Upload
hoangnguyet
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Maria Teresa Maia Gonzalez O Amigo do Computador Lisboa, Ed. Verbo, 2008
O AMIGO DO COMPUTADOR
(Sobe o tom de voz.) Não sou bruxo! (Amuado, de braços cruzados) A mim,
nunca me dizem nada! A Sara e o Gil já sabiam de tudo, pois claro... (Com
ironia) A menina querida e o filho mais novo, pois claro... (Subindo
novamente o tom de voz) A mim ninguém dá satisfações! (Dá uns passos,
nervoso, e regressa à boca de cena.) Para cúmulo, o computador pifou!
(Subindo ligeiramente o tom de voz) O que é que eu vou fazer?! E logo a
um domingo! Nem posso ver se tenho e‐mail nem nada! (Dá mais uns
passos e regressa à boca de cena.) Já sei! Vou telefonar ao Diogo, pode ser
que ele possa vir até cá e ver o que se passa com o computador, que ele
sabe bué de informática. (Animado, esfrega as mãos de contente.) É isso
mesmo! (Pausa breve. Mete a mão no bolso das calças.) Onde foi que eu
deixei o telemóvel? Bem, vou para o meu quarto, que não quero estar aqui
quando o Pai vier buscar o resto das malas. (Pausa breve) Detesto assistir a
cenas... Não tenho feitio para dramas. Nunca tive! (Pausa) É isso.
(Pausadamente) Vou para o quarto, que tenho assuntos importantes para
tratar e, lá, ninguém me chateia. (Começa a dirigir‐se para a saída.) Que
seca o computador ter‐se avariado! (Abana a cabeça, descontente.) Logo a
um domingo... (Sobe o tom de voz.) O que é que eu vou fazer agora?!
Quando Sérgio sai de cena, começa a ouvir‐se a canção «No meu
quarto», da autoria de Miguel Ângelo e Fernando Cunha:
A terra a tremer e o céu a trovejar... / E quando as chuvas caírem,
estarei no meu quarto. / O País a discutir, o Estado a massificar... / E
quando todos partirem estarei no meu quarto. / No meu espaço
fortificado ninguém vai entrar. / Fico só, desligado, a ver de lado o mundo
a girar. / Fico só, abraçado, a ver de lado o mundo a girar. / No meu quarto
fico longe, no meu quarto estou tão perto... / No meu quarto apago a luz
e, pela sombra, viajo no deserto.
SÉRGIO
(Embasbacado, levanta‐se.) Bem, eu...
SARA
(Autoritária, apontando‐lhe o dedo.) Tu desaparece! Vai lá para o
teu quarto, que, lá, não te incomodas com nada! Vai, vai! Desanda, que
não fazes cá falta nenhuma! (Subindo o tom de voz) E nem te lembres de ir
chatear a Mãe por causa da porcaria do computador, ouviste?! Era só o
que faltava!
SÉRGIO
(Desorientado) Mas o que foi que eu fiz, hem?
SARA
(Virando‐se para o irmão mais novo, levanta‐se.) Anda, Gil, vamos
nós sair daqui, para não haver mais cenas. Não quero que a Mãe nos ouça,
que problemas já ela tem de sobra!
(Saem Sara e Gil.)
CENA 8
(Sérgio está sozinho na sala. Olha para as malas, dá uns passos
desorientado e chega‐se à boca de cena.)
SÉRGIO
Mas o que é que deu àqueles dois?! (Abana a cabeça, descontente.
Eleva o tom de voz.) Até parece que tenho culpa de alguma coisa!
(Elevando um pouco os braços) Sim, até parece que sou eu o culpado!
(Pausa breve. Retoma o tom de voz normal.) Sabia lá que os pais estavam a
dar‐se mal! (Indignado) Como é que havia de saber, se não me disseram?!
« ... E que o melhor de vós mesmos seja para o vosso amigo»
Khalil Gibran, O Profeta
SARA
(Pausadamente) Como é que querias que te avisassem? A Mãe quis
falar contigo ontem, quando nos deu a notícia, mas tu não estavas. E o Pai,
esta manhã, ao pequeno‐almoço, perguntou por ti, mas tu ainda estavas a
dormir, como de costume...
SÉRGIO
(Abanando a cabeça, incrédulo, senta‐se pesadamente.) Mas como é
que é possível?! (Pausa breve) Que cena... (Pausa) E o Pai, onde está?
GIL
Saiu para ir levar algumas coisas para casa da tia Madalena.
SÉRGIO
(Irritado) Logo hoje que o computador se avariou e eu precisava que
o Pai me fosse lá ver se percebe o que se passou... (Pausa breve. Sobe o
tom de voz.) Sim, porque, num domingo, está‐se mesmo a ver que não
arranjo um técnico que venha cá a casa! Que seca!
SARA
(Levanta‐se, fora de si, e gesticula, furiosa, deixando o Sérgio
assustado.) Mas tu só pensas na porcaria do computador mesmo numa
altura destas?! 'Tás maluco ou quê, Sérgio? Onde é que tu vives, afinal?!
Não vês que estamos com problemas sérios, não?! Cegaste
completamente ou só estás a fingir que não vês?!
GIL
(Irritado, virando‐se para o irmão) Parece que já não pertences a
esta família!
Trata‐se dos pais. (Em tom solene) Eles é que estão com problemas.
SÉRGIO
(Espantado, volta a sentar‐se.) Os pais?! Os pais estão com
problemas? Que género de problemas? Não dei por nada!
GIL
(Irónico, sem fitar o irmão) Lógico...
SARA
(Em voz alta) É claro que não deste por nada! Como é que havias de
ter dado, se passas a vida enfiado no quarto, à frente do computador?!
SÉRGIO
(Nervoso) Mas... o que foi que aconteceu, afinal?
SARA
(Calmamente) Os pais decidiram separar‐se, porque acharam
melhor assim.
GIL
(Olhando para o irmão) E é por isso que o Pai foi fazer as malas para
ir para casa da tia Madalena.
SÉRGIO
(Desorientado, volta a levantar‐se.) E... quando é que o Pai se vai
embora?
SARA
(Muito constrangida) Hoje mesmo, ao fim da tarde.
SÉRGIO
(Enervado) Hoje?! Mas ninguém me disse nada! Não me avisaram!
PERSONAGENS
SÉRGIO (14 anos)
SARA (irmã de Sérgio; 13 anos)
GIL (irmão de Sérgio e Sara; 11 anos)
MERCEDES (mãe de Sérgio, Sara e Gil)
RUDOLFO (pai de Sérgio, Sara e Gil)
VANDA (namorada e colega de Sérgio)
PASCOAL (amigo e colega de Sérgio)
PROFESSORA ANTONIETA (directora de turma de Sérgio)
CLEMENTINA (mulher‐a‐dias da casa de Sérgio)
GUARDA‐ROUPA
Sérgio – Sweat‐shirt estampada com o desenho de um ecrã de
computador, calças de ganga e sapatilhas de ténis.
Sara – T‐shirt de cor lisa, calças, botins discretos; uniforme de
escuteira Gil ‐T‐shirt estampada com uma paisagem marinha, calças de
ganga e sapatilhas de ténis Mercedes ‐Camiseiro e saia; sapatos de salto
alto; acessórios: brincos e colar sóbrios.
Rudolfo – Fato e gravata; sapatos pretos.
Vanda – T‐shirt de cor viva, saia curta e botas; acessórios: brincos
extravagantes, vários anéis e pulseiras.
Pascoal –T‐shirt estampada com o nome de uma banda rock; calças
de ganga e sapatilhas de ténis; acessórios: um brinco e um colar de
missangas.
Professora Antonieta – Camiseiro discreto, saia e sapatos de salto
baixo; acessórios: óculos de armação clássica.
Clementina – Bata de trabalho e chinelos.
CENÁRIO
A –Sala da casa de Sérgio
Lado direito – um sofá de três lugares e um cadeirão; mesa
com televisão, vídeo e aparelhagem de som; sobre a televisão há
uma moldura grande com uma fotografia da família (pais e os três
filhos). Há, ainda, um candeeiro de pé.
Lado esquerdo – mesa de jantar com cinco cadeiras.
B – Gabinete da directora de turma
Secretária com cadeira; sofá de dois lugares; uma estante com
dossiês.
cabisbaixos. Sérgio repara nas malas que estão no chão e fica intrigado.)
Alguém vai de viagem?
SARA
(Olhando para Sérgio) O melhor é sentares‐te, Sérgio. (Suspira.) A
história é longa...
SÉRGIO
(Sentando‐se no cadeirão) A Mãe?
GIL
(Muito triste) Está lá dentro no quarto, a chorar...
SÉRGIO
(Espantado, levanta‐se) A chorar?! O que foi? Está alguém doente?
(Aflige‐se.) O Pai?
SARA
(Serenamente) O Pai vai‐se embora ao fim da tarde, Sérgio.
SÉRGIO
(Incrédulo, volta a sentar‐se.) Vai‐se embora?! Vai‐se embora para
onde?!
GIL
(Em voz baixa, sem fitar o irmão.) Para casa da tia Madalena...
SÉRGIO
(Desorientado, levanta‐se) Para casa da tia Madalena?! Mas
porquê?! A tia está com algum problema?
SARA
(Pausadamente) Não, Sérgio. Não é da tia que se trata. (Pausa)
MERCEDES
(Surpreendida) Porquê, filho?
GIL
Ora! Como se o Sérgio largasse o computador para ouvir conversas
sérias... (Com ironia) 'Tou mesmo a ver...
MERCEDES
O Sérgio tem andado muito arisco, de facto, mas isso há‐de passar‐
‐lhe. (Consulta o relógio de pulso.) Já é tarde e aquele rapaz ainda não
chegou! (Pausa breve) Bem, era isto que eu tinha para vos contar,
lamento... (Levanta‐se devagar.) Vêm ajudar‐me a arrumar a cozinha?
(Desanimada) É que, hoje, não estou com disposição para nada...
(Sara e Gil acenam afirmativamente com a cabeça, levantam‐se, vão
buscar o que ficou na mesa e, em silêncio e cabisbaixos, saem da sala com
a Mãe, que apaga a luz do candeeiro.)
CENA 7
(Na sala, estão Sara e Gil, sentados no sofá, tristes e silenciosos. Vê‐
‐se uma mala e um saco de viagem no chão.)
(Entra Sérgio, de rompante.)
SÉRGIO
(Irritado, não olha para os irmãos.) Pifou! O computador pifou!
(Sobe o tom de voz) Que seca! Ainda por cima, é domingo! Logo havia de
se avariar a um domingo! Hoje, não arranjo ninguém para cá vir arranjar‐
‐me aquela treta! Que seca! (Olha para os irmãos intrigado.) Mas o que é
que vocês estão a fazer aí, à frente da televisão desligada?! (Abanando a
cabeça em jeito de reprovação) Tss... Passaram‐se... (Os irmãos continuam
ACTO I
CENA 1
CENÁRIO A – Sala da casa de Sérgio
MERCEDES
(Entrando na sala onde encontra a filha sentada no sofá a ler um
manual de História do 8º ano) Boa tarde, filha!
SARA
(Levantando‐se para cumprimentar a Mãe) Olá, Mãe. (Dá‐lhe um
beijo, volta a sentar‐se e pega no livro.)
MERCEDES
(Pousa a pasta e a carteira na parte livre do sofá e senta‐se no
cadeirão.) Estou exausta! (Respira fundo e inclina‐se para trás.) Que dia!
(Pausa breve. Endireita‐se no cadeirão.) O que é que estás a ler, Sarinha?
SARA
(Virando‐se para a Mãe) Não estou a ler; estou a estudar... (Com
cara de enfado) Que seca! (Indignada) Como é que há quem grame
História?! Tanto para ler! (Suspira.) E o pior é que vou ter teste na próxima
semana...
MERCEDES
Então, tens de estudar a sério, filha. (Pausa breve) Não tiraste
apontamentos nas aulas?
SARA
Tirei, mas aquilo 'tá uma confusão tal que o melhor é estudar só
pelo livro... (Pausa breve) É que o s'tôr de História fala tão depressa que
não dá para escrever tudo o que ele diz. (Indignada) Ainda por cima, fala
caro! Evidentemente, escrevo tudo à pressa e, quando vou ler, nem sequer
percebo a minha letra... Era bué mais fácil se o s'tôr nos deixasse gravar as
aulas, mas não deixa... (Pausa breve) Diz que temos de habituar‐nos a
escrever, para passarmos a dar menos erros de ortografia...
MERCEDES
Acho bem. (Pausa breve) E o teu irmão mais velho?
SARA
(Em tom crítico) Que pergunta!...
MERCEDES
(Surpreendida) Porquê?! Houve algum problema com o Sérgio?
SARA
(Elevando o tom de voz) Sei lá! (Com alguma ironia) Alguém, por
acaso, saberá de algum problema do Sérgio, para além do habitual?
MERCEDES
(Incrédula) Do habitual?! Qual? Não dei por nada! (Aflita) Não sei de
nada!
SARA
(Com ironia) É claro que não deste por nada! Desde o Verão
para Gil, que retoma o seu lugar, no sofá.)
Neste momento, ainda não sei responder à tua pergunta, filho.
(Pausa breve) Para já, o Pai e eu decidimos separar‐nos.
SARA
(Preocupada) Quando foi que decidiram isso?!
MERCEDES
(Muito pesarosa.) Hoje mesmo. (Pausa breve) Cheguei mais tarde a
casa, precisamente porque estive a conversar com o vosso Pai e decidimos
que, amanhã, ele vem cá buscar algumas das suas coisas e vai passar uns
tempos em casa da tia Madalena. (Pausadamente) Mais tarde,
resolveremos o que vamos fazer da nossa vida. (Pausa. Respira fundo.) É
melhor assim, podem crer.
GIL
(Espantado) É?!
SARA
(Cautelosamente, virando‐se para o irmão) Os pais é que sabem, Gil.
(Pausa breve) De qualquer forma, nós os dois já tínhamos percebido que
havia alguma coisa errada com os pais. (Virando‐se para a Mãe) Até já
tínhamos falado do assunto, só que não pensámos que fosse assim tão...
grave.
MERCEDES
Pois é, queridos... (Pausa) Evidentemente, o Pai também há‐de falar
convosco e com o Sérgio, quando ele puder.
GIL
(Em voz baixa) Duvido...
tempo não quer sair de casa... (Pausa breve) Depois, terei de conversar
com ele, noutra altura, se ele tiver disposição para me ouvir... (Pausa
breve) Bem, mas o que eu tenho para vos dizer é, realmente, grave, e peço
que me desculpem pela tristeza que vos vou causar com a notícia...
SARA
(A medo) A... notícia?
MERCEDES
(Pausadamente) Como, certamente, já se aperceberam, o vosso Pai
quase não tem posto os pés cá em casa, ultimamente.
GIL
(Atrapalhado) É que o Pai tem tido imenso trabalho!
MERCEDES
(Forçando um sorriso) Não é só isso, Gil. Não se trata apenas de
trabalho. (Pausa. Respira fundo.) Acontece que o Pai e eu não estamos a
conseguir entender‐nos minimamente, compreendem? (Pausa) A nossa
vida, nos últimos tempos, tem sido muito difícil para ambos. (Pausa. Chora
discretamente. Tira um lenço do bolso e assoa‐se.) Enfim, as coisas entre
nós têm sido bastante diferentes do que costumavam ser, percebem? (Fica
cabisbaixa.)
SARA
(Assentindo, com um gesto de cabeça) Hum‐hum...
GIL
(Aflito, levanta‐se.) Queres dizer que tu e o Pai se vão divorciar?!
MERCEDES
(Volta a assoar‐se. Respira fundo e endireita‐se no cadeirão, olhando
passado, ninguém dá por nada que tenha a ver com o Sérgio...
MERCEDES
(Alarmada) Mas de que é que tu estás a falar, Sara?! (Elevando o
tom de voz) Diz, de uma vez por todas! Já estou a ficar nervosa, não vês?!
SARA
Pelos vistos, ainda não reparaste que, desde que o Pai trouxe o
computador para o Sérgio, só para sua excelência, com direito a Internet e
tudo, ninguém mais lhe pôs a vista em cima, a não ser nas horas em que é
obrigado a estar na escola. (Pausa. Olha para a Mãe com incredulidade.)
Será que ainda não tinhas mesmo dado conta de que o Sérgio
praticamente desapareceu?! Ninguém consegue falar com ele, nem os
amigos. (Indignada) Tu e o Pai, ultimamente, parece que não se
apercebem de nada e andam sempre com cara de chateados...
MERCEDES
(Um pouco embaraçada) Ó filha, isso é porque temos andado...
(Pausa breve. Dirige o olhar para o chão.) Olha , é porque a vida não nos
tem corrido bem, é isso.
SARA
(Preocupada) Mas... é grave?
MERCEDES
(Olhando novamente para o chão) Não, filha. Espero que não seja
grave. (Pausa breve) Enfim, toda a gente tem problemas, de vez em
quando, não é?
SARA
(Levanta‐se, vai dar um beijo à Mãe e regressa ao sofá, voltando a
pegar no livro de História.) Hoje, ainda tenho de conseguir ler até à página
cinquenta, ou melhor, tenho de ver se consigo decorar esta treta...
MERCEDES
(Levantando‐se e recolhendo a pasta e a carteira) E eu tenho de ir
tratar do jantar, embora não me apeteça... (Olha o relógio de pulso.) Já são
sete horas! (Preocupada) E o teu irmão mais novo ainda não veio da
natação! Bem, quando o Gil chegar, pergunta‐lhe se tomou banho lá no
clube, ouviste? Se não tomou, que vá depressa tomar um duche, que eu
quero jantar às oito, para não perder a novela.
SARA
(A medo) E... o Pai?
MERCEDES
(Morde o lábio) nervosa.) O Pai não vem. Não pode. Acho que tem
um jantar com uns colegas lá do banco.
SARA
(Incrédula) Mais outro?! É a segunda vez que o Pai não vem jantar
esta semana e ainda é quinta‐feira... (Pausa breve) Dantes, era tão raro o
Pai não vir jantar a casa... (Suspira)
(Sai Mercedes.)
CENA 2
GIL
(Entrando na sala, poisa a mochila e o saco de desporto no chão e dá
um salto para o cadeirão, ficando quase deitado) Ufa! 'Tou estoirado!
muito sério.
SARA
(Assustada, levanta‐se.) Morreu alguém?! Houve algum acidente?!
MERCEDES
(Calmamente) Volta a sentar‐te, filha. (Pausa breve) Não, não
morreu ninguém nem houve acidentes, graças a Deus.
SARA
(Sentando‐se novamente junto do irmão) Então?
GIL
(A medo, virando‐se para a Mãe) Tem a ver... contigo e com o Pai,
não tem?
SARA
(Nervosa) É isso, Mãe?!
MERCEDES
(Pesarosa) É isso mesmo. (Virando‐se para Gil) Ó filho, desliga a
televisão por um bocado, se não te importas...
GIL
(Desliga a televisão.) Pronto. (Em tom afável) Podes falar à vontade.
MERCEDES
(Apertando as mãos uma na outra, muito constrangida)
Na verdade, não há assim muito para dizer, por enquanto... (Pausa
breve) Eu gostava que o Sérgio estivesse aqui connosco esta noite, para
não ter de repetir o que vos vou dizer e que muito me custa... (Pausa.
Suspira.) Mas, enfim, o Sérgio resolveu sair logo hoje, ele que há tanto
MERCEDES
(Com ar grave) Ó Sarinha, deixa o copo aí na mesa e vem sentar‐te
aqui ao pé de nós, filha.
SARA
(Surpreendida) Mas ainda não acabei de levantar a mesa!
MERCEDES
(Pausadamente) Não faz mal. (Com ternura) Vem aqui para ao pé do
teu irmão, que eu preciso muito de falar convosco.
SARA
(Poisa o copo na mesa e vai sentar‐se ao lado de Gil.) Pronto. Já aqui
estou. (Pausa breve. Vira‐se para a Mãe.) Nem parece teu quereres que a
mesa fique por levantar...
MERCEDES
(Pausadamente) Uma vez não são vezes e eu preciso muito de ter
uma conversa com os meus filhos...
SARA
(Olhando para Gil e, depois, para a Mãe) Uma conversa?...
MERCEDES
(Triste) Sim. (Pausa breve) E bem séria!
GIL
(Com algum nervosismo) Diz lá o que aconteceu, Mãe! Só gramo
suspense nos filmes de ficção científica.
MERCEDES
(Em tom solene) O assunto não é uma brincadeira, Gil! Já disse que é
SARA
(Com o livro de História no colo, olhando para o irmão mais novo) Já
não se cumprimenta, Gil?
GIL
'Tou demasiado cansado para cumprimentos... (Pausa breve) Hoje, o
professor de natação acabou contigo. (Levando a mão ao ombro esquerdo,
com uma expressão de dor) Acho que desloquei a clavícula esquerda...
(Endireita‐se no cadeirão e massaja os joelhos com as mãos.) As minhas
rótulas também não estão grande coisa, não...
SARA
(Rindo‐se) Pelos vistos, a natação está a dar cabo de ti, puto... Tss...
Andas a fazer demasiado desporto, é o que é...
GIL
Sempre é melhor do que passar horas sentado no quarto, como o
Sérgio! Qualquer dia, levanta‐se da cadeira e não se aguenta nas canetas...
(Indignado) Passa a vida sentado! Aquilo até faz mal à coluna. À coluna e
aos olhos! Sim, porque o Sérgio, não tarda muito, fica cego de tanto olhar
para aquele ecrã e lá teremos de ir fazer um peditório para um transplante
de córneas, que deve custar uma pipa de massa. Isto p'ra já não falar de
osteoporose... Os ossos dele já devem 'tar a entrar em decomposição,
sobretudo os das mãos e dos pulsos...
SARA
(Rindo‐se à gargalhada) Ó miúdo, desde quando é que um
adolescente tem osteoporose?! És maluco! Isso é doença da terceira
idade. Não ataca antes dos quarenta.
GIL
(Incrédulo) Não sei, não... (Pausa breve) Desde que o Sérgio tem um
computador só p'ra ele, deixou de se mexer, parece um velhinho. Tu já
viste como ele anda agora, Sara? Um dia destes, vi‐o a subir as escadas lá
da escola e parecia um robô empenado! Até metia dó.. . Estive quase a
perguntar‐lhe se não queria um bocado de óleo nas dobradiças, mas achei
que seria humilhante, à frente do pessoal...
SARA
(Sorrindo) Que exagero, Gil... Ah! É verdade! A Mãe mandou‐me
dizer‐te para ires tomar duche depressa, que não quer atrasos para o
jantar.
GIL
(Indignado) Mas quantos duches é que a Mãe quer que eu tome por
dia, afinal? Tomei um, logo de manhã, ainda a dormir com o olho
esquerdo; outro depois da natação, com água gelada, que o esquentador
devia estar avariado, e ainda tenho de tomar mais um?! Fogo! Por este
andar, fico sem pele e mais cor‐de‐rosa do que um hamster recém‐
‐nascido!
SARA
(Sorrindo) Se já tomaste lá no clube, não precisas de mais, lógico.
(Retoma a leitura do livro que tem no colo.)
GIL
E o Pai?
SARA
(Olhando para o livro) Não vem jantar…
comando da televisão e baixa o som.) Diz lá, Mãe. (Pausa breve) A Sara?
'Tá lá dentro, no quarto do Sérgio, ao computador. (Pausa) Não. O Sérgio
ainda não chegou. Ah! É verdade, ele ligou à Sara a avisar que não vem
jantar. (Pausa) Não sei, Mãe. Acho que ele tentou falar contigo, mas tu
tinhas o telemóvel desligado. (Pausa) O Pai também ligou a dizer que não
vem. (Pausa breve) Ah, já sabias... (Pausa breve. Levanta‐se e dá uns
passos.) Traz uma piza grande para casa, com camarões, atum e
cogumelos, okay? E eles que ponham dose reforçada de queijo, que
costumam ser forretas. Ah! E não te esqueças da Coca‐Cola, por favor, que
já cá não há nem uma gota. (Pausa. Com cara de enfado) 'Tá bem, eu
ponho a mesa. (Pausa breve) O quê? (Contrafeito) 'Tá bem, eu vou tomar
banho... Tchau, Mãe, beijinhos. Até logo. (Desliga o telemóvel e poisa‐o no
sofá. Faz ar refilão. Chega‐se à boca de cena.) Que mania de me mandar
tomar banho! Fogo! Ainda ontem tomei! (Subindo o tom de voz) 'Tou farto
de banhos! Qualquer dia, ainda apanho uma alergia à água! (Pausa breve)
Ainda por cima, tenho de me despachar para vir pôr a mesa! Que seca... O
Sérgio nunca põe a mesa! (Começa a abandonar a sala devagar.) Ao Sérgio
nunca mandam tomar banho! O Sérgio pode fazer o que lhe apetece! Se o
Sérgio ficar enfiado no quarto até ganhar bolor, até lhe nascerem
cogumelos nas orelhas, ninguém lhe ralha! É uma injustiça!
(Sai Gil.)
CENA 6
(Na sala, ainda com a tolha e alguns copos sobre a mesa, estão
Mercedes, Sara e Gil. Mercedes está sentada no cadeirão. Gil está sentado
no sofá e liga a televisão. Sara está em pé, com um copo na mão. A luz do
candeeiro de pé está acesa.)
GIL
(Um pouco embaraçado) Pois é, a minha pergunta foi um bocado
estúpida. (Pausa breve) É que, como disseste que a Vanda esteve cá,
pensei que...
SARA
(Arreliada, sobe o tom de voz.) Ora! Sei lá se o Sérgio combinou
alguma coisa com a Vanda! (Pausa breve. Retoma o tom de voz normal.)
Mas não deve ter combinado. Por aquilo que percebi, os dois já não saem
há uma data de tempo e ela está chateada a sério, o que não é de admirar.
O mais certo é a Vanda vir a dar‐lhe uma tampa em cheio quando ele
resolver lembrar‐se de que ela existe. (Elevando o tom de voz) E é bem
feito! (Pausa. Olha para o caderno e fecha‐o. Depois, empilha os livros que
estão sobre a mesa e levanta‐se.) Bem, vou arrumar a tralha no meu
quarto. Depois, já que o Sérgio não deve vir tão cedo, vou para o quarto
dele para o computador. Quero ver se encontro umas cenas na Net, para
um trabalho de História.
GIL
(Levantando‐se) E eu vou ver o que está a dar na televisão.
(Sai Sara com o seu material escolar. )
CENA 5
(Gil está sentado no sofá em frente da televisão ligada. Toca o seu
telemóvel e ele atende.)
GIL
'Tá? Sim? (Pausa breve) Ah, és tu, Mãe... Já te pintaram o cabelo?
(Pausa) Vou baixar o som da televisão, que não 'tou a ouvir bem. (Pega no
GIL
P’ra variar…
SARA
Iá…
GIL
Ouve lá, ‘tás a ler o quê, Sara?
SARA
(Irritada) Não estou a ler. Tenho estado a tentar estudar História,
ma já vi que, hoje, é impossível!
GIL
(Cauteloso) Não é preciso enervares‐te! Olha que o stresse pode
provocar ataques cardíacos e ainda és bué nova para uma cena dessas,
rapariga, além de que não quero ir ver‐te ao hospital. (Aparte) 'Tou bem
arranjado, sim senhora: o meu brilhante futuro é ter uma irmã cardíaca e
um irmão cego, surdo‐mudo e paralítico... Que família!... (Virando‐se para
a irmã, com ironia) Esse livro que aí tens deve ser, realmente,
interessante... Vais ter teste, é?
SARA
O que é que achas?! (Com ironia) Por acaso parece‐te que eu me ia
pôr a estudar História pelo enorme prazer que este livro me dá?!
(Indignada) Tens cada uma, Gil! É evidente que vou ter teste. (Preocupada)
E ainda não sei quase nada!
GIL
(Abanando a cabeça em jeito de reprovação) Tu preocupas‐te
demasiado, Sara. Isso faz‐te mal. (Pausa breve. Sobe ligeiramente o tom de
voz.) Tiras sempre boas notas! (Retoma o tom de voz normal.) Não sei por
que razão te enervas tanto só por causa de um teste de História. Julguei
que os escuteiros eram todos bué calmos...
SARA
(Com alguma ironia) Devo ser uma excepção... (Fecha o livro e
levanta‐se.) Bem, vou pôr a tralha no meu quarto e tu faz o mesmo, que a
Mãe não quer desarrumações aqui na sala. Ah! E, de caminho, bate à porta
do quarto do Sérgio e lembra‐lhe que, de vez em quando, é saudável fazer
uma refeição.
GIL
(Levantando‐se) 'Tás a passar‐te?! Não sabes que o Sérgio nem
sequer me ouve?
SARA
(Delicadamente) O Sérgio não ouve ninguém, Gil, mas isso não é
razão para desistirmos de comunicar com ele, pois não? Olha, vê isso
como uma...
GIL
(Sorrindo) Uma obra de caridade?
SARA
(Pausadamente) Eu diria... uma boa acção.
GIL
(Com ar de malandro) E qual é a minha recompensa para essa tal
boa acção, ó escuteira profissional?
SARA
(Com um sorriso) O prazer do dever cumprido.
muita bronco. (Pausa breve) Acho que não é coisa que costume atacar
pais.
(Toca o telemóvel e Sara atende.)
SARA
Diz, Sérgio... (Pausa) É que a Mãe deve ter o telemóvel desligado,
porque foi ao cabeleireiro. (Pausa) Ai não? (Pausa breve) 'Tá bem, eu digo
à Mãe. Tchau.
GIL
(Intrigado) O que é que o Sérgio queria?
SARA
Era para avisar que não vem jantar. Vai ao cinema, parece‐me.
GIL
(Surpreendido) Ao cinema?! Ganda novidade! Ele já não sai à noite
há séculos!
SARA
Também achei estranho. Se calhar, é porque há para aí algum filme
que ele faz mesmo questão de ver.
GIL
(Com muita curiosidade) E... vai sozinho ou acompanhado?
SARA
(Indignada) Sei lá, Gil! 'Tás armado em cusco? Como é que queres
que eu saiba se ele não me disse, hem? Achas que o Sérgio me dá
satisfações, por acaso? (Pausa breve) Ele nem aos pais conta nada...
acho que os pais vão...?
GIL
Iá.
SARA
(Atrapalhada) Ainda não tive coragem para pensar uma coisa
dessas, Gil, e acho bem que tu também não penses.
GIL
(A medo) Mas é uma possibilidade, não é?
SARA
(Cautelosamente) Não sei, Gil, a sério que não sei. Espero que não
seja nada assim tão grave. Pode ser que os pais estejam apenas numa fase
difícil...
GIL
(Pensativo) Fase difícil...
SARA
Pois. Sabes que é normal isso acontecer, não sabes? Os casais
passam por fases dessas, pelo menos é o que eu ouço dizer. (Retoma a
escrita.)
GIL
(Agitado, sobe o tom de voz.) O que eu ouço dizer é que cada vez há
mais divórcios! (Acalma‐se e baixa o tom de voz.) Essa cena de «fase
difícil», como tu dizes, é mais para os filhos, ou melhor, para os
adolescentes, não é? (Pausa breve) Olha, por exemplo, o Sérgio 'tá de
certeza numa dessas fases, só que, em vez de lhe chamar «difícil», chamo‐
‐lhe «fase bué da estúpida», como se ele tivesse sido atacado por um vírus
GIL
(Torce o nariz e suspira.) Já . Vai ser cá um prazer que nem
imaginas... (Pausa breve) Ainda levo com um almofadão na cabeça e dois
berros em linguagem cibernética...
(Saem ambos de cena, transportando os seus haveres.)
CENA 3
(Mercedes, Sara e Gil estão na sala, a jantar.)
MERCEDES
(Virando‐se para o filho mais novo) Chamaste o teu irmão, Gil?
GIL
(Entre duas garfadas) Chamei, Mãe.
MERCEDES
Tens a certeza, filho?
GIL
Queres que eu repita o que lhe disse? (Pausadamente e com voz
paternal) Foi assim: «Sérgio! O jantar está na mesa! Despacha‐te.»
(Voltando ao tom de voz normal) Acredito que ele tenha descodificado
pelo menos cinquenta por cento da mensagem...
SARA
Não acredito, Gil. (Com ironia) Se tivesses falado em inglês, tinhas
tido mais hipóteses... (Pausa breve) O Sérgio deixou de falar português há
vários meses.
MERCEDES
(Com alguma tristeza) Ó filhos, que modos são esses de falarem do
vosso irmão?!
SARA
(Olhando para o Gil e, depois, para a Mãe) Nós só dissemos a
verdade! Tu e o Pai são os únicos que ainda não perceberam...
MERCEDES
(Começando a levantar os pratos) Ainda não percebemos o quê,
Sarinha? Vocês andam sempre a implicar com o vosso irmão mais velho!
Que coisa!
GIL
(Com brandura) Esquece, Mãe! (Pausa breve) O Sérgio está a ter
uma adolescência banal: deixou de ouvir, deixou de falar, deixou de comer
à mesa, deixou de dormir de noite para andar a dormir na escola, deixou
de se dar com a maioria dos amigos, deixou de fazer desporto, deixou a
Vanda à seca uma data de vezes, deixou de atender o telefone e... talvez
mais alguma coisa também sem importância de que não me lembro agora.
De resto, está tudo normal.
MERCEDES
(Com alguma indignação) Que exagero, Gil! Parece que estás a falar
de um extraterrestre, filho! (Com voz autoritária) Vai mas é chamar o teu
irmão outra vez, que ele não te deve ter ouvido.
GIL
(Levanta‐se e aproxima‐se da saída da sala, gritando) Sérgio! O
jantar 'tá em vias de extinção e o molho dos bifes já congelou! (Volta para
GIL
(Assentindo com um gesto de cabeça) Podes crer!
(Toca o telemóvel de Sara e ela atende.)
SARA
Sim, Pai. (Pausa breve) Não sei. Acho que a Mãe foi ao cabeleireiro.
(Pausa) Pois, deve ter o telemóvel desligado. (Pausa breve) Ai não? (Pausa)
'Tá bem, eu digo‐lhe, mas, Pai, hoje é sábado! Vais trabalhar à noite num
sábado?! (Pausa) Okay. (Pausa breve) Fica descansado, que eu aviso a
Mãe. Tchau. (Desliga o telemóvel e coloca‐o sobre a mesa.)
GIL
(Com cara de caso) Já vi que o Pai também não vem jantar hoje...
SARA
Estranho, não é? Quero dizer, não percebo porque é que ele não
vem jantar e sai para trabalhar a seguir. Sempre comia connosco, não era?
GIL
(Intrigado) Que desculpa é que ele deu desta vez?
SARA
(Retomando a escrita) A mesma de sempre, que tem muito que
fazer e que, se vier a casa para jantar, perde muito tempo...
GIL
(Coça a cabeça, morde o lábio e fica pensativo.) Ouve lá, Sara, tu já
alguma vez pensaste numa ideia péssima que me veio agora à cabeça
sobre o Pai e a Mãe?
SARA
(Pára de escrever e olha para o irmão.) Estás a querer saber se eu
GIL
(Surpreendido) A Vanda do... Sérgio?
SARA
Iá. Ela mesmo.
GIL
(Incrédulo) Não sabia que eles ainda andavam...
SARA
(Sorrindo) Pois é. Eu acho que ela também não sabe...
GIL
(Sorrindo com cumplicidade) 'Tou a ver...
SARA
(Indignada) É indecente! A Vanda é uma miúda impecável! O Sérgio
deixou de lhe ligar e nem lhe dá uma satisfação. (Elevando o tom de voz)
Se fosse comigo, eu ia ter com ele e dizia‐lhe das boas! É indecente! (Pausa
breve) Até fiquei com uma certa pena dela, sabes?
GIL
(Descontraidamente) Eu cá tenho pena é dele! Ele é que é parvo!
(Entusiasmado) Se eu, um dia, tiver a sorte de conseguir conquistar uma
miúda como a Vanda, de certeza que não a largo!
SARA
O Sérgio deve é estar a ficar cego. (Com ironia) Aquilo é de tanto
olhar para o computador... Bem me parecia que havia de ter efeitos
secundários...
o seu lugar, à mesa, onde começam a comer a fruta.)
MERCEDES
(Em voz baixa) Realmente, aquele rapaz tem chegado sempre
atrasado ao jantar...
SARA
(Em voz baixa, piscando o olho ao Gil) Se fosse só ao jantar...
MERCEDES
O que foi que disseste, Sarinha?
SARA
Nada, Mãe. Estava só a pensar em voz alta no meu teste de
História... Ainda tenho imenso que estudar!
MERCEDES
E tu, Gil? Vais ter algum teste nos próximos dias?
GIL
(Em tom dramático) Eu sou um desgraçado... Tenho testes todas as
semanas! Montes e montes de testes... (Pausa breve) Os profes têm um
prazer sádico em marcar testes. Fogo! Nunca pensei que o sexto ano fosse
tão pesado! (Elevando o tom de voz) Ninguém me avisou! E estava eu
convencido de que era uma grande coisa passar no quinto ano... Sou um
ingénuo...
SARA
(Sorrindo) Vai‐te preparando, Gil... O sétimo é pior e o oitavo, então,
nem se fala... (Pausa breve. Eleva ligeiramente o tom de voz.) Ou estudas
todos os dias ou... 'tás feito.
GIL
(Com ironia) Obrigadinho pelo consolo, mana. Fiquei comovido com
a tua atitude, palavra! Essa deve ter sido a tua boa acção do dia, aposto. Se
calhar, também me inscrevo nos escuteiros e tenho a certeza de que passo
logo a ser uma pessoa bué da fixe como tu. O meu azar é que não gramo
fardas... Mas pode ser que me habitue.
SARA
(Serenamente) Foi só para não voltares a dizer que ninguém te
avisou...
MERCEDES
(Preocupada) E o vosso irmão que não vem!
SARA
Deixa lá, Mãe. (Com ironia) O Sérgio alimenta‐se de bites e, por
enquanto, é feliz...
GIL
(Com expressão pensativa) Como é que se chamará um sujeito que
se alimenta de bites? (Pausa breve) Naturalmente, um baitívoro... (Dá uma
palmada na testa.) É isso! (Levanta‐se e dá um espalhafatoso aperto de
mão à Mãe.) Parabéns, Senhora Dona Mercedes! Deu à luz um ser original!
(Volta a sentar‐se.) O nosso irmão é o primeiro homo‐sapiens baitívoro!
(Pausa breve) Ou melhor, homo‐baitívoro, que quanto ao sapiens, não sei
não...
SARA
(Com ironia) Eu diria antes dróide‐cibernauta‐baitívoro, porque
quanto ao homo, não sei não... (Pausa) O Sérgio tornou‐se uma espécie
GIL
A Mãe?
SARA
(Sem fitar o irmão) Viste‐a cá em casa?
GIL
Não!
SARA
(Irritada, olha para o irmão.) Então achas que ela se escondeu
debaixo da almofada do sofá, é? (Retoma a escrita.)
GIL
(Arregalando os olhos) Pronto! Não é preciso enervares‐te, Sara.
Fogo! (Fazendo‐se de vítima) Só fiz uma pergunta inofensiva...
SARA
(Pára de escrever e olha para o irmão.) Desculpa, Gil. (Pausa breve)
'Tou com pouca pachorra, percebes?
GIL
(Amuado, levanta‐se.) Não sou burro...
SARA
(Em jeito de desculpa) Eu sei. Toda a gente sabe. (Pausa breve) Não
é nada contigo, Gil. São outras cenas... (Pausa breve) Quanto à Mãe, foi ao
cabeleireiro para lhe fazerem madeixas.
GIL
(Voltando a sentar‐se junto da irmã) Hum...
SARA
(Com voz amigável) Esteve cá a Vanda!
VANDA
(Consultando o relógio de pulso) Bem, agora tenho mesmo de ir
andando, Sara. (Levanta‐se.) Quando o Sérgio chegar, não lhe digas que
estive cá.
SARA
(Surpreendida) Porquê?!
VANDA
(Desanimada) Ora! Nem vale a pena. Depois, se me apetecer,
telefono‐lhe e talvez ele atenda o telemóvel, para variar... Senão,
paciência. (Encaminha‐se para a saída.)
(Sara levanta‐se e acompanha Vanda, que sai.)
CENA 4
(Sara está sentada à mesa de jantar a escrever num caderno. Há
manuais escolares sobre a mesa.)
(Entra Gil.)
GIL
Não 'tá ninguém em casa?
SARA
(Virando‐se para o irmão, abespinhada) Que eu saiba, sou gente!
GIL
Olá, Sara! (Aproxima‐se da irmã e senta‐se ao seu lado, à mesa.) 'Tás
a estudar?
SARA
(Com ironia) Não... 'Tou a escrever um romance...
única, um ser mecânico, um autómato permanentemente on line.
MERCEDES
(Rindo‐se) Tantos disparates que vocês dizem do Sérgio... O que vale
é que ele não vos ouve... (Pausa breve) Bem, vamos levantar a mesa,
meninos, que tenho de despachar‐me para não perder a novela. Sempre
quero ver se o palerma do Eleutério volta a conquistar a Eliane, coitadinha,
que já sofreu tanto...
GIL
(Pausadamente) Não sei quem são esses, mas o tal Eleutério, com
um nome assim, não conquista nem uma galinha coxa...
(Saem de cena, levando os pratos para a cozinha.)
CENA 4
(Sérgio está sentado na sala, às escuras, a comer uma maçã, deitado no
sofá. O Pai entra e acende a luz do candeeiro, que não incide sobre Sérgio.)
RUDOLFO
(Pousando a pasta no chão) Boa noite, Sérgio! (Surpreendido) Tão
tarde e ainda aqui estás na sala, filho?!
SÉRGIO
(Entre duas dentadas na maçã) Iá.
RUDOLFO
(Sentando‐se no cadeirão, com ar cansado) Que dia! Nem calculas!
(Tira a gravata e coloca‐a no braço do cadeirão.) Depois de uma reunião
de três horas, ainda tive de aturar uns tipos complicadíssimos ao jantar! Se
um deles não tivesse de apanhar um avião esta noite, ainda lá estávamos
agora, no restaurante... Que estafa! (Pega no comando da televisão e vai
vendo rapidamente o que aparece nos vários canais. Depois, desliga a
televisão.) Não há nada de jeito na televisão, como sempre...
SÉRGIO
Iá...
RUDOLFO
Estou cansadíssimo, mas sem sono... E tu, filho?
SÉRGIO
Hã?
RUDOLFO
Estiveste a estudar até a esta hora, Sérgio?
SÉRGIO
Hum‐hum.
RUDOLFO
Acho bem. (Com ar solene) O nono ano é de grande
responsabilidade! (Pausa) Os teus irmãos já se foram deitar?
SÉRGIO
Hum‐hum.
RUDOLFO
Tu também devias ir, filho... (Pausa breve) Ultimamente, parece que
tens tido alguma dificuldade em te levantares a horas, de manhã.
(Preocupado) Vê lá!
SÉRGIO
(Descontraidamente) No problem.
SARA
(Pensativa) Talvez a crise dos meus pais também venha a passar...
Espero que sim!
VANDA
E o Sérgio? Já falaste com ele sobre isso? SARA (Peremptória)
Impossível! Não dá para falar com o Sérgio sobre nada. Ele só tem tempo
para o computador. (Pausa breve) Se queres saber, dá‐me ideia de que o
Sérgio ainda nem se deve ter apercebido do que se passa entre os meus
pais.
VANDA
(Incrédula) Achas?!
SARA
(Pausadamente) Sinceramente, acho.
VANDA
(Surpreendida) Mas ele anda assim tão distraído?
SARA
Já te disse! Ele não liga a ninguém. Parece um estranho, palavra!
(Pausa breve) Eu também gramo jogar no computador, ver coisas na
Internet, etc., mas o meu irmão tornou‐se um fanático, um informático‐
‐dependente, se é que a palavra existe...
VANDA
E eu que pensava que era só a mim que ele não ligava... (Suspira.)
SARA
Pois é...
VANDA
Problemas?...
SARA
Sim... (Baixa o tom de voz) Problemas entre eles, 'tás a ver? (Pausa.
Desvia o olhar para o chão.) O meu Pai nem tem vindo jantar a casa nem
nada. Chega todos os dias tardíssimo, quando já estamos todos a dormir,
incluindo a minha Mãe. E, nos raros dias em que vem jantar, não abre a
boca a não ser para avisar que não contem com ele no dia seguinte. Então,
a minha Mãe põe‐se a olhar para ele com uma cara esquisita e ele cala‐se
imediatamente e faz‐se um silêncio insuportável, percebes?
VANDA
Percebo. Os meus pais também já tiveram uma crise dessas, há dois
anos, mas foi porque a minha Mãe andava a fazer um curso por causa da
empresa onde trabalha e tinha de ser o meu Pai a fazer o jantar, o que ele
detestava... (Pausa) Havia cada cena... Nessas alturas, eu nem me atrevia a
dizer uma única palavra, porque me dava a sensação de que tudo poderia
desmoronar‐se a qualquer momento, por qualquer razão, mesmo a mais
insignificante.
SARA
(Interessada, vira‐se para Vanda.) E como foi que eles ultrapassaram
essa crise?
VANDA
Olha, se queres que te diga, não sei bem. A verdade é que, quando a
minha Mãe acabou o tal curso, voltaram a dar‐se melhor os dois e
deixaram de implicar comigo.
RUDOLFO
(Preocupado) Precisas de dormir, pelo menos, oito horas, filho.
Quem anda a estudar, precisa de ter a cabeça bem fresca, logo de manhã.
Poucas horas de sono impedem um bom rendimento escolar, Sérgio, estás
a ouvir, filho?
SÉRGIO
Iá.
RUDOLFO
Então, visto que não há nada de jeito na televisão e tu não estás
para grandes conversas, é melhor irmos deitar‐nos, que já não é nada
cedo.
SÉRGIO
(Encolhe os ombros e levanta‐se devagar.) Okay.
(Rudolfo apaga a luz do candeeiro e saem ambos de cena.)
SARA
Não vás, ainda, Vanda! O Sérgio não está, mas estou eu! (Pausa
breve) Podíamos conversar mais um bocado... (Sorri amigavelmente.)
Como é que te tem corrido a vida, na escola?
VANDA
Na escola, 'tá tudo bem. (Com tristeza) No resto é que nem por
isso...
SARA
(Com um sorriso discreto) Estás a referir‐te ao... meu irmão?
(Atrapalhada) Desculpa, não me quero intrometer! Esquece a minha
pergunta, sim? (Pausa breve) É que, ultimamente, o Sérgio até me faz
impressão, sabes? Mudou tanto!
VANDA
(Intrigada) O que é que queres dizer com isso? Pensei que era só
comigo que ele estava diferente…
SARA
(Em voz alta) Nem penses! (Pausadamente) O Sérgio está diferente
em tudo. (Voltando a subir o tom de voz) Tudo! (Indignada) Até deixou de
comer connosco!
VANDA
(Surpreendida) E os teus pais não lhe dizem nada?!
SARA
Sei lá! (Pausa. Pega no comando e desliga a televisão. Baixa o tom
de voz.) Olha, Vanda, peço‐te que não comentes isto com ninguém, mas
dá‐me ideia de que os meus pais estão a ter problemas...
SARA
Realmente, ele costuma estar em casa, Vanda, sempre enfiado no
quarto, só que teve de sair para ir comprar uma coisa...
VANDA
(Muito surpreendida) O Sérgio foi às compras?! Que novidade!
Julguei que ele detestava fazer compras! (Pausa) Enfim, é mais uma prova
de que não conheço o teu irmão, apesar de, durante anos, ter pensado o
contrário... (Suspira.)
SARA
Acho que ele continua a detestar ir às compras, Vanda, só que
parece que lhe faltou papel para a impressora, ‘tás a ver...?
VANDA
Ah... (Abespinhada) Claro! Ao computador não pode faltar nada...
(Pausa) Será que ele ainda se vai demorar muito, Sara?
SARA
(Constrangida) Parece‐me que 'tás com azar... Ele acabou de sair...
VANDA
Se foi ao centro comercial, nunca mais se despacha. Aos sábados, o
centro está sempre à cunha...
SARA
Pois é. (Com uma certa tristeza) Lamento, Vanda...
VANDA
Bem, vou andando.
ACTO II
CENA 1
CENÁRIO B – Gabinete da directora de turma
(A Directora de Turma de Sérgio) Professora Antonieta, está em pé,
junto da secretária e cumprimenta a mãe do aluno, Mercedes.)
ANTONIETA
(Apontando o sofá em frente da secretária) Faça o favor de se
sentar, Senhora Dona Mercedes. (Senta‐se na cadeira, abre um dossiê e
franze o sobrolho.) Hum... Ora aqui está... (Levantando a cabeça na
direcção da mãe do Sérgio) Tal como lhe disse pelo telefone, temos uns
problemas para tratar...
MERCEDES
(Apertando uma mão na outra, com nervosismo) Nada que,
certamente, não se possa resolver. (Pausa breve) É por causa dos atrasos
do meu filho, não é?
ANTONIETA
Bem, os atrasos do Sérgio são um dos problemas. (Pausa breve) Há
mais...
MERCEDES
(Sorrindo amigavelmente) A senhora doutora já é directora de turma
do Sérgio há dois anos, conhece‐o bem. Sabe que ele é capaz de se
esforçar quando lhe chamamos a atenção. (Pausa) Eu reconheço que,
ultimamente, o meu filho tem tido dificuldade em se levantar a horas, de
manhã, mas suponho que é da idade, ou melhor, da fase que ele está a
atravessar.
ANTONIETA
(Com expressão séria) Não sei se é da idade ou não, Senhora Dona
Mercedes. Os colegas dele também têm, na maioria dos casos, catorze
anos e não é por isso que passaram a chegar quase sempre atrasados à
primeira aula da manhã. (Indignada) Sim, porque é raro o Sérgio chegar a
horas à primeira aula. (Elevando um pouco o tom de voz) Raro não,
raríssimo! Na semana passada, por exemplo, não chegou à hora nem um
único dia! (Recuperando o tom de voz normal) Ora, como deve
compreender, isso perturba o normal funcionamento das aulas. Recebi
queixas de todos os professores que lhe dão a primeira aula em cada dia!
(Elevando o tom de voz) Todos se me têm queixado! (Com ar solene) Isto
não pode continuar...
MERCEDES
(Com algum nervosismo) Desculpe a minha pergunta, mas já falou
com o Sérgio sobre este problema?
ANTONIETA
(Arreliada) Já falei várias vezes! (Elevando o tom de voz) Várias
vezes! (Indignada) Pede‐me desculpa, diz‐me sempre que não volta a
chegar atrasado e, depois, é o que se tem visto...
PASCOAL
(Tira um CD do bolso do blusão e entrega‐o a Sara.) Ah! E, já agora,
se não for pedir‐te muito, dá este CD ao teu irmão, que é dele e ainda não
consegui devolver‐lho. (Dá‐lhe um beijo.) Tchau, Sara. Diverte‐te lá nos
escuteiros!
SARA
(Animada) Podes crer! Estou a precisar de apanhar ar e o
acampamento da próxima semana vem mesmo a calhar! Eu acompanho‐
‐te.
(Saem ambos.)
CENA 3
(Sara está sentada na sala a ver televisão. Já tirou o uniforme de
escuteira e está vestida como no ACTO I.)
(Entra Vanda. Sara levanta‐se para a cumprimentar.)
SARA
(Com um sorriso afável) Senta‐te, Vanda! Fica à vontade! Há muito
tempo que não aparecias por cá!
VANDA
(Sentando‐se) Pois é... (Pausa breve) Vinha ver se conseguia falar
com o teu irmão...
SARA
(Constrangida) Lamento, mas o Sérgio não está...
VANDA
(Surpreendida) Não está?! Mas hoje é sábado! Pensei que...
quando lhe fazem perguntas... (Pausa breve) 'Tá pior do que eu pensava!
PASCOAL
Não é que não fale, mas fala muito menos, sem dúvida. No sábado
passado, desatinei com ele: tinha bilhetes para o futebol e ele deu‐me
uma tampa à última hora. Passei‐me! Depois, lá arranjou uma desculpa
qualquer, uma cena que tinha a ver com o facto de os teus pais quererem
que fossem todos visitar não sei quem, uma tia vossa, parece‐me. Lógico
que não engoli, mas achei que não valia a pena dar‐lhe troco. (Pausa)
Fogo! Não sei o que deu ao Sérgio, palavra! Eu também tenho
computador, só que é para mim e para a minha irmã, e está na sala
pequena lá de casa. É evidente que gramo jogar e navegar, mas não sou
fanático! Há outras coisas na vida! Se há! O gajo deve 'tar é viciado! Desde
que o vi desistir do basquete, percebi que ele tinha mudado...
SARA
(Com um sorriso amargo) Só os meus Pais é que ainda não viram
isso...
PASCOAL
(Sorrindo) É normal que os cotas sejam sempre os últimos a ver o
que quer que seja... (Trocista) A partir de certa idade, a miopia é
galopante... (Consulta o relógio de pulso.) Já é tarde... Não vou poder
esperar mais, Sara. (Levantando‐se) Se não te importas, diz ao Sérgio que
deixe o telemóvel ligado, para variar... Talvez consiga falar com ele logo à
noite...
SARA
(Levantando‐se) Okay, eu digo‐lhe, se conseguir vê‐lo nos próximos
tempos, mas não garanto nada, sabes como é...
MERCEDES
(Forçando um sorriso) Mas disse‐me, há pouco, que havia mais
problemas...
ANTONIETA
(Com determinação) Se há! Há muito tempo que o Sérgio não é
capaz de se concentrar nas aulas. (Irritada) Nas minhas, por exemplo, está
sempre na lua! Sempre absorto. Não tira apontamentos, não traz o
manual, não me entregou dois trabalhos de casa... (Pausa breve) Ainda
ontem lhe pedi para ler e não sabia em que página íamos! E não é só nas
minhas aulas que isto tem acontecido, não!
MERCEDES
(Cabisbaixa) Estou a ver...
ANTONIETA
(Suavizando a expressão e moderando o tom de voz) Parece‐me
imprescindível que a senhora tenha uma conversa muito séria com o seu
filho, o mais brevemente possível. (Elevando um pouco o tom de voz) O
nono ano exige mais responsabilidade dos alunos, e o Sérgio devia saber
isso! Insisto para que fale com ele e lhe faça ver que assim não pode
continuar, sob pena de não conseguir atingir os objectivos mínimos...
MERCEDES
(Preocupada) Bem, eu não gostaria que ele atingisse apenas os
objectivos mínimos... (Agitando‐se no sofá e mexendo nervosamente no
cabelo) Para o ano já vai para o Secundário!
ANTONIETA
(Com serenidade) Por tudo isso, bem vê que é fundamental
conversar com ele sobre este comportamento.
MERCEDES
(Em voz baixa) Mas é tão difícil falar com o Sérgio! (Pausa breve)
Nem calcula...
ANTONIETA
(Surpreendida) Julguei que ele tinha uma boa relação com a
família... (Pausa breve) Nos anos anteriores, não tivemos qualquer
problema com ele, pelo contrário! Até tinha um comportamento muito
razoável. (Cautelosamente) Houve assim alguma... mudança especial na
vida do Sérgio que queira partilhar comigo?
MERCEDES
(Nervosa) Mudança? Não. Que eu me tenha apercebido, o meu filho
não sofreu nenhum trauma, não teve um problema grave, não... (Pausa.
Volta a mexer nervosamente no cabelo.) Bem, a verdade é que ele, dantes,
convivia mais connosco. (Pausa breve) Os meus outros filhos até têm feito
alguns comentários sobre este assunto.
ANTONIETA
(Intrigada) E a que se deverá esse isolamento do Sérgio?
MERCEDES
Olhe, na realidade, não sei bem.
ANTONIETA
Alguns dos nossos alunos passam demasiadas horas em frente da
televisão ou do computador. Talvez o Sérgio tenha televisão no quarto e
ande a adormecer muito tarde, será?
PASCOAL
Bem, p'ra dizer a verdade, não tenho conseguido falar com ele,
ultimamente. Só nos vemos na escola e ele 'tá sempre com tanto sono que
parece um zombie... (Pausa breve) Um dia destes, um gajo lá da turma
disse‐lhe que ele devia 'tar pedrado e o Sérgio abanou com a cabeça a
dizer que sim só p'ra não ter de responder... (Pausa) Ele teve alguma cena
cá em casa, qualquer problema?
SARA
Que eu saiba, não. Mas a verdade é que eu também não sei quase
nada do Sérgio. (Suspira.) Nem eu nem ninguém... (Pausa breve) Desde
que o meu Pai lhe comprou o computador e se fez a ligação à Net que ele
emigrou, 'tás a ver? É como se já não morasse aqui. (Pausa breve) Hoje,
voltou a não almoçar connosco, porque se levantou tardíssimo.
PASCOAL
E o teu Pai? Não lhe pregou um sermão?
SARA
(Em voz baixa) O meu Pai também não veio almoçar...
PASCOAL
Os meus cotas desatinam se eu e a minha irmã não almoçamos com
eles no fim‐de‐semana. Temos de dar uma ganda desculpa para não haver
cenas.
SARA
Pois é, mas eu não sabia que nem contigo o Sérgio falava, Pascoal.
Essa, para mim, é novidade. Se nem contigo conversa, então é porque
deixou mesmo de falar por completo. Se calhar nem responde nas aulas,
CENA 2
(Sara, com uniforme de escuteira, está sentada no cadeirão. Pascoal,
colega e amigo de Sérgio, senta‐se no sofá.)
SARA
(Virando‐se para Sérgio) O Sérgio foi agora para a casa de banho,
Pascoal. (Com ironia) Com alguma sorte, talvez esteja pronto daqui a uma
hora...
PASCOAL
Fogo! Não sei se posso esperar assim tanto. Quero ir comprar um CD
e ainda tenho de passar em casa da minha avó, que faz hoje anos.
SARA
Pois é, mas o Sérgio demora cada vez mais para se arranjar.
(Elevando o tom de voz) Ainda mais do que a minha Mãe!
PASCOAL
(Com um sorriso) Se calhar, é por isso que tem chegado tantas vezes
atrasado às aulas...
SARA
Não! (Piscando o olho) Isso é outra história...
PASCOAL
(Incrédulo) Mistério?! O que é que foi? (Surpreendido) Alguma
miúda que eu não conheça?
SARA
(Sorrindo) Nada disso. O Sérgio tem lá tempo para raparigas! Já nem
liga à Vanda! (Surpreendida) Não sabias?!
MERCEDES
Não, os meus filhos não têm televisão nos quartos. (Pausa breve) O
que o Sérgio tem no quarto, para além da aparelhagem de música, é o
computador novo que o meu marido lhe comprou...
ANTONIETA
Ah... E, provavelmente, tem ligação à Internet.. .
MERCEDES
(Acenando afirmativamente com a cabeça) Pois tem. (Pausa breve.
Eleva um pouco o tom de voz.) Fartou‐se de pedir aquilo ao pai... Já nem o
podíamos ouvir! Dizia que todos os colegas tinham computador e que, sem
um, não podia apresentar trabalhos de casa como os professores esperam,
hoje em dia...
ANTONIETA
(Indignada) Mas isso não é verdade, Senhora Dona Mercedes.
Muitos dos colegas do Sérgio, talvez a maioria, não têm computador em
casa; muito menos um só para eles. (Com alguma ironia) E quanto aos
trabalhos de casa, o computador pode ajudar, mas, no nono ano, não se
pode dizer que seja imprescindível... (Com serenidade) De qualquer
maneira, não me parece que o problema seja o computador propriamente
dito, mas sim o tempo que o Sérgio deve passar a fazer jogos e a navegar
na Net... (Pausa breve) Com certeza, ele anda a deitar‐se tardíssimo e é
justamente por essa razão que não consegue levantar‐se a horas, de
manhã.
MERCEDES
(Aflita) Mas acha que devemos tirar‐lhe o computador?!
ANTONIETA
(Com calma) Eu não disse isso. O que acho é que é preciso impor
algumas regras, compreende? Não é nada saudável um rapaz de catorze
anos deitar‐se tarde todas as noites e até deixar de fazer desporto, que,
segundo me apercebi, foi o que aconteceu com o Sérgio. (Pausa breve) Ele
andava no básquete, não andava?
MERCEDES
Pois andava, mas disse‐nos que o horário dos treinos não lhe
convinha... Como não nos pareceu fundamental, deixámo‐lo desistir do
basquetebol, de facto... (Pausa) Isso para já não falar do Escutismo. Nunca
mais lá pôs os pés, alegando que era coisa para betinhos e não sei o que
mais...
ANTONIETA
(Com um sorriso) E de quantas mais actividades terá o Sérgio
desistido, Senhora Dona Mercedes? (Com ar grave) E para quê? Para estar
mais tempo no quarto em frente do computador?
MERCEDES
(Levantando‐se, nervosa) Bem, vou ter de conversar sobre tudo isto
com o meu marido...
ANTONIETA
(Levantando‐se e aproximando‐se de Mercedes) E com o Sérgio!
MERCEDES
(Sorrindo com algum embaraço) Claro! E com o Sérgio também...
(Com determinação) Não quero que ele volte a chegar atrasado às aulas!
(Aflita) Nem me conformaria que ele viesse a perder o ano!
para me dizer que o deixasse em paz!
MERCEDES
(Com delicadeza) Desculpe lá, Clementina. (Pausa breve) Aquele
rapaz anda numa fase...
CLEMENTINA
(Assentindo com um gesto de cabeça) Ai, pois deve andar, deve...
(Aparte) E que fase! (Vira‐se para a patroa que, embaraçada, vai mexendo
no cabelo.) Eu já o conheço desde que nasceu e não gosto nada de ver
como ele anda. A senhora desculpe, mas, se fosse meu filho, eu cá
obrigava‐o a deitar‐se mais cedo para se levantar a horas, sabe? (Pausa) Se
calhar, emprestaram‐lhe revistas dessas que só trazem poucas‐vergonhas
e é por isso que ele anda assim, meio desorientado... Já nem fala comigo
nem nada. Antigamente, ainda me contava umas anedotas... (Pausa)
Parece outro rapaz! Aquilo até lhe faz mal! (Indignada) Um rapaz de
catorze anos sempre enfiado no quarto! Ele precisa é de apanhar ar, de
sair com os amigos, como fazia dantes. Por falar nisto, há muito tempo que
não vejo por cá a menina Vanda. (Suspira.) Eles davam‐se tão bem os dois.
(Pausa breve) Olhe que já aconteceu ela telefonar a refilar que o menino
Sérgio não atendia o telemóvel e, quando fui avisar o Serginho, mandou‐
‐me dizer‐lhe que não estava em casa. (Suspira.) Qualquer dia, o menino
Sérgio fica sem amigos... (Pausa breve) Bem, já limpei a sala, vou ver se
arrumo os atoalhados lá dentro.
MERCEDES
(Levantando‐se) E eu vou ver se aquele rapaz se levanta!
(Saem ambas.)
MERCEDES
(Escrevendo) Amaciador. (Pausa breve) Ora bem, vou reler, para ver
se está tudo. (Relê em silêncio.) Julgo que a lista está pronta. (Suspira.)
Este sábado tinha tanto que fazer, mas não posso deixar de ir ao
supermercado. (Com ar de enfado) Que maçada! Sou sempre eu a ir às
compras! (Elevando um pouco o tom de voz) E detesto supermercados!
(Pausa breve. Vira‐se para a empregada.) Ó Clementina, já limpou os
quartos dos meninos?
CLEMENTINA
(Limpando a mesa de jantar) De todos, menos do menino Sérgio,
claro...
MERCEDES
(Indignada) Não me diga que o Serginho ainda está a dormir!
(Consulta o relógio de pulso.)Já passa das onze!
CLEMENTINA
(Continuando a limpar o pó) A Sarinha e o Gil saíram logo bem cedo,
como de costume. Já têm os quartos arrumadinhos. (Intrigada) Ó minha
senhora, o menino Sérgio anda a dormir mal de noite, anda? Dantes, ele
também se levantava cedo, ao sábado, para ir para os escuteiros com a
irmã... Há que tempos que não consigo dar uma boa arrumação ao quarto
daquele menino!
MERCEDES
Bateu‐lhe à porta?
CLEMENTINA
(Parando de limpar) Só me ouviu à terceira vez! (Indignada) E foi
ANTONIETA
(Despede‐se de Mercedes com um aperto de mão.) Conto consigo
para fazer ver ao Sérgio que está a pôr muita coisa em risco! (Sorrindo com
optimismo) Espero sinceramente que ele mude de atitude! Eu acompanho‐
a à porta.
(Saem ambas.)
ACTO III
CENA 1
CENÁRIO A – Sala da casa de Sérgio
(Na sala de casa do Sérgio, Mercedes está sentada no cadeirão a
fazer a lista das compras do mês. Clementina, a empregada, está a limpar
o pó da sala, com um pano, uma lata de spray para polir móveis e um
espanador.)
MERCEDES
(Consultando a lista que tem na mão) Ora vamos lá a ver se me
esqueci de alguma coisa aqui para a lista das compras. (Pausa breve)
Guardanapos de papel, filtros para o aspirador, esfregão para a louça,
detergente para a máquina da roupa...
CLEMENTINA
(Virando‐se para a patroa) Não se esqueça de um pano para a tábua
de passar a ferro, que o que temos já está muito gasto...
MERCEDES
(Escrevendo) Pano para a tábua de engomar...
CLEMENTINA
Ah! O amaciador da roupa está quase a acabar.