sistema que se instaura sobre cada minoria, com as instituições que se criam sobre

ela. Isso é muito claro para o exemplo dos Kaingang. Isso é muito evidente para o exemplo

dos Guarani. Há a tendência de substancialização. O que é o Kaingang? Vamos pegar o

rótulo étnico “Kaingang”, que é uma das etnias indígenas do sul. Se você perguntar: desde

quando os Kaingang se reconhecem como Kaingang? Aí se pode encontrar a participação

14

da produção antropológica neste processo. No final do século XIX, Telêmaco Borba

estudou um grupo de fala Jê no Paraná, e ele os designou como Kaingang. Depois, Alfred

Metráux generaliza e escreve um livro reiterando tal etnônimo. De lá até hoje, o termo

“Kaingang” difundiu-se largamente, a ponto dos próprios índios se reconhecem como

Kaingang.

Na Região Platina aconteceu a mesma coisa com os Guarani. A palavra Guarani

difundiu-se no período colonial, quando chegaram os europeus aqui. Espanhóis e

portugueses perguntaram aos índios quem eles eram. O nativo de fala Tupi-Guarani

respondia: - Guarani. Através desta palavra, ele estava se reconhecendo como guerreiro,

num momento de perda do território pela expansão colonial e está enfatizando: - Oh! Eu

sou guerreiro! O Guarani tornou-se um rótulo lingüístico depois da Colonia, não sendo uma

identidade étnica substantiva em si. Porque existem dialetos e variações da fala Guarani,

resultante da autarquia e independência política dos seus grupos familiares. O Guarani

falado no Paraguai é um, o guarani falado pelo Mbyá-Guarani é outro. Nós temos ainda os

Ñandeva ou Chiripá, além dos Kayová do Mato Grosso.

A pesquisa etnográfica não encontra etnias genéricas como gostariam os gestores

das políticas públicas. O etnógrafo penetra no mundo microssocial, nas subunidades que se

vão construindo independentes e interdependentes. Por isso, sempre preferível falar de

comunidades étnicas enquanto grupos de residência, consanguinidade e aliança. Eu tenho

dificuldade para aceitar idéias que fundamentem equivalências entre nação e etnia,

principalmente para o caso indígena, no qual vigora a força política centrífuga do modo de

produção doméstica. As comunidades indígenas se pautam pela dispersão econômica e pela

independência da unidade doméstica de produção. Isso tem uma implicação direta no que

se refere a implantação de políticas públicas, porque há defasagem entre as políticas de

Estado e a organização sócio-econômica dessas comunidades.

Analisemos o exemplo trazido pelas lideranças Guarani cooptadas pelo CEPI –

STCAS. A proposta do CEPI é muito interessante, pretendendo constituir representação de

todas comunidades indígenas do Estado. Ele é formado por quarenta representantes

Kaingang e quarenta representantes Guarani. Cada comunidade regional escolhe seu

representante, tendo este o direito de fala e de voto dentro do Conselho. Acontece que esse

representante é escolhido pelas circunstâncias externas, por razões exógenas à sua

15

comunidade de origem. Ele é considerado como um representante da sua parentela, embora

os agentes do Estado o considerem como representante comunitário. O fato de um índio

passar a ser representante de sua “comunidade”, mediador com os agentes do Estado,

significa que as outras parentelas vão ficar com ciúme e vão começar a fazer represália em

relação aquele agente cooptado. Porque preferiu fulano e não ciclano? Então se cria um

jogo de oposições dentro das comunidades. Depois, quando tal representante volta para a

comunidade, para falar sobre as decisões a serem adotadas, ninguém o escuta, a não ser os

seus próprios parentes. Os outros membros comunitários não querem saber. “Não, esse aí é

interventor!”. Essa característica centrífuga da organização indígena é ao mesmo tempo

prejuízo – impedindo uma organização centralizada do movimento étnico - e também

grande vantagem, pois é a essência da capacidade de resistência dessas comunidades.

Porque elas não se subordinam a uma relação de mando e obediência, pressuposto básico

para a ação do Estado. As comunidades Mbyá-Guarani ainda resistem a esse tipo de

relação política.

Como é que as políticas públicas podem lidar com esta dicotomia? Eu não vejo

como seria possível. Voltamos aos dilemas anteriormente apontados para a pesquisa,

comuns aos da política. Para controlar gastos é mais cômodo implementar políticas

homogêneas, de preferência destinadas aos índios genéricos. No entanto, há diversas

etnicidades indígenas (tipos de Kaingang e de Guarani), talvez uma para cada comunidade

de residência. Há também outras minorias, incluindo índios misturados, negros, pescadores,

artesãos. Todos são englobados como minorias, um tipo de direitos coletivos e difusos.

Apesar de todas as resistências estabelecidas pelo processo político de Estado, as minorias

exigem que haja flexibilização das políticas públicas, mas ela se flexibiliza pouco por causa

do etnocentrismo adormecido no subconsciente de políticos, juristas, profissionais e

técnicos responsáveis pelas ações do Estado. O antropólogo também ajuda a condicionar

um pouco esse processo, ainda mais quando ele adota a relativização e o engajamento.

Por fim, cabe dizer que naquela minha lista de alternativas, cabe a cada um

estabelecer qual é a prioridade e o tipo de ciência social que ele quer fazer. Ele pode

estabelece como prioridade o prestígio e a discussão erudita, ou estabelece como prioridade

sua sintonia com as demandas das comunidades estudadas Eu digo isso porque os

resultados da minha pesquisa têm mostrado que os informantes, índios ou negros, querem

16

falar sobre temas bem concretos, ligados às suas reivindicações por diretos diferenciados.

De início, não era isso o que eu queria pesquisar. Sempre digo que na minha tese de

doutorado eu teria gostado muito de pesquisar cosmologia Kaingang. Era o que eu queria.

Eles têm questões ligadas à morte e coisa e tal, mas não era isso que eles queriam falar! Eu

ia entrevistar as pessoas. As pessoas vinham falar da terra, assim como hoje eles querem

falar da terra. Assim, eu não pude deixar de contemplar a questão da terra na minha tese.

Tornou-se reflexo daquilo que é demanda da própria comunidade estudada. O cientista tem

que aprender a fazer teoria dentro desta realidade, de abstrair conceitos ao mesmo tempo

em que está engajado.

OS CIENTISTAS SOCIAIS E A QUESTÃO RACIAL.

José Carlos Gomes dos Anjos3

O que busco fazer aqui é uma possível leitura tensa das provocações que

recentemente cientistas sociais brasileiros têm tratado da questão racial. É possível fazê-la

sobre o prisma do debate, do confronto, de uma contraposição tensa de idéias sobre o que

vêm acontecendo há cerca de uma década e meia nos textos dos cientistas sociais que se

debruçam sobre a questão racial. Poderíamos ver duas posições em confronto se

cristalizando em duas obras que reúnem um conjunto de textos que estão nitidamente em

3 Antropólogo, Professor Adjunto do departamento de Sociologia e PPG em Sociologia/UFRGS.

17

contraposição e que se citam num processo de confronto explícito, o que é relativamente

raro nas ciências sociais brasileiras. O trabalho do Antonio Sérgio Alfredo Guimarães,

“Classes, Raças e Democracia”, sugere explicitamente que está respondendo às críticas que

lhe forma dirigidas por Costa e Werle (1997), Yvonne Maggie (1999) e Mônica Grin

(2001). Mais ainda, Guimarães associa a polêmica gerada nas ciências sociais brasileiras

em torno do conceito de raça a “uma diferença ontológica fundamental” entre antropólogos

e sociólogos (GUIMARÃES:54:2002).

De outro lado, foi publicado recentemente o livro “Raça como retórica”, organizado

pela Yvonne Maggie4. Aqui também fica explicito desde o início a tensão. No prefácio,

redigido por Peter Fry, a reconstituição do desenvolvimento das reflexões e pesquisas sobre

a questão racial no Brasil é encaminhada de modo a explicitar um espaço de polarização:

apresenta-se duas posições no cenário atual de debate, no Brasil, sobre a questão racial. Na

verdade, as duas posições são, de certa forma, desdobramento dos estudos clássicos

empreendidos sobre o patrocínio da UNESCO na década de 50 sobre a questão racial.

Resultaram desses estudos três grandes conclusões: de que existe uma especificidade na

forma como as relações raciais se dão no Brasil; que as relações raciais no Brasil não são

tão cordiais como se apresenta através do mito da democracia racial. Finalmente, a idéia de

que, portanto, é necessário rever a crença de que o Brasil seria uma espécie de paraíso

racial, e um paradigma para as relações raciais no resto do mundo. Na seqüência dessa

reconstituição Fry se posiciona a favor da idéia de que se o mito da democracia racial é um

mito fundante da nação brasileira, como mito fundante é um ideal a ser preservado.

Em primeiro lugar, eu vou apresentar em termos muito largos, grosseiros, os pontos

do debate, os tópicos em que essas duas posições estão se contrapondo. Num segundo

momento, eu vou tentar distanciar-me para tentar escavar o subsolo desse debate com a

pretensão de fazer o esboço de uma arqueologia dos discursos sobre a questão racial das

Ciências Sociais no Brasil. Num terceiro momento me localizo dentro desse espaço de

embate para assumir algumas posições normativas.

O que está, fundamentalmente, em jogo nessa discussão? Desde, pelo menos a

segunda metade da década de oitenta, vêm se intensificando, sobretudo na Antropologia,

uma posição de crítica à forma como o conceito de raça tem sido operacionalizado

18

politicamente. Está em jogo principalmente a forma como o movimento negro tem se

apropriado do conceito de raça.

Tenderia a reunir as críticas a essa utilização substancialista do conceito de raça, sob

dois prismas teóricos, duas perspectivas teóricas construtivistas. Um construtivismo mais

perspectivista e outro mais objetivista. A postura de um construtivismo mais objetivista,

que pode ser identificada nos escritos de Guimarães sobre o assunto. Aqui o conceito de

raça é operacionalizado sob uma perspectiva nominal, o que significa dizer que raças só

têm existência enquanto construto social. Para humanidade não existe raça, do ponto de

vista biológico, na verdade, raça é um construto histórico, pertinente a determinadas

sociedades. Por exemplo quando se compara a África do Sul, o Brasil e os Estados Unidos

fica claro que o sistema de classificação racial operacionalizado nessas diferentes

sociedades é substancialmente diferente.

Estou chamando a essa posição de construtivista objetivista e estrutural, em

contraposição a uma outra posição, em que identificaria antropólogos como Peter Fry,

Maggie, Monteiro, e outros. Sob esse outro construtivismo o que está em jogo é algo muito

similar. Trata-se de enfatizar que as categorias raciais são criadas e reconstituídas em

contextos locais. Portanto, os atores sociais estão manipulando suas identidades em função

destes contextos de interação no qual eles estão inseridos e existe uma multiplicidade de

formas de operacionalizar sistemas classificatórios raciais.

Qual a diferença básica entre as duas posturas?

Sob a perspectiva que chamei de mais objetivista o quotidiano das relações sociais

no Brasil se expõem de forma racializada, por exemplo, numa série de dados estatísticos de

processos acusatórios que se judicializaram, em que pessoas se vêm no quotidiano

racialmente discriminadas. Mesmo se os sistemas de classificação nativos sugerem noções

associadas à cor e não à raça o texto subjacente é um texto que supõe diferenciações de

raças. Diferenças biológicas entre as pessoas estão pressupostas nos sistemas de

classificação e identificação étnicas operacionalizados no quotidiano brasileiro e isso se

expressa tanto nas estatísticas referentes às trocas de injúrias no quotidiano, quando

naquelas sobre oportunidades sociais já bem publicizadas nos textos sobre as desigualdades

raciais. Nesse tipo de análise o conceito de raça é fundamental para entender as 4MAGGIE, Yvonne; REZENDE, Claudia Barcellos (Orgs.) Raça como retórica: a construção da

19

desigualdades sociais no Brasil. Ele é um conceito que não pode ser dispensado pelas

Ciências Sociais. Não se trata apenas de uma categoria nativa, mas de um conceito

sociológico que sob à ideologia da mestiçagem e da graduação de cores explicita

mecanismos de produção de desigualdades sociais fundamentais. O resultado desse tipo de

raciocínio desemboca na idéia de que o Brasil precisa fazer um ajuste de contas com as suas

desigualdades sociais através de políticas afirmativas.

Quanto ao mito da democracia racial, sob essa perspectiva que chamei de

construtivismo objetivista, trata-se de ideologema datado. A hegemonia desse senso que

vigorou quase sem contestação entre as décadas de 30 e à década de 70. Após a década de

setenta o mito tem sido insistentemente exposto e criticado pelo movimento negro.

Em contraposição, sob a outra perspectiva, o que esta em jogo é perceber como os

atores sociais, em contextos locais, manipulam sistemas classificatórios identitários.

Enfatiza-se que não existe uma forma única, na sociedade brasileira, de se trabalhar a idéia

de raças. Conforme os grupos sociais se pode encontrar modalidades diferentes de

trabalhar, de construir a idéia de raça e a idéia de cor. A diferença metodológica mais

importante é não ir além do texto nativo para encontrar um subtexto mais estrutural que

explicite uma contraposição de raças escamoteada. O que está em jogo é entender

múltiplos textos, através dos quais, de forma difusa, na sociedade brasileira, vão se

constituindo formas múltiplas de identidades étnicas, raciais, regionais. Sob essa

abordagem se pode acusar o movimento negro de estar importando um tipo de leitura da

realidade social brasileira que está contaminada pela ideologia racialista norte-americana ao

contrário de toda a tradição nacional brasileira colocando em xeque com isso um

patrimônio da nação brasileira que é o mito da democracia racial. E o Estado brasileiro ao

adotar políticas públicas de corte racial estaria embarcando num processo alienígena e

perigoso de racialização das relações sociais no Brasil.

Por exemplo, em Porto Alegre, a Coordenação de Direitos Humanos do município,

recentemente, orquestrou com as demais secretarias do governo de estado uma política no

sentido de que em todos os cadastros públicos as pessoas fossem levadas a se autodefinirem

em termos étnico-raciais. Desde o ponto de vista de um construtivismo mais pragmático,

isso seria tipicamente uma política tendente à racialização das relações sociais, isto é, um

diferença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

20

processo que não apenas impõe um modo de leitura da população que solicita serviços

públicos, mas que na forma de registrar essa realidade acaba contribuindo para criar uma

nova realidade. Está se prescrevendo uma forma de ver a realidade social que ao se

institucionalizar acaba fazendo com que as relações sociais passem se dar de uma forma

diferenciada, de uma forma racializada que não havia antes.

Essa outra postura com relação à questão racial vai desaguar numa proposta política

que é a do ataque às desigualdades sociais como um ataque à pobreza de uma forma geral,

como um ataque à desigualdade de renda, mas que não precisa de um registro racializante.

O argumento de base é que se o Brasil construiu suas relações raciais de uma forma

diferenciada dos Estados Unidos, caberia ao Brasil encontrar formas próprias de buscar

soluções para desigualdades sociais brasileiras.

Este é um momento tenso nas Ciências Sociais no que se refere à questão das

relações raciais no Brasil. Em primeiro lugar, trata-se de um lugar particular de explicitação

de diferenças de perspectivas teórico-metodológicas. O modo de lidar com sistemas de

classificação “nativos” e sua distância epistemológica em relação aos conceitos

operacionalizados pelos cientistas sociais é já um velho problema que reencarna na questão

racial de modo particularmente polêmico.

E, por outro lado, essas diferenças de perspectivas teóricas acabam tendo como

conseqüência diferenças em termos de perspectiva política. De um lado, nós temos uma

perspectiva política que contribui para a edificação de agendas de políticas de compensação

que façam com que a população colocada sob desvantagem racial consiga ser elevada a

uma situação de maior equidade.

Por outro lado, se pode, na perspectiva caudatária de Gilberto Freyre, ver o Brasil,

como tendo já constituído sua utopia de igualdade racial. Caberia apenas ajustar as políticas

sociais para produzir mais igualdade social de fato. Nesse sentido as agendas políticas não

precisariam de um registro racializante, não passariam por um vetor de racialização das

relações sociais.

Guimarães se esquiva a essa chantagem de que no modo de usar o conceito de raça

está dando uma contribuição intelectual para o acirramento das relações raciais

respondendo que é provável que, na medida que os afro-descendentes se afirmem

racialmente e se elevem a um patamar de maior equidade social, as relações raciais entre

21

brancos e negros possam se dar com um maior grau de tolerância do que se pressupõe que

elas estejam se dando.

Nesta segunda parte de minha fala, apoio-me em Foucault para esquematicamente

designar três momentos, três grandes perspectivas sobre a questão racial: essa construtivista

que vemos no debate atual das ciências sociais (mesmo com suas contraposições internas);

a perspectiva substancialista do racismo do século XIX; e talvez uma fase anterior a essa

bio-politização do corpo social.

Foucault5 nos faz um esboço rápido de uma arquegenealogia do racismo e da

categoria raça quando nos mostra que até o século XVI a categoria raça era utilizada na

Europa sobre um enfoque que não tinha pressupostos biológicos. Até o século XVI uma

modalidade menor de fazer história se contrapunha a forma como os historiadores do rei

contavam a história da vitória dos povos invasores que se tornavam a nobreza das nações

européias. Uma história dos grupos oprimidos que operacionalizava a categoria raça

basicamente para opor o povo pensado como originário do território em questão ao povo

invasor e para mostrar como havia uma outra história, uma história de um perfil mais

bíblico onde o povo da terra, dessa terra prometida um dia acabaria por assumir a sua pátria

em contraposição a essa nobreza vitoriosa que se estabeleceu. Portanto, sob esse registro,

Foucault vai nos mostrar que o primeiro discurso em torno do conceito de raça é um

discurso que envolve a idéia de guerras de raças, de contraposição de raças, sem um

registro biologizante. Um traço curioso – com implicações para as controvérsias do

movimento negro na esquerda brasileira – é quando ele cita uma carta de Marx a Engels,

em que Marx lembra que a idéia de luta de classes foi adotada dos historiadores que

contavam a história da guerra das raças. Ele vai mostrar que o discurso da guerra das raças

sofre uma bifurcação. Por um lado, a filosofia marxista vai absorver o conceito de lutas e

vai abandonar o conceito de raças. Por outro lado, o Estado nacional, os ideólogos do

nacionalismo, vão absorver a idéia de raças sobre pressupostos biologizantes. É o início de

um biopoder – vinculado à injunção de produzir uma população saudável (por vezes em

contraposição às outras populações) – que persiste para além da utilização de noções de

raça. Trata-se da injunção moderna, vinculada à emergência dos Estados nacionais, de

purificar a população de uma nação, da necessidade de gerir uma população, de conceber a

5 FOUCAULT, M. Il faut défendre la societé: Cours au Collège de France, 1976. Seuil: Gallimard, 1997.

22

vida dessa população. O nazismo levou essa injunção à construção de uma nação saudável

e homogênea ao seu ponto extremo.

Então, aqui nós temos um registro da categoria raça cujo enquadramento é

biologizante. Trata-se do segundo dos três modos de utilização da categoria raça. Tem-se

um modo de operacionalização no discurso da guerra de raças que é a mais territorializante

modalidade de pensar raças. Tem-se esse outro modo de pensar a categoria raças, que essa

idéia de um biopoder, de raças associadas ao registro biológico. No debate exposto acima

tem-se um terceiro momento de pensar a categoria raças que é esse modo mais

construtivista de pensar em que o que está em jogo é pensar e gerir diferenças culturais

associadas a desigualdades sociais historicamente persistentes.

Eu diria, esse debate atual brasileiro não é apenas uma tentativa de pensar através da

categoria raça, mas sobretudo a busca por um processo de racionalização das diferenças.

Um discurso que pretende que as diferenças são múltiplas, difusas, que não se enquadram

num registro binário brancos versus negros, não deixa de estar intervindo e contribuindo

para políticas públicas racionalizantes das diferenças, tanto quanto esse outro discurso que

sob o prisma binário contrapõe brancos e negros.

Abandonando o “olhar distanciado”, eu gostaria de colocar e assumir algumas

posições mais normativas no interior desse debate. Gostaria de defender a idéia de que

discutir se a realidade racial brasileira está se racializando, se o governo deve se voltar para

políticas afirmativas, se a realidade brasileira deve ser pensada sob o mito da democracia

racial ou se o mito da democracia racial deve ser abandonado, são questões

fundamentalmente políticas, onde o que está em jogo são processos de racionalização das

diferenças sociais em que uma série de atores sociais privilegiados por esse exercício do

“lazer escolástico” utiliza recursos e posições enunciativas privilegiadas para encaminhar a

forma como a nação brasileira deve ser pensada.

O que eu quero chamar a atenção e destacar é, sobretudo, a idéia de que não há

como, de um ponto de vista lógico, formal e científico se partir das múltiplas e interessantes

questões estudadas atualmente no Brasil e que envolvem a temática racial para se retirar

conclusões do tipo “o Brasil deve continuar adotando como seu mito fundante o mito da

democracia racial”, ou “o Brasil deve abandonar esse tipo de mito e adotar políticas

afirmativas”.

23

Eu gostaria de reafirmar a obviedade de que os cientistas sociais têm um papel

muito importante a fazer que é o papel de produzir pesquisas. Acho, por um lado, muito

interessante e me engajo perfeitamente na perspectiva que José Otávio Catafesto defendeu

aqui de pesquisas engajadas em processos de reivindicações locais de grupos sociais

oprimidos. Por outro lado, acho que é também importante que as Ciências Sociais

promovam uma análise desse espaço mais amplo, onde estão se dando os embates em torno

da construção da idéia de nação brasileira. Acho importante que as vozes silenciadas nesse

embate possam estar sendo chamadas e que os processos de censuras sociais nesse espaço

mais amplo de embate possam estar sendo explicitados pelos cientistas sociais. Entretanto,

acho que não cabe aos cientistas sociais dizer em nome da ciência que tipo de nação o

Brasil deve se tornar.

Acho que o engajamento em meta-narrativas sobre a nação brasileira é um

engajamento em que todos nós estamos implicados não enquanto cientistas, mas enquanto

pessoas, enquanto cidadãos, enquanto políticos no sentido mais geral do termo. Quando o

cientista diz, e usa autoridade da ciência para dizer, que não se deve racializar as relações

sociais no Brasil, esse tipo de enunciado não está apenas descrevendo uma realidade, mas

está prescrevendo como uma realidade social deve ser pensada. Ao fazer isso com

autoridade de cientista, usa a ciência como um emblema e força de censura para se impor

dentro de um espaço que na verdade deve ser um espaço de embate de idéias, onde os mais

diferentes setores da sociedade usam recursos enunciativos menos privilegiados para

contribuir e explicitar outros pontos de vista. É quando em nome da ciência (e portanto da

verdade) se exerce o papel de censor e o cientista tende a se transformar num profeta

impondo como a realidade social deve ser pensada.

A forma como me posiciono nesse debate é pela explicitação da ausência de

vínculos necessários entre a questão conceitual-epistemológica e a questão política. Na

discussão conceitual eu defenderia que a pertinência do conceito de raça é como a de

qualquer outro conceito local. Trata-se de um conceito extremamente pertinente,

operacional na análise de desigualdades sociais no interior de configurações teóricas que

lhe dão pertinência. Outras buscas teóricas por análises desde perspectiva mais pragmáticas

que mostrem como os atores sociais manipulam as identidades em contextos locais e

revertem relações de poder, são extremamente interessantes como análises localizadas no

24

interior de outros corpus teórico. Esse é, fundamentalmente, o papel do cientista. Produzir

análises teoricamente localizadas e se engajar em processos locais a favor dos grupos mais

destituídos de recursos econômicos, sociais e culturais.

Quanto às grandes agendas, as grandes idéias sobre como a nação brasileira deve ser

pensada, esse é um campo de disputa política em que aqueles que fazem ciência deveriam

ser suficientemente honestos para se colocarem nesses espaços enquanto políticos. Essa

abertura é necessária para que outras vozes (menos epistêmicas) possam também se colocar

nesse espaço político amplo, sem que a disputa pela “verdade” exerça um papel de censura

sobre os que estão fora do jogo epistêmico. Essa é a posição que eu gostaria de defender,

um simples deslocamento momentâneo do sujeito – epistêmico – para fora do campo, a

ocupação de um outro lugar enunciativo e portanto a constituição de um outro sujeito – o

político – para outras narrativas que não às teoricamente situadas. Faria “a diferença” se eu

enunciasse da seguinte forma: “Nesse momento eu não estou falando como um cientista,

como político eu sou a favor de políticas afirmativas e os meus argumentos são os

seguintes...” Essa diferença por ser uma das expressões de toda a “crise das promessas do

iluminismo”.

EM DEBATE:

Daisy de Macedo Barcellos6

O Prof. José Otávio falou sobre etnia, mas não mencionou a palavra raça em

nenhum momento. O Prof. José Carlos que vem de um campo de pesquisa com negros

“simpatizou” com a categoria de “raça”. Isso me reporta a minha relação com a pesquisa

sobre negros no Rio Grande do Sul, e que a primeira coisa com que eu me deparei foi: -

Bom, é etnia? É raça? O que é? É tudo isso junto, mas qual é a categoria que vou escolher?

Como que eu vou me posicionar perante a esse grupo, que está se definindo como negro, e

que está, na verdade, se percebendo como raça, e é percebido na sociedade brasileira como

raça? Agora, a raça é a raça negra, porque branco não tem raça. Vocês estão entendendo

qual é o sentido da raça no Brasil? É um tipo de raça que vai aparecer no meio indígena, no

25

relacionamento com o branco, em função, justamente, dessa articulação que o Prof. José

Otávio colocou do ponto de vista da cultura.

De que maneira a cosmovisão das sociedades sul-americanas nativas tem a

capacidade absorver o estrangeiro e transformá-lo num membro seu. Ele falou em

antropofagia. Eu quero resgatar esse aspecto que é o da memória de um ancestral indígena

que nós, brancos e negros, temos; e porque, aqui no Rio Grande do Sul, todo mundo admite

uma ascendência indígena? Dificilmente alguém que é classificado como branco vai

admitir uma ascendência negra. Qual é a fronteira? Qual é o lugar que o índio está tendo no

nosso imaginário, que ocupa essa função de conector da mestiçagem no Brasil? O índio,

para o Darcy Rbeiro, é que faz essa mistura. E eu, cada vez mais, estou tendendo a

concordar com ele. Retomando a fala do José Otávio sobre a origem dos estudos da

Antropologia, de que maneira as raças e as etnias foram sendo estudadas. E ele se deteve,

particularmente, no modo como se estudou índio no Brasil e no Rio Grande do Sul de modo

especial. Me parece que é uma questão bastante interessante, porque a raça, os estudos

sobre negros são estudos sobre raça, os estudos raciais no Brasil são estudos sobre o negro,

não são estudos sobre índios. Os estudos sobre índios no Rio Grande do Sul são estudos

arqueológicos, porque acreditava-se que os índios estavam extintos. Acabaram e ponto!

Índio é arqueologia e as etnias eram estudos sobre emigração. Se nós pegarmos os

programas das disciplinas de Antropologia no Brasil, e aqui no Rio Grande do Sul, eu nem

vou dizer porque, mas era isso. Quando se falava em etnia estava se falando em imigrante,

quando se falava em índio estava se falando em arqueologia. É a cestaria, é o sambaqui,

eram os “cacos” de cerâmica do Professor Brochado, do Prof. Schmitz, eram aquelas

caixinhas, e negros eram os estudos raciais. E se estudava o que? Escravidão. Porque ao

final libertou? Qual era o problema? Está entendendo? Depois que libertaram os negros

acabou o problema.

Isso nos mostra, vamos dizer então, que a minha reflexão em torno da categoria

raça, é de que ela está falando muito mais de negro, do que de índio e de branco, até pela

história da Antropologia. Já quando se fala raça na França, nós vamos estar falando muito

mais em outras coisas. Nós não vamos estar falando disso, que se transforma numa noção

de negro, que se transforma numa noção de negritude. O movimento de etnicidade, da 6 Antropóloga, Professora Adjunta do departamento de Antropologia, PPGAS/UFRGS e coordenadora do

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consciência negra, quer dizer, como a raça tenta fugir da sua biologização, (e essa questão

que é séria na raça, é tu pensares as particularidades e especificidades dos grupos a partir de

uma razão biológica Isso é que configura o racismo) e a raça carrega em si esse peso. Daí a

tendência, que eu já tive em utilizar na minha tese, porque muita gente muito antes de mim

já havia usado. Tu tens que lidar com a categoria raça a partir do modo como a sociedade a

está definindo. Porque enquanto conceito, ele não é explicativo da diferença! Ele é, sim,

um objeto de investigação ,no meu entendimento, para que se possa ver o que é que a

sociedade, como ela está manipulando a raça enquanto estratégia de segregação, de

discriminação e de construção de justificativa da desigualdade. Ela é muito mais uma

categoria do campo da ideologia, no meu entendimento, do que uma categoria cientifica.

Agora, usei raça sim no meu trabalho, e vou me referir sempre ao falar de

desigualdades entre os que se distingam culturalmente, enquanto uma questão de raça, tanto

para índio quanto para negro. Agora, em função de fontes distintas de reflexão acerca da

raça e de etnia, nós temos etnia como um conceito que fala muito mais de índio e um

conceito de raça que fala muito mais de negros, porque o conteúdo ideológico que é dado

tanto para marcar o lugar do negro na sociedade quanto o do índio . É como se o índio

ficasse “fora da sociedade” brasileira e o negro dentro, e mal posto, sempre fora de lugar. Já

falaram de mim (membros dos movimentos negros), disseram que tinha uma sarará que

estava dizendo que o negro estava sempre fora de lugar, mas o fato é que negro, no racismo

brasileiro, é percebido como inadequado. É como se ele, ao liberar-se da escravidão, quer

pela fuga, guerra, alforria, abolição, seja lá por que for, não tivesse encontrado de fato seu

lugar. E aí eu acho que nós entramos numa discussão muito forte e muito interessante. Nós

temos muitos anos de políticas afirmativas para índios no sentido da recuperação de seus

territórios, e muito recentemente, a partir da constituição de 1988, é que nós vamos ter essa

preocupação em relação a negros.

E eu me pergunto, e assumo, digamos, a perplexidade que eventualmente me

pareceu presente na fala do Prof. José Carlos, por que é tão complicado pensar em políticas

afirmativas para negros? Por que é tão complicado? Eu acho que essa é uma questão que

nós temos que continuar respondendo aqui, entre nós, porque na verdade, que dizer, em que

pese toda a política de demarcação de território dos indígenas não se viu alteração da sua

NACI/UFRGS.

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qualidade de vida até hoje. Por uma reprodução biológica e social derivada de condições

objetivas de existência, no mínimo razoáveis, quer dizer, a mortalidade no meio indígena é

imensa. A mortalidade no meio negro é maior quando se coteja com a população branca,

essa é a realidade, e essa é uma questão de raça. Não é só uma questão de cultura, é uma

questão de raça no sentido ideológico.

Toda carga que ela possui na sociedade brasileira, tanto José Carlos quanto José

Otávio colocaram-se dentro de uma perspectiva de uma Antropologia engajada, mas me

parece que a Etnologia teve nos seus nascedouro essa especificidade enquanto que os

estudos sobre negros no Brasil, por exemplo, não tiveram. Quer dizer, os estudos sobre

negros no Brasil foram muito mais no sentido de entender por que o negro “não ia para

frente” e porque que o Brasil não ia para a frente. Então, vamos estudar as raças para poder

entender os males do Brasil, que ou era o calor ou era a raça. Eu estou simplificando para

poder, vamos dizer, dar peso emocional à palavra. Porque acho que em síntese, essa

questão é ilustrativa de indagações que são fundamentais ao ponto de, hoje, os estudos

sobre o negro no Brasil, grande parte deles, feitos por intelectuais do meio negro auto-

identificados como negros, ideologicamente identificados como negros, e também por

brancos, divide-se não apenas nessas duas possibilidades do uso da raça. Porque a raça

esteve expurgada dos estudos sociológicos e antropológicos por muito tempo uma vez que

ela não explica a diferença de classes sociais.

Entretanto, a categoria raça na sociedade brasileira tem um lugar fundamental (pelo

modo como ela é definida socialmente). Ela é um dos sinalizadores de fronteiras culturais e

sociais, de diferenças e desigualdades. Nesse sentido, ela não pode ser uma categoria

dispensada para pensar as relações brancos e negros.

E as demandas sociais estão crescendo. Os recursos conceituais tem encontrado

espaço para serem discutidos. Em relação aos conceitos de sociedades tradicionais, e o

modo como José Otávio nos trouxe e que nos fala de representações políticas por parentelas

do grupo Mbyá-guarani. Eu fiquei me perguntando, se os remanescentes de quilombos de

Morro Alto não são Mbyá-guarani? E se essa questão, vamos dizer, desse arranjo por

parentelas hierarquizado, que se tem em Morro Altoe não é uma questão que esteja falando

mais de sociedades tradicionais do que especificamente de um grupo como o Mbyá-

guarani? Não seria um modo de organização típico, até em função dessa origem comum

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que essas comunidades possuem, essas comunidades caboclas, cafuzas, negras, bugras.

Enfim, que essa “gente da terra” e que nós poderíamos ter chamado de “os brasileiros

típicos”, digamos, a partir do mito da fábula das três raças. Aquela mistura, negro, índio e

branco, que funda o caboclo, que se organiza dentro de um sistema em que é possível a

antropofagia das populações originárias da América do Sul, e que nós temos projetado na

África a sua origem.

Enfim, vamos reler o Darcy Ribeiro e repensar o caso. Não tenho resposta para isso,

mas eu acho que o que nós temos na sociedade brasileira é muito mais um mito das três

raças. Como uma “fábula” que o Da Matta nos coloca,. E temos um mito da “democracia”

racial. Mas eu acho que o que nos funda é o mito, é a fábula das três raças, essa fusão racial

biológica, e que se traduz num gradiente cromático. Culturalmente nos vemos assim, assim

nos representamos. Eu, nesse ponto, tendo mais aderir a perspectiva do Da Matta no sentido

de explicar pela ênfase na mistura a possibilidade do mito da democracia racial. Agora, ele

pode ser uma utopia, mas eu não acho que ele seja fundante do que é a sociedade brasileira.

Eu acho que essa idéia da mistura sim, mas não da democracia, a democracia é outra coisa.

Em alguns momentos, o José Otávio e eu acho que o José Carlos não falou isso,

discorreu sobre o conceito de minoria e de que maneira as políticas públicas são pensadas a

partir de uma idéia de minorias étnicas. Junta tudo no mesmo barco, minorias sexuais,

então junta gays e mulheres tudo no mesmo barco, gays, travestis, Dragqueens. Porque tem

as suas variantes, não é? Junta tudo no mesmo barco e pensa políticas, e agora nós temos

que pensar em termos de políticas afirmativas, quer dizer, de uma uma demanda dos

movimentos negros em relação a isso. Há dispositivos legais do sistema jurídico brasileiro

de proteção aos descendentes de escravos, aos afro-descendentes, e como equacionar, como

definir quem é negro e quem não é, diz Yvonne Maggie. Me parece que aí nós entramos

num campo de uma ambigüidade extremamente difícil, extremamente complicado e numa

retórica acadêmica que eu questiono por dois fatos.

Num esboço de artigo meu e que eu enviei ao Prof. José Otávio visando dialogar

com ele, eu relato dois casos. O assassinato do índio pataxó, que foi queimado e que o

jovem que perpetrou o crime disse: "- Eu pensei que era um mendigo!". Mas, aí não era um

mendigo. Bom, aí veio a sociedade inteira, em defesa dos pataxós, por aquela agressão que

o índio havia sofrido e esses jovens acabaram indo para cadeia em função da pressão

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política sobre o sistema policial. Aí menciono no artigo um outro fato, que foi o assassinato

de um jovem negro dentro de uma viatura da brigada militar quando de um assalto a um

supermercado. Esse jovem viu aquele assalto, aquele tiroteio, e saiu correndo, fugiu. Nessa

lógica racista, negro fugindo é ladrão. Os policiais o pegaram e o mataram. Agora, em

nenhum momento, alguém colocou em dúvida se ele era ou não negro. Ele estava no jornal

posto como um entre tantos outros. Ele era um negro, um jovem negro foi morto, e não veio

nenhuma ONG tentar fazer um libelo em relação aquele crime. E não havia dúvida

nenhuma, quer dizer, o rapaz foi morto pela polícia. A polícia efetuou lá as punições dos

policiais que fizeram isso. O rapaz morreu entre o local em que ele foi confiscado e a

delegacia. Ele foi assassinado no meio do caminho. Presumiu-se que ele era um ladrão.

Do índio presumiu-se que podia ser um mendigo. Do negro presumiu-se que era um

ladrão. O que marca uma distinção muito grande. Um mendigo é um sujeito desvalido, quer

dizer, é um sujeito que está fora da sociedade. É um sujeito que está à margem. Agora o

negro é um perigo, é um perigo ativo, agressivo, e isso nos aponta de que maneira a raça

está a atribuindo qualidades e está biologizando essas qualidades. Então, eu acho que a

noçao de raça que existe na sociedade brasileira é no sentido biológico, certo? E quando

nós vamos lá, por exemplo, fazer os relatórios técnicos de identificação étnica, vamos

buscar aspectos culturais que definam uma determinada comunidade como um grupo

indígena, ou como um grupo quilombola, por exemplo. Nós já começamos a perceber que

iniciam mecanismos de retaliação sobre esses demandantes, e que, freqüentemente, a raça é

acionada para desqualificar e para colocar em dúvida a justeza do pleito. Por exemplo, se o

cara não é pobre então parece que a coisa piora, mais a coisa parece ainda.

Enfim, acho que é uma questão extremamente importante e acredito que quando se

pensa em políticas públicas, do ponto de vista do atendimento, de desigualdades, da busca

de superação de desigualdades que afetem grupos étnicos, nós não podemos nunca deixar

de levar em conta que esses grupos étnicos são prensados, sentidos, e excluídos enquanto

raça, certo? Quer dizer, antropologicamente nós temos essa tendência a chamar o índio de

etnia, mas, na verdade do cotidiano, ele é excluído enquanto raça e grupo social, classe

social, da mesma forma que os negros.

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