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Revista Novos Temas

Editores Antonio Carlos MazzeoEdmilson Costa Milton Pinheiro

Conselho de RedaçãoAntônio Carlos MazzeoEdmilson CostaEduardo SerraIvana JinkingsMauro IasiMilton PinheiroPaulo Barsotti

Conselho EditorialAldo Agosti (Itália)Aldrin Castelllucci - UnebAndrea Catone – ItáliaAnita Leocádia Prestes - UFRJAntonio Carlos Mazzeo - UnespArmando Boito - UnicampBernadete Wrublevsky - UFSCCorolus Wimmer - VenezuelaDomenico Losurdo (Itália)Edmilson Costa - ICPEdmundo Dias Fenandes - UnicampEduardo Serra - UFRJIgor Grabois - Economista Ivan Pinheiro – Casa da América LatinaIvana Jinkings – BoitempoIvo Tonet - UFALJair Pinheiro - Unesp

Jorge Grespan - USP José Meneleu Neto – UECEJosé Paulo Netto - UFRJLincoln Secco - USPLúcio Flávio de Almeida – PUC-SPMarcos Cassim - USPMarcos Del Roio – UnespMaria Beatriz Abramides – PUC-SP Marly Vianna - UFscar Massimo Modonesi (México)Mauro Iasi - UFRJMilton Pinheiro - UNEBMuniz Ferreira – UFBANelson Souza - UNIFAPNeusa Maria Dal Ri – UnespPaulo Alves de Lima - EconomistaPaulo Barsotti – FGV-SPPaulo Cunha - UnespPaulo Santos Silva – UNEBPavel Blanco Cabrera – MéxicoRaul Mateos Castels - LivreiroRicardo Antunes – UnicampRicardo Gama - FDRRoniwalter Jatobá - EscritorSerge Wolikow (França)Sergio Lessa - UFALSergio Prieb - UFSMSilvia de Bernadinis - ItáliaSofia Manzano - ICPValério Arcary– Cefet - SPVirginia Fontes - UFRJVito Gianotti - JornalistaZuleide Faria de Melo – UFRJ

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Copyright © Instituto Caio Prado Jr.

Editoração eletrônicaVirginia Oliveira

Revisão de textoJosé Carlos Sant’Anna

CapaHelga Vieira Sant’Anna (sobre pintura datada de 1938 em exposição no Palácio Gustava Capanema – Temas: Cenas de Trabalho; Trabalhadores metalúrgicos)

ApoioFundação Dinarco Reis

Novos Temas: Revista de de Estudos Sociais e Ciências Humanas/Instituto Caio Prado Jr. – n. 1, set. 2009 – Salvador: Quarteto; São Paulo: Instituto Caio Prado Jr. 2009

Semestral

ISSN 2175-6279

Vários colaboradores

1. Estudos Sociais. Crítica marxista - Periódicos I. Insituto Caio Prado Jr.

CDD -335.3

Indíces para catálogo sistemático

1. Crítica marxista 335

Todos os direitos desta edição reservados à:Instituto Caio Prado Jr.Rua Silveira Martins, 115, sala 34CEP 01019-000 – Salvador – BahiaTelefone: (71) 3105-1846

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Apresentação

Este volume que estamos trazendo ao leitor inaugura o primeiro número da revista Novos Temas. Obviamente, não há pretensão descabida de se partir do “zero” e, nesse senti-do, Novos Temas irá somar suas contribuições às das outras revistas dedicadas aos problemas estruturais da sociedade, sejam aquelas que deixaram suas marcas positivas na história recente do Brasil, como Civilização Brasileira, de Ênio Silveira e Brasiliense, de Caio Prado Jr., sejam as contemporâneas Margem Esquerda, Crítica Marxista, Novos Rumos e Lutas Sociais, dentre outras.

Por seu vínculo com Instituto Caio Prado Jr., insti-tuição voltada fundamentalmente à análise de questões político-filosóficas, dos problemas centrais do trabalho, dos movimentos sociais, da economia, da política e da história (nucleando prioritariamente o estudo da realidade brasileira), Novos Temas não se propõe às polêmicas estéreis e típicas das abordagens diluidoras e fragmentárias da totalidade social, muito a gosto dos modismos ecléticos e academicistas. Na senda do necessário rigor que a ciência requer, nosso enfoque prioriza a abordagem criadora que releva as contradições pos-tas pela dinâmica societal e pelas articulações dialéticas dos complexos de complexos por ela engendradas, não somente para sua diagnose, mas buscando dar respostas concretas para situções concretas na perspectiva de sua transformação.

O nome da revista, Novos Temas, não foi escolhido ao acaso. Há muito se fazia necessário retomar a contribuição de intelectuais que, no século passado, na década de 1970, recusaram o silêncio, o diletantismo e o voyeurismo intelec-tual, afrontando em pleno anos de chumbo, com as armas da crítica, a ditadura militar-bonapartista. Estes “inconformistas” deram organicidade à batalha das ideias, fundando a revista Temas de Ciências Humanas, tendo por editor Raul Mateos Castels, da saudosa Livraria Editora Ciências Humanas, cujo

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primeiro número veio à luz em abril de 1977, após o rude golpe que a ditadura infringiu ao PCB, com centenas de prisões em todo o país e o assassinato de seus militantes, como Davi Capistrano, José Montenegro de Lima, Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, entre tantos outros. A revista Temas de Ciências Humanas rapidamente diferenciou-se por sua firmeza crítica e rigor científico, tornando-se a referência político-teórica dos que estavam compro-metidos não somente no combate ao militar-bonapartismo, mas com mudanças estruturais na sociedade brasileira, tendo como norte a centralidade do trabalho. A originalidade e qualidade dos textos publicados pela Temas de Ciências Humanas, em particular, a proposta de superar a cristalização de uma visão teórica empedernida e estalinizada deixaram a marca indelével da inovação analítica. A publicação, em seu primeiro número, da Carta Sobre o Stalinismo, de Gyorgy Lukács, escrita no contexto do XX Congresso do PCUS, em 1956, demonstrou a dimensão de seu projeto. A crítica mordaz ao rebaixamento teórico, inclusive dos setores mais empenhados no combate à ditadura, foi a tônica de um projeto que pre-tendeu dimensionar com profundidade o enfoque analítico da socialidade sob a perspectiva materialista dialético-ontológica.

Trinta e dois anos após o aparecimento da revista Temas de Ciências Humanas, a huma-nidade viveu situações de grande dramaticidade como a falência das experiências socializantes do Leste Europeu, a derrota do marxismo dogmático e, posteriormente, do reformismo e do espontaneísmo oportunista que se encastelaram hegemonicamente no movimento dos traba-lhadores, produtos da crise estrutural da sociabilidade capitalista, na qual emergiram também as contradições das economias que se propunham socialistas. Em função da crise, o capitalismo tentou encontrar uma saída na chamada restruturação produtiva e na sua nova forma política, o neoliberalismo. Essa crise hodierna e de grandes proporções que, pela desconstrução do modus vivendi clássico da organização da produção em bases taylor-fordista, gerou também e, como consequência, uma alteração profunda na organização dos trabalhadores, na vida sindical, agravada pela derrocada das experiências de transição socialista, produzindo, assim, uma inevitável crise na subjetividade dos trabalhadores e de suas organizações políticas, em-blematicamente materializadas no desmoronamento político-ideológico e material do PCI, na Europa e no Brasil, com a divisão interna do PCB, findando com a trágica crise moral e política do Partido dos Trabalhadores e sua melancólica cooptação à ordem do capital.

É nesse contexto histórico que a revista Novos Temas se propõe a retomar um caminho inconcluso. O atual momento histórico impõe o renovamento da teoria crítica e o reforça-mento da ótica dialético-ontológica. Os novos desafios colocados pelo capitalismo em crise esrutural do século XXI nos obriga à reflexão e ao debate qualificado.

Com um corpo editorial consultivo amplo, composto por aqueles que, no Brasil e no exterior, estão comprometidos com a superação da forma de sociabilidade hegemônica e intelectualmente orgânicos na luta pela emancipação humana, Novos Temas se coloca como um instrumento para realização dessa incumbência.

ppp

Neste primeiro número, publicamos uma entrevista com o renomado intelectual marxis-ta brasileiro, José Paulo Netto, que alinhava um breve balanço de sua vida e de sua obra.

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Na seção Fundamentos, publicamos texto de Caio Prado Jr., Adendo à Revolução Brasi-leira, publicado na Revista Civilização Brasileira, n° 14, de julho de 1967, em que Prado Jr. debate e aprofunda algumas das teses defendidas no livro A Revolução Brasileira. Na seção Artigos publicamos uma análise da professora Anita Leocádia Prestes sobre a emblemática Declaração de Março de 1958, que irá delinear a linha do PCB até sua histórica divisão de 1992. Nessa seção, temos a contribuição do consagrado historiador italiano Aldo Agosti, num artigo escrito especialmente para Novos Temas: O exame de uma vida: perfil de Eric Ho-bsbawm como historiador, que analisa, como indica o próprio título, a trajetória intelectual de E. Hobsbawm. O texto do historiador Andrea Catone analisa a teoria da violência à luz da visão engelsiana, desenvolvida no célebre livro O AntiDűhring, publicado originalmente no órgão central da Social democracia Alemã Unificada, Vorwäerts, entre 1877 e 1878. O artigo de Paulo Barsotti aborda o enfoque de F. Engels sobre o bonapartismo alemão.

Na seção história imediata, publicamos os trabalhos de Edmilson Costa e de Sofia Man-zano, que fazem um balanço acurado da atual crise do capitalismo. O texto de Mauro Iasi, resultado do Seminário realizado pelo ICP, reflexiona sobre a condição da classe operária no contexto da restruturação produtiva do capital.

Na seção idéias em movimento, Marcos Del Roio resenha o livro de Antonio Carlos Mazzeo, O vôo de Minerva – a construção da política, do igualitarismo e da democracia no Ocidente antigo, e Milton Pinheiro analisa o livro A globalização e o capitalismo contemporâneo, de Edmilson Costa.

Com estes conteúdos, esperamos contribuir com os debates e com as análises que objetivam a construção de um mundo mais justo e solidário.

Os Editores

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Sumário

13 Entrevista – José Paulo Netto: ontologicamente comunista 31 Adendo à A Revolução Brasileira 31

Caio Prado Jr.

57 Sobre os 50 anos da “Declaração de março de 1958” do PCB Anita Leocádia Prestes

73 Movimento operário e teoria da violência – Algumas notas paraum excursus histórico-teórico

Andrea Catone

93 Engels e o Bonapartismo Paulo Barsott

111 O exame de uma vida: perfil de Eric Hobsbawm como historiador Aldo Agosti

133 A crise mundial do capitalismo e as perspectivas dos trabalhadores Edmilson Costa

151 A crise econômica e o capital fictício Sofia Manzano

161 Classes sociais e a reestruturação produtiva do capital Mauro Luis Iasi

177 Resenha – COSTA, Edmilson. A globalização e o capitalismo contemporâneo. São Paulo: Expressão popular, 200? 216 p.

Milton Pinheiro

181 Resenha – MAZZEO, Antonio Carlos. O voo de Minerva: a construção da polí-tica, do igualitarismo e da democracia no Ocidente antigo. São Paulo, Boitempo editorial, Oficina Universitária, 2009, 176 p.

Marcos Del Roio

185 Normas para publicação

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I Entrevista: com José Paulo Neto

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José Paulo Netto: ontologicamente comunista

José Paulo Netto é um nome conhecido e respeitado por sua trajetória pessoal e política, além, como é evidente, por suas idéias e posições expressas em sua significativa obra. É doutor em Serviço Social pela PUC-SP, tem experiência do-cente, além de no Brasil onde sua eloqüência, humor cortante e didática incomparável já é conhecida, trabalhou também em Portugal, país que o recebeu no exílio, na América Central, Argentina e Uruguai. Ensaísta competente, frequentemente nos brinda com textos tanto no Brasil como no exterior.

Divulgador incansável do marxismo entre nós, é respon-sável por traduções de textos de autores clássicos como Marx, Engels, Lenin e Lukács, autor em que se destaca como um de nossos maiores especialistas. De sua vasta obra poderíamos citar seu imprescindível “Capitalismo monopolista e Serviço Social” (São Paulo: Cortez, 2006) “Ditadura e Serviço Social” (São Paulo: Cortez, 2004), assim como trabalhos de fôlego teórico e político como em “Capitalismo e reificação” (São Paulo: Ciências Humanas, 1981) e “Marxismo Impenitente” (São Paulo: Cortez, 2004). Recentemente, em co-autoria com Marcelo Braz, produziu “Economia Política – uma introdução teórica” (Cortez: São Paulo, 2008).

José Paulo nos recebeu em sua casa e, depois de nos ofe-recer um excelente bacalhau, que comemos como comunistas, isto é, cada um de acordo com suas necessidades, concedeu à Novos Temas de Ciências Humanas esta entrevista.

NT – José Paulo, inicialmente gostaria que você nos falasse um pouco de sua vida, dos elementos biográficos que nos ajudam a entender sua trajetória política e acadêmica.

JPN – Não sei se elementos biográficos são importantes, mas, enfim... Nasci em Juiz de Fora em 1947 e a minha socialização elementar se deu nos anos 50. Juiz de Fora era uma cidade

Entrevista concedida à Mauro Luís Iasi, Professor Adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, doutor em Socio-logia pela USP e membro do Comitê Central do PCB.

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operária, industrial – fora o segundo centro industrial de Minas – e eu nasci em um bairro da margem esquerda do Paraibuna, o Vitorino Braga.

Diante da minha casa havia uma tecelagem e, à esquerda, uma torrefação de café; fui, por-tanto, criado em um ambiente operário. Ali dominava o petebismo, não era um ambiente comunista. Meu pai, mineiro de Paiva, era um conservador udenista; minha mãe, também mineira, passou a adolescência no Estado do Rio de Janeiro – ela viveu em Pati do Alfares e, em 1945, participou do movimento da legalização do Partido Comunista Brasileiro. Como você pode imaginar, este foi um casamento divertido.

Eu sou fruto também de um colégio metodista de elite, o Instituto Granbery. Contudo, a presença da classe operária na minha infância e adolescência é fundamental. Cada um tem, na vida, a música da sua infância – a música da minha infância é o tamanco dos trabalha-dores da Malharia Santa Helena e do Café Câmara. Se você me perguntar como eu cheguei ao comunismo, diria que foi por um conjunto de incidentes aleatórios. Mas certamente foi importante o fato de Milton Fernandes, que era o barbeiro de meu pai e que cortou o meu cabelo até a adolescência, dar-me a ler, quando eu tinha doze anos, o Manifesto do Partido Comunista, uma ediçãozinha de capa verde e branca da Editorial Vitória. Eu li aquela coisa e concluí com a rapidez própria do adolescente: aqui está a solução para o mundo!

Sou, assim, a resultante de uma relação conflituosa: trabalhadores fabris e educação num colégio protestante – o Granbery, creio que do mesmo ramo do Benett, aqui no Rio, e do Mackenzie, lá em São Paulo. Mas, felizmente, não tive formação religiosa e, por caminhos meus, tornei-me ateu. Sou tão ateu que, às vezes, vejo-me mesmo como um velho jacobino, ateu militante e praticante.

NT – E como você chegou ao Partido Comunista?

JPN – Cheguei ao Partido (PCB) no dia 6 de janeiro de 1963. Sei a data porque foi o dia do plebiscito que devolveu a Jango prerrogativas presidencialistas. O que me levou formal-mente ao partido, além da influência do Milton barbeiro e da leitura do jornal Novos Rumos, que eu comecei a vender no colégio, foi Roberto Rezende Guedes, o “Roberto Bolinha”, então estudante de Direito: ele formalizou a minha adesão ao PCB, meu único partido, no qual eu estive até 1992, quando se deu a criação do PPS. Eu não fiquei com o PPS, porém igualmente não me vinculei aos companheiros que lutaram pela recuperação da sigla, mas com os quais hoje eu me identifico à medida que são comunistas.

Voltemos um pouco ao que me tornou comunista. Giocondo Dias, que eu gostaria de recor-dar nesta conversa, dizia que há três caminhos para o comunismo: o caminho do coração, o caminho do estômago e o caminho do cérebro. O caminho do coração é o caminho da defesa da justiça social; o caminho do estômago é aquele posto pela fome, e o caminho do cérebro é o aberto pela necessidade da compreensão da sociedade que aí está. Tornei-me comunista pelo caminho do cérebro, não foi pelo caminho do coração nem da fome – salvo uns poucos meses, logo quando tive que sair do Brasil, eu nunca passei fome: sou de uma família da pequena burguesia urbana tradicional que hoje está desaparecendo. Não precisei

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trabalhar para estudar – embora tenha trabalhado, não foi por necessidade. Na minha fa-mília, tive sempre estímulos intelectuais e aí entrou em cena o fascínio intelectual próprio do marxismo. Em algum lugar, Hobsbawm escreveu que você só acabará com o marxismo se você acabar com todos os livros já escritos. Há um apelo do marxismo à inteligência que é uma coisa impressionante! O que a leitura sistemática e permanente dos clássicos do marxismo me permitiu foi iniciar a compreensão não só da dinâmica da história, mas a da minha vida cotidiana, da relação com a minha família, com os meus amigos, com as minhas companheiras e com aqueles que me são próximos. O marxismo, para mim, nunca foi uma teoria descolada da vida – pelo contrário, ele continua a me ensinar a compreender inclusive a minha vida imediata. Creio que foi por aí que me tornei comunista – é isto que sou: sou, para dizer com meu amigo Sérgio Brasil, ontologicamente comunista.

Tudo isso me levou ao PCB, partido criado por Astrogildo Pereira, que teve como grande liderança Luiz Carlos Prestes, que entrou em uma fase, eu diria, terminal nos anos 1980 – e eu tenho responsabilidade nisso, porque fui membro deste partido por quase trinta anos e fiz parte até da sua direção. Hoje, mais do que nunca, estou convencido de que é possível construir uma sociedade igualitária e, porquanto igualitária, que possa garantir as diferenças, porque o contrário da igualdade é a desigualdade e não a diferença – por isso, estou conven-cido que o comunismo é a única alternativa para transformar e redimir a sociedade humana e que só há lugar para mim num Partido Comunista.

Entrei no Partido – no seu movimento juvenil – em 1963, depois veio o golpe e o Partido viu-se amplamente desorganizado. Só foi rearticulado a partir de 1965; participei desta rearticulação na minha cidade e já em 1967 era membro do Comitê Municipal, depois fui tendo outras responsabilidades. Quero dizer algo que, para mim, é da maior importância: hoje, mais de quarenta anos depois, se tivesse que voltar minha vida atrás e pudesse refazê-la, faria tudo substantivamente igual – corrigiria os meus muitos erros pessoais, mas meu lugar seria na luta contra a ditadura, no PCB, e hoje apoiando o PCB, que aí está, tendo à frente companheiros como o Ivan Pinheiro, o Antônio Carlos Mazzeo, você e tantos outros, a maioria dos quais nem conheço, mas que prosseguem uma luta que começou lá em 1922 e da qual somos todos os legatários.

NT – Falemos um pouco de sua carreira acadêmica? Como você chegou aos estudos de Letras e do Serviço Social?

JPN – Isto é engraçadíssimo! Fiz dois cursos: Serviço Social e Letras. Bem, na minha cidade, você pode achar engraçado, mas o curso mais avançado era o curso de Serviço Social. Era um curso onde se lia Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Nelson Werneck Sodré... Interessei-me pelo Direito, mas fiz Serviço Social e depois o essencial do curso de Letras, que não concluí. Mas quando cheguei à universidade, já tinha a minha cabeça feita pelo PCB; de fato, minha formação, eu a devo ao PCB e aos camaradas que me abriram tantos caminhos, como – dentre muitos ao longo do tempo – Antônio Roberto Bertelli e Carlos Nelson Coutinho. Com efeito, eu me formei no PCB.

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Dessa formação resultou que me iniciei como crítico literário e acabei me deslocando para o terreno do Serviço Social. Acredito que os assistentes sociais são uma categoria muito res-ponsável, muito séria, mas, na verdade, como dizem dois queridos amigos – o Carlos Nelson e o Evaldo Vieira –, eu não passo de um assistente social honorário.

Comecei a lecionar na Faculdade de Serviço Social de Juiz de Fora em 1972. Desde então, participando da formação teórica e das polêmicas do Serviço Social, suponho ter dado uma contribuição modesta, mas creio que significativa, para as novas gerações de assistentes sociais, intervindo também no debate sócio-político mais amplo, mas sem ilusões.

A academia para mim foi sempre uma estação. O que eu quero dizer com isso? Ao contrário de muitos companheiros, que imaginam a academia como um espaço de debate livre e de pesquisa autônoma, eu a avalio como um lugar de reprodução ideológica a serviço da bur-guesia e do capital – evidentemente, há nela disputa hegemônica e luta ideológica, mas tudo isso com enormes limites. Nós temos que estar nela para forçar a polêmica sobre questões substantivas, para evidenciar contradições, para dialogar e aprender com os que pensam diferentemente de nós, para fomentar a pesquisa sobre o que é socialmente relevante, para levar ao limite suas eventuais dimensões sociocêntricas, para estimular a dúvida sem a qual o conhecimento é impensável – mas tudo isso sem ilusões. Eu estou na academia, não sou da academia.

Aprendi uma lição com o Octávio Ianni (meu orientador de doutorado e figura pela qual tenho a maior admiração), quando me trouxe de volta à academia nos anos 1980. Ele me dizia o seguinte: a universidade pública – e é importante que se frise: a pública – é um lugar para fazer e não fazer. Se você quiser ter uma intervenção ativa, produtiva, a universidade pública oferece espaço para isso quando se está no marco de um ordenamento político formal-democrático, como é o caso do Brasil atual. Mas ela também é o lugar para você exercer um parasitismo doutoral, não fazendo coisa alguma e aparentando fazer muita coisa. Aprendi esta lição, entre tantas, com o Ianni e voltei para a academia na segunda metade dos anos 1980. Mas não podemos esquecer que o nosso lugar essencial é onde está a luta do povo, a luta dos trabalhadores, expressando mais diretamente a luta de classes, que, como dizia o velho Keynes, não é uma luta qualquer: é uma guerra de classes.

NT – E por falar em luta de classes, você viveu o exílio. O que você pode nos contar do exílio. Como te marcou, que experiências você trouxe?

JPN – O exílio, de certa forma e paradoxalmente, foi um presente que a ditadura me deu (aliás, por uma série de razões de princípio, jamais reivindiquei qualquer tipo de anistia). Saí do Brasil em condições difíceis, o Partido estava caindo em Minas, com os camaradas presos submetidos a torturas brutais – e muitos revelando um comportamento heróico, como foi o caso de um camarada que está hoje no PPS e por quem eu tenho a maior admiração e respeito, o Paulo Eliziário Nunes – ele foi tão torturado que teve o externo afundado. O Partido cai entre 1975 e 1976, quando saio do país. Eu não estava preparado para o exílio nem para fugas espetaculares, até porque não atuava na clandestinidade, era um militante

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que operava na legalidade, ainda que exercendo também tarefas clandestinas. Saí do Brasil em condições muito difíceis: não saí por esquemas do Partido, saí por esquemas pessoais, fui para o Peru via Bolívia, aonde cheguei com a ajuda de alguns políticos burgueses. Como todo comunista na época, atuava junto do antigo MDB e tive ajuda de três falecidos dirigentes do MDB mineiro que sabiam que eu era comunista; eles não tinham nada que ver com os comunistas, mas eram patriotas e democratas. Marcílio Botti, um advogado liberal que me protegia, viabilizou esta ajuda.

Saindo, fiquei algum tempo na Bolívia, depois no Peru (onde contei com a solidariedade de companheiros do Centro Latino-Americano de Trabalho Social e de um brasileiro então lá exilado, Walter Tesch) e, graças às providências do Carlos Nelson, que já estava em Bolonha, fui para a Itália. Tinha que decidir onde me fixar, e a decisão deveria ser rápida, uma vez que deixei aqui minha companheira e dois filhos (a minha filha nasceu no período das quedas do Partido). Com a Revolução dos Cravos, estava posta a possibilidade de ir para Portugal e não vacilei: estabeleci-me em Lisboa. Este período, entre a saída do Brasil e os primeiros meses em Portugal, excetuando-se o tempo que passei na Itália, foi muito difícil.

Em Portugal, refiz minha vida intelectual, inclusive a acadêmica, com a enorme solidarie-dade de muitos portugueses e dos poucos brasileiros que lá estavam (dentre os quais tenho que destacar o camarada Juca, o conhecido “Juca do Brasuca”, a quem me ligam fortes laços que datam daquele tempo). Lecionei no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa e no Instituto Superior de Economia da Universidade Técnica de Lisboa. Fiquei em Lisboa por mais de três anos e não senti o exílio como martírio. Claro que não é uma situação que se escolhe – é mesmo um “acidente de trabalho”, mas me integrei nas lutas dos portugueses, juntamente com minha companheira de então, e posso dizer que, para mim, Portugal não foi um país de exílio: foi uma segunda e amorável pátria. Ali meus filhos tiveram a sua primeira socialização, que os marcou positivamente; ali criei duradouros vínculos de amizade; ali tive ótimas oportunidades de estudo.

Entendo que exílio é sinal de derrota, nunca de vitória. Não penso que exílio é honraria ou item de currículo. Na história da resistência à ditadura, importante é quem ficou aqui, lutou aqui e construiu a possibilidade de nós voltarmos – estes foram os importantes. Eu fui para o exílio como um derrotado e voltei tentando pegar o trem da história.

Tratei de tirar algumas lições do meu exílio. No exílio, pude estudar muito e com relativa tranqüilidade. O exílio me abriu a cabeça, me tornou mais maduro, me ensinou a compreen-der as diferenças, a entender que a luta pelo socialismo é uma luta demorada e que implicará muitas alianças, muitas divergências e convergências – e mais: também numa sociedade como a brasileira, é uma luta de largo curso.

Quando eu regressei, era mais comunista do que quando parti. Isto foi algo no que a ditadura nos ajudou muito, não é? A ditadura queria nos tornar covardes, ou renunciantes, ou mortos, mas não nos fez nem covardes, nem renunciantes. E isto não vale só para os comunistas: creio, vale para todos aqueles patriotas, cristãos e socialistas, que não eram marxistas e nem eram do PCB, eram de outras organizações com as quais nós tínhamos divergências, cujas políticas até hoje avaliamos como equivocadas, mas que deram a sua vida generosamente e

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que, como os comunistas, não lutavam para fazer os ricos mais ricos – lutavam, cada qual a seu modo, por um Brasil livre e melhor.

O exílio me abriu a cabeça, voltei outro homem, menos dogmático – acho que nunca fui dogmático, mas já fui muito doutrinário –, então, voltei menos doutrinário, menos ignorante e, sobretudo, mais comunista. Voltei convicto de que não há futuro para a humanidade fora do comunismo. Fora do comunismo só há a barbárie, a catástrofe.

NT – De volta do exílio, você, pelos conselhos do Ianni, volta também à universidade e foi parar na UFRJ. Como foi que isso aconteceu?

JPN – Bem, este foi um caminho complicadíssimo. Eu regressei disposto a não voltar para a universidade da qual eu já fazia parte lá em Juiz de Fora antes de ir para o exílio – quando eu era chamado “um de moço de futuro”. À época era apenas um oposicionista de vida legal, embora todo mundo soubesse de minha filiação, porque eu sempre tive muito orgulho de trazer a foice e o martelo estampados na testa.

Quando voltei, o Partido estava em uma crise enorme. Eu, filho da margem esquerda do Paraibuna, um simples escriba interiorano, de província, tinha entre meus amigos e relações pessoais intelectuais de enorme respeito no Partido, tais como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. No regresso de todos nós, o PCB estava em uma crise que ainda não era evidente, mas que já o corroía. Muito grosseiramente, no regresso, em 1979, havia três peda-ços no PCB: o pedaço dos intelectuais a que eu era diretamente ligado (por isto, mencionei o Leandro e o Carlos Nelson) e que reunia mais gente, que ficou conhecido como “grupo renovador”; havia um segundo eixo em torno de Prestes – e não é preciso lembrar que não estamos falando de um nome qualquer, estamos falando de um homem que, antes de entrar no PCB, já era uma legenda, estamos falando do Cavaleiro da Esperança; e havia, ainda, o segmento majoritário da direção do Partido, de que Prestes divergia.

No exílio, eu não participei nem da vida da cúpula do Partido, nem das suas dissensões. Não era e não fui de organismos dirigentes do Partido no exílio. Em Lisboa, eu estava organizado na base do Partido, que se reunia regularmente, sob a assistência, primeiro, de Nilson Mi-randa e, depois, de Salomão Malina, e cumpria as tarefas que, com outros camaradas, nos eram atribuídas: denúncia da ditadura, atos de solidariedade, divulgação e defesa da linha do Partido, representação do Partido em atos e eventos etc. Politicamente, era tão somente um militante da “base” de Lisboa do PCB e, no que diz respeito à vida portuguesa, seguin-do estritamente a linha política do PCP – prestei minha colaboração à Seara Nova, editora e revista então afetas ao PCP e dirigidas por José Garibaldi, que me possibilitou fecundos contatos com a intelectualidade portuguesa. Durante o exílio, não tive quaisquer responsa-bilidades de direção no PCB.

Na sequência do regresso, a divisão do Partido se evidencia de modo traumático: fratura-se entre um setor dito renovador, Prestes e a maioria da direção. Eu não tive dúvidas e não me arrependo da posição que tomei: então, preferi errar com o Partido (que tendia claramente a aceitar a maioria da direção sem Prestes) a que acertar sozinho. Penso que não me equivoquei.

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Prestes se auto-excluiu do Partido, os chamados renovadores tomaram rumos muito diferentes, poucos deles se conservaram marxistas e comunistas – aliás, o mesmo se pode dizer daqueles que acabaram por constituir o PPS. E o PCB entrou em sua fase terminal. Este é um período da história dos comunistas brasileiros que está a reclamar pesquisas mais cuidadosa – até agora, carecemos de estudos que transcendam as paixões e os oportunismos.

Na luta contra a ditadura, entre as forças e protagonistas que objetivamente se situavam na trincheira democrática, existiam alternativas táticas e estratégicas diferentes. Estou convencido de que, até 1979, a postura do PCB foi a mais correta. A derrota da ditadura, conforme o PCB, não seria resultado da ação heróica e destemida de alguns vanguardistas dando tiros, mas da luta de massas através de uma ampla frente democrática. Penso que esta perspectiva do PCB revelou-se correta, revelou-se historicamente exata. Mas penso que a partir daí (e também tenho responsabilidades neste processo, uma vez que, a partir de 1982, passei a fazer parte da direção central do Partido), o PCB não soube avaliar corretamente a conjun-tura aberta com a clara erosão das bases de sustentação da ditadura; não soube, em especial, ponderar o protagonismo imediato dos novos contingentes proletários, nem a disposição de frações burguesas de, naquele momento, jogar numa disputa por hegemonia. Disto resultou a defesa da mesma frente democrática da conjuntura anterior, sem a incorporação de novos processos que emergiam com a crise da ditadura. Penso que está aí a raiz dos equívocos que cometemos na primeira metade da década de 80.

Ou muito me engano ou o PCB ficou prisioneiro da correção da sua política até 1979 – mas o quadro houvera mudado, e nós não fomos capazes de perceber estas mudanças. Este é o momento em que quase todos meus amigos estão saindo do PCB; ora, eu não entrei no PCB pelos meus amigos, mas pelos tamancos dos trabalhadores da tecelagem aos quais eu fiz referência, pelo meu barbeiro, e peço que você também faça referência ao Luiz Henrique de Oliveira, o “Gato Preto”, que era mecânico do Departamento Autônomo de Bondes lá de Juiz de Fora, o camarada que primeiro me entregou a Voz Operária – meus compromissos eram com eles e os operários da minha cidade... Esta foi a minha decisão: não vou sair do Partido, vou ficar até apagar a luz.

Você pode rir disso. Eu tive uma prisão séria nos anos 1970, em decorrência da qual o Partido não teve nenhuma perda, até porque não fui preso em razão do PCB, mas de um grupo ao qual dei apoio durante os dezoito meses em que, por discordar da posição do Partido em face da “fraternal ajuda” à Tchecoslováquia, em 1968, estive fora da organização. Ficar no Partido até apagar a luz pode ser engraçado, especialmente se as razões não forem de grande magni-tude histórica. Eu não tenho essas grandes razões: fiquei simplesmente por causa das minhas pequenas razões, limitadinhas, as razões da minha terra e dos camaradas que me abriram as portas do comunismo – o barbeiro Milton Fernandes, o “Gato Preto”, e os trabalhadores que teimavam em manter vivo, no final dos anos 60, um Partido perseguido.

Fiquei. Fui eleito para o Comitê Central em 1982 e para a Comissão Executiva. Cumpri, nos limites da minha capacidade, as tarefas que recebi e assim fiz até 1989. Entre 1982 e 1987 fui editorialista da Voz da Unidade e, de fato, editor do semanário durante o período em que Noé Gertel exerceu uma tarefa no exterior.

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Nesse período, minha intervenção acadêmica foi reduzida. Quando o Ianni tem comigo uma conversa decisiva, em finais de 1986, decido voltar de fato à universidade – e, para isto, contei com a ajuda de companheiras da Faculdade de Serviço Social da PUC-SP. A partir de 1989, deixei a condição de profissional na Voz da Unidade e, numa conversa formal com o Malina, então secretário-geral do PCB, concluímos que eu não teria mais, de fato, tarefas dirigentes. No Congresso de 1992, quando se dá a formação do PPS, eu e mais outros companheiros (Raul Mateos Castell, Celso Frederico, Noé Gertel, Antonio Roberto Bertelli e Martin César Feijó) formalizamos uma proposta alternativa, a da criação de um “fórum nacional de comunistas” – para que se tenha uma idéia da “democracia” que reinou naquele congresso, o presidente da mesa, um dirigente sindical bancário, nem se deu ao trabalho de ler a nossa proposta... Ela foi sumariamente arquivada. Nascido o PPS, eu, que sou marxista e comunista, caí fora. Penso que no PPS, onde estão alguns amigos meus, há gente sincera e honesta – mas, de fato, essa agremiação, a meu juízo, nada tem a ver com o histórico do PCB. Desde então, colaboro com grupos de esquerda e movimentos sociais anticapitalistas, mas venho tocando mesmo a minha viola é na universidade. E, como não tenho ilusões quanto às funções desta instituição, você pode imaginar como é árdua a tarefa da sobrevivência nesses tempos difíceis.

NT – Já na UFRJ, você, Carlos Nelson Coutinho, Marilda Iamamoto, Nobuco Kameyama e outros são responsáveis por certa renovação do Serviço Social e, principalmente, por um pólo de resistência do ponto de vista do marxismo. Como foi esta experiência?

JPN – No caso específico do Serviço Social, a resistência à ditadura não passou essencialmente pelo Partido Comunista ou por sua influência: deveu-se – especial, mas não exclusivamen-te – às lutas de companheiros da esquerda católica. Marilda Iamamoto, por exemplo, (e poderia citar muitas companheiras mais), vem da esquerda católica. Eu diria que a presença dos comunistas no Serviço Social foi, até então, uma presença residual. E, nos anos 1980, quando setores da intelectualidade experimentaram uma esquerdização generalizada, o marxismo que absorveram foi, em geral, uma gripe passageira também no Serviço Social – muitos assistentes sociais, “marxistas” nos anos 1980, logo se reciclaram aos novos tempos, transformaram-se em “habermasianos” e alguns continuaram – digamos: “evoluindo” – até chegar às teses pós-modernas...

O Serviço Social, na UFRJ, parece-me um caso singular. Nos anos 1980, cria-se uma con-juntura particular, graças ao protagonismo de um grupo de professores liderados por Maria Helena Rauta Ramos e Maria Inês Sousa Bravo e ao apoio de Horácio Macedo, então Reitor da UFRJ, que torna possível a confluência de docentes muito qualificados, marxistas e não marxistas, no debate do Serviço Social na UFRJ. Essa conjuntura permitiu à Escola de Serviço Social da UFRJ reunir, na pós-graduação, figuras bem diferenciadas: Nobuco (que, antes, militara na esquerda católica e depois no PCdoB), Marilda (oriunda da esquerda católica e, mesmo não vinculada organicamente ao PT, bem próxima a este partido), Carlos Nelson (que saíra do PCB e se aproximava então do PT, do qual se desligaria anos mais tarde para ingressar no P-SOL), Jean-Robert Weisshaupt (um belga inteligentíssimo, que lia Marx com vieses anarcóides), José Maria Gómez (um argentino genuinamente de esquerda e de sólida

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formação intelectual) e eu. Posteriormente, agregaram-se a este núcleo original docentes cuja inserção na esquerda é nítida – como Yves Lesbaupin e Eduardo Mourão Vasconcelos.

Com este grupo à frente, a pós-graduação em Serviço Social da UFRJ se tornou um centro de referência na pesquisa e, também, um pólo de resistência, no interior do qual a incidência marxista era notória – mas, frise-se, jamais tivemos uma pós-graduação “marxista”: sempre entendemos que a universidade não pode ser uma “escola de partido”. É fato que, do final dos anos 1980 ao fim dos anos 1990, aquela incidência peculiarizou a pós-gradução em Serviço Social na UFRJ. Eu diria que, neste período, este programa de pós-graduação cons-tituiu efetivamente, no Serviço Social brasileiro, um elemento de renovação, de polêmica e de resistência. Mas não esqueçamos que, no mesmo período, outros centros de formação pós-graduada prosseguiam nas perspectivas críticas que já avançavam antes das mudanças na UFRJ – recordo as pós-graduações da PUC-SP, onde ainda rebatiam as influências de Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Evaldo Vieira, e onde assistentes sociais (como Maria Carmelita Yazbek) protagonizavam papéis de vanguarda, e da UnB, onde atuavam Vicente Faleiros e Potyara Pereira. Subsequentemente, outros centros se agregaram ao que se pode chamar de “vanguarda do Serviço Social” – neles operando, por exemplo, intelectuais crí-ticos mais jovens, como Ivete Simionato, em Santa Catarina, e Ana Elizabeth Mota, em Pernambuco. Mais recentemente, nos anos 2000, as pós-graduações da UERJ e da UFMA passaram a fazer parte desse circuito de formação avançada. E creio que a pós-graduação da UFRJ contribuiu para a ampliação desse espectro de programas, inclusive formando alguns de seus quadros e rebatendo inclusive no exterior, graças aos convênios internacionais e à presença de estudantes latino-americanos e africanos em nossos cursos.

NT – Os anos 1980 e 1990 foram marcados, no universo acadêmico, pela ofensiva do pensamento pós-moderno, aquilo que Zizeck denomina de “agnósticos da new-age”, com afirmações contundentes contra alguns dos pressupostos do pensamento marxista. Como você avalia a relação do marxismo com a universidade brasileira?

JPN – Parece-me que o pensamento marxista foi sempre residual na universidade brasileira – este não é um fenômeno recente, ainda que, como você bem observa, tenha se acentuado nos últimos anos, refletindo, aliás, uma atmosfera ideológica de enorme abrangência in-ternacional. Eu diria, ademais, que, entre nós, não só o marxismo, mas o próprio espectro ideopolítico da esquerda sempre foi marginal na academia.

O fato de em algumas universidades terem se abrigado, no passado e no presente, alguns pensadores marxistas não deve levar a uma superestimação do papel do marxismo na vida acadêmica. Penso que a residualidade do marxismo na universidade brasileira é um fenô-meno histórico, que precede de muito o próprio golpe de 1964. Veja que não são poucos os que consideram um verdadeiro fato histórico a constituição, na USP – que, sem dúvidas, é uma célebre vitrine da nossa universidade pública –, na passagem dos anos 1950 aos 1960, de um seminário sobre Marx, do qual participaram, entre outras, figuras importantes como Ianni e Gianotti. E isto nos anos 1950/1960... Quando, fora da universidade, Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré já existiam e influíam há muito!

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Julgo que devemos refletir seriamente sobre o que se me afigura um “caso paradigmático” da relação entre a universidade brasileira e o pensamento marxista: a trajetória de nossa maior figura de cientista social, Florestan Fernandes. Não me parece um acaso que o essencial da obra marxista de Florestan tenha sido elaborada após a sua exclusão da chamada “comunidade acadêmica”. A mesma “comunidade acadêmica” que praticamente ignorou as contribuições de Astrogildo Pereira no âmbito da política cultural, de Alberto Passos Guimarães no quadro da questão agrária e das “classes perigosas” ou de Rui Facó no que toca ao cangaço. O exílio desses nomes, e de outros, do horizonte universitário brasileiro também é sintomático.

Decerto que, atualmente, há importantes professores assumidamente marxistas que dispõem de espaços em núcleos de pesquisa, e há mesmo tanto em universidades “centrais” como “periféricas” (e esta qualificação deve vir entre aspas), alguns nichos de pensamento marxista. Mas este marxismo – que alguém poderia, com alguma ironia, qualificar como “marxismo legal” – que, ao que sei, desperta muito interesse entre os estudantes mais inquietos e é bas-tante produtivo, ainda me parece absolutamente marginal se comparado às correntes teóricas conservadoras e neoconservadoras.

NT – A Universidade sempre teve certo traço predominantemente conservador?

JPN – A meu juízo, uma condição para compreender a relação entre a nossa universidade e o pensamento marxista é reconhecer o caráter absolutamente elitista e antipopular da universidade brasileira. Já aludimos, nesta conversa, à natureza desta instituição e não cabe repetir o que já foi dito – basta reiterar que só tivemos uma “reforma” (e, neste caso, as aspas devem ser muitas!) universitária no final dos anos 1960 e operada pela ditadura! Entre nós, o movimento que teve início em Córdoba, em 1918, tardou meio século para chegar aqui – e sabemos de que modo chegou, se é que chegou... Temos uma das mais baixas taxas de escolarização e matrícula no ensino superior de toda a América. E quando consideramos a alocação dos estudantes universitários, é assombrosa a hipertrofia da universidade privada – que (salvo as honrosas exceções de sempre, confirmadoras da regra mais geral) constrói o que chamo de uniesquinas e unishoppings, isto é, universidades de esquina ou de shopping centers, sem outro fim que a reprodução de saberes convenientes ao establishment e sem outros meios que a exploração de professores e estudantes. Por menos alentador que seja o quadro da universidade pública, ele é, em geral, quase paradisíaco se o comparamos com a universidade da chamada iniciativa privada.

NT – Hoje, no início do século XXI, com a grande crise do capital que vivenciamos, o de-bate sobre o marxismo ganha novas colorações, uma vez que alguns pressupostos de Marx parecem confirmados. Como você vê este momento?

JPN – O quadro mundial contemporâneo, inclusive a crise econômica atual, é absolutamente incompreensível sem Marx. Absolutamente incompreensível!

O que aprendemos com Marx? Primeiro: capitalismo é crise. A crise não é um elemento aleatório, episódico, uma enfermidade que de modo arbitrário, casual e inexplicável acome-

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te o capitalismo: Marx demonstrou cabalmente que a crise é um constitutivo da dinâmica capitalista. Quanto a isto, o mundo do século XX e a sua entrada no século XXI ratificam Marx à exaustão.

Segundo: capitalismo é produção exponencial de riqueza social e reprodução simultânea e necessária de pauperismo, não necessariamente pauperismo absoluto, mas sempre pauperismo relativo. Quando se vê o Banco Mundial, esta santa e credível instituição, no fim do século XX e no início do século XXI, proclamando ser necessário combater a pobreza, quando se registram os “Objetivos do milênio” da ONU – eis aí a confirmação da correção da análise de Marx.

Mas não é só: veja a contínua e recente concentração e centralização de capital. Quaisquer que sejam as fontes dos dados que você tome, em especial os dos últimos 25 anos, eles são eloquentes no que toca à concentração e à centralização de capitais em todas as latitudes e longitudes, noutra claríssima comprovação – e este é o terceiro ponto do que Engels chamava de “a prova do pudim” – da análise marxiana sobre a dinâmica capitalista.

Enfim, há, ainda, uma quarta demonstração irrefutável da correção das projeções marxianas: o desenvolvimento desigual e combinado, destacado explicitamente por Trotski, mas que já está posto em Marx. O que se verifica acentuadamente nos últimos trinta anos, para não falar do século XX inteiro? Verifica-se claramente o distanciamento entre países pobres e países ricos, assim como – de forma mais agudizada a partir da recuperação da grande crise econômica de meados dos anos 1970 – uma polarização interna aos países pobres e aos países ricos.

Evidente que, à medida que não consideramos Marx um profeta onisciente ou o fundador de uma nova seita salvadora ou messiânica – e não o consideramos porque não somos nem devemos ser fundamentalistas em nenhum sentido –, mas o tomamos como um teórico social condicionado pelas dimensões históricas, não assumimos a sua obra como uma soma de verdades intocáveis e eternas. Sem Marx, não compreenderemos absolutamente nada do tempo presente; mas isto está longe de significar que apenas com ele, com o que nos legou, poderemos compreender este tempo presente. Apenas para citar um dentre vários exemplos: o Manifesto Comunista contém, a meu juízo, uma concepção que se revelou equivocada – a concepção segundo a qual, na sociedade burguesa, as contradições e os conflitos iriam se simplificar. A história provou que não é assim: pelo contrário, verificamos uma complexi-ficação e uma multiplicação de conflitos. A projeção contida no Manifesto não se realizou; diferentemente, registramos um crescimento cada vez mais diversificado e tenso de conflitos, oposições e demandas corporativas, grupais, categoriais etc., o que põe, mais do que nunca, a exigência de uma instância de universalização, que historicamente se corporificou no partido político. E, apesar de muita gente ilustre ter decretado os funerais dessa instância, ela me parece insubstituível.

Retomo o fio da meada: sem Marx, nada compreenderemos da contemporaneidade. Mas somente com Marx, e apenas com o que a tradição marxista já produziu, não teremos con-dições de compreendê-la radicalmente – para, é óbvio, transformá-la radicalmente. Não é por acaso que o velho Lukács punha como tarefa aos marxistas o que designava como a elaboração de um O capital para o século XX. Esta tarefa ainda está por cumprir-se, agora

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cobrindo as realidades inéditas emergentes nesta entrada do século XXI. E é uma tarefa imensa, que demanda o esforço coletivo de gerações! Ela exigirá o tratamento cuidadoso não só dos novos processos emergentes na dinâmica capitalista, mas, também, um trato igual-mente cuidadoso da produção teórica e cultural não-marxista que se acumulou nos últimos decênios – de forma a extrair dela os elementos válidos. Aqui, o rigor teórico-metodológico será imprescindível (vale dizer: a ortodoxia metodológica, tal como Lukács a determinou em 1923), como imprescindível será a abertura mental para, à base deste rigor, incorporar criticamente as conquistas teóricas operadas noutros quadrantes intelectuais.

NT – O marxismo, segundo você, atravessou a chamada crise de paradigmas?

JPN – Entendo que a esquerda, e não só os marxistas, sofremos derrotas políticas de larga duração histórica no último terço do século XX. Entendo também que debilidades teóricas – e, aqui, no caso da tradição marxista, pesou ponderavelmente a hipoteca do dogmatismo de que a grande responsável foi a autocracia stalinista – contribuíram para tais derrotas. No entanto, ao contrário de boa parte das viúvas da esquerda, carpideiras dos reais e eventuais erros cometidos e que hoje migram alegremente para outros “paradigmas” (e, de novo, peço aspas) teóricos, não creio que as debilidades teóricas respondem inteiramente por aquelas derrotas – o que nelas contou de modo decisivo foi a relação de forças real com a direita e com o conservantismo, enfim, a força material efetiva do capital. Isto não quer dizer que a esquerda e, em especial, os marxistas, acertamos em tudo e que temos resposta para tudo. Estamos longe disso. Temos que pesquisar e investigar a realidade, temos que estudar e te-mos que aprender não só com nossos adversários, mas até com nossos antagonistas. É quase um acacianismo recordar que Marx não leu marxistas, leu pré-marxistas, não-marxistas e antimarxistas. Devemos fazer o mesmo, mas hoje já com o suporte e o benefício da nossa ortodoxia metodológica – de novo, no sentido em que Lukács a formulou: há uma série de idéias, conclusões e concepções particulares de Marx que nós podemos considerar anacrô-nicas; o essencial, porém, é o método por ele elaborado para operar a crítica da ordem social comandada pelo capital.

Posso estar equivocado, mas penso a arquitetura teórica e prática-política de Marx – vale dizer, sua teoria social – como fundada sobre três eixos, estruturalmente articulados. Um, o método dialético materialista, que ele elaborou a partir da sua crítica a Hegel. Outra, a perspectiva da revolução, isto é, a concepção de que é possível transformar substantiva e ra-dicalmente o mundo burguês – e isto mediante uma prática política classista de que o sujeito é o “núcleo duro” do conjunto dos trabalhadores e considerando que tal possibilidade está inscrita no movimento social real. Finalmente, a teoria do valor-trabalho, sem a qual a teoria da mais-valia é insustentável e somente com o recurso à qual é possível esclarecer o caráter explorador da sociedade comandada pelo capital. Estou convencido de que o pensamento de Marx sustenta-se na articulação desses três eixos – e a supressão de um deles compromete vitalmente toda a arquitetura marxiana. Não é por acaso, aliás, que, desde Bernstein, todas as tentativas (chamem-nas revisionistas ou qualquer outra coisa) para tornar Marx palatável à ordem trataram de vulnerabilizar um, dois ou até mesmo todos esses eixos.

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NT – E, num balanço do século XX, como ficam as experiências de transição socialista?

JPN – Comecemos por 1917. Na cabeça de Lenin, chefe de Estado aos 47 anos, e não chefe de um Estado qualquer, mas do Estado Soviético, a Revolução Russa era um momento de ruptura que permitiria conectar a revolução socialista no Ocidente com a revolução democrá-tica, não mais que isso, no Oriente. Ele, Lenin, jogou todas as suas forças nestas duas frentes. É evidente que a Terceira Internacional se cria para estimular a revolução na Alemanha – mas não é por acaso que Lenin apóia Kemal Ataturk, os jovens revolucionários turcos, não é por acaso que ele vê com esperança a luta de Sun Yat Sen na China. O fracasso, o aborto ou, se se preferir, a derrota da revolução alemã e os impasses da revolução democrática no Oriente deixam o último Lenin numa posição de desespero – é só examinar os seus textos derradeiros para constatá-lo. E a alternativa mais imediata que se lhe punha era, pura e simplesmente, a desistência, isto equivalendo – depois da vitória sobre os terroristas brancos e as tropas estrangeiras de intervenção – à entrega do poder à reação. É evidente que um líder do calibre de Lenin jamais capitularia. E, estou convencido, não compartilharia da posição de Trotsky que, naquelas condições, conduziria à aventura.

Na sequência da morte de Lênin, o dilema posto aos seus seguidores, dos meados da década de 1920 ao seu final, era defender o que se tinha conquistado. Penso que, quanto a isto, a solução que Stalin batizou com o equívoco lema do “Socialismo num só país” era a única viável para garantir o Estado Soviético. Sabemos bem que socialismo num só país é ficção, mas, no plano prático-imediato, era a forma de assegurar que os Romanov e sua gente ou Kerensky e os seus não regressariam.

O fato é que a experiência socialista foi insulada, numa sociedade atrasada e sem quaisquer tradições democráticas mínimas – e daí derivou grande parte de seus piores traços, entre os quais o mais evidente foi a fusão do Partido com o Estado e sua mútua identificação. E é claro que isto nada tem a ver com a restituição do efetivo papel do Estado no processo de construção da nova sociedade – parece-me inconteste que, sem um Estado poderoso, não se matrizará nenhuma relação social decisiva e nova.

Não posso, como você compreende, entrar aqui em detalhes. Mas foi nesse quadro extre-mamente desfavorável que se constituiu a URSS. E no balanço global da experiência que ela protagonizou – balanço que, a meu ver, ainda está por fazer-se –, dois elementos me parecem fundamentais. Primeiro: sem a União Soviética, a luta exitosa contra o fascismo (que continuo a considerar o pior inimigo da humanidade) seria impensável. Segundo: as conquistas alcançadas pelos trabalhadores em boa parte do Ocidente (penso, por exemplo, em vários avanços que se deram no marco do que se chamou Estado de Bem-Estar Social) também seriam muito distintas se abstraíssemos do mapa a União Soviética; quanto a isto, creio que as lutas do proletariado ocidental foram amplamente favorecidas pelo pavor que o comunismo (leia-se: da União Soviética) inspirava na burguesia. E ainda há considerar o papel da União Soviética no apoio às lutas de libertação nacional – que desestruturaram o velho sistema colonial – conduzidas em África e Ásia.

No plano interno, qualquer balanço da experiência soviética deve considerar que ela signi-

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ficou um enorme avanço nos direitos sociais. Só pode negar este fato quem não conheceu a realidade soviética, não apenas da Rússia, como da Polônia, da Hungria, da Bulgária, da Romênia etc. Podemos operar aqui com a contraprova: a dissolução da União Soviética e do que foi chamado de “mundo socialista” constituiu uma concreta e efetiva regressão. Os trabalhadores da Europa Central e Oriental perderam direitos, ganhos e conquistas – quem tem dúvidas, que dê uma olhada na Alemanha da senhora Ângela Merkel.

Sem me alongar, eu não hesitaria em fazer a seguinte afirmação: a experiência do chamado socialismo real, socialismo burocrático, socialismo de caserna – dê o nome que você quiser – foi progressista para o conjunto da humanidade. Ela é paradigmática? Não, não é. Nela se confundiu socialização com estatização, nela se gestaram fenômenos e processos com os quais não podemos mais ter nenhum compromisso (asfixia de liberdade civil, aparelhos repressivos, segmentos burocráticos e burocratizantes etc). E, com estes traços, ela não estimulou (e, dadas as suas condicionalidades, não poderia fazê-lo) o que penso ser o elemento central da construção do comunismo: a autogestão. É preciso dizer isso com a máxima clareza, sempre lembrando, todavia, que aquela experiência não se deu na pureza de um laboratório, mas no confronto de classes em escala planetária.

Toda essa rica, complexa e contraditória experiência é hoje um capítulo pretérito da nossa história. O mundo mudou em 1991, quando a bandeira soviética foi arriada e subiu a dos Romanov. Mas o mundo não apenas mudou: o mundo piorou.

NT – Lukács dizia que ser socialista, mas não defender a URSS, é como um pai que diz: gosto de meu filho, desde que ele não tenha orelhas tortas. Concordando com você sobre o papel que teve a URSS no século XX, queria te provocar. Como analisar a transição e seus impasses como um processo de emancipação humana que não se completou?

JPN – Respondo-lhe de forma também provocativa. Ao contrário de muitos companheiros e camaradas, não estou perplexo diante do mundo contemporâneo, não estou perdido e nem à caça de um “novo paradigma”.

Continuo convencido de que o socialismo supõe um grande desenvolvimento das forças produtivas e um proletariado socialmente (o que não quer dizer estatisticamente) ponderá-vel e politicamente organizado. Praticamente nenhum desses elementos estava presente nos processos de transição que presenciamos no século XX. Ora, as condições contemporâneas os põem sobre o tapete, mas com dimensões muito diferenciadas e, por isto, as nossas projeções também requerem um redimensionamento profundo.

Mas este redimensionamento, se não quisermos aceitar o truque fácil contido na retórica de que é preciso “reinventar” o socialismo, deve partir de dois pontos inarredáveis: supressão da propriedade privada dos meios fundamentais de produção e liquidação de qualquer for-ma de exploração do trabalho. Se isto não pôde ser efetivado em 1917, em 1945/1948 ou imediatamente depois, não significa que não deve estar prioritariamente na agenda contem-porânea dos revolucionários. Somente sobre esta base programática será possível reconstruir o movimento socialista revolucionário. Esta reconstrução não está à vista, mas não tenho

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dúvidas de que é factível e não se situa num horizonte utópico – ela arranca do que aí está, arranca do movimento social real. Porém, não se direcionará “naturalmente” – e é aí que entra em jogo a responsabilidade histórica das vanguardas.

NT – José Paulo, gostaria que você nos falasse um pouco sobre as perspectivas da esquerda no Brasil. Nós fechamos um ciclo e estamos abrindo um novo. Durante os anos 1980 e 1990 vivemos a hegemonia do PT e agora, estou convencido, se abre um novo ciclo. Como você vê este cenário? Os projetos hoje colocados estão à altura de nossos desafios?

JPN – Concordo com você que se encerra um ciclo e penso que o primeiro indicador nítido desse encerramento foi a crise terminal do velho PCB, no final dos anos 1980.

Acredito que, entre o ciclo que se fecha e o ciclo que se abre, é fundamental construir uma ponte – a imagem é exatamente esta – que facilite aos homens e às mulheres que não partici-param daquelas lutas, ou que não possuem a sua memória, o enfrentamento de uma conjun-tura que é nova, com novos desafios, novos problemas e novas questões beneficiando-se do que foi fecundo no passado. Numa palavra, julgo fundamental que se criem condições para que as novas gerações sintam-se legatárias do patrimônio de lutas do passado, distinguindo o vivo e o morto nessa tradição. Esta é uma tarefa com a qual todos nós, os mais velhos, devemos estar comprometidos.

Os marxistas têm, porém, responsabilidades redobradas em face dos desafios que estão postos à esquerda brasileira. Em primeiro lugar, a responsabilidade teórica. Também no Brasil, foram os marxistas – nas várias vertentes da tradição marxista – os que se dedicaram aos estudos mais decisivos da realidade brasileira; há que prosseguir, avançar, desenvolver o acervo de que dispomos e que hoje não dá conta da contemporaneidade. Em especial, cumpre analisar concretamente a natureza da economia brasileira, a nossa estrutura de classes, a sua relação com os núcleos de poder econômico e político, a efetividade do Estado brasileiro, o padrão de integração da nossa economia com o sistema imperialista. Por outra parte, cabe avançar rapidamente nas problemáticas da metropolização, da cultura e da ecologia.

Mas as tarefas prático-políticas não são menores. A mais decisiva é a que se refere à organização do povo trabalhador – e, nesta, ressalta a importância do partido político. Sem a constituição de um partido político que, com claro enraizamento classista, universalize as diferenciadas demandas anticapitalistas e dispute abertamente a hegemonia com a burguesia e com os segmentos social-democratas tardios pouco se avançará. A ênfase classista, neste domínio, parece-me essencial: retomar e reconstituir, nas condições contemporâneas, a perspectiva de classe (assim como o “ódio de classe” – atenção: de classe) é condição sine qua non para a construção do partido de que ainda carecemos. É desnecessário observar que esta é uma questão central e mais: que ela só pode ser conduzida com êxito se se considerar que, a priori, não há “escolhidos” – não é a correção teórica que determina o sucesso do empreendimento político, ainda que ela seja indispensável. A construção de uma instância partidária desse gênero não pode operar-se a partir de qualquer exclusivismo, mas, antes, incorporando as múltiplas experiências do movimento social real. Numa palavra: a constituição desse instru-

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mento partidário deve resultar tanto da vontade política, orientada teoricamente, quanto da extração das principais tendências do movimento profundo e real que põe em xeque a ordem burguesa e o comando do capital. Por isso, certamente os seus sujeitos serão múltiplos e sua articulação algo difícil – mas necessário e possível.

Penso que os últimos trinta anos, tanto em escala nacional quanto em escala mundial, registra-ram ganhos expressivos para o pensamento funcional à ordem burguesa, seja ele abertamente apologético, seja – como diria Lukács – indiretamente apologético. Mas não há apologia, direta ou indireta, que possa ocultar e mistificar a realidade para todo o sempre. A crise contemporânea do mundo do capital abre para nós uma oportunidade concreta de, exercitando a crítica radical, fomentar a reconstituição e a renovação de uma cultura política socialista.

NT – Quanto à crise atual, já se argumenta que teria sido resultado da ausência de meca-nismos de regulação; portanto, tudo se resolveria a partir do momento em que o Estado, responsavelmente, combine a virtude do mercado com a responsabilidade da regulação. Tenho a impressão que o debate em 2010 será apresentado aos trabalhadores como se fosse restrito a qual tipo de regulacionismo nós queremos. Como você avalia isso?

JPN – Nos últimos 20 ou 25 anos, o capital, de maneira intencional, consciente, lucidamente – e quando falo agora e aqui em capital, não me remeto a algo impessoal, mas a um processo operado de grupos, instituições, instâncias, ou seja, através de suas organizações sociais e seus agentes –, destruiu todas ou a maioria de suas instâncias regulatórias. Penso que não será fácil recompor a curto prazo sistemas regulatórios do tipo dos que se seguiram a Bretton Woods. Sobretudo, penso que o movimento contemporâneo do capital, que sempre foi avesso a qualquer tipo de regulação, se tornou mais avesso ainda. Não estou afirmando que é impossível reformar o capitalismo contemporâneo, mas julgo que a margem de manobra para reformá-lo, o espaço real de reforma, é muito menor do que aquela existente no imediato segundo pós-guerra. De qualquer forma, não tenho dúvidas de que, a curto prazo, o capital ingressará numa “nova or-dem” – a questão verdadeira está em saber, primeiro, dos seus custos humano-sociais (inclusive os ecológicos) e, segundo, da sua operacionalidade mesmo a curto prazo. Quanto aos seus custos humano-sociais, não tenho qualquer dúvida: a eventual “nova ordem” capitalista será ainda mais danosa à massa dos trabalhadores de todo o mundo. No que toca à sua operacionalidade, a questão me parece em aberto e por uma razão simples: deixado à sua lógica imanente, do capitalismo só resulta mais capitalismo (o que hoje significa barbárie); apenas a intervenção política dos trabalhadores pode conduzir à solução da sua ultrapassagem e superação. E, por agora e a curto prazo, não vislumbro a possibilidade concreta dessa intervenção...

NT – E, então, em relação ao futuro...

JPN – Sou otimista em relação ao futuro – se tomado em termos muito mediatos. O futuro não haverá de ser uma reprodução ampliada do presente – a humanidade pode derrotar a barbárie. Sou tão otimista, meu caro, que estou convencido de que não vou morrer antes de ver o renascimento do movimento socialista revolucionário. Será um movimento bem diferente daquele no qual eu e você fomos educados, há de ser algo novo - e melhor.

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II Fundamentos

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Adendo à A REVOLUÇÃO BRASILEIRA*

Caio Prado Jr.

Foi com alívio e, confesso mesmo, com grande satisfação, que li a crítica feita por Assis Tavares ao meu ensaio A REVOLUÇÃO BRASILEIRA, publicada no n° 11/12 desta Revista. Bem diferente de outras críticas anteriores que tiveram a animá-Ias muito mais um injustificável e descabido espírito de agressão pessoal, e que por isso nada trouxeram de verdadeiramente útil para o esclarecimento de questão da maior importância no momento atual para a nossa vida política, AT procura objetivamente analisar as diferentes teses que abordei naquele livro, apontando-lhes o que, a seu ver, encerram de incompleto e mesmo de errôneo, de falho e alheado da realidade brasileira. E traz com isto uma contribuição positiva que esclarece, para mim inclusive, muitas das diferentes questões compreendidas na complexidade imensa da revolução brasileira que todos nós queremos levar avante. Já o artigo de AT, e tanto mais quanto outros do mesmo estilo apareçam, dão-me a segurança que não foi em vão o esforço que dediquei à elaboração do meu livro. É de um debate neste nível e categoria que surgirá afinal, em termos acertados e fecundos, a teoria de que necessitamos e necessita o Brasil, para que se estimule e se leve a bom fim a marcha dos acontecimentos no sentido revolucionário que almejamos.

Quero, em primeiro lugar, definir o limite das minhas intenções ao escrever A REVO-LUÇÃO BRASILEIRA, porque AT, manifestamente as exagerando, situa aí uma boa parte de sua crítica. Em algumas passagens do seu trabalho, AT parece atribuirme o propósito de “propor todo um programa para a Revolução Brasileira”. Além desta afirmação, AT se queixa em outras, e por isso me critica, de não ter tratado disto ou daquilo... como se realmente tivesse sido minha finalidade propor um tal programa exaustivo da revolução. Pois esteja AT descansado: não pensei nisso ao escrever A REVOLUÇÃO BRASILEIRA, como não penso agora, e esteja certo, não pensarei nunca. Uma teoria revolucionária, que não é um exercício sociológico, e sim objetiva a ação prática. deve, para ter valor, representar um pensamento coletivo, deve ser a resultante do esforço de toda uma corrente de pensamento trabalhando em comunhão e consonância. Nenhum de nós, e nenhum indivíduo, por si apenas, pode ter a pretensão de se colocar fora e acima dos fatos que analisa e interpreta, a fim de lhes traçar normas. Todos participamos de uma tarefa comum. É na ação coletiva que esta tarefa se impõe, e na reflexão estimulada e condicionada por esta mesma ação e pelos contatos e relações que dela derivam, é daí que surgirá e se precisará um pensamento comum capaz de, pela sua justeza e penetração em amplos setores da coletividade de que participamos, constituir uma verdadeira e fecunda teoria revolucionária.

Assim sendo, como penso, o que desejei ao escrever meu ensaio, e o que ainda desejo, é tão somente trazer a minha contribuição de experiência prática, estudo e reflexão propor-cionados pela minha atividade no curso de não poucos anos de luta, para a elaboração em que estamos, ou devemos estar todos empenhados, de uma teoria da revolução brasileira no nível e com os padrões acima referidos. Esta minha contribuição terá acertos (o próprio AT,

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em regra tão severo, reconhece alguns, e talvez, como espero, reconhecerá outros depois desta minha defesa que ora lhe apresento), e grandes desacertos. Mesmo estes últimos, contudo, terão servido para provocar a reflexão e uma análise mais rigorosa das questões debatidas. Contribuirão assim, indiretamente pelo menos, para um ajustamento melhor do assunto, e com isto, para o amadurecimento mais avançado das teses que deverão orientar a marcha da revolução brasileira. E isso já será para mim uma justificativa e consolo do erro involuntário cometido.

Com estas considerações preliminares que servem para situar o nível no qual entendo se deva travar o presente debate, vamos ao “mérito da questão”, como costumam dizer os advogados. E neste terreno, tenho uma primeira e grande crítica a fazer à crítica de AT. É que meu contraditor não procurou em sua contradita ir à essência daquilo que constitui o conteúdo principal de A REVOLUÇÃO BRASILEIRA (do livro, está visto). Em outras palavras, AT aborda topicamente diferentes afirmativas e teses do livro, e certamente algumas das mais importantes. Mas não foi ao conjunto, à idéia geral e fundamental que o anima. Isto se deve possivelmente ao fato de eu me ter mal expressado, não conseguindo assim transmitir aquela idéia e estrutura geral do livro. Mas seja por este ou aquele motivo, o certo é que a crítica de AT se dispersou fragmentariamente em considerações particularistas a respeito deste ou daquele ponto. E talvez estas considerações teriam sido algo diferentes, e mais condescendentes para comigo, tivesse A T concentrado sua atenção na linha fundamental, e vamos dizer assim, “estrutural” do meu trabalho.

Procurarei,pois, tornar-me mais claro, uma vez que me parcce muito importante a co-locação geral que tentei (sem sucesso para AT, e talvez, para muitos outros leitores também) do problema da teoria revolucionária. Constitui este um ponto de partida necessário para quem quer que procure chegar a algum resultado prático. O que me preocupou, sobretudo, e o que objetivei, foi, PRIMEIRO, deslindar os fatores ou forças que no terreno econômico, social e político estão efetivamente na base do dinamismo da história brasileira da atualidade, e que impelem ou são suscetíveis de impelir a marcha dos acontecimentos no sentido da revolução. Em particular daqueles acontecimentos que têm seu teatro no campo, e que são a meu ver, no momento, os principais e fundamentais, embora longe de serem os únicos. O que me preocupou em seguida e em SEGUNDO lugar foi indagar quais os meios e processos adequados para estimular aqueles fatores e forças a fim de alcançar o mais breve possível os objetivos almejados, que são precisamente a mesma revolução.

São estes pontos, a meu ver, e parece evidente, que devem ser conservados permanen-temente à vista quando se pretende analisar a realidade brasileira em função da revolução e das transformações objetivadas de nossa vida econômica, social e política. De nada adianta imaginar e propor objetivos e finalidades fantásticos, por mais atraentes ou acertados que se apresentem em outras sociedades ou épocas que não a nossa, quando eles não se encontram efetivamente contidos na dialética, ou, se preferirem, na dinâmica própria de nossa evolução, quando eles não constituem um desdobramento natural desta evolução. Como também de nada serve invocar fatores ou forças sociais que não se acham de fato presentes na mesma dinâmica histórica brasileira; ou não tendam a se desenvolver no sentido revolucionário.

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Está claro, e repito mais uma vez a restrição, que não pretendi, nem pretendo agora responder cabalmente àquelas indagações, mas tão-somente apresentar algumas perspectivas onde possivelmente se encontrarão as respostas procuradas, ou parte delas. Com este obje-tivo em mente, propus como ponto de partida a tese de que a teoria consagrada na qual se apoiava, e aparentemente ainda se apóia (pelo menos para muitos, inclusive, ao que parece, para AT), a política de esquerda no Brasil, não se aplica aos fatos reais da nossa história, e não passa, na sua maior e principal parte, de um esguema abstrato, copiado de modelos exóticos artificialmente transplantados para a nossa realidade. E assim sendo, aquela teoria, longe de abrir perspectivas para a luta revolucionária e uma ação fecunda, frequentemente embaraçou e desorientou esta ação e luta, uma vez que propõe objetivos imaginários e irreais nas condições brasileiras (como seja a superação do “feudalismo”, que seria o nosso regime social presente), e adota como ponto de apoio forças igualmente fantásticas.

Em primeiro e principal lugar, “um campesinado oprimido e explorado por latifundiários na base de relações feudais ou semifeudais de produção e trabalho”. A teoria revolucionária, consagrada e decalcada em modelos onde o capitalismo, como forma de organização econô-mica e social, emergira do feudalismo que o precedera, tinha, por isso mesmo, que postular aquele campesinado também no Brasil. Se este postulado se verificava ou não nos fatos reais de nosso país, disto não se preocuparam os teóricos ortodoxos da nossa revolução. Interpretando o marxismo como uma coleção de fórmulas e normas dogmáticas universalmente aplicáveis, entenderam que, se na obra dos clássicos do marxismo o capitalismo, aparece como seqüên-cia do feudalismo, isto também deveria ocorrer no Brasil. E como o nosso capitalismo lhes parecia incipiente, e de fato assim o era, deveria por força conservar traços e remanescentes de um feudalismo que necessariamente o precedera. Entre eles, um campesinado feudal ou semifeudal. Outra coisa não significa, nem pode significar, o velho refrão da nossa literatura marxista ortodoxa, ou antes, pseudomarxista, relativo aos “restos feudais ou semifeudais” presentes nas relações de produção do campo brasileiro.

É certo que convencidos, ou antes semiconvencidos apenas do ridículo desta formu-lação, alguns daqueles teóricos mais alertados passaram a evitar a expressão “feudalismo”, e a substituíram por “précapitalismo”. Mas o gato se percebe pela cauda. A simples expressão “précapitalismo” não tem, em si, nenhum sentido, a não ser o lógico ou semântico, porque tudo sempre tem um antecedente que se exprime linguisticamente pela partícula “pré”: pré-histórico, pré-humano, pré-racionalismo, etc. O nosso capitalismo também tem um “pré”: evidentemente o “précapitalismo”. Mas o significativo não é evidentemente falar em “précapitalismo”, mas definir em que consiste este précapitalismo. Isto os nossos teóricos ortodoxos do marxismo que abandonaram o emprego da expressão “feudalismo” pela mais eufônica de “précapitalismo”, isto eles não fizeram, nem tentaram fazer, naturalmente por-que precisavam abandonar os textos clássicos do marxismo, que nunca se ocuparam com o Brasil, e ir diretamente a este Brasil e suas coisas onde não encontrariam o feudalismo, e sim, como relações de produção, a escravidão que ao evoluir e se transformar vai dar em situação bem diferente daquela que a teoria ortodoxa pretende encontrar entre nós, e que somente se verificaria se precedida pelo feudalismo e suas características relações de produção.

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Em suma, a substituição da expressão “feudalismo” por esta outra, “précapitalismo”, não passa, na teoria ortodoxa da revolução brasileira, de um expediente eufêmico. Na reali-dade, diz a mesma coisa com outras palavras menos chocantes e repugnantes ao bom senso e ao mais elementar conhecimento da história econômica e social brasileira. Esta manobra semântica não é naturalmente realizada de maneira perfeitamente consciente e proposita-da, mas resulta da própria confusão e imprecisão de uma teoria que se quer aplicar a uma realidade a que não se ajusta. O próprio AT é vítima flagrante dessa impensada confusão. É assim que embora pertencente àqueles que estão visivelmente procurando descarregar-se do incômodo lastro da interpretação “feudalista” do Brasil – vejam-se seus comentários no item “Feudalismo no Brasil?” –, repete um conceito que precisamente só tem sentido dentro da mesma concepção “feudalista”: monopólio précapitalista da terra, que constituiria, segundo o mesmo AT, “o cerne do que seria arcaico na estrutura agrária [brasileira]”.

O que significa este “monopólio précapitalista da terra”, no contexto de AT, e excluídas suas implicações “feudalistas”? Nada. Haverá no Brasil “monopólio” da terra no sentido de concentração da propriedade fundiária. Mas este monopólio ou concentração é, na atualidade e cada vez mais sensivelmente, de natureza essencialmente capitalista. Um fato apenas bastará aqui para comprová-Io. A principal instância do processo de concentração fundiária verificada no Brasil em época recente é aquela que deu nos latifúndios da agro-indústria do açúcar, tanto no Nordeste como em São Paulo, latifúndios estes que constituem hoje os maiores de toda a agricultura brasileira. Ora esta concentração, por todos os seus característicos, sejam os fatores que a determinaram, sejam as relações de produção e trabalho em que se organi-zam, é tipicamente capitalista. Ocupei-me expressamente do assunto em A REVOLUÇÃO BRASILEIRA. E é pena que AT não tivesse atendido para esta passagem do livro que, pela evidência dos fatos nela considerados, teria por certo contribuído para retificar muitos de seus conceitos a respeito da revolução agrária.

AT daria também seguramente, se não desprezasse esta matéria, com um dos pontos essenciais da tese central que procurei desenvolver em A REVOLUÇÃO BRASILEIRA, e que ele infelizmente desconsiderou – como notei de início –, prejudicando assim a com-preensão do assunto e a devida colocação das questões fundamentais da revolução brasileira na atualidade. Refere-se aquele ponto ao grave dano que resultou para a política e ação re-volucionárias no Brasil de uma falseada teoria como esta da revolução agrária antifeudal ou antiprecapitalismo (expressões estas, segundo vimos, que no fundo se equivalem), ou mesmo antimonopólio précapitalista da terra (como AT parece preferir, e que também vem a dar no mesmo). É que, posta a teoria nesses termos, ela conduz imediata e necessariamente, como de fato conduziu, à conclusão política e prática de que o ponto principal de apoio na luta revolucionária no campo se localiza na questão da terra reivindicada por um campesinado revolucionário. Aliás, na formação de AT acima referida, encontra-se claramente contida esta posição política.

O assunto encontra-se largamente desenvolvido em A REVOLUÇÃO BRASILEIRA. Trata-se em suma do seguinte. Acentuando-se a luta agrária na questão da terra, a política re-volucionária inspirada coerentemente na tese ortodoxa que consideramos, apela para um fator e força social de papel efetivamente insignificante, em prejuízo de outras formas realmente

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Novos Temas Revista do Instituto Caio Prado Jr. 35 * Este texto foi originalmente publicado na Revista Civilização Brasileira, n° 14, em julho de 1967

eficazes de luta. Interpretando erradamente as relações de produção e trabalho predominantes na agropecuária brasileira, e configurando nela, por força da mesma teoria, uma classe social de fato inexistente, ou de expressão relativamente pequena, e de forma alguma revolucionária, que vinha a ser um campesinado cerceado e contido como força produtiva pela propriedade feudal da terra (aquilo que AT eufemicamente denomina “monopólio précapitalista da ter-ra”), isto é, uma situação em que a terra se acha em parte considerável e dominantemente apropriada por uma classe particular de proprietários distintos dos proprietários capitalistas que são também empresários da produção (como se dava por exemplo na Rússia tzarista com a nobreza tradicional), a política revolucionária, assim desorientada pela teoria, concentrou todo ou quase todo seu esforço e atividade no sentido de finalidades sem correspondência na situação presente nos principais e decisivos setores do campo brasileiro, tanto no que se refere a condições objetivas – os fatos empíricos –, como a condições subjetivas, a consciência dos trabalhadores rurais. Em primeiro e principal lugar, a reivindicação da terra. Ficaram assim à margem e subestimadas aquelas reivindicações mais compreendidas e sentidas, bem como efetivamente incluídas no processo revolucionário imanente nos fatos. A saber, aquelas que resultam das contradições que se propõem nas relações de produção e trabalho predominantes no campo brasileiro, e que são as de emprego.

Tudo isso se acha desenvolvido na análise contida em A REVOLUÇÃO BRASILEI-RA, e acredito que as conclusões a que cheguei estão aí fundamentadas com um máximo de segurança. Não constituem improvisação, nem dedução a priori de esquemas ou opiniões preconcebidos, mas resultam de cuidadosa e rigorosa pesquisa e elaboração teórica. E são confirmadas (como ainda agora tenho tido ocasião de verificar) pela generalidade daqueles que, seja como pesquisadores teóricos, seja como militantes políticos, se ocuparam efetiva e diretamente com o assunto.

Há assim nas conclusões a que cheguei uma grande probabilidade de acerto. Mas se estou errado, cabia a AT retificar-me com argumentos teóricos e práticos de igual nível, o que certamente constituiria contribuição de grande importância para a definitiva elucidação do assunto. Assim, contudo, não procedeu, limitando-se em sua contestação a uns poucos e imprecisos comentários relativos à matéria, salpicados de algumas afirmações dogmáticas e coroados com o argumento decisivo que insinua sobre a “realidade concreta” que há de estar necessariamente atrás de uma teoria importada há meio século atrás da Internacional Comunista, e que ainda está “viva” nas convicções de tantos. O que me lembra argumento semelhante que a instrução religiosa da Igreja Católica apresenta, ou apresentava em favor desta última e que vem a ser os muitos séculos de existência com que ela conta...

Por que este procedimento de AT, deixando escapar uma ocasião magnífica para fun-damentar a teoria ortodoxa com algo mais que a tradição e afirmações dogmáticas? Deixo a resposta ao leitor.

Em outro ponto, na questão do imperialismo e da luta pela libertação nacional, AT igualmente aprofunda muito pouco o assunto, fugindo a uma análise geral e ficando na superfície dos fatos e acontecimentos que considera. Em vez de defender no seu conjunto a teoria clássica da revolução e sua concepção a respeito da problemática política que dela

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deriva, limita-se a uma tentativa de refutação de uma ou outra conclusão a que cheguei em A REVOLUÇÃO BRASILEIRA. Mas o sentido principal dessas conclusões é o conjunto em que elas se integram, a saber, maneira falseada com que a teoria clássica e ortodoxa (que AT aceita) situa a questão do imperialismo e dos fatores econômicos, sociais e políticos que se acham na base da penetração e da dominação imperialistas em nosso país, bem como da resistência que encontram ou podem encontrar nele. Disso AT não se ocupa senão muito superficial e sumariamente. Todo o problema, para ele, se reduz ou parece reduzir-se ao de-bate sobre a existência ou não de uma “burguesia nacional”. Debate aliás que na sua opinião é antes puramente acadêmico, uma vez que, segundo ele, não tem solução, e somente será “superado” quando ingressarmos no socialismo, isto é, quando terá perdido todo e qualquer interesse. É o que AT afirma textualmente na pág. 61.

Acadêmico embora, A T dedica à questão da burguesia nacional a maior parte de seu arrazoado. Mas dentro do estreito critério que é o seu, isto é, de não considerar o conjunto da matéria e o sistema de nossa economia e estrutura econômica e política em que o impe-rialismo se articula, AT não consegue nem ao menos caracterizar a sua “burguesia nacional”. Não se trata no caso, está visto (embora AT não se aperceba disto) de, simplesmente, e mesmo simplisticamente, determinar se há ou não burgueses contrários aos interesses e atividades imperialistas. O que realmente importa no caso é apurar, se de fato existe no Brasil uma categoria burguesa (vejam bem, não simples indivíduos, mas uma formação socioeconômica) que, pela natureza própria e específica de seus negócios, atividades, aspirações e ambições, esbarra pela frente com interesses e atividades contrários que seriam do imperialismo e que lhe embaraçariam o exercício normal daqueles seus negócios ou a realização de suas aspira-ções. Em suma, a caracterização revolucionária de uma categoria nacional burguesa (e é disto que precisaria a teoria para ter valor e significar alguma coisa na luta revolucionária) exigiria a definição de contradições específicas e significativas entre um setor burguês brasileiro e o imperialismo, contradições estas enraizadas nos fatos econômicos e sociais, e superável unicamente por reformas e uma reordenação das instituições vigentes que impulsionassem efetivamente o processo revolucionário. É somente assim que se poderia contar com uma força capaz de realmente impelir a luta antiimperialista e a revolução brasileira.

Nada disso, contudo, preocupa AT. Para ele, uma burguesia nacional revolucionária se carateriza simplesmente pelo fato da eventual concorrência que empreendimentos estrangeiros possam fazer a homens brasileiros de negócio. AT parece não enxergar que, mesmo no caso de existir tal concorrência em proporções apreciáveis (coisa que ele aceita sem maior indagação, omissão já em si injustificável, pois revelaria o verdadeiro “peso” relativo de sua burguesia nacional como fator político, avaliação esta evidentemente indispensável no caso), mesmo assim, qualquer ação política fundada simplesmente numa concorrência poderia significar, como de fato tem frequentemente significado, nada mais que um envolvimento em questões de natureza puramente burguesa e que nada têm a ver com a revolução. Importaria apenas numa tomada de posição em favor de certos interesses privados contra outros, sem contribuir com isso em nada para a marcha do processo revolucionário. Tivemos em São Paulo um caso bem flagrante disto, por ocasião de ruidosa campanha contra a American Can, empresa norte-americana que pretendia estabelecer-se no país. Campanha esta apoiada por forças

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de esquerda, mas promovida por interesses também intimamente ligados ao imperialismo. Assistiu-se, então, ao triste espetáculo da mobilização e da arregimentação da opinião pública em defesa dos mais espúrios interesses do ponto de vista da esquerda.

É este um dos pontos mais delicados da política revolucionária em que bem se revelam grandes perigos e graves erros que uma política mal orientada pode encerrar. Encontra-se no Brasil um sentimento nacional bem acentuado, em diferentes setores da opinião pública, e que nada tem de necessariamente burguês, muito pelo contrário, de que sofremos, como nação e como povo, as contingências ditadas por interesses estranhos que têm seu centro diretor nas esferas de negócios das grandes potências imperialistas e, em particular, no pre-sente momento, nos Estados Unidos. Este sentimento e compreensão não são específicos, longe disto, de nenhum setor burguês como tal; nem se alimenta, fundamentalmente, de interesses contrariados de natureza essencialmente burguesa. Trata-se de um sentimento na-cionalista, misto de patriotismo e de vaga intuição dos inconvenientes e perigos (e também das humilhações) a que nos expomos, e expomos também a nossa dignidade, no curso das relações e dos contatos que mantemos com os círculos imperialistas.

Ora, este sentimento, precisamente porque não tem ainda um lastro de consciência precisa e de pensamento claramente formulado, tanto pode servir para campanhas como a do petróleo (onde, diga-se de passagem, a burguesia como tal, ou qualquer de seus setores tomado como categoria social representativa de interesses nacionais definidos, brilhou pela ausência), como pode servir de instrumento de interesses bem distintos daqueles que se pretende de-fender e com os quais se pensa impulsionar a marcha da revolução. Inclusive até interesses imperialistas, como foi o caso, na década dos 50, do imperialismo alemão ressuscitado das cinzas da guerra, e que, no esforço para reconquistar um lugar ao sol, procurava insinuar-se na simpatia dos brasileiros, contrastando sua atitude “generosa” e de largos horizontes, fruto de quem igualmente se encontrava por baixo, com a estreiteza de vistas, o egoísmo e avidez sem limites dos poderosos e sobranceiros empreendimentos norte-americanos...

Daí a delicadeza da situação. E é muito oportuno lembrá-lo agora, quando atrás do “slogan” que se vem difundindo, da “desnacionalização das empresas brasileiras”, se está muitas vezes promovendo interesses nitidamente antirevolucionários. O fato da desnacionalização é incontestável, e contra ela há que lutar decididamente. Mas, sem perder de vista, e pelo contrário, cuidar atentamente para que, nesta campanha legitimamente antiimperialista, não venham as forças progressistas a se confundirem (como já se percebe muito bem o perigo) com interesses muito. pouco “nacionais”, e muito menos revolucionários. Sob a capa de opo-sição à desnacionalização, está se insinuando, cada vez mais insistentemente, a necessidade de reabrir as cornucópias oficiais em benefício de empresas que incapazes de participarem do jogo normal do capitalismo com seus altos e baixos característicos e inevitáveis, procuram, depois do largo e aventureiro desfrute dos bons momentos proporcionados pela inflação, descarregar agora os maus efeitos dela, que começam a sentir, nos ombros da nação e nos bolsos dos contribuintes do fisco. O que nos alerta contra nova forma de explorar o sentimento nacionalista, são, entre outros, palavras recentes do Governador de São Paulo, cujas ligações, tendências e indisfarçável posição política são bem conhecidas, e que subitamente tomado de pruridos antiimperialistas, se mostra preocupado, segundo os jornais paulistanos de 4

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de abril (1967), “com o processo de desnacionalização das empresas brasileiras”, explicando que “as nossas empresas não têm capital de giro e são obrigadas a recorrer ao capital externo” “[...] Com isso”, conclui o Governador, “precipitam-se em crise financeira ou se entregam ao capital estrangeiro”. Pois então que venha o auxílio oficial nesta nova campanha antiimperia-lista promovida pelo Governador de São Paulo, suprindo-se com recursos da nação, o capital de giro de empresas que não souberam ou não quiseram constituí-Io nos bons momentos da euforia inflacionista, preferindo jogar seus grandes lucros, então auferidos, ou em gastos conspícuos, ou na voragem da especulação sem freios que lhes enchia cada vez mais, embora ilusoriamente muitas vezes, os bolsos. Inclusive, notem bem, os das empresas imperialistas que agora fazem coro nesta campanha antiimperialista.

São desta ordem os perigos que oferece uma ação política mal orientada por teorias superficiais e apressadas, e que falseiam a realidade nacional. Tais perigos e graves conse-quências derivadas da confusão entre forças realmente progressistas, de um lado, e reacioná-rias; de outro, quando circunstâncias ocasionais e muitas vezes maliciosamente arquitetadas parecem aproximá-Ias, são duplos. De um lado, podem dar, como .iá têm dado no passado, no favorecimento precisamente da política que as forças progressistas devem em princípio combater. De outro, embaraça e tolhe a caracterização e definição de um pensamento autô-nomo e verdadeiramente revolucionário (que é do que mais necessitamos na atual conjuntura brasileira). Observamos muito bem estas graves conseqüências na posição do próprio AT cujo elevado gabarito revolucionário, que seu artigo tão bem revela, não o impediu de chegar à mais incoerente das conclusões ao defender a linha política que deu na solidariedade das forças progressistas com a candidatura e, em seguida, o governo do sr. Juscelino Kubitschek. AT, embora reconhecendo expressamente, como não podia deixar de reconhecer, o entreguismo do sr. J. K., entende, todavia, que aquela solidariedade se justificava porque evitou o entreguismo “dos Lacerda, Carlos Luz, Café Filho, Juarez Távora, Júlio Mesquita”, etc. (enumeração textual, pág. 51). Mesmo admitindo que possa haver gradação de entreguismo, e que o entreguismo juscelinista tenha sido menos grave que o do outro grupo (o que é altamente contestável, pois o deste último grupo era muito mais de palavras e inferências indiretas, e o do sr. J. K. foi de palavras bem claras e de atos que se marcaram profundamente na cronologia da submissão do Brasil ao imperialismo), mesmo naquela hipótese, que, diga-se de passagem, não tem nenhuma consistência do ponto de vista revolucionário, já refletiram AT e todos aqueles que pensam como ele no considerável dano e atraso que a solidariedade de forças progressistas, e em particular dos comunistas, a um governo declaradamente favorável ao im-perialismo, determinou no processo de maturação e eclosão de uma clara consciência popular antiimperialista? Nunca se csqueça (e isto é da maior importância política) que as intenções e propósitos íntimos de dirigentes políticos têm importância e significação muito pequenas em face de atitudes expressas e da repercussão que vão determinar em frente à massa popular que não tem acesso às sutilezas e maquiavelismos de seus líderes. Uma política revolucionária tem de ser clara, aberta, sem subterfúgios e intenções disfarçadas. Ou acreditamos na força do pensamento de esquerda e no destino da revolução, tal como ela é realmente, ou não haverá revolução, que esta não se fará nunca através de manobras artificiosas de bastidores, mas tem de partir e somente pode partir da ação popular. E esta ação popular não se mobilizará jamais,

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com o poder e a força requeridos, na defesa de interesses que mal escondem sua natureza conservadora, senão reacionária, debaixo da capa de uma fantasiosa “burguesia nacional”. Se existe de fato esta burguesia nacional progressista e antiimperialista, a sua presença não poderia ser posta em dúvida, e a própria discussão que se trava em torno dela já é suficiente para gerar a seu respeito as mais fundadas dúvidas. Em todo caso, os pseudo-interesses de natureza revolucionária que a ela se atribuem, somente se poderiam legitimamente caracterizar e justificar, através da análise de conjunto da estrutura e problemática econômica, social e política da dominação imperialista. E isso não se faz , na teoria clássica da revolução, ou se fez até agora de maneira tão insuficiente, que merece do próprio AT o reconhecimento da “pobreza das análises marxistas sobre a dominação imperialista no Brasil, que determinaram uma visão simplista e ingênua do imperialismo” (pág. 74). Se assim é, como é de fato, onde se estribam AT e seus seguidores nesta matéria ao afirmarem com tanta segurança o papel revolucionário de uma categoria social como esta pseudoburguesia nacional cujo conceito não se acha lastreado em análise (que está ainda por fazer, na confissão do próprio AT) da realidade econômica. social e política do imperialismo?

Vejamos as razões e argumentos de AT, que se concentram sobretudo nas págs. 63 e 66 de seu artigo. Enumera ele aí vários fatos em que se manifestam tomadas de posição e ações políticas de caráter antiimperialista. E sem mais, conclui que estes fatos comprovam a presença e participação política de uma burguesia nacional. Parece que AT não se aper-cebe estar no caso incorrendo naquilo que os lógicos denominaram “petição de princípio”. Efetivamente AT propõe em sua tese que existe uma burguesia nacional promotora da luta antiimperialista. Enumera em seguida as manifestações desta luta; e conclui triunfante: eis aí a prova da verdade de minha tese, a realidade da burguesia nacional! Ficou de fora uma premissa, a principal, de que A T se esquece completamente, e que seria: “os fatos em que se manifesta o antiimperialismo são promovidos pela burguesia nacional”.

É verdade que numa passagem AT reforça suas razões e procura fugir do círculo vicio-so em que se meteu, argumentando por exclusão (pág. 66). Seu argumento, em suma, é o seguinte: “como os votos parlamentares contrários aos projetos de lei de tendência antiim-perialista do governo não representam os interesses do proletariado, da pequena burguesia urbana e dos lavradores, emanam forçosamente da burguesia nacional”. Mas, pergunto, e perguntarão, por certo os leitores, quem diz que esta premissa é verdadeira, isto é, que os fatos de caráter antiimperialista refletem sempre o interesse ou do proletariado, ou da pequena burguesia urbana, ou dos lavradores, ou da burguesia nacional? Ignoro-o. Mas sei quem afirma o contrário: nada menos que Marx e Engels, que sempre se revoltaram contra a interpretação restrita e falseada de seu pensamento, consistente no que se denominaria o “determinismo econômico”. Esta mesma interpretação com que os caluniadores, e na verdade ignorantes do marxismo, continuariam até hoie a deformar, procurando ridicularizá-Io, o pensamento dos elaboradores da teoria geral do materialismo dialético. Teoria esta que nada tem a ver com a mecânica interligação, numa relação de causa para efeito, entre interesses econômicos imediatos e ação política, ou outra qualquer, que AT implicitamente postula em seu argumento.

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Em outras referências relativas ao mesmo assunto, AT utiliza mais um tipo de argumento, aliás muito hábil e de emprego corriqueiro nos debates forenses, e que consiste em jogar o ônus da prova que, em princípio lhe cabe, nos ombros do contendor. No caso que estamos considerando, “aos que negam com firmeza a existência de um setor nacional dentro da burguesia brasileira”. (pág. 66). E propõe uma série de perguntas que comportam, qualquer delas, diferentes e muito variáveis respostas que põem em jogo um grande número de cir-cunstâncias de ordem econômica, social, política e mesmo motivações de ordem psicológica. Inclusive, e faço a concessão a título de simples conjectura, a de uma eventual interferência hipotética de interesses nacional-burgueses não menos hipotéticos. Mas, pergunto, por que somos obrigados, como quer AT, “a aceitar esta última conjectura? Por que, como quer AT, atribuir a linha coerente, ao longo dos anos, de líderes do PTB como Goulart, Brizola, Sérgio Magalhães, etc... a uma posição marcada contra a ação imperialista no Brasil... da parte de uma camada importante da burguesia brasileira”; ou explicar “a conduta de alguns órgãos da imprensa como o Correio da Manhã, a Última Hora, além de outros ... como uma manifesta-ção da luta travada pela burguesia nacional?” AT não explica, nem muito menos justifica sua preferência pela hipótese da “burguesia nacional”. E não vejo motivo para aceitar seu repto da prova em contrário. É a ele que cabia provar a influência ou pressão de sua conjecturada “burguesia nacional”. E isto ele não faz.

Desculpem-me os leitores este fastidioso exercício de Lógica aplicada, que trago à baila unicamente para mostrar o grande risco que encerra, no terreno da pesquisa científica, o método dedutivo e o apriorismo a partir de teorias preconcebidas. É nisto que AT incorre frequentemente. E constitui mesmo a forma geral com que estrutura boa parte de sua ar-gumentação. A contestação que traz à A REVOLUÇÃO BRASILEIRA não procura senão excepcionalmente fundamentar-se na análise concreta da realidade econômica e social do nosso país. Assume a forma de um arrazoado que se apóia explícita ou implicitamente em premissas ditadas pela própria teoria que se encontra em debate. Fui assim, na presente resposta, levado a esmiuçar a estrutura de sua argumentação a fim de não somente prevenir contra ela os estudiosos de nossos fatos sociais, mas para evidenciar a fraqueza das bases lógicas em que AT se apóia. Fraqueza esta que não se deve por certo a insuficiências do autor, mas a injunções de ordem doutrinária pelas quais foi levado. O que é sinal evidente que lhe faltam argumentos mais consistentes para fundamentar sua tese nacional-burguesa. Como seria, por exemplo, uma análise precisa da estrutura econômica e financeira do Brasil, particularmente no que respeita às nossas relações com o imperialismo, bem como às implicações de ordem social e política de uma tal organização. Numa análise dessas, logo se evidenciaria, se fosse real, a presença de um setor burguês que, pela natureza específica de suas atividades, de seus negócios, finalidades e aspirações, se encontra em contradição, dentro da ordem vigente, e por força dela, com a ação do imperialismo. Situação esta, portanto, superável unicamente por uma transformação daquela ordem, o que significaria a revolução antiimperialista e a libertação nacional. AT não procede a esta análise, e se limita, às págs. 59 e 60, a descrever como seria e como agiria a sua burguesia nacional, caso existisse e se cumprisse a teoria ortodoxa que esposa. Reveja o leitor, com atenção, o texto citado. E verificará que não há nele referência alguma a fatos empíricos, e sim unicamente à maneira como A T enxerga tais

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fatos. AT julga estar tratando de uma realidade. Mas apenas descreve o que se encontra em seu pensamento. Assim sendo, e até nova ordem, continuarei, como certamente continuarão todos aqueles que se dão ao trabalho de analisar objetivamente, e não apenas subjetivamente a realidade brasileira, a desconsiderar a nossa hipotética “burguesia nacional”.

Mas por que, perguntará o leitor, como pergunta AT em seu artigo, esta concepção teórica da burguesia nacional “pode ser responsabilizada pelo que de errado houver na con-duta das correntes progressistas?” (pág. 66). A resposta a isso, se justificada, viria confirmar, em mais este caso, a procedência da tese central de A REVOLUÇÃO BRASILEIRA, que vem a ser: as graves consequências de ordem política, no que se refere à ação das forças de esquerda e progressistas brasileiras, resultantes de uma falseada teoria revolucionária. Este ponto é tanto mais importante de ser aqui abordado, que nele terei oportunidade de retificar, assim penso, mais uma injustiça de AT a meu respeito, e que vem a ser a acusação que me faz na pág. 54 de seu artigo, que “o autor de A REVOLUÇÃO BRASILEIRA deliberadamente decidiu desconhecer o que houve, assim como desconhece a situação presente que exige uma posição política qualitativamente diversa” .

Mais uma vez, repito: se AT tivesse considerado o sentido geral e de conjunto do livro, e não se apegasse unicamente a pontos tópicos dele, como faz, teria verificado que A RE-VOLUÇÃO BRASILEIRA, o que precisamente procura, certa ou erradamente (e é isto que AT deveria indagar e não indaga), é buscar para as esquerdas uma posição “qualitativamente diferente” que lhes abra novas perspectivas, e que as livre do oportunismo e seguidismo que vem há muito e em boa parte esterilizando e inutilizando seus esforços – como, entre outros, aqueles que ofereceram pretexto e deram oportunidade ao golpe contra-revolucionário de 1° de abril. O principal responsável por aquela ineficiência das esquerdas (e é o que se afirma e se procurou sustentar em REVOLUÇÃO BRASILEIRA) foi uma base teórica errônea. E porque errônea, suscetível de levar ao oportunismo. Sendo que o principal erro teórico responsável por este oportunismo, foi precisamente a malfadada concepção da “burguesia nacional”. Por efeito dela (para os bem intencionados), e também graças a ela (para os demais), a ação política das esquerdas se dirigiu quase exclusivamente para a defesa de interesses supostamente de uma burguesia nacional e progressista, mas, na realidade, de facções políticas sem outro objetivo que se empoleirarem ou conservarem nas posições de mando, e aí usufruírem as benesses do poder público; bem como de negocistas e toda uma fauna numerosa de aspirantes a favores maiores ou menores proporcionados direta ou indiretamente pelo mesmo poder público. E assim a ação das esquerdas, longe de contribuir para o processo revolucionário, desviou-se para rumos inteiramente estranhos à revolução.

Somente um cego, um neófito ou um mal intencionado poderá hoje ter dúvidas sobre o fato que no período que precedeu o golpe de abril, as esquerdas se foram progressivamente e cada vez m.ais próxima e abertamente, atrelando como caudatárias às manobras políticas de facções que nada tinham em comum, afora o disfarce demagógico, com tudo aquilo que constitui os objetivos, os ideais e os sentimentos realmente revolucionários. Não vou agora fazer o histórico daquela triste fase de nosso passado recente... Muito mais interessante e útil no momento são as consequênciasdaquele prolongado oportunismo que deixou as esquerdas, depois do golpe, sem base popular orgânica (que, na euforia de fáceis, mas só momentâneas

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e aparentes vitórias, fora inteiramente descurada), sem objetivos claros e idéias definidas capazes de mobilizarem a opinião popular; sem perspectivas progressistas concretas – a não ser de um simples e irrealizável retorno a um passado inteiramente superado. E por isso tudo, praticamente sem ação e limitadas a fazerem coro com puros revanchistas e homens de negócio que, com o seu característico e, aliás, necessário imediatismo profissional que a vida dos negócios prescreve, gemem e se desesperam contra medidas financeiras que os oneram, mas, para as quais, não encontram alternativas por eles mesmos aceitáveis. Prova disto são as críticas que fazem a estas medidas que ou repetem em outras palavras a mesma coisa que os financistas oficiais (haja vista a já famosa e tão alardeada crítica daquele mesmo Prof. Dias Leite que AT cita com louvores, mas cujo “estudo de técnico acreditado” não analisa), ou então, em última instância, pleiteiam manhosamente a retomada dos jorros emissores e das facilidades descontroladas de crédito.

O que realmente havia a fazer, na posição das esquerdas, era desmascarar o artificialismo de um “desenvolvimento” especulativo e sem bases sólidas, que vivera à custa da simples substituição desordenada de importações que, nas condições do Brasil, se podiam conside-rar, na maior parte, de luxo, pela produção “nacional” mais cara e de inferior qualidade. (As aspas são para ressalvar a grossa fatia que coube naquele processo aos trustes imperialistas operando no Brasil). Processo que esgotara suas possibilidades com a saturação do reduzido mercado brasileiro, e se estancara, em consequência, por entre graves reajustes econômicos e sociais que, disfarçados momentaneamente pelos efeitos entorpecentes da inflação, explodiam afinal numa crise de estrutura que punha a nu os vícios congênitos da economia brasileira: as limitações de um mercado restrito a ínfimas minorias efetivamente consumidoras, e inca-paz, por isso mesmo, de lastrear uma grande indústria e atividade produtiva modernas, que têm sua base necessária no consumo de massa. Não era, como não é possível construir uma economia de padrões modernos e aparelhada para produzir manufaturas requintadas e de alto padrão tecnológico (automóveis, aparelhos eletrodomésticos, materiais de construção refinados, etc.) para uma população que, na sua maioria, não tem condições, nem pode tê-Ias no atual sistema econômico-social vigente, para resolver os seus mais elementares problemas de alimentação, saúde, habitação, educação.

Mas pensar em atacar direta e vigorosamente estes problemas e outros semelhantes, não podia ser de nenhuma burguesia, por mais que a enfeitassem de “nacional” e “progressista”, porque isto importava em medidas drásticas que interfeririam necessária e diretamente nos seus negócios e na sacrossanta e livre iniciativa privada que precisavam naqueles negócios. E a esquerda, do seu lado, se viu impossibilitada de propor e promover uma política dessas, que, afinal, deveria constituir sua própria razão de ser, porque, de uma parte não se preparara ideologicamente para a tarefa, como ainda não está preparada. De outra parte, e talvez mais ainda, porque se sente solidária com os interesses de seus aliados da burguesia “nacional” e “progressista”. E esta burguesia não se dispõe naturalmente, como AT refere na pág. 79 de seu artigo, a “fazer alianças com trabalhadores em torno de um Programa que tenha como questão central o atendimento de reivindicaçõcs trabalhistas”. E esta aliança, prossegue AT, “é necessária para combater a ditadura e o imperialismo”.

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Assim, com uma lógica férrea e implacável, as teses de AT vão da “burguesia nacional e progressista”, para o abandono, ou pelo menos subestimação, daquilo que, para as esquerdas, representa, ou deveria representar, o essencial de sua luta ideológica e prática.

Deixa-se contudo de lado, naquela rigorosa inferência lógica, apenas alguns pequenos pormenores, como o fato de que sem a premissa e base de um programa de reformas eco-nômicas e sociais nos moldes acima roçados de leve, não é possível nem ao menos propor, em termos concretos e de efetiva ressonância popular, a luta em profundidade contra a ditadura e o imperialismo. Fica-se, como está ocorrendo, na denúncia, às vezes veemente, mas não menos platônica, de fatos tópicos que evidenciam a penetração imperialista; fica-se em declamações antiimperialistas e queixumes de vítimas do imperialismo e da ditadura que o protege. Mas não se penetra no mecanismo íntimo da dominação imperialista em nossa terra, dominação esta que não representa unicamente, nem mesmo principalmente, um ato de vontade da atual situação política (ou de outra qualqucr do passado), mas se prende a circunstâncias profundas da economia brasileira que somente se poderão remover (e é nisto que essencialmente e fundamcntalmente deve consistir a luta antiimperialista) com reformas também profundas de nossa estrutura econômica.

Em suma, a noção de burguesia nacional não constitui unicamente fruto de uma fal-seada e apriorística visão da realidade brasileira. Ela representa um papel de grande relevo na política oportunista e de largas concessões a interesses estranhos à revolução, em que se envolveram importantes setores da esquerda que com isto se afastaram de sua rota natural e prejudicaram a marcha do processo revolucionário.

Note-se que não estou com isto propondo o isolamento, na luta revolucionária, do proletariado e dos trabalhadores em geral. Embora estas classes constituam o fator essencial da revolução, esta não se fará sem o apoio, naturalmente variável segundo suas etapas e momentos, de uma ampla frente de outras forças. Tocamos aqui numa questão essencial da política revolucionária: a política de alianças.

Neste assunto, AT é bastante confuso, embora ele ache o mesmo de mim. Na pág. 70, afirma que é muito difícil lutar contra o imperialismo e a reação interna sem o concurso de uma burguesia nacional e progressista. E na pág. 79 escreve: “uma ampla unidade de forças e camadas sociais só poderá erguer-se na base da luta por objetivos antiimperialistas”. Não se fica sabendo, depois da leitura destes dois textos, se a aliança é necessária para a luta contra o imperialismo e a reação (como AT afirma na primeira passagem citada), ou se inversamente, é a aliança que somente é possível na base da mesma luta. Numa das afirmações de AT, a aliança vem antes, e dela depende o sucesso do antiimperialismo. Na outra, é a luta contra o imperialismo, e somente ela, que unirá as forças revolucionárias.

Mas, além de confusa, a posição de AT na questão da política de alianças se funda numa concepção extremamente esquemática das classes e forças sociais eventualmente participantes do processo revolucionário. Nisso, ele segue as pegadas da teoria ortodoxa da revolução, pelo menos na forma com que chegou até nós, e que simplifica até o esquematismo mais absurdo a estrutura social brasileira e de outros países do nosso tipo. Segundo esta teoria, as classes e categorias sociais da nossa sociedade se reduziriam ao seguinte: latifundiários e burguesia

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compradora, ambas ligadas ao imperialismo e contrárias à revolução. Doutro lado, proletaria-do e trabalhadores em geral, camponeses, pequena burguesia urbana e burguesia nacional, que seriam as forças revolucionárias.

É na base de um esquema desses que AT formula a sua política de alianças e critica minhas considerações a respeito do assunto, consierando-as “difíceis de serem entendidas”. Muito mais difícil é compreender como um teórico e político revolucionário experimentado como AT (o que o seu artigo fartamente revela) possa pretender enquadrar no pobre e descarnado esquema de sua descrição da sociedade brasileira, a imensa complexidade com que nela se apresentam (como aliás em qualquer outra) os interesses, sentimentos e aspirações dos indivíduos, categorias, setores, classes e outros agrupamentos que, em conjunto, formam aquela sociedade. É certo que se pode e se deve destacar algumas linhas muito gerais de natureza classista para servirem de roteiro na análise e caracterização das forças políticas atuantes no país. Mas, quando se trata de levar esse roteiro para o terreno da ação política, computar e avaliar a distribuição de forças naquela ação, é preciso introduzir no mesmo roteiro toda uma gama de qualificações que somente a conjuntura de cada momento e situação pode satisfatoriamente indicar. Não é admissível, como procede AT, fundar-se unicamente numa rígida e esquemática classificação de interesses econômicos, cada qual atribuído a uma determinada classe ou categoria social, e daí deduzir aprioristicamente o comportamento que terão estas diferentes classes e categorias. Isso é ignorar por inteiro a complexidade das motivações políticas, onde a par dos interesses propriamente econômicos participam também outros e muitos impulsos, influências, valores com raízes em crenças, convicções, ideologias, e que sei mais, carreadas pela educação e tradição recebidas, ou induzidas pelas vicissitudes da experiência sofrida. Mesmo aquilo que ordinaria-mente se entende por interesses econômicos, não é nada fácil de caracterizar em termos gerais, porque há sempre diferentes maneiras de interpretar e de ponderar tais interesses, bem como fazer um juízo sobre os meios mais adequados para os realizar.

Há mais ainda, porque no complexo entrelaçamento, aliás muito variável tanto no tempo como no espaço, com que os interesses de qualquer natureza se apresentam na trama da vida social, torna-se extremamente arriscado um julgamento a priori, deduzido de qual-quer sistema de correspondência entre situações sociais e juízos valorativos acerca do papel que eventualmente tais interesses representarão, em conjuntura determinada, na fixação do comportamento político de uma coletividade.

Assim sendo, os acanhados quadros em que AT pensa encerrar aquele comportamento e arquitetar as eventuais e possíveis alianças promotoras da revolução no Brasil são inteira-mente inadequados. Como, por exemplo, incluir neles a participação relevante que tiveram importantes setores militares na campanha do petróleo, – o que, aliás, AT expressamente reconhece? E como interpreta ele, na base de seu descarnado esquema classista, a intensa movimentação dos católicos de esquerda (e na sua qualidade de católicos, note-se bem) na luta por alguns dos principais objetivos da revolução?

Não é possível traçar aqui todo o quadro da problemática política brasileira da atualidade. Mas, para abrir um pouco as perspectivas de AT nessa matéria de alianças políticas, quero chamar a sua atenção para alguns fatos tomados no mais vivo da realidade brasileira recente

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e atual, e que assinalam alianças políticas à primeira vista, e de acordo com seu esquema, de antemão impensáveis. E escolherei, entre outros muitos semelhantes, precisamente aqueles que ilustram melhor uma tese inteiramente oposta à afirmação expressa de AT de que é impossível a aliança de burgueses e de trabalhadores em torno de reivindicações destes últimos.

O primeiro desses fatos se relaciona com a campanha pelo 13º salário, isto é, a obri-gatoriedade da gratificação do Natal. Ninguém que acompanhou esta campanha ignora que, entre seus promotores, cuja pressão política foi quase, pode-se dizer, decisiva, figurou o alto comércio (houve pronunciamentos na época inclusive de alguns dos mais destacados dirigentes da Associação Comercial de São Paulo), burgueses, portanto, e mesmo os mais altos burgueses, para cujos negócios, o reforço de poder aquisitivo da gratificação natalícia representou uma apreciável contribuição em período decisivo de suas vendas anuais.

Outro exemplo é da maior atualidade, mas, apesar disto completamente ignorado, ao que parece, pelas esquerdas, mais preocupadas com certeza com os interesses de sua burguesia nacional. Trata-se dos grandes atrasos que se estão verificando no pagamento dos salários na generalidade das zonas açucareiras do país e. particularmente, em São Paulo, onde os atrasos de cinco meses já se estão tornando comuns; e, no Nordeste, onde os jornais noticiam atrasos de nada menos de oito meses!

Ora bem, tais atrasos afetam não apenas os trabalhadores e suas famílias, mas também o comércio dos centros urbanos situados nas zonas açucareiras e cujos negócios se constituem em boa parte de fornecimentos aos trabalhadores, que, faltos de numerários, não somente reduzem suas compras, mas deixam de saldar suas contas de armazém. Em muitos desses centros, na dependência mais direta e exclusiva da clientela dos trabalhadores da cana, tem-se chegado a situações de verdadeira calamidade pública, porque direta ou indiretamente a insolvência dos trabalhadores se vai refletir em todas as camadas locais que se tornam assim solidárias com os interesses daqueles trabalhadores e suas reivindicações. E isso se passa em algumas das regiões mais importantes do país.

Não estão aí maduras, pergunto a AT, as condições necessárias e suficientes para uma aliança, de grande projeção política, entre trabalhadores e burgueses, em torno de reivin-dicações trabalhistas? Ou julga AT que somente pode ter expressão significativa no cenário político brasileiro o que se passa na Avenida Rio Branco e suas adjacências?

Mas não são somente situações como as referidas, e que AT considerará por certo ex-cepcionais (embora tais “exceções” constituam em grande parte a trama social íntima e mais significativa de nossa vida político-social), não são somente elas abrem perspectivas para amplas frentes políticas impulsionadoras do processo revolucionário brasileiro, sem que para isto sejam necessárias alianças espúrias na base de concessões que deformam inteiramente os grandes objetivos daquele processo. Mas, para penetrar a fundo nessa questão, e apreciá-la na sua integridade, e podermos marchar de olhos abertos e passos seguros, sem a limitação de expedientes e improvisações de última hora, é prcciso ir mais além do que a da simples esquematização de situaçõcs momentâneas e conjunturais. Devemos considerar a totalidade e conjunto da problemática história brasileira na presente fase dela, que estamos vivendo; e aí situar a nossa política de alianças, como, aliás, tudo mais que diz respeito à revolução.

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Encontramo-nos em fase de nossa história na qual se fazem profundamente e cada vez mais sentir as contradições entre uma nação e nacionalidade que procura se libertar de seu passado, e este passado que lhe pesa ainda consideravelmente nos ombros. Por mais que um atroador neoufanismo, misto de publicidades comerciais e de ingenuidade desprevenida e mal informada a respeito da realidade deste mundo em que vivemos, procure nos impingir idéias de que somos um país em desenvolvimento e prestes a alcançar os altos níveis do pro-gresso e da civilização contemporâneas, o fato é que infelizmente estamos bem longe disto. Não somos apenas “subdesenvolvidos”. Não é só quantitativamente que nos distinguimos dos países e povos que marcham na vanguarda do mundo de nossos dias. A diferença é também, e sobretudo, “qualitativa”. E tanto isto é verdade, que, relativamente e em termos comparativos, não estamos avançando, mas, antes, recuando, e recuando, a meu ver, pre-cipitadamenle. Há cinquenta anos ainda poderíamos figurar sob muitos aspectos, muito modestamente embora, no concerto das nações civilizadas, isto é, vivendo no nível da cultura material e moral então alcançado. Hoje é difícil afirmá-lo. Já não nos enquadramos neste mundo moderno da energia nuclear, da cibernética; da automação e libertação progressiva do homem de todo esforço físico e mesmo de boa parte do mental; do domínio decisivo da razão e inteligência humanas sobre as forças brutas e espontâneas da natureza. A evolução da humanidade está em vias de dar um salto qualitativo em sua história, e nós ainda mal nos apercebemos disso. Que será acompanhá-la? Temos uma fachada, não há dúvida, que apresenta certo brilhantismo. Mas é uma tênue fachada apenas, que disfarça muito mal, para quem procura verdadeiramente enxergar e não tenta iludir-se, o que vai por detrás dela neste imenso país de desnutridos, doentes e analfabetos onde se dispersam ilhados alguns medíocres arremedos da civilização do nosso tempo. Não serão por certo estas nossas pobres imitações da indústria moderna, estas comunicações que somente pelo nome se identificam com suas congêneres da atualidade - estradas de ferro e de rodagem, correios, telégrafos e telefones que não funcionam -; estas nossas “metrópoles” de cimento, ferro e asfalto que são inundadas e se desmancham com as chuvas de todos os anos; e no terreno da cultura, estes espectros que são as Universidades e o nosso pobre aparelhamento de ensino e de pesquisa científica em geral, não é isto certamente que nos concederá foros de país no nível dos grandes centros modernos ou deles se aproximando.

Para nos considerarmos da mesma ordem de grandeza, e tão-somente “mais atrasados e menos desenvolvidos”, mas não qualitativamente diferentes, precisaríamos de muito mais, e essencialmente de uma sólida base sobre que assentar a nossa nacionalidade, e que vem a ser uma população liberta da miséria física e cultural, e capacitada, no seu conjunto, para usufruir alguma coisa do conforto, bem estar e elevação do espírito que a ciência moderna proporciona.

Ora, a compreensão disso tudo começa a abrir caminho na consciência de um número crescente de brasileiros. Particularmente das novas gerações que vêm vindo e que não se acham intoxicadas pelo neoufanismo desenvolvimentista que, neste último quarto de século de especulação inflacionária e publicidade comercial, se apoderou do Brasil, comprometendo tão gravemente â verdadeira compreensão do país – e proporcionando tão bons negócios a reduzidos grupos econômicos e financeiros nacionais e sobretudo internacionais. E assim,

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progressivamente, novos e novos setores vão sendo sensibilizados para a consideração da verdadeira situação brasileira, tanto em si, como, sobretudo, em contraste com o mundo que nos rodeia. E seja por motivação econômica (sobre a pobreza coletiva não se constrói no mundo de hoje a riqueza e o bem-estar privados, e sobretudo a segurança no futuro); seja pela dignidade nacional ferida no degradante espetáculo que o nosso país oferece em sua maior parte; seja por simples espírito humanitário e de solidariedade. humana; seja mesmo por um bem fundado temor das negras nuvens que se acumulam no horizonte, mercê do abismo que cada vez mais profundamente separa as classes e as populações no país; seja por este ou aquele motivo, o inconformismo com o atual estado de coisas se irá alastrando, como de fato ocorre e somente o pior dos cegos, aquele que deliberadamente não quer ver, poderá pôr em dúvida .

.Aí estão as premissas daquela polarização de forças políticas a que me referi em A REVOLUÇÃO BRASILEIRA, e na qual se defrontarão por cima da barricada decisiva da luta política brasileira, de um lado, centralmente e essencialmente, as forças de esquerda representativas dos verdadeiros e fundamentais interesses e aspirações da grande massa da população brasileirá, cuja miséria física e moral e, quando muito, triste mediocridade em face dos padrões modernos, fazem do Brasil um caudatário remoto da civilização contemporânea. E do outro lado da mesma barricada, estarão aqueles que julgam impossível ou indesejável um mundo onde as necessidades e aspirações humanas não exprimam senão eventual mercado consumidor e horizonte para vendas. Um mundo, portanto, sem pretexto e oportunidades para o exercício da livre iniciativa privada na realização de negócios.

Não me é dado, e acredito que tampouco a mais ninguém, prever em seus pormenores as vicissitudes através de que se desenvolverá aquele processo de polarização de forças, com o atamento das alianças que ele implica e que levarão à precipitação da revolução brasileira e às transformações profundas de nossas instituições econômicas, políticas e sociais que nela se abrigam. Mas o certo, e como linha geral de desenvolvimento do processo, o que se pode prever é que à medida que o atual sistema econômico vigente – centralizado na generali-zada propriedade privada dos meios de produção e na livre iniciativa particular; em outras palavras, estruturada essencialmente por relações de negócio – se mostrar como de fato se está mostrando incapaz de promover, em ritmo compatível com as exigências presentes, o desenvolvimento material e cultural do nosso país, a fim de libertá-lo afinal da pobreza e mediocridade que tão fundamente atinge a grande maioria da população, nesta medida as forças políticas menos cornprometidas com aquele sistema se irão dcle progressivamente apartando e congregando do outro lado da barricada.

Este é um processo irreversível, cujo andamento já se começa a observar muito bem. E ele se precipitará tanto mais cedo quanto as forças de esquerda melhor o compreenderem e souberem pôr em evidência, através de sua pregação teórica e ação prática, as contradições profundas do sistema vigente e a sua incapacidade congênita de fazer frente à problemática econômica e social desta fase histórica que estamos vivendo.

É com esta visão ampla e de profunda inspiração na realidade brasileira tal como ela efetivamente se apresenta – e não como aparece nos mesquinhos e deformadores esquemas

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e modelos exóticos com que se tem pretendido enxergá-Ia e a interpretar – é assim que se traçará a política de aliança da esquerda. Alianças estas que afluirão natural e espontaneamente sem necessidade de nenhum acordo ou conchavo oficialmente formalizado, se as esquerdas souberem, em cada momento e situação, propor as questões nevrálgicas pendentes e em jogo, com oportunidade, sem sectarismo e precipitação pseudo-revolucionária e aventureira, mas igualmente sem oportunismo; e de maneira a fazer sentir, na prática, a inviabilidade de qualquer solução satisfatória e cabal dentro dos quadros e com os instrumentos do atual sistema vigente.

Como já notei de início, não é possível responder aqui, uma a uma, a todas as arguições que AT apresenta em contradita a A REVOLUÇÃO BRASILEIRA. Para isso, seria necessário, dada a maneira dispersa com que ele aborda sua crítica, escrever aqui um outro livro, que, aliás, em grande parte repetiria quase literalmente o que já se encontra naquele livro, e a que AT não atendeu. O repto, por exemplo, que me lança para uma definição clara sobre as forças decisivas e dirigentes da revolução, e que a seu ver eu teria ladeado, não tem razão de ser, porque a resposta aí se encontra, nas págs. 262 e segs. de A REVOLUÇÃO BRASILEIRA, onde aquele papel decisivo e dirigente é expressamente atribuído ao proletariado urbano. E não somente faço esta atribuição, mas procuro analisá-Ia, bem ou mal, em função das con-dições específicas do Brasil. E não limito (muito mais para indicar um método de análise, que para apontar qualquer novidade), a exemplo do que se vê tão frequentemente por aí na teorização oficial e consagrada do assunto, a repetir mecanicamente, como em tantas outras instâncias e questões, os textos clássicos do marxismo, transformados em fórmulas mágicas aplicáveis indiscriminadamente em qualquer lugar e tempo.

Outro exemplo da desatenção de AT para o que se encontra expresso em A REVOLU-ÇÃO BRASILEIRA é a sua crítica ao fato de o livro, a seu ver, “não dar a devida importância à questão da luta pela democracia no Brasil” (pág. 79). O curioso neste caso é que AT, logo na página anterior de seu artigo, transcreve um longo texto do livro criticado, em que, com todas as letras, é expressamente declarado que o “essencial” da política no momento atual é a luta pela “extensão e aprofundamento das franquias e dos direitos democráticos”! Não compreendo, realmente não compreendo ...

Quero ainda lembrar mais uma flagrante injustiça de AT, e que preciso de pronto retificar porque em pouco mais de uma simples frase ele deforma inteiramente todo o conteúdo e pensamento geral de A REVOLUÇÃO BRASILEIRA. É quando afirma que equaciono a pro-blemática revolucionária brasileira fora do seu contexto mundial. Ora, uma das preocupações máximas ao longo de todo o meu trabalho, em seguimento aliás a muitos outros anteriores que já datam de não poucos anos, foi sempre de situar a economia brasileira e o conjunto de nossa história, e portanto a problemática que aí se propõe, no quadro internacional, sem o que nada se pode compreender do país. Ao leitor mais minucioso e mais interessado na questão, recomendo em especial o que se encontra a págs. 283 e seguintes. Mas se esta pas-sagem, bem como tantas outras semelhantes podem levar à tão errada interpretação de AT a respeito de minhas ideias, terei que seriamente pensar em nunca mais tomar da pena, ou, antes, sentar-me diante de um teclado de máquina de escrever, pois seria a evidência de que não me foi dado o dom de corretamente exprimir o meu pensamento. Prefiro, contudo, por

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enquanto, e até que venha a comprovação final e definitiva de minha congênita incapacida-de de escritor, atribuir a maneira falseada com que AT interpreta o sentido do que escrevo, ao fato de eu não empregar o linguajar ritual que encontramos tão amiúde nos textos de alguns dos nossos marxistas, que acreditam, ao que parece, no poder mágico das palavras, e na necessidade de respeitar religiosamente as formas linguísticas consagradas sob pena de falsear aquilo que se pretende com elas dizer. E desencadeando com isto os maus espíritos da contra-revolução.

Antes de terminar, e com desculpas ao leitor pelo excessivo dessa minha defesa de A REVOLUÇÃO BRASILEIRA a que AT me obrigou, aproveito a oportunidade para me referir à questão do “capitalismo burocrático” a que AT dedica um longo item de sua contestação, e que, a meu ver, tem grande relevo na interpretação adequada da realidade política brasileira. Não se trata, como afirma AT, de tese “absolutamente original”, pois a presença de um tal capitalismo e seu considerável papel político em países dependentes e de economia capitalista rudimentar – países “atrasados” ou subdesenvolvidos da Ásia, África e América Latina – têm sido assinalados pela generalidade dos escritores marxistas e mesmo não-marxistas mais recentes que se ocupam do assunto. É certo, como escreve AT, que o favoritismo oficial nos negócios privados e a corrupção se encontram, em maior ou menor proporção, em qualquer país, inclusive sob “formas impressionantes em países capitalistas adiantados”, coisa aliás que reconheci expressamente em meu trabalho, e ninguém pode deixar de reconhecer. Mas aí acrescentei – e deste pormenor essencial AT se esquece – que nos países de nossa categoria, por força especial de seu baixo nível econômico, a acumulação capitalista, esta mola mestra da vida econômica e social, e também, portanto, da vida política em regime capitalista, encontra uma de suas principais, senão a principal e mais ‘poderosa fonte e origem, em atividades ligadas diretamente às funções da administração pública. O que me parece não ser necessário justificar aqui. Daí o importante papel que, ao contrário do que ocorre em países altamente desenvolvidos, aquelas atividades têm na economia em geral de tais países economicamente pobres. Donde deriva, como não podia deixar de ser, um destacado papel político dos setores burgueses que realizam a sua acumulação capitalista – o traço distintivo essencial da burguesia, que faz dela a “burguesia” que é, vem a ser o seu papel de “acumuladora” de capital – em ligação direta com as funções estatais e na base de negócios proporcionados mais ou menos licitamente pelo poder público.

Ê verdade que este papel político do capitalismo burocrático (empreguei esta expres-são, na falta de outra melhor, por ser a consagrada na terminologia internacional da ciência política marxista de nossos dias) não mereceu ainda entre nós um devido estudo sistemati-zado no nível da pesquisa científica. Mas o reconhecimento dele se encontra na consciência generalizada do nosso povo. O enriquecimento privado (tradução vulgar do termo técnico da Economia: “acumulação capitalista”) à custa e por conta das finanças públicas ou seus rebentos autárquicos e outros, a importância e destaque que isto tem na vida e nas relações financeiras e mesmo sociais de nosso país, a projeção desse processo de enriquecimento na política brasileira (o que naturalmente é uma das principais condições de sua existência no alto nível que atinge entre nós), tudo isso é fartamente conhecido e reconhecido por qualquer um de nós brasileiros com um mínimo de informação a respeito da política e da administração

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pública em nosso país. E não haverá talvez uma única pessoa neste país com um mínimo de vivência, em certo nível, das nossas coisas sociais e políticas, que não lembre algum ou mesmo muitos casos desta natureza. Isto é, de indivíduos enriquecidos e se enriquecendo, muitas vezes em proporções consideráveis, à custa das finanças públicas, ou graças à maneira como é conduzida a administração pública. E interferindo na política, seja direta, seja indiretamente, para promover e resguardar aquele enriquecimento, ou principalmente para este fim.

Isso é fartamente conhecido. E dado o vulto relativo que representa no Brasil esta interferência e participação de interesses puramente privados em atividades públicas, e no jogo político que torna possível e proporciona aquela participação e interferência, resulta que elas afetam muitas vezes de maneira substancial e mesmo decisiva tanto a marcha dos acontecimentos políticos quanto o modo como são orientados e conduzidos os negócios públicos, inclusive os de maior importância e projeção.

Sem pretender um tratamento geral e muito menos sistemático do assunto, aqui im-possível, limitar-me-ei a exemplificá-lo com alguns casos e situações mais notórios em que se apanha ao vivo aquela simbiose econômico-financeira das esferas pública e privada que tem a meu ver papel de primeiro plano na explicação e interpretação de importantes fatos da atividade polílica brasileira, e mesmo de nossa vida política em geral.

A todos que têm algum conhecimento das coisas brasileiras ocorrerá desde logo, na ordem de ideias em que nos encontramos, o papel político que, desde sempre, e particular-mente em época mais recente, tem a política de crédito dos institutos oficiais, e em especial do Banco do Brasil. Política de crédito esta cuja orientação pode ser decisiva, e frequentemente assim foi, no sucesso financeiro de indivíduos ou grupos econômicos eventualmente por ela favorecidos, e que isso sempre figurou como um dos eixos importantes em torno de que giraram as manobras políticas destinadas a empolgá-la. Com reflexos de grande expressão, naturalmente, não somente no jogo da política geral brasileira, mas nas finanças e economia em conjunto do país, dado o relevante papel que neste terreno sempre representou o nosso grande banco oficial, por onde circula uma parte considerável da riqueza do país.

A este respeito, é altamente ilustrativo, entre outros, embora já date de algum tempo, a consulta ao inquérito realizado no Banco do Brasil em 1952, e que se publicou por iniciativa do então Deputado José Bonifácio Lafayette de Andrada, que, na qualidade de acionista do Banco, solicitou e obtevc em uma de suas Assembléias Gerais a realização do inquérilo1 Os nomes envolvidos no escandaloso favoritismo do Banco, e os consideráveis recursos finan-ceiros que vemos aí se escoarem para o enririquecimento de personalidades de relevo direta ou indiretamenle ligados à política, bem como o confronto destes dados com a vida política do momento, fazem patente a participação decisiva do nosso capitalismo burocrático na vida pública e econômica brasileira.

1 José Aparecido de OJiveira, INQUÉRITO NO BANCO DO BRASTL, (Texto integral da Comissão de Inquérito e histórico da divulgação). Documentário extraído do original do Deputado José Bonifácio Lafayettc de Andrada, 1953.

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Vejamos outro caso. É conhecido o papeI preponderante, que sempre teve na política dos Estados brasileiros mais pobres (e com reflexos importantes na política federal) a maneira como se distribuem as verbas federais destinadas àqueles Estados. Este é ou era particularmente sensível nos Estados nordestinos assolados pela seca, onde as polpudas verbas canalizadas para aquela região pelo DNOCS (Departamento Nacional de Obras contra a Seca), e distribuídas pelos privilegiados senhores da situação local, constituíam um dos principais, senão o principal eixo em torno de que gravitava a política e marchavam os negócios públicos, bem como os privados, de importantes setores da economia regional, pois elas formavam um dos fatores decisivos de grande parte da acumulação capitalista naquela região. E representavam uma das palavras finais na distribuição de influências políticas. Solidarizam-se assim interesses privados e a administração pública, que, muito menos se interessava pela solução dos problemas pro-postos pela ocorrência das secas, do que propiciar negócios e facilidades de enriquecimento privado (tecnicamente: acumulação capitalista) à custa do flagelo, e por conta ou a pretexto dele. Não é sem muita razão que o sistema político-econômico assim montado mereceu a designação tão expressiva de “indústria da seca”. A voz popular, na sua sabedoria, punha o dedo, com esta designação, num fato político da maior importância, que não é senão uma instância característica daquilo que entendi por “capitalismo burocrático”. Isto é, as funções da administração pública desviadas de sua finalidade real e legítima, e transformadas, em boa parte, em puro negócio privado e fonte de acumulação de capital.

Este caso que acabo de referir é mais de caráter local, embora se projete largamente também na esfera federal. Vejamos outro, de natureza essencialmente nacional, e de imenso relevo e repercussão na vida política, econômica e social brasileira de anos passados, mas ainda bem presentes na memória de todos. Refiro-me à famosa e de triste memória CACEX (Carteira do Comércio Exterior, do Banco do Brasil), à qual competia, antes da instituição da licitação de cambiais, a distribuição destas cambiais de acordo com certas prioridades que a administração estabelecia ou deveria estabelecer cm função do interesse público e para o fim de limitar a venda de câmbio às disponibilidades existentes, assegurando com isto o equilíbrio da balança de contas. O sistema, instituído com os melhores propósitos, logo degenerou e se tornou fonte abundante e generosa de enriquecimento privado (algumas das grandes e importantes figuras da nossa burguesia têm aí sua origem), porque as cambiais adquiridas pelo câmbio oficial, eram em seguida transferidas aos importadores interessados com grande margem de lucro. E foi-se, aos poucos, perdendo de vista até mesmo a finalidade precípua do sistema, que era de limitar nossas despesas com divisas, passando ele a funcionar sobretudo para atender à clientela que se abeberava no negócio, e cuias ilimitadas ambições acabaram levando a CACEX a ceder cambiais em importâncias muito superiores às suas disponibilidades, e somente para atender aos interesses do negócio que se instalara no sistema. E assim, em vez de contribuir para o equilíbrio das contas externas do país, o sistema da CACEX se tornou um fator muito importante de desequilibrio dessas contas. O que resultou na acumulação desmesurada dos chamados “atrasados comerciais”, isto é, débitos por importações para os quais o Banco do Brasil não dispunha de cobertura cambial. O que obrigou afinal à abolição do sistema e sua substituição pela licitação (outubro de 1953). Observamos bem claramente neste caso a transformação de função pública, essencialmente, em negócio privado, fonte

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de importante acumulação de capital. Transformação esta que se processou através de forte pressão e largas manobras políticas que constituíram durante anos um dos eixos relevantes em torno de que girou a política brasileira.

Lembrarei mais um caso destes e que se vem prolongando de longa data até mesmo dias ainda muito próximos. Trata-se da política de defesa dos preços do café – sem sombra de dúvida um dos principais, senão o principal setor da política econômica e financeira do nosso país. Aquela política se realiza, em boa parte, não em função já não digo dos interesses gerais do país (nisto nem é bom pensar), nem dos coletivos de nenhuma classe ou categoria legitimamente envolvida na economia cafeeira (produtores, comissários, exportadores, etc.); e sim se realiza em benefício de puros interesses privados de indivíduos ou grupos econô-micos que não se acham no negócio senão com o fim de o aproveitarem mercê das posições vantajosas que o oficialismo da política cafeeira lhes proporciona. Não têm nenhuma função normal (senão subsidiariamente) dentro propriamente do negócio cafeeiro, que apenas lhes serve de pretexto, para exteriormente dele se valerem. Ou antes” se valerem da política oficial que o regula.

Esta situação é fartamente conhecida por todos aqueles que lidam com negócios de café, e por não ser possível entrar aqui em pormenores, limito-me a trazer o testemunho público e recentíssimo de um dos grandes conhecedores do assunto, que assim definiu a nossa política cafeeira: “ [...] meio de enriquecimento individual, de especulações comerciais, de promo-ção de rendas extra-orçamentárias ou de transações menos lícitas; [...] massa de manobra para toda natureza de interesses, com exclusão daquele que deveria ter prevalecido e que é o interesse nacional onde se somam legitinlamente os justos benefícios que esse produto (o café) pode permitir”2.

Excusado acrescentar que não é graciosamente que uma parcela respeitável dos proventos proporcionados pela economia cafeeira se canaliza para os bolsos de indivíduos que não se encontram no negócio senão por força, ou pelo menos sobretudo por força de suas ligações com o oficialismo diretor da política do café. Para isso se faz necessário um ativo jogo político que, embora se desenrole nos bastidores (como, compreensivelmente, se desenrolam todos os negócios e manobras do capitalismo burocrático), não deixa de exercer forte impacto sobre os acontecimentos do país.

Tudo isso não são mais que instâncias isoladas que servem apenas para ilustrar o assunto, esclarecer-lhe melhor o sentido e abrir perspectivas para uma análise mais rigorosa e sistemati-zada de uma questão que reputo do maior interesse na compreensão c interpretação de nossa realidade econômica, social e política. Sobretudo desta última que é a matéria que estamos considerando diretamente, e que foi a considerada em A REVOLUÇÃO BRASILEIRA e na contestação de AT, a saber, a posição das diferentes forças atuantes na política brasileira frente à revolução. Se “a política é a economia concentrada”, como AT, citando Lenin, refere com grande acerto, não é possível desconhecer ou subestimar uma categoria social que se caracteriza e discrimina no conjunto da coletividade brasileira por traços específicos bem marcados e

2 Salvador de Toledo Artigas, Perspectivas para o café, “O Estado de São Paulo”, de 9 de abril de 1967

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inconfundíveis – e que vêm a ser a natureza de seus negócios, o seu modo de agir, – seu tipo “profissional” em suma, e que têm um papel relevante nas atividades e relações econômicas do país, como é o caso destes indivíduos e grupos econômicos que fazem das funções públicas um negócio privado, e desviam, para o atendimento de seus interesses particulares, as aten-ções e a direção das atividades governamentais. Um grande número de fatos importantes da vida brasileira, econômica, social e política, somente se explicam satisfatoriamente na base das atividades e interesses daquela categoria de indivíduos. Isto é particularmente sensível, a meu ver, no período posterior à Guerra e à volta do Brasil ao regime constitucional. E é o que procurei desenvolver em A REVOLUÇÃO BRASILEIRA.

Bem sei que o assunto é muito mais complexo e profundo que a súmula e esquema-tização a que fui levado pela natureza do meu estudo. Penso que ele se lilSa, e em parte se confunde mesmo com a Questão bem mais ampla do “Estado Cartorial” brasileiro que Hélio Jaguaribe aborda em seus trabalhos,3 que infelizmente não tiveram seguimento em estudos e análises mais precisos e em profundidade. É precisamente por isso que o assunto não merece a simples rejeição in limine que A T nos traz em seu artigo. Mas, pelo contrário, apela para a consideração atenta de sociólogos e economistas, e sobretudo políticos que descobrirão nele, por certo, uma preciosa chave para a melhor compreensão e interpretação mais autêntica da realidade política brasileira.

3 Entre outros, O nacionalismo na atualidade brasileira,Textos Brasileiros de Política, Instituto Superior de Estudos Brasileiros, Rio de Janeiro, 1958.

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Sobre os 50 anos da “Declaração de março de 1958” do PCB

* Anita Leocádia Prestes é professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ.

Anita Leocádia Prestes*

Introdução

Como sempre, é impossível analisar um documento, como a “Declaração de Março de 1958”, sem inseri-lo em seu contexto nacional e internacional.

Nesse sentido, é fundamental deter-se na impor-tância do nacionalismo não só na sociedade brasileira como na política do PCB, tema que venho trabalhando há algum tempo. Cabe lembrar que, para Caio Prado Jr., o nacionalismo nos anos 50 era comparável, “em termos de importância política e dimensão social aos precedentes movimentos pela independência e pela abolição da escra-vidão” (Moreira, 2003: 169).

Há que assinalar que, à diferença do nacionalismo de Vargas, a partir de 1955 – e mais concretamente, a partir do Governo Kubitschek –, um novo projeto de nacionalismo se apresenta e desenvolve. Era um projeto que “procurava justificar-se pela ênfase no termo desenvolvimentista”, o que, na realidade, significava a “participação do capital estrangeiro na promoção do desenvolvimento nacional”. (Mendonça, 1986: 59-60)

Como é destacado por Mendonça, “o que o nacional-desenvolvimentismo obscurecia era o papel político desem-penhado pelos empresários industriais, dando margem a uma visão distorcida sobre suas articulações políticas com as empresas estatais e com as multinacionais” (idem: 61). Na realidade, a documentação produzida em encontros nacionais da indústria revela que a burguesia brasileira, “ao contrário das visões produzidas por certos segmentos da sociedade sobre ela”, “jamais defendeu a industrialização autônoma” (idem: 66). Segundo a autora, “o projeto desenvolvimentista produzido no período vinha encobrir a articulação política da burguesia nacional, que caminhava em sentido bem diverso daquele enaltecido no discurso nacionalista.” (idem: 67).

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Theotônio dos Santos, ao fazer uma retrospectiva da Era Vargas, analisando o papel da “burguesia nacional”, assinala:

No Brasil, depois de anos de luta por uma alternativa industrial au-tônoma – que pretendia repetir o caminho de desenvolvimento das principais potências capitalistas –, a classe dominante e seus intelectuais começaram a aceitar, nos anos 1960, os limites históricos da proposta nacional e democrática que inspirara a Revolução de 1930, os últimos anos do Estado Novo (1943-45), o segundo governo Vargas (1950-54), uma ala do governo Kubitschek (1955-60) e o governo João Goulart (1961-64). (Santos, T. , 2006: 177)

Prosseguindo nessa avaliação, este autor destaca que a aceitação do novo projeto de nacionalismo ou, em outras palavras, da “doutrina desenvolvimentista”, significava a crítica do “nacionalismo sectário” e a defesa da tese de que “o objetivo do nacionalismo era o de-senvolvimento e somente à luz desse deveria ser julgado o que era bom ou mal para o País” (idem: 178). Tratava-se de uma postura ideológica que buscava “ajustar-se aos novos tempos, em que as corporações multinacionais saltavam as barreiras protecionistas para vir instalar suas indústrias no Terceiro Mundo.” (idem: 178)

Como já foi assinalado por inúmeros estudiosos do período, nos anos 1950, processou-se no país um intenso embate entre diversos tipos de nacionalismo. E, a partir da segunda metade da década, a tendência predominante seria a da chamada “doutrina desenvolvimentista”, ou, em outras palavras, a do nacional-desenvolvimentismo. Na prática, isso significou o fracasso da aposta no papel progressista da burguesia nacional e na possibilidade da implantação de um desenvolvimento capitalista autônomo no Brasil.

Se o PCB, desde o início de sua formação, sofreu forte influência das idéias e das pos-turas nacionalistas presentes na sociedade brasileira da época, nos anos 1940/1950 – quando o nacionalismo se tornou um verdadeiro “divisor de águas” – na expressão de Nelson Wer-neck Sodré (Sodré, 2006: 93) –, a adesão do PCB às teses nacionalistas então em voga seria particularmente marcante.

Embora o PCB não adotasse explícita ou oficialmente a “doutrina desenvolvimen-tista”, foi sob sua influência que, na segunda metade dos anos 1950, alimentou ilusões na possibilidade de um capitalismo autônomo no Brasil. Imaginava-se que uma hipotética burguesia nacional estaria nele interessada, contrapondo-se inclusive à penetração do im-perialismo norte-americano. Não se percebia que a burguesia industrial brasileira capitulara diante da pressão do capitalismo internacional, associando-se em posição subordinada às multinacionais.

Convém lembrar que, a partir de 1948 e, em particular, a partir do Manifesto de Agosto de 1950, o PCB havia abandonado a política anterior de alianças com a chamada burguesia nacional e adotado uma tática de cunho “esquerdizante”, que prognosticava, in-clusive, a derrubada do governo através da luta armada, embora a concepção estratégica da

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revolução em duas etapas fosse sempre mantida pelo Partido, desde os anos 20. Segundo tal estratégia, seria necessária uma primeira etapa – a da revolução agrária e antiimperialista –, que deveria propiciar um desenvolvimento capitalista autônomo, para, numa segunda etapa, ter como objetivo a conquista do socialismo. (Prestes, 1980)

A partir, entretanto, do IV Congresso do PCB, realizado em 1954, tivera início uma re-visão da tática “esquerdizante” anterior, cujos resultados haviam contribuído para o isolamento do Partido, provocado principalmente pelo advento da Guerra Fria e suas consequências no Brasil. Tinha lugar um retorno à tese da aliança com a “burguesia nacional progressista”.

As concepções nacional-libertadoras tradicionalmente presentes no PCB assumiam uma nova modalidade. A “doutrina desenvolvimentista” então em voga levou o Partido a priorizar a aliança com a suposta burguesia nacional tendo em vista a emancipação nacional do jugo imperialista e a do desenvolvimento industrial como caminho para tal emancipação.

Subordinava-se a contradição entre trabalho e capital aos objetivos do desenvolvimento capitalista autônomo. Tais posições ficariam consagradas na Declaração de Março de 1958 (Carone, 1982: 176-196), revelando o predomínio das concepções nacional-libertadoras no PCB.

O apoio à eleição de JK e a revisão da tática “esquerdista”

Como observei anteriormente, no processo de revisão da tática “esquerdista” inau-gurada com o Manifesto de Janeiro de 1948, os comunistas, em outubro de 1954, tiveram como diretriz participar das eleições para o Congresso Nacional, as Assembléias Legislativas Estaduais e as Câmaras Municipais, bem como para numerosos governadores e prefeitos.1 Em 1955, estariam ainda mais empenhados na campanha presidencial para as eleições de outubro daquele ano. Diferentemente de 1950, quando o PCB pregou o voto nulo na escolha do Presidente da República, agora a eleição presidencial era vista como um meio importante de influir na política nacional.

Ainda no início de 1955, em entrevista sobre a sucessão presidencial, Prestes declarava:

Unidos, os patriotas e democratas de todas as classes e camadas sociais poderão colocar na presidência da República um homem que, apoiado no povo, seja capaz de realizar uma política de paz, de defesa da soberania nacional e da indústria nacional, de liberdade e de menos miséria para os trabalhadores e de progresso para o Brasil.2

1 Manifesto Eleitoral do PCB (Resolução do Comitê Central do PCB, julho de 1954). Problemas, nº 61, p. 1-7, setembro de 1954.

2 Entrevista de Luiz Carlos Prestes sobre a sucessão presidencial. Problemas, nº 65, p. 1-3, mar. 1955, p. 3.

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Na mesma ocasião, no Informe apresentado em reunião ampliada do Pre-sidium do Comitê Central, Diógenes Arruda afirmava:

A campanha eleitoral que se inicia, particularmente a sucessão presiden-cial, é de importância decisiva para os destinos do Brasil. Como patriotas e democratas mais consequentes, devemos lançar todas as forças de nosso Partido na campanha eleitoral, convencidos de que o povo unido e organizado poderá derrotar as forças da reação e do entreguismo. [...] A campanha eleitoral é, nas condições atuais, o elo principal a que de-vemos nos agarrar para impulsionar as atividades do partido em todos os terrenos.3

Em Pleno Ampliado do Comitê Central do PCB, realizado em março de 1955, o In-forme lido em nome do secretário-geral destacava que “o acontecimento político de maior importância que agora enfrentamos é a sucessão presidencial.”4 Cabe assinalar que a direção nacional do Partido continuava a defender as diretrizes do Programa de 1954 do PCB, reafir-mando que na luta contra “a política de traição nacional do Governo do Sr. Café Filho”(idem: 21), era necessário a formação de “ampla frente democrática de libertação nacional” a fim de “derrubar o atual regime de latifundiários e grandes capitalistas serviçais do imperialismo norte-americano e substituí-lo pelo regime democrático popular” pela via “revolucionária” (idem: 25; grifos meus).

Considerava-se, entretanto, que “as eleições presidenciais do corrente ano abrem novas e maiores possibilidades para a realização de tais tarefas” (idem: 26). Adiante voltava-se a repetir que a “campanha sucessória à Presidência da República”, “nas circunstâncias atuais, constitui o elo principal na cadeia dos acontecimentos para impulsionar as atividades do Partido em todos os terrenos.” (idem: 28)

Tanto no Pleno de março de 1955 como, posteriormente, em meados desse mesmo ano5, os comunistas desenvolveriam esforços no sentido de lançar um “candidato popular à Presidência da República”, mostrando-se dispostos a colaborar com “todas as organizações patrióticas e populares, com as personalidades democráticas e os partidos políticos ou suas frações” visando alcançar tal objetivo (idem: 31). Apostando num possível candidato do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Prestes, em nome do PCB, enviou carta à Convenção Nacional do PTB, em que tal proposta era apresentada. Quanto às condições para o apoio comunista, afirmava-se o seguinte na carta:

3 ARRUDA, Diógenes. A situação atual e as tarefas dos comunistas (Informe apresentado numa reunião am-pliada do Presidium do Comitê Central, em meados de fevereiro de 1955). Problemas, nº 65, p. 7-27, março de 1955, p. 12.

4 PRESTES, Luiz Carlos. As eleições presidenciais de 1955 e as tarefas de nosso Partido (Informe apresentado ao Pleno Ampliado do Comitê Central, realizado em março de 1955). Problemas, n 167 66, p. 14-41, abril de 1955, p. 14.

5 Cf. Prestes defende uma candidatura popular à Presidência da República (entrevista de Prestes). Problemas, nº 67, p. 1- 4, maio-junho de 1955.

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O Partido Comunista do Brasil reivindica apenas que na plataforma elei-toral comum sejam incluídas a defesa intransigente da paz e da soberania nacional, a defesa do petróleo brasileiro e demais riquezas nacionais, a proteção à indústria nacional, a defesa da Constituição e da legislação trabalhista, medidas práticas contra a carestia de vida, visando a melhoria efetiva da situação dos trabalhadores das cidades e do campo.6

Diante da dificuldade de chegar a um entendimento com o PTB para o lançamento de um “candidato popular” às eleições presidenciais, Prestes declarava, em entrevista publicada em julho de 1955,

Acreditamos que nas atuais condições a apresentação de um novo can-didato à Presidência da República dificultaria ainda mais a necessária unidade de todos os democratas e patriotas que querem defender a Constituição e por isto estamos dispostos a apoiar, entre os candidatos já indicados, aquele em torno do qual for possível a organização da mais ampla frente democrática, em torno da qual se torne possível o desen-cadeamento no país inteiro de uma poderosa campanha de massas em defesa da Constituição, pela realização de eleições livres, em defesa das conquistas dos trabalhadores.7

Em agosto de 1955, realizava-se o Pleno Ampliado do Comitê Central do PCB, em que seria definida a posição dos comunistas na sucessão presidencial.8 Na ocasião foi decidido o apoio do PCB às candidaturas de Juscelino Kubitschek e João Goulart à Presidência e Vice-Presidência, respectivamente, com o lançamento de o “Manifesto Eleitoral do Partido Comunista do Brasil”. Nesse documento, afirmava-se que o apoio era concedido, pois tais candidatos, “através de pronunciamentos públicos, já se declararam dispostos à luta contra o golpe, em defesa da Constituição e das liberdades democráticas e pela melhoria das condições de vida do povo”.9 A seguir, dizia-se no Manifesto:

A vitória das candidaturas Kubitschek e Goulart será a derrota dos gene-rais golpistas, dará um novo impulso às forças democráticas e patrióticas e poderá determinar importante modificação na correlação de forças políticas, favorável à democracia, à paz, à independência e ao progresso do Brasil. (idem: 8)

6 Prestes dirige-se à Convenção do P. T. B. (Luiz Carlos Prestes, Secretário Geral do Partido Comunista do Brasil, enviou à Convenção do P. T. B. a seguinte carta). Problemas, nº 67, p. 5-8 , maio-jun. de 1955, p. 7.

7 Prestes fala à Nação (entrevista concedida aos órgãos da imprensa popular). Problemas, nº 68, p. 1- 6, julho de 1955, p. 5-6.

8 PRESTES, Luiz Carlos. A posição do Partido na sucessão presidencial e nossas tarefas atuais (Informe apre-sentado, em nome do Presidium do Comitê Central, ao Pleno Ampliado do Comitê Central, realizado nos dias 9, 10 e 11 de agosto de 1955). Problemas, n• 69, p. 11-31, agosto de 1995.

9 Manifesto Eleitoral do Partido Comunista do Brasil. Problemas, nº 69, p. 7-10, agosto de 1955, ass. O Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, p. 8.

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Percebe-se que a direção do PCB, diante da situação existente no país, passara a centrar sua tática no processo eleitoral, na defesa das liberdades democráticas, deixando de lado, na prática, as diretrizes de “derrubada do governo Café Filho”, pela “via revolucionária”, e de formação da Frente Democrática de Libertação Nacional, inscritas no Programa do Partido, aprovado no IV Congresso, havia menos de um ano. Centrava-se a atividade dos comunistas na “luta em defesa das liberdades democráticas e da Constituição”. Segundo entrevista de Prestes, era necessário apoiar

[...] com decisão e energia a atividade organizadora do Movimento Nacional Popular Trabalhista, amplo movimento de frente única e sem partido, bem como de todas as demais organizações que se levantarem em defesa das liberdades democráticas e da Constituição, contra as ameaças de golpe militar.10

Embora isso não fosse reconhecido nos documentos partidários, fica evidente que o Programa do IV Congresso estava sendo abandonado, uma vez que a realidade nacional não se coadunava com suas diretrizes “esquerdistas”, herança da orientação política adotada pelo PCB a partir de 1948. A mudança levada a cabo na tática partidária permitiu aos militantes comunistas participarem ativamente da campanha eleitoral de 1955. Segundo M. V. Benevides, “o apoio dos comunistas à candidatura de Juscelino Kubitschek e Goulart foi importante para garantir sua vitória”, embora Tancredo Neves não acreditasse que a vitória se tenha dado graças aos votos comunistas, que não teriam chegado a 150 mil em todo o país (Benevides, 1979: 97). De acordo com outras avaliações, os votos dos comunistas teriam atingido cerca de 400 mil (idem: 97). Segundo Hugo de Faria11, nesse período, “os políticos de todos os partidos, da UDN, do PTB, do PSD, queriam a aliança com os comunistas para ganhar voto” (Gomes, 2007: 93).

Frente ao golpe de 11 de novembro de 1955 – tentativa de impedir a posse dos eleitos a 3 de outubro daquele ano –, o PCB apoiou imediatamente o ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, e as forças que impediram tal desfecho, patrocinado pelos setores mais conservadores e ligados aos interesses do grande capital internacionalizado. A direção do Partido lançou de imediato vários documentos se solidarizando com a decisão do Con-gresso Nacional “contra a volta à presidência da República do sr. Café Filho” e reclamando do novo governo de Nereu Ramos medidas práticas para “reduzir à impotência o grupelho de conspiradores golpistas”12. Em Manifesto do P. C. B., datado do próprio dia 11 de novembro, declarava-se que, diante da ameaça golpista,

[...] os comunistas, que sempre se bateram pelo respeito às liberdades democráticas e contra o golpe fascista, lutam ombro a ombro com todas as forças antigolpistas e manifestam seu decidido apoio às medidas ado-tadas pelas Forças Armadas, pelo Parlamento e pelos partidos políticos

10 Entrevista de Luiz Carlos Prestes. Problemas, nº 69, p. 1-3, agosto de 1955, p. 2 e 3.11 Hugo de Faria foi Ministro Interino do Trabalho em 1954, quando da demissão de Jango dessa pasta.12 Proclamação de Luiz Carlos Prestes. Problemas, nº 71, p. 1-2, nov.-dez. de 1955, p. 1.

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em defesa da Constituição e contra os aventureiros golpistas, inimigos da Pátria.13

Em outro Manifesto, de janeiro de 1956, o PCB registrava que “em 11 de novembro, o povo brasileiro obteve uma grande vitória em sua luta pelas liberdades, contra as tentativas do imperialismo norte-americano de intervir nos negócios internos da nação”, acrescentando que “o Exército e o Congresso Nacional, expulsando do governo a camarilha golpista de Café Filho, Carlos Luz, Eduardo Gomes, etc., atenderam aos anseios da maioria esmagadora da nação e contaram por isto com o apoio entusiástico de todos os patriotas e democratas”.14 Nesse documento, a direção do PCB dirigia-se aos brasileiros e aos trabalhadores, concla-mando-os a mobilizar-se

[...] contra qualquer golpe de Estado reacionário, venha de onde vier, lutemos pelas liberdades democráticas e em defesa da Constituição, pela suspensão do estado de sítio, pela posse dos eleitos em 3 de outubro, pela legalidade do Partido Comunista, pela anistia para os condenados e processados por motivos políticos, pela revogação das leis de segurança e de imprensa! (idem: 10-11)

Verifica-se que, na realidade, o PCB havia deixado de lado a tática “revolucio-nária” com vistas à “derrubada do governo”, adotando a luta pelas liberdades de-mocráticas como centro de sua política. Tal orientação seria confirmada no Pleno Ampliado do Comitê Central, de janeiro de 1956, com a aprovação do Informe apresentado em nome de Luiz Carlos Prestes.15 Nesse documento destacava-se:

Lutando em defesa das liberdades democráticas e da Constituição, contra qualquer golpe de Estado ou militar reacionário, venha de onde vier, devemos intensificar ainda mais a luta em defesa da paz e da inde-pendência nacional, não poupar esforços para elevar sempre mais a luta patriótica em defesa do petróleo e demais riquezas nacionais, contra a carestia de vida e pela melhoria das condições de vida do povo. A ação política que dirigimos pelo avanço democrático é inseparável de nossa participação ativa e à frente da classe operária por todas as reivindicações dos trabalhadores. É indispensável fazer de cada fábrica, de cada fazenda, de cada concentração camponesa importante um baluarte em defesa das liberdades democráticas [...]” (idem: 26; grifos meus).

13 Manifesto do P. C. B., Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1955, ass. O Comitê Central do Partido Comunista do Brasil. Problemas, nº 71, p. 3-4, nov.-dez. de 1955, p. 3; cf. também: Novo e Importante Manifesto do P. C. B., Rio de Janeiro, 14 de novembro de 1955, ass. O Comitê Central do Partido Comunista do Brasil. Problemas, nº 71, p. 5-7, nov.-dez. de 1955.

14 Manifesto do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil. Janeiro de 1956, ass. O Comitê Central do Partido Comunista do Brasil. Problemas, nº 72, p. 7-11, jan.-fev. de 1956, p. 8.

15 PRESTES, Luiz Carlos. A situação atual, a tática e as tarefas do Partido Comunista (Informe apresentado em nome do Presidium, no Pleno Ampliado do Comitê Central, de janeiro de 1956). Problemas, nº 72, p. 12-34, jan.-fev. de 1956.

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A crise do movimento comunista (1956/57) e a Declaração de Março de 1958

No início do Governo Kubitschek, quando o nacional-desenvolvimentismo adquiria foros de corrente ideológica hegemônica no pensamento brasileiro, o movimento comunista internacional seria sacudido por grave crise, desencadeada por dois acontecimentos mun-diais da maior relevância, ocorridos no ano de 1956. Em primeiro lugar, a realização do XX Congresso do PCUS16 com a denúncia dos crimes de Stalin no Relatório Secreto apresentado por N. Khruchov e, em segundo, a derrota da rebelião húngara, com a intervenção militar soviética. Explodia a crise do chamado stalinismo, que abalou profundamente a todos os partidos comunistas então existentes no cenário mundial.

Embora não caiba aqui uma análise de tão controvertido fenômeno, há que assinalar que o PCB não poderia ficar fora de tal cataclismo. Em reunião do seu Comitê Central, realizada em outubro daquele ano, ficou decidido abrir o debate sobre os ensinamentos do XX Congresso do PC da URSS, declarando-se que seriam publicados na imprensa parti-dária “os trabalhos dos membros do Partido, inclusive daqueles que tenham divergências a apresentar”. Escrevia-se a seguir:

Que todos falem, discutam e sugiram, fazendo pleno uso da liberdade de opinião e do direito de crítica e autocrítica. Que se estabeleça viva e fecunda luta de opiniões à base de princípios, em busca de soluções justas para os problemas. (Projeto de Resolução do C. C. do P. C. B., 1956: 153)

A luta interna na direção do PCB assumiria, entretanto, sérias proporções, exteriorizadas tanto na imprensa partidária17 como nos graves conflitos que viriam a abalar toda a estrutura partidária. Em novembro de 1956, L. C. Prestes – refletindo a preocupação da maioria do Comitê Central com a defesa da URSS, considerada a “pátria do socialismo”, e a unidade do Partido – publicava carta sobre o debate político, declarando:

Não podemos de forma alguma reconhecer a quem quer que seja o direito de propagar no Partido as idéias do inimigo de classe. E constituiria um crime que, a pretexto de livre discussão, a imprensa feita para servir ao povo, para educá-lo politicamente, passasse a constituir instrumento de confusão e de deseducação do povo. (Carta da L. C. Prestes ao C. C. do P. C. B, 1956: 156)

Diante de tais argumentos, os debates seriam praticamente encerrados, embora a crise partidária se aprofundasse e prosseguisse durante todo o ano de 1957 (Carone, 1982: 143-202). Após a expulsão de diversos dirigentes e de muitos militantes das fileiras partidárias, assim como do afastamento de inúmeros membros do Partido de suas organizações, a uni-

16 PCUS – Partido Comunista da União Soviética.17 Cf. Voz Operária e Imprensa Popular, anos de 1956 e 1957.

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dade partidária seria restabelecida, com certa dificuldade e de forma precária, em torno da liderança de L. C. Prestes e da já mencionada Declaração de Março de 1958.

O exame dos debates travados na imprensa comunista daqueles anos, assim como da documentação produzida pelos diversos grupos em luta durante a crise partidária, revela com suficiente clareza os fatores que efetivamente desencadearam a cisão ocorrida nas hostes do PCB. O desencanto com o PCUS e a liderança de Stalin e, de uma maneira geral, com a URSS e o socialismo real, então existente no Leste europeu, foi uma das causas mais importantes da crise que viria a abalar as convicções revolucionárias de inúmeros dirigentes e militantes do Partido. Para quem, durante anos a fio, havia defendido a URSS e, principalmente, enalte-cido e cultuado a personalidade de Stalin, era difícil aceitar e explicar para os companheiros e aliados as notícias e os informes que chegavam ao seu conhecimento, inclusive através da imprensa burguesa, como foi o caso do célebre Relatório Secreto anteriormente citado.

Tal desencanto teria como principal consequência um forte surto de anti-sovietismo, que atingiria em primeiro lugar a intelectualidade do Partido, mais sensível que outros setores da militância comunista às influências dos meios de comunicação controlados pelas classes domi-nantes. Muitos dos artigos publicados durante o debate tinham como tônica principal os ataques à URSS, ao PCUS e ao socialismo real, defendendo, ao mesmo tempo, o afastamento do PCB de qualquer influência soviética ou ligação com o campo socialista ou o PCUS. O internacio-nalismo proletário era abandonado, dando lugar a posições nacionalistas exacerbadas.18

Ao mesmo tempo, na esteira das críticas feitas ao chamado “culto à personalidade de Stalin”, denunciava-se o “culto à personalidade de Prestes”, assim como as práticas anti-democráticas e autoritárias vigentes na direção do Partido e amplamente empregadas, em particular, pelo secretário de organização do Comitê Central do PCB, Diógenes de Arruda Câmara, mas também por muitos outros dirigentes e militantes partidários (Cf. Carone, 1980: 494-497).

No que se refere à orientação política adotada pelo PCB, é interessante notar que a crise do movimento comunista internacional não chegou a atingi-la com profundidade. Serviu de pretexto, principalmente, para os elementos insatisfeitos ou desiludidos com as dificuldades encontradas no caminho da luta revolucionária – em especial com as frequentes violações da democracia interna nas organizações partidárias – se afastarem do PCB e, em grande parte dos casos, da própria luta revolucionária, embora muitos desses elementos não estivessem isentos de atitudes antidemocráticas e autoritárias em sua prática partidária.

É verdade que algumas teses inovadoras aprovadas no XX Congresso do PCUS exerceram considerável influência na maioria dos partidos comunistas da época, incluindo o PCB. Tenho em vista principalmente a tese da possibilidade de evitar-se a terceira guerra mundial e de, consequentemente, garantir-se a coexistência pacífica entre os sistemas socialista e capitalista.

18 Cf. Voz Operária e Imprensa Popular, anos 1956 e 1957; Novos Tempos, nºs 1, 2, 3, 4; Barata (1957); Boletim da Corrente Renovadora (DF), nº 1, 2a quinzena, jun., 1957 (Documento datilografado, 10 pág.); Manifesto de Convocação da Convenção de Fundação do Movimento Socialista Renovador, São Paulo, 7/9/1957. (Impresso, 2 pág.); O órgão central e a democratização do Partido. Rio de Janeiro, s.e.,1957 (folheto impresso).

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Também a defesa de um “caminho pacífico” para o socialismo em países em que as condições para tal estivessem presentes. Teses estas que foram incorporadas às resoluções tomadas pelo PCB nos anos que se seguiram ao Congresso soviético (Carone, 1982: 143-202).

A crise deflagrada no PCB levou à formação de dois grupos principais: 1) Os chama-dos “renovadores”, liderados por Agildo Barata – conhecido dirigente do Comitê Central do Partido, que acabaria sendo expulso de suas fileiras –, os quais, em grande parte, abandonaram a organização partidária. 2) A maioria dos membros da direção que se rearticulou em torno da liderança de L. C. Prestes, reorganizou o Partido e conseguiu garantir sua sobrevivência enquanto organização.

Havia um terceiro grupo, muito reduzido, defensor da tática “esquerdista” anteriormen-te adotada que, politicamente isolado, seria afastado do Comitê Central e, posteriormente, romperia com o PCB, dando origem ao PCdoB.

Ao analisar os documentos produzidos tanto pela direção do PCB quanto pelo cha-mado grupo “renovador”, sem pretender abordar os múltiplos aspectos dos debates então travados, percebe-se que, no que se refere aos caminhos da revolução brasileira, havia plena coincidência de posições entre os dois grupos. Ambos estavam sob a influência das concepções nacionalistas então em voga no cenário político brasileiro.

Agildo Barata, por exemplo, ao expor as teses defendidas pela chamada “corrente renova-dora”, deixava claro que o centro de suas preocupações era o nacionalismo, definido como

modo de nos afirmarmos como nação soberana [...]. Significa, sobre-tudo libertação do país dos trustes internacionais que nos exploram.[...] Significa desenvolver industrialmente o país e modificar a arcaica estrutura agrária. Em suma: completar a formação da nação e valorizar o homem.”.(Barata, 1957: 5-6)

Prosseguindo, Agildo Barata afirmava:

Os objetivos atuais de nossa Corrente Renovadora são os de lutar para dar à nossa Pátria um governo nacionalista, democrático e progressista, que seja a expressão das forças integrantes de um amplo movimento patriótico. Os estudantes – o movimento universitário, em particular; os operários – através de seus sindicatos; os intelectuais, em especial os militares estão nas melhores condições para ser as forças básicas desse movimento. (idem: 6; grifos meus)

Outros afiliados à Corrente Renovadora deixavam claro que “o nacionalismo é a forma que deve assumir a luta pelo socialismo em nosso país, na atual etapa” (Martins e Salustino, 1957: 16).

Chama a atenção o fato de a proposta de um “governo nacionalista e democrático”, assumida pelos “renovadores”, aparecer como ponto central na Declaração de Março de 1958 (Carone, 1982: 176-196), aprovada pelo Comitê Central do PCB, após a expulsão e o afastamento dos adeptos daquela corrente. Afirmava-se nessa Declaração:

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Na situação atual do Brasil, o desenvolvimento econômico capitalis-ta entra em choque com a exploração imperialista norte-americana, aprofundando-se a contradição entre as forças nacionais e progressistas em crescimento e o imperialismo norte-americano que obstaculiza a sua expansão.

[...]

O golpe principal das forças nacionais, progressistas e democráticas se dirige, por isso, atualmente, contra o imperialismo norte-americano e os entreguistas que o apóiam. A derrota da política do imperialismo norte-americano e de seus agentes internos abrirá caminho para a solução de todos os demais problemas da revolução nacional e democrática no Brasil. (idem: 184; grifos meus)

Adiante, nesse mesmo documento, destacava-se o papel da burguesia nacional – aquela “interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia nacional”. Juntamente com o proletariado, os camponeses, a pequena burguesia urbana e até mesmo setores de latifundiários, “que possuem contradições com o imperialismo norte-americano”, a burguesia nacional poderia formar uma ampla frente única que garantisse a conquista, através do caminho eleitoral, de um “governo nacionalista e democrático”. (idem: 185, 193-195; grifos meus).

A subordinação do conflito entre trabalho e capital ao empenho para alcançar um capitalismo autônomo no Brasil era reafirmada, ao declarar-se que o proletariado, “embo-ra explorado pela burguesia” tem o interesse de “aliar-se a ela, uma vez que sofre mais do atraso do país e da exploração imperialista do que do desenvolvimento capitalista” (idem: 187). Novamente, não se percebia que a burguesia industrial brasileira havia se associado, em posição subordinada, aos grupos monopolistas estrangeiros, tornando inviável, como os acontecimentos posteriores acabariam mostrando, qualquer aposta em um desenvolvimento independente para o Brasil.

Mais uma vez, tinha lugar uma guinada tática na política do PCB – o abandono da luta armada e a adoção do caminho pacífico e eleitoral –, sem que mudasse a estratégia da revolução, agrária e antiimperialista. A partir da Declaração de Março de 1958, sintomatica-mente essa primeira etapa da revolução passaria a ser denominada de nacional e democrática (Prestes, 1980).

A consulta a outros documentos da Corrente Renovadora revela que, antecipando a orientação consagrada na Declaração de Março, a tese de um governo nacionalista e demo-crático, com a participação da burguesia nacional e via caminho pacífico e eleitoral, foi a tônica geral. Armênio Guedes, antigo dirigente do PCB, que viria a participar ativamente da elaboração da Declaração de Março, ao escrever artigo intitulado “Algumas idéias sobre a Frente Única no Brasil”, na revista Novos Tempos, lançada pela Corrente Renovadora,

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defendia a proposta de um governo nacionalista e democrático, a ser conquistado pela via eleitoral, afirmando:

Será, talvez, um governo que levará a democracia, à medida que ela avance, a ter de encarar necessariamente a questão das transformações revolucionárias.

[...]

Existe a possibilidade menos imediata, porém mais provável, de formar um governo desse tipo como resultante das eleições de 1958 e 1960. (Guedes, 1957: 31)

Evidencia-se a aposta na realização de “transformações revolucionárias” sem recorrer à luta revolucionária, mas através de um processo evolutivo, pela via eleitoral. Entretanto, o objetivo a ser atingido seria o mesmo de antes – o desenvolvimento de um capitalismo autônomo, sendo, por isso, fundamental a aliança com a burguesia nacional. Isaac Akcelrud, destacado jornalista e militante comunista, publicou artigo, no número seguinte de Novos Tempos, para defender a importância de tal aliança, considerando o “papel progressista da burguesia nacional”, interessada na industrialização do país. (Akcelrud, 1957: 10)

Cabe ressaltar que, mesmo aprovando as teses da Declaração de Março, L. C. Prestes revelaria preocupação com o perigo de uma “tática reformista”. Em artigo publicado na mesma ocasião, escrevia o secretário-geral do PCB:

A crítica superficial de nossos erros políticos pode conduzir agora ao erro oposto, à preocupação exclusiva com o movimento que se processa gra-dualmente, abandonando a meta revolucionária da classe operária. Ora, uma tática que se baseia apenas nas conquistas imediatas e não objetiva atingir as transformações radicais nada tem de uma tática revolucionária, mas, pelo contrário, é uma tática reformista, que nos colocaria a reboque da burguesia. (Prestes, L. C., 1958: 35)

A comparação dos documentos citados é reveladora, pois deixa claro que tanto os “renovadores” quanto a nova direção do PCB, reestruturada após a crise dos anos 1956/57, estavam sob a influência da ideologia do nacional-desenvolvimentismo, ou seja, da chama-da “doutrina desenvolvimentista”, segundo a qual caberia um papel destacado à burguesia nacional no processo de conquista da independência nacional. Na realidade, incorria-se no desvio apontado por Prestes, de abandono da “meta revolucionária da classe operária”. O nacionalismo, mais uma vez, levava a melhor entre os comunistas brasileiros. E tal situação resultava muito mais da pressão ideológica exercida pela corrente hegemônica no pensamento político brasileiro da época do que de possíveis influências do stalinismo ou das teses defen-didas pelo PCUS e o movimento comunista internacional, como algumas vezes foi afirmado

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por autores que abordaram o tema .(Santos, 1988: 224; Santos 1994: 33; Peralva,1962: 266-267; Menezes, 2002: 3; Falcão, 1996: 110, 147; Alem, 1981: 169, 175)

A comparação entre as várias formas de nacionalismo que estiveram presentes em di-versos momentos da trajetória política dos comunistas brasileiros contribui para que melhor se possa perceber a permanência nas fileiras do PCB da ideologia nacional-libertadora. Ideologia esta que, encontrando ampla receptividade na sociedade brasileira dos anos 1950, se sobrepôs à ideologia do proletariado, ou seja, contribuiu para que o PCB continuasse a ser, como antes, um partido progressista, movido pelos ideais nacionalistas e democráticos, cuja real implementação se tornara inviável devido às características do desenvolvimento capitalista brasileiro, subordinado e associado ao grande capital internacionalizado.

Finalmente, cabe destacar que as tendências reformistas presentes na Declaração de Março de 1958 contribuíram para que se difundisse a idéia de que, com a aprovação desse documento, os comunistas teriam passado a valorizar a luta pela democracia, em contraposição a posições anteriores, quando defendiam o caminho armado para a revolução brasileira. Na realidade, a meu ver, as tendências reformistas, fruto da influência da ideologia do nacional-desenvolvimentismo, significaram a adesão à ideologia burguesa e, consequentemente, a defesa da democracia burguesa, pois, segundo o marxismo, não existe uma democracia pura, uma democracia que não tenha caráter de classe. A presença de tais ilusões de classe ajudam a compreender a derrota sofrida pelos comunistas e pelas “esquerdas” no Brasil, com o golpe de 1964.

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PERIÓDICOS CONSULTADOS– Voz Operária, anos 1956 e 1957.

– Imprensa Popular, anos 1956 e 1957.

– Problemas, nºs. 8, 19, 29, 54, 64.

– Novos Tempos, Rio de Janeiro, nºs. 1,2, 3, 4.

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BARATA, Agildo. Entrevista de Agildo Barata ao “Estado de S. Paulo”, jun., 1957 (Folheto impresso, 8 pág.).

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BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. O governo Kubitschek: desenvolvimento econô-mico e estabilidade política, 1956-1961. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

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Movimento operário e teoria da violência – Algumas notas para um excursus histórico-teórico*

Andrea Catone**

ENgELS: CRíTICA DA TEORIA DA VIOLÊNCIA COMO “FATO hISTÓRICO FUNDAMENTAL”

Na concepção materialista da história, assim como Marx e Engels a expuseram nos primeiros capítulos da Ideologia Alemã (1846), a violência não ocupa um papel de primeiro plano, não se apresenta como base da constituição das relações de produção, nem da divisão em classes da sociedade. Longe de ter um valor catártico e liberatório – como muita literatura quis interpretar – para o marxismo a violência é compreendida e historicizada dentro das relações de produção. Nesse sentido, Engels é explícito: à Eugen Düring, que considerava a violên-cia política imediata como elemento primordial da história, ele rebatia que nenhum tipo de violência é primigênia, pois nela sempre estão pressupostas as condições de produção que fundamentam as relações sociais. Nisto o marxismo contra-põe-se a toda forma de visão religiosa de um pecado original, de um homicídio, de um fratricídio – Caim versus Abel – que funda a história humana. Vale realçá-lo hoje, quando alguns falam em “violência” de forma abstrata e metafísica, fora de qualquer pormenorização histórica.

É singular que o debate sobre violência/não violência desenvolvido pela esquerda nestes últimos anos ignorou a reflexão de Engels que à “teoria da violência” dedicou expli-citamente três capítulos do Antidühring (os capítulos II, III e IV da segunda parte, dedicados à “Economia política”).

No volume editado em 1878, que inclui uma série de artigos publicados no Vorwärts de Lípsia entre 1877 e 1878, em polêmica com Dühring, Engels sublinha e reafirma que na concepção materialista da história a “violência política imediata” não é o fundamento das relações de produção, não é o “fato histórico fundamental”, o “fato primordial”.

* Tradução de Silvia De Bernar-dinis

** Professor da Universidade de Bari – Itália

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“A crença de que os eventos políticos são um fator decisivo da história é antiga como a própria historiografia e a ela se deve, principalmente, o fato de que saibamos tampouco a respeito da evolução que impulsiona os povos, que se cumpre silenciosamente no fundo desta cena ruidosa”1. “Em geral – precisa Engels – a propriedade privada não surge na História como resultado do roubo e da violência. Onde quer que apareça a propriedade privada, ela nasce como consequência das mudanças ocorridas nas condições de produção e de troca, no interesse do desenvolvimento da produção e da intensificação do comércio: portanto, ela responde a causas econômicas. Neste processo, a violência não desempenha nenhum papel2”. “Todo processo [da passagem da produção de mercadorias para a produção capitalista] se explica por causas puramente econômicas, sem necessidade de se recorrer ao argumento do roubo, nem ao da violência, do Estado, nem mesmo a qualquer outra intromissão de caráter político”. Nesta passagem Engels refuta a tese pela qual “as condições políticas são a causa decisiva da ordem econômica”. Na luta contra o poder feudal, a arma decisiva da burguesia foi sua potência econômica em constante crescimento: “durante toda esta luta, a violência política esteve ao lado da nobreza, com a única exceção de um período em que o poder real julgou conveniente utilizar a burguesia contra a nobreza, para manter sob controle uma camada com a outra [...] As “condições políticas” permaneciam invariáveis, mas a situação econômica, em sua evolução, as ultrapassava [...] a revolução burguesa pôs fim a tudo isto. Mas não porque a burguesia [...] adaptou a situação da economia às condições políticas – que era precisamente o que nobreza e monarquia tentaram fazer em vão durante muitos anos – mas pelo contrário, varrendo todas aquelas normas políticas velhas e apodrecidas, e criando “condições políticas” mais de acordo com a nova “situação econômica”, onde esta pudesse viver e se desenvolver”. E a burguesia desenvolveu-se ao ponto de ocupar agora a posição da feudalidade em 1789, distanciando-se da atividade produtiva e tornando-se – como o foi a nobreza – uma classe que embolsa rendas. “E quando a burguesia apela para a violência a fim de conter a “ordem econômica” que marcha rumo à beira do abismo, isso demonstra apenas que ela é escrava da mesma ilusão do Sr. Dühring, ao supor que o “elemento primitivo”, a “violência polí-tica imediata”, lhes permitirá transformar a “ordem econômica” e sua inelutável evolução, como se os efeitos econômicos da máquina a vapor e de todo o maquinário moderno por ela movimentado – a rede do mercado mundial, dos bancos e do crédito, nos tempos atu-ais – pudessem ser varridos do mundo por meio dos canhões Krupp e dos fuzis Mauser»3.

Esta posição de Engels – colocada, não esqueçamos, na seção do Antidühring dedicada à economia política e voltada à defesa dos princípios fundamentais do materialismo histórico – parece excessivamente inclinada para o lado de um determinismo econômico que põe em segundo plano a questão do Estado e do domínio de classe, das estratégias e das práticas de manutenção de tal domínio, prefigurando demais apressadamente a passagem a uma nova ordem econômica socialista. A dialética “estrutura/superestrutura”, a influência recíproca de ambas parece resolver-se em um percurso unilinear de determinação da superestrutura política pela estrutura econômica.

1 Cf. F. Engels, Antidühring, p. 91-922 Grifos nossos Ivi, p. 170-176.

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ENgELS: DUPLA FUNÇÃO – REVOLUCIONáRIA E REACIONáRIA – DA VIO-LÊNCIA NA hISTÓRIA DIANTE DA EVOLUÇÃO ECONôMICA

A polêmica de Engels contra Dühring está voltada ao combate contra a concepção metafísico-religiosa enraizada na teoria da violência como fator primigênio e fundador das relações sociais:

Para o Sr. Dühring, a violência é a maldade absoluta. O primeiro ato de violência, para ele, é o pecado original, reduzindo-se toda a sua exposição a uma jeremíada sobre a violência, este poder diabólico que contagiou todos os fatos históricos com a tabe do pecado original. Sabemos, porém, que a violência desempenha também, na sociedade, um papel muito diferente, um papel revolucionário; sabemos que ela é, para usar uma expressão de Marx, a parteira de toda sociedade antiga, que traz em suas entranhas uma outra nova: que ela é um instrumento por meio do qual se move a socieda-de, fazendo saltar aos pedaços as formas políticas fossilizadas e mortas. Mas, a respeito disto, nada nos diz o Sr. Dühring. Reconhece unicamente, entre suspiros e gemidos, que, para derrubar o regime econômico de exploração, não há outro remédio senão usar a violência... desgraçadamente! Pois o emprego da violência desmoraliza sempre a quem a utiliza. E diz-nos essas palavras, diante do elevado impulso moral e espiritual que emana de toda revolução triunfante! [...] E seria esta mentalidade de pregador, fraca, sem seiva e sem força, a que pretenderia impor sua doutrina ao partido mais revolucionário que a história conhece? 4

Ainda em O Antidühring, texto que teve uma vasta difusão (Antonio Labriola o definiu um “exemplo insuperado de literatura socialista”), Engels esclarece, ainda que não se possa pôr a violência como fundamento das relações de produção (como queria uma concepção redutiva e esquemática que ignora as categorias de modo de produção, forças produtivas, re-lações de produção), ela, todavia desenvolve a função de “parteira de toda sociedade antiga que traz em suas entranhas uma outra nova”, de “instrumento por meio do qual se efetiva o movimento da sociedade”. A metáfora da parteira, famoso trecho extraído do Livro I do Capital, de Marx, adapta-se muito bem ao discurso de Engels contra Dühring, ao recusar expressamente o fato de que a violência possa produzir algum bem material (a riqueza não nasce do furto ou do roubo, pois, para roubar algo, este algo deve ter sido primeiramente produzido); da mesma forma, a parteira não dá vida ao recém-nascido (fora de metáfora: as novas relações de produção, as novas forças produtivas, o novo modo de produção), mas apenas ajuda e acelera seu nascimento.

A teoria da revolução social exposta por Engels procede dentro de um esquema linear: as forças econômicas da nova sociedade – ao tornarem-se maduras no seio da velha sociedade

4 Ivi, p. 195-196. Il corsivo è mio, A. C.

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– derrubam violentamente o invólucro político que as envolve (como o pinto que quebra a casca para sair para a vida).

O texto de Engels permite distinguir entre duas formas históricas de violência política (é proveitoso realçar o termo “político”, pois de outra maneira o discurso tornar-se-ia indefinido e genérico): a reacionário-conservadora e a revolucionária. A primeira (a mais frequente!) é a das classes dominantes, voltada à manutenção de um poder ameaçado pela rebelião ou pela insurgência dos explorados e dos oprimidos, ou ainda pela potencial ascensão de uma nova classe revolucionária; a segunda é a dos revolucionários, voltada a romper o invólucro da superestrutura jurídico-estatal que comprime as novas relações econômico-sociais que estão nascendo no seio da antiga sociedade. “Em primeiro lugar a violência5 política se baseia, sempre, desde as suas origens, numa função econômica, social, e ela se intensifica à medida que, com a dissolução das comunidades primitivas, os indivíduos se convertem em produtores privados, estranhando-se mais ainda em relação aos que dirigem as funções sociais coletivas. Em segundo lugar, assim que a força política adquirir autonomia em relação à sociedade, convertendo-se de serva a dona, pode passar a atuar em dois sentidos diferentes. Ela pode atuar no sentido e na direção do regular desenvolvimento econômico. Neste caso, não há nenhuma discrepância entre os dois fatores, acelerando-se o processo econômico. Outras vezes, entretanto, a força política atua em sentido contrário e, nestes casos, acaba sempre por sucumbir, com raras exceções, frente ao vigor da evolução econômica”. Pois, continua Engels, “na imensa maioria dos casos em que a conquista é duradoura, o conquistador, se for inferior ao conquistado, deve submeter-se à ordem econômica deste último”. Quando, pelo contrário, prescindindo dos casos de conquista, “o poder estatal interno de um país entra em oposição com seu desenvolvimento econômico, como sempre ocorreu com o poder político num determinado grau de evolução, nestes casos, a luta termina sempre com a derrocada do poder político. Sem exceção e inexoravelmente, o desenvolvimento econômico abre o caminho”. A este propósito, nosso autor propõe dois casos evidentes: de um lado, o modelo clássico, da grande revolução francesa, exemplo “deslumbrante” de ruptura do velho invólu-cro político feudal por parte da nova sociedade burguesa; do outro lado, a impossibilidade, apesar da força militar, de reintroduzir a velha ordem política feudal numa sociedade em que as forças produtivas da indústria capitalista estão em fase de desenvolvimento: o soberano reacionário Frederico Guilherme IV, da Prússia, após 1848, “apesar de seu magnífico exército”, não conseguiu “fundir as corporações medievais e outras quaisquer quimeras românticas nas estradas de ferro, nas máquinas a vapor, e em toda a grande indústria do seu país”6.

A experiência histórica das revoluções e dos golpes de estado reacionários e dos fas-cistas no século XX confirmaram no conjunto o implante de Engels ao problema do duplo papel da violência política na história. A forma em que Engels aborda e enquadra dentro

5 Na versão italiana, o termo foi traduzido com “força”, mas Engels usa o termo “Gewalt”, traduzido nos precedentes passos, com “violência”. Cf. Marx-Engels Werke (MEW), Dietz Verlag, Berlin, 1955 sgg., vol. XX, p. 169. O título dos três capítulos do Antidühring que estamos tratando é “Gewaltstheorie”, teoria da violência. Também no celebrado passo de Marx que usa a metáfora da parteira, citado à letra por Engels, o termo alemão usado é “Gewalt”. Cf. K. Marx, Das Kapital, Dietz Verlag, Berlin, 1984, Livro I, p. 779.

6 Antidühring, op. cit., p. 194-195.

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da concepção materialista da história a questão da “violência política” fornece a chave para uma abordagem fecunda e historicamente determinada à questão: o nexo fundamental entre forças produtivas, relações de produção e recurso ao uso da violência política permite desprender a questão da violência de uma visão a-histórica e metafísico-religiosa, vastamente difusa também na cultura “laica” de nossos dias, e de inscrevê-la no mais amplo quadro de análise da luta de classe. Ademais, Engels – através de aproximações sucessivas – delimita o problema examinando a “violência política”, evitando assim cair na armadilha do discurso sobre a “violência” em geral.

Mesmo representando a mais orgânica e explícita exposição marxista acerca de uma teoria da violência, os capítulos do Antidühring não constituem, todavia, o único texto “clássico” a enfrentar esta questão.

A VIOLÊNCIA DO CAPITAL

Observamos, nas últimas páginas que tratam da “teoria da violência”, a referência de Engels a uma célebre passagem do Capital sobre a violência como parteira de toda nova so-ciedade, usada para afirmar uma função revolucionária da violência como recurso nas mãos dos oprimidos e explorados.

Na realidade, a passagem de Marx refere-se à violência da acumulação originária do capital. O capítulo XXIV do Livro I reconstrói a gênese violenta das condições capitalistas, o grande papel da coerção extraeconômica. O inteiro capítulo constitui um ato de acusação contra as infâmias da acumulação originária capitalista e de ironia em relação aos teóricos da economia política burguesa os quais descreviam inexistentes condições idílicas, enquan-to “na história real, como é sabido, a conquista, a subjugação, o assassinato e a rapina, em breve a violência, desempenham o papel importante. Na benevolente economia política desde sempre reinou o idílio. Direito e “trabalho” foram desde sempre os únicos meios de enriquecimento [...] De fato os métodos da acumulação originária são tudo o que se quiser, exceto idílicos”7.

A história da gênese das condições que geram uma classe de exploradores capita-listas, possuidores de meios de produção e um proletariado que possui apenas a pró-pria força de trabalho que vende ao capitalista, é uma história de abusos e violências. Na história da acumulação originária, fazem época, de um ponto de vista histórico, todas as transformações que servem de alavanca à classe capitalista em formação, mas, sobretudo, os momentos em que grandes massas humanas, súbita e violentamente são arrancadas de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletariado ex lege. A ex-propriação dos produtores rurais, dos camponeses expulsos das terras, constitui o fundamento de todo processo8.

7 K. Marx, Il Capitale, Roma: Editori Riuniti, 1967, Libro I, p. 778.8 Ivi, p. 780. Grifos meus. No texto alemão (Das Kapital, op. cit., p. 744) “com a forza” è “gewaltsam”.

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Na Inglaterra – país que Marx adota como modelo clássico para desenhar a história do nascimento e da afirmação do capitalismo – entre o fim do século XV e as primeiras décadas do século XVI, os grandes senhores feudais, “ao expulsar com a força os camponeses das terras, sobre as quais eles detinham o mesmo título jurídico feudal, e ao usurpar suas terras comunitárias”9, expropriaram a população rural e a expulsaram de suas terras. A palavra de ordem da nova nobreza feudal, para a qual “o dinheiro era o poder dos poderes”, foi a transformação dos campos em pastagens para ovelhas. «As habitações dos camponeses e os cottages dos operários agrícolas foram derrubados violentamente ou abandonados à lenta ruína»10. A reforma religiosa no século XVI deu “novo e terrível impulso” ao “processo violento de expropriação da massa da população”11. A propriedade comunitária também, “antiga instituição germânica sobrevivida sob a égide do feudalismo” foi usurpada pela violência; o processo inicia-se como “ato violento individual” até que, no século XVIII, “a própria lei se torna veículo de rapina das terras do povo”, através dos Bills for Inclosures of Commons (leis para o cercamento das terras comunais)12. Final-mente, “o último grande processo de expropriação dos agricultores e de expulsão das terras foi [...] o assim chamado clearing of estates (parcial expulsão dos pequenos locatários das grandes propriedades, que, na realidade, serviu para varrer os homens das terras)”, para findar com o “clearing” dos cottages, de modo que «os operários agrícolas não encontram mais, nas terras em que eles trabalham, o espaço necessário para seu alojamento»13.

No processo de expropriação e expulsão da população agrícola intervêm, portanto, ações violentas individuais, violências organizadas de classe (a nova aristocracia proto-burguesa ávida por dinheiro) e violência legalizada, violência de estado que impõe leis de rapina das terras comunais e as aplica pela força de seus homens armados. Em suma, “o roubo dos bens eclesiásticos, a alienação fraudulenta dos bens de Estado, o roubo da propriedade comunal, a transformação usurpatória da propriedade feudal e da propriedade dos clãs em propriedade privada moderna, realizada através de um terrorismo sem escrúpulos: estes são os métodos idílicos da acumulação originária. Estes métodos conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram a terra ao capital e criaram o necessário abastecimento do proleta-riado ex lege à industria das cidades”14.

Há, porem, mais do que isto. Nas páginas seguintes, Marx define o estado como “vio-lência concentrada e organizada da sociedade”15, pois este não apenas favorece a expropriação das terras comunais por meio de suas leis e de seus homens armados, mas se preocupa também em controlar o processo de expulsão dos campos e em reprimir, com uma violência sem pre-cedentes, a população agrícola transformada em massa de mendigos, ladrões e vagabundos:

9 Ivi, p. 782. O itálico é meu, A. C. Cf. o texto alemão, conserva sempre a raiz. Gewalt: “durch gewaltsame Verjagung” (Das Kapital, op. cit., p. 746).

10 Ivi, p. 782.11 Ivi, p. 784. No alemão: “der gewaltsame Expropriationsprozeß der Volksmasse”. In: Das Kapital, op. cit., p.

748.12 Ivi, p. 788.13 Ivi, p. 792.14 Ivi, p. 796. O itálico da palavra “terrorismo” (Terrorismus, in Das Kapital, op. cit. p. 760) é meu, A. C. Violência

de classe e métodos terroristas representam, em primeiro lugar, prerrogativas da burguesia em ascensão. 15 Ivi, p. 814.

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“daí ter surgido, em toda a Europa Ocidental, no fim do século XV e durante todo o século XVI, uma legislação sangrenta contra a vagabundagem. Os pais da atual classe operária foram punidos pela transformação, a que foram sujeitos, em vagabundos e miseráveis. A legislação tratava-os como delinquentes “voluntários”, como se dependesse da boa vontade deles prosse-guirem trabalhando nas velhas condições que já não existiam mais”16.

No modo de produção capitalista plenamente afirmado desenvolveu-se uma classe ope-rária que “por educação, tradição, hábitos, reconhece as exigências daquele modo de produção como óbvias leis da natureza” em que “a silenciosa coação das relações econômicas ratifica o domínio do capitalista sobre o operário”, de modo que a força extraeconômica, imediata, é usada apenas em situações excepcionais, enquanto “em seu cotidiano o operário é entregue às leis naturais de produção, isto é, à dependência do capital”. Bem diferentemente andam as coisas durante a gênese da produção capitalista. “Ao ascender, a burguesia precisa do poder do Estado e o emprega para “regular” o salário, isto é, para sujeitá-lo dentro dos limites que convém aos que querem obter mais-valia”. A legislação sobre o trabalho assalariado aponta desde o nascimento à exploração do operário e à extensão da jornada de trabalho. Desde o século XIV e durante todo o século XIX (em diversos países até o século XX), as leis do Estado impõem que as coalizões e as associações de operários sejam tratadas como delito grave. A revolução burguesa na França declarava, com decreto de 14 de junho de 1791 (lei Le Chapelier), toda coalizão operária como atentado à liberdade e à declaração dos direitos dos homens. Até mesmo o Terror jacobino – observou Marx – a deixou intocada. Em suma, conclui Marx, a criação de proletários ex lege aconteceu por meio da violência, uma disciplina sangrenta os transformava em trabalhadores assalariados17.

Ao processo de expropriação e expulsão violenta da população agrícola dos campos, acompanha-se contemporaneamente o outro importante pilar da acumulação originária do capital, o saque e a rapina coloniais. Aqui a violência que assinala a rapacidade burguesa é mais sangrenta e bravia ainda.

A descoberta de terras de ouro e prata na América, o extermínio, a redu-ção em escravidão da população nativa enterrada nas minas, a incipiente conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África numa coutada para a caça comercial de peles-negras, assinalam a aurora da era da produção capitalista. Estes processos idílicos são momentos fundamentais da acumulação originária18.

Marx não poupa sarcasmo e indignação ao denunciar a barbárie e as atrocidades das «raças assim chamadas cristãs» contra os povos subjugados, violências que «não têm paralelo nas de qualquer outra raça, em qualquer época da história da terra, por mais selvagem, por mais inculta e por mais desprovida de piedade e vergonha que seja». O sistema colonial, baseado sobre velhas e novas formas de escravidão, constitui um dos pilares desta acumulação:

16 Ivi, p. 797.17 Ivi, p. 800-805.18 Ivi, p. 813.

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A história da administração colonial holandesa – e a Holanda foi a nação capitalista modelo do século XVII – mostra um quadro insuperado de traições, subornos e massacres. Nada mais característico do que o seu sistema de roubo de homens em Celebes para obter escravos para Java. Os ladrões de homens eram adestrados para esse fim. O ladrão, o in-térprete e o vendedor eram os principais agentes deste tráfico enquanto os príncipes nativos eram os principais vendedores. Os jovens roubados eram escondidos nas prisões secretas das Celebes até estarem maduros para o envio aos navios negreiros. [...] O tratamento dos nativos era, naturalmente, dos mais raivosos nas plantações destinadas apenas ao comércio de exportação, como nas Índias Ocidentais e nos países ricos e densamente povoados, abandonados ao assassínio e ao roubo, como o México e as Índias Orientais. Contudo, mesmo nas colônias propria-mente ditas, o caráter cristão da acumulação originária não se desmentia. Os sóbrios virtuosos protestantes – os Puritanos da Nova Inglaterra –, em 1703, por decisão de sua assembly, estabeleceram um prêmio de 40 libras por cada escalpe de índio e cada pele-vermelha capturado19.

ppp

À violência feroz do capital contra sua população e a dos países subjugados pela rapina colonial, é preciso acrescentar, nesta pré-história do capital, a guerra, “a guerra comercial entre as nações européias, cujo teatro foi o orbe terráqueo. A guerra comercial abre-se com a secessão dos Países Baixos contra a Espanha, toma proporções gigantescas com a guerra antijacobina na Inglaterra, estendendo-se ainda na guerra do ópio contra a China, etc.”20

Podemos assim chegar às conclusões: a pré-história do capital, o momento em que se atua a expropriação – “terrível e difícil” da grande massa da população, expropriada da terra, dos meios de subsistência e dos instrumentos de trabalho, funda-se sobre “toda uma série de métodos violentos [...]. A expropriação dos produtores imediatos foi cumprida com o mais feroz vandalismo e sob o impulso das mais infames, mais sórdidas e mais mesquinhamente odiosas paixões”21.

Esta “pré-história do capital” que desvela o mistério da acumulação originária é marcada por vários momentos que “distribuem-se agora, mais ou menos em sequência cronolôgica,

19 Ivi, p. 814-815. Il premio, continua Marx, passa nel 1720 a 100 sterline, nel 1744, per scalpi di donne e bambini a 50 sterline. Quasi un secolo e mezzo dopo l’appassionata denuncia di Marx, in occasione delle celebrazioni del cinquecentesimo anniversario della scoperta dell’America, un indignato critico dell’attuale [dis]ordine mondiale, Noam Chomsky, ne riprendeva il filo nel libro Anno 501, la conquista continua – L’epopea dell’imperialismo dal genocidio italiano ai giorni nostri, Gamberetti, Roma, 1993.

20 Ivi, p. 813.21 Ivi, p. 824-825.

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especialmente entre Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra”, até constituir-se num sistema acabado no modelo inglês em que o recurso à violência, em particular à violência de Estado, se apresenta como instrumento essencial para acelerar a transição do feudalismo ao capitalismo. Neste sentido, a violência joga o papel de “parteira” da nova sociedade, contri-buindo materialmente para a construção de novas relaçoes econômico-sociais, tornando-se – como escreve Marx – ela mesma uma potência econômica:

Na Inglaterra, no fim do século XVII, todos estes diversos momentos são combinados sistematicamente no sistema colonial, no sistema da dívida pública, no sistema de impostos e no sistema protecionista. Estes métodos repousam, em parte, sobre a mais brutal violência, por exemplo, o sistema colonial. Todos eles utilizam, porém, o poder do Estado, violência concentrada e organizada da sociedade, para fomen-tar, artificialmente, o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista e para encurtar a transição. A violência é a parteira de toda a velha sociedade que está grávida de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica22.

A VIOLÊNCIA DO CAPITAL: COERÇÃO ECONôMICA E COERÇÃO ExTRA-ECONôMICA

Ao analisar a gênese do capital, Marx é muito claro: a violência e a coerção extraeconô-mica (uso do poder do estado para impor a expropriação e a expulsão dos camponeses; leis sobre o salário e veto de coalizão para os tornarem proletários assalariados) jogaram um papel fundamental. Na fase madura de funcionamento do capital, porém, quando a relação de dependência do assalariado ao capital é assumida como algo natural, quando se torna “senso comum” – para usar uma expressão sobre a que muito refletiu Antonio Gramsci – entre os operários e a população, a coerção extraeconômica desempenha apenas um papel marginal, torna-se a exceção. Entendemos assim porque Engels pode, com todo direito, opor-se à teoria da violência como fator de fundamentação das relaçoes sociais, assim como proposta por Dühring. Na fase madura de funcionamento do capital, a coerção econômica é a que de-senvolve o papel fundamental, e enquanto coerção exerce força sobre o sujeito que a sofre, sendo em última instância uma forma de violência, ainda que não imediata e direta. A coerção econômica que força o proletário – sem que ninguém o ameace apontando-lhe uma pistola contra – a pedir desesperadamente ao capitalista (eufemisticamente chamado de “doador de emprego”, enquanto na realidade ele é alguém que rouba o trabalho alheio) de propiciar-lhe um emprego, que lhe extorquirá mais-trabalho e mais-valia; é a violência normal do sistema capitalista, que produz silenciosa e invisivelmente milhões – e hoje, no mercado mundial, centenas e centenas de milhões, bilhões – de vítimas e de marginais, famintos, à beira do

22 Ivi, p. 813-814.

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abismo, despejados, mortos pela superexploração ou pela carente aplicação das normas de segurança no trabalho (neste caso, também eufemisticamente, chamadas de “acidentes” no trabalho), vidas jogadas. A força da coerção econômica apoia nesta introjeção que está na cabeça de suas vítimas, as quais consideram a relação com o capital como algo natural, normal, existente desde sempre e imutável, que aparece aos agentes do capital sob a forma de “leis naturais todo-poderosas que os dominam reduzindo-os à impotência e que operam para com eles como cega necessidade”23. A coerção econômica é a base do funcionamento do sistema capitalista e se apresenta como um forma de autocoerção. Esta é a diferença – e a maior força – entre o modo capitalista de produção e os precedentes modos de produção fundados sobre a exploração de uma classe sobre a outra, como o escravista e o feudal: nos últimos, pois, a coerção e a relação de dependência são transparentes, manifestos, diretos. O escravo e o servo da gleba possuem um estado jurídico que não os reconhece como homens ou os reconhece explicitamente como servos, com o dever de prestação de trabalho a favor dos dominantes: violência e exploração são diretamente reconhecíveis, visiveis, palpáveis. Na sociedade capitalista, pelo contrário, a exploração e a violência – na forma de coerção econômica – são invisíveis, ocultos, camuflados por trás de relações de aparentes liberdade e igualdade nas quais o livre trabalhador e o livre capitalista estipulam o contrato em condiçoes de livre mercado e livre concorrência. Aqui, porém, como escreve Marx numa linda página do Livro III, de O Capital, estamos “no mundo enfeitiçado, desumano e invertido, onde o senhor Capital e a senhora Terra, protagonistas sociais e, ao mesmo tempo coisas, rondam como fantasmas assombrosos”24. Somente a crítica da economia política pode desvendar o mistério que se esconde atrás da falsa aparência deste mundo enfeitiçado.

A coerção econômica atua com grande violência sobre a vida dos sujeitos, perturban-do suas existências e os ritmos do cotidiano, transformando a noite para o dia e o dia para o noite, exclui o trabalhador do processo produtivo, reduzindo-o a apêndice da máquina, que “distorce o operário e faz dele uma monstruosidade, favorecendo como numa estufa, sua habilidade para o detalhe, por meio da supressão de um mundo inteiro de impulsos e disposições produtivas, da mesma forma em que nos estados de La Plata abate-se uma besta inteira para tirar dela apenas sua pele ou sua gordura”25. A violência da coerção econômica é suportada pela legislação dos estados burgueses que intervem em defesa da propriedade privada capitalista, por meio da “violência legítima” do estado contra todos que atentem contra esta propriedade.

Vimos, através da análise de Marx, que a relação entre coerção extraeconômica direta e coerção econômica enquadra-se numa dialética entre fase de transição de um lado – do feudalismo ao capitalismo – e de formação do modo de produção capitalista (acumulação originária), e fase de plenitude e maturidade do modo de produção, do outro lado: no pri-meiro caso, a coerção extraeconômica, isto é, a violência direta, i-mediata, está amplamente presente, enquanto, no segundo caso, ela representa uma exceção, um elemento secundário,

23 K. Marx, Il Capitale, op. cit., libro III, p. 944.24 Ivi, p. 943.25 K. Marx, Il Capitale, op. cit., Libro I, p. 404.

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substituída – como elemento de regularidade – pela violência econômica; esta, diferentemente da primeira, é uma forma de violência mediata pelas condições capitalistas complexivas, pela aparência ilusória da livre troca e do livre contrato entre sujeitos livres e iguais, trabalhador e capitalista, sendo na realidade o primeiro dependente, submisso e dominado pelo segundo. Esta dialética da coerção extraeconômica direta e coerção econômica mediata, esboçada nas páginas de O Capital, consegue colocar a questão da violência de forma mais ampla e completa da exposta por Engels nas páginas de O Antidühring que, em razão de evidentes motivações polêmicas contra uma teoria idealista e negadora dos fundamentos do materialismo históri-co, focaliza o discurso apenas no momento do funcionamento pleno do modo de produção capitalista, glissando sobre o problema da acumulação originária – e violenta – do capital. A “acumulação originária” não é apenas, e nem primariamente, o modo de acumulação da riqueza empregada sucessivamente como capital, mas é sobretudo criação – por meio de métodos violentos e em nada “idílicos” – das condições de atuação do capital, isto é, da se-paração do trabalhador dos meios de produção, sua constituição em proletariado necessitado e disponível em vender sua força de trabalho ao dono dos meios de produção.

A coerção econômica é uma forma indireta e mascarada de violência, que poderia ser considerada, de certa forma, mais violenta do que a coerção direta, pois, atuando nos cérebros e na mentalidade dos sujeitos, os engana e os despoja da possibilidade de colher a evidência da exploração e da opressão. No mundo enfeitiçado da coerção econômica, os sujeitos – este termo ambíguo que indica ao mesmo tempo a condição de agente ativo e a de submisso, de súdito para com o soberano – são “violentados” em sua estrutura psico-física, em sua personalidade, em sua capacidade de ler o mundo e de atuar nele, quase eles fossem como que lobotomizados, de-humanizados, transformados em automas, coagidos pela ob-jetividade das relaçoes capitalistas a atuar como dominados por uma potência externa que se empossou de suas mentes forçando-os a mover-se no universo capitalista segundo ordens que lhe são estranhos, sufocando um mundo de impulsos, violentando a si mesmos, praticando uma forma de autocoerção. “A pior violência não é a mais declaradamente violenta, isto é, a violência armada e sangrenta, mas é a violência institucionalizada, pacífica, a violência da fábrica, da justiça de classe, ou até mesmo da escola”26.

A VIOLÊNCIA DO CAPITAL: A gUERRA IMPERIALISTA

A fase imperialista do capitalismo – que investe plenamente a atualidade, como apontam as crescentes rivalidades entre grandes áreas monetárias e econômicas e as guerras desencadeadas pelos EUA após a dissolução da URSS, que contrabalançava a supremacia militar e política estadunitense – muda de novo a relação entre coerção econômica e coerção extra-econômica, violência indireta e violência direta: a guerra, forma de violência organizada pelo Estado, apresenta-se agora como um componente indispensável para a manutenção e o

26 Cf. O verbete “Violence” G. Labica (org.). In: G. Labica, G. Bensussan, Dictionnaire critique du marxisme, 2. ed., Paris: Presses universitaires de France, 1985, p. 1206.

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desenvolvimento do sistema capitalista. A questão que se põe é compreender se a coerção extra-econômica se tornou, com o imperialismo, uma lei imanente do próprio capitalismo.

Já nos debates da Primeira Internacional está presente a questão de uma relação de necessária implicação entre estrutura econômico-social e guerra. O Congresso de Lausanne (setembro de 1867) que discutia a posição a ser tomada para com a “Liga da paz e da liber-dade”, afirmava que “a guerra tem no pauperismo e na falta de equilíbrio econômico suas primeiras e fundamentais causas”, e que para eliminá-la “não é suficiente mandar para casa os exércitos, mas é preciso também modificar a organização social através de uma mais équa subdivisão da produção”27.

Os capítulos dedicados à “teoria da violência” presentes em O Antidühring contém interessantes observaçoes sobre o “militarismo”. Engels nota que todos os principais estados carregam “uma carga militar que os levará à ruína em poucos anos. O exército se converteu na finalidade precípua dos Estados, um fim em si mesmo. Os povos existem hoje só para fornecer soldados e para sustentá-los”. Mas “o militarismo traz em seu seio o germe de sua própria ruina. A concorrência desenfreada entre os Estados os obriga a aplicar cada vez mais dinheiro em tropas, navios de guerra, canhões, etc., acelerando, desse modo, e cada vez mais, a bancarrota financeira. Por outro lado, o serviço militar vai generalizando-se cada vez mais e com isso não faz que familiarizar o povo com o emprego das armas, ou seja, torná-lo capaz de impor, num determinado momento, sua vontade diante da casta militar governante”28. No pensamento de Engels há, in nuce, uma dialética guerra/revolução que cumprir-se -á apenas com a análise de Lenin sobre a guerra imperialista29. Entretanto, em ausência de uma análise do imperialismo, que por evidentes razões cronolôgicas faltava a Engels, o nexo capitalismo/guerra não se apresentava como implicação necessária, ainda que se observasse o preocupante crescimento dos gastos para o aparelho militar (militarismo) nos principais estados em concorrência entre eles.

Era porem bastante difusa, já em finais do século XIX, dentro do movimento socialista, a idéia de que a sociedade capitalista burguesa fosse estruturalmente gravida de guerra, ainda que não houvesse, a suportá-la, uma análise profunda das mutações ocorridas na passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo monopolista; uma consciênça condensada numa frase que se tornou famosa, pronunciada por Jean Jaurés no discurso à Câmara francesa em março de 1895: “vossa sociedade violenta e caótica, ainda que queira a paz, ainda que esteja em um estado de calma aparente, sempre traz consigo a guerra, assim como a nuvem traz con-sigo o furacão”30. Nestas formulações ainda não há definição de uma relação determinada e incontornável entre guerra e modo de produção capitalista.

27 Cf.. Madeleine Reberioux. Il dibattito sulla guerra. In: Storia del marxismo, vol. II – Il marxismo nell’età della seconda Internazionale, Turim: Einaudi, 1979, p. 905.

28 F. Engels, Antidühring, op. cit., p. 182.29 Vejam-se a este propósito os escritos de Lenin do período de 1912 (Manifesto de Basiléia) à 1917. Para uma

exposição sistemática, veja-se, além do conhecido e clássico Imperialismo fase suprema do capitalismo (1916), o opúsculo O socialismo e a guerra (publicado no outono de 1915). In: V. I. Lenin, Opere complete, Roma: Editori Riuniti, 1955 sgg., vol XXI p. 269-310.

30 Madeleine Reberioux, op. cit., p. 910.

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Que a guerra seja “um produto necessário do capitalismo”, o afirma claramente Lenin em sua relação ao Congresso internacional socialista de Stuttgart (outubro de 1907); na mesma ocasião, Rosa Luxembourg também, junto com os delegados russos, propõe não apenas de “lutar contra a eclosão de guerras ou pela mais rápida cessação das já começadas, mas de utilizar a crise gerada pela guerra para acelerar a queda da burguesia”31. A moção proposta por August Bebel, explicava que as guerras entre estados capitalistas são a consequência final da concorrência no mercado mundial32. A última jornada do Congresso foi dedicada à “questão que mais interessava a todos, a do militarismo», colhendo Lenin «o nexo existente entre guerra e regime capitalista em geral, agitação antimilitarista e toda atividade do socialismo”33. O Congresso de Basiléia (novembro de 1912) designa o capitalismo como único responsável de uma guerra futura34. Seja no estudo de Hilferding sobre o capital financeiro – fusão cres-cente de capital bancário e capital industrial – em que a exportação de capitais sustentada pelos estados ganha o primeiro lugar, seja no de Rosa Luxembourg sobre a acumulação de capital – necessitado a incorporar em seu sistema as formações ainda não capitalistas, para realizar a mais-valia necessária à acumulação de capital – a guerra se apresenta como resul-tado da mais acirrada concorrência entre monopólios para a exportação de capitais ou para a partilha dos países atrasados. Mais uma vez Lenin conseguiu inserir, dentro de um único quadro conceitual definido pelas categorias de “imperialismo” e de “guerra imperialista”, as diversas análises parciais:

A guerra europeia, que foi preparada durante décadas pelos governos e pelos partidos burgueses de todos os países, eclodiu. O aumento dos armamentos, a extrema agudização da luta pelos mercados na nova fase imperialista de desenvolvimento do capitalismo nos países avançados, os interesses dinásticos das monarquias mais atrasadas, as da Europa Oriental, deviam conduzir inevitavelmente, e conduziram, a esta guer-ra. Conquistar terras e subjugar nações estrangeiras, arruinar as nações concorrentes saqueando suas riquezas e desviando a atenção das massas trabalhadoras das crises políticas internas da Rússia, Alemanha, Inglaterra e de outros países, dividir as massas trabalhadoras, entorpecé-las me-diante o engano nacionalista e exterminar sua vanguarda para debilitar o movimento revolucionário do proletariado, tal é o único real conteúdo, significado e sentido da guerra atual35.

A guerra, esclarece Lenin, “não é um acidente nem um “pecado”, como supõem os padres cristãos (pregadores de patriotismo, humanitarismo e paz, assim como os oportunistas), mas uma etápa inevitável do capitalismo, uma forma de vida capitalista tão legítima como a paz [...]

31 Cf.. V. I. Lenin, Opere complete, op. cit., vol. 13, p. 73.32 Madeleine Reberioux, op. cit., p. 922.33 Cf. V. I. Lenin, Opere complete, op. cit., vol. 13, p. 8134 Madeleine Reberioux, op. cit., p. 929.35 Lenin, A guerra e a socialdemocracia russa (novembro de 1914). In: Opere complete, op. cit., vol. 21°, p. 19.

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Se após esta guerra não se houver uma série de revoluções vitoriosas, outras guerras virão”36. A guerra é o produto inelutável do sistema capitalista:

A questão das guerras imperialistas, da política internacional do capital financeiro que hoje domina em todo o mundo e que gera inevitavelmente novas guerras imperialistas, que produz inevitavelmente uma intensifica-ção sem precedentes da opressão nacional, da pilhagem, da depredação, do estrangulamento das nações pequenas, fracas e atrasadas, por mão de um punhado de potências «avançadas», é uma questão que desde 1914 se tornou fundamental para todos os países do mundo. É uma questão de vida ou de morte para dezenas de milhões de homens. [...] E perante milhões e milhões de homens que refletem sobre as causas da guerra de ontem e sobre a iminente guerra de amanhã, ergue-se cada vez mais clara, nítida e inelutável esta terrível verdade: é impossível sair da guerra imperialista e da paz imperialista que a gera, é impossível sair desse inferno a não ser por uma luta bolchevique e por uma revolução bolchevique37.

Na época do imperialismo, o capitalismo não se pode desenvolver pacificamente como na fase precedente:

Não se pode viver à maneira dos antigos, numa situação relativamente tranquila, civilizada, pacífica em que o capitalismo evolui placidamente estendendo-se gradativamente aos novos países; porque uma outra época abriu-se. O capital financeiro elimina e eliminará um determinado país do número das grandes potências, apoderar-se-á das colônias e de suas esferas de influência [...], subtrairá à pequena burguesia deste país seus privilégios de “grande potência” e suas entradas suplementares38.

A “VIOLÊNCIA REVOLUCIONáRIA” E A SITUAÇÃO ATUAL

Vimos aproximadamente as diferentes modulações da violência na sociedade capitalista, desde a gênese violenta das condições capitalistas pela acumulação originária – expulsão dos camponeses do campo, colonialismo – até a violência do estado burguês, da “coerção eco-nômica” qual operador do “normal” mecanismo de funcionamento econômico capitalista, até a guerra imperialista que repropõe a questão da violência como aplicação necessária do capitalismo na fase monopolista do capital financeiro.

36 Lenin. Situação e tarefa da Internacional socialista. In: Opere complete, op. cit., vol. 21, p. 31. O grifado é meu, A. C.

37 Cf. V. I. Lenin. Para o quarto aniversário da Revolução de Outubro (1921).In: Opere complete, op. cit., vol. 33, p. 41-42.

38 Lenin, A falência da II Internacional (1915). In: Opere complete, op. cit., vol. 21, p. 205-206.

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Qual a postura do movimento operário, antagonista histórico do capital, com relação a esta violência? Desde as origens ele enfrenta a questão em seu contexto concreto, sobre a base de uma avaliação das relações de força. Um dos fundadores do movimento operário alemão de começo de Oitocentos, “o aprendiz alfaiate sempre à volta do mundo, Wilhelm Weitling”, julgava necessário ao fim da abolição da propriedade – objetivo principal da revolução – o recurso à violência, devido à impossibilidade dos proprietários cederem espontaneamente suas propriedades à maioria do povo. Weitling distingue entre violência contra as pessoas e violência contra as coisas: “quando o povo mesquinho resolverá libertar-se do jugo que o oprime, deverá fazer a guerra não contra as pessoas, mas contra a propriedade”39. A abordagem de Weitling à questão é calma e concreta: o proletariado não se alimenta de mitologias sobre a luta violenta, porem, como as classes dominantes não estão dispostas a cederem pacificamente a propriedade e o poder, o recurso à violência tornar-se-á inevitável.

Tal abordagem à questão se manteve, em linha geral, inalterada no movimento operá-rio revolucionário dos séculos XIX e XX. À véspera das revoluções de 1848, Marx e Engels finalizavam o Manifesto do Partido Comunista afirmando abertamente que os objetivos dos comunistas “só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social existente. Que as classes dominantes tremam diante de uma revolução comunista. Os proletários nada têm a perder nela a não ser suas cadeias. E têm um mundo a ganhar”40.

A teoria marxista da transição do socialismo ao capitalismo funda-se sobre o nexo ins-cindível entre base material objetiva (maturidade do modo de produção capitalista, subsunção real do trabalho ao capital) e revolução político-social dirigida pelo partido comunista. Como o comunismo se funda na organização consciente da produção dirigida segundo um plano, a passagem ao superior modo de produção comunista não acontece de forma espontânea, mas só pode ser um processo conscientemente dirigido e organizado. E não pode acontecer sem a conquista do poder político, do estado, pela classe operária. A qual se torna classe conscientemente organizada mediante o partido comunista. A conquista do poder político é um pressuposto, não suficiente porem necessário, para a transição. Desde 1848 Marx e Engels – polemizando com o utopismo – defenderam a tese de uma necessidade objetiva da revolução comunista, inerente à própria ordem das contradições capitalistas. A revolução proletária – de forma análoga à revolução burguesa no molde francês – nada mais faz a não ser libertar as forças que cresceram no seio da sociedade e que não podem mais ser contidas dentro de antigas relações sociais. Os jovens revolucionários julgam ser já próximo o momento da revolução proletária. O modelo proposto está claramente enunciado no Manifesto do Partido Comunista, com um verdadeiro programa de transição em 10 pontos (no segundo capítulo). A tomada do poder político é avalanca preliminar que possibilitará ao proletariado a realização progressiva das medidas que levam ao comunismo. Entre elas, a centralização estatal do crédito, dos meios de tráfico e de comunicação. A ditadura do proletariado (termo que Marx usará em seguida,

39 Cf. K. Lenk, Teorie della rivoluzione, Laterza, Bari, 1976, p. 46; 49.40 K. Marx, F. Engels, Manifesto del partito comunista. In: K. Marx, F. Engels, Opere, Roma: Editori Riuniti, 1970

sgg., vol. VI, p. 518. Nel testo tedesco: “Sie erklären es offen, daß ihre Zwecke nur erreicht werden können durch den gewaltsamen Umsturz aller bisherigen Gesellschaftsordnung“. In: Marx Engels Werke, volume IV, Dietz Verlag Berlin, 1983, p. 493.

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em 1852, numa carta a Weydemeier) é o instrumento necessário à realização de tais medidas de transição:

O primeiro passo na revolução é o elevar-se do proletariado a classe dominante, a conquista da democracia [...] O proletariado usará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco, todo o capital à bur-guesia, para centralizar todos os instrumento de produção nas mãos do estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar, o mais rapidamente possível, a massa das forças produtivas. [...] A princípio, naturalmente, isto só pode acontecer por meio de in-tervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações burguesas de produção, isto é, por meio de medidas que do ponto de vista econô-mico aparecerão insuficientes e insustentáveis, mas que no desenrolar do movimento ultrapassarão a si mesmas e serão inevitáveis instrumentos para revolucionar todo o modo de produção41.

A questão do poder político apresenta-se portanto como a questão central da tran-sição ao socialismo, ainda que – o reafirmamos – represente apenas a premissa, necessária mas não suficiente, para a passagem ao novo modo de produção. A razão desta centralidade apoia no fato de que o proletariado, inevitavelmente subalterno na sociedade burguesa – e diferentemente da burguesia que cumpriu sua revolução antifeudal possuindo já os meios de produção, sendo já hegemônica no campo econômico –, não tem outra opção a não ser a conquista do poder político para começar, por meio dele, a transformação das relações de produção.

Se, portanto, a conquista do poder político for a questão central de uma estratégia de transformação revolucionária das relações de produção, o recurso à violência revolucioná-ria na teoria marxista, nunca é um fim em si, nunca assume um caráter mítico, salvador, palingenêtico, coisa que, pelo cotrário, encontra-se, talvéz na forma mais acabada, nas Con-siderações sobre a violência, de Georges Sorel42. Na base de tais premissas podemos colocar de forma correta o “testamento político” 4343de Engels, suas últimas reflexões publicadas em 1895 como introdução à coletânea dos textos de Marx de 1850, com o título de As lutas de classe na França. Nelas, Engels insiste fortemente no conceito de “revolução da maioria”, propondo de valer-se, até que for possível, de todos os espaços e instrumentos legais (os que hoje chamariamos de “liberdades democráticas”) – conseguidas pelas lutas do proletariado – para conquistar o poder estatal. O raciocínio que move Engels origina do confronto entre a revolução comunista e as precedentes revoluções que a história nos consignou. E indica uma diferença fundamental:

41 Manifesto del partito comunista, op. cit., p. 505-506. 42 Le Réflexions sur la violence (trad it. Considerazioni sulla violenza, Laterza, Bari, II edizione, 1926), foram

publicadas na França e 1908 e influenciaram consideravelmente o movimento anarco-sindicalista.43 Vejam-se a este propósito dois interessantes artigos de Jacques Texier, Il “testamento politico” di Engels, e de

Nicolao Merker, Engels, la “rivoluzione di maggioranza” e la socialdemocrazia tedesca, In: Mario Cingoli (org.), Friedrich Engels cent’anni dopo – Ipotesi per un bilancio critico, Milão:Teti Editore, 1998.

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Todas as revoluções do passado resultaram na substituição de uma dominação de classe por outra; todavia, todas as classes que até agora dominaram eram pequenas minorias face à massa do povo dominada. Uma minoria dominante era assim derrubada, uma outra minoria to-mava o seu lugar ao leme do Estado modelando as instituições políticas segundo os seus interesses.[...] Se abstrairmos do conteúdo concreto de cada caso, a forma comum de todas as revoluções era elas serem revo-luções de minorias.

A revolução comunista é a revolução da maioria, “para a realização dos interesses mais verdadeiros da grande maioria”44. A segunda passagem do raciocínio de Engels move da constatação de uma mutação substancial das condições em que desenrola a luta entre proletariado e burguesia:

A rebelião de velho estilo, a luta de ruas com barricadas, que até 1848 havia sido decisiva em última instância, tornou-se consideravelmente antiquada. Não tenhamos ilusões: uma verdadeira vitória da insurreição sobre as tropas do exército na luta de ruas, uma vitória como a entre dois exércitos que se enfrentam, muito raramente ocorre. Os próprios insurgentes também, raramente contavam com isto. Para eles tratava-se apenas de desgastar as tropas através de influências morais que na luta entre os exércitos de dois países beligerantes ou não entram em jogo ou o fazem apenas num grau muito reduzido. [...]Mesmo no período clássico das lutas de ruas, a barricada tinha portanto um efeito mais moral do que material. Era um meio de abalar a resistência do exército45.

“Os poderes dominantes – continua Engels – querem levar-nós, à qualquer custa, onde a espingarda dispara e o sabre talha» e evocam com insistência «que sirvamos de carne para o canhão [...] Não somos tão estúpidos assim [...] se as condiçoes de guerra entre os povos mudaram, não menos mudaram as condições para a luta de classe. O tempo dos golpes a surpresa, das revoluções levadas a cabo por pequenas minorias conscientes que lideram massas inconscientes, passou. Sempre que se trate de uma transformação completa das organizações sociais, as próprias massas devem participar nelas; as próprias massas devem ter compreen-dido do que se trata, por quais motivos elas estão dando seu sangue e sua vida»46. Engels aponta portanto à estratégia de uma longa “guerra de posição” 4747, pois a forte estrutura do

44 Cf. Introduzione di Friedrich Engels alla prima ristampa. In: K. Marx, Le lotte di classe in Francia, Editori Riuniti, Roma, 1973, p. 54; p. 57.

45 Ivi, p. 71-73.46 Ivi, p. 76.47 A expressão tornou-se famosa na Itália pelos textos de Antonio Gramsci, que a ela – em dupla conceitual

dialética com “guerra de movimento” – dedicou diversas páginas de seus Cadernos do Cárcere. Togliatti fez próprios alguns aspectos ao elaborar a estratégia do PCI no segundo pós-guerra. O recurso à dupla conceitual – ainda que utilizando termos diferentes como o de fortaleza assediada ou assédio – está presente, todavia, na reflexão de Lenin também, porém o pensamento dele resulta grotescamente deformado, sendo representado

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poder político e militar do estado burguês não permite “alcançar a vitória em uma única e grande batalha»; ocorre pelo contrário «progredir lentamente, de posição em posição, com uma luta dura e tenaz”48.

Em 1895, portanto, baseando-se na longa experiência histórica dos Oitocentos e nas grandes transformações sociais e políticas ocorridas na Europa – onde, de um lado, foram extendidos em vários países os direitos políticos e, do outro, fortaleceu-se o domínio, inclu-sive militar, da burguesia – Engels se afasta de qualquer hipótese “blanquista” (o golpe de mão resolutivo, a vitória definitiva na luta de ruas e nas barricadas) e pensa numa “revolução da maioria” levada adiante através de uma lenta guerra de posição, que utilize, até que for possível, métodos legais de luta.

Isto não quer dizer, porem, para Engels, abrir mão do direito à revolução que “é de resto o único verdadeiro “direito histórico”; o único em que assentam todos os estados modernos sem excepção [...] incontestavelmente assimilado na consciência universal”49. E tampouco ao direito à resistência armada: “nenhum partido, de nenhum país do mundo chega ao ponto de renunciar ao seu direito de opor-se à ilegalidade com armas nas mãos”. O direito à resis-tência armada diante da violação da legalidade e do golpe de estado pelas classes dominantes é legítimo e necessário: “a obrigação a respeitar a legalidade é uma obrigação jurídica, não moral [...] e deixa de existir se os detentores do poder violarem as leis”50.

E os detentores do poder, assim que se sentirem ameaçados pela organização crescente e pelo avançar do proletariado e das classes oprimidas e exploradas, atuam – ou tentam atuar – o golpe de estado, infringindo as leis que eles mesmos têm se dado. A história de Novecentos está pontilhada de golpes de estado e de violências reacionárias extremadas – desde o fascismo e o nazismo até o franquismo, os outros fascismos das entre-guerras, os inúmeros golpes e massacres de comunistas na Indonésia, América Latina, na européia Grécia dos coroneis – que algumas vezes atingiram o alvo por uma excessiva confiança na legalidade e uma oposição prejudicial à resistência por parte dos dirigentes do movimento operário. A sistematização teórica de Engels a respeito da relação entre reação violenta dos dominantes e resistência do proletariado representa ainda hoje uma referência essencial para a correta colocação dos acontecimentos do século XX e para os do século XXI: a resistência ou a revolução armada como resposta à violação da legalidade51(interna e internacional) permanece uma perspectiva

como o homem político do “golpe de mão”, da “tomada imediata do Palácio de Inverno”. Veja-se a relação apresentada na VII Conferência à Governadoria de Moscou sobre a nova política econômica (29 de outubro de 1921), quando, tomando como exemplo o episódio da tomada de Port Arthur pelos japoneses na guerra russo-nipônica de 1904, ele explica que – em determinadas condições – o ataque raivoso (a “guerra de movi-mento”) não alcança resultados, precisando portanto, passar ao prolongado e sitemático assédio (“guerra de posição”). In V. I. Lenin, Opere Complete, op. cit., vol. 33, p. 68 sgg.

48 Cf. Introduzione di Friedrich Engels… op. cit., p. 61.49 Ivi, p. 78-79.50 F. Engels, carta a Richard Fischer (8 marzo 1895). In: Marx Engels, Opere, op. cit., vol. L, Roma: Editori

Riuniti, 1977, p. 457. Engels é muito claro: “Não posso supor que vocês queiram aderir, alma e corpo, à legalidade absoluta, à legalidade em todas as circunstâncias, à legalidade mesmo diante do desrespeito das leis pelos que as fizeram, em suma, à política de oferecer a face esquerda àquele que bateu a direita”.

51 A formulação é de Nicolao Merker, op. cit.

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inscrita na concretude da atual situação histórica dominada por um imperialismo feroz e agressivo.

Pois, realmente vivemos e atuamos em condições históricas determinadas. Como escrevia Marx, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem arbitrariamente, em circustâncias que eles mesmos escolheram, e sim sobre aquelas com que se defrontam diretamente, determina-das pelos fatos e pela tradição”52. A “análise concreta da situação concreta”, o conhecimento o mais possível objetivo do estado de coisas presente de Lenin, a maquiaveliana “verdade efetual”, as gramscianas “relações de força” nos explicam que nem sempre é possível escolher o terreno do confronto. Se fosse assim, os comunistas, que não têm inscritas em seu codigo genêtico a vio-lência e a guerra (o pré-fascista Marinetti falou de guerra como “única higiene do mundo”), teriam escolhido sempre a “via pacífica” – como parecia possível ao próprio Engels observando o avanço, nas últimas décadas de Oitocentos, da socialdemocracia alemã, salvo alertar porem que era preciso levar em conta, como pontualmente aconteceu no século passado, a reação das velhas classes dominantes contra a conquista do governo por via parlamentar do proletariado. Portanto, os comunistas deveriam ser sufficientemente capazes e dúcteis para tentar impor ao inimígo de classe, até que for possível, o terreno de confronto que lhe é favorável (que com certeza, nas condições articuladas e complexas das atuais sociedades “ocidentais”, não é o mili-tar). Mas devem saber que nem sempre o terreno de confronto poderá ser o que eles queriam escolher. Os imperialismos atualmente dominantes demonstraram estarem dispostos a qualquer coisa e a passarem sobre qualquer cadáver para conservar seu poder econômico e político. Esta não é apenas a história passada das ditaduras fascistas do entre-guerras. O segundo pós-guerra é marcado por intervenções devastantes voltadas à manutenção do poder ameaçado ou à der-rubada violenta das forças populares que chegaram ao governo através de livres eleições (sem esquecer que na Itália atuou uma organização como Gladio53, pronta à intervenção no caso dos comunistas se aproximarem demais ao governo). O fascismo não é um acidente da história, uma pústula que se origina em um corpo sadio, como pretendia Croce, mas é uma alternativa praticada pelas classes capitalistas quando seu poder for ameaçado. Nessa perspectiva, a época não mudou, e o risco de uma abolição, oculta ou manifesta que seja, dos espaços de atuação política ou de abolição de garantias mínimas como o habeas corpus, está sempre presente, como os mais recentes episódios de torturas brutais praticadas massiva e sistematicamente pelo exército EUA nos campos de Guantanamo e no Iraque monstram, ou ainda como o ataque destruidor e terrorista, de “solução final” praticado pelo governo israelense contra os palestinos de Gaza e dos territórios ocupados

Se tentarmos recolocar o discurso no terreno histórico-social do presente e não no de um absoluto metafísico anti-dialético, deveríamos analisar a natureza e o papel do atual imperialismo, e a importância do confronto mundial em curso. Não estamos diante de um “adversário” que – como num jogo de xadrez o num duelo entre cavaleiros medievais que se batem por sua honra, respeitando as regras do jogo, respeitam a si mesmos e concedem

52 K. Marx, Il diciotto brumaio di Luigi Bonaparte, trad. P. Togliatti, Editori Riuniti, Roma, 1977, cap. I. Il corsivo é mio, A.C.

53 Organização clandestina (stay-behind) criada pela Otan em meados dos anos Cinquenta, financiada pela CIA à qual colaboraram serviço de inteligência e organizações da extrema direita italianos (n.d.t.)

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“a honra das armas ao vencido” – considera a si mesmo parte integrante de uma condivisa civilização, que reconhece o outro não como alieno e sim como seu semelhante. Estamos diante de um imperialismo feroz e desumano, que considera – assim como o nazismo – o resto da humanidade como carne de abate, boa para experimentar novas armas de destruição em massa e que declara, explicitamente, de reconhecer apenas as leis do direito internacional que lhe são favoráveis. As bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, contra cidades de inermes civís japoneses e que servirarm como advertência contra a URSS, verda-deiro início da guerra fria, não são menos crueis e impiedosos – tanto em sua lógica como em seus efeitos – do campo de extermínio de Auschwitz.

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Engels e o Bonapartismo

Paulo Barsotti*

São evidentes a convergência e a colaboração teórica entre Engels e Marx quanto à reflexão do estado e da política. A elaboração e tematização do bonapartismo, forma específica de dominação burguesa, que, du rante décadas, mereceu a atenção e combate implacáveis destes autores, ilus tra com precisão este fato.

Surgido após o fracasso das revoluções de 1848, da vitória da contra-revolução sobre a revolução, momento da explicitação da moderna luta de classes e dos limites da burguesia representar o progresso social, o bonapar tismo se desenvolve num contexto de acontecimentos extremamente agudos e contraditórios, de expansão e crises econômicas, de guerras civis, de liber tação nacional e entre nações, marcado sempre pela repressão brutal do Estado ao movimento ope-rário crescente.

As figuras políticas que encarnam esta reação burguesa do século XIX, expressando seus contornos mais nítidos e que, durante longos anos, desempenharam o papel de gendarmes da ordem estabelecida no continente europeu, são Luís Napoleão e Bismarck. Como é sabido, Marx se dedicou especialmente ao caso francês, e Engels ao caso alemão.

Partindo da correspondência entre os amigos e do ras-treamento pre liminar da obra de Engels, procuro apresentar a concordância quanto à com preensão desse fenômeno, deixando a sugestão de que o bonapartismo tenha sido uma reflexão produzida e desenvolvida a “quatro mãos”.

A primeira indicaçao desta parceria refere-se à parti-cipação de Engels na elaboração de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de K. Marx. Segundo D. Riazanov,1 de acordo com a correspondência de Dezembro de 1851, podemos

1 Na introdução feita em 1927 para O 18 Brumário, de Karl Marx, D. Riazanov recorre a estas cartas para fundamentar o papel de Engels como “colaborador invisível” do filósofo alemão.

* Paulo Barsotti – Professor da Fundação Getúlio Vargas / SP

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considerar Engels como um “colaborador invisível” dessa obra de Marx

São três cartas de Engels enviadas ao amigo que estão em destaque. A mais significativa data do dia 3. Nela, Engels não só fornece a Marx o título do futuro trabalho, como também “fórmulas felizes” que serão aproveitadas quase que integralmente.

No dia seguinte ao coup de tête de Luís Napoleão, demonstrando total indignação, despre-zo e ironia, Engels comenta e analisa o acontecimento. A citação é longa, mas pertinente:

Representants de la France, deliberez en paix (Representantes da França, deliberem em paz). E onde é que poderiam estes senhores deliberarem mais pacificamente do que no quartel de Orsay, sob a vigilância de um batalhão de caçadores de Vincennes?

A história da França alcançou um estágio completamente cômico. Não poderia haver nada de mais ridículo que esta paródia de 18 Brumário rea lizada em tempos de paz, com a ajuda de soldados descontentes, pelo ser mais insignificante do mundo e que não encontrou até agora, pelo que no momento se pode julgar, nenhuma resistência! E que de forma esplêndida foram enganados todos os velhos asnos! A raposa mais astuta de toda a França, o velho Thiers, o advogado mais sutil do foro, M. Dupin, caíram tão facilmente na armadilha preparada pelo imbecil mais notório do século, assim como o general Cavaignac, com sua estú-pida virtude repu blicana e o fanfarrão Changarnier. E para completar o quadro, um parla mento poltrão com Odilon Barrot fazendo-se de ‘Löwe von Calbe’[...] Alguma vez no mundo se realizou um golpe de estado acompanhado de declarações tão estúpidas como este? E a isto se segue a risível ostentação napoleônica, o aniversário da coroação em Austerlitz, as especulações em torno do Consulado etc... O fato de que tudo isto pudesse triunfar por um dia sequer, mostra a degradação dos senhores franceses a um infantilismo sem igual no mundo.

É admirável a detenção dos grandes charlatães da ‘ordem’, em particular a do pequeno Thiers e do valente Changarnier! Esplêndida também foi a sessão dos restos do Parlamento no X Departamento, com Berryer, gri tando da janela: ‘Vive le Republique’ até que toda esta gente fosse detida e encerrada no pátio de um quartel sob a vigilância dos soldados. E este estúpido do Napoleão que prepara imediatamente suas malas para ir ins talar-se nas Tulherias. Nem torturando-se o espírito durante todo um ano se poderia criar um comédia mais linda.

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E à noite, quando esse cretino do Napoleão por fim deitou-se no leito tão desejado das Tulherias, o imbecil, certamente não se deu conta do que isto significava. Le Consulat sans le premier cônsul! Nenhuma dificuldade interna mais considerável que durante os últimos três anos, nenhuma grande dificuldade financeira, inclusive no seu bolso, nada de coligação nas fronteiras a ameaçar, nenhuma necessidade de cruzar o São Bernardo ou de obter a vitória de Marengo! Era para se desesperar. E nem sequer havia uma Assembléia Nacional que colocasse por terra os grandes planos do gênio não reconhecido! Por hora ao menos não, este asno encontra-se livre, solto de todas as amarras, tão absoluto como o velho Napoleão na noite de 18 Brumário, tão completamente livre que não poderá impedir de mostrar a cada passo a sua asnice aos quatro ventos! Terrível perspec tiva desta ausência de contradições!...

Que pode se esperar de toda esta estupidez? ‘Coloquemo-nos no ponto de vista da história universal’, e teremos um tema esplêndido para decla mação. Por exemplo, agora coloca-se se é possível o regime pretoriano da época do Império Romano, cujas premissas eram um extenso estado organizado militarmente, uma Itália despovoada e a falta de um operariado moderno: é possível um regime semelhante num país compacto como a França, onde existe um numeroso proletariado industrial? Ou bem: Luís Napo-leão carece de seu próprio partido, pisoteou os legitimistas e orlea nistas e agora tem que virar à esquerda. A virada à esquerda significa a anistia, a anistia significa o choque etc... Ou ainda: o sufrágio universal é a base do poder de Luís Napoleão, não pode violá-lo, mas a existência do sufrágio universal atualmente é incompatível com a existência de Luís Napoleão... Mas depois do que ontem observamos, não há nada o que esperar do povo. Na verdade, parece que o velho Hegel dirige de sua tumba a história no papel de espírito mundial, cuidando com a maior atenção a que todos os acontecimentos apareçam duas vezes: a primeira sob a forma de tragédia e a segunda na forma miserável de farsa. Caussidière por Danton, Louis Blanc por Robespierre, Barthelemy por Sain-Just, Flocon por Carnot, e o lunático Luís Napoleão, com meia dúzia de oficiais desconhecidos e cheios de dívidas em vez do pequeno cabo Napoleão I com sua turma de marechais. Estaríamos então, já no 18 Brumário...2

Nesta carta, que mereceu de Lenin uma anotação marginal segundo a qual Engels teria dado “primeiro esboço de O 18 Brumário”3 podemos iden tificar não só a reprodução quase

2 Marx, K. & Engels, F. Selected Correspondence. Moscou, Progress Publish, 1960, p. 60.3 Lenin, V.l. Acotaciones a Ia Correspondencia entre Marx y Engels 1844-1883. Montevideo. Pueblos Unidos;

Barcelona, Grijalbo, s.d.p., p. 259.

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literal de certas passagens, como na aber tura da4 obra de Marx, mas principalmente o espírito que permeia seu trabalho: a idéia da farsa e do farsante, que toma o golpe de Luís Napoleão como paródia à tragédia do 18 Brumário de Napoleão I. O primeiro como momento trágico, heróico, revolucionário; o segundo como medíocre, covarde, contra-revolucionário, assim caracterizado por Marx:

Na primeira revolução francesa o domínio dos constitucionalistas é se-guido do domínio dos girondinos e o domínio dos girondinos pelo dos jacobinos.

Cada um desses partidos se apoia no mais avançado. Assim impulsiona a revolução o suficiente para se tornar incapaz de levá-la mais além, e muito menos de marchar à sua frente, é posto de lado pelo aliado mais audaz que vem atrás e mandado à guilhotina. A revolução move-se, assim, ao longo de uma linha ascensional.

Com a Revolução de 1848 dá-se o inverso. O partido proletário aparece como um apêndice do partido pequeno-burguês democrático. É traído e abandonado por este a 16 de abril, a 15 de maio e nas jornadas de junho. O partido democrata, por sua vez, apoia no partido republicano burguês. Assim que consideram firmada a sua posição os republicanos burgueses desvencilham-se do companheiro inoportuno e apoiam-se sobre os om bros do partido da ordem. O partido da ordem ergue os ombros fazendo cair aos trambolhões os republicanos burgueses e atira-se, por sua vez, nos ombros das forças armadas. Imagina manter-se ainda sobre estes om bros militares quando, um belo dia, percebe que se trans-formaram em baionetas. Cada partido ataca por trás àquele que procura empurrá-lo para frente e apoia pela frente naquele que o empurra para trás. Não é de admitir que nessa postura ridícula perca o equilíbrio e, feitas as inevitáveis caretas, caia por terra em estranhas cabriolas. A revo-lução move-se, assim, em linha descendente. Encontra-se nesse estado de movimento regressivo antes mesmo de ser derrubada a última barricada de fevereiro e consti tuído o primeiro órgão revolucionário.5

Esta “linha descendente” encontra uma França atônita e degradada que não opõe ao golpe nenhuma resistência. Posição considerada por Marx como injustificável, mesmo sob

4 A abertura de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, inicia-se desta forma: “Hegel observa em uma de suas as obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar, a primeira como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Luis Blanc por Robespierre, a Mon¬tanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito Brumário”. Marx, K. & Engels, F. Textos. s.l.p., Ed. Sociais, vol. III, p. 203.

5 Marx, K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. s.l.p., Edições Sociais, s.d.p., p. 221.

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a alegação de “que a nação fora tomada de surpresa”, pois “não se perdoa a uma nação ou a uma mulher um momento de descuido em que o primeiro aventureiro que se apresente as pode violar.”6

Descuido e perplexidade demonstrado, de um lado, pelo comportamento ridículo da intelligentsia burguesa humilhada diante da armadilha há muito preparada e, de outro, pelo descaso e desarticulação dos setores popu lares que não perceberam, durante a curta existência da II República Francesa, a importância do embate entre o presidente e a Assembléia. Pro-cesso que fortalecia, centralizava e aperfeiçoava cada vez mais a máquina burocrático-militar do executivo, ao mesmo tempo que esvaziava, desgastava e esgotava qualquer possibilidade de atuação parlamentar e de controle do estado. A intensificação da luta de classes produziu condições e circunstân cias que abriram caminho para que o “aventureiro” com suas artima-nhas se lançasse e impusesse a toda nação francesa a “ditadura do sabre”.

Engels prevê que os setores populares, iludidos pela concessão imediata do direito eleitoral e pelo restabelecimento do sufrágio universal, se comportarão “infantilmente” nas eleições mar-cadas como rito de legitimação do golpe. Reali zadas em 20 e 21 de dezembro, num ambiente de grande repressão, sem ne nhuma liberdade de imprensa ou de reunião, resta-lhes somente a sanção do golpe por uma imensa maioria: 7.439.216 a favor contra 640.737.

A forma plebiscitária de que se revestiram estas eleições, irá se cons tituir num dos prin-cipais instrumentos de manipulação política do bonapar tismo. Também não passa desaper-cebido para Engels, outra característica essencial do bonapartismo: a ausência de um partido político exclusivo para sua sustentação e a sua substituição por uma política de manobras entre as classes. Prática de desprezo para com as organizações partidárias e de jogo de classes, que Marx já havia apontado e exposto no pequeno artigo “A Cons tituição da República Francesa aprovada em 4 de Novembro de 1848”, escrito em 14 de junho de 1851 e publicado no jornal cartista Notes to the People, poucos meses antes do “golpe anunciado”.7

Quanto ao futuro da farsa, ironiza Engels, que diante da degradação dos franceses e da ausência de perspectiva de revolução, ele depende do quanto “o espírito universal parecer descontente com a humanidade”.

Na segunda carta, de 10 de dezembro, voltando a comentar o assunto e sua conse-quência, indaga-se:

6 Marx, K. Op. cit., p. 207.7 Neste artigo, Marx aponta o impasse e ruptura iminente do partido da ordem com Luís Napoleão que diante

da impossibilidade constitucional de se reeleger, só tem como saída a manobra e o golpe. “A Bonaparte se oferece portanto uma única alternativa: desafiar a Consti¬tuição, recorrer às armas e liquidar o assunto... Por isso o jogo de Napoleão agora é fomentar o descontentamento da população. O inimigo de Napoleão é a burguesia, o povo sabe disso e, entre eles ocorre um laço de simpatia. Mas Napoleão tem em comum com a burguesia a marca da opressão: se conseguisse tirá-la de seus ombros e a descarregasse totalmente sobre as costas da burguesia, teria removido um grande obstáculo”. (Marx. K. & Engels, F. Opere Complete. s.l.p. Riuniti, vol. X.

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Que resultará de toda esta porcaria? Napoleão será eleito, disto não resta dúvida; a burguesia não tem opção; além do mais quem compro-vará as papeletas eleitorais? Os erros aritméticos nas contas a favor do aventureiro são extremamente sedutores e toda a baixeza das classes acomodadas francesas, sua submissão servil diante do menor êxito, sua tendência à adulação frente a qualquer poder, tem se manifestado desta vez com a maior clareza do que em qualquer outro tempo. Pois bem, de que for ma governará este asno? É evidente que conseguirá menos votos que em 1848, não mais do que três ou três milhões e meio; para o crédito e uma derrota perigosa. Nenhuma reforma financeira e fiscal é possível. Primeiro por falta de recursos econômicos; segundo, porque uma ditadura militar só pode realizá-la com guerras externas vitoriosas, quando a guerra cobre os custos dos gastos de guerra, enquanto em tempo de paz, além de não haver excedente nenhum, ainda tem que se gastar muito mais com o exército; terceiro porque Napoleão é estúpido demais. O que lhe resta? A guerra?...8

O destaque é a inexistência de alternativa da burguesia francesa em continuar exer-cendo seu poder político diretamente. Como Marx irá assinalar n’O 18 Brumário, após o fracasso de sua experiência parlamentar, da inca pacidade de sua Assembléia Legislativa em “adotar acordos”, produto da cisão entre a sua representação parlamentar e sua massa extra-parlamentar, a capi tulação diante do “aventureiro” era a única opção para manter sua força social e garantir seus interesses materiais.

Significativo prognóstico é o da necessidade da guerra, de uma política externa expansio-nista como elemento de sobrevivência de um regime militar. Não importa se o aludido fora a guerra contra a Inglaterra. Trata-se de reter que para um estado militar, a guerra exterior é sempre um movimento para o seu fortalecimento diante de uma crise interna, e que o II Império du rante toda a sua existência cumprirá esta tônica.

Finalmente, na carta de 16 de dezembro, Engels fala da urgência do pedido de Joseph Weydemeyer, antigo companheiro da Liga dos Comunistas e recém imigrado nos Estados Unidos, para que escrevesse artigos sobre os acontecimentos franceses no periódico que pretendia publicar.

Engels que, desde 1850, se transferira para Manchester, onde assume atividades comer-ciais junto a Ermen & Engels, comunica à Marx a impossi bilidade e desgosto para atender a solicitação feita e recorre ao amigo, fa miliarizado com a história francesa, desta forma: “...como sempre, é a ti, mais uma vez, que deixo o cuidado de resolver a dificuldade. Além do mais, se pudesse escrever algo não seria exatamente sobre o coup de tête, de Crapulinski. Você pode, em todo caso, escrever um artigo diplomático que ‘marcará época’’’.9

8 Lenin, V.I. Op. cit., p. 261.9 Marx, K. & Engels, F. Op. cit., p. 262.

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Marx, apesar de encontrar-se enfermo e passando por grandes di ficuldades financeiras, em quatro meses, executa o trabalho que será publi cado no primeiro número da revista de Weydemeyer, Die Revolution.

A primeira aventura guerreira do II Império, dar-se-á em torno da questão oriental: a guerra entre a autocracia russa e o império Turco-Otomano.

Para Marx e Engels – que escrevem sobre a Guerra da Criméia (1853-1856) centenas de artigos para os jornais, norte-americano, New York Daily Tri bune, e alemão, Neue Oder-Zeitung – a França bonapartista e a oligárquica Inglaterra de Lorde Palmestron, que estão-aliadas, intervêm no conflito em defesa do status quo continental com o seguinte objetivo: evitar o avanço da influência russa nos Balcãs e no Mediterrâneo destruindo sua força naval, mas procurando mantê-la forte o suficiente para cumprir o papel de principal instrumento contra os movimentos nacionais e democráticos de libertação no continente.

Nestes artigos, a farsa representada pelo II Império como defensor da “paz e civilização”, é revelada pela denúncia da guerra como instrumento utili zado pelo “sobrinho” para repetir a lenda do “tio”, saciar o nacionalismo francês relegado a um plano inferior pelas políticas externas da Restauração e pela Monarquia de Julho, e de afirmação do seu poder interno. Marx, a este respeito, assim se referiu:

Ele que trazia um nome cujo sentido era a tirania, a carnificina, ele que, pelo eco de uma glória passada, tinha abarcado a imaginação das massas francesas, sabia muito bem que para preservar o seu prestígio, o batismo de sangue e a consagração de sucessos militares eram absolutamente indispensáveis. Para ele, desde o início, era necessário levar uma guerra contra qualquer das duas potências que haviam provocado a queda de seu tio. A Berésia e Waterloo tinham que ser vingadas, e as glórias assim igualadas. Luís Napoleão era suficientemente esperto para compreender que a guerra deve ser mais ou menos popular para uma nação cujos ins-tintos são essencialmente militares, uma nação para qual – gaulesa ou francesa – o combate foi durante séculos a condição normal.10

Engels, por sua vez, irá acentuar nas suas análises, como parte da di visão de trabalho intelectual que acabou se estabelecendo com Marx, os as pectos militares e estratégicos da campanha. Refletindo sobre o fracasso do desempenho das forças anglo-francesas, a respon-sabilidade recai no plano militar elaborado por Luís Napoleão e imposto à Inglaterra, este “incapaz en fatuado” tanto no que se refere à sua política externa quanto interna:

Seria fácil provar como na administração interna do II Império se re-flete a pretensiosa mediocridade do seu sistema de fazer a guerra, como tam bém aqui a aparência substituiu a realidade, e como as campanhas

10 Marx, K. “The results of the War”. New York Daily Tribune. In: Marx & Engels. Collected Works. London, Lawrence E. Wishart, 1980.

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‘econômicas’ não foram de modo nenhum bem mais sucedidas do que as campanhas militares.11

Imediatamente à primeira grande crise econômica mundial do capi talismo em 1857 e como um de seus desdobramentos, a intervenção bona partista se dá agora em torno da questão italiana, com a crise estabelecida entre a monarquia Habsburgo e os estados italianos de Sardenha e Piemonte, aliados da França bonapartista.

Este é um dos grandes momentos da farsa encenada pelo imperador como “libertador das nações”, máscara encontrada para dissimular suas ver dadeiras intenções expansionistas e de verdadeiro gendarme da contra-revolução em todo o continente. A denúncia do conteúdo real da política externa imperial é apresentado por Engels em dois artigos, conjunto magnífico para se entender a questão italiana que foram publicados anonimamente, “O Pó e o Reno” (abril de 1859) e “Savóia, Nice e o Reno” (abril de 1860).

No primeiro, escrito às vésperas do conflito, Engels demarca posição de que a unificação italiana é algo exclusivo do povo italiano e que ela só será autêntica pela via revolucionária, nacional, republicana e democrática. Toda ingerência externa, francesa ou austríaca, é con-denada e seu êxito de penderá essencialmente da solução radical para a questão agrária. Sua crítica dirige-se aos alemães defensores das teorias chauvinistas das “fronteiras naturais”, que defendiam a manutenção do Império Habsburgo no norte da Itália e revelam a demagogia de Luís Napoleão que seduzia os liberais italianos declarando-se contra a dominação austríaca, mas que objetivamente buscava reforçar suas posições, internas e externas, às expensas da Itália.

O segundo texto, publicado após o armistício de Villafranca, confir mava o caráter ex-pansionista da política externa de Luís Napoleão: a França anexava ao império os territórios italianos de Nice e Savóia. Aqui também não faltam críticas aos democratas vulgares alemães como Karl Vogt e ao oportunismo de Lassalle, que a soldo do imperador ou iludido com o papel representado de “benfeitor” da Itália e da Alemanha, defendiam e consi deravam a sua política externa progressista.

Somente em 1865 é que Engels inicia sua tematização sobre o go verno de Bismarck que chegara ao poder em 1862. Neste momento, Engels e Marx sentiam uma dupla necessidade: a de desvendar a natureza do governo prussiano recém-instalado e a de criticar os lassalianos que reiteravam seu namoro com Bismarck, na expectativa de que este fizesse algumas con-cessões democráticas e instaurasse o sufrágio universal.

A oportunidade aparece com o pedido de Liebknecht para que Engels escrevesse um artigo para o Der Social-Demokrat, jornal da Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, sobre a guerra civil norte-americana ou a respeito da reforma organizacional do exército prussiano. Sua escolha recai sobre o último tema que lhe permitiria fazer a crítica no mo-mento adequado: deixar clara a posição de independência política da classe operária diante do conflito existente entre o governo de Bismarck e a oposição burguesa sobre a questão.

11 Engels, F. “O Destino do Grande Aventureiro” e “Crítica à Condução Francesa da Guerra”. In: Friedrich Engels. Biografia. s.l.p., Edições Avante, p. 222.

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O resultado foi a publicação do panfleto “A Questão Militar Prussiana e o Partido Operário Alemão”, texto revisto e aprovado por Marx que realizou pequenas e secundárias alterações, como pode-se observar pela correspondência do período.12 Nesse texto, Engels apresenta pela primeira vez o Estado reacionário prussiano como uma variante de bonapar-tismo nos seguin tes termos:

O bonapartismo é a forma necessária de estado num país onde a classe operária, ainda que tenha atingido um alto nível de desenvolvimento nas cidades, mas numericamente inferior aos pequenos camponeses no campo, foi vencida num grande combate revolucionário pela classe dos capitalistas, a pequena burguesia e o exército (...). Ele (o Estado) defende a burguesia dos ataques violentos dos operários, encoraja escaramuças pacíficas entre as duas classes e em tudo priva tanto uns como outros de quaisquer vestígios de poder político.13

Na continuidade, desdobrando as considerações de Marx n’O 18 Brumário, agora à luz de mais de uma década de exercício efetivo de poder, refere-se ao caso francês, nestes termos:

A forma desta dominação era naturalmente o despotismo militar e o seu chefe natural Luís Napoleão, seu herdeiro legítimo. O bonapartismo se coloca tanto acima dos operários quanto dos capitalistas, impedindo o choque entre eles. Dito de outro modo, defende a burguesia contra os ataques violentos dos operários, favorece as pequenas escaramuças pacífi cas entre as duas classes, sempre tirando tanto de uma quanto da outra qualquer espécie de poder político. Nenhum direito de associação, ne nhum direito de reunião, nada de liberdade de imprensa. O sufrágio uni versal, sob a pressão da burocracia, torna impossível qualquer elei-ção da oposição; e um regime policial jamais atingido anteriormente, inclusive na França com tudo que possui de policial. Aliás, uma parte da burguesia, assim como dos operários, está diretamente comprada. Uma pelos roubos colossais do crédito, através do qual o dinheiro dos pequenos capitalistas é jogado nos bolsos dos grandes; a outra pelas grandes obras nacionais constituindo-se num proletariado artificial e imperial submetido ao go verno, que se desenvolve nas grandes cidades ao lado do proletariado real e independente. Enfim, o bonapartismo ilude a coragem nacional através de guerras aparentemente heróicas, mas que na realidade são realizadas com a autorização da Europa contra o bode expiatório comum no mo mento – e em condições tais que a vitória está de antemão assegurada. O principal resultado que um regime assim pode trazer aos operários e à burguesia, é que eles descansam da luta e que a indústria se desenvolve fortemente (se as

12 Ver Mayer, Gustav. Friedrich Engels. Biografia. México, Fondo de Cultura Económica, s.d.p., p. 507.13 Rubel, Maximilien. Karl Marx devant le bonapartisme. Paris, Mouton & Co., 1960, p. :117.

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condições se adequarem), e portanto os elementos de uma nova luta, mais violenta se desenvolvem, até que estoure assim que a necessidade do repouso desapareça. O cúmulo da estupidez seria esperar mais para os operários, de um regime que existe exatamente para tê-los presos diante da burguesia...14

Fica clara a caracterização do bonapartismo como um regime político defensivo, de con-tenção e repressão à luta de classes e de afirmação da or dem social vigente. Este despotismo policial e militar cumpre o papel de “sal vador” da sociedade, colocando-se aparentemente acima das classes e de qualquer instituição parlamentar como árbitro exclusivo das contendas sociais.

A manutenção da farsa implica na ausência ou restrições das liber dades parlamentares e democráticas, na manipulação demagógica e buro crática do sufrágio universal e do indis-pensável jogo entre as classes. A corrupção desenfreada que compra e coopta a burguesia, é também a moeda criadora de um proletariado artificial, enquanto que a expansão da “glória na cional” é o elemento de manipulação ideológica de toda nação. Sob estas circunstâncias, de reino da “segurança, da ordem e da paz social”, o estado bonapartista se converte em verdadeira “estufa” que alimenta e alavanca um novo processo de concentração de capital, garantindo por certo período as condições necessárias para o desenvolvimento industrial e comercial, e sufo cando por certo tempo as contradições sociais.

Em 1872, após a Guerra Franco-Prussiana, a derrota e queda do II Im pério, a Comu-na de Paris e a publicação de A Guerra Civil na França, texto definitivo de Marx sobre o bonapartismo, Engels retoma o caso alemão. Agora a propósito da crise aguda da habitação, situação própria de um país em vias de completar sua revolução industrial.

São três artigos escritos para o Volksstaat, órgão central do Partido Social-Democrata Alemão, que posteriormente serão agrupados e publicados com o título de Contribuição ao Problema da Habitação. Neles, a crítica se dirige ao proudhonismo alemão e aos socialismos burguês e pequeno-bur guês que se manifestavam diante da questão. O trabalho discorre sobre a forma particular do desenvolvimento capitalista alemão, marcado por seu atraso industrial, pela forte presença agrária e pela debilidade e covardia da burguesia alemã.

Engels irá assinalar, dois anos depois, no “Prefácio” da reedição de As Guerras Campone-sas na Alemanha, que ali se tratava de analisar o processo de transição da arcaica monarquia absoluta prussiana à moderna monarquia bonapartista.

Depois de considerar o Estado prussiano como “produto necessário” da infra-estrutura social em que está alicerçado, passa a analisar a sua com posição social. De um lado, temos uma nobreza poderosa formada de grandes proprietários de terras e uma burguesia “relativamente jovem e, particularmente covarde, que, até aquele momento, não havia conquistado o poder político diretamente como na França, nem mais ou menos diretamente como na Inglaterra”. 15

14 Rubel, Maximilien. Op. cit., p. 117.15 Engels, F. As guerras camponesas na Alemanha. s.l.p., Aldeia Global, p. 46.

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(grifos nossos) Ao lado delas, emerge um “proletariado in telectualmente desenvolvido”, que cresce e se organiza rapidamente.

Nessa situação particular, específica do bonapartismo alemão, mescla da antiga monar-quia absoluta e da moderna monarquia bonapartista, encon tramos circunstâncias históricas mais complexas que no caso francês, uma vez que há um duplo equilíbrio de classes: “entre a nobreza proprietária de terras e a burguesia, condição da velha monarquia absoluta, e entre a bur guesia e o proletariado, condição essencial do bonapartismo moderno.”16

Tanto na velha quanto na nova monarquia, ergue-se o “verdadeiro poder governamental”, centralizado e monopolizado por uma “casta de oficiais e de funcionários”, recrutados “parte entre as sua próprias fileiras, parte entre a pequena nobreza do morgadio, mais raramente na grande nobreza e a parte mais débil na burguesia”.17 A forma de constituição da burocracia estatal prus siana é que “confere ao estado a aparência de autonomia frente à sociedade”18.Estas contradições sociais são geradoras de um “pseudo constitucionalismo” presente tanto na velha monarquia em decomposição, quanto na nova monarquia bonapartista no momento em afirmação.

Se, de um lado, a burguesia alemã gradativamente assumia “todas as questões econômi-cas do estado prussiano”, por outro, tendo como determi nação histórica sua incompletude política, covardemente recuava nas reivin dicações legislativas e democráticas necessárias à adaptação de seus interesses materiais, para não fornecer ao proletariado e aos setores domi-nados, nenhuma arma política que a pudesse ameaçar.

É neste espaço que Bismarck desenvolve a sua política de concessões às classes e de ma-nutenção do equilíbrio entre elas. Além de utilizar a “cor rupção em grande escala, importada da França em 1870”, Engels acrescenta que provavelmente poderá lançar mão do “miserável estratagema bonapar tista” da criação de um proletariado artificial pôr meio de obras públicas, ca paz de assegurar e dar continuidade ao seu poder.

No “Prefácio” de 1874, acima aludido, este processo de transição é considerado “o maior passo à frente” para a modernização da Prússia semi-feudal, tanto no que se refere às condições econômicas quanto políticas. Pela via reformista, de contínua tradução do “dialeto feudal para o idioma bur guês”, ilustrada pelo provérbio “Quem vai devagar, vai sempre”, e que a Prús sia, por um “estranho destino”, realiza no final do século XIX, “sob a forma agradável” e segura do bonapartismo, sua revolução burguesa, iniciada em 1808-1813 e que em 1848 dera “outro passo adiante”.19

Nesse lento processo, ao cumprir suas tarefas econômicas, a burguesia alemã “abando-na ao governo todo o poder político efetivo”; aprova impostos e concede-lhe empréstimos, contribui para dar às novas reformas aparência legal e fornece os soldados necessários, de tal

16 Engels, F. Op. cit., p. 46.17 Idem, ibidem.18 Idem, ibidem.19 Engels, F. As guerras camponesas na Alemanha. México, Grijalbo, s.d.p., p. 17.

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forma, “que o velho poder policial mantém toda sua força ante os indivíduos recalcitrantes...”20

Em suma, paulatinamente, “a burguesia compra sua emancipação social gradual ao preço de uma renúncia imediata de seu próprio poder político”.21

Este processo do desenvolvimento do capitalismo na Alemanha, que Marx, em 1844, na “Introdução” à Contribuição a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, caracterizara como

a “miséria alemã”, é reiterado por Engels pela sina de sua burguesia por “sempre chegar tarde demais” em tudo e que, no instante de sua tardia afirmação econômica, o domínio político direto da bur guesia européia já se encontrava em declínio.22 As referências são a Inglaterra oligárquica e a França bonapartista.

Este fenômeno de desprezo, de indiferença pelo político, de abandono da sua domi-nação de classe ou da partilha com aliados de outras classes ou frações de classe, para con-centrar os esforços nas atividades privadas, é ex plicado pela “particularidade que distingue a burguesia de todas as classes que governaram antes dela” pois, “em seu desenvolvimento, há uma virada a partir da qual todo acréscimo de seus meios de poder, principalmente de seus capitais, apenas contribui a torná-la cada vez mais inapta ao domínio político”.23 Esta despolitização e redução da ação pública e a consequente transferência da atividade política à uma oligarquia ou burocracia estatal tec nocrática-militar semelhante ao ideal positivista, é uma tendência histórica da burguesia que tem na política bonapartista, com todas as suas variantes, a expressão mais eficiente e adequada em sua marcha contra-revolucionária.

Em 1884, Engels publica sua última grande obra, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, após a leitura das anotações que Marx fizera da leitura do livro de L. H. Morgan, A Sociedade Primitiva.

A referência feita ao bonapartismo se dá na parte final e conclusiva da obra. Inicialmente, aponta a gênese do estado – fenômeno histórico-social e, assim como a política, portador de uma existência meramente temporal restrita à sociedade de classes – como produto da desagregação da ordem gentílica e do conflito gerado pelo surgimento das classes sociais. Seu papel é o de “refrear os antagonismos de classe” e é, “por regra geral, o estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante que, com ajuda deste, se converte também em classe politicamente dominante, adquirindo com isto novos meios de repressão e de exploração da classe oprimida”.24

Eis a regra geral e a determinação ontológica do estado: ser instru mento da classe econo-micamente dominante que estende seu poder repres sivo da esfera econômica à política, que assume e controla a máquina estatal, produzindo as condições necessárias para a reprodução de seu poder material e de dominação das classes subalternas. Porém, como toda regra geral,

20 Engels, F. Op. cit., p. 17.21 Engels, F. Op. cit., p. 18.22 Marx, K. Contribuição a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. p. 11.23 Marx, K. Op. cit., p. 11.24 Engels, F. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. in: Marx, K. & Engels, E. Obras Esco-

gidas. Moscú, Progreso, s.d.p., p. 606.

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a ex ceção se faz presente e já havia sido detectada em 1846 n’A Ideologia Alemã a respeito das monarquias absolutas. Quase quatro décadas depois da afir mação do domínio e pleno desenvolvimento burguês, a exceção é enri quecida e assim apresentada:

[...] existem períodos em que as classes em luta estão equilibradas, que o poder de estado, como mediador aparente, adquire certa independên-cia momentânea em relação a cada uma delas. Neste caso se encontra a monarquia absoluta dos séculos 17 e 18, que mantinha o equilíbrio entre a nobreza e a burguesia; e neste caso estiveram o bonapartismo do I Im pério francês, e sobretudo o segundo, valendo-se dos proletários contra a burguesia, e desta contra aqueles. A mais recente produção desta espécie, onde opressores e oprimidos aparecem igualmente ridículos, é o novo Im pério alemão da nação bismarckiana: aqui mantém em equilíbrio capita listas e trabalhadores, subordina-se a ambos indistintamente em proveito dos junkers prussianos do interior [...]25

Mesmo diante desta situação excepcional de equilíbrio da luta de classes que acentua a aparente independência e autonomia do estado em relação à sociedade, Engels reforçando sua natureza servil arremata: “o estado é um orga nismo de proteção da classe proprietária contra a não proprietária”. Sempre o estado tem a função de proteção do status quo e de repressão às classes des possuídas e trabalhadoras, e a dominação bonapartista é sua manifestação mais crua e desnaturada do antagonismo e subordinação da sociedade ao estado.

O bonapartismo volta novamente à tona nas apresentações que Engels fará às reedi-ções da trilogia de Marx sobre a história francesa. No “Prefácio” de 1885 à terceira edição alemã de O 18 Brumário, uma passagem sobre a particularidade da política francesa vale ser lembrada:

A França é o país onde, mais do que em qualquer lugar, as lutas de classe foram sempre levadas à decisão final e onde, as formas políticas mutáveis nas quais se processam estas lutas e nas quais se condensam seus resultados tomam os contornos mais nítidos. Centro do feudalismo da Idade Média, país-modelo, desde a Renascença, da monarquia unitária baseada nos testamentos, a França desmantelou o feudalismo na Grande Revolução e instaurou o domínio da burguesia com uma pureza clássica inigualada por qualquer outro país europeu.26

Podemos acrescentar, sem violar o espírito do comentário, que a França é também berço exemplar, paradigmático e clássico da dominação burguesa na sua fase contra-revolucionária, o estado bonapartista.

25 Marx, K. A Ideologia Alemã. In: Marx, K. & Engels, F. Obras Escogidas. Moscú, Progreso, s.d.p., p. 608.26 Marx, K. & Engels, F. Textos. s.l.p., Ed. Sociais, s.d.p., vol. III, p. 201.

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Na “Introdução” de 1891 à A Guerra Civil na França, encontramos a fórmula sintética da gênese do bonapartismo clássico: “Se o proletariado não estava ainda em condições de governar a França, a burguesia já não podia continuar governando”.27 Neste texto de Marx, o regime corporificado por Luís Napoleão era “a única forma de governo possível, num momento em que a burguesia havia perdido a capacidade de governar e a classe operária não havia adquirido”.28

Estas colocações nos remetem à busca das diferenças entre o bona partismo francês, aqui considerado como clássico e sua variante, o caso prus siano. No primeiro, a burguesia francesa, como classe, já havia conquistado e exercido o poder político direto sob a forma exemplar de república parla mentar, mas dividida e temerosa diante do proletariado, dele abre mão para garantir seus interesses materiais. No segundo, como vimos, a burguesia alemã que ainda não havia conquistado e exercido sua dominação de classe, igualmente acovardada com a presença operária, recusa esta perspectiva de poder conciliando seus interesses com as forças da velha sociedade, como meio de se afirmar economicamente. Ambos tem em comum um relativo atraso industrial, mais acentuado no caso alemão que no francês, e sempre surgem após um período de intensificação da luta de classes, onde o prole tariado urbano com presença reduzida joga um papel político limitado, en quanto o elemento agrário torna-se politicamente decisivo. No caso clássico, serão os pequenos proprietários do campo, classe criada pelo “tio” no pro cesso de afirmação da revolução burguesa, que levarão o “sobrinho” ao trono. Na variante prussiana, serão os junkers, os grandes proprietários rurais, ex pressão da velha sociedade feudal que gradativamente irão se aburguesando, dando base e sustentação ao estado bismarckiano.

Na “Introdução” de 1895 à A Luta de Classes na França, conjunto de textos selecionadas por Engels e que foram publicados pela primeira vez em 1850 na Nova Gazeta Renana – Re-vista Político-Econômica, a gênese do bona partismo clássico é apontada como resultante de um “vazio de poder”, de uma crise especial de hegemonia, de cisão entre as diversas frações da bur guesia francesa que, sentindo-se fustigada pelos setores populares, não encon tra so-lução de continuidade para sua dominação direta. Neste que é seu último trabalho, Engels assim se refere:

Uma burguesia dividida em duas frações monárquico-dinásticas, mas que solicitava sobretudo calma e segurança para seus negócios financeiros e diante dela um proletariado vencido, é verdade, mas sempre ameaçador e em cuja volta agrupavam-se, cada vez mais, pequenos burgueses e camponeses; a ameaça contínua de uma exploração violenta que apesar de tudo, não oferecia nenhuma perspectiva de solução definitiva, tal será a situação que se podia considerar como feita especialmente para o golpe de estado do terceiro pretendente, o pretendente pseudo-democrata Luís Bonaparte.29

27 Marx, K. & Engels, F. Textos. s.l.p., Ed. Sociais, vol. .1, p. 159.28 Marx, K. & Engels, F. Op. cit., p. 196.29 Marx, K. & Engels, F. Op. cit., vol. III, p. 99-100.

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Na sequência do texto, a partir da retrospectiva da história europeia das revoluções de 1848 à Comuna de Paris, no “fecho deste período”, não encontramos elementos para con-siderar o golpe de Luís Napoleão e a ins talação do regime bonapartista como um capítulo, mero “acidente histórico” no curso “eterno” da democracia, como querem e dizem certas análises de cunho liberal.

O coup de tête de Luís Napoleão significa, para Engels, “momen taneamente” o fim de um período de “revoluções de baixo para cima” e o início de “revoluções de cima para baixo”. É nesta “linha descendente” da marcha da contra-revolução burguesa que Bismarck aparece como “imitador” do imperador francês de quem adota e transfere a política bonapartista para a Prússia, executa seu golpe de estado e realiza “sua revolução de cima para baixo”. Eis a “forma suave”, contra-revolucionária do processo burguês alemão, a via bonapartista. Diante deste quadro, a Europa torna-se “pequena para dois bonapartes” e dois impérios, e o resultado disto não pode ser outro que a guerra imperialista franco-prussiana.

Aqui parece ser o momento oportuno para que a utilização e aprovação de Marx, quanto a validade da extensão do bonapartismo ao estado bismarckiano como variante deste fenômeno, possa ser mais uma vez obser vada na seguinte passagem do “Primeiro Manifesto do Conselho Geral da AIT sobre a Guerra Franco-Prussiana, julho, 1870”:

Sem deixar de conservar cuidadosamente todos os seus encantos congêni-tos de seu antigo sistema, acrescenta-lhe todas as manhas do II Império, seu despotismo verdadeiro e seu democratismo fingido, suas feitiçarias políticas e suas agiotagens, sua linguagem enfática e seus vulgares passes de mágica. O regime bonapartista que até então só florescia em uma margem do Reno, encontrou a sua réplica na outra margem. De um tal estado de coisas o que podia resultar senão a guerra?30

Na verdade, o bonapartismo é o marco histórico e o ápice de um processo iniciado em 1830 pela burguesia francesa onde ao mesmo tempo em que tem “a sua formação política acabada” com a monarquia consti tucional de Luís Felipe, ganha também a “consciência de sua significação social” demonstrada pela recusa na antiga crença revolucionária de “poder atingir o estado ideal através do estado representativo constitucional”. Ela não deseja mais a “salvação do mundo” e muito menos aspira a realização de “fins humanos universais”, longe disso, reconhece “nesse regime a expressão oficial do seu poder exclusivo e a consagração política dos seus interesses particulares”.31 Esta análise de Marx feita quatro anos antes das revoluções de 1848, assinala o fim e o abandono das veleidades heróicas e universais da bur guesia em escala mundial e a nova tônica histórica que o estado burguês passa a imprimir em todas as formas de estado criadas pelas suas revoluções políti cas, no enfrentamento da luta de classes e na repressão à revolução social.

30 Marx, K. & Engels, F. Op. cit., vol. 1, p. 170.31 Marx, K. A Sagrada Família. s.l.p., Editorial Presença, s.d.p., p. 186-187.

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O bonapartismo representa a vitória do horizonte burguês, circuns crita ao universo da ordem e das revoluções políticas, fadadas ao aper feiçoamento do estado, enquadradas no movimento restrito e mesquinho da política, que configura o êxito “momentâneo” da contra-revolução sobre a revolução social.

A política bonapartista é a alternativa utilizada pela burguesia diante do impasse, fracasso ou impossibilidade de realização e continuidade da sua dominação direta e de classe. Forma autocrática de poder político, o bona partismo leva às últimas conseqüências a tendência, contida no estado mo derno, de representar os interesses gerais e estar acima dos interesses privados, de abstrair e querer eliminar as diferenças dos homens reais dispos tos na vida coti-diana concretamente em classes sociais. Ilusão extrema na força, imparcialidade e autonomia do estado diante da sociedade, condição de sua arbitragem despótica sobre toda a nação, que em momento algum nega o seu caráter de classe frente às classes subalternas e que garante às frações da classe dominante a “paz social” necessária para o desenvolvimento de seus negócios. Ela representa efetivamente “a forma mais prostituída” e repressiva do poder estatal burguês que se transforma em “‘meio de escravidão do trabalho pelo capital”.32

Regime pós-parlamentar, o bonapartismo se ergue como instrumento de segurança e proteção do status quo na ausência de consenso produzida pelo dilaceramento das diversas frações da classe dominante na disputa de seus interesses mercantis, momento de risco para ordem e oportunidade para o questionamento das classes dominadas. Na defesa de seu interesse de classe, a burguesia autolimita seu poder político parlamentar para fortalecer o executivo que amplia e aperfeiçoa cada vez mais sua máquina buro crático-militar direcionada à repressão das classes trabalhadoras e à revolução social.

O espírito mais geral e sintético do bonapartismo pode ser encontrado na carta que Engels envia a Marx em 13 de abril de 1866, momento em que Bismarck como parte de sua política de manobras, instaura o sufrágio univer sal na Alemanha:

Assim, Bismarck deu o audaz passo do sufrágio universal, ainda que sem Lassalle, ainda que sem seu Lassalle. Ao que parece, depois de certa re-sistência o burguês alemão se conformou com isto, pois o bonapartismo é a verdadeira religião da burguesia contemporânea. Cada vez mais fica claro para mim que a burguesia é incapaz de governar diretamente, e por isso ali onde não existe uma oligarquia que em troca de uma boa remu-neração (como se faz aqui na Inglaterra) pode-se encarregar de dirigir o estado e a sociedade no interesse da burguesia, a forma normal é a semiditadura bonapartista. Esta defende os interesses materiais essenciais da burguesia até contra sua própria vontade, mas ao mesmo tempo, não lhe concede acesso ao poder (político). De outro lado, esta mesma ditadura, por sua vez, se vê obrigada, contra a sua vontade, a fazer seus os interes ses materiais da burguesia.33

32 Marx, K. A Guerra Civil na França. s.l.p., Ed. Sociais, vol. 1, p. 196.33 Cf. Leni, V. 1. Op. cit.

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A colocação é cristalina deste modo de ser específico da dominação burguesa no curso de sua contra-revolução. O bonapartismo funciona como elo de ligação e ponto de convergência de todas as diferentes frações burgue sas que, após a renúncia circunstancial ao exercício direto de sua dominação, abrem mão de seu manto democrático parlamentar concentrando todo o poder político no executivo, que subordina ou manipula o poder legislativo e judiciário. Re-legado a uma instituição ou a um grupo específico chefiado por um indivíduo que representa o papel de “benfeitor de todas as classes”, o estado bonapartista torna-se árbitro e adminis-trador absoluto das contendas so ciais, assumindo ora a forma expressamente ditatorial, ora semiditatorial, sem pre assegurando e protegendo o regime de apropriação social. Este regime pós-parlamentar, despótico e autocrático que se movimenta com lances de ataque e defesa, tem a sua existência determinada enquanto cumprir com eficácia sua missão de instrumento de contenção da luta de classes e de con solidação, conservação e expansão da classe dominan-te. No momento em que a ordem estiver firmemente consolidada, a classe dominante pode dispensar seus préstimos e encontrar outra forma de estado compatível com o momento. Quando não puder mais reprimir e sufocar as contradições sociais latentes, estas, acirradas, explodem e novamente a luta política e a revolução social re tomam a cena histórica.

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O exame de uma vida: perfil de Eric hobsbawm como historiador

Aldo Agosti*

O exame capital para um historiador consiste em saber se ele consiga formular e responder à pergun-tas, sobretudo hipotéticas, sobre temas de particular importância para o próprio historiador, como se ele fosse um jornalista ocupado em contar fatos ocorridos há muito tempo, e se consiga fazé-lo, contudo, não como um estranho, mas como pessoa profundamente envolvida. (Eric Hobsbawm, Tem-pos Interessantes. Uma vida no século XX)

Tratar da personalidade de um grande historiador como Eric J. Hobsbwam em poucas páginas significa, necessaria-mente, escolher alguns temas sobre os quais concentrarmos a atenção. Começarei pela biografia dele: é uma abordagem não patente como poderia parecer. Não é, pois, um evento frequente a biografia de um historiador representar de forma tão emblemática nós e fases relevantes de pelo menos uma parte das épocas centrais de sua obra. Com certeza é o caso de Eric Hobsbawm. E – acrescentamos – se conseguirmos colher este dado peculiar, neste caso tão realçado, da relação entre in-divíduo e grande histoire, o devemos antes de tudo à sua lição, que, desde seus primeiros livros, nos ensinou a entrever nos itinerários biográficos individuais, tantas peças daquele grande mosaico que é a história coletiva. Uma razão não secundária da fascinação exercida por seus escritos – além de outras sobre as quais voltarei a argumentar – reside com certeza nos não fre-quentes, mas sempre iluminantes, clarões autobiográficos que os atravessam. São clarões fundados sobre a memória pessoal, inclusive a que ele definiu, felizmente, em Era dos Impérios, a “zona crepuscular” entre história e memória, a que se estende “do ponto de início das tradições e das memórias familiares ainda vivas (desde a mais antiga fotografia de família que o familiar mais idoso conseguir identificar ou explicar), até o fim da infância, quando fatos públicos e privados se percebem

* Historiador – Itália

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como algo inseparável”1. Em alguns casos esta memória chega a ser até mais eficaz da citação historiográfica, como quando para, descrever os efeitos da inflação do primeiro pós-guerra, Hobsbawm lembra, em O breve século XX, o seu avô calcular a renda da apólice de seguro na Austria daquele período, que lhe foi suficiente apenas para gastá-la em um café de Viena2.

Eric Hobsbawm nasceu em Alexandria de Egito em 8 de junho de 1917. Sua mãe era uma moça vienense de boa família que gozava de uma merecida viagem prêmio após ter conseguido o diploma liceal, seu pai era um funcionário dos correios britânicos: duas pessoas que se encontraram no lugar “em que a economia e a política da idade imperial (sem falar da história social da mesma) os deixou se encontrarem”3, e dificilmente poderiam encontrar-se antes daquele momento histórico, ou mesmo depois dele. Hobsbawm passou a infância e a primeira adolescência entre a Viena, da Finis Austriae já em via de exaustão, e a Berlim da República de Weimar, já próxima de sua trágica queda. A dele era, como lembra em sua autobiografia, “uma família de judeus pequeno-burguesa, unida não apenas pelos laços entre mães, filhos e netos, e entre irmãos e irmãs, mas, também, pela necessidade econômica”4 . Em apenas dois anos, a morte dos pais – que deixou Eric orfão aos 14 anos – pôs fim à trama de uma vida relativamente sossegada apesar de recorrentes dificuldades econômicas. Hobsbawm deixou Viena para Berlim, onde morou com a família de um tio: ali ele chegou em 1931, em plena crise econômica e ascensão do partido nacional-socialista. Na Berlim daqueles tempos, onde se advertia uma atmosfera de antisemitismo menos virulento e difuso daquilo que ele conheceu em Viena, o rapaz iniciou os estudos liceais e, sobretudo, fez seu aprendizado político: filiou-se ao Sozialistische Schülerbund, organização estudantil não declaradamente comunista mas muito próxima à KPD.

Em 1932 as vicissitudes da família o levaram à Inglaterra: onde seu avô, artesão eba-nista, havia chegado nos anos Setenta de Oitocentos procedente da Polônia russa, impondo ao funcionário cockney do registro londrino um exercício de transcrição que transformou um sobrenome tipicamente judeo como Obstbaum no mais incomum que ele ainda hoje

1 Eric J. Hobsbawm, L’età degli imperi 1875-1914, Laterza, Roma-Bari 1987, p. 52 Id., Il secolo breve, Rizzoli, Milano 1997, p. 112.3 L’età degli Imperi, cit., p. 5.4 Anni interessanti. Autobiografia di uno storico, Milano, Rizzoli, 2002, p 29. Detto per inciso, questa

identità ebraica non sembra essere stata vissuta da Hobsbawm in modo particolarmente intenso: né, come è accaduto a molti altri, egli l’ha riscoperta in tarda età. I suoi studi non riflettono un’attenzione privilegiata sulle tematiche che la riguardano. Arno Mayer, nella discussione del Secolo breve che si è svolta a Roma nel 1998, è stato molto esplicito: “Io rimprovero Hobsbawm – ha scritto - come qualsiasi persona della sua e della mia generazione con alle spalle un certo patrimonio di esperienze – per non aver posto il ‘giudeocidio’ al centro di questa epoca di catastrofe” (L’età degli estremi. Discutendo con Hobsbawm del Secolo breve, Carocci, Roma 1998, p. 33). E in tempi più recenti lo storico inglese ha assunto, di fronte alla questione della perseguibilità penale del negazionismo (processo Irving-Lipstadt), una posizione talmente “oggettiva” da attirarsi accuse nemmeno troppo velate di parzialità da parte dalla comunità ebraica. Si veda la lectio magistralis di Hobsbawm in occasione della laurea honoris causa conferitagli dall’Università di Torino nel 2000, Giudizio storico e giudizio politico, pubblicata in “L’Ateneo”, Notiziario dell’Università degli studi di Torino, anno XVIII, novembre-dicembre 2001, p. 67-70 e, per alcuni echi polemici, B .Gravagnuolo, Se il marxista Hobsbbawm apre a Irving, “L’Unità”, 30 marzo 2000; N.Ajello, Gli storici contro Hobsbawm, “La Repubblica”, 30 marzo 2000.

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leva. Viveu portanto os anos mais intensos de sua formação intelectual em um observatório ainda privilegiado para aprender o presente e compreender o passado: a marca cosmopolita imprimida em seu percurso biográfico, sempre bem visível, fundiu-se com a melhor tradição intelectual britânica. Estudou história na Cambridge de Keynes e Sraffa, mas como ele conta em sua autobiografia, chegou ao King’s College já “decidido filiar-se ao partido comunista e a mergulhar na política”. Tornou-se membro da Secretária da seção estudantil de Cam-bridge (“foi o mais alto cargo político que alcancei”, lembra com ironia5): e trabalhou com um grupo de estudantes indianos, o que o deixou mais sensível às problemáticas daquilo que mais tarde se chamaria “Terceiro Mundo”: o seu primeiro projeto de pesquisa abordava as questões agrícolas da África do Norte francês. Mas a guerra e seis anos de serviço militar o fizeram desistir, e ao retomar os estudos, escolheu uma tese sobre a Fabian Society. Um argumento que, parece, não o apaixonou, a não ser pela descoberta da Webb Collection na Biblioteca da London School of Economics6. Seu interesse pela história da classe operária britânica originou-se da Industrial Democracy dos Webb, tema de seus primeiros artigos.

Como cabe o marxismo neste processo de formação? Os estudos de história em Cambridge não foram particularmente influenciados pelo marxismo. Hobsbawm lembra apenas de um professor que discutia sobre Marx: Micheal Postan, um emigrado russo que ensinava história econômica e que com certeza não tinha simpatia pelo marxismo, mas que se confrontava de cara aberta com suas teses. Portanto, como de resto, era frequente para as gerações que se for-maram nos anos 30 do século XX, a adesão à lição histórica do marxismo era consequência, e não premissa, do engajamento político. Sobre si mesmo e sobre seus colegas de estudo, Hobs-bawm diz, de forma sintética mas eficaz: “Contentavamos em saber que Marx e Engels haviam endireitado a filosofia de Hegel, sem preocupar-nos em descobrir o que eles recolocaram com os pés no chão. O que deixava o marxismo irresistível era seu legado universal. O ‘materialismo dialético’ fornecia, se não uma ‘teoria da totalidade’, ao menos uma ‘estrutura da totalidade’, relacionando a natureza orgânica e inorgânica com os fatos humanos, coletivos e individuais, e oferecendo um guia à natureza de todas as interações em um mundo em constante devir”7.

Ele aprendeu e afinou o ofício de historiador, segundo ele afirma diversas vezes, menos pelos mestres acadêmicos do que por aquela extraordinária forja intelectual que foi o grupo de historiadores marxistas filiados ao Partido Comunista Britânico que se constituiu em 1946: Maurice Dobb, Cristopher Hill, Rodney Hilton, Victor Kiernan, Edward P. Thompson. Durante uma década, este grupo deu vida, por usar suas mesmas palavras, a “algo de pare-cido com um seminário permanente, onde todos nós aprendemos uma quantidade enorme de coisas e, por assim dizer, crescemos como historiadores sem procurar fazê-lo de forma sistemática”8. Desde então e para sempre, a atividade de pesquisa conjugou-se estreitamente

5 Anni interessanti, cit., p. 130.6 Todavia, Hobsbawm publicará nos primieros anos Sessenta um ensaiode notável interesse sobre o tema: I

fabiani: una nuova interpretazione, in Studi di storia del movimento operaio, Einaudi, Torino 1972, p. 292-316.

7 Anni interessanti, cit. p. 1158 Una storia per ‘cambiare o almeno criticare il mondo’. Intervista a Eric J.Hobsbbawm, a cura di A.Agosti, “Passato

e Presente” , a. XVI (1998), n. 43, p. 95.

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com o engajamento político militante. Quando, muitos anos depois, escreveu que “nós histo-riadores operamos naquela zona cinzenta onde a investigação e até mesmo a escolha daquilo que a história é, sofrem constantemente a influência do que nós somos e o que nós queremos que aconteça ou não aconteça na realidade”9, provavelmente ele pensava nisto.

Além disso, este modo de entender sua função de historiador, raramente representou uma forma direta de condicionamento, coisa que até mesmo seus críticos lhe reconheceram: pelo contrário, foi a etiqueta de historiador militante o que dificultou sua carreira acadêmica.

Engajamento militante quer dizer para Hobsbawm ser comunista: este – um dos temas que mais profundamente marca suas páginas autobiográficas, deixando uma marca particularmente importante em seu livro mais conhecido O breve século XX – é o segundo elemento que queria tratar. Hobsbawm advertiu a necessidade de explicar e contar – extensamente e em diversas ocasiões – as motivações pelas quais ele se tornou comunista e o tipo de comunista que ele foi. “Os meses passados em Berlim fizeram de mim – escreve em Tempos Interessantes – um comunista por toda a vida, ou pelo menos um homem cuja a vida, ao ser privado do projeto político a que se dedicou desde estudante, perderia sua própria natureza e seu significado, embora aquele projeto incontestavelmente fracassou, e como compreendo agora, estava destinado a fracassar. O sonho da revolução de Outubro ainda está em algum lugar dentro de mim, como os textos apagados que aguardam ser recuperados em alguma parte do hard disk de um computador por um especialista. Abandonei o sonho – aliás o recusei – mas ele não foi obliterado [...] Sou parte da geração pela qual a revolução de Outubro representou a esperança do mundo”10.

O internacionalismo (“o nosso era um movimento para toda a humanidade e não apenas para algum segmento em particular”11) e a confiança em uma revolução mundial (embora ele lembre que “o que nós esperavamos não era a dramaticidade de uma insurreição, mas a de uma persecução”12, inspirada mais nas boas maneiras de Dimitrov no processo de Lípsia para o incendio do Reichstag, do que no assalto ao Palácio de Inverno), pertencem a este DNA. De fato, a marca mais profunda deixada na formação de sua personalidade pelo comunismo é a luta contra o ameaçador avanço do fascismo na Europa dos anos Trinta do século XX. O que estava em jogo – como ele nunca cessará de afirmar em suas reflexões de historiador sobre aquele período, por exemplo em um de seus mais bonitos ensaios, incluído no segundo tomo do terceiro volume de História do Marxismo, dedicado ao antifascismo dos intelectuais na década de 3013 – era a própria sobrevivência de uma civilização fundada sobre os valores do iluminismo e das três grandes revoluções que se apropriaram dele. E de novo é aquela ameaça a alimentar a mobilização unitária, ainda que efêmera afinal de con-tas, da frente popular: uma mobilização promovida sobretudo pela guerra civil de Espanha e simbolizada pelo famoso discurso da Pasionaria ao Velodrome d’hiver em julho de 1936, ao qual Hobsbawm assiste, aos dezenoves anos, conservando uma impressão indelével. A

9 La storia è progredita? in De Historia, Rizzoli, Milano 1997, p. 87-88.10 Anni interessanti, p. 71-7211 ivi, p. 15812 ivi. p. 8913 Gli intellettuali e l’antifascismo, in Storia del marxismo, vol. III, Il marxismo della Terza Internazionale, tomo

2, Dalla crisi del ’29 al XX Congresso, Einaudi, Torino 1981, p. 443-490.

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guerra civil de Espanha permanece “a única causa política – escreveu sessenta anos depois, em O breve século XX – que mesmo retrospectivamente, parece tão pura e atraente quanto em 1936”14. Sobre sua adesão ao comunismo moldada em torno do internacionalismo e do antifascismo – adesão que ele nunca renegou mas ao contrário reivindica ainda hoje com orgulho – Hobsbawm escreveu páginas lúcidas em sua autobiografia; ao realçar o fato de que o segundo aspecto “continua ainda hoje a determinar seu modo de pensar estrategicamente a política”, ele é consciente de pertencer “à geração unida, por um cordão umbilical quase indissolúvel, pela esperança da revolução mundial e pela sua sede original, a revolução de Outubro”. Explica inclusive (e trata-se de uma explicação interessante, pois envolve não poucos intelectuais ingleses da mesma geração que fizeram uma escolha parecida com a dele) que a razão do fortalecimento de sua identidade comunista – quando a fé na revolução mundial e no modelo soviético mostrava os primeiros sinais de rachadura – foi, mais do que qualquer outra coisa, a cruzada mundial do anticomunismo, a “retórica dos liberais da guerra fria, [...] sua convinção de que todos os comunistas fossem agentes do inimigo soviético e a con-sequente negação de que um comunista pudesse ser um estimado membro da comunidade intelectual”15. Porém, como já observamos, este senso de pertencer à militância, que nunca faltou, não interferiu diretamente na obra de Hobsbawm como historiador. Para ele é bem claro que – como escreveu em uma página de Ecos da Marselhesa, explicando a relação do historiador com a política – “todos nós, inevitavelmente, escrevemos sobre o passado dentro da história de nossos dias e de certa forma travamos as batalhas de hoje vestindo roupa de época”. Mas resulta-lhe claro também que não se pode escrever sobre o passado “apenas por dentro da história do próprio tempo”, caso contrário poderia ocorrer “embora sem queré-lo, de falsificar tanto o passado como o presente”16.

Evidentemente Hobsbawm logo advertiu este risco: depois de trabalhar de forma ori-ginal e inovadora sobre labour history de Oitocentos17, o temor da interferência entre a sua colocação política e a liberdade de pesquisa intelectual o induziu, por sua própria admissão, à abstenção, durante um longo período, de qualquer tipo de incursão na história política do movimento operário de Novecentos; e sobre a experiência do “socialismo realizado” ele ocupou-se somente – em o Breve Século XX – após seu fim.

Hobsbawm admitiu, todavia, que a cesura de 1956 transformou profundamente sua identidade de comunista. Em Tempos Interessantes reevoca aquele ponto de virada com emoção ainda hoje trasparente “embora se passou quase meio século, sinto quase um nó na garganta ao lembrar a tensão quase intollerável com que vivemos, mês após mês, os interminaveis momentos, antes de decidirem o que dizer e o que fazer, como se disto dependessem nos-sas vidas futuras, os amigos que se abraçavam juntos ou que, ao contrário, se enfrentavam abertamente como adversários, a sensação de rolar, sem queré-lo mas de forma irreversível, de um declive para com o impacto final”18.

14 Il secolo breve, p. 193 [161]15 Anni interessanti, p. 24216 Echi della Marsigliese. Due secoli giudicano la Rivoluzione francese, Rizzoli , Milano 1991, p. 1117 Molti dei suoi scritti sul tema sono raccolti in Studi di storia del movimento operaio, cit.18 Anni interessanti, p. 229-230

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Mudou, desde então, a natureza de sua militãncia no partido, que não foi mais renovada pelo vinculo formal. Embora raramente tenha sido protagonista de batalhas políticas (muito significativa a travada nos primeiros anos da década de Oitenta do século XX para contrastar a deriva extremista que percebia ameaçar o Labour Party), Hobsbawm tornou-se ao longo dos anos uma personalidade que pode falar “franca, critica, e até cepticamente sem porem se arrepender, e não sem orgulho, em nome dos quem se colocam a favor de uma esquerda em que as antigas distinçoes de partido e de ortodoxia não contam mais”. “Na prática – ele conta em sua autobiografia – me reciclei, passando de militante a companheiro de rua ou simpatizante, ou, dito em outro termos, de membro efetivo do partido comunista britânico me tornei uma espécie de membro espiritual do partido comunista italiano, bem mais ade-quado à minha idéia de comunismo”19.

Esta nota também merece algum comentário e permite introduzir mais um tema que, saindo do terreno de sua biografia, vale a pena ser tratado: a relação de Hobsbawm com os historiadores italianos. A frequentação italiana data de 1951 e segue um percurso signifi-cativo: de Cambridge, Sraffa o indicou a Cantimori e por meio dele o historiador inglês, aos trinta e quatro anos, conheceu dois prestigiosos intelectuais do PCI: Ambrogio Donini e Emilio Sereni. Deste último e de sua extraordinária versatilidade e erudição ele conserva uma impressão indelével: parece porem que foi o primeiro, historiador das religiões, quem deu o input ao estudo das formas de rebelião primitivas de tipo milenarista20, que tanta fascinação suscitaram em Hobsbawm, fazendo-lhe escrever um de seus mais importantes livros, Os Rebeldes.

Pode ser talvéz que o interesse para este tema nasceu pelo contato com Christopher Hill, na discussão que envolveu os historiadores do “seminário permanente” acerca dos estudos de Hill sobre os levellers e sobre as formas de religiosidade ultra-radical da Inglaterra de Seicen-tos. o intermediário, entre este tipo de temáticas e algumas suas declinações especificamente italianas, é representado, de forma verossímil, pelas páginas de Gramsci sobre a questão meridional e sobre as classes subalternas, que segundo afirma Hobsbawm o influenciaram muito; sua relação com a historiografia marxista italiana daqueles anos, porem, é vinculada mais às frequentações e amizades pessoais do que às afinidades de abordagem metodológica. A historiografia bastante politizada que se praticava então na Italia não chamava a atenção de Hobsbawm: resultava bem mais presente nele o interesse pela escola francesa dos Anais, com que ele entrou em contato em 1950, em Paris. A influência desta escola sobre os his-toriadores marxistas ingleses foi notável, embora mediada por um maior empirismo e pela

19 ivi., p. 24120 “Mi sembrava di aver scoperto in Italia un fenomeno che trovavo politicamente e intellettualmente molto

stimolante, e che era in gran parte documentato: la coesistenza, nella sinistra, di gente che vi era arrivata su presupposti politici tipici del XX secolo e, allo stesso tempo, su basi molto più antiche, finanche cinquecen-tesche: uno strano miscuglio fra Lenin e Lutero. Ciò che all’inizio mi interessò al soggetto fu un episodio che mi aveva raccontato Ambrogio Donini: mi disse che il PCI aveva avuto alcune difficoltà nel biennio 1949-50, durante le battaglie che si accesero in quel periodo nel Sud, perché nelle nuove sezioni del partito troppo spesso i congressi sceglievano dei testimoni di Geova come segretari. Perché, in qualche modo, la rivolta contro i proprietari terrieri e la rivolta contro la Chiesa e il clericalismo, si erano fuse spesso in un’unica reazione politica” (Intervista sul nuovo secolo, a cura di A.Polito. Laterza, Roma-Bari, 1999, p. 132).

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desconfiança para com uma categorização às vezes abstrata demais. Hobsbawm sempre reivindicou a importância desta relação. Ele lembrou o Marc Bloch falar na universidade de Cambridge nos anos 30 – quando ele era estudante – “todos tivemos a clara sensação de assistir a um grande evento”21. E lembrou também os historiadores marxistas considerarem “a história econômica, ou pelo menos a história econômica e social, como o único campo da história oficial a ter um sentido para eles, o único que eles conseguissem utilizar” 2222. É interessante notar que o encontro aconteceu sobretudo – segundo Hobsbawm lembra – no curso do debate sobre Problemas de história do capitalismo de Maurice Dobb23, isto é, sobre a avaliação do período entre o fim do século XV e o fim do século XVIII e sobre seu significado com relação ao desenvolvimento da economia do mundo moderno24.

A relação intelectual com a Itália porem nunca se interrompeu, aliás foi retomada com vigor na década de Setenta, talvéz na estação mais feliz da historiografia comunista: retomou, talvéz não seja inutil sublinhá-lo, no terreno preferido por esta, o de uma historiografia que se tornava mais aberta à história social e cultural, mas ainda firmemente ancorada ao terreno dos movimentos políticos. Traço importante deste momento é representado pela História do Marxismo publicado pela editora Einaudi, com que Hobsbawm colaborou com grande empenho junto com Corrado Vivanti e Ernesto Ragionieri.

Na Itália Hobsbawm ficou conhecido em 1963, quando a editora Il Saggiatore, que havia lançado a série World Histories of Civilization, publicou As Revoluções Burguesas que passou no mais absoluto silêncio dentro da cultura acadêmica italiana. Alguns de seus ensaios haviam sido publicados pela “Rivista storica del socialismo”, pela “Società” e por “Studi Storici”

25; mas o trabalho de maior sucesso talvez foi Os Rebeldes, escrito em 1959 e traduzido em 1966. O livro interessou ao leitor italiano porque debatia temas da história da península (o messianismo de Davide Lazzaretti e dos mineiros da região do Amiata, a mafia como expres-são de protesto social) mas também porque, ao demonstrar a capacidade de fazer interagir categorias analíticas de outras ciências sociais (neste caso sobretudo etnologia e antropologia) com a reconstrução dos acontecimentos históricos, ele interceptava uma discussão aberta na cultura da esquerda italiana, na esteira dos estudos de Ernesto De Martino. Mais em geral, como foi observado, a obra atraiu por “algumas ricas implicações metodológicas próprias da aproximação entre situações e épocas aparentemente longinquas, mas aproximadas pela abrupta, compelida penetração do capitalismo”: um tema que estava se tornando “patrimônio de um número considerável de estudantes e intelectuais italianos” 2626.

21 La storiografia inglese e le Annales: una nota, in De Historia, cit. p. 213. L’enfasi di questa affermazione, che risale al 1978, è però ridimensionata in Anni interessanti: “Non ricordo nulla, ahimé, della sua lezione, se non l’immagine di un uomo piccolo e tozzo” (p. 213).

22 La storiografia inglese e le Annales, cit., p. 21323 Di Dobb Hobsbawm traccia un bel ritratto in C.H. Feinstein (ed.), Socialism, Capitalism and Economic

Growth. Essays presented to Maurice Dobb, Cambridge, 1967.24 ivi, p. 215.25 Peraltro Hobsbawm era già noto ai circoli intellettuali vicini alla sinistra marxista attraverso il suo breve

intervento al primo convegno di studi gramsciani, tenutosi a Roma nel 1957 i cui atti furono pubblicati dagli Editori Riuniti l’anno dopo.

26 Così E.Menduni, Fra storia sociale e storia della società. Eric Hobsbawm, “Studi storici”, 1973, n. 3, p. 681-

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Provavelmente, a obra de Hobsbawm que mais verdadeira e duradouramente marcou o debate historiográfico italiano, foi um breve mas denso artigo que saiu em inglês pela primeira vez em 1970 e que foi publicado em 1973 pelos “Quaderni Storici” com o título Dalla storia sociale alla storia della società. O artigo tomava implicitamente a distância da Escola dos Anais (sobretudo de seus desenvolvimentos naqueles anos) e punha em discus-são a tendência a “transformar a história social em projeção retrospectiva da sociologia”: “a história da sociedade é história – escrevia – isto é, ela tem entre suas dimensões a do tempo cronológico real. [...] a história da sociedade resulta [...] da colaboração entre modelos gerais da estrutura e da mudança social e o conjunto específico de fenômenos efetivamente aconte-cidos” 2727. Hobsbawm traçava uma espécie de mapa que depois de muitos anos conserva ainda quase intacta sua capacidade de orientar a pesquisa, individuando estes temas, ou complexos de questões, enquanto terreno de aprofundamento interdisciplinar: demografia e relações de parentesco, estudos urbânos, classes e grupos sociais, história das mentalidades e da cultura em sentido antropológico, transformações das sociedades (mudanças/permanências, moder-nização, industrialização), movimentos sociais e fenômenos de protesto social. Em sua mais que cinquentenária atividade de historiador, Hobsbawm escreveu muitos livros e um número enorme de artigos que mantiveram sempre esta chave interpretativa, mesmo espaçando em campos muito diferentes entre eles.

Entre os ensaios, alguns dos mais originais foram coletados em um volume publicado em 1984 os quais conservam intacto, à distância de anos seu fascínio, ao ponto de vários deles serem repropostos de novo em diversos volumes28. Nestes ensaios, Hobsbawm espaça, como com frequência lhe acontece, da história social à antropologia, à sociologia. Enfrenta temas como a relação entre religião, secularização da sociedade e cultura do movimento operário; ou ainda, discute sobre a transformação, durante um período que abrange mais de um século, de seus rituais e de sua iconografia. Ele enfrenta o complexo entrelaçamento entre consciência de classe e consciência de pertencer a uma nação, e a relação entre existência social e consciência em casos longinquos como o dos camponeses dos planaltos peruanos e o dos sapateiros ingleses e alemães entre os Setecentos e os Oitocentos. Vale demorar-se um momento sobre uma das contribuições mais significativas, The Making of The Working Class 1870-191429. Este ensaio implica uma tomada de distância, no que diz respeito à periodização, da interpretação do famoso livro de E. P. Thompson, que foi um verdadeiro marco na historiografia social de Novecentos. Hobsbawm reconhece, de forma clara, na

698, che traccia un resoconto molto puntuale della “fortuna” di Hobsbawm in Italia, e più in generale un suo esauriente profilo come storico fino al 1973.

27 Il saggio è ora tra quelli raccolti in De Historia, cit.. La citazione è da p. 98.28 L’edizione originale in inglese è Worlds of Labour. Further Studies in the History of Labour, Weidenfeld &

Nicolson, London 1984. Il volume ebbe un’edizione italiana due anni dopo: Lavoro, cultura e mentalità collettive nella società industriale, Roma-Bari, Laterza 1986, e poi 1990. Alcuni dei saggi sono stati riproposti nel 1998 in Uncommon People, New Press 1998 (trad. it. Gente non comune, Rizzoli, Milano, 2000).

29 In Gente non comune, cit., il titolo è tradotto in modo palesemente inesatto La produzione della classe operaia, mentre in Lavoro, cultura e mentalità collettive cit. suonava La creazione della classe operaia: in nessuno dei due casi si può cogliere il riferimento al libro di E.P.Thompson, la cui discussione costituisce il nucleo del saggio.

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esteira de Thompson, que muitos elementos, os quais configuraram mais tarde estilos de vida, culturas e movimentos das classes trabalhadoras britânicas provêm da primeira fase da revolução industrial. Mas considera que não se possa falar, antes do fim dos anos Se-tenta do século XIX, de “uma única classe operária, votada a um único destino apesar das diferenças no seu interno”. E põe em evidência toda a importância das raízes econômicas deste processo de formação: o delinhar-se de um modelo industrial relativamente uniforme em toda a Grã Bretanha, o caráter cada vez mais nacional e não mais circunscritível às áreas geográficas separadas de flutuações da economia, o crescimento numérico do proletariado industrial como mercado potencial, o forte aumento dos salários reais médios durante um período em que o custo da vida decresce rapidamente, a modificação da composição profissional da classe operária e sua estratificação. Atribui porem particular relevância aos fatores de consciência e de cultura. Ele recusa, por considerá-la completamente errada, a imagem acreditada por alguns historiadores de uma classe operária “como uma espécie de subsolo passivo e apático [...] ou como um imenso gueto abrangendo grande parte da nação, ou ainda como uma força capaz de mobilizar-se apenas pela defesa de interesses econômicos, mais ou menos corporativos”30. Ele vê a afirmação, sobretudo após 1890, de uma forte consciência de classe nas áreas urbânas, não simplesmente identificável porem, com as vanguardas de ativistas e militantes socialistas. As caraterísticas fundamentais desta consciência de classe emergente consubstanciam-se no profundo senso de separação do trabalho manual, num codigo não formulado mas muito forte baseado sobre a soli-dariedade, a “lealdade”, a ajuda mútua e a cooperação; acompanham-se à formação de modelos de comportamento, de habitos e de estilos de vida sobre os quais Hobsbawm projeta rápidos mas eficazes rasgos de luz: a afirmação do futebol como esporte proletário de massa, o desenvolvimento de lugares de férias frequentados quase exclusivamente pelos trabalhadores e por suas famílias como Blackpool, a difusão do fish and chips, e ainda a adoção da “inconfundível toucada” do proletariado britânico, o boné que ficou famoso com os quadrinhos de Andy Capp, nos anos Sessenta.

Perseverei neste ensaio porque me parece que, como poucos outros, permite entender em que consiste o marxismo de Hobsbawm: o quanto ele refuja do determinismo econômico e das explicações monocausais. Em uma conferência de 1983, em ocasião do centenário da morte de Marx, ele enfatizava o fato de que a historiografia marxista não era mais, e nem poderia, ser isolada do resto do pensamento e da pesquisa histórica: o marxismo, observava, havia de tal forma transformado a historiografia internacional, que já tornava-se, cada vez mais frequentemente, impossível dizer se uma obra particular tivesse sido escrita por um marxista ou por um não marxista. Ele não lamentava disto; pelo contrário, ele auspiciava que “um dia mais ninguém perguntasse se um autor é marxista ou menos, pois então fi-nalmente os marxistas seriam felizes da transformação da história produzida pelas idéias de Marx” 3131. Quem ler hoje um livro de amplas perspectivas e grande fascinação, e que mantém um constante diálogo com Hobsbawm, como The birth of modern world de Christopher

30 Traggo le citazioni dalla traduzione in Gente non comune, cit., p. 101.31 Marx e la storia, in De Historia, cit. p. 202

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Bayly32, não pode não ficar impressionado pelo fato de que, ao menos no que diz respeito às reconstruções históricas de longa duração e ao amplo horizonte geográfico, seu auspício em grande parte se realizou.

Gostaria ainda de discutir duas questões que ajudam a traçar, ainda que em linhas muito gerais, o percurso levou Hobsbawm a afirmar-se como um dos maiores historiadores de nosso tempo. De um lado tentarei questionar o sentido complexivo de sua lição de historiador, do outro concentrarei minha atenção sobre o livro que talvéz lhe garantiu a maior fama e a maior visibilidade, isto é, O Breve Século XX. Para responder à primeira questão, acredito serem uteis, em primeiro lugar, suas palavras: “No complexo – ele disse de si em uma entrevista de 1997 – acredito que minha contribuição à disciplina histórica foi a de ter tido a capacidade de lançar novas propostas e novas idéias, e de ter feito isso em um momento em que estas estavam maduras para provocar debates. Talvez fui ajudado pela capacidade de encontrar novas formulas e nomes adivinhados para apresentá-las, e de fazê-lo em momentos em que os outros estavam prontos a levá-las em consideração; não necessariamente contribuí para estabelecer uma particular interpretação: o valor essencial de muitas das idéias que propus foi, pois, o de suscitar debates interessantes, assim como críticas e divergências”33. É um juízo inspirado pelo característico understatement que, como elemento geral da cultura britânica, toma às vezes um tom de desarmadora modéstia. Um juízo, claro, que em diversos aspectos não faz justiça do caráter profundamente innovador de sua pesquisa em uma multiplicidade de campos: pensamos por exemplo aos estudos precursores sobre as formas primitivas da revolta social, ou ainda sobre a demistificação dos mitos de fundação das nações modernas e o desvelamento dos rostos do nacionalismo, ou sobre as originais obras de história do jazz. E, todavia, se pensarmos, por exemplo, à coletânea de ensaios publicada em 1983, A Inven-ção da Tradição, pela qual Hobsbawm contribuiu com um só ensaio de 40 páginas e com a introdução, e se considerarmos a extraordinária fortuna vivenciada pela temática nos anos seguintes e atual ainda hoje, então compreendemos a validez e o fundamento daquele juízo. A vocação a veicular idéias e discussões que Hobsbawm atribui a si mesmo anda junto com a de divulgador de saberes históricos, pela qual parece igualmente orgulhoso. Anos atrás, em outra entrevista concedida a duas historiadoras, Pat Thane e Liz Lunbeck, Hobsbawm reivindicava com firmeza a plena dignidade de uma historiografia que, se quiser “possuir alguma utilidade política e pública” deveria encarregar-se da tarefa de “pelo menos tentar comunicar com os cidadãos comuns”. “Parece-me – afirmava – que é muito importante es-crever a história não apenas para a academia. Durante minha vida a tendência da atividade intelectual foi a de concentrar-se nas universidades e de tornar-se cada vez mais esotérica, consistindo no trabalho de professores que falam para outros professores, os quais são distrai-damente ouvidos por estudantes que, por sua vez, devem repetir suas ideias para conseguir superar os programas de exames impostos pelos professores. Isto reduz consideravelmente a disciplina intelectual”34.

32 Tradução italiana, Bayly, Cristopher, La nascita del Mondo Moderno, Einaudi, 200833 Una storia per cambiare o almeno criticare il mondo, cit., p. 106. 34 An Interview with Eric Hobsbbawm, “Radical History Review”, Winter 1978-1979, p. 114.

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Não ha dúvida sobre a absoluta relevância da contribuição de Hobsbawm para conter esta tendência. Esta contribuição evidenciou-se sobretudo, mas não apenas, na tetralogia que abrange a época iniciada pelas duas grandes revoluções do século XVIII e concluída ao limiar do século XXI, que teve um extraordinário sucesso de público e de crítica. À base dessa fortuna está com certeza em primeiro lugar o estílo cativador e claro que carateriza os quatros volumes: um tipo de escrita que induziu um resenhista de O breve século XX a traçar um paralelo entre Hobsbawm e Fred Astaire – que com certeza deve ter orgulhado o autor da História social do Jazz – pois assim como o célebre bailarino americano deixava seus passos de dança aparecerem algo de natural e elementar, da mesma forma o livro deixa a impressão que escrevê-lo não custara alguma fadiga, enquanto, na realidade, dominar, interpretar e apresentar de modo acessível para um amplo público uma enorme quantidade de dados, de estatísticas e de leituras, constituiu sem dúvida uma empresa improba.

Uma segunda razão que favorece a aproximação do leitor com os livros de Hobsbawm está, acredito, no interesse por temáticas avulsas das competências de historiadores não especialistas. Penso, em particular, aos capítulos da tetralogia das Ages dedicados às ciências naturais, os quais impressionam pela clara e fluente exposição de matérias quase esotéricas aos olhos daqueles humanistas empedernidos, em grande parte historiadores italianos, em-bora – é preciso dizer como parcial desculpa da categoria – Hobsbawm conte com a relação de troca entre especialistas de disciplinas diferentes, característica da academia anglo-saxã, bastante distante de nossos habitos e costumes. Mas penso também, por outro lado, aos capítulos que tratam das artes, em todas suas multíplices manifestações, em estreita relação com a evolução da sociedade e das mentalidades coletivas.

Talvéz a atração maior da obra de Hobsbawm esteja na abrangência do campo cro-nológico e dos horizontes geográficos de sua narração: esta devolve sempre afrescos ricos de contrastes e de claro-escuros, revelando novos particulares toda vez que os observamos. Capaz de mover-se no tempo com fluidez e riqueza surpreendentes para quem se considerar sobretudo um historiador do “longo Oitocentos”, Hobsbawm fica igualmente à vontade dentro de um horizonte geográfico muito amplo. Não há passagem em seu raciocínio que não apoie em uma eficaz evocação do exemplo concreto, do caso específico, com uma extra-ordinária abundância de informações circunstanciadas que abragem todo o plano temporal e todos os possíveis lugares geográficos da história contemporânea: sem complacência e sem ostentação erudita. Não ha, por consequência, capítulo ou página em que o leitor não encontre estímulos para novas idéias e novas reflexões. Bem antes do termo “globalização” inflacionar o léxico político e historiográfico, a abordagem de Hobsbawm mostrava desde já uma escolha clara: a chave de leitura das grandes transformações do mundo moderno está na interdependência entre as civilizações européia e atlântica e as dos outros continentes. Seus livros realizavam de forma exemplar a fusão entre uma informação pontual e rigorosa, baseada em pesquisas conduzidas durante muitos anos sobre aspectos particulares e a análise das grandes problemáticas e dos desenvolvimentos gerais. Surpreende sempre observar a imensa massa de leituras – não apenas historiográficas, mas sociológicas, econômicas e an-tropológicas também – que ele consegue dominar e transpor nas páginas dedicadas aos países que não pertencem ao centro motor do desenvolvimento capitalista, que ainda permanece o

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objeto privilegiado de sua investigação: Índia e Brasil, Peru e Malásia, México e Egíto. Aqui esteja talvéz um dos marcos mais originais de sua personalidade intelectual e de sua lição historiográfica, que encontramos em uma observação nas páginas finais da autobiografia: o fato dele sentir-se por toda a vida “alguém que nunca pertence inteiramente ao lugar em que se encontra” transforma-se num valor adjunto para sua profissão: “Dedicar-se à história envolve necessariamente a mobilidade, a capacidade de observar e explorar um vasto territó-rio, ou seja, a capacidade de abandonar o lugar das próprias raízes [...]. O anacronismo e o provincianismo são os dois pecados mortais da história, ambos causados por uma completa ignorância de como as coisas estão alhures”35.

Entre as marcas que mais profundamente penetraram na historiografia de nosso tempo há a extraordinária capacidade de Hobsbawm de periodizar a história. Ele redesenhou a his-tória dos últimos dois séculos, com rasgos narrativos de grande sugestão, em suas escanções e periodiações. Os títulos de seus livros tornaram-se de fato definições correntes no debate historiográfico: Era das Revoluçoes, Era do Capital, Era dos Impérios, e finalmente Era dos Ex-tremos, mais conhecido como O breve século XX. Como todas as periodizações categorizantes, naturalmente, as que ele propôs podem ser discutíveis e controversas: mas a importância está no fato de que todos os historiadores foram obrigados a reinserir a questão das periodiza-ções (e do sentido do “tempo histórico”) na prática e na imaginação historiográfica. Afinal de contas, o próprio Hobsbawm indicou o valor relativo destas periodizações, quando, no livro que neste sentido suscitou as maiores discussões, O breve século XX, avançou a idéia, extraordinariamente sugestiva para a amplitude histórica que envolve, que o terço quarto de Novecentos marque o fim de sete ou oito milênios de história durante os quais a grande maioria do gênero humano viveu de agricultura, e neste sentido este representa “a mais profunda revolução social desde a idade da pedra”36.

Gostaria de tratar, a este ponto, um pouco mais de perto O Breve século XX, um livro que obteve extraordinário sucesso e que foi traduzido em cerca de vinte idiomas. Sobre a validade da categoria interpretativa de “breve século” poder-se-ia discutir longamente. De resto, Hobsbawm é o primeiro a reconhecer que “a escolha de uma datação não é algo sobre que os historiadores estejam prontos a confrontar-se: é uma convenção” 3737. A possibilidade e a conveniência também – de individuar 1914 como termo a quo de uma narração de Novecentos não deixara de levantar reservas. Giovanni Arrighi intitulou um de seus mais importantes livros, publicado contemporaneamente ao de Hobsbawm, O Longo século XX, fundamentando sua periodização sobre a supremacia dos Estados Unidos na economia mundial, iniciada na década de Setenta de Oitocentos e ainda inacabada depois de cento e vinte anos; Leonardo Paggi sentenciou que “é indispensável abandonar o 1914 como ponto de partida da narração e, ao contrário, pensar unitariamente o período histórico 1870-1945, quando “o Estado burguês, que se definiu durante as últimas três décadas do século XIX, morre em um banho de sangue, arrastando na cova a ordem internacional que havia imposto ao resto do mundo”

35 Anni interessanti, p. 457-45836 Il secolo breve, p. 34137 Intervista sul nuovo secolo, cit. p. 5

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38. Alguns contestaram inclusive o termo ad quem: Alan Minward, especialmente, sustentou o 1974 ser o ano da grande virada do século XX, quando a crise econômica desencadeada pelo choque do petróleo do ano precedente mudou substancialmente “não apenas a estrutura, mas a natureza mesma do emprego e do trabalho”39.

Hobsbawm respondeu pragmática e sensatamente a tais objeções afirmando que “de uma maneira ou de outra, os historiadores tiveram a necessidade de esticar ou encurtar este século, e a forma em que o fazem depende inteiramente de seus campos de interesse”40. No que diz respeito ao termo a quo, a periodização que ele escolheu põe em evidência a chave de leitura de Novecentos como “era dos extremos” (Era dos Extremos, lembramos, é o título original em inglês, enquanto O Breve século XX é apenas o subtítulo). A primeira guerra mundial representa com certeza o compêndio de uma série de “extremos” que deixará uma marca inapagável sobre todo o século, registrando, como o próprio Hobsbawm observou “o maior número de mortes, mas também a maior expansão demográfica, o número mais alto de pessoas torturadas, mas também o número mais alto de pessoas que vivem bem e que constantemente melhoram suas condiçoes de vida”: ao ponto de “qualquer coisa queira se dizer sobre este século, é preciso dizé-la ao superlativo”41. Se olharmos ao termo ad quem, resulta difícil negar que a explosão dos nacionalismos e a reproposição do sistema de relações internacionais cronicamente perturbado e não fundamentado em torno de contraposições claras entre frentes – que carateriza o início do século XXI – parecem reproduzir um cenário que lembra mais a fase final do “longo Oitocentos” que precede a Primeira Guerra Mundial do que os setenta e cinco anos do “Breve século”, que mesmo desta perspectiva aparece como um período histórico encerrado. A categoria da persistência, aplicada por Arno Mayer à influência do ancien régime sobre as sociedades burguesas, ajuda com certeza o historiador que olhe para o “breve século” de uma distância temporal maior da de Hobsbawm.

Em todo caso não se pode negar o fato de que a consciência da cesura histórica repre-sentada pelos acontecimentos de 1989-1991, penetrou em profundidade na consciência dos contemporâneos: pois a escolha de usar uma espécie de fotograma no momento do colapso dos regimes socialistas na Europa não precisa de particulares justificativas. A categoria inter-pretativa do “breve século” está em estreita relação, na fundamentação de Hobsbawm, com a idéia do confronto permanente entre revolução social e ordem estabelecida, interrompido apenas nos anos 1933-1945: por isto, o esgotamento da experiência que encarnou a ideia de revolução, distorcida quanto se queira, é um ponto de chegada cujo o valor peridizante não pode ser negado. A tripartição adotada no volume (“era da catástrofe”, “era do ouro” e “era do desmoronamento”), tem sua força nas grandes generalizações, com o risco da semplifica-ção que estas comportam. Para cada um destes períodos históricos, a análise conduzida pelo historiador inglês apresenta abundantes sugestões de grande interesse.

38 L’età degli estremi, p. 8439 ivi, p. 3740 ivi, p. 118. Del resto, per quanto riguarda la data con cui fa iniziare “il secolo breve”, si deve – banalmente

– tenere presente che lo storico inglese riprende la sua narrazione esattamente là dove l’aveva lasciata con L’età degli imperi, il volume precedente di una tetralogia ormai concepita come unitaria.

41 Ivi, p. 117

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A “era da catástrofe” abrange para Hobsbawm os que ele define sem hesitação os “trinta e um anos de guerra mundial”. Esta parte do volume chama mais a atenção pela coerência do quadro complexivo do que para as novidades interpretativas. Alguns temas merecem contudo serem evidenciados: para começar, o caráter devastador, qualitativa e quantitativamente novo, do fenômeno bélico, que se arrastou durante todo o breve século, carregando um balanço de perdas humanas sem precedentes na história. Parece ter funda-mento atribuir este resultado não apenas, como óbvio, ao desenvolvimento das tecnologias militares, mas também ao caráter – comum aos dois conflitos – de guerras “totais”: no sentido de que ambos têm, como aposta, “objetivos ilimitados” excluindo, desde o início, para além da própria vontade dos participantes, soluções de compromisso. Outro aspecto da “era da catástrofe” enfatizado por Hobsbawm com uma relevãncia inusual nas sinteses de história deste século, é a crise econômica de 1929: suas consequências gravaram de vários modos sobre toda a sucessiva evolução da economia mundial, como ele demonstra em sua exposição. O peso da formação de Hobsbawm como historiador econômico se faz sentir através da mestria com que expõe os desenvolvimentos e os efeitos da crise. A análise do mundo capitalista e das relações internacionais do entre-guerra é relatada de forma bastante pessimista e dominada por um senso de inelutabilidade de seu ponto de chegada. Esta desmente a idéia de um mundo capitalista e liberal potencialmente capaz de reerguer-se de forma rapida e de reconstruir as bases de sua prosperidade, por meio de um desenvolvimento que teria sido impedido apenas pela emergência de dois fenômenos estranhos e irredutiveis como o fascismo e o comunismo. Estes dois fenômenos são perce-bidos como a saída de contradições produndamente enraizadas e não resolvidas, as quais não poderiam não comportar um estado de crónica instabilidade. Neste sentido o livro legitima de novo, pelo menos em parte, a posição dos comunistas e de suas expectativas revolucionárias, as quais não podem ser liquidadas como fantasia de visionários, pois pos-suiam um fundamento na realidade. Contudo, mostrando um elemento de incongruência não completamente resolvido em seu raciocínio, Hobsbawm parece considerar que em nenhum momento, nem nos anos do “biênio vermelho”, existiu a possibilidade concreta para os movimentos revolucionários de derrubarem a ordem capitalista; ele realça, aliás, o fato de que, após a metade da década de Vinte, este objetivo foi tacitamente abandonado pelos próprios comunistas, e que, entre as duas guerras, todas as ameaças sérias contra as instituições liberais resultaram exclusivamente de movimentos políticos de direita: nenhum regime liberal-democrático foi derrubado pela esquerda.

Para Hobsbawm, a crise européia do entre-deux-guerres não representa apenas – como já dissemos – um período de “trinta e um anos de guerra mundial”, mas também uma “guerra civil internacional”. Esta é a expressão usada para descrever as lacerações de um continente, a Europa, devastado pelo choque entre “duas diferentes famílias ideológicas”: a do iluminismo, em que se inscreve a revolução russa, e a de tudo que vai contra seus valores e que encontra nos fascismos seu compêndio.

O historiador inglês não hesita em aceitar um termo – o de guerra civil européia – que está associado sobretudo à obra de Ernst Nolte; ele porem desmonta com decisão a tese central da “consequencialidade” do fascismo com relação ao bolchevismo: por um lado reconduz

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as origens do fascismo a um caldo de cultura irracionalista que fermentava bem antes da guerra, e que encontrou na guerra seu impulso decisivo. Por outro lado ele mostra que a crise econômica mundial e a conjugação do sistema de valores e do modelo de estado junto com a força econômica e o papel geopolítico de uma grande potência como a Alemanha, foram os elementos decisivos para o salto de qualidade do fascismo. De forma mais implícita, ainda que óbvia, ele toma as distâncias de outro historiador, François Furet, que em seu livro publicado um ano após O breve século XX42, usou o mesmo conceito de guerra civil européia para traçar um quadro em que se confrontam “duas reaçoes antiliberais, antinômicas, porem em certo sentido paralelas e gêmias, nas quais ele vê os atores da parentese totalitária que teria perturbado o caminho inesorável da civilização para com a democracia liberal”43: se para Furet o antifascismo é uma idéia “toda negativa”, “uma astúcia que possibilitou ao totatlitarismo comunista a extensão de sua influência, vestindo a roupa de defensor da democracia”44, para Hobsbawm isto representa, pelo contrário, o cimento de uma nova, mais ampla unidade das forças que se juntaram no esforço comum de defender a democracia representativa e, juntos, pensá-la em novos termos.

A parte dedicada à “era do ouro”, talvez seja a mais interessante do livro. A idéia mes-ma de que o período 1947-1973 represente dentro do “breve século” a escanção temporal determinante, a pela qual olharão realmente os historiadores do terceiro milênio, não é na realidade – e sobretudo não o era quando o livro apareceu – em nada dedutível. Fomos acostumados a ler este período sobretudo como história da contraposição bipolar entre EUA e URSS, e trascuramos provavelmente os indicadores não menos significativos vinculados ao crescimento econômico e à promoção e à difusão, embora extremamente desiguais, do bem-estar material e social, através dos quais mede-se efetivamente o caráter “áureo” deste período. Não se pode porem negar que este modo de olhar para a questão não fique suscetí-vel de questionamentos. A definição mesma de “era do ouro” pode aparecer excessivamente apertada sobre as fortunas do capitalismo, mesmo que não haja dúvida de que, os anos 1947-1973, tiveram mais do que em outros momentos, efeitos positivos sobre as condições gerais de vida da humanidade, em termos de progresso científico, de aumento de expectativa de vida, de saída do atraso. Por outro lado, a área capitalista, como salientou Franco De Felice, tende a apresentar, na análise de Hobsbawm, “um rosto indiferenciado” 4545, que não atribui aos Estados Unidos o peso relevante que este país teve ao remoldá-la. Sobre este ponto – que foi levantado criticamente por diversos comentaristas – torna-se difícil não concordar com a arrogante anônima resenha do “Economist”, quando observa que o livro “traça magistral-mente o mapa da periferia, mas deixa em branco o centro”46.

Todavia é preciso dizer que – ainda que possamos concordar com Hobsbawm sobre o fato de que a guerra fria não levou o mundo, como frequentemente se acredita, ao abismo de um conflito nuclear – o fato de as décadas marcadas pela guerra fria coincidirem com a

42 Le passé d’une illusion. Essai sur l’idée communiste au XXème siècle, Laffont-Calmann Lévy, Paris 200543 E.Traverso, A ferro e fuoco. La guerra civile europea 1914-1945, Il Mulino, Bologna 2007, p. 34.44 ivi, p. 21445 L’età degli estremi, p. 4446 “The Economist”, 19 novembre 1994.

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“era do ouro”, não é irrelevante, na medida em que aquele tipo de situação internacional gravou profundamente sobre o destino de milhões de indivíduos e de povos inteiros. Diversos resenhistas do livro observaram que Hobsbawm não leva muito em conta os acontecimen-tos das nações da Europa oriental, limitando-se, na maioria das vezes, a registrar o fracasso, sobretudo econômico, das experiências socialistas implementadas: e Tony Judt notou, em particular, que a referência aos anos 1947-1973 como era do ouro “não pode não parecer irônica para alguem que viveu, digamos, em Prague”47. A observação não é sem fundamentos, se a estendermos inclusive aos eventos históricos dos países colocados na esfêra de influência americana, em que as possibilidades de desenvolvimento de uma democracia plena foram – segundo os casos – ferozmente truncadas (Irã 1953, Guatemala 1954, Chile 1973, para citar apenas alguns exemplos) ou bloqueadas e impedidas – o caso da Itália republicana está entre os mais significativos – pela colocação em um mundo marcado pela contraposição bipolar e ideológica.

A posição de Hobsbawm sobre a guerra fria é muito clara e talvez rígida demais: ele atribui decididamente aos Estados Unidos as responsabilidades pelo início e pela prossecução, de certa forma artificial, da guerra fria individuando a necessidade da administração ame-ricana de apoiar uma opinião pública fundamentalmente anticomunista. Paradoxalmente, assim, entre os dois antagonistas, o chamado a responder, em política interna, às regras de um sistema democrático, carrega as responsabilidades do clima de cruzada ideológica que envenenou as relações internacionais. Parece-me que esta representação negligencie um pouco o papel negativo que a URSS também desenvolveu, através de uma política externa inspirada pela obsessão do cercamento e da suspeita que era, não podemos esquecer, funcional à lógica interna do sistema de poder estaliniano. Inclusive de um ponto de vista cronológico, a in-terpretação de Hobsbawm não persuade completamente: resulta difícil de acreditar na idéia de que nas “democracias populares” a opção multipartidária ficou aberta depois da metade de 1946, em todo caso foi demostrado como bem antes desta data os partidos comunistas adoperaram-se ativamente para centralizar as alavancas do poder em suas mãos. Fenômenos de ingerência e de pressão por parte dos “patrões” sobre seus respectivos “clientes” ocorreram em ambas as esferas de influência antes do fim da guerra mas, pelo menos na Europa, não podemos negar que a natureza dos métodos empregados foi diferente, deixando um espaço maior à dialética democrática a Oeste mais do que ao Leste.

Há mais um aspecto na argumentação de Hobsbawm que merece ser discutido, é a idéia de que o capitalismo deva em boa parte a extraordinária retomada após a Segunda Guerra Mundial à capacidade de autorreforma, de certa forma imposta pela existência de uma alter-nativa comunista: no duplo sentido de que ele adverte o perigo revolucionário como ameaça à sua própria sobrevivência, e por isto é impulsionado a corrigir os mecanismos de seu próprio funcionamento, e de que esta correção acontece sob o signo do planejamento e, no fundo, da introdução de um elemento de socialismo na economia. Naturalmente, a tese contém mais de um núcleo de verdade, mas não pode ser acolhida sem especificações e reservas. As tentativas mais audaciosas de autorreforma do capitalismo antes da Segunda Guerra Mundial

47 T.Judt, Downhill All the Way, “The New York Review of Books”, 25 Maggio 1995, p. 23

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aconteceram em países onde a ameaça comunista era inexistente (como os Estados Unidos e os Estados escandinavos), enquanto os mesmos não foram aviados ou fracassaram onde a ameaça comunista era bem mais forte (como na Alemanha). De outro lado, os modelos de economia mista que inspiraram as economias capitalistas na “era de ouro” eram, não menos e alías talvez mais do que o soviético, os “corporativistas” e tecnocráticos que encontraram parcial aplicação também nas ditaduras fascistas.

O tema das experiências do “socialismo real”, e mais em geral a do comunismo merece al-guma obervação mais pormenorizada. Sobre a revolução russa acredito que Hobsbawm ponha em correta luz a inconsistência de qualquer alternativa “liberal” em 1917, e oportunamente redimensione a essência negativa geralmente atribuída à tomada do poder dos bolcheviques através de um “golpe de Estado”. Assim como qualquer força política revolucionária teria feito, Lenin e seus camaradas colheram a ocasião oferecida pelo vazio de autoridade que se abriu durante o governo provisório, e uma vez conquistado o poder, tentaram fazer quanto de melhor para não perdê-lo. Na realidade a revolução russa, em um século marcado – como bem assinala Hobsbawm – por uma ininterrupta cadeia de agitações e rebeliões políticas e sociais, fica entre as poucas revoluções em que o peso das massas jogou um papel decisivo. Naturalmente isto não diminui o fato de que o legado principal deixado pela revolução bolchevique seja, junto com o impulso à modernização, o de um determinado modelo de partido. Hobsbawm parece não ter dificuldade em reconhecer que tal modelo foi impreg-nado de um autoritarismo mais que potencial, que de fato não faltou de manifestar-se em toda ocasião em que o poder foi posto à prova. Ele evidencia claramente também o caráter conflitual com a tradição dos partidos da esquerda européia, fortemente democrática tanto na estrutura interna como nos objetivos políticos. Parece-me, porém, que as transformações e as verdadeiras hibridações que aquele modelo sofre nas situações históricas em que a ex-periência do poder não foi alcançada, fiquem na sombra, isto é, o aspecto da evolução e dos desenvolvimentos do comunismo como movimento político e como fenômeno social fora dos países socialistas, sobretudo nos europeus. Temos, nas páginas do livro uma indicação muito clara das razões que movem a Resistência para a esquerda, e do prestígio conquistado pelos comunistas; falta porem uma análise igualmente satisfatória das razões pelas quais, em poucos anos, à exceção de França e Itália, a influência conquistada pelos próprios comunistas em todos os países europeus desapareceu, da parcial retomada da década de 70, da crise final e dos motivos pelos quais o desmoronamento do sistema soviético comportaria o esgotamento da experiência comunista na Europa. Desse ponto de vista a história do comunismo italiano apresenta vários elementos de interesse que não foram tratados. Mas isto – diga-se – me parece o reflexo de um papel não inteiramente adequado atribuído à Itália, nesta síntese que por outros lados é magistral. Estou consciente do fato de que provavelmente em cada um dos países em que o livrou circulou, encontram-se leitores orientados às mesmas considerações com relação ao peso atribuído à experiência histórica nacional. Todavia, para um conhecedor profundo e especialista da Itália como Hobsbawm demostrou ser, o “caso italiano” mereceria alguma consideração menos apressada para o intersecar-se de anomalias e de tipicidade que o carateriza. A observação pode valer também para a forma com que ele trata do fascismo e dos acontecimentos do sistema político republicano.

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Voltando à reconstrução da experiência soviética, Hobsbawm parece atribuir um crédito bastante modesto às alternativas de desenvolvimento possíveis, desde a NEP e as tentativas de reformas de Kruschev até à perestrojka de Gorbatchev. A chave de leitura da história da URSS, e dos países socialistas depois, é a da colocação no sistema econômico internacional, em que estes sempre constituiram “um universo separado e amplamente autônomo”. Ele considera esta separação tanto como a mola do forte desenvolvimento dos anos 30 e 50, como a causa da estagnação sucessiva, enquanto o rachar ao contato, ainda que limitado, de trocas econômicas e culturais, está à base de sua desintegração. Uma certa aura de “inevitabi-lidade” dos desenvolvimentos efeitivamente ocorridos ecoam sobre toda esta parte da análise de Hobsbawm, enquanto a questão histórica talvez fundamental – se o sistema socialista soviético fosse reformável – poder-se-ia enfrentar mais abertamente.

A terceira e última parte do Breve Século XX intitula-se “O desmoronamento”. A palavra expressa bem o vir menos de certezas consolidadas e a urgência de encontrar uma bússola para orientar-se em um mundo que “corre o risco tanto da explosão como da implosão”. Diversos resenhistas que escreveram entre 1994 e 1995 acharam excessíva a “Jeremiah-like air of impending doom” (para usar as palavras de Tony Judt48) que predomina a última parte do livro. Hoje, quinze anos depois, com uma crise econômica que passou e outra que incumbe, e no meio de um período de instabilidade internacional que produziu uma cadeia de guerras locais e regionais devastadoras, o pessimismo destas páginas finais pareceria imputável muito mais às capacidades de análise de seu autor do que às caracteristicas de comunista impeniten-te, crítico por princípio da sociedade liberal e capitalista. Pode-se observar, como fez Perry Anderson49, que o contraste entre “era do ouro” e “era do desmoronamento” é excessivamente enfatizado: os efeitos da modernização, inclusive em termos de desenvolvimento econômico e de progresso no nível de vida, se fizeram sentir em algumas áreas do mundo, por exemplo no Sudeste asiático, bem depois do início da década de 70, e nos últimos anos na área do Pacífico, teatro de um processo de desenvolvimento que interessou não apenas o Japão e as assim chamadas “tigres”, mas que chegou até os dois grandes países como a China e a Índia, pondo as premissas para o papel de locomotiva da economia mundial que sucessivamente assumiram.

E todavia, o balanço final traçado nas últimas páginas do livro elenca alguns traços salientes da contemporaneidade que mantém intata sua pregnância: o fim de um sistema de relações internacionais com uma estrutura reconhecível e o inédito predomínio de uma única super-potência mundial; a inversão de uma tendência secular, de uma onda longa da história que movia em direção à construção e ao fortalecimento dos estados nacionais territoriais e a crise profunda das instituições vinculadas a estes; a migração de soberania que passa sob o controle de poderes privados e de instâncias diferentes das instituições estatuais legitimadas sobre bases democráticas, que se impõem conquistando e reconquistando funções em passado praticadas pela esfera pública; a consequente contemporânea multiplicação de entidades cada vez menores e economicamente não auto-suficientes baseadas sobre uma identidade étnico-

48 Downhill All the Way, cit. p. 20.49 Darkness Falls, “The Guardian”, 8 novembre 1994

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linguística, vinculada ao ressurgimento de identidades de grupo, comunitárias e religiosas, fechadas em si mesmas; o questionamento do monopolio da guerra por parte dos Estados e a reprivatização do exercício legal da violência; a crise profunda da política e da democracia participativa; e a lista poderia continuar. Sem dúvida no Breve Século, Hobsbawm conseguiu explicar magistralmente pelo menos algumas das razões pelas quais “a história nos conduziu a este ponto”. E demonstra, além disto, uma capacidade singular, inusual para um historiador, de colher os elementos cruciais da “história do tempo presente”. De outra parte, Hobsbawm não cessou de atualizar e afinar as conclusões do livro de 1994 em uma re-leitura, podemos dizer cotidiana, do nexo entre passado, presente e futuro. A indústria editorial compreen-deu bem o interesse inclusive comercial destas lúcidas análises: já saíram pelo menos quatro pequenos volumes – considerando apenas as publicações em italiano – que constituem uma espécie de atuzalização in progress do último parágrafo do Breve Século XX50. De resto, podemos avançar a hipótese de que o sucesso indiscutível do livro responda – na Itália – à necessidade difusa por parte de um público culto, genericamente “de esquerda” mas não apenas limitado à esquerda, um pouco desorientado nos últimos tempos de fúria iconoclasta das modas “revi-sionistas”, de reencontrar um sentido histórico aos próprios percursos e às próprias escolhas passadas e futuras: podemos refletir sobre o fato de que tal necessidade se realize por meio de uma obra que reconstroi um quadro de conjunto do século XX, em evidente contraste com a representação das fortunas magníficas e progressivas do sistema capitalista e com a exaltação das virtudes insuperáveis da democracia liberal que dominaram o começo dos anos 90. Um quadro que repropõe – de forma muito clara e sem fazer proclamas altissonantes – o marxismo como cânone, afinal das contas ainda eficaz, de interpretação histórica: “Acredito que a coisa mais interessante do meu livro – afirmava Hobsbawm encerrando um debate em Roma sobre O breve século XX – consista na tentativa de explicar o porquê das previsões de Marx, do Marx de 1848, estarem tão próximas da realidade na segunda metade do século XX”51. Evidentemente, trata-se de um marxismo muito “laico”, aberto, problemático, como sempre foi o de Hobsbawm, enriquecido por ulteriores motivações de desencanto ditados pela impiedosa análise da parábola dos sistemas socialistas e das razões de seu colapso: o pano que tece a trama do livro, porem, é aquela.

Afinal das contas, pacata porem inequivocamente, Hobsbawm reivindica a validade da lição de Marx pelo menos em dois sentidos: esta nos ensina que o presente não é o ponto de chegada final da história, e nos fornece as ferramentas para analisar os modos em que “um

50 L’uguaglianza sconfitta. Scritti e interviste, Datanews, Roma 2006; La fine dello Stato, Rizzoli, Milano 2007; Imperialismi, Rizzoli, Milano 2007. Ma il più significativo, che unisce rapidi scorci di bilancio del passato, tratti di analisi del presente e previsioni sul futuro, resta l’ Intervista sul nuovo secolo, cit.

51 L’età degli estremi, p. 122. Nella sua autobiografia, con il tocco di ironia che gli è abituale, ha affermato: “Non mi dispiace neppure ora di essere indicato come ‘Hobsbawm, lo storico marxista’, etichetta che tutt’oggi mi porto intorno al collo, quasi fossi una di quelle caraffe dei vari liquori che, dopo cena, vengono degustati nelle sale di ritrovo dei college e che recano l’etichetta per evitare che i professori confondano il porto con lo sherry. Anche oggi è necessario richiamare l’attenzione dei giovani storici sulla concezione materialistica della storia: forse, ciò è ancora più necessario di ieri, visto che oggi anche le mode accademiche di sinistra liquidano quella concezione come nei giorni in cui veniva condannata come propaganda totalitaria” (Anni interessanti, p. 334).

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particular sistema social gera, ou fracassa ao gerar, as forças da mudança”. Hoje mais do que nunca precisamos destas ferramentas, assim como precisamos da inteligência e da coragem dos historiadores que, da mesma forma que Hobsbawm, sintam como sua tarefa “se não de mudar, ao menos de criticar o mundo”52.

52 Una storia per cambiare o almeno per criticare il mondo, cit., p. 107.

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IV História Imediata

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A crise mundial do capitalismoe as perspectivas dos trabalhadores*

Edmilson Costa**

INTRODUÇÃO

A crise que envolve o conjunto do sistema capitalista e, especialmente, os países centrais, é devastadora, profunda e de longa duração. Estamos apenas em um processo que envolverá a derrocada do sistema financeiro internacional tal como conhecemos hoje, queda brusca no comércio mundial, uma grande recessão, desemprego generalizado, e graves tensões sociais no centro e na periferia. Por suas dimensões econô-micas e financeiras, esta crise é maior que a de 1929, com o agravante de que atinge de maneira sincronizada o coração do sistema capitalista e torna praticamente sem efeito as tentati-vas de coordenação ensaiadas pelos Bancos Centrais e líderes das principais economias mundiais. A crise reflete ainda um conjunto de contradições que o capitalismo vem acumulando desde a segunda metade da década de 60 (queda nas taxas de lucro, superacumulação de capitais, financeirização da riqueza e frenesi especulativo) e que agora se expressam com rudeza explícita em toda a vida social contemporânea das nações que fazem parte do processo de acumulação mundial.

Ao contrário do que os meios de comunicação procuram difundir, esta não é uma crise do setor imobiliário, do crédito, da falta de liquidez, ou de regulação, ou ainda um fenôme-no oriundo da ganância dos especuladores inescrupulosos que colocaram em risco o capitalismo. Esta é uma crise do conjunto do capitalismo: o sistema todo está doente e seus fundamentos estão sendo questionados de maneira profunda por este evento radical. Além disso, essa crise não é adminis-trável com os instrumentos clássicos de política monetária ou intervenções tópicas para recuperar a credibilidade do sistema. Por isso, as tentativas de coordenação não conseguem resolver o problema. A crise vai seguir objetivamente seu curso durante alguns anos, independentemente da vontade dos dirigentes dos países centrais, com repercussões em todas as

* Edmilson Costa é doutor em Economia pela Unicamp, com pós-doutorado no Ins-tituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma Insti-tuição. É diretor de pesquisa do Instituto Caio Prado Jr. e membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasi-leiro (PCB).

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esferas da vida social – na economia, na geopolítica e entre as classes sociais. Ressalte-se ainda que a forma particular como a crise se apresenta atualmente (financeira, imobiliária, etc.) representa apenas a ponta do iceberg de um problema mais de fundo, que é a superacu-mulação de capitais, oriunda da queda da taxa de lucros, e a impossibilidade de valorizá-los na esfera da produção.

Mas a crise também tem suas particularidades, como todas as crises do sistema capi-talista, uma vez que cada crise traz consigo um conteúdo novo (Campos, 2001). Esta crise fecha um longo ciclo de 30 anos da hegemonia do pensamento único e encerra uma forma particular de acumulação, baseada na hegemonia das altas finanças, mecanismo através do qual o grande capital capturava a mais-valia mundial, mediante uma infinidade de me-canismos de punção, que envolvia desde o aprisionamento do orçamento do Estado até recursos das empresas produtivas e dos diversos fundos mútuos ou dos trabalhadores. Nada será como antes após o 15 de setembro. Podemos constatar com ferina ironia o desespero dos fundamentalistas neoliberais sendo obrigados pelas leis objetivas da vida social a fazer o contrário de tudo que pregavam anteriormente e a desmoralizarem-se perante o mundo: abandonaram o discurso do livre mercado, chamaram de volta o Estado para socorrer a economia e praticamente “estatizaram” todo o sistema financeiro dos países centrais para salvar seus especuladores e agiotas.

Como consequência, em poucas semanas, a crise também quebrou todos os mitos neoliberais: o mercado como regulador da vida social e espécie de semi-deus com sua mão invisível a harmonizar interesses de produtores e assalariados; a retirada do Estado da economia, as privatizações e a desregulamentação, como forma de desobstruir os canais do livre mercado e transferir as empresas públicas para o capital privado; a iniciativa privada, como operadora do sistema econômico, racional e eficiente, ao contrário das empresas estatais, ineficientes, esbanjadoras de recursos públicos; a credibilidade das agências de risco, cujas instituições funcionavam como palmatória do mundo, a dar notas a países e empresas de acordo com os critérios e interesses do grande capital; o pensamento único e o fim da história: a ideologia neoliberal era considerada o estágio mais avançado do pensamento e o capitalismo neoliberal o sistema modelar de organização da economia, cujo funcionamento desregulado tornaria impossível qualquer tentativa de mudança no modo de produção capitalista.

Tudo isso desmanchou-se no ar em poucos dias como uma cortina de fumaça. Em menos de duas semanas desapareceram os cinco maiores bancos de investimentos dos Estados Unidos (o vértice da pirâmide do capital financeiro), as duas maiores empresas hipotecárias do planeta, bem como a maior empresa seguradora do mundo. Se alguém tivesse previsto uma conjuntura desse porte um mês antes, com certeza seria motivo de piada. Portanto, esta crise significa não só o dobre de finados do neoliberalismo, mas também a derrota moral do capitalismo e do bloco de forças mais reacionário e mais parasitário do grande capital, que amealhou o poder nos países capitalistas centrais no final dos anos 70 e subordinou todos os outros setores à lógica da especulação financeira. Além disso, representa grande possibilidade de um ascenso de massas de caráter mundial que irá dar combate a um sistema ferido.

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A crise revelou também de forma cristalina o caráter de classe do Estado e do governo: quando a economia estava bem, os lucros eram apropriados pela burguesia; agora que a eco-nomia vai mal, o Estado socializa os prejuízos com os trabalhadores. Realmente, os governos dos países centrais já injetaram até agora mais de US$7,0 trilhões na economia para salvar os especuladores. No entanto, por incrível que pareça, essas mesmas autoridades pouco fizeram para resolver os problemas de milhões de pessoas que perderam suas casas e estão vivendo na rua, em barracas de lonas nos parques, em trailers, além dos outros milhões de insolventes das dívidas com cartões de crédito e outras dívidas pessoais. Esse escândalo de classe, em algum momento da conjuntura, vai cobrar seu preço, pois cada vez mais ficará mais claro para a população a opção dos governantes pelos ricos.

É necessário ressaltar ainda que, nos períodos de crise, o grande capital busca se entrin-cheirar no Estado e nos organismos institucionais, como os Bancos Centrais e os organismos de coordenação internacionais, a fim de tentar salvar suas posições e recuperar o que perderam com a crise. Procuram assim jogar todo o ônus da crise na conta dos trabalhadores. Primeiro tentam vender a ilusão de que na crise cada um deve dar sua contribuição para que todos possam se salvar, mesmo sabendo-se que quem quer se salvar é a burguesia e seu sistema de exploração. Quando este método não funciona, o capital marcha unido contra os traba-lhadores buscando ampliar o raio de exploração e retirar-lhes direitos e garantias. Portanto, esta conjuntura deverá acirrar as lutas sociais e as disputas entre as classes fundamentais da sociedade: trata-se de um momento especial da luta de classe em caráter mundial, em que a burguesia vai utilizar todos os meios possíveis para sair vitoriosa da crise e o proletariado também deve estruturar seu projeto de sociedade para superar o capitalismo.

ANTECEDENTES DA CRISE

Como já enfatizara Marx, os capitais se movimentam permanentemente na busca de valorização e na maximização do lucro. “O capital tem como único impulso vital, o im-pulso de valorizar-se, de criar mais-valia, de absorver com sua parte constante, os meios de produção, a maior massa possível de mais-trabalho (Marx, 1983:188-189) [...] O motivo que impulsiona e o objetivo que determina o processo de produção capitalista é a maior autovalorização possível do capital (Marx, 1983: 263) [...] Antes de mais nada, o objetivo da produção capitalista não é apossar-se de outros bens, e sim apropriar-se de valor, de di-nheiro, de riqueza abstrata” (Marx, 1982: 939). Portanto, quando esse objetivo está sendo contrariado, ou seja, quando as taxas de lucro estão caindo, o capital procura novas formas para restabelecer seu patamar de rentabilidade. Foi exatamente o que aconteceu a partir dos anos 70, quando as taxas de lucro começaram a decrescer nos países centrais, especialmente nos Estados Unidos, onde concentraremos nossa análise. Diante dessa conjuntura, o grande capital realizou um movimento estratégico para recuperar as taxas de lucro, baseado em três eixos fundamentais:

a) Parte expressiva dos setores industriais do EUA foi deslocada para a Ásia, México, América Latina e América Central em busca de mão-de-obra barata e um conjunto

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de outras vantagens econômicas e institucionais que possibilitassem ao capital operar de maneira mais vantajosa, de forma a elevar as taxas de lucro. O grande capital imaginava compensar, do ponto de vista econômico, uma possível fragili-dade manufatureira nos Estados Unidos com as remessas de lucros e os preços de transferência de suas transnacionais para o interior dos EUA, além do controle do comércio mundial e, do ponto de vista político, com a maior influência norte-americana nas várias regiões do mundo.

b) Os setores mais parasitários do capital, que assumiram o poder nos Estados Unidos e Inglaterra no final da década de 70, buscaram reconfigurar o mundo a partir da criação de uma nova ordem econômica internacional, tendo como pilares a implantação do monetarismo como forma de organizar a economia e o neolibe-ralismo como o gestor político do sistema socioeconômico. Transformaram em política de Estado a ideologia neoliberal: o mercado como regulador da economia, a desregulamentação, a liberalização bancária, a livre mobilidade dos capitais pelo mundo, a retirada do Estado da economia e uma agressiva política de transferência de bens do Estado para o setor privado, através das privatizações.

c) Além dessas mudanças de fundo, o grande capital norte-americano realizou na déca-da de 80 e 90 uma espécie de fuga para frente, buscando estruturar uma economia de serviços, baseada na criação da riqueza mediante o extraordinário desenvolvimento do capital fictício. O objetivo era construir um sistema financeiro sofisticado e hierarquizado a partir das instituições norte-americanas, capaz de capturar parte da mais valia mundial, e consolidar as relações sócio-econômicas mundiais a partir dos interesses dos Estados Unidos. Inovações financeiras e finanças estruturadas, endividamento generalizado das famílias e expansão da dívida pública, além de aumento dos gastos na área do complexo industrial militar, de forma a permitir o desenvolvimento da política guerreira norte-americana, especialmente após a queda da União Soviética, foram a tônica da estratégia nos Estados Unidos.

Essa reestruturação estratégica do grande capital norte-americano, ao contrário do que seus idealizadores imaginavam, fragilizou de maneira acentuada a economia dos Estados Unidos, uma vez que as três variáveis implementadas para resgatar as taxas de lucro e con-trolar o sistema financeiro mundial resultaram num conjunto de problemas estruturais que viriam emergir dramaticamente com a crise atual, tais como um déficit crescente na balança comercial, elevação exponencial da dívida externa, da dívida das famílias e corporações, além da constituição de um sistema financeiro tão especulativo, que construiu as próprias bases de sua desagregação. Em outras palavras, a reestruturação neoliberal cobrou um enorme preço aos Estados Unidos, tanto do ponto de vista econômico quanto social e político:

a) A deslocalização de grande parte das indústrias para outras regiões gerou um déficit permanente na balança comercial, uma vez que os produtos elaborados no exterior entravam nos Estados Unidos como mercadorias importadas. O deslocamento das indústrias ocorreu no ambiente da internacionalização da produção e da introdução de novas tecnologias nas plantas industriais, que se expressaram na globalização da

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produção mundial, processo que elevou composição orgânica do capital (a relação entre o capital social geral e a extração da mais-valia). Essas modificações, por sua vez, geraram dialeticamente novas contradições: apesar da do barateamento da mão-de-obra, o incremento da ciência na produção estreitou, numa ponta, a base de extração da mais-valia, ao reduzir o número de trabalhadores por hora-máquina; ao mesmo tempo, esse novo patamar de acumulação reduziu também o mercado para a realização das mercadorias. Os dois fatores lavariam inevitavelmente, no médio prazo, à crise de superacumulação.

É importante ressaltar alguns fatores que tensionaram essa conjuntura: a “desindus-trialização” manufatureira nos EUA, as derrotas impostas ao movimento sindical, a precarização do trabalho e a contratação da mão-de-obra imigrante tiveram um papel dramático sobre a renda dos trabalhadores norte-americanos. “Entre 1973 e 2005, os 80% dos trabalhadores que não exerciam funções de supervisão viram sua renda semanal cair de US$ 581,67 para US$ 543,65. Em outras palavras o poder de compra desse contingente de trabalhadores era menor em 2005 do que em 1973. Enquanto os salários eram reduzidos, a produtividade crescia de maneira extraordinária, atingindo um aumento de 75% no mesmo período” (Wolff, 2008). Outros dados, para período mais recente, indicam o seguinte: “Entre 2000 e 2006 a economia norte-americana cresceu 18%, mas a renda mediana do domicílio do trabalhador caiu 1,1% em termos reais [...] Em contrapartida, os 10% mais ricos da população viram sua renda crescer 32%. No caso dos 1% mais ricos o cresci-mento foi de 203%, e de 425% para o segmento representante dos 0,1% superior na pirâmide de renda” (Valor Econômico, 29/10/08).

b) Como as famílias norte-americanas têm no padrão de consumo um dos elementos de sua afirmação social, a queda na renda levou as famílias ao endividamento ge-neralizado, muito acima de suas possibilidades econômicas, processo facilitado nos últimos anos pelas baixas taxas de juro. A dívida interna geral (hipotecas, cartões de crédito, compras de produtos em geral, leasing soma US$38,6 trilhões, cerca de três vezes o PIB americano (Moore, 2008).

c) As políticas neoliberais de reduzir os impostos para os ricos, aliados aos gastos com as aventuras guerreiras no exterior e o desenvolvimento do complexo industrial militar criaram um enorme déficit fiscal, que tinha sido zerado na administração Clinton. Esta situação levou o governo a financiá-lo no exterior, mediante a emissão de títulos, ampliando o endividamento externo. Os Estados Unidos passaram de nação credora até os anos 60 para a maior devedora do planeta. A dívida externa norte-americana está calculada em cerca de US$ 9,5 trilhões, US$ 2,5 trilhões dos quais com a China e o Japão.

d) A desregulamentação transformou o sistema financeiro dos EUA e, por gravidade, as finanças internacionais, num teatro de operações especulativas sem precedentes na história do capitalismo, dado o tamanho do descolamento entre a esfera produtiva e a órbita da circulação. Para se ter uma ideia, enquanto o PIB mundial está por

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volta de US$55 trilhões, o valor escritural das operações financeiras especulativas está em torno de US$650 trilhões (BIS, 2008), mais de 10 vezes o PIB mundial. Pela grandeza desse número já se podia prever a intensidade da crise, pois não existe mais-valia capaz de remunerar essa quantidade de recursos especulativos.

A DINâMICA DA ESPECULAÇÃO

Ao contrário do que imagina o senso comum, a especulação é um processo recorrente e parte constitutiva do sistema capitalista e o capital fictício, de tempos em tempos, sempre encontra um setor da economia para desenvolver a especulação financeira. John Kenneth Galbraith, em um livro muito ilustrativo sobre a história das crises financeiras, narra com detalhes a euforia das bolhas especulativas, a dinâmica das crises e os traços comuns entre elas. Galbraith assinala que os processos especulativos são muito semelhante: começa num setor qualquer da economia com uma inovação financeira, desenvolve-se em função da euforia dos ganhos fáceis e entra em colapso quando se desinfla a bolha especulativa.

De maneira uniforme, em todos os eventos especulativos, está a ideia de que há algo novo no mundo [...] das tulipas na Holanda, ouro na Luisiania, terrenos na Flórida [...]. Algum acontecimento novo e dese-jável toma conta da mente financeira. O preço do objeto da especulação dispara. Títulos, terrenos, objetos de arte, ou outros bens adquiridos hoje passam a valer mais amanhã. Esse aumento e a esperança de novos aumentos atraem novos compradores; os novos compradores garantem novos aumentos. Outros tantos são atraídos e outros tantos também compram. E o movimento altista continua: a especulação alimenta-se de si mesma e confere a si mesma o seu próprio ímpeto. (Galbraith, 1992: 2, 12).

Os setores interessados na especulação desenvolvem intensa campanha para criar uma imagem positiva da euforia financeira, o que é reproduzido de maneira exaustiva pelos meios de comunicação, autoridades governamentais e pelos mecanismos de mercado. Se por acaso alguém questiona o processo especulativo, imediatamente é desqualificado e execrado perante a sociedade: trata-se de alguém que não quer a prosperidade do País, que se incomoda o lucro das pessoas, empresas e instituições e que têm idéias obsoletas. A euforia só se encerra quando vem o colapso financeiro e os imensos prejuízos para aqueles que não se safaram antes da crise. Mas as crises especulativas têm um denominador comum: “Todas as crises envolvem um endividamento que, de uma ou outra maneira, tornou-se perigosamente desproporcional aos meios de pagamentos subjacentes” (Galbraith, 1992: 14).

A descrição de Galbraith corresponde exatamente aos dois últimos processos especulativos ocorridos nos Estados Unidos. Nos anos 90, a especulação se formou em torno das empresas ponto com, empresas de tecnologia que obtiveram enorme valorização nas bolsas. Falava-se em nova economia, comandada pelas tecnologias da informação e cuja expressão maior eram os

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preços das ações nas bolsas. “Na primavera de 2000, no ápice da alta do mercado de ações, a despeito do fato de as companhias de telecomunicações terem produzido menos de 3% do PIB, a capitalização de mercado (o valor de suas ações em circulação) alcançou assombrosos US$ 2,7 trilhões, quase 15% da soma de todas as corporações não financeiras norte-americanas” (Brenner, 2003: 22).

Essa bolha especulativa desinflou em 2001, levando enormes prejuízos para a socie-dade. “Em meados de 2002, as ações de telecomunicações perderam 95% de seu valor, o que resultou no desaparecimento de aproximadamente US$ 2,5 trilhões da capitalização do mercado. Apenas no breve período entre o final de 2000 e meados de 2002, mais e 60 com-panhias faliram e a indústria de telecomunicações demitiu mais de 500 mil trabalhadores, 50% a mais do que tinha contratado durante a espetacular expansão do período entre 1996 e 2000” (Brenner, 2003: 25, 26). A crise das empresas ponto com, como pode ser observado, foi uma espécie de avant première da crise atual que envolve o sistema capitalista.

Concentremo-nos agora nos elementos constitutivos da crise atual. O governo norte-americano, através do FED, visando retomar economia que entrara em recessão após a crise de 2001, reduziu de maneira acelerada a taxa de juros, que chegou a ficar 31 meses negativa. Como a renda das famílias não aumentava, a saída para manter os elevados padrões de con-sumo dos norte-americanos foi a ampliação do endividamento. Como se sabe, é tradição entre a sociedade dos EUA medir o sucesso individual ou familiar pelo padrão de consumo. Os baixos juros e o crédito em abundância possibilitaram a retomada da demanda, mas ao mesmo tempo criaram uma bomba de efeito retardado, uma vez que, se o crédito funciona como dinamizador da economia, em contrapartida deve ser pago em algum momento do tempo. Se as condições econômicas estiverem favoráveis, o crédito cumpre uma função es-pecial de facilitar a produção e a demanda, mas se as taxas de juros mudam ou as condições da economia não possibilitam o aumento da renda, a inadimplência é o caminho natural de parcela expressiva dos endividados.

As condições vantajosas do crédito, aliadas à desregulamentação, estimularam o capital especulativo a desenvolver um conjunto de inovações financeiras com as dívidas de cartões de crédito, compra de automóveis, dívidas corporativas e, especialmente, as dívidas hipo-tecárias. Vale lembrar que, para facilitar a ação especulativa, o Congresso norte-americano revogou, em 1999, a Lei Glass-Steagall, que disciplinava a atividade bancária e separava os bancos comerciais dos bancos de investimento. Desregulamentado e com carta branca para criar os mais diversos tipos de inovações financeiras, os bancos fizeram jus aos novos tempos e desenvolveram esquemas de engenharia financeira que beiravam à insanidade.

Por exemplo, no setor imobiliário, onde a crise ficou mais conhecida, o mecanismo funcionava da seguinte maneira: os bancos até então realizavam negócios imobiliários e fica-vam com as hipotecas negociadas como garantia do pagamento. Quando o cliente quitava o débito recebia de volta a hipoteca. No entanto, estimulados pela desregulamentação e pelo incentivo do próprio governo, interessado no desenvolvimento das finanças, as instituições financeiras resolveram inovar radicalmente, criando as chamadas finanças estruturadas: transformaram as hipotecas e todo tipo de divida em títulos, os empacotaram junto com

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outros títulos de origem diferente, e os venderam para instituições financeiras, investidores em geral e agentes econômicos do mundo inteiro, que por sua vez, com esses títulos podiam obter empréstimos para comprar novos títulos e assim por diante, surgindo daí uma enorme alavancagem financeira especulativa.

O circuito se completava com a entrada das companhias seguradoras: para se garantir contra os riscos dos títulos, empresas e instituições em geral faziam o seguro dos títulos empa-cotados e as empresas de seguro, com os recursos obtidos, também participavam ativamente da ciranda financeira. Para se tornarem atrativos, os títulos derivativos (oriundos das operações securitizadas) rendiam muito mais que as taxas de juros do FED, o que proporcionava ganhos expressivos para todos que estavam no frenesi especulativo. O processo de sucuritização das dívidas era chamado de dispersão do risco. Cada agente passava o risco para a frente e em-bolsava as comissões e lucros – todos estavam ganhando e assim seguia a euforia financeira. Novamente Galbraith descreve com exatidão e ironia a dinâmica especulativa: “Quem está envolvido na especulação vivencia um aumento de sua riqueza. Ninguém deseja acreditar que isso é fortuito ou imerecido; todos querem crer que é o resultado da superioridade de seus insights ou intuições pessoais. O próprio aumento dos valores toma conta dos corações e mentes dos que são por ele beneficiados. A especulação suga, de uma maneira perfeitamente prática, a inteligência daqueles envolvidos” (Gralbraith, 1992: 4).

Para dar solidez a esses negócios, as agências independentes de risco, especialmente as três principais, Satandard Poors, Moody’s e Fitch, responsáveis por 80% do mercado, realizavam a classificação desses títulos e os devam nota máxima: um tríplice A (AAA), que significava a benção do mercado e dos seus técnicos mais gabaritados para seriedade dos negócios. A classificação das agências de risco abriu espaço para que os investidores institucionais (fundos de pensão, corretoras e outras instituições oficiais regulamentadas), que só poderiam comprar títulos com esse tipo de classificação, entrassem no mercado colocando ainda mais gasolina no processo especulativo. Isso porque esses fundos e essas instituições, especialmente os fundos de pensão, centralizam uma enorme quantidade de recursos da sociedade, o que lhes dá um grande poder para influenciar os mercados.

Esse mecanismo (ou essa corrente da felicidade) criou um enorme boom imobiliário. Com um número cada vez maior de pessoas com créditos para adquirir casas, os preços dos imóveis aumentaram de maneira acentuada, pois a demanda por residências era maior que a capacidade de construção imobiliária. Surgia assim o efeito riqueza, as pessoas que adquiriam imóveis se tornavam mais ricas em função do aumento dos preços da habitação. Os bancos novamente utilizavam esta situação para desenvolver ainda mais a especulação. Chamavam os clientes com imóveis valorizados e ofereciam os créditos correspondentes entre o valor original da hipoteca e o preço de mercado dos imóveis. Esses créditos eram geralmente investidos na compra de novos títulos empacotados, afinal todos queriam lucrar com a euforia financeira, o que aumentava ainda mais a procura por esse tipo de papéis, elevava sua valorização e os ganhos dos especuladores.

Nessa orgia especulativa, as instituições financeiras ampliaram ainda mais a especulação imobiliária, ao realizar uma verdadeira caça às pessoas para aceitar créditos imobiliários, mesmo

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aqueles que não tinham a menor condição para pagar os empréstimos. Isso é compreensível porque, para os bancos, o que interessava mesmo era a posse da hipoteca em carteira, pois esta logo seria transformada em títulos securitizados e vendida para outros agentes econô-micos no mundo inteiro. Aliás, os bancos poderiam ganhar duplamente com esses negócios “subprime”. Ao vender os títulos, livravam-se dos riscos do negócio. Caso o devedor não conseguisse pagar as prestações, então o banco arrestava a casa e vendia para outros clientes. Um dos artifícios utilizados para que a venda dos imóveis parecesse vantajosa era o sistema de pagamentos das de prestações a taxas de juros flexíveis – muito baixos no início contrato, para depois ir aumentando com o tempo.

No auge da euforia financeira, autoridades governamentais denominavam esse processo de criação de riqueza, capitalismo popular. Parecia uma imensa platéia encantada com as mágicas de profissionais habilidosos: todos estavam felizes em ganhar dinheiro a partir do nada. Praticamente o dinheiro estava se multiplicando como pé de jaboticaba: dava frutos dos troncos até os galhos menores. Para se ter uma ideia do tamanho do mercado hipotecá-rio, basta dizer que é de cerca US$11 trilhões. Essa base, multiplicada pela especulação com títulos, mais as dívidas securitizadas dos cartões de crédito, pode ter chegado a algo próximo dos US$30 trilhões, quase três vezes o PIB dos Estados Unidos.

OS PRIMEIROS SINTOMAS DA CRISE

No final de 2006, iniciou-se um processo de reversão das expectativas nos Estados Unidos, em função da conjuntura econômica: nesse período, a economia norte-americana já não apresentava mais o mesmo dinamismo do período anterior. Os juros negativos ou muito baixos por longo tempo ampliaram a capacidade de compra da economia, fazendo surgir os primeiros sinais de aumento da inflação. O governo foi então reajustando a política de juros, que de 1% (um por cento) no período anterior, aumentou para 5,25%. A combinação de desaceleração da economia, aumento de juros e queda na renda das famílias provocou um efeito dramático no mercado especulativo: a inadimplência começou a surgir nos setores dos chamados créditos subprime, foi evoluindo até se generalizar para o conjunto da economia, envolvendo dívidas como as de cartões de crédito, dívidas corporativas, entre outras. A falta de pagamento dos cartões aumentou em 30% no primeiro semestre de 2007. Mas foi a crise do subprime, mercado muito maior, que acendeu a luz amarela para o conjunto do sistema especulativo: as instituições financeiras que compraram os pacotes lastreados nesses títulos começaram a perceber a possibilidade dos prejuízos.

Dispara-se então o processo de reversão da bolha especulativa: as instituições, empresas, fundos de pensão, corretoras e todos os agentes econômicos envolvidos na ciranda financeira procuraram desfazer-se dos papéis securitizados mediante a venda no mercado. Quando mais o movimento de venda aumentava, mas os preços desses papéis caiam. E quanto mais os preços iam caindo mais aumentava o movimento de venda e os preços caiam ainda mais. A notícia da crise vai se espalhando e ninguém quer mais comprar esses papéis. Os preços despencam verticalmente e há um pânico generalizado entre os investidores. Agora todos

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sentem nos bolsos a ressaca da especulação financeira. Quando mais os preços caem, mais carregam consigam prejuízos para todas as instituições compradoras e também para as insti-tuições que os lançaram, pois agora o valor de mercado dos seus ativos está abaixo do valor patrimonial. Nos balanços trimestrais várias empresas começam a divulgar os prejuízos. Isso leva mais pânico ao mercado, os preços dos papéis caem mais ainda e muitas empresas são obrigadas a fechar. Instaura-se o efeito pobreza, pois agora todos perderam da noite para o dia o valor potencial de seus títulos, os proprietários vêem o valor dos imóveis rebaixados, além da possibilidade de perder suas casas. Instaura-se um clima de expectativas negativas que vai gradativamente se espalhando para a economia real.

As grandes instituições também começam a sofrer enormes prejuízos e a crise já en-volve o conjunto do sistema. As autoridades governamentais, buscando reduzir o pânico entre as instituições envolvidas na especulação, começam a injetar recursos na economia porque avaliam que com essa medida estará ampliando a liquidez e dando condições às instituições financeiras de evitarem uma corrida dos clientes aos guichês ou aos mouses de computadores para resgatar seus recursos. Mas a crise já é bem maior que a percepção das autoridades monetárias e sua capacidade de contorná-la. Um dos cinco maiores bancos de investimentos dos Estados Unidos, o Bear Stearns, quebrou em meio à tormenta e o FED foi obrigado a financiar sua aquisição na bacia das almas pela J. P. Morgan. Posteriormente teve que emprestar recursos pela primeira vez aos bancos de investimento (setor não regu-lamentado) para salvá-los da insolvência, tendo como contrapartida os títulos tóxicos, que ninguém mais queria comprar. Mas também já era tarde: logo depois o Lehman Brothers, um banco com 158 anos de existência, não teve a mesma sorte do Bear Stearns – foi à falência pura e simples. O Merril Linch foi comprado pelo Bank of América e o Goldman Sachs e o Morgan Stanley deixaram de ser bancos de investimento. Em síntese, em poucos dias os cinco maiores bancos de investimento dos EUA desapareceram de cena.

Mas a crise estava apenas no seu começo: os maiores problemas vieram quando as duas principais empresas hipotecárias, a Fannie Mae e a Freddie Mac, também foram à lona. O governo então foi obrigado a intervir abertamente e estatizar as duas instituições, num mo-vimento envolvendo US$250 bilhões. Para se ter uma idéia da importância da Fannie e da Freddie basta dizer que estas duas instituições detinham, sozinhas, US$5,4 trilhões em títulos hipotecários. Posteriormente, a maior empresa seguradora do mundo, a AIG, também não teve condições de cumprir seus compromissos e o governo foi obrigado a estatizá-la. Nessa conjuntura, centenas de instituições menores também foram à bancarrota. Em clima de pânico institucional, o secretário do Tesouro, em aliança com o FED, estruturaram um pacote global de socorro da economia de US$700 bilhões. Num primeiro momento, o Congresso rejeitou o pacote só o aprovou depois com um conjunto de emendas. O mais irônico dessa situação foi o fato de que o governo Bush, antes um agressivo defensor do livre mercado e da retirada do Estado da economia, tornara-se o principal defensor da mão visível do Estado para socorrer o sistema financeiro com o dinheiro do contribuinte. No entanto, para revelar o caráter de classe do governo, não se elaborou nenhum pacote financeiro para salvar os proprietários dos imóveis da inadimplência e do arrestamento de suas residências, mesmo sabendo-se que milhões de norte-americanos perderão suas casas e terão que ficar no olho da rua.

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A crise não parou de crescer: se espalhou rapidamente para o conjunto da Europa, cuja economia estava profundamente vinculada à economia norte-americana, pelos países da Ásia, pela Austrália e América Latina. Os governos da Europa, da Ásia, Austrália tam-bém apresentaram planos gigantescos, envolvendo trilhões de dólares, para salvar o sistema do colapso. Os dirigentes dos principais países centrais agora falam na constituição de um novo Bretton Woods e até numa refundação do sistema capitalista, com o sistema financeiro devidamente regulamentado. Mais a crise é muito maior que a capacidade de regulação das autoridades governamentais e o sistema capitalista vai passar por um enorme período de dificuldades nos próximos anos.

Nesta crise, há ainda um dado que se assemelha com o processo da crise das empresas ponto com: a fraude empresarial. As instituições financeiras encontraram uma forma especial de contabilizar os negócios especulativos: passaram a colocar fora do balanço os riscos de crédito, visando ampliar a alavancagem financeira. Com essas operações fora de balanço, as instituições ganhavam maior capacidade para realizar novos empréstimos, sem que isso implicasse legalmente numa relação de alavancagem perigosa. Por isso mesmo, é que até agora ninguém tem condições de avaliar corretamente a massa de recursos especulativos, ou lixo tóxico que contamina as economias dos países centrais.

O SIgNIFICADO DA CRISE

Esta crise tem vários elementos de originalidade em relação às crises anteriores, fruto do próprio desenvolvimento das forças produtivas e financeiras do capitalismo. Ocorre num momento em que o capitalismo se transformou num sistema mundial completo e maduro. No período anterior à globalização o sistema era completo apenas no que se refere a duas variáveis da órbita da circulação: a exportação de capitais e o comércio mundial. Mas ao expandir a internacionalização da produção e das finanças mundialmente, o sistema ama-dureceu a reprodução do capital em escala internacional e unificou globalmente o ciclo do capital, fechando assim um processo iniciado com a revolução inglesa de 1640 (Costa, 2002). Essa performance possibilitou a constituição de um ciclo mundial único do capital, gerando uma crise sistêmica, simétrica e avassaladora, tanto nos países centrais como na periferia, o que impossibilita no curto prazo as possibilidades de fuga da crise para outras regiões como no passado.

Portanto, esta crise não pode ser analisada a partir de alguns de seus aspectos específicos, tais como a crise imobiliária, a crise financeira ou a ganância dos especuladores de Wall Street. Esta é uma crise global do sistema de acumulação mundial e representa na macroestrutura a superacumulação de capitais e a impossibilidade de valorizar na esfera produtiva os imensos recursos que circulam na órbita das finanças. “As verdadeiras crises capitalistas, qualquer que seja a sua causa inicial, são colapso da totalidade, do conjunto da estrutura da produção, do consumo, da circulação” (Campos, 2001). Por isso, as tentativas de coordenação dos go-vernos centrais e, particularmente, dos Estados Unidos, não produzem os efeitos desejados, uma vez que esta crise expressa uma quantidade e uma qualidade diferentes das crises cíclicas

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tradicionais ou das grandes crises sistêmicas do século XIX e XX. Pois não se trata de falta de liquidez, de falta de crédito ou de regulação. O sistema todo está enfermo e todos os seus fundamentos estão sendo questionados pela atual conjuntura.

Nos últimos 64 anos, os Estados Unidos foram o vértice do sistema mundial capitalis-ta, o que lhe possibilitou atrair a maior parte das economias ocidentais para seu modelo de acumulação, tanto no período da vigência de Bretton Woods quanto no período iniciado com Tatcher e Reagan, mais conhecido como neoliberalismo. Portanto, como o epicentro da crise se encontra justamente no coração da economia norte-americana, esse processo arrasta consigo todos os países ligados à economia líder. E a profundidade da crise em cada nação dependerá do grau de proximidade ou subordinação à economia norte-americana. As possibilidades de saída da crise dentro do modelo estruturado nos últimos 30 anos, no curto prazo, são marginais, a não ser que ocorra no bojo dessa conjuntura uma ruptura de um determinado País em relação ao sistema de poder norte-americano.

A desregulamentação financeira, a livre mobilidade dos capitais e a construção de instrumentos securitizados e derivativos geraram um processo de especulação no qual a riqueza circulante da órbita das finanças é cerca de dez vezes maior que a gerada no setor produtivo, justamente o que gera valor ou riqueza nova. Para se uma idéia do elevado grau de especulação das finanças mundiais, é importante destacar o mais recente levantamento realizado semestralmente pelo Banco de Compensações Internacionais (BIS) sobre o valor notional (escritural) apenas dos derivativos em circulação no mundo. De acordo com o último relatório do BIS (dezembro de 2008), o valor negociado no mercado de balcão com esses títulos atingiu US$ 650 trilhões. Um descolamento dessa magnitude entre as duas órbitas do grande capital é um fato inédito na história do capitalismo e não poderia ter um resultado deferente que a crise atual do sistema, pois é impossível manter esta relação no longo prazo, até mesmo porque não existiria mais-valia suficiente para remunerar a crescente progressão da especulação financeira.

Esta é a primeira grande crise realmente completa do sistema capitalista, por isso mais complexa e potencialmente explosiva, uma vez que envolve toda a vida social do sistema capi-talista – a esfera da produção, da circulação, o crédito, as dívidas públicas e privadas, o sistema social, o meio ambiente, os valores neoliberais, a cultura individualista e, especialmente, o Estado como articulador do processo de acumulação. A crise é tão extensa que até agora nenhuma das autoridades dos países centrais teve condições de saber com exatidão a profundidade do desastre. Como não conseguem ter um diagnóstico preciso, não têm também condições de resolvê-la com os métodos tradicionais de política monetária e fiscal. Isso porque a crise é muito maior que a visão tradicional das velhas lideranças atuais do mundo capitalista, acostumadas ao senso comum e às variáveis ideológicas neoliberais dos últimos 30 anos.

A crise ocorre também num momento em que sistema imperialista está fragilizado econômica e politicamente, muito embora ainda possua um poderio militar maior que to-dos os outros países. Mas nenhum império pode se manter simplesmente pela força militar. A hegemonia não pode ser exercida por muito tempo apenas com a força bruta. Por isso, os Estados Unidos são hoje o que se pode chamar de um gigante ferido: trata-se do maior

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devedor do mundo, quando na década de 60 era um país credor; de um país com um déficit comercial crônico, oriundo do processo de deslocalização das indústrias para outras regiões; com um déficit fiscal cada vez mais elevado e com as empresas e consumidores com elevados graus de endividamento.

Como sempre, as crises sistêmicas representam o momento da verdade para todos: nessas crises se revelam de maneira explícita a natureza das classes sociais, da ideologia, dos Estados e da gestão da economia. As crises também são educativas e tornam mais claras as posições ideológicas dos partidos políticos, dos movimentos sociais, dos intelectuais orgânicos e coloca por terra as dubiedades políticas, o oportunismo e o reformismo. Em tempos de crise há um aprendizado rápido do proletariado: este aprende mais em poucos meses do que em déca-das de calmarias. Em tempos de calmaria as mudanças são muito pequenas, o proletariado realiza apenas lutas específicas, uma vez que a economia vai bem e o controle ideológico da burguesia é maior, mas as crises funcionam como parteiras de uma nova época, tanto para a burguesia quanto para o proletariado. As mudanças são velozes, revolucionárias, independem da vontade das pessoas. É exatamente nas crises que se abrem as janelas de oportunidades para que o proletariado possa reafirmar seu projeto de emancipação.

As crises sistêmicas também representam um período difícil para a burguesia, pois esta se encontra desorganizada do ponto de vista econômico, seu poder político enfraquecido e sua hegemonia moral da sociedade em questionamento. Mas o proletariado também está na defensiva, em função de sua fragmentação operada pela reestruturação produtiva, pelas debilidades do movimento sindical e pelas sucessivas derrotas sofridas ao longo dos últimos 30 anos. A crise que estamos vivendo agora é um destes momentos históricos pródigos para acontecimentos inesperados, tanto por parte da burguesia como do proletariado. A crise representa o confronto aberto entre os projetos das duas classes fundamentais da sociedade. Cada classe vai buscar resolver a crise de acordo com os seus interesses e com seu projeto político de sociedade. Quanto mais grave a crise, mais há a possibilidade de um acirramento da luta de classe.

Vale ressaltar que não existe crise sem saída, não existe crise sem solução. Poderemos, por um lado, observar uma violenta ofensiva da burguesia, que se torna mais agressiva nesta época porque quer recuperar a todo custo as taxas de lucro e o controle do sistema. O exem-plo do nazismo e do fascismo ainda estão bem vivos para nos advertir do que a burguesia é capaz para manter o seu domínio. Mas também é nas crises que as lutas sociais e políticas do proletariado podem ganhar uma dimensão muito maior em relação ao período anterior: setores que antes pareciam adormecidos, acomodados e envolvidos pela ideologia do capital, podem irromper na cena política com um vigor capaz de deixar perplexos não só aqueles que estavam dominados pela fatalidade do domínio burguês, mas até o próprio inimigo de classe, que é tomado de surpresa pela ousadia das massas. Trata-se do momento em que o proletariado tem a possibilidade de passar do patamar de classe em si para classe para si.

Em termos analíticos, as crises sistêmicas desenvolvem-se obedecendo a seguinte hie-rarquia de acontecimentos:

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Primeiro, surge a crise econômica: emergem de maneira abrupta todas as contradições do capitalismo. As principais instituições econômicas, antes sólidas e respeitáveis, desmo-ralizam-se diante da crise. Grandes bancos, grandes empresas, fundos de investimentos vão à bancarrota à medida que a crise se aprofunda O pânico se alastra entre os especuladores, empresas, instituições e a burguesia em geral. As autoridades governamentais intervêm colo-cando recursos públicos para tentar salvar a classe dominante. Torna-se mais claro o caráter de classe do governo. A crise se alastra para o conjunto do sistema com perdas econômicas e financeiras.

Posteriormente, vem a crise social: com a quebra das principais instituições, o curto-circuito do metabolismo econômico e a incapacidade do governo em superar a crise, começa a recessão econômica. A recessão traz consigo o desemprego, a queda na renda dos trabalhadores e as tensões sociais. Em sociedades tipo a norte-americana, onde os fundos de pensão têm um papel preponderante na economia, os prejuízos dos fundos de pensão e o rebaixamento dos proventos das aposentadorias, levam aos protestos generalizados dos aposentados e dos participantes dos fundos. Nessa conjuntura, a crise econômica, o desemprego, a queda na renda, o rabaixamento das pensões, a ampliação da miséria e o desprestígio do dólar como moeda mundial mudam radicalmente o clima psicológico das massas, que começam a se manifestar contra o governo.

Por fim, a crise política. Com as manifestações de massas crescendo e o governo sem condições para resolver os problemas da população, inicia-se a repressão aberta contra as manifestações dos trabalhadores. No caso dos Estados Unidos, uma sociedade com longa tradição institucional da democracia burguesa, a repressão pode ampliar a luta de massas, gerando uma grave crise política. O governo terá duas opções: aprofundar a repressão e ins-tituir um governo abertamente fascista, coisa que Bush iniciou com a Lei Patriótica, ou os setores mais esclarecidos das classes dominantes buscam uma saída ao estilo do New Deal, como no período do presidente Roosevelt.

A CRISE E AS PERSPECTIVAS DOS TRABALhADORES

Como já observamos, em todas as grandes crises ocorreram mudanças de fundo na forma de gerir o capitalismo. A grande depressão de 1873-1896 resultou no capitalismo monopo-lista e no imperialismo, uma fase superior do capitalismo. A crise de 1930 foi a parteira do nazismo, do fascismo, da Segunda Guerra Mundial e, posteriormente, da vitória do socialismo em cerca de um terço da humanidade. Nos países capitalistas centrais, em função do perigo comunista, a burguesia foi obrigada a ceder um conjunto de direitos e garantias para os trabalhadores, cuja expressão maior foi o Estado do Bem Estar Social e a gestão keynesiana da economia. Já a crise de 1974-75 trouxe em seu bojo a derrota do movimento operário e a vitória do setor mais reacionário e parasitário do grande capital, que ao longo de 30 anos implantou o neoliberalismo, as finanças especulativas e uma enorme regressividade social que aumentou a concentração de renda e ampliou a pobreza no mundo.

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Esta crise, independentemente de qual dos projetos venha a se tornar vitorioso, também trará mudanças de fundo na economia e na sociedade como ocorreu nas crises anteriores. Estamos assistindo um fim de um ciclo da economia capitalista e o término de uma forma particular de acumulação onde o grande capital privilegiou o setor financeiro e buscou cons-truir uma hegemonia mundial solitária a partir dos Estados Unidos. Este ciclo, na verdade, representou uma tentativa desesperada do grande capital de realizar a acumulação fugindo da lei do valor. Ao final dessa crise, teremos uma nova situação internacional, que tanto pode ser um novo ciclo comandado por outras frações do capital, com outras formas particulares de acumulação, como pode também ocorrer profundas transformações sociais e políticas dirigidas pelo proletariado. Tudo depende de como os trabalhadores e suas vanguardas intervirão no processo que se abre com a atual crise.

Os trabalhadores não poderão deixar de levar em conta que o capitalismo é um siste-ma que tem uma extraordinária capacidade de adaptação e, por mais paradoxal que pareça, é exatamente nos períodos de crise que o sistema se recicla, queimando, concentrando e centralizando capitais para alcançar um patamar superior. Até mesmo nas grandes crises depressivas, quando houve possibilidade de questionamento mais profundo do sistema, o capitalismo encontrou meios de se adaptar às circunstâncias e sair vitorioso. Trata-se de um inimigo esperto, que acumulou uma enorme experiência com as crises passadas. Por isso, tanto uma vitória da burguesia quanto uma perspectiva de transformação fazem parte do jogo de possibilidade para as duas classes em disputa.

É importante ressaltar ainda que esta crise, por suas dimensões, vai colocar em jogo a hegemonia norte-americana e o dólar como moeda mundial. Mesmo que isto ainda não esteja plenamente configurado em função do próprio curso da crise, é insustentável no longo prazo um país manter sua hegemonia baseada numa moeda insolvente e no poderio mili-tar. Hoje, a economia dos Estados Unidos não apresenta o mesmo dinamismo que atingia no passado e sua moeda tem valor apenas fiduciário. Essa situação é insustentável diante da crise econômica e de seus desdobramentos, tanto do ponto de vista econômico quanto político. Quanto mais se acirrar a crise, mais há haverá a possibilidade de questionamento da hegemonia norte-americana e um acirramento da disputa inter-imperialista, pois a crise pode gerar um clima de salve-se quem puder.

Existe ainda uma possibilidade concreta de uma maxi-desvalorização do dólar ou de um calote generalizado da dívida externa norte-americana, que está por volta de US$9,5 trilhões ou 72% do PIB, sendo que desse total mais de US$2,5 trilhões estão com a China e o Japão. Não se trata de uma possibilidade quimérica: todos devem lembrar que em 1971 o presidente Nixon acabou unilateralmente com a paridade dólar-ouro, o que significou um enorme calote mundial. Se isso ocorrer, a crise se aprofundará de tal maneira que existe a possibilidade de aventuras militares por parte dos Estados Unidos para restabelecer a ordem no sistema. No entanto, este não é a tendência principal em virtude de os Estados Unidos já estarem realizando duas guerras – uma no Afeganistão e outra no Iraque, com derrotas militares e políticas. Só numa situação de extremo desespero seria capaz de realizar outras aventuras militares.

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Em todos os momentos de crise desse tipo surgem os questionamentos teóricos, as indefinições paralisadoras, os oportunismos e vacilações de toda ordem. Os que não querem lutar costumam afirmar que esta é apenas mais uma crise do capitalismo e que esse modo de produção, ao final do processo, retomará seu curso num patamar superior como o fez ao longo de sua história. Outros sentenciam confiantes que esta é a crise final do capitalismo. Nós entendemos que as duas posições estão equivocadas. A primeira, porque considera na prática o capitalismo um sistema eterno e, por isso mesmo, apenas lutam por algumas reformas para melhorar a vida do povo. O segundo tem um costume recorrente de transformar toda crise do capitalismo em crise final. E quando não ocorre a revolução, creditam seus erros de avaliação não a uma análise incorreta da realidade, mas à falta de direção do movimento.

Nós entendemos dialeticamente que as crises e, especialmente, crise com esta dimensão, são sempre oportunidades para que o proletariado possa contestar a ordem burguesa. Mas isso não significa que esta crise se transforme em revolução do proletariado. Quem vai decidir o destino desta crise é a capacidade do proletariado de irromper na cena política de forma independente, com um grau de força tal que seja capaz de derrotar a burguesia e conquistar a direção política da sociedade. Nós entendemos que há condições objetivas para a retomada do movimento de massas em caráter mundial e a possibilidade de transformação do sistema capitalista. Ao contrário do período de Lênin, que imaginava que o capitalismo monopolista seria a ante-sala da revolução socialista, acreditamos que somente agora quando o capitalismo se transformou num sistema mundial completo e maduro, tendo em vista que internacio-nalizou a produção e as finanças e unificou globalmente o ciclo do capital, estão dadas as condições para a revolução mundial. Nessa perspectiva, estamos muito mais próximos de uma nova sociedade do que estávamos no início do capitalismo monopolista.

Ou seja, como tudo na natureza e na sociedade está sob a lei da dialética, podemos dizer que o capitalismo, ao revolucionar as formas produtivas e as finanças em termos mundiais, cumpriu seu papel histórico e tende, como ocorreu em outras épocas históricas, a passar pelo mesmo processo de transformação que as formações sócio-econômicas anteriores. Como dizíamos em nosso trabalho de 20021, as condições para esta mudança de qualidade só estariam maduras quando a crise atingisse o coração do sistema, onde potencialmente pulsa mais forte a luta de classe. Agora a crise atingiu o coração do sistema e chegou a hora da verdade para a burguesia e o proletariado.

Outro ponto importante é o fato de que os desdobramentos desta crise vão atingir pro-fundamente os trabalhadores em termos do emprego e da renda e vão acirrar a luta de classes nos países centrais e na periferia. Ao contrário do senso comum e de muitos companheiros da esquerda, nós achamos que o potencial da luta da classe operária e dos trabalhadores é muito mais forte nos países centrais que na periferia, pois é exatamente nos países centrais onde se encontra a classe operária mais avançada do ponto de vista das forças produtivas e o capitalismo mais maduro. É um teatro de operações muito mais favorável para a luta de classes que nos países atrasados. É bem verdade que os elos débeis continuarão cumprindo

1 Trata-se da tese de pós-doutoramento realizada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, intitulada “A globalização neoliberal e as novas dimensões do capitalismo contemporâneo”, elaborada em 2002.

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um papel essencial no desgaste e fustigamento do grande capital, mas as transformações qualitativas do sistema capitalista serão muito mais definitivas se ocorrerem no coração do sistema capitalista.

Portanto, a ação da classe operária e dos trabalhadores em geral vai depender não só das condições objetivas detonadas pela própria crise, mas especialmente das condições subjetivas para a emergência dos trabalhadores como sujeitos históricos. Se olharmos apenas a aparência dos fenômenos, poderemos dizer que é muito difícil um levantamento dos trabalhadores nos países centrais. Os 30 anos de neoliberalismo foram anos de derrota: fragmentaram a classe operária, enfraqueceram o movimento sindical e desorientaram, com poucas exceções, suas vanguardas políticas. Além disso, os trabalhadores perderam a âncora socialista e o grande capital avançou sobre os direitos e garantias conquistados historicamente. No entanto, as crises são fenômenos que trazem em seu bojo ações inesperadas das classes trabalhadoras, que possibilitam um aprendizado intensivo da luta de classes. Não está fora de cogitação a emergência de um novo movimento operário e uma nova vanguarda política, criada a partir dos fragmentos das que existem ou da criação de novas vanguardas operárias, que voltem a colocar na ordem do dia a superação do capitalismo e a implantação do socialismo como uma nova forma de sociabilidade.

Nós estamos num desses momentos fundamentais da história em que não deve haver espaço para a vacilação. Os trabalhadores não podem cair no conto de que é possível reformar o capitalismo ou torná-lo mais humano. Esse sistema está condenado pela história. Devemos levar ainda em conta que o modo de produção capitalista para sair da crise, crescer novamente e reorganizar a sociedade, necessita ameaçar a vida e continuidade da espécie humana. Cada vez fica mais claro: hoje capitalismo e humanidade são contraditórios. Para o capitalismo se manter, é necessário ameaçar a humanidade e não resta para a humanidade outra opção do que procurar se salvar através da superação do capitalismo. Esta é a disjuntiva que se coloca neste momento para o proletariado. Essa crise é da burguesia e não dos trabalhadores. O proletariado deve aproveitar esse momento histórico para apresentar o seu projeto de sociedade e disputar com a burguesia o futuro da humanidade, pois só o proletariado tem condições de construir uma sociedade da abundância e da felicidade.

A burguesia vai utilizar todas as suas ferramentas para sair vitoriosa da crise. Vai fazer todo o possível para manter os seus interesses de classe, seus objetivos estratégicos – econô-micos, sociais e políticos -, de forma a recuperar as taxas de lucro e a disciplina social perdida durante os momentos da turbulência. Vai tentar implantar a ferro e fogo o seu projeto e, nesse sentido, não vacilará um minuto, como a história tem nos ensinado, mesmo que para tanto tenha que provocar guerras e destruições em massa. Vai tentar sair da crise rebaixando salários, direitos e garantias dos trabalhadores, concentrando a renda, realizando a mercan-tilização da vida, incentivando o complexo industrial-militar destruindo ainda mais o meio ambiente, ampliando a miséria e a violência contra a população.

Nesse um momento especial da luta de classe, os trabalhadores devem desensarilhar suas armas e se preparar da melhor maneira possível para emergir na luta com um projeto emancipador e revolucionário. Não existe empate na luta de classe: na situação em que esta-

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mos vivendo, ou a burguesia sai vitoriosa e retoma o capitalismo num patamar superior; ou o proletariado derrota a burguesia e inicia a construção da nova sociedade com seus aliados fundamentais. Apesar da crise estar abalando todo o sistema, os trabalhadores não devem ficar de braços cruzados esperando o capitalismo cair de maduro. O capitalismo só cairá se for derrubado e esta é a tarefa do proletariado neste momento da história. Portanto, mãos à obra camaradas!

REFERÊNCIAS

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BRENNER, Robert. O boom e a bolha – Os Estados Unidos na economia mundial. Rio de Janeiro: Record, 2003

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COSTA, Edmilson. A globalização neoliberal e as novas dimensões do capitalismo contemporâneo. Tese de pós-doutorado realizada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Campinas, 2002.

GALBRAITH, John Kennet. Uma breve história da euforia financeira. São Paulo: Pioneira, 1992.

MARX, Karl, O Capital, Vol. I, Tomo I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

MARX, Karl. O Capital. Vol. III, Tomo I. São Paulo: 1984.

MARX, Karl. O Capital. Vol. III. Tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

MARX, Karl. Teorias da mais-valia, Vol. III. Rio de Janeiro: Difel, 1983.

MOORE, Walter. La estafa global de los Estados Unidos está llegando a su fim . www.socialismo-o-barbarie.org. Acesso em 05 de fevereiro de 2008.

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WOLFF, Rick. A economia subprime dos EUA. http://resistir.info. Acesso em 30 de outubro de 2008.

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A crise econômica e o capital fictício

Sofia Manzano

O presente ensaio pretende apontar alguns elementos para a análise da crise do capitalismo atual. Capitalismo glo-balizado e financeirizado que parece mostrar mais uma vez sua inviabilidade histórica.

Como é sabido, o modo de produção capitalista tem, em sua essência, a acumulação de capital como o pilar central dessa relação social de produção e durante toda sua história essa dinâmica pode ser observada tanto no sentido enunciado por Marx, ou seja, da expansão deste modo de produção que paulatinamente elimina formas arcaicas de produção1, como pela globalização produtiva e financeira verificada a partir da segunda metade do século2.

As diferentes tentativas de estabilizar a força e a in-tensidade da valorização de capital, principalmente com as políticas de perfil keynesiano que culminaram com o Acordo de Bretton Woods3, não conseguiram criar instrumentos sufi-cientemente fortes para brecar a natureza inerente do capital em seu afã por valorizar-se. As regras de Bretton Woods com relação ao controle do avanço da riqueza financeira foram sendo, a bem da verdade, poucos anos após a reunião de 1946, paulatinamente suplantadas por inúmeras e criativas inovações das instituições financeiras, de modo a destravar a liberdade de acumulação não mais apenas na esfera produti-va, mas também na esfera especulativa, com o aumento do capital-fictício.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a exponenciação da criação de capital-fictício, se eleva com a emissão dos primeiros eurobônus na Londres de 1963, e abre de vez as

1 Marx, K. O capital. São Paulo: Abril Cultural, 1984.2 Edmilson Costa. A globalização neoliberal e as novas dimensões do ca-

pitalismo contemporâneo (Tese de pós-doutorado), Campinas: IFCH, 2002

3 Berry Einchengreen. A globalização do capital. São Paulo: Editora 34, 2000

* Economista e Professora uni-versitária.

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torneiras da criatividade para a “fuga para a frente” dos limites que o processo de produção pudesse interpor à acumulação de capitais, agora operando em escala global, com a expansão das multinacionais.

Como resultado de múltiplas determinações, o capital operou no sentido de poder exercer o seu maior desejo de se valorizar “liberto” do trabalho. Em decorrência de: a) globalização produtiva, vale dizer, quando o capital produtivo passa a extrair diretamente a mais-valia fora de suas fronteiras de origem4; b) ampliação dos instrumentos de valorização financeira também por fora dos limites das moedas nacionais, como os euro-mercados e, posteriormente, dentro dos Estados Unidos; c) comprometimento dos “fundos públicos” com a crescente dívida pública e dos juros que se tornaram reais e crescentes; d) aumento da concorrência intercapitalista por mercados; e) emergência ideológica do neoliberalismo; parecia que a acumulação capitalista eliminaria as contradições do sistema e se perpetuaria na forma D-D’. Ocorre que as relações entre a criação de valor pelo trabalho e os limites de realização concreta da acumulação de capital engendram uma nova crise.

De fato, o desenvolvimento acentuado do processo de acumulação do capital trouxe, contemporaneamente, a separação das órbitas de valorização, ou seja, o que podia ser a base da valorização do capital em geral, a mais-valia produzida pelos processos produtivos (capital produtivo) servia de parâmetro para a compreensão de sua distribuição entre as demais órbitas de valorização do capital, a circulação e a financeira.

Na medida em que a órbita financeira ganha relativa autonomia tanto da órbita pro-dutiva, quanto da circulação e, mais do que isso, passa a dominá-las, os valores expressos nesta órbita não guardam mais relação direta com a mais-valia produzida. Ou seja, “o capital como dinheiro passa a ser medida de si mesmo”, portanto, não encontra limites para sua “valorização5” e a taxa média de lucro não é mais limite para a taxa de juros, esta não tem mais limites6. O descolamento da órbita financeira do restante do processo produtivo revela um dos sinais da potenciação máxima das contradições do capitalismo. O capital como medida de si mesmo é a expressão do fetiche central desta forma social de produção.

A expressão desse fetiche máximo do capital, porém, não está desvinculado do capital produtivo. Nas grandes empresas, as duas lógicas (financeira e produtiva) convivem juntas, mas na crise a tendência à separação do capital financeiro e do produtivo é a afirmação da essência do capitalismo, pois que este, além de produtor de mercadorias, é, acima de tudo, um sistema de acúmulo de dinheiro.

Apresentado apenas desta forma, ou seja, o descolamento do capital financeiro da esfera produtiva como a “evolução” máxima do capitalismo, onde D – D’ passa a ser a forma dominante da expressão do modo de produção, pode levar à vã ilusão de que, por se desvincular do seu contrário (do trabalho), o capital vai seguir sua trajetória infinitamante.

4 Charles A Michalet. Capitalismo Mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.5 O termo “valorização” entre aspas está sendo utilizado no sentido de elevação nominal dos preços dos ativos,

e não como valorização (acumulação) de capital.6 Maria da Conceição Tavares. Ciclo e Crise. O movimento recente da industrialização brasileira. Campinas:

IE/UNICAMP, 1998.

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Mas este processo nada mais é do que a explicitação do acirramento das contradições entre as relações sociais de produção da vida e o avanço do grau de desenvolvimento das forças produtivas próprias do capitalismo.

OS PRECEDENTES DO CICLO ATUAL DA ACUMULAÇÃO FICTíCIA

Logo após a II Guerra Mundial, os novos arranjos institucionais permitiram um ambiente de relativa tranqüilidade econômica para uma nova configuração da acumulação produtiva do capital. A rápida recuperação das principais economias permitiu a expansão da acumulação de capital para além das fronteiras nacionais, por meio de crescentes conglome-rados multinacionais. Este movimento, uma novidade histórica, proporcionou aos diferentes blocos de capital ampliar o espaço de produção de valor e valorização. A extração da mais-valia produzida na periferia do sistema, antes operada pela via do comércio ou das finanças, passou a ser feita direta e generalizadamente7, com a instalação de plantas industriais em diferentes partes do planeta, mas com o controle central do processo de acumulação.

Uma vez maduro, este capitalismo produtivamente globalizado iniciou novamente o acirramento da concorrência. As empresas produtivas e multinacionais impelidas a acele-rar o investimento em novas tecnologias e, em consequência, reduziram, relativamente, a quantidade de trabalho vivo empregado – principalmente nos países centrais. Mesmo não representando novidade, no que diz respeito ao processo contínuo de elevação da composição orgânica do capital, a super-acumulação deste último período provocou, como conseqüência, uma necessidade crescente de aceleração da depreciação do capital fixo investido. Nesse senti-do, a economia de trabalho passou a ser maior, além de ter havido crescimento considerável na intensidade deste mesmo trabalho. Ou seja, para compensar a inevitável tendência ao decrescimento de suas taxas de lucro em decorrência do aumento da composição orgânica do capital, as empresas aceleraram a extração de mais-valia – tanto absoluta quanto relativa8.

Estas mesmas empresas, todavia, também se aproveitaram das novidades e facilidades que o mercado financeiro apresentava para deslocar parte de seu capital para esta esfera de “valorização”. Em 1945, as empresas industriais nos Estados Unidos (excluindo as empre-sas agrícolas e financeiras) tinham 25,9% do seu capital aplicados em ativos financeiros, principalmente em depósitos bancários, títulos do tesouro americano e duplicatas (recebí-veis), o restante eram equipamentos, maquinários e estoques. Essa proporção se manteve praticamente inalterada até 1983, quando as aplicações financeiras das empresas passam a representar 30% do capital. A partir daí, essa proporção só fez aumentar até chegar em 2008, quando as aplicações financeiras das empresas industriais norte americanas já representavam

7 Edmilson Costa, op. cit.8 A desregulamentação das relações de trabalho operadas a partir dos anos 90 do século passado foi fundamental

para que se exacerbasse a exploração da força de trabalho. Cabe ressaltar que este processo não foi homogêneo em todo o mundo.

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50,6% do capital total9. As implicações destas transformações não se resumem ao processo de financeirização das empresas produtivas, vale dizer, à medida que essas empresas passam a ter mais da metade de seu capital sendo “valorizado” na esfera financeira, podem capturar massas de valor (real) desvinculado de sua atividade produtiva direta.

Vale a pena ainda destacar a mudança que se operou na configuração das aplicações financeiras do capital dessas empresas industriais. Enquanto em 1945 as aplicações financeiras dessas empresas estavam concentradas em depósitos bancários, títulos do tesouro americano e recebíveis; em 2008, 73,5% das aplicações financeiras das empresas industriais estavam em “miscellaneous assets” 10. Bonito nome que esconde o verdadeiro cassino que se transformou o mercado financeiro global. Até o início dos anos 70, as aplicações das empresas nesses “ativos diversos” não ultrapassava os 30%, mas com a crescente desregulamentação das contas de capital dos países e das enormes possibilidades abertas ao sistema financeiro com o fim da paridade dólar-ouro e a decorrente flutuação das taxas de câmbio, as aplicações em “diversos (e muitas vezes, secretos) ativos” financeiros cresceu exponencialmente, até equivaler aos 73,5% das aplicações das empresas em 2008.

Nesse pujante mercado financeiro globalizado, a “valorização” dos ativos, em que pese tenha um grande componente de “valorização” fictícia absorve riqueza real. Este mercado financeiro globalizado funciona como um grande re-distribuidor, em escala mundial, de massas de mais-valia produzidas localmente. Vejamos como pode ocorrer tal fato.

Em primeiro lugar, os Estados e suas dívidas públicas, à medida que passam a ampliar a carga tributária com principal objetivo de “estabelecer um equilíbrio fiscal”, ou seja, com objetivo de pagar pelo menos parte dos juros dessa dívida, transfere massas de riqueza pro-duzida pela sociedade para as mãos de todos aqueles que aplicam seu capital nesse mercado, sejam as empresas industriais ou os rentistas. Por outro lado, é importante destacar que a constituição e o crescimento da dívida pública tem sido fortemente impulsionado pela de-manda de títulos pelos rentistas e não pelo aumento dos gastos do governo.

Em segundo lugar, a participação dos fundos institucionais (fundos de pensão, prin-cipalmente) como um dos pilares de sustentação das “valorizações” dos ativos financeiros, também representa a transferência de riqueza real, anteriormente produzida e poupada para futuras aposentadorias e pensões dos trabalhadores. Esses fundos previdenciários, que antes

9 FED. Flow of funds accounts os US 1945-2008, annual flows and outstandings. Board of Governors of the Federal Reserve System, Washington D.C. 20551

10 “Ativos Diversos” ou Miscellaneous Assets são formados por títulos privados (restricted securities), posições (private placements), opções, negociações no mercado futuro, derivativos e demais títulos ou ativos que, além de serem objeto de negociação privada, ou seja, não precisam de oferta pública, são isentos de registro ofi-cial. “Esses ativos representam a venda de uma classe inteira de títulos para pequeno grupo de investidores. Seção 4 (2) do Securities Act de 1933 prevê isenção de registro para as operações que não envolvem qualquer oferta pública. As vantagens desses ativos podem incluir aumento da carteira de rendimento, economizar os custos de registro para o emitente, a possibilidade de o investidor e emissor de adequar a oferta através de negociação para satisfazer as necessidades de ambas as partes, bem como a conclusão da transação sem estar sujeito a regulamentação e escrutínio público.” OTS. Trust and Asset Management Handbook; Regulatory Handbook, july, 2001. http://files.ots.treas.gov/427058.pdf (grifo nosso)

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eram administrados de maneira pública e poderiam ser utilizados para gastos também públi-cos, agora, administrado por gestores ávidos por bonificações de curto prazo, acabaram por constituir um dos principais instrumentos de intensificação da especulação e do aumento dos preços dos ativos financeiros por todo mundo. Além disso, estão expostos ao alto risco de perdas patrimoniais que certamente comprometerão a renda dos aposentados no futuro.

Em terceiro lugar, as empresas produtivas estão imbricadas na especulação. Por um lado, deslocaram parte significativa de seu capital para aplicações financeiras como forma de fugir da tendência à redução de suas taxas de lucro e de alcançar a valorização do capital-dinheiro pelo simples acréscimo de capital-dinheiro (D-D’). De outro lado, a própria “valorização” patrimonial e, portanto do capital fixo das empresas, está intimamente ligada ao comporta-mento de suas ações no mercado bulsátil.

Por último, cabe lembrar a crescente participação dos trabalhadores de mais altas rendas no mercado financeiro. Diferentemente do século XIX, em que o salário não passava do nível de subsistência, a melhora relativa na distribuição de renda entre capital e trabalho verificada no século XX possibilitou o aparecimento de um conjunto de trabalhadores que alcançam rendimentos acima do necessário para a reprodução de sua força de trabalho e, portanto, podem participar do mercado financeiro ou como tomador de crédito, ou como aplicador. Nos dois casos, a parte da renda destes trabalhadores que é gasta ou com o pagamento dos juros, ou com a aquisição de ativos financeiros, amplifica a “valorização” do capital fictício. É importante destacar que, no momento da crise, estes serão os primeiros a perderem suas posições, de forma que os seus recursos sejam apropriados pelos grandes aplicadores.

Esses fenômenos podem ser claramente vislumbrados no movimento crescente e na preponderância que a esfera financeira da valorização do capital passou a exercer nas últimas três décadas. Os dados são tão surpreendentes que se torna difícil saber ao certo qual é o volume de riqueza financeira dessas nas operações (desde a mais simples aquisição de títulos públicos ou privados de renda fixa, passando por ações, até os instrumentos mais sofistica-dos dos mercados de derivativos, opções e swaps). O que se pode afirmar é que esse volume ultrapassa muitas vezes a produção total do planeta (PIB global)11.

O CAPITALISMO (DES)REgULADO

Um dos pilares do debate atual sobre as razões, causas e “soluções” para a crise encontra-se na constatação de que, a partir da década de 1970, emergiu um sistema financeiro inter-

11 Segundo estatísticas registradas pelo BIS, em dezembro de 2007 os contratos de derivativos OTC (over the counter) totalizavam US$ 596.000,00 bilhões (notional), sendo que mais da metade eram swaps de taxas de juros. Os instrumentos financeiros desenvolvidos no mercado de opções ou no mercado de balcão não permitem uma mensuração nem sequer aproximada do que realmente representa aplicação ou apenas uma posição do aplicador naquele instrumento. Outro problema está relacionado com as ousadas técnicas de lançamento contábil das aplicações financeiras, tanto nas instituições financeiras (bancos e corretoras) como nas empresas produtivas, ver nota 10.

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nacional desprovido de uma estrutura jurídica-estatal que o pudesse regular. Como após a crise de 1929 os Estados tomaram medidas legais para “coibir os excessos” dos capitais na esfera financeira, e, além disso, com o Acordo de Bretton Woods foram criados instrumentos que disciplinaram o novo movimento para fora da expansão capitalista em todo o mundo, por meio de instituições multilaterais e a regulação das taxas de câmbio comandadas pelo dólar-ouro, o pensamento econômico keynesiano credita a crise deste início do século ao desmonte dessa regulação.

De fato, a partir dos governos de Margaret Tatcher e Ronald Reagan há uma ação real e contundente no sentido de criar um novo aparato normativo para aumentar a autonomia dos mercados no estabelecimento dos contratos, sejam eles contratos da esfera financeira, comercial e, principalmente, na relação entre capital e trabalho.

Quando, nos anos 80, a aceleração desse movimento de financeirização começou a dar mostras de que sem regulação poderia acarretar sérias crises, locais e sistêmicas, o pró-prio mercado achou que construir uma auto-regulação seria suficiente para proporcionar a estabilidade necessária ao livre desenvolvimento dos negócios que, supostamente na visão neoliberal vigente, seria a melhor maneira de garantir e elevar a eficiência do sistema. O acordo de 1988, apresentado pelo Comitê de Supervisão Bancária da Basiléia12, pretendia elevar as exigências de regulação prudencial das instituições financeiras, principalmente das que atuavam em mercados internacionais, de forma a reduzir os riscos sistêmicos inerentes à exposição crescente dos bancos frente ao acirramento da concorrência no mercado financeiro. Este primeiro acordo mostrou-se, em poucos anos, insuficiente, pois na medida em que indi-cava um requisito mínimo de 8% de capital próprio sobre os ativos (Índice de Basiléia) para fazer frente aos riscos de crédito nas operações financeiras, na verdade acabou por induzir os bancos a novas e criativas técnicas operativas que pudessem amplificar suas posições.

O II Acordo de Basiléia, uma revisão feita pelo Comitê do acordo anterior, a partir de meados dos anos 90 e até hoje em pretensa implementação pelos diferentes mercados financeiros locais, tentou, mais uma vez, aumentar a regulação para a atuação bancária. Além de manter o Índice de Basiléia, o II Acordo incluiu, além do risco de crédito, o risco de mercado e o risco operacional. Definiu ainda um processo de revisão supervisora, ou seja, uma espécie de avaliação corporativa que procurasse identificar, a todo o momento, os riscos que as operações financeiras pudessem apresentar para a instituição. O terceiro requisito do II Acordo, chamado de Disciplina de Mercado, implicava no aumento da transparência das atividades das instituições financeiras, ou seja, estas deveriam manter o mais alto nível de informação acerca de suas atividades para que todo o mercado tivesse condições de conhecer plenamente a totalidade do sistema.

A crise financeira que vivenciamos deixa claro o quanto o II Acordo de Basiléia não pode cumprir com seus objetivos13. Na verdade, diante das surpreendentes informações que

12 BIS. Bank for International Settlements13 O Acordo em nada coibiu as mais criativas invenções do mercado financeiro global, mas, por outro lado,

teve importante papel em impor o desmonte de qualquer alternativa local e nacional de gestão do sistema financeiro por parte dos países. No caso brasileiro, a adoção do Acordo por parte dos bancos reduz a capaci-

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as publicações dos balanços das instituições financeiras têm revelado, parece que seriam neces-sárias doses elevadas de ingenuidade para acreditar que o Acordo de Basiléia pudesse garantir a estabilidade, eficiência e tranqüilidade duradoura aos mercados financeiros. Isso porque, em primeiro lugar, o Acordo pressupõe auto-regulação, ou seja, são as próprias instituições financeiras que deverão, para o bem de todo o sistema, procurar seguir a regras estabelecidas e desenvolver os meios de autocontrole. Ainda que esta ingênua situação pudesse ser alcançada, os três pilares do Acordo, se cumpridos à risca, representariam uma afronta à lógica própria do sistema capitalista fundado na liberdade de competição e de mercado. Competição esta que tem se acirrado bastante, nos últimos anos, o que levou as instituições a procurarem esconder suas estratégias e suas posições dos concorrentes, portanto, do próprio mercado.

O resultado observado é a emergência de fundos estruturados sobre títulos subprime e prejuízos escamoteados em operações de complicada avaliação pública, que, ao virem a público, têm provocado a falência de importantes instituições financeiras.

A dicotomia regulação-desregulação escamoteia o verdadeiro caráter e as raízes das crises cíclicas do capital. Enquanto os liberais apregoam a autoregulação do mercado e os keynesianos esperam a retomada da regulação pública, um e outro escondem o que de fato ocorre. Primeiro, no capitalismo sempre há regulação, pois a própria garantia do cumpri-mento dos contratos, sejam eles estabelecidos através da interferência do Estado ou no mercado, pressupões o aparato normativo. Segundo, a mudança nesse aparato normativo sempre ocorre a posteriori, vale dizer, enquanto saudosos keynesianos clamam para ampliar a regulação pública sobre a circulação internacional do capital, esquecem de constatar que a livre circulação de capital e o novo ciclo da financeirização, preponderantes nessa crise, não dependeu da mudança legal para ter seu início. Os mercados financeiros off-shore em dólares criados na Europa em fins dos anos 1960 prescindiram de mudanças legais para se tornarem dominantes. A revogação das leis nacionais de controle da conta de capitais não foram as causas da financeirização, foram uma exigência do capital financeiro e global.

O PAPEL DOS BANCOS CENTRAIS

Diante da crise que se instalou, os Bancos Centrais, fazendo jus a sua função de “em-prestador de última instância” têm disponibilizado trilhões de dólares e euros para garantir a demanda por moeda. É normal que diante de uma iminente dissolução do sistema finan-ceiro internacional os “agentes econômicos” busquem a forma mais abstrata da riqueza, a moeda. Portanto, passam a vender a qualquer preço seus ativos financeiros e aumentam a demanda por moeda. Essa preferência pela liquidez obriga os bancos centrais a agirem antes que a corrida contra os bancos destrua não só o sistema financeiro, mas também o próprio sistema monetário.

dade dos bancos públicos em exercerem sua função pública, ou seja, O BNDES, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil ficam engessados em suas estratégias de empréstimos.

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Mas essas medidas não podem acabar com a crise, pois esta não é uma crise de crédito e sim uma crise de superacumulação. Os bancos, ainda que recuperem a liquidez, não vão aumentar o crédito por dois motivos: primeiro porque não conseguem distinguir os bons tomadores dos maus tomadores, afinal são normalmente estes que mais demandam crédito em momentos de crise grave e, por outro lado, são os que se dispõe a pagar as mais elevadas taxas de juros. Desse modo, mesmo com excesso de recursos, os bancos não emprestam. Em segundo lugar, esta crise poderia até ser caracterizada como uma crise de excesso de crédito, alias o estopim da crise foi justamente o aumento elevado do endividamento das famílias e das empresas.

Num primeiro momento, este aumento de liquidez pode até “salva” as instituições do sistema monetário e financeiro, mas levará, inevitavelmente a um aumento da dívida públi-ca dos estados, uma vez que, diante de impossibilidade de aplicação dos ativos monetários em investimentos reais, os detentores desta riqueza demandarão títulos públicos. Por outro lado, os espaços econômicos para ampliação do investimento serão reduzidos, com a recessão tomando conta das principais economias. Não será em pouco tempo que os investimentos produtivos, portanto, aqueles responsáveis pela criação de valor novo, voltarão a ser viáveis. Crises de superacumulação, para serem suplantadas, necessitam de novos espaços econômicos de investimento, abertos ou pela queima de capital velho – por falência, quebra generalizada de empresas ou mesmo a guerra; ou pela expansão das fronteiras do capitalismo, que na atual situação de globalização, está difícil de se expandir.

Mesmo que gigantescas economias, como a chinesa, indiana e mesmo a brasileira, demorem mais para sentirem os impactos da desaceleração, pois vinham num movimento de incremento das taxas de investimento, também serão atingidas. No entanto, há ainda quem acredite em soluções nacionais. Ocorre, porém, que o processo de globalização trans-formou todas estas economias em parte integrante e intimamente ligadas aos processos de acumulação de capital das economias centrais. Vale dizer, ao contrário das crises passadas, que atingiam as economias periféricas por sua fragilidade econômica, dependência em relação ao comércio internacional e aos financiamentos de capitais internacionais, hoje, por seu grau de integração produtiva e financeira, a crise é internalizada a partir dos próprios processos de produção industrial. As empresas que produzem nos países periféricos economicamente mais desenvolvidos são multinacionais e mesmo aquelas cujos proprietários “formais” são nacionais, estão intimamente atadas aos destinos do processo de acumulação central.

CONSEqUÊNCIAS

Esta pode não ser uma crise final do capitalismo. Este sistema já mostrou que tem criatividade suficiente para superar suas próprias contradições. Mas dependendo da forma como se enfrentarão os problemas, as conseqüências poderão ser piores ou melhores para os trabalhadores e a maioria da população.

Se, por um lado, medidas de corte keynesianas forem tomadas, tais como aumento do gasto público e incorporação crescente de massas de pessoas mundo afora no acesso aos bens

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produzidos, o capital abre novas fronteiras de acumulação. O mundo ainda tem alguns espaços para tais medidas, haja vista os bolsões de miséria na África, Ásia e mesmo na América Latina. Para tanto, basta saber se os detentores do capital estarão dispostos a abrir mão de significativos poderes econômicos e políticos para que medidas neste sentido sejam tomadas, já que esta “so-lução” se dá sob a égide do capital. Outro obstáculo a esta saída é o próprio padrão produtivo baseado em utilização excessiva de recursos naturais que, se não for mudado, levará à inviabilidade ecológica do planeta. Neste sentido, o avanço da produção para satisfazer as necessidades dessa massa enorme de pessoas deverá vir acompanhada de um novo modelo de produção, que leve à redução do consumo de energia e recursos naturais, bem como, da produção de lixo.

Por outro lado, o capitalismo pode se encaminhar para um regime autoritário, ainda mais excludente e autocrático. Começando por medidas que chamarão os trabalhadores “a darem sua contribuição para salvar o sistema”, ou seja, medidas de redução de direitos traba-lhistas, redução dos programas de bem estar social, redução da parcela da renda destinada à sobrevivência da massa de trabalhadores. Nesta perspectiva, o capital busca se entrincheirar no Estado, no aparato legal e nos seus organismos institucionais, a fim de tentar salvar suas posições. Por isso, essa crise coloca para os trabalhadores imensos desafios: organizar e resistir aos ataques que certamente virão.

Mas é também nesta conjuntura que o poder da burguesia se fragiliza e que os trabalhadores podem abrir espaço para afirmar seu projeto de emancipação. Nas crises, as contradições entre a produção social e a apropriação privada da riqueza ficam mais visíveis. Os aparatos jurídicos, o Estado e as formas burguesas de ordenar as relações de produção capitalista que, em períodos de crescimento econômico podem ficar velados aos trabalhadores, tornam-se claros instrumentos de defesa da acumulação privada. Esses fatores podem se constituir em elementos de ascenso da consciência da classe trabalhadora e abrir caminho para a ação política revolucionária.

REFERÊNCIAS

COSTA, Edmilson. A globalização neoliberal e as novas dimensões do capitalismo contemporâneo. Tese de pós-doutorado, Campinas: IFCH, 2002.

EINCHENGREEN, Barry. A globalização do capital. São Paulo: 34, 2000.

FED. Flow of funds accounts of US: 1945-2008. Annual flows and autstandings. Board of Governors of Federal Reserv System, Washington DC. http://www.federalreserve.gov/econresdata/releases/statisticsdata.htm

. Trust and asset management handbook. Regulatory handbook, Washington DC, july, 2001. http://files.ots.treas.gov/427058.pdf

MARX, Karl. O capital. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

MICHALET, Charles A . Capitalismo Mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

TAVARES, Maria da Conceição. Ciclo e crise; o movimento recente da industrialização brasileira. Campinas: IE/UNICAMP, 1998

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Classes sociais e a reestruturação produtiva do capital*

Mauro Luis Iasi*

Onde faltam ideias encaixa-se, em tempo hábil, uma palavra.

Goethe

Não raramente ocorre ofensivas contra o pensamento de Marx e mais de uma vez este grande pensador foi considerado morto e ultrapassado. Vivemos nas duas últimas décadas do século passado a maior destas batalhas ideológicas contra o marxismo, reforçadas simultaneamente pela reestruturação produtiva e pela crise da URSS e dos países em transição so-cialista. Um dos aspectos da ofensiva contemporânea contra Marx encontre-se no conceito de classe social. Não por acaso. O conceito de classe social possuiu uma centralidade na obra marxiana e articula como mediação fundamental todos os elementos de uma totalidade dinâmica determinada material-mente, desde os fundamentos econômicos até suas expressões política, jurídicas e as relativas às formas da consciência social, passando pela luta de classes como fundamento da história.

Podemos resumir os questionamentos ao conceito de classes em Marx à afirmação segundo a qual as transformações que ocorreram no capitalismo contemporâneo teriam alterado de tal maneira a forma e a substância deste modo de produção a ponto de estarmos em uma sociedade na quais as classes sociais perderam sua centralidade1. Sempre houve questionamentos sobre a afirmação de Marx sobre as classes o que o levou certa vez a firmar que não ele que introduziu o conceito na história, no entanto, o que há de diferente na moderna ofensiva é que se procuram articular certas premissas de Marx contra ele, ou seja, afirmar que mudanças significativas na forma de produ-ção material da vida teriam alterado a natureza da sociedade levando-a a uma sociedade pós-industrial, pós-moderna e, por conseguinte, pós-socialista (Touraine, 2004).

1 Ver a respeito as obras de Dahrendorf (1982), Bell (1980), Habermas (1990), Arendt (2000), Nisbet (1959), entre outras.

* Professor Adjunto da Escola

de Serviço Social da UFRJ, Doutor em Sociologia pela USP e membro do CC do PCB.

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Ainda que essas teses não sejam novas, como provam as afirmações de Hanna Arendt (2000) e de Nisbet (1959, apud Chauvel, 2002: 58), a força da teoria segundo a qual as classes deixavam de ser o centro da história ganham força a partir da década de 80 com a chamada reestruturação produtiva da capital e as consequentes mudanças na morfologia da classe trabalhadora (Antunes, 1999).

A nova configuração do capital teria levado ao rompimento da tese principal de Marx sobre a relação entre o desenvolvimento das forças produtivas materiais e a formação do pro-letariado como classe social, uma vez que as novas tecnologias produziriam, por um lado, uma diminuição do número de trabalhadores, e por outro, uma alteração qualitativa na própria determinação da lei do valor, tendo em vista que a valorização do valor se daria por meios que se distanciam da atividade produtiva, levando ao que alguns chamam de financeirização, outros de explosão do setor de serviços, ou ainda, nas teses sobre o advento de sociedade comunicacional ou em rede, nas teses de Habermas (1990) e Castells (2000).

Podemos encontrar o fundamento desta crítica na obra de Hanna Arendt (2000) – A Condição Humana –, na qual afirma que:

O advento da automação, dentro de algumas décadas esvaziará as fábricas e libertará a humanidade de seu fardo mais antigo e mais natural, o fardo do trabalho e da sujeição à necessidade (Arendt, 2000 [1958]: 12).

As palavras proferidas por Arendt no final da década de 50 do século passado, com um misto de profecia e maldição, uma vez que a sociedade glorificara o trabalho havia elimina-do o emprego, serão recuperadas com toda a força por Habermas (1990) em seu raciocínio sobre o envelhecimento do paradigma da produção e por Gorz (1987) e seu famoso Adeus ao Proletariado. O fundamento da crítica que aqui se estruturava é a constatação de que o desenvolvimento tecnológico poupa trabalho, diminui o número de trabalhadores e desloca o centro da sociedade contemporânea, da produção do valor nas atividades produtivas para outras esferas como as esferas de normatização ou naquilo que Marx chamaria de reprodução e circulação do capital.

Ainda que nem todos tenham afirmado o desaparecimento das classes, ou sua impor-tância na compreensão das sociedades contemporâneas, forma-se um grande consenso sobre a diminuição de sua importância e em alguns casos do virtual desaparecimento. Capitalistas e trabalhadores seguiriam como classes da sociedade industrial, mas sua centralidade seria diluída com o desenvolvimento de inúmeros outros setores sociais impulsionados pelo crescimento do setor de serviços, da presença de um setor público Estatal e não estatal, da consolidação de formas modernas de sociedade informacional ou comunicacional. Dahrendorf (1982), por exemplo, vai enfatizar o crescimento das classes médias assim como a intensificação da mobilidade entre as classes e dentro delas para concluir que o centro do conflito atual não é mais entre o proletariado e a burguesia – duas classes pequenas e que se tornaram aliadas –, mas, sim, entre a ordem e a anomia.

O fundamental nessa polêmica é nos perguntarmos: primeiro, as mudanças ocorridas no modo de produção capitalista alteraram sua substância; em caso afirmativo, a suposta

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nova natureza das relações de produção que emergem da chamada reestruturação produtiva são ou não relações de classe; e, por fim, em sendo relações de classe, quais seriam estas novas classes e suas configurações sociais, políticas e suas correspondentes formas de consciência?

O que chama a atenção na atual ofensiva contra as teses marxianas sobre o desenvolvi-mento da sociedade capitalista e o papel das classes é que a aparente comprovação empírica afirmada pelos críticos não é, paradoxalmente, acompanhada de dados que comprovariam tal evidência, ou melhor, as análises não costumam ir além de dados particulares que apenas ilustram uma afirmação auto-evidente. Apresenta-se como óbvia a diminuição e o virtual desaparecimento da classe trabalhadora, sempre indicando uma manifestação particular que ilustraria esta obviedade: vejam os bancários, a WW tinha quarenta mil trabalhadores e agora tem algo entorno de doze mil, fabricas fechando, cidades e regiões industriais inteiras desagregando-se até o desaparecimento, o crescimento do setor de serviços, o papel crescente das classes médias e o surgimento de novas formas de trabalho, são algumas das chamadas “evidencias”.

Talvez, aquilo que mais ilustre esse aparente consenso é a tese do desemprego estrutural, ou seja, não se trata de movimentos de emprego e desemprego naturais dos ciclos capitalistas, mas de um processo de eliminação estrutural de postos de trabalho que jamais seriam recriados, nem diretamente, nem em outra forma ou posição no interior do sistema, formando mais que uma superpopulação relativa, um excedente excluído estruturalmente2.

Vamos analisar com um pouco mais de cautela essas bombásticas evidências à luz das questões levantadas sobre a suposta mudança de substância das relações ca-pitalistas e seus impactos nas relações entre as classes. Comecemos por afirmar que os apressados críticos de Marx, ao enveredarem por caminhos que tão rapidamente chegam a noções de uma sociedade pós-industrial, pós-capitalista e outras categorias ortopédicas que tentam suprir a ausência precisa de conceitos, raramente conhecem de fato o que vem a ser o Capital e as relações que o constituem. Um dos problemas dos críticos de Marx encontra-se no paradoxal fato de que ele parece conhecer mais sobre o capital que os melhores economistas políticos da ordem burguesa.

Para Marx, o capital é uma relação social, ou seja, para aqueles que sempre acusaram Marx de reducionismo econômico, é bom lembrar que a essencialidade do capital encontra-se no fato de que ele é uma particular forma de relação social que os seres humanos, dado certo grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais, estabelecem para produzir socialmente as condições de sua existência (Marx, 1977: 24). Ainda que haja uma clara

2 Mesmo entre autores que defendem a centralidade do trabalho e a vigência do conceito de classes sociais como essencial à compreensão da sociedade contemporânea, se chegou a afirmar o conceito de “desemprego estrutural”, como Mészáros (2002) e Antunes (1999). No entanto, é bom afirmar que, no caso desses autores, fundamentais no combate àqueles que defendiam as teses relativas ao fim das classes e da centralidade do trabalho, o fenômeno sempre foi visto como uma confirmação da tese apresentada por Mészáros da ativação dos limites estruturais últimos da sociedade atual, portanto, de atualização e urgência de uma alternativa além da ordem do capital o que exigiria a afirmação da validade e atualidade da firmação marxiana do proletariado como sujeito da alternativa histórica socialista.

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conexão entre o desenvolvimento da indústria moderna e a forma capitalista da sociedade, nada nos autoriza a afirmar que relações capitalistas não possam ocorrer em formas de traba-lho concreto, não industriais, entendidas como a alteração de matérias primas em produtos materialmente objetivos.

Na exposição sobre as condições históricas de surgimento das relações capitalistas3, Marx afirma que a gênese do capitalista encontra-se no campo, na figura do arrendatário e não no comerciante ou nas corporações de ofício como vulgarmente se imagina, exatamente porque é ele que vai primeiramente comprar força de trabalho para produzir mercadorias.

A relação social fundamental, por meio da qual o capital se constitui, pressupõe o proprietário dos meios de produção, que compra força de trabalho, é por outro lado, o ven-dedor da força de trabalho que, uma vez expropriado e livre de quaisquer laços de servidão, só tem sua força de trabalho para vender. Somente no momento em que historicamente se produzem estas classes, é que é possível ao proprietário privado do dinheiro e de meios de produção, comprando força de trabalho, extrair um sobre-trabalho e acumulá-lo na forma de lucro privado.

Esse sobre-trabalho, ou mais valia, deriva da afirmação, que, antes de ser de Marx, é o fundamento da Economia Política, segundo a qual a substância do valor é determinada pela quantidade de trabalho. O autor apenas aprofundou este conceito afirmando que não se trata do trabalho concreto, mas de certo quantum de trabalho humano abstrato, social-mente necessário.

O elemento central, por trás das críticas endereçadas ao conceito de classes em Marx, encontra-se na crítica à teoria do valor. O capitalismo, pelo desenvolvimento da tecnolo-gia, teria aprimorado a produção de mercadorias e serviços, de forma que a maior parte da formação da riqueza e do lucro, não derivaria mais do trabalho, mas sim de uma série de fatores externos à produção restritamente considerada, entre os quais ganhariam destaque o conhecimento, a informação e a financeirização.

As novas tecnologias e as novas formas de gestão diminuem o número de trabalhadores, ao mesmo tempo em que potencializam a produção, elevando a quantidade de mercadorias e, portanto, dos lucros e sua repartição ampliada numa complexa rede de relações e atividades que vai muito além da fábrica, superando-a, fazendo com que a maior parte dos lucros se realize não mais na produção, mas no conjunto de operações de reprodução, seja da circulação, do financiamento, da produção intelectual, das redes virtuais, dos serviços, etc.

A nova configuração, em parte virtual, superaria a relação direta entre os proprietários de um lado e os trabalhadores de outro, e condenariam a velha classe trabalhadora a ser uma classe secundária, responsável por apenas uma parte da produção do valor, parte esta que não teria mais a importância e a centralidade de outrora.

3 Ver o item sobre a Gênese do arrendatário capitalista, no capítulo XXIV, livro 1, volume 2, O Capital. (MARX, s/d: 859 e ss.)

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Esta ofensiva longe de ser simplesmente acadêmica se expressou na correlação de forças entre capitalistas e trabalhadores4, produzindo uma defensiva política, cuja maior expressão é a tragédia do movimento sindical.

Ocorre que a reestruturação produtiva não altera a substância da produção capitalista, muito menos seu caráter de classe. Pelo contrário. O que percebemos ao ler O Capital, é a profunda atualidade da compreensão da natureza do modo de produção capitalista e, principalmente, da tendência histórica anunciada por Marx. O capital tende, desde seus primórdios, a ser uma forma de produção que busca a aplicação consciente da tecnologia e do desenvolvimento científico ao processo de produção. Impulsionado pela concorrência entre os capitalistas, a meta constante é o aumento da produtividade do trabalho e a consequente diminuição dos valores unitários das mercadorias. Para tanto, o capitalista aplica cada vez mais em capital constante do que em capital variável, ou seja, cada vez mais a fonte de valor, que é o trabalho vivo, tem que carregar uma proporção maior de trabalho morto na forma de máquinas, instalações, matérias primas e todos os elementos que não alteram seu valor no curso do processo de produção.

Esse fato levará a alteração naquilo que Marx chamou de composição orgânica do capital e, tendencialmente, à queda das taxas de lucro. As alterações que presenciamos na história do capital são sempre, simultaneamente, respostas do capital à queda da taxa de lucro e à luta que os trabalhadores empreendem contra as relações do capital, como afirma Ricardo Antunes (1999). Daí a superação do trabalho dos operários apenas formalmente subordi-nados ao capital na origem da indústria moderna, pela forma fordista-taylorista que cria o operário massa, a linha de produção, a separação entre o comando e a execução, a relação homem-máquina, o sistema de tempos e ritmos.

A crise da forma fordista-taylorista e a ofensiva dos trabalhadores, transformados pelo próprio fordismo em um ser coletivo que nada tem a perder e que só pode existir como um ser social unificado e desenvolvido pelo organismo do capital, ao mesmo tempo em que o capital monopolista batia nos limites de sua expansão extensiva, produziu a necessidade de buscar formas intensivas de compensar a queda nas taxas de lucro (Mészáros, 2002).

A resposta do capital a este impasse é que constitui a chamada reestruturação produtiva. Em sua essência ela consiste em novas formas de gestão, mais ou menos acompanhadas de inovações tecnológicas como a informatização, que visam eliminar toda a porosidade do processo de produção, todo o desperdício de tempo de trabalho que não está diretamente voltado à produção do valor, o que se convencionou chamar de “clean production”.

A meta é eliminar toda forma de trabalho improdutivo, ao mesmo tempo em que se potencializa a produtividade direta. São eliminados, por exemplo, graças à informatização, os empregos ligados ao controle de qualidade, fiscalização, gerenciamento, incorporando

4 Ver a respeito o instigante livro de Valério Arcary – O encontro da Revolução com a História. São Paulo: Xamã / Sundermann, 2006.

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estas tarefas às funções do operário produtivo, tornando-os polivalentes. Da mesma forma, terceirizam-se funções improdutivas como limpeza, logística e manutenção e ao mesmo tempo se organiza o fluxo do trabalho na forma de just-in-time para o fornecimento de peças e matérias primas e desova do produto final (Antunes, 1999).

Seja qual for o ângulo que observemos o fenômeno, a reestruturação não substitui os elementos constitutivos das relações capitalistas, nem tão pouco alteram as leis fundamentais do valor, pelo contrário, se fundamentam do processo de valorização do valor e se apresentam como contra tendências á queda da taxa de lucro, procurando elevar a taxa de mais valia, diminuir os custos com capital constante, equacionar melhor os tempos de circulação entre fornecimento de insumos e o de venda, todos os elementos que foram exaustivamente dis-cutidos por Marx em O Capital.

Da mesma forma a reestruturação produtiva não altera as relações de propriedade ou muda o caráter da grande propriedade monopolista, pelo contrário, aprofunda o processo de centralização e concentração da produção. As relações de trabalho se precarizam, cortam-se direitos, revertem-se conquistas, quebra-se o patamar organizativo anteriormente conquis-tado, completa-se a subordinação real do trabalho ao capital, mas seguem sendo relações assalariadas de tipo capitalista.

No entanto, o grande trunfo dos críticos contemporâneos de Marx, é a diminuição crescente da classe trabalhadora que é apresentada como evidente, estrutural e irreversível, condenando aqueles que sobram empregados, a uma defensiva política e a concessões cada vez maiores, ou seja, a atual situação de suposto desemprego estrutural seria a base material para o fenômeno político do consentimento (Przworski, 1989; Iasi, 2006)5.

É inegável que houve uma mudança de perfil da classe trabalhadora, ou em sua morfo-logia nas palavras de Antunes (1999), no entanto, podemos afirmar que estamos diante de uma desconcentração, uma realocação, seja por setores da economia, seja geopoliticamente pelo planeta, mas de forma nenhuma uma diminuição da classe. Vejamos a evolução do emprego nos EUA no período em que deveria ter ocorrido esta suposta diminuição:

5 Há aqui uma inversão interessante. A base do consentimento sempre foi associada à ideia de “pleno emprego”, no entanto, a afirmação de um desemprego estrutural acaba por funcionar, da mesma forma, como base para um novo tipo de consentimento muito mais perverso porque sustentado na precarização das condições de trabalho e existência.

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Ano Total da FT Esfera Produtiva Esfera Improdutiva Desemprego

Total Agric.Minas Constr. Transp.

Indust. Total

Comerc.Financ.Serviços Governo Total

% s o -bre a F.T.

1950 62.208 29.669 7.160 7.268 15.241 22.713 16.687 6.026 3.288 5.3

1960 69.628 29.885 5.458 7.601 16.796 29.836 21.483 8.353 3.952 4.4

1970 82.715 31.474 3.462 8.663 19.349 42.909 30.348 12.561 4.088 4.9

1980 104.719 34.172 3.310 10.562 20.300 59.704 43.455 16.249 7.448 7.1

1990 124.787 33.884 3.186 11.622 19.076 78.722 60.418 18.304 6.874 5.5

Fonte: US Departament of Labor, Montly Labor Review, apud José Martins, Análise de Conjuntura – NEP 13 de Maio – 1/2/1996.

Vejam que o total da força de trabalho aumentou em números absolutos (62 mil em 1950 para 124 mil em 1990), mais que dobrando seu efetivo. Ainda que tenha ocorrido um crescimento proporcionalmente maior do chamado setor de “serviços” (passou de 22 para 78 mil), a esfera produtiva cresceu (de 29 para 33 mil), mesmo considerando o restrito âmbito “industrial” (passou de 15 mil para 19 mil) (Martins, 1996a).

Pode-se argumentar que os mesmos dados comprovam o crescimento dos serviços e certa estabilidade do trabalho industrial. No entanto, lembremos que segundo a previsão de Hanna Arendt, feitas exatamente na década de 50, as fábricas se esvaziariam, o que de fato não ocorreu. Além disso, há uma imprecisão no conceito de setor de serviços e sua identidade imediata com a esfera improdutiva.

Nada na teoria econômica de Marx nos autoriza a definir o caráter produtivo ou im-produtivo de um ramo de atividade pelo caráter concreto do trabalho. Uma vez que o caráter produtivo de um trabalho é determinado pelo tipo de relação social que se estabelece, na produção de mercadorias no interior de uma forma capitalista de produção de mercadorias, isto é, através de relações assalariadas com o capitalista que assim extrai mais valia, o mes-mo trabalho concreto pode ser produtivo, num caso, e improdutivo em outro. Como, por exemplo, o professor que trabalha para uma universidade pública e outro para uma empresa de ensino.

No caso concreto, as terceirizações têm um resultado inverso do que se imagina. Ao retirar um setor de limpeza, por exemplo, que era improdutivo no interior da fábrica, e transformá-lo em uma mercadoria vendida por uma empresa que contrata funcionários assalariados para executar tal serviço, esta atividade transforma-se em produtiva. Portanto, teríamos que voltar ao quadro e pensar mais detidamente sobre quais os setores podem ser considerados produtivos e improdutivos, ainda que, para a existência do capital, não haja problema algum no fato do setor improdutivo ser “maior” que o setor produtivo.

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O que determina a centralidade de um setor não é sua dimensão quantitativa, mas qualitativa. Ou seja, sua centralidade na produção do valor assim como é de se supor que a produção de valor se cerque de condições para sua reprodução cada vez mais amplas, comple-xas e mercantilizadas. Não importa o quanto aumente a padaria e o número de funcionários que vendem o pão, ele continua sendo produzido no forno.

O fato é que o crescimento da força de trabalho não é um fato isolado que pode ser comprovado apenas pela economia norteamercicana até a década de 90. A força de trabalho mundial dobrou entre 1990 e 2000. Segundo a International Labor Organization, a força de trabalho mundial passou de 1,43 bilhões para 2,93 bilhões. Entre 1970 e 1993, analisando os centros da economia mundial – ou seja, o grupo das sete maiores economias –, nós podemos verificar um aumento no número absoluto de trabalhadores:

Evolução da Força de Trabalho Mundial – grupos dos sete países ricos: 1970 /19936

Grupo de Países Força de trabalho (milhões) População Urbana

(como % da população total)G7 (grupo

dos sete países ricos)

1970 1993Crescimento anual

(%)1970 – 1993

1970 1993

EUA 87 125 1.6 74 76

Japão 53 63 0.8 71 77

Alemanha 43 42 (-) 0.1 80 86

França 22 26 0.8 71 73

Itália 21 23 0.4 64 67

Inglaterra 26 28 0.4 89 89

Canadá 09 14 2.0 76 77

Poder-se-ia argumentar que os números provam exatamente uma estagnação, isto é, o número de trabalhadores permaneceu praticamente o mesmo ou com poucas alterações. No entanto, o fato é que, com exceção da Alemanha (terra de Habermas) na qual o número absoluto caiu, todos os outros países apresentaram um pequeno crescimento, levando a uma taxa de crescimento anual pouco significativa, aproximadamente 0.9. O mistério se desfaz quando apresentamos os números relativos aos chamados países em desenvolvimento no mesmo período, ou seja, as áreas para as quais se dirigiu a exportação de capitais oriundas das economias centrais. Vejamos:

6 Martins, José. Análise de Conjuntura. Nep – 13 de Maio

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Evolução da Força de Trabalho Mundial – grupos dos sete países pobres: 1970 /19937

Grupo de Países Força de trabalho (milhões) População Urbana (como % da população total)

g7 (grupo dos sete países em desenvolvi-

mento)1970 1993

Crescimento anual (%)

1970 – 19931970 1993

China 335 723 2.6 17 29

Índia 225 341 1.8 20 26

Rússia 55 76 1.04 63 75

Brasil 31,8 59 2.7 56 61

Indonésia 45.9 76 2.2 17 33

México 14,6 33 3.0 59 74

África do Sul 8.1 13 2.1 48 50

As economias centrais apresentam uma estabilidade no crescimento de sua força de trabalho exatamente porque seus capitais migraram para as áreas de influência no chamado terceiro mundo. Aqui a média de crescimento salta para 2.7, ou seja, praticamente triplica.

Analisemos um exemplo no Brasil, exatamente de um setor que acabou sendo a referência para as teses do desaparecimento virtual da classe trabalhadora: o setor automobilístico.

Produção, Emprego e Produtividade no setor automobilístico8

Ano Número de trabalhadores Carros produzidos Produtividade (carros/trabalhador)

1957 9733 1166 0.1

1960 38410 42619 1.1

1970 65902 306915 4.6

1980 133688 933162 6.9

1990 117396 730992 6.2

1995 104614 1297467 12.4

1998 83049 1254018 15.0

2000 89134 1361721 15.2

2001 84834 1501688 17.7

2002 81737 1520286 18.5

2003 79047 1505139 19.0

2004 88697 1758594 19.8

7 Idem.8 Anuário da Indústria – ANFAVEA (2005). (Cálculo da produtividade feito pelo autor).

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Notem que, em números absolutos, no mesmo período em que as fábricas deveriam esvaziar-se, a força de trabalho empregada passou de 9733 operários para 88.697, enquan-to a produtividade do setor saltou de 0.1 para 19.8 carros por operário. A tese do fim da classe argumentará que houve uma diminuição entre a década de 1980 e 2004 de 133 mil para 88 mil, o que é verdade. No entanto, você tem momentos de crescimento e queda na acomodação de um setor importante fortemente impactado pela reestruturação produtiva. Para aqueles que viviam daquele emprego, sua situação é de fato estrutural e, possivelmente, jamais voltarão. Ocorre que do ponto de vista das relações gerais do capital total, este posto reaparecerá, em outro setor ou em outro ponto do planeta, nas fábricas da Volks Wagen na China, ou nas operadoras de tele marketing na Índia.

Diante do fato que a força de trabalho não diminuiu, os críticos argumentam que esta força de trabalho esta inserida em novas relações, novas formas de trabalho, que implica em novas de relações de classe, ou, dependendo do crítico, não seriam mais relações propriamente de classes como o mito do “auto-emprego”, do trabalho virtual em casa por encomenda, do empreendedorismo no qual o ex-trabalhador viraria uma espécie de microempresário de si mesmo, ou ainda, em uma aproximação de outro tipo, se ocuparia de um novo tipo de tra-balho “não heterônimo” formando uma “não-classe-de-não-trabalhadores” (Gorz, 1987).

Parece, no entanto, que aqui também os neo-empiristas desconsideraram os dados empíricos. Considerando a evolução do assalariamento na região metropolitana de São Paulo temos que:

Evolução do assalariamento no total da força de trabalho ocupada

Período Total Homens Mulheres

1998 62,2 65,7 57,3

1999 61,4 65,0 56,5

2000 62,0 65,8 56,9

2001 63,0 66,7 58,1

2002 62,4 66,5 56,9

2003 62,1 66,3 56,7

2004 62,5 66,5 57,5

2006(março) 65,3 69,9 60,5

Fonte: DIEESE/SEADE/MTE/FAT. – Pesquisa de emprego e desemprego. Região Metropolitana de São Paulo

O assalariamento passou de 62,2% da força de trabalho ocupada, para 65,3%. Não fica claro onde estariam estas famosas “novas relações”, “novas formas de trabalho”. O que vemos é uma precarização das condições do trabalho assalariado, mas não a alteração de sua natureza assalariada.

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Esse fato fica ainda mais nítido quando pegamos a distribuição desta força de trabalho ocupada, segundo IBGE, em todo o Brasil:

Total de pessoas ocupadas

Com carteira assinada

Sem carteira assinada

Funcionários Públicos e estatutários

Trabalhador por conta própria

Na produ-ção para consumo próprio

Não remunera-dos em ajuda a um membro do domicílio

Empregadores

65.629.892 23939433 1607534 3693162 1897842 2033141 2608533 1897842

100% 36,4 24,4 5,6 23,4 3,0 3,9 2,8

Fonte: IBGE, senso demográfico – 2000.

Caso somemos todas as formas não assalariadas, ainda que saibamos que não há ab-solutamente nada de “novo” nestas formas, muito menos qualquer tendência para que se tornem hegemônicas, muito pelo contrário, ainda assim teríamos o dobro (60% contra 30%) de inserções assalariadas. Isso se não quisermos nos aprofundar na natureza de relações do tipo “trabalhadores por conta própria”, diante da constatação de que vários trabalhadores, sem que se altere de fato a natureza de seu trabalho e de seus vínculos são obrigados a se apresentar como “pessoa jurídica” e estabelecer formalmente uma relação contratual como se fosse uma prestação de serviço. Chama a atenção também o quase desaparecimento de classes tradicionais, ligadas a produção para consumo próprio (3 %), assim como os 2,8% de empregadores.

A “nova sociedade” pós-tudo, que querem nos convencer que não é mais capitalista e nem uma sociedade de classes, apresenta-se com 60% da força de trabalho ocupada, 65 629 892 pessoas em números absolutos, trabalhando em relações assalariadas para 2,8% de empregadores, ou 1 897 842 pessoas. Não sei como poderíamos chamar estas relações. Marx as chamaria de... Capitalistas.

Além de reatualizar o conceito de classes como fundamental para compreensão da sociedade contemporânea e, portanto, a lei do valor como seu fundamento, a ofensiva pós-moderna nos permite validar outro conceito essencial de Marx: o de ideologia. No fundo, a ofensiva contra o conceito de classes sociais é menos política, menos econômica, e mais ideológica. Como nos ensinou Marx o que é próprio da ideologia é a inversão, a naturali-zação, a justificação que se fundamentam na apresentação de uma particularidade como se fosse universal.

Ora, todos estes elementos estão presentes de forma didática nos argumentos que procuram defendem o fim das classes como conceito chave de compreensão da sociedade atual. Primeiro se produz uma fantástica inversão na qual a crise da sociedade fundada no sociometabolismo do capital é apresentada como sendo uma crise do “trabalho”, depois os efeitos desta crise (que é uma crise de superacumulação que tem em sua base a alteração dramática da composição orgânica do capital e a consequente queda tendencial da taxa de

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lucro) são apresentados como uma conseqüência natural da aplicação da tecnologia, como se esta estivesse “naturalmente” ligada à produtividade que tem por alvo o valor e não a produção de valores de uso, além de naturalizar a subordinação do trabalho e a vida em geral ao capital, ou seja, ou salvamos o capital ou a vida se inviabilizaria, abrindo caminho para justificar e defender a manutenção da ordem das mercadorias e das relações capitalistas como condição para a vida humana.

Finalmente, a aceitação da ordem do capital e do virtual desaparecimento da classe tra-balhadora impõe uma intensificação da exploração e do domínio do capital sobre o trabalho, mas não como meio para garantir os interesses privados de capitalistas, mas como busca de soluções que interessariam ao conjunto da sociedade. O verdadeiro objetivo ideológico da atual ofensiva continua sendo desarmar a classe trabalhadora de seu projeto próprio e fazê-la se submeter ao projeto do capital como sendo a única universalidade possível.

Marx segue vivo, não por nenhuma ortodoxia imutável e petrificada, mas porque os problemas da contemporaneidade seguem exigindo soluções para quais conceitos como os de classe social, ideologia, capital como processo de valorização do valor e tantos outros do universo marxiano são ainda essenciais, ao mesmo tempo em que o arsenal dos chamados “novos paradigmas” de uma pós-modernidade que deveriam perdurar pelo século que se abria não resistem ás primeiras décadas dos tempos que se descortinam.

REFERÊNCIAS

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ARCARY, Valério. O encontro da revolução com a história: o socialismo como projeto na tradição marxista. São Paulo: Xamã / Sudermann, 2006.

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BELL, Daniel. O advento da sociedade pós-industrial. São Paulo: Cultrix, 1977.

DAHRENDORF, Ralph. As classes e seus conflitos na sociedade industrial. Brasília: UnB, 1982. (Pensamento político, 28.)

CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2000. v. 2.

GORZ, André. Adeus ao proletariado (para além do socialismo). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

. Métamorphoses du travail: quête de sens. Galilée. Paris: Col Debáts, 1988.

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HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Don Quixote, 1990.

IBGE. Censo demográfico de 2000.

MARTINS, José. Análise de Conjuntura Econômica Semanal, São Paulo, NEP – 13 de Maio, ano 01/02. 1996a.

. Análise de Conjuntura Econômica Semanal, São Paulo, NEP – 13 de Maio, ano 10/04. 1996b.

MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [s.d.].

MÉSZÁROS. I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.

TOURAINE, A. O pós-sociliasmo. São Paulo: Brasiliense, 2004.

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V Ideias em Movimento

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Resenha

COSTA, Edmilson. A globalização e o capitalismo contemporâneo. São Paulo: Expressão popular, 200? 216 p.

Milton Pinheiro*

O processo de globalização que envolve hoje toda a eco-nomia vem produzindo um conjunto de fenômenos novos na economia mundial e na sociedade, bem como interferindo na vida social da humanidade. Fruto de internacionalização da produção e da internacionalização financeira, a globalização tem produzido também um grande debate entre economistas, sociólogos, cientistas políticos, filósofos, entre outros intelec-tuais, sobre a natureza da globalização.

Com a globalização, o sistema capitalista se transformou num sistema completo, uma vez que este modo de produção só era completo no período anterior no que se refere a duas variáveis da órbita da circulação – o comércio mundial e a exportação de capitais. Ao se transformar num sistema ma-duro internacionalmente o capitalismo unificou globalmente o ciclo econômico mundial, possibilitando, dessa forma, o surgimento de crises mundiais completas.

Essas ideias chave estão desenvolvidas num instigante livro do professor Edmilson Costa – A globalização e o capi-talismo contemporâneo, lançado recentemente pela Expressão Popular. Resultado de sua tese de pós-doutoramento realizada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, em 2002, da UNICAMP, o livro tem em cada capítulo cinco eixos teóricos que envolvem o capitalismo contemporâneo, a saber: o debate em torno se há ou não globalização; a natureza da concen-tração e centralização do capital; a internacionalização da produção e das finanças e a macro-organização do capital.

Ao contrário dos que afirmam que a globalização é um mito, que busca mistificar os objetivos das transnacionais de ampliar seus espaços nos mercados mundiais, ou que a globalização existiu desde os tempos em que Marco Pólo abriu as fronteiras para as transações comerciais entre Oci-

* Milton Pinheiro Professor de Sociologia e Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

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dente e Oriente, o livro sustenta que a globalização é uma singularidade originária do ca-pitalismo contemporâneo e se constituiu a partir de internacionalização da produção e das finanças na segunda metade do século XX. Por suas particularidade e pelos fenômenos novos que vem produzindo pode ser considerada uma nova fase do capitalismo.

No entanto, este processo que se desenvolve em escala mundial não tem a possibilidade de impulsionar as forças produtivas em função das limitações estruturais do sistema capi-talista nesta etapa da história, como acentua Edmilson Costa: “A globalização incorporou inovações tecnológicas radicais, mas o sistema global de produção não pode desenvolver-se plenamente em função de suas contradições e, especialmente, dado o caráter de insuficiência mundial da demanda solvável”, isso porque, do ponto de vista macroeconômico, quanto mais o capitalismo se desenvolve, mas aprofunda a contradição entre o caráter social da produção e a apropriação privada de seus resultados, especialmente neste período de incorporação ge-neralizada de ciência na produção. Ou seja, no momento em que o sistema tem as maiores possibilidades de desenvolver suas forças produtivas, é exatamente neste momento que está limitado seu potencial de realização das mercadorias em função de insuficiência de demanda efetiva, o que torna muito difícil fechar a equação produção-demanda.

O livro do professor Edmilson Costa discute também o longo processo histórico de concentração e centralização do capital para demonstrar que as atuais empresas transnacionais são frutos da própria natureza do capital, que é de concentrar-se e centralizar-se continuamente e cujo resultado foi a formação dos trustes e dos cartéis no período que vai de 1875 a 1910 e as próprias empresas transnacionais globalizadas da atualidade. Trata-se de um movimento do capital já previsto por Marx em meados da década de 40 do século XIX.

Um dos momentos mais instigantes do livro é quando se analisa o processo de inter-nacionalização da produção. O autor enfatiza que esse processo, comandado pelas firmas transnacionais dos países centrais, está espalhado pelo mundo inteiro, mediante dezenas de milhares de filiais dessas empresas em todos os continentes, o que consubstancia o fato de que este fenômeno, como intuíra Michalet, na década de 80, faz com que a burguesia passe a extrair direta e generalizadamente, pela primeira vez na história, o valor fora de suas fronteiras nacionais.

Esse processo de acumulação transforma as burguesias dos países centrais em explorado-ras diretas dos trabalhadores em nível mundial. Até então, a burguesia capturava a mais-valia dos países periféricos, por meio do comércio mundial e da exportação de capitais. Além disso, a globalização também muda o perfil da classe operária, em função dos novos ramos industriais que emergem da terceira revolução industrial, que engloba a microeletrônica, as tecnologias da informação, a engenharia genética, a biotecnologia, os novos materiais, entre outros. Esses novos ramos necessitam de uma classe operária mais instruída e mais especializada.

Esta nova classe, pelo seu perfil e por sua posição no interior da fábrica, pode ser o con-traponto efetivo para a emancipação dos trabalhadores, pois não se trata mais de operários tayloristas que cumpriam um trabalho rotineiro e programado no chão da fábrica, mas de um novo contingente, uma nova classe, com um papel muito mais importante e determinado que os operários da segunda revolução industrial. Como o próprio autor sugere polemicamente:

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Não deverá ser surpresa se dentro de alguns anos, cientistas assalariados, analistas de sistemas, os engenheiros ou ferramenteiros eletrônicos (os construtores dos chips), os cientistas da genética e da biotecnologia, os físicos da nanotecnologia ou os web designers da internet liderarem um movimento operário e buscarem a transformação necessária para a construção de um novo sistema econômico.

Um outro capítulo instigante é o que analisa a globalização financeira. O autor de-fende que este fenômeno também ocorre no bojo da internacionalização da produção, mas ganha certa autonomia com o desenvolvimento das finanças, especialmente com o processo de desregulamentação e livre movimentação dos capitais iniciado com os governos Reagan e Thatcher. Essa performance monetarista global, impulsionada pelo neoliberalismo, fez com que o capital pudesse se autoacrescentrar ao longo das 24 horas por dia e desenvolver um sistema financeiro especulativo que subordinou todas as outras esferas do capital aos interesses das finanças.

Para se ter uma idéia, antes da crise econômica mundial, o volume de recursos especu-lativos que circulavam na esfera financeira eram mais de 10 vezes maiores que aqueles que estavam alocados na órbita da produção. Essa dinâmica especulativa aprisionou o Estado e seu orçamento a serviço do capital financeiro, mediante o aumento da dívida pública e pagamentos de juros cada vez mais crescentes; e também colocou as empresas produtivas a se envolverem crescentemente com os negócios financeiros e com a lógica de curto prazo, invertendo assim o horizonte temporal do planejamento empresarial.

O desenvolvimento acelerado da financeirização da riqueza, como afirma o professor Edmilson, aprofundou o fosso entre a órbita das finanças e a economia real, abrindo espaço para a possibilidade de crises sistêmicas que viria a se materializar em 2008. No entanto, essa financeirização significou também o contraponto funcional para a incapacidade do sistema capitalista desenvolver suas forças produtivas. Todavia, esta nova aventura do capital especu-lativo aprofunda a possibilidade de crise geral do sistema, uma vez que se torna impossível, no longo prazo, a reprodução do capital sem obedecer à lei do valor.

A criação da riqueza na órbita financeira é uma aventura sem futuro, uma miragem capaz de levar momentaneamente parte dos capitalistas ao delírio, ofuscando sua visão global de futuro. No entanto, quanto mais aprofundam esse modelo, mas ampliam a possibilidade de uma crise geral do sistema.

Essas palavras, escritas em trabalho concluído em 2002, pareciam heréticas, se o autor não tivesse ainda intuído que estava em construção uma grande crise global do capitalismo como realmente aconteceu. “Os sintomas desse fenômeno já podem ser verificados desde a crise do México, em 1994, quando aquele País era modelo de implantação do neolibe-ralismo. Posteriormente, a crise financeira atingiu um continente inteiro, desestruturando essas economias. Em seguida a crise alcançou a Rússia, depois o Brasil e a Argentina, cuja

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desestruturação foi tão profunda que pode ser considerada um modelo antecipado da crise econômica global”. Uma argumentação que se mostra muito pertinente e bastante colada à realidade.

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Resenha

MAZZEO, Antonio Carlos. O voo de Minerva: a construção da política, do igualitarismo e da democracia no Ocidente antigo. São Paulo, Boitempo editorial, Oficina Universitária, 2009, 176 p.

Marcos Del Roio*

Este belo trabalho de Antonio Carlos Mazzeo, ainda que a primeira vista não pareça assim, trata de um tema de grande importância para a reflexão teórica crítica da política. Depois de uma longa trajetória de reflexão filosófica e cientifica da política com acento positivo, com Karl Marx vem finalmente à tona uma crítica radical da política. Ainda que outros antes de Marx, ou mesmo seus contemporâneos, houvessem se dado conta de que a política e o Estado eram não só representa-ções, mas também a condensação de um poder opressivo que organiza a vida social em torno da exploração do trabalho, foi o fundador da filosofia da práxis o primeiro a conceber a política como história e como mediação secundária a ser dialeticamente negada. Ou seja, somente com Marx é que a política enquanto domínio aparece como uma determinação social a ser negada/superada. Com Marx ocorre a superação da filosofia política na filosofia da práxis.

A política surge como ciência, como reflexão dissociada da moral e da religião, com Maquiavel, no século XVI, e isso foi possível precisamente porque a política aparece como dimensão autônoma da vida social, como Estado, articulada com a concomitante autonomização do capital mercantil. Na época de Marx o capital mercantil havia já se apropriado e se submetido à produção, tendo sido então possível, com a revolução burguesa, a emancipação da política no Estado de direito burguês, guardião da propriedade privada dentro da dinâmica contraditória da acumulação do capital.

O livro de Mazzeo lança luz sobre a primeiríssima fase da reflexão política como mediação da vida social e do pensamento na Grécia antiga, em particular em Atenas. No

* Marcos Del Roio é Professor de Ciências Políticas. UNESP – FFC

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entanto, a fim de explicar as razões que tornaram possível esse acontecimento histórico tão decisivo, necessário se fez perscrutar os fundamentos econômico-sociais da polis grega. Trazendo Marx e Lukács como referência teórico-metodológica nuclear, Mazzeo busca as origens da forma social escravista mediterrânea a partir da diferenciação do antigo modo de produção asiático, que, segundo Marx, prevalecera desde a Ásia Oriental até a Irlanda.

Por migrações e pelo comércio, as formas sociais do Egito e da Mesopotâmia estenderam a sua presença para as ilhas mediterrâneas e depois para o Peloponeso, a Ática e Anatólia. A partir daí se particularizou a civilização minóico micênica, o berço do Ocidente antigo. Uma agressiva migração de povos originados nos Cárpatos e no Danúbio (Romênia e Hungria dos dias de hoje) destruiu a forma social que prevalecia em volta do mediterrâneo oriental e no Oriente Médio, dando início a uma longa fase de refluxo econômico e social, uma verdadeira “época média”.

Foi nessa época, a partir da fusão das desintegradas formas sociais da época precedente com a forma tribal avançada dos migrantes invasores, que surgiu e se desenvolveu a polis grega, sob formas oligárquicas de poder sempre mais fundado em processos sociais de trabalho escravo. A tensão social permanente imposta pelo risco da escravização gerou as condições para o surgimento das “tiranias”, que possibilitaram a ascensão de grupos sociais oprimidos às armas e ao poder decisório.

Dentre as póleis gregas, Atenas desenvolveu uma singularidade decisiva. Articulada com a agricultura, o artesanato e o comércio constituíram elementos distintivos da forma social escravista como configurada em Atenas. A propriedade privada de vínculo comunitário e a produção de produtos comerciáveis lançam as bases para a construção de um império marí-timo, mas também para a democracia escravista, na verdade um poder oligárquico ampliado, por conta da necessidade de legitimação. Na verdade, tal como a democracia escravista, também a democracia capitalista é uma oligarquia ampliada.

A singularidade manifesta em Atenas, com sua forte coesão comunitária, foi o que possibilitou, segundo Mazzeo, o aparecimento de um complexo de pensamento que se afasta do mito para gerar a filosofia política como ética, indo mais além do que a filosofia da natureza anteriormente originada nas ilhas jônicas, com sua forma social também escravista mercantil, porém menos compacta como comunidade. Em Atenas teve lugar a experiência da democracia política, que, para existir, precisou da generalização do trabalho escravo na produção do excedente a fim de emancipar os cidadãos para a política e permitir a emergência da individualidade.

A condição para o exercício da cidadania e expressão da individualidade era a educação, o que deu espaço para o aparecimento dos sofistas, em grande parte, vindos de outras partes da Grécia, que vendiam o seu conhecimento. Na educação universal ministrada pelos sofistas estava também a política, a mediação da prática social da convivência segundo normas e busca de consensos. Mas a emancipação da política e da individualidade coloca a polis em crise ética e religiosa, que tendem a fazer emergir o laicismo, mas também a desagregar o senso de comunidade.

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Nesse contexto torna-se primordial a filosofia política. Com Sócrates começa a tomada de consciência do risco de desagregação da polis e da política como consciência mediativa frente o cotidiano imediato. A perspectiva socrática é a da recuperação do senso de comuni-dade para o que era essencial entender a política como indissociável da virtude ético-moral. O objetivo da política passa a ser então o bem da comunidade que, por sua vez, encontra-se em sintonia com a natureza do universo. Ao conceber uma espiritualidade universal, de outro modo, Sócrates recupera também a religiosidade ao mesmo tempo em que aparece como crítico mordaz da democracia escravista. Crítico da democracia no senso em que entendia que aos homens público de Atenas faltava a racionalidade voltada para a busca do bem da comunidade e do bem universal.

Segundo Mazzeo, com Platão, a política, além de consciência mediativa, passa ser vista também como práxis transformadora do real, como possível vir a ser. Platão buscava os remé-dios possíveis para a crise da polis também no resgate da ética comunitária, mas busca elaborar uma polis ideal, que resgata as características juvenis de dois ou três séculos antes. Do ponto de vista prático as propostas de Platão passam por um governo dos sábios, no qual vincula política a conhecimento ou então pela necessidade de uma tirania reformadora, que resgatasse a polis enquanto ética, enquanto expressão terrena de uma idealidade transcendental.

Os esforços de Sócrates e de Platão de fazer reviver a ética comunitária com uma política-moral só poderiam fracassar, pois o mundo clássico da polis grega estava com seus dias contados e eles não podiam perceber que o avanço do escravismo e do comércio corroía inapelavelmente a ideia de política como governo do bem comum. Não muito tempo depois, Aristóteles, o preceptor de Alexandre, futuro rei da Macedônia, um pequeno reino semibárbaro ao norte da Hélade, pode ter a plena consciência de que a política tinha a sua manifestação mais fundamental nas relações entre dominante e dominado, entre senhor e escravo.

Como se pode notar nessa breve nota, o livro de Mazzeo é erudito e complexo, mas traz uma contribuição de muito valor para a necessária crítica da democracia burguesa e para uma critica da política, do modo mais radical.

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VI Normas para publicação

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1. Os trabalhos/artigos devem ser digitados em Programa Word: fonte Times New Roman, observando que o texto deve estar em corpo 12, as citações em corpo 10 e as notas de rodapé em corpo 9.

2. Configuração da página: A-5 (14,8 X 21) margem de 2 cm em todos os lados (esquerda, direita, superior e inferior).

3. Parágrafo com alinhamento justificado e espaçamento interlinear de 1,5 cm4. Recuo de 1 cm para a primeira linha dos parágrafos e 2,5 para citações (em coluna)

5. As referências bibliográficas, em nota de página, devem ser restritas ao mínimo indis-pensável. Caso necessário, seguir o exemplo: (Castoriadis, 2000: p. 151). A bibliografia deve constar no final da página do artigo com a referência completa, ou seja, a) autor b) título da obra (em itálico); c) ano da edição, se não for a primeira; d) local da pu-blicação; e) nome da editora; f ) data de publicação; g) número da página. Exemplo: CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 5ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2000; p. 151.

6. Para artigos citados: a) autor; b) Título do artigo; c) Título do periódico (em itálico); d) local da publicação; e) número do volume; f ) número do fascículo; g) página inicial e final; h) mês e ano. Exemplo: CASTORIADIS, Cornelius. O marxismo: balanço provisório. Revista Qvinto Império, Salvador, n 1 p. 25-42, jan./mar., 2006.

7. À medida do possível, as Normas Brasileiras de Documentação (ABNT) devem ser seguidas.

8. Identificação do artigo, do autor e o resumo devem constar do trabalho apresentado. O nome do artigo em negrito (centralizado), fonte Times New Roman, corpo 14. O nome do autor em fonte arial, corpo 12.

9. No final da página constar um memorial resumido do autor do artigo. Exemplo: Autor: Antonio Pi Doutor em Letras pela USP Professor da UNEB, Departamento XYZ E-mail: [email protected]. Do Resumo do artigo (caixa alta e negrito). Fonte Times New Roman, corpo 10 (centralizado) Palavras-chave Do Abstrat (caixa alta e negrito) Fonte Times New Roman, corpo 10 (centralizado) Key-words.11. Dois toques após as referências do resumo e palavras-chave em Português ou em outra

língua, a prioridade em inglês, para o Início do Texto.

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12. As ilustrações ou quaisquer outros como gravuras, fotografias, gráficos, esquemas são designados como Figuras, numeradas no texto, de forma abreviada, entre parênteses ou não, conforme a redação; quando indispensável o uso das figuras e/ou fontes especiais, indicar o programa em que foram gerados e enviar o arquivo fonte em disquete;

Exemplo: Fig.1. As figuras devem trazer um título ou legenda, abaixo da mesma, digitado na mesma largura desta.

13. Entrega dos artigos: Os textos deverão ser remetidos ou entregues à Editoração Geral da Revista...

O artigo deverá ser apresentado em disquete, devidamente etiquetado e identificado com o nome do autor e uma cópia impressa. =

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