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O Arquiteto e o Imperador da Asíria - Fernando Arrabal - Tradução de Leila Ribeiro e Ivan Albuquerque PERSONAGENS O IMPERADOR DA ASSÍRIA - guarda-roupa rico, vestimentas antigas e modernas, de estilo barroco O Arquiteto - cobre nudez com uma pele de animal ATO I A ação se passa numa pequena clareira, numa ilha onde o Arquiteto vive só. Cenário: uma cabana e uma espécie de cadeira rústica. Ao fundo, abrolhos, urzes. QADRO I Barulho de avião. O Arquiteto como um animal perseguido e ameaçado procura um refúgio, corre em todas as direções, escava a terra, treme, recomeça a correr e por fim enfia a cabeça na areia. Explosão. Clarão forte de chamas. O Arquiteto, com a cabeça enfiada na areia, tapa os ouvidos com as mãos e treme de medo. Alguns instantes depois o Imperador entra em cena. Traz consigo uma grande mala. Possui uma certa elegância afetada. Procura guardar seu sangue frio. Toca o outro com a ponta da sua bengala, dizendo: Cavalheiro, venha me ajudar, sou o único sobrevivente do acidente. ARQUITETO (horrorizado) Fi! Fi! Fi! Figa! Figa! (Por um momento olha aterrado para o Imperador, e sai correndo. Escuridão.) QADRO II Dois anos mais tarde Em cena, o Imperador e o Arquiteto IMPERADOR Mas é tão simples. Vá, repita.

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O Arquiteto e o Imperador da Asria - Fernando Arrabal -

Traduo de Leila Ribeiro e Ivan Albuquerque

PERSONAGENSO Imperador da assria - guarda-roupa rico, vestimentas antigas e modernas, de estilo barrocoO Arquiteto - cobre nudez com uma pele de animal

ATO IA ao se passa numa pequena clareira, numa ilha onde o Arquiteto vive s.Cenrio: uma cabana e uma espcie de cadeira rstica. Ao fundo, abrolhos, urzes.

QADRO IBarulho de avio.O Arquiteto como um animal perseguido e ameaado procura um refgio, corre em todas as direes, escava a terra, treme, recomea a correr e por fim enfia a cabea na areia.Exploso. Claro forte de chamas.O Arquiteto, com a cabea enfiada na areia, tapa os ouvidos com as mos e treme de medo.Alguns instantes depois o Imperador entra em cena. Traz consigo uma grande mala. Possui uma certa elegncia afetada. Procura guardar seu sangue frio.Toca o outro com a ponta da sua bengala, dizendo:

Cavalheiro, venha me ajudar, sou o nico sobrevivente do acidente.ARQUITETO (horrorizado)Fi! Fi! Fi! Figa! Figa! (Por um momento olha aterrado para o Imperador, e sai correndo. Escurido.)

QADRO IIDois anos mais tardeEm cena, o Imperador e o ArquitetoIMPERADORMas to simples. V, repita.

ARQUITETO (tem uma certa dificuldade para pronunciar o s)Ascensorista.

IMPERADOR (com nfase)H dois anos que vivo nessa ilha, h dois anos que lhe dou aulas e voc ainda hesita! Seria preciso que o prprio Aristteles ressuscitasse para lhe ensinar que 2 e 2 so 4.

ARQUITETO J sei falar, no ?

IMPERADORBom. . . Pelo menos, se algum cair um dia aqui, nessa ilha perdida, voc poder lhe dizer Ave Caesar.ARQUITETOMas hoje voc tem que me ensinar. . .

IMPERADORAgora escute a minha musa cantar a clera de Aquiles. Meu trono!(O Imperador se senta. O Arquiteto se inclina diante dele, numa reverncia.)IMPERADORAh! Muito bem. Muito bem. No se esquea que sou o imperador da Assria.ARQUITETOA Assria limitada ao norte pelo mar Cspio, ao sul pelo oceano ndico ...IMPERADORChega.ARQUITETOAgora me ensine o que voc prometeu. . .

IMPERADORCalma, calma! Ah. (Sonhador) Ah! A civilizao, a civilizao!

ARQUITETO (muito contente) Fale, fale.

IMPERADORCale-se. O que voc pode saber, voc que viveu sempre enfurnado nessa ilha que nem existe nos mapas e que Deus cagou no oceano, por desprezo?

ARQUITETOConte, conte.

IMPERADORDe joelhos! (O Arquiteto se ajoelha.) Est bem, levante-se, no preciso. (O Arquiteto se levanta. Com muita nfase) Eu explico.

ARQUITETOAh, explique, explique!

IMPERADORCale-se! (De novo com nfase) Eu explico: minha vida. (O Imperador se levanta com grandes gestos.) Levantava-me ao primeiro claro da aurora, todas as igrejas, todas as sinagogas, todos os templos soavam suas trombe-tas. O dia comeava a despontar. Meu pai vinha me acordar seguido de um regimento de violinistas. Ah! A msica. Que maravilha! (De repente inquieto) Voc cozinhou a lingia com as lentilhas?

ARQUITETO Sim, majestade!

IMPERADOROnde que eu estava? Ah, sim, o meu despertar pelo regimento de trombetistas que vinham de manh, os violinos nas igrejas... Que manhs! Que despertar! Depois vinham as minhas divinas escravas, cegas e nuas que me ensinavam a filosofia. Ah! A filosofia! Um dia eu lhe explico o que .

ARQUITETOMajestade, como que elas explicavam a filosofia?

IMPERADORNo entremos em detalhes. E minha noiva ...e minha me.

ARQUITETOMame, mame, mame.

IMPERADOR (assustado)Onde foi que voc ouviu essa palavra?

ARQUITETOFoi voc que me ensinou.

IMPERADORQuando? Onde?

ARQUITETO Noutro dia.

IMPERADORQue foi que eu disse?

ARQUITETOVoc disse que sua me o punha no colo, o ninava, o beijava na testa e. . .(O Imperador rev a cena evocada, ele se encolhe na cadeira como se uma pessoa invisvel o ninasse, o beijasse.)E voc disse que s vezes ela lhe batia com um chicote e segurava a sua mo quando passeavam pelas ruas e que...

IMPERADOR Pare! Pare! O fogo est aceso?

ARQUITETOEst.IMPERADORTem certeza que fica aceso dia e noite?ARQUITETO Tenho, olhe a fumaa.

IMPERADOREst bem, tanto faz.ARQUITETO Como tanto faz? Voc disse que, um dia, um navio ou um avio ia nos ver e vinha buscar a gente.

IMPERADORE ento o que que ns vamos fazer?

ARQUITETOA ns vamos para o seu pas, onde h automveis, discos, televiso, mulheres, travessas de confete, quilmetros de pensamentos, quintas-feiras maiores que as da natureza e. . .IMPERADOR (mudando de conversa) Voc preparou a cruz?

ARQUITETOEst aqui. (Mostra os espinhos.) Vai me crucificar agora?

IMPERADORMas como? voc que vai ser crucificado? No eu?ARQUITETONs tiramos a sorte. J esqueceu?IMPERADOR (colrico) Como possvel? Ns tiramos a sorte para saber quem iria redimir a humanidade?

ARQUITETO Mestre, voc esquece tudo.

IMPERADOR Como que ns tiramos a sorte? Com qu?

ARQUITETOCom os charutos.(O Imperador tem um acesso de riso, enquanto repete: "charutos, charutos.. .")Por que que est rindo, mestre?

IMPERADOR Como? Agora voc me trata por voc?

ARQUITETO Voc disse que. . .

IMPERADORNunca lhe disse o que significa a palavra "Charuto", chmpar um charuto?

ARQUITETOEnto, posso ou no posso cham-lo de voc?IMPERADORMinhas mulheres cegas que me ensinavam a filosofia vestidas somente com uma toalha de banho cor-de-rosa! Que memria a minha! Me lembro como se fosse ontem. Como elas acariciavam o meu divino corpo, como elas limpavam os recantos mais escondidos com... A cavalo!

ARQUITETO Fao o cavalo?

IMPERADORNo, eu fao. (O Imperador se pe de quatro. O Arquiteto monta.) Diga, hei!

ARQUITETO Hei, hei. . .

IMPERADORBata-me com o chicote!(O Arquiteto bate com um galho.)

ARQUITETOHei, hei! Mais depressa! Temos que chegar a Babilnia! Mais rpido! Hei!(Eles trotam. Fazem vrias vezes a volta da mesa. De repente o Imperador o joga ao cho.)

IMPERADOR (fora de si)Como? Voc no colocou as esporas?

ARQUITETOO que so esporas?

IMPERADORComo que voc quer chegar a. . .

ARQUITETO A Babilnia.

IMPERADOR (aterrado)Onde que voc aprendeu essa palavra? Quem lhe ensinou? Quem vem visit-lo enquanto estou dormindo?(O Imperador se joga sobre ele e quase o estrangula.)ARQUITETOFoi voc que me ensinou.

IMPERADOREu?

ARQUITETO, voc disse que era uma das cidades do seu imprio da Assria.

IMPER ADOR (se refazendo com nfase)Formigas! (Olha um cortejo de formigas no cho.) Formigas! Minsculas escravas! Ide buscar na fonte uma nfora cheia d'gua. (Senta-se no trono e espera. Inquieto) No ouviram? (Longo silncio.) Ide buscar uma nfora cheia d'gua, j disse. (Furioso) Como? No se respeita mais o Imperador da Assria? Ser possvel? Morram sob os meus ps! (Dirige-se raivosamente em direo a um cortejo de formigas e as estraalha com furor. Cai no trono, exausto.)

ARQUITETO Toma.

IMPERADOR (derrubando a taa)O que que eu vou fazer com essa gua? S bebo vodka. . . (Risinho.)

ARQUITETOMas voc no disse que. . .

IMPERADORE minha noiva, j lhe falei da minha noiva?

ARQUITETO (como se repetisse uma lio)Ela - era - muito - bela - muito - linda - muito - loura - com - olhos - verdes e.. .

IMPERADOREst debochando?

ARQUITETOVoc j me falou dela.

IMPERADORQuer fazer minha noiva?

ARQUITETO Agora?

IMPERADORNo quer fazer minha noiva? (Furioso) Selvagem!

ARQUITETOAgora sou sempre eu a noiva e voc sempre que me passa na cara. . .

IMPERADOREnsinei-lhe gria tambm. Estou perdido.ARQUITETO Quando que vai me ensinar arquitetura?

IMPERADORPara qu? Voc j no arquiteto?

ARQUITETOEst bem, vou fazer a noiva.

IMPERADORMas voc no acabou de exprimir o desejo de que eu te ensine arquitetura? Ah ! A arquitetura!

ARQUITETONs estvamos dizendo que eu ia fazer a noiva.

IMPERADORNs dizamos que hoje vou te ensinar arquitetura ... as bases da arquitetura so. . . Est bem, eu fao a noiva, j que voc insiste.

ARQUITETOEnto, quais so as bases da arquitetura?

IMPERADOR (furioso)Eu disse que hoje eu fao a noiva, j que voc tanto insiste.ARQUITETOPonha a saia e as anguas.

IMPERADORNo sei onde que esto. Voc perde tudo. Deixa as coisas todas jogadas. Mas... ser possvel que voc ignore quais so as bases da arquitetura, um arquiteto da Assria? Ser possvel que tenha abusado da minha confiana e eu lhe tenha conferido o ttulo de Supremo Arquiteto da Assria, quando voc ignora at os rudimentos da arquitetura? O que diro os vizinhos?

ARQUITETOFoi voc quem me nomeou. No tenho culpa. No sou eu o imperador.

IMPERADOROnde que esto essas malditas anguas? Formigas! Ide buscar minhas anguas e minhas saias!

ARQUITETOElas no vo lhe obedecer.IMPERADORComo no vo me obedecer? Formigas, escravas, ide apanhar minhas anguas, hoje eu represento a noiva. . . No esto ouvindo? Onde que estou com a cabea? Esqueci que tinha estraalhado todas. . . (Com muita doura) Escute, seja franco, voc acha que sou um ditador?

ARQUITETOO que um ditador?

IMPERADOREvidentemente no sou um militar. Digam, meus sditos, vocs se sentem oprimidos pelo meu jugo? Digam, confessem, sou um tirano?

ARQUITETOVai ou no vai vestir as anguas?

IMPERADOREstou perguntando se sou um tirano.

ARQUITETO No. Voc no um tirano. (Exaltado) Chega.

IMPERADOREu exterminei as formigas! Os tiranos. . .

ARQUITETOAs saias!

IMPERADORMas vamos brincar de padre hoje?

ARQUITETOEst bem, j vi que voc no quer.

IMPERADOR (sem enfiar a saia, se transforma em mulher, com voz de mulher) "Oh, meu amor, voc me ama? Iremos juntos..."

ARQUITETO "Voc to bonita que quando penso em voc sinto uma flor brotar entre minhas pernas e sua corola transparente cobrir minhas ancas... permite que toque nos seus joelhos?"

IMPERADOR (mulher)"Nunca fui to feliz assim, uma alegria to grande me invade que das minhas mos jorram jatos d'gua para as suas mos."

ARQUITETO"Voc e os seus joelhos to brancos, to doces, to redondos ..."

IMPERADOR"Acaricie-os."(O Imperador comea a levantar a perna das calas para mostrar os joelhos. No consegue.)

IMPERADOR Merda! As saias!(Silncio.)

ARQUITETOEu constru uma canoa. . .

IMPERADORVoc vai partir? Vai me deixar sozinho?

ARQUITETO Vou remar at chegar a uma outra ilha.

IMPERADOR (com nfase) jovem afortunado, Homero se fez o pregoeiro das suas virtudes!

ARQUITETOO que que voc est dizendo?

IMPERADORE sua me?

ARQUITETO Nunca tive me, voc sabe muito bem disso!

IMPERADOR Voc filho de uma sereia e de um centauro, a unio perfeita! (Muito triste) Mame, mame. (D alguns passos para procur-la debaixo do trono.) Mame, onde que voc est? Sou eu, estou sozinho aqui, todos me esqueceram, mas voc...

ARQUITETO (que colocou um vu na cabea e representa a me)"Meu filhinho, que que voc tem? Voc no est sozinho, estou aqui, a sua mezinha."

IMPERADORMame, todo mundo me detesta, me abandonaram nesta ilha.

ARQUITETO (muito maternal, protege-o, envolvendo-o com os braos) "No, filhinho. Estou aqui para proteg-lo. Voc no deve se sentir sozinho. Conte tudo para mame."

IMPERADORMame, o Arquiteto quer me abandonar, construir uma canoa para ir embora e eu vou ficar aqui sozinho.

ARQUITETO (me) "No nada disso; vai ver que para o seu bem, ele vai buscar ajuda e vem salv-lo."

IMPERADORTem certeza, mame?

ARQUITETO Tenho, meu filhinho.

IMPERADORMezinha, no v embora, fique aqui comigo para sempre.ARQUITETO (me)Est bem, filhinho, vou ficar aqui com voc dia e noite.IMPERADORMamezinha querida, beije-me.(O Arquiteto se aproxima para beij-lo. O Imperador o empurra com violncia.)Voc fede! Voc fede! O que foi que voc comeu?

ARQUITETO A mesma coisa que voc.

IMPERADOR Ento marque hora no dentista. V obturar os dentes. Voc tem mau hlito.

ARQUITETOVoc prometeu...

IMPERADOREu prometi, eu prometi... E da? Traga minha caixa de charutos.

ARQUITETO (com uma reverncia) Que a vontade de Vossa Majestade seja feita. (Sai e volta com uma pedra.)

IMPERADOR Quando falo meus charutos, falo charutos cubanos...(O Arquiteto sai por um instante e volta com a mesma pedra.) ARQUITETOAqui esto, senhor.

IMPERADOR (toca na pedra, finge escolher um bom charuto, apanha, cheira, corta, aponta)Ah, que perfume digno dos deuses! Ah, esses charutos!

ARQUITETO (finge acender o charuto com um isqueiro)Aqui est o fogo, senhor. IMPERADOR Como? Com um isqueiro? Voc, um mordomo que estudou na Universidade de... Que vergonha! Onde que voc botou a canoa?

ARQUITETONa praia.

IMPERADOR (muito triste) E quando construiu? (Sem deix-lo responder) Por que que construiu sem me dizer nada? Jura que no vai embora sem me dizer nada.ARQUITETOJuro.IMPERADOR Por quem?ARQUITETOPor quem voc quiser, por quem de mais sagrado.

IMPERADOR Pela Constituio da ilha.

ARQUITETO Mas no uma monarquia absoluta?

IMPERADOR Silncio! Aqui quem fala sou eu e s eu.

ARQUITETO Quando que voc vai me ensinar isso?

IMPERADORMas de que que voc est falando? Voc passa todo o santo dia a cacarejar "ensine-me isso, ensine-me aquilo".

ARQUITETOVoc prometeu que hoje ia me ensinar como que a gente faz para ser feliz.

IMPERADORAgora no; mais tarde, prometo.

ARQUITETOVoc responde sempre a mesma coisa.

IMPERADOR Est duvidando da minha palavra?

ARQUITETO Quando a gente feliz, como que ?IMPERADORVou lhe contar isso. Que impacincia, que impacincia! Ah! A juventude!

ARQUITETOSabe como que eu imagino a felicidade? Acho que, quando a gente feliz, a gente est junto de algum que tem a pele muito fina e depois a beijamos nos lbios e tudo se encobre de uma nvoa rsea e o corpo da pessoa se transforma numa multido de espelhinhos e quando olhamos para ela somos refletidos milhes de vezes, e passeamos com ela montados nas zebras e nas panteras em volta de um lago e ela nos puxa por uma corda e quando olhamos para ela chovem penas de pombos, que, caindo no cho, relincham como potros jovens e entramos depois num quarto e comeamos a passear de mos dadas pelo teto. . . (fala precipitadamente)... e as cabeas se cobrem de serpentes que nos acariciam, e as serpentes se cobrem de ourios que nos fazem ccegas e os ourios se cobrem de ouro, cheios de presentes, e escaravelhos de ouro. . .

IMPERADOR Chega!

ARQUITETOMu! Mu! (Pe-se de quatro.) Est vendo, sou uma vaca.

IMPERADORCale a boca, voc louco.

ARQUITETO Masturbe-me.

IMPERADORVoc no me respeita mais?

ARQUITETOVoc o mui ilustre e mui sbio imperador da mui poderosa Assria. (Faz grandes reverncias.)

IMPERADORO que foi que voc sonhou hoje?

ARQUITETOA Assria, que o maior imprio do mundo ocidental, na sua luta contra a selvageria do mundo oriental. . .

IMPERADORGrandissssimo asno! o contrrio!

ARQUITETO Estou falando do perigo amarelo. . .

IMPERADORAh, agora virou reacionrio?

ARQUITETONo assim?

IMPERADOR Faamos a guerra.(Eles se preparam. Agacham-se. Apanham as "metralhadoras". Atiram: tac, tac, tac. Arrastam-se pelo cho e se encontram cara a cara camuflados. Cada um tem um capacete e uma bandeira.)

ARQUITETO (camuflado, vendo-se apenas a sua bandeira)Aqui, a Rdio dos vencedores. (Voz de locutor) Soldados Inimigos, no vos deixeis enganar pela propaganda mentirosa de vossos oficiais. E o general-chefe que vos fala. Ontem, liquidamos com bombas de hidrognio a metade da populao civil do vosso pas. Rendei-vos como soldados, e tereis direito s honras de guerra. Por um mundo melhor!

IMPERADOR (a mesma coisa)Aqui fala a Rdio Oficial dos futuros vencedores. o marechal-chefe quem vos fala. Soldados inimigos, no vos deixeis seduzir pela demagogia de vossos superiores. Ontem nossos foguetes massacraram toda a populao civil da vossa nao, a populao civil de vossa nao, a populao civil de vossa nao. . .(Disco arranhado. O Arquiteto sai camuflado do seu setor. Chora. O Imperador tambm sai chorando. Eles do as costas um para o outro, todos dois vestidos de soldados e "armados". Choram olhando as fotografias dos seus civis mortos. De repente se viram, se examinam, apontam as armas e gritam)ARQUITETO e IMPERADOR Mos ao alto, traidor!(Mos ao alto, eles jogam longe as metralhadoras e se olham com pavor. Enfim:)

ARQUITETO Voc um soldado inimigo?

IMPERADORNo me mate!

ARQUITETOVoc tambm no me mate!

IMPERADORMas assim que vocs lutam por um mundo melhor?

ARQUITETOPara falar a verdade tenho medo da guerra. Fico bem agachado na minha trincheira... na esperana de que isso termine logo.

IMPERADOREu levantei as mos para o alto por sua causa. Tenho nojo. Bonitos soldados, os do exrcito inimigo!

ARQUITETOE vocs?

IMPERADOREu, no sou um guerreiro, aqui no meu setor, ns queremos apenas que tudo isso acabe logo. Mas o que voc est olhando nessas fotografias?

ARQUITETO (quase chorando) Toda a minha famlia que vocs mataram com as suas bombas.

IMPERADOR (condescendente) Vamos, meu velho, no chore, olhe os meus que vocs tambm mataram.ARQUITETOTambm? Realmente no temos sorte. (Chora copiosamente.)IMPERADORPermite que eu chore com voc?ARQUITETOEst bem, mas isso no uma ttica de guerra, ?(Eles choram como duas fontes.)

IMPERADOR (joga fora, com majestade, o seu equipamento de soldado) Ah, que vida era a minha! Todas as manhs meu pai vinha me acordar com um cortejo de bailarinas. Todas elas danavam s para mim. Ah! A dana. Um dia vou lhe ensinar a danar. Toda a Assria assistia ao meu despertar graas televiso. Depois vinham as audincias. Primeiro a audincia civil que concedia no meu leito, enquanto as minhas escravas hermafroditas me penteavam e derramavam sobre o meu corpo todos os perfumes da Arbia. Comeava ento a audincia militar que concedia do alto do meu trono suspenso, por fim a audincia eclesistica... (Muito inquieto) Qual a sua religio?

ARQUITETOA que voc me ensinou.

IMPERADOREnto voc acredita em Deus?

ARQUITETO Voc me batiza?

IMPERADORComo? Voc no batizado? Est perdido. Durante toda a eternidade vai assar dia e noite e as mais belas diabinhas sero escolhidas para excit-lo, mas elas lhe enfiaro ferros em brasa no cu.

ARQUITETOVoc disse que eu ia para o cu.

IMPERADORAh, meu filho! Como conhece mal a vida!

ARQUITETOConfesse-me.(O Imperador se senta no trono. O Arquiteto se pe de joelhos.)Padre, eu me acuso de. . .IMPERADORMas que farsa essa? Sou eu outra vez que fao o papel de confessor! Fora daqui, seu pestinha idiota. No o confesso. Vai morrer esmagado pelo peso dos seus crimes e queimar por toda a eternidade por culpa minha.

ARQUITETO Sonhei que...

IMPERADOR Quem foi que pediu para voc contar seus sonhos?

ARQUITETO Voc acabou de me pedir. . .

IMPERADORQue m'importam os seus sonhos. . . Est bem, conte.

ARQUITETOSonhei que estava sozinho numa ilha deserta, de repente caa um avio, a entrei em pnico e corria para todos os lados e quis at enterrar a cabea na areia, quando algum atrs de mim me chamou e...

IMPERADORPare. E muito esquisito esse sonho! Freud, me ajude!

ARQUITETO ertico tambm?

IMPERADORE voc acha que podia ser de outro jeito?

ARQUITETO (traz um chicote) Bata-me.

IMPERADOR (condescendente)Que papel voc quer que eu represente?

ARQUITETO Tanto faz.

IMPERADORSua me?

ARQUITETODepressa, bata, no agento mais. (Est com as costas nuas e espera pelas chicotadas.)

IMPERADORPor que tanta pressa? Agora preciso servir ao mestre na hora certa. Falou, est feito.

ARQUITETOEnto me bata, s dez chicotadas. (Tom suplicante) Por favor.

IMPERADOR"S" dez chicotadas. Na minha idade? Por acaso voc pensa que sou o jovem Hamlet pulando por cima dos tmulos dos seus antepassados podres?

ARQUITETOBata-me, bata-me, no agento mais, estou me sentindo mal.

IMPERADORO que isso? No adianta dar um ataque histrico. Eu o aoito... Mas. . . quantas vezes?ARQUITETOQuantas vezes quiser, mas depressa. Se me bater com fora, uma vez chega.

IMPERADOR Onde devo aoit-lo, meu senhor? (Com nfase) Sobre as rseas ndegas, sobre seu torso do bano, sobre as suas pernas, colunas elegacas da imortal Esparta. . .

ARQUITETOBata-me, bata-me.

IMPERADOR Est bem, l vou eu.(Com muita solenidade ele o aoita s uma vez, muito de leve e com extrema doura: o chicote apenas aflora a sua pele. O Arquiteto se joga sobre o Imperador, arranca-lhe o chicote e se fustiga duas vezes com muita violncia. Cai por terra como louco. Depois se levanta e vai embora.)

ARQUITETOVou embora para sempre.(O Imperador acompanha a cena com majestade.)

IMPERADOREst bem. Sejamos shakespearianos. Isso me d a oportunidade para um monlogo. (Solua. Assoa o nariz num grande leno.) Ah, enfim s! (Caminha com ar agitado.) Mas como que eu vou fazer para redimir a humanidade sozinho? (Mima a crucificao. De repente, urrando) Arquiteto! Arquiteto! (Mais baixo) Perdoe-me. (Solua e se assoa. Mima a crucificao.) Os ps, sim. Os ps consigo pregar melhor do que um centurio, mas. . . (Mostra com gestos a dificuldade de pregar as mos.) Arquiteto ! Volte, eu lhe bato quanto voc quiser e com a fora que voc quiser. (Chora. O Arquiteto entra. Muito digno o Imperador pra de soluar.) Ah, est a, no ? Escutando atrs das portas? Me espionando?

ARQUITETOVoc no est zangado, no ?

IMPERADOR Quer que eu bata?

ARQUITETO No precisa.

IMPERADORJ lhe falei das minhas catorze secretrias?

ARQUITETOAs catorze - secretrias - sempre - nuas - que - escreviam - as obras-primas - que - voc - lhes - ditava.

IMPERADORVoc tem a audcia de debochar da minha literatura? Pois fique sabendo que fui Prmio... como mesmo...

ARQUITETO Prmio - Nobel - e - voc - recusou - porque.. .

IMPERADOR Cale a boca, energmeno, o que que voc entende de moral?

ARQUITETO A moral limitada ao norte pelo mar Cspio, ao sul. . .

IMPERADOR Animal! Voc mistura tudo. Isso a Assria. Confundir a Assria com a moral! Que troglodita! Que selvagem!

ARQUITETOQuer que escurea?

IMPERADORPara mim, tanto faz.

ARQUITETOLe-lo-mi-loooooo-looooo.(O cu se escurece enquanto o Arquiteto diz essas palavras e a noite cai. Escurido total.)

VOZ DO IMPERADOR (no escuro)Mais uma das tuas brincadeiras! J estou cheio. Que o dia volte. Faa voltar a luz. Ainda no escovei os dentes.

VOZ DO ARQUITETOMas voc disse que eu podia fazer o que eu quisesse.

VOZ DO IMPERADORTudo o que voc quisesse, menos fazer a noite cair.

VOZ DO ARQUITETO Est bem, l vou eu!

VOZ DO IMPERADOR Depressa.

VOZ DO ARQUITETO Mi-ti-riiii-tiiii!(A luz volta como tinha desaparecido.)

IMPERADORNo faa mais isso.

ARQUITETOPensei que voc quisesse dormir.

IMPERADORNo se meta nisso. J temos muita coisa para fazer. Deixe a natureza cuidar do sol e da lua.

ARQUITETO Ento me ensina filosofia?

IMPERADORA filosofia? Eu? (Sublime) A filosofia? Que maravilha! Um dia vou ensinar-lhe essa maravilha humana. Esse divino fruto da civilizao. (Inquieto) Diga-me uma coisa, como que voc faz para transformar o dia em noite?

ARQUITETO Ora! muito simples. Eu nem sei como que .

IMPERADOR E essas palavras que voc resmunga?

ARQUITETOFalo assim, sem saber por qu. Mas posso fazer a noite sem falar isso tambm. s querer.

IMPERADOR (intrigado)E essas palavras. . . (Retomando-se) Grandissssimo ignorante! Voc no viu nada! J lhe falei da televiso, da Coca-Cola, dos tanques, dos museus de Babilnia, dos nossos ministros, dos nossos papas, da imensido do oceano, da profundidade de nossas teorias...

ARQUITETOConte, conte!

IMPERADOR (majestosamente, enquanto se senta no trono)Passaro! , voc que est a nesse galho, v apanhar para mim uma perna de cabrito. No est ouvindo? Sou o imperador da Assria. (Espera, numa pose de grande senhor. Inquieto) Como? Voc ousa se revoltar contra o meu poder ilimitado, contra a minha cincia e a minha soberana eloqncia, minha palavra e meu orgulho? Ordenei que fosse buscar uma perna de cabrito. (Ele espera. O Imperador apanha uma pedra e a joga na direo do galho.) Pois bem, voc vai morrer... Reinarei apenas sobre sditos obedientes.

ARQUITETOQue se jogaro aos ps do mais poderoso dos imperadores do Ocidente. (Prosterna-se aos ps do Imperador.)

IMPERADORDo Ocidente? Do Ocidente e do Oriente. Voc ignora que a Assria j lanou vrios satlites habitados a Netuno? Diga, existe alguma outra faanha comparada a essa?

ARQUITETONingum mais poderoso sobre a nossa amada terra!

IMPERADORAi! Meu corao! A padiola! (O Imperador se contorce de dor. O Arquiteto volta com uma padiola.) Escute o meu corao. Sinto uma dor, uma pontada. Infelizmente, o meu fraco corao... (O Arquiteto se curva para au\ cultor o corao do Imperador. Ele escuta.)

ARQUITETOSossegue, Imperador, no nada. Descanse e a dor vai passar como das outras vezes.

IMPERADOR (arquejante)No, dessa vez grave. Sinto que vou desmaiar. Tenho certeza de que um enfarte do miocrdio.

ARQUITETO O seu pulso est quase normal.

IMPERADORObrigado, meu filho. Sei que procura me consolar.

ARQUITETODurma um pouco, vai ver que tudo passa.

IMPERADOR (inquieto)Minhas ltimas palavras? Eu esqueci. Diga, diga depressa, quais so?

ARQUITETO"Morro e me sinto feliz: abandono uma vida transitria para entrar na imortalidade." Mas no se aflija com isso.

IMPERADOREu desejo confiar-lhe uma coisa, uma coisa que nunca confessei a ningum. Quero morrer disfarado. (Uma pausa.) Disfarado em (muito esnobe)... valete de paus.

ARQUITETOValete de qu?

IMPERADORValete de paus. Faa o que peo. muito simples: voc coloca um pau entre as minhas ndegas para que eu possa ficar de p, e me vista com uma fantasia de valete.

ARQUITETO Sua vontade ser feita.

IMPERADORAi! Estou morrendo, estou morrendo! Faa o que eu pedi. (O Arquiteto traz um basto e a fantasia: um saco. Ele disfara o Imperador. Abre um buraco no saco para que a figura aparea.) Ai! Mezinha, estou morrendo.

ARQUITETOAcalme-se. Voc vai ficar bom. A est a roupa de valete de paus.

IMPERADORBeije-me. (Eles se beijam. O Imperador, com voz arque jante) "Morro contente: abandono essa vida transitria para..." (Sua cabea cai. O Arquiteto chora lgrimas ardentes. Toma-lhe a mo e a beija.)

ARQUITETO (soluando) Est morto! Est morto!

(Coloca o cadver disfarado num caixo. Fecha o caixo. Comea a abrir uma fossa, sempre em lgrimas. De repente o caixo se abre e o Imperador sai, tirando o disfarce.)

IMPERADORSeu porco, seu bosta, seu lixo, ento ia me enterrar. Selvagem, hermafrodita, dbil mental.

ARQUITETOMas voc no mandou?

IMPERADOR Enterrar-me? Idiota, cretino. E quando eu acordasse no tmulo, quem que ia me tirar de l, com dez palmos de terra em cima de mim?

ARQUITETO Na ltima vez...

IMPERADORJ disse para voc me incinerar. (Sublime) E jogar minhas cinzas no mar, como as de Byron, de Shakespeare, de Fnix, de Netuno, de Pluto.

ARQUITETO Outro dia voc ficou furioso porque eu ia inciner-lo, disse que ia acordar com os culhes queimados, danando rumba e gritando "Viva a Repblica!"

IMPERADOR (muito srio) Curvo-me diante dos seus caprichos. Mas tome cuidado com a minha morte. No quero nada errado. Dessa vez foi um rosrio de erros. Que fossa a minha!

ARQUITETOVou m'embora no meu barco.

IM PER ADOR (humildemente) Para onde?

ARQUITETOPara ilha em frente. Deve ser habitada.

IMPIRADOR Que ilha? No vejo nenhuma ilha.

ARQUITETOAquela, l embaixo.

IMPERADORNo vejo nada.

ARQUITETOA montanha est atrapalhando. Vou afastar. (O Arquiteto bate com as mos. Ouve-se um estrondo enorme.) Est vendo agora?

IMPERADORVoc move montanhas? Voc move as montanhas tambm . . . (Sincero) No v embora. Fao o que voc quiser. Nomeio-o imperador da Assria, abdico.

ARQUITETOVou embora e vou arranjar uma noiva...

IMPERADORMas eu no chego para voc?

ARQUITETOVou passear pelas cidades e cobrir as ruas de garrafas para que os adolescentes se embriaguem, e colocar por toda parte balanos para que as avs mostrem os fundilhos, vou comprar uma zebra, cruzo-a com um veado para que ela tenha galhos, vou ser muito feliz, pois vou conhecer o mundo e vou ver. . .

IMPERADORArquiteto, confesse que me odeia.

ARQUITETONo, no o odeio.

IMPERADORDou-lhe de presente os meus sonhos, quer?

ARQUITETOVoc sonha sempre a mesma coisa, sempre o jardim das delcias, sempre Bosch, j estou cansado de ver mulheres com rosas plantadas no cu.

IMPERADORVoc no um artista, um grosso! Ignora o sublime, s gosta da escria.

ARQUITETOO que que vale mais? Voc nunca me disse.

IMPERADORV ao meu guarda-roupa imperial e apanhe a roupa que quiser.

ARQUITETOQuando eu for embora vou ter todas as roupas que quiser: vou me vestir com fsforos, de uma maneira vaga e indefinida, vou ter ceroulas de lata e gravatas eltricas, nicas em xcaras de caf e camisas cinza-prola rodeadas de uma cadeia infinita de caminhes carregados de casas.

IMPERADORQuer que o circuncide? Guardo seu prepcio sobre um altar e ele far milagres, tantos quanto Cristo.

ARQUITETOEnsine-me filosofia?

IMPERADORAh! A filosofia! A filosofia! (De repente se pe de quatro) Sou o elefante sagrado. Suba nas minhas costas e

vamos para o Ano Santo de Brama. (O Arquiteto sobe nele.) Enrole a corrente em volta da minha tromba. (Ele pe a corrente.) E agora me faa andar e reze.

ARQUITETOPara frente elefante branco...

IMPERADORSou um elefante sagrado, sou cor-de-rosa!

ARQUITETO Para frente elefante sagrado cor-de-rosa, vamos em peregrinao ver Brama das catorze mos, vamos ser abenoados catorze vezes por segundo. Viva Deus! (O Imperador o joga ao cho.)

IMPERADOR Que palavras sacrlegas voc pronunciou?

ARQUITETO Viva Deus!

IMPERADORViva Deus! Ah, ento no sei se um sacrilgio. Preciso ler a Suma Teolgica ou ento a Bblia em quadrinhos.

ARQUITETO Antes de ir embora, queria lhe fazer um pedido.

IMPERADOR Diga tudo... Sou seu pai, sua me, sou tudo para voc. (Pausa.) Um momento, esto me chamando ao telefono vermelhe. (Cerimoniosamente mima a cena do telefone) Sim, aqui fala o Presidente. (Uma pausa.) Pode falar! Pode falar! caro Presidente, como que vai? (Um tempo.) Que simptico! Sempre brincando! (Fingindo enrubescer) Uma declarao. Presidente, ns no estamos mais no internato. (Pausa.) Mas no, no leve a coisa para esse lado, no sabia que o senhor era homossexual. Fazer uma declarao a mim! Velho libidinoso, libertino! (Pausa.) Como? Uma declarao de guerra ao meu pas? (Com clera) Do alto desses arranha-cus, dez mil sculos vos contemplam! Eu vos estriparei como uma mosca estripa um elefante selvagem, meu povo invadir o vosso e... O qu? Uma bomba de hidrognio vai estourar nas nossas cabeas dentro de trinta segundos? Mame, mame. (A seu secretrio) Um guarda- chuva ! (O Arquiteto abre um guarda-chuva e ambos se refugiam debaixo. Ao telefone) Criminoso de guerra! Assassino das sogras! (Ao Arquiteto) E ns que tnhamos preparado os avies para jogar as bombas de surpresa amanh s cinco horas. Meu reino por um Fnix!

(Eles mimam o barulho da queda de uma bomba. Morrem, vtimas do bombardeio. Caem nos abrolhos. De repente surgem o Arquiteto, o Imperador, imitando dois macacos. Eles se unham no rosto. Contemplam a desolao em que tudo ficou depois das bombas.)

ARQUITETO (macaco)Hum, hum, no sobrou nem um homem vivo depois da guerra atmica, hum, hum.

IMPERADOR (macaco)Hum! Hum! Papai Darwin! (Os dois macacos se abraam apaixonadamente.)

ARQUITETO (macaco) preciso recomear tudo de novo. (Refugiam-se num lugar propcio para ficarem a ss.)

IMPERADOR (mudando de tom, muito colrico)Eu o probo de ir embora, probo de fazer um ltimo pedido, sou eu quem manda aqui; ordeno que destrua o barco.

ARQUITETO Vou embora.

IMPERADORPor que tanta pressa? Juventude desmiolada, desnorteada. Voc no feliz comigo?

ARQUITETOO que quer dizer feliz? Voc nunca me ensinou.

IMPERADORFeliz. . . Feliz significa... (Colrico) Merda, eu no sei nada. (Terno) Voc fez hoje?

ARQUITETO Fiz.

IMPERADORE como que voc fez, duro ou mole?

ARQUITETO Hum...

IMPERADOR (inquieto) Como que no sabe? Por que que no me chamou? Gosto tanto de ver voc fazer. . .

ARQUITETOEra meio mole e cheirava..

IMPERADOR Deixe para l o cheiro... (Mais calmo) Estou sempre com priso de ventre. (Pausa.) Seria bem diferente se voc fosse formado, se tivesse cursado uma universidade, qualquer uma. Ns no nos compreendemos. Pertencemos a dois mundos diferentes.

ARQUITETOEu. . . (Sinceramente) Gosto de voc.

IMPERADOR (muito emocionado, quase chorando) Voc est debochando de mim.

ARQUITETO No.

IMPERADOR (se assoa, d uma volta sobre si mesmo e diz, em outro tom, muito enftico) Voc no pode imaginar: todas as manhs a televiso da Assria transmitia o meu despertar, meu povo contemplava esse espetculo com tal emoo que as mulheres choravam e os homens murmuravam meu nome. Depois corriam, para me ver, trezentas admiradoras nuas e surdas que cuidavam do meu delicado corpo, perfumando-o com essncia de rosas.

ARQUITETOConte-me, como o mundo.

IMPERADORVoc quer dizer o mundo civilizado. Que maravilha! Durante milhares de sculos o homem acumulou conhecimentos e enriqueceu sua inteligncia at atingir essa maravilhosa perfeio que a vida moderna. Por toda parte a felicidade, a alegria, a tranqilidade, o riso, a compreenso. Tudo foi criado para tornar a existncia do homem mais simples, sua felicidade maior, sua paz mais duradoura. O homem descobriu tudo o que necessrio para o seu conforto e hoje o ser mais feliz e mais sereno de toda a criao. Um copo d'gua.

ARQUITETO (falando com um pssaro que o espectador no v)Pssaro, traga-me um copo d'gua. (Ligeira espera. O Arquiteto acompanha seu vo. Estende a mo e apanha o copo que o pssaro trouxe.) Obrigado!

IMPERADOR (depois de ter bebido)Agora voc fala com os pssaros na minha lngua?

ARQUITETOIsso o de menos. O importante o que penso: entre ns, h transmisso de pensamento.

IMPERADOR (apavorado) Diga-me uma coisa, sem mentir: voc l meus pensamentos?

ARQUITETO Quero escrever. Ensine-me a ser escritor. Voc deve ter sido um grande autor.

IMPERADOR (vaidoso) Tenho sonetos famosos! E peas de teatro, com monlogos e apartes. Nenhum escritor conseguiu igualar-se a mim. Os melhores me copiaram! Beethoven, d'Annunzio, James Joyce, o prprio Shakespeare e seu sobrinho Bernstein.

ARQUITETO Diga-me uma coisa, como que voc a matou?IMPERADOR Quem?

ARQUITETO Bem...

IMPERADORMas quando? Como? Quando que lhe falei disso?

ARQUITETO J esqueceu?

IMPERADOREu... esquecer? (Pausa.) Escute. Retiro-me do mundo. Vou me consagrar somente meditao. Acorrente-me.

ARQUITETOPor que vai se retirar do mundo?

IMPERADOR (com solenidade religiosa)Oua, essas so minhas ltimas palavras: estou cansado de viver, quero me afastar de tudo o que ainda me prenda ao mundo; quero me desligar de voc. Sobretudo, no fale mais comigo. Ficarei s, mergulhado nas minhas meditaes.

ARQUITETOIsso uma nova brincadeira.

IMPERADORNo, a verdade. De qualquer maneira tenho de me acostumar a ficar sozinho para quando voc for embora com o barco.

ARQUITETOEu no vou mais.

IMPERADORChega de falao. Traga as correntes.(O Arquiteto traz as correntes. O Imperador passa as correntes em volta do tornozelo e se prende numa rvore.)

ARQUITETOOnde que voc vai?

IMPERADOREntro na minha cabana. Nunca mais fale comigo.ARQUITETO Mas...(O Imperador entra na cabana.)

IMPERADOR (solenemente) Adeus! (O Imperador desaparece no interior da cabana.)

ARQUITETOEst bem, j entendi que um jogo. Saia da. (Silncio. Pouco a pouco aparecem as roupas do Imperador pela clarabia.) Mas. . . Por que que est se despindo? Vai se resfriar. (Olha pela clarabia. O Imperador fecha por dentro.) Escute, deixe-me ao menos v-lo! Abra a clarabia. (Pausa. O Arquiteto escuta atrs da porta.) Como, voc est rezando? Abra um pouquinho s. Est dormindo? Pare de resmungar. Ser possvel que agora voc deu para rezar? Voc vai morrer? Vou lhe contar meu sonho. Escute: sonhei que era uma Sabina e vivia numa cidade muito antiga. Um dia os guerreiros chegaram, com Casanova e Don Juan como chefes, e me raptaram. Isso lhe interessa? (Olha para todos os lados. Faz um gesto em direo aos abrolhos.) Serpente! Traga-me um leito. (Entra no mato e se debrua para frente.) Que rapidez! Obrigado, muito obrigado. (Volta com um pernil de leito.) Imperador da Assria, suas admiradoras acabaram de trazer um leito. Sinta o perfume. (Passeia com ele nos braos.) a comida que voc mais gosta, como ? No vem buscar? (Silncio. O Arquiteto sai de cena e volta vestido de mulher: uma roupa sumria que se pode pr ou tirar com facilidade.) Olhe pela fresta, admire a linda garota que desembarcou nesta ilha. (O Arquiteto vai e volta coque temente.)

ARQUITETO (mulher)Imperador, saia, sou sua humilde escrava. Ofereo-lhe todas as bebidas, as iguarias mais deliciosas e meu corpo escultural que lhe pertencem. (Silncio.) Arquiteto, que que eu posso fazer para que o homem dos meus sonhos saia para me ver?ARQUITETOVoc que mulher deve saber melhor que eu. De qualquer modo ele to ciumento que nem ouso ficar por aqui.ARQUITETO (mulher)Imperador, saia um minuto! Que a minha boca rele nos seus lbios divinos, que minhas mos acariciem seu corpo de bano, que nossos ventres se juntem numa eterna unio.ARQUITETO Como voc linda! Voc se parece tanto com a me do Imperador, no sei como ele resiste a tanto charme.ARQUITETO (mulher) Imperador, voc cruel como as hienas do deserto, se me abandona, terei de ir embora com o Arquiteto.ARQUITETONo me beije com tanta paixo, o Imperador ciumento como um tigre.ARQUITETO (mulher) lindo jovem, fecho os olhos e quando o abrao finjo estar nos braos do Imperador. Como voc jovem e sedutor. O provrbio verdadeiro: tal imperador, tal escravo. Deixe-me abraar o seu ventre de fogo.

ARQUITETOAh! Chega! No posso mais resistir. Como voc bela e feiticeira! Mesmo que o Imperador saia e me mate num acesso de cimes, eu me rendo, vtima do seu encanto. (Barulho de beijos, murmrios apaixonados. De repente o arquiteto furioso se dirige para a clarabia.) No falo mais com voc. No falo mais com voc. E no adianta depois vir me dizer que meu amigo. No quero mais v-lo. Vou buscar meu barco e vou embora para sempre. No quero nem mesmo me despedir; dentro de alguns minutos vou remar para a ilha de frente.

(Sai furioso. Longo silncio. Ouve-se o Imperador murmurar oraes. O murmrio vai crescendo. A porta se abre. O Imperador aparece nu ou vestido com uma minscula tanga.)

IMPERADOR (em tom meditativo)Construirei para mim uma gaiola de madeira e me fecharei dentro. De l perdoarei humanidade todo o dio que ela demonstra por mim. Perdoarei meu pai e minha me pelo dia em que seus ventres se uniram para me engendrar. E perdoarei minha cidade, meus amigos e meus vizinhos por no terem percebido meu valor e ignoradoquem sou, e perdoarei, e perdoarei... (Inquieto, olha de um lado para o outro. Enquanto fala, fabrica um espantalho que coloca sobre o trono.) Ah! Acorrentado. Enfim, s ! Ningum mais vai me contradizer, ningum vai debochar de mim, ningum ser testemunha de minhas fraquezas. Acorrentado! Que felicidade. Vivan las cadenas! Meu universo: uma circunferncia que tem por raio o comprimento da corrente. (Mede.) Digamos trs metros. (Mede outra vez.) Digamos dois metros e meio ou talvez trs e meio. Portanto, se o raio de trs metros, digamos quatro, eu no quero roubar, a superfcie ter 7tR2, isto 3,1416, R igual a 3, ao quadrado nove, multiplicado por n. . . d doze metros quadrados. Que mais poderiam querer os H.L.M.? (Choraminga, se assoa. Comea a vestir o espantalho com suas roupas de imperador, continuando seu monlogo. Procura subir numa rvore, sem sucesso. Pula, procura ver ao longe. Por fim, grita) Arquiteto! Arquiteto! Venha, no me deixe sozinho. Estou sozinho. Arquiteto! Arqui. . . (Recobra-se.) Pre ciso me organizar. Nada de negligncias. Levantar s nove da manh. Pequena toalete. Meditao. Pensar na quadratura do crculo. Talvez escrever sonetos. A manh passar sem que eu sinta. uma hora, almoo, ablues, depois pequena sesta, se masturbar uma vez, somente uma, mas bem, que isso dure trs quartos de hora. Para isso eu penso nessa atriz, como mesmo que ela se chama, estou com o nome na ponta da lngua, com per nas arqueadas to estranhas, to sexy e esses cabelos lou ros e esse ventre to proeminente. . . Stop! Depois da sesta. . . (Cuida dos detalhes para que o espantalho re produza exatamente sua prpria silhueta.) A est, Ia lando sozinho. Voc ficou esquizofrnico. No pode Ia zer isso. Cuidado com a loucura. (Pausa.) De tarde, uniu hora para me lembrar da minha famlia, outra para rc cordar o Arquiteto, ou meia hora, ou talvez ele merc apenas quinze minutos. Jantar. Ablues. Enliin, cama. . . digamos, s dez horas. Trs ou quatro hora! para conseguir dormir, e outro dia vai chegar. Quanta economia vou fazer: nem cinema, nem jornais, nem cocM cola. (Sempre falando, tira a corrente. Olha para todo$ os lados e grita tristemente) Arquiteto! ArquitetoIVolte! (Imitando a voz do Arquiteto) Ascensorista, ascensorista, ascensorista! (Humildemente, ao espantalho) No brigue comigo, sei que faz um ano que voc me ensina a falar e no consigo pronunciar o s certo. (Faz uma profunda reverncia.) Conte, Imperador, como era o seu despertar na Assria, ao som da msica tocada por uma legio de flautistas. A televiso transmitia o seu despertar, no ? E cem mil escravas, acorrentadas e marcadas com o seu selo, se apressavam em lavar e esfregar cada clula do seu corpo divino com perfumes do Afeganisto. (Finge escutar o que diz o Imperador.) No, minha vida no tem importncia. (Pausa.) No, no estou me fazendo de rogado, mas minha vida no tem nenhuma graa. (Pausa.) O que que eu era? Minha profisso? No interessa. (Envergonhado) Pois bem, ultimamente tinha um bom salrio. Como minha mulher ficou contente quando me aumentaram! Se tivesse continuado poderia subir pelo elevador principal e conseguiria a chave do escritrio dos diretores. (Pausa. Sai. Volta com uma saia Jeita de feixes e a enfia cerimoniosamente enquanto continua falando.) Quem lhe disse? Quando entrei, eles estavam nus sobre o leito. Ele disse "Venha ver como violo essa mulher". (Tempo.) Ela resistia com todas as foras e me pareceu que chorava. Suplicava: "No, no." Depois parou de debater-se e respirou regularmente, beijando lhe o ombro; via-se apenas o branco de seus olhos. Quando tudo terminou, ela recomeou a chorar e ele a mi as gargalhadas. (Tempo.) A mesma cena repetiu-se viiiias vezes. Finalmente ele se levantou rindo e disse: i "A est a sua mulher". Ento aproximei-me dela que Iniiava, acariciei-lhe as costas e de repente ela comeou I lli iiar. (Senta-se no cho. Chora.) Mas ns nos amva- miiK. ela era muito boa para mim, quando eu apanhava i< menor resfriado, ela imediatamente me aplicava cataplasmas. (Tempo.) Meus chefes tambm gostavam muito de mim e certo dia disseram que iam me nomear. . . (Tempo. Ele chora.) Minha me?. . . (Pausa.) Ns passvamos s vezes as tardes inteiras discutindo. (Pausa.) Ela no gostava mais de mim como quando eu era pequeno; ela me odiava mortalmente. No, minha mulher, essa me amava para valer. (Pausa.) Amigos. .. Sim, eu tive, mas claro, eles tinham inveja. Morriam de cimes de mim! (Tenta subir numa rvore, sem sucesso. Pula para ver ao longe. Grita.) Arquiteto! Arquiteto! Volte. No me deixe sozinho. No me deixe sozinho. Sinto-me muito s. Arquiteto! Arqui... Eu devia cham-lo de Arqui.. . mais chique. . . (Domina-se.) Claro, no fim eu no via mais meus amigos. .. Trabalhava muito e no sobrava tempo para eles. Quando se trabalha oito horas por dia e ainda por cima se toma trem, nibus e. . . no tinha tempo para mais nada e tinha me tornado indispensvel, era o que afirmavam os meus chefes. (Pausa.) Quando eu era criana, era diferente. Que so nhos eu tinha! Uma vez tive uma noiva e comecei a voar, mas ela no acreditou, mas eu sabia que um dia seria imperador, como voc. . . Imperador da Assria: era isso que eu pensava ser: imperador como voc. Quem diria que eu iria encontr-lo. Sonhava que ia ser o primeiro em tudo. Que ia escrever e ser um grande poeta, mas, pode ter certeza de que, se tivesse tido tempo, se no tivesse que trabalhar o dia inteiro, teria sido um grande poeta. E teria escrito cem livros to bons quanto j Os Caracteres de La Bruyre e acertava as contas com todos os meus inimigos, que tinham inveja de mim. Nm gum sairia ileso. (Risinho um pouco tolo.) Imperador, que quer? Sou seu subordinado! Ordene. (Pausa.) Voc se entedia, eu me mato, mas terei que alegr-lo. (Sal * volta com um pinico. Levanta as saias e senta. Im fora.) Impossvel. Estou com priso de ventre. (Longo momento de silncio. O Imperador continua sentado no pinico. Passa um longo tempo. Levanta-se e leva embora o pinico. Volta sem ele. Comea a chorar.) Poderia ter sido relojoeiro. Teria sido livre e teria ganho muito dinheiro, sozinho, em casa, consertando os relgios, sem patro, sem superiores, sem ningum para debochar de mim. (Choraminga.) Quando era pequeno, era diferente (Anima-se.) Sabe? Faltou pouco para eu ter uma amante. Como teria sido chique: eu com uma amante. Ela, muito loura, muito bela. .. Fomos muito felizes. . . Encontramo-nos num parque e conversamos durante muito, muito tempo. E marcamos encontro para o dia seguinte. Passei a noite desenhando para ela um corao trespassado por uma flecha. Um grande corao como aqueles das igrejas. E, para o vermelho, usei meu prprio sangue. Picava 0 dedo muitas vezes. Como doa. (Chora. Olha ao longe