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tecnologia e percepção
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O AUTÔMATO PERCEPTIVO: CONSIDERAÇÕES ELEMENTARES SOBRE
A TV DIGITAL E A PERCEPÇÃO VISUAL
Prof. MSc. Newton ScheuflerCoordenador da Casa da Mão
Resumo
A emergente oferta de dispositivos tecnológicos sugere transformações importantes nas experiências de produção e, especialmente, de recepção dos conteúdos digitais, mais particularmente distribuídos por meio de TV Aberta e Internet. A questão, que pretende iniciar uma proposta de reflexão, é pensar na percepção visual e no percurso estético. O que de movimento, deslocamento, nas construções imagéticas e nas experiências de recepção efetivamente há? Busca-se uma problematização preliminar com fins de animar a compreensão das dinâmicas da percepção visual e das propostas estéticas advindas destes processos de interatividade e convergência aparados pela tecnologia digital.
Se o cérebro humano fosse tão simplesa ponto de podermos entendê-lo, nós seríamos
tão idiotas que não conseguiríamos entender.(Jostein Gaarder)
O evento televisivo
Há uma sequência no filme Bye Bye Brasil, de Cacá Diégues, na qual a
população de uma pequena cidade interiorana se reúne na praça, estarrecida e
maravilhada diante do único aparelho de televisão da cidade, a grande contribuição da
prefeitura para o desenvolvimento cultural do município. Enquanto isso, um circo vazio
aguarda seu público. O desfecho é tragicômico: a trupe circense explode o aparelho e é
perseguida pela choldra indignada.
A ficção reflete, ou revela, a realidade (seja lá o que isto signifique para o ser
humano). Entre a ilusão e a fantasia representada em um picadeiro por artistas de carne
e osso e a diversão televisiva quase mágica, esta se mostra irresistivelmente atraente.
Isso é, entretanto, o que se espera se compararmos nosso mundo com aquele retratado
na obra de Ariano Suassuna: um mundo que ainda transitava entre concepções ético-
religiosas medievais diante da modernidade que chega na forma de raios catódicos. Por
isso, é saboroso constatar que Platão e sua alegoria da caverna continuam pertinentes
para pensarmos, por exemplo, o evento televisivo.
Falemos de tal evento, mas, por enquanto, vamos concentrar nossa atenção nas
questões menos ideológicas e mais instrumentais. Podemos, então, questionar: como se
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Vê televisão? O que é esse evento do ponto de vista das teorias da percepção? Como o
sistema nervoso do telespectador reage aos novos ecrans? Entre a fruição da obra de arte
e a entrega passiva à diversão, de onde nos observam Arnheim, Panowsky, Merleau-
Ponty, Kandinsky?
Como esses mestres do século passado, tão importantes na formação de
profissionais e de pensadores da imagem e ainda tão presentes, hoje, nos estudos da
percepção visual, pensariam a recepção e a percepção de mensagens televisivas?
Comecemos tratando de um pequeno artefato tecnológico, o controle remoto. O
primeiro controle remoto para televisão foi criado em 1950 pela Zenith Radio
Corporation, modificando a relação do espectador com a TV. Juntos, controle remoto e
televisão se tornaram uma espécie de ilha de edição (há a célebre frase de Glauber
Rocha: a memória é uma ilha de edição). Depois de tal invento, ninguém mais viu
televisão do mesmo modo. A sequência da programação passou a variar de acordo com
a vontade, ou a mania, do operador do controle remoto.
Com o surgimento da TV a cabo, essa ação editiva tornou-se ainda mais intensa,
gerando, inclusive, um neologismo: zapear. A TV digital, por sua vez, promete acentuar
ainda mais essa ação individual de construção de uma experiência televisiva. Esse
fenômeno vem sendo chamado de interatividade, ou algo do gênero.
Efeitos da digitalização
Nesse mundo televisivo de hoje, mesmo no da TV digital, a experiência estética,
no entanto, parece estar estagnada, o mesmo sobre o nada. O grotesco impera como
categoria principal, mas um grotesco revestido de um pouco de beleza aristotélica, para
seduzir os incautos. Autômatos se deliciam diante da tela enorme e colorida. Seduzidos,
babam alí durante horas. O movimento do controle remoto é quase automático,
independe da consciência. Quanto mais fascínio, mais submissão. A função operatória
do analfabetismo visual - poder e manipulação - nos faz perguntar: quem são os donos
da estética televisiva? O que muda com a interatividade digital?
No que diz respeito às teorias da percepção, a Gestalt já foi bastante criticada e,
vários de seus princípios, revistos. No entanto, ela continua sendo útil à explicação de
vários fenômenos visuais: o todo é mais do que a soma de suas partes. Nesse sentido, a
TV digital é uma nova configuração, uma nova Gestalt. Talvez nem tão nova, uma vez
que ela apenas transportou parte do computador caseiro para dentro do televisor.
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Diante disso, podemos perguntar: como as regras da percepção visual se aplicam
a essas possibilidades perceptivas do mundo digital? Como essas mudanças
tecnológicas vêm influenciando a percepção do telespectador no interior da experiência
televisiva? As formas estruturantes da percepção visual modificaram-se com os
adventos tecnológicos do século XX? Enfim, somos e seremos outros, ou continuamos
os mesmos?
Observo meus alunos e não vejo tanta diferença entre a forma como eles
percebem o mundo e como eu o percebia anos atrás, mas, daquela época, sobram apenas
lembranças esparsas. Difícil de ter certeza. Bem, havia menos informação, mas igual
curiosidade. Nem tão diferentes, nem tão semelhantes.
Assim, se as teorias da Gestalt propõem estruturas elementares da percepção
visual com, pelo menos, pretensão de universalidade (Kant sorri no túmulo), ou seja,
que independem da cultura ou da história, talvez percebamos, neurológica e
psicologicamente, o mundo da mesma forma. As diferenças podem estar nas
contingências socioculturais e subjetivas, ou seja, na significação.
Esclarecendo: não é a percepção que vem mudando, mas, sim, a forma como
atribuímos significados aos eventos tecnológicos, ainda que, se pensarmos céticamente,
não há o real, a não ser na significação. As estruturas neurológica e psicológica
antecedem essa significação.
Arnheim, no já clássico tratado “Arte e Percepção Visual”, escrito ainda em
1954, afirmava que, neste século, nossas experiências tenderiam a ser comuns, mas não
profundas; ou profundas, mas não comuns. O pensamento estaria divorciado do que
percebe e se moveria entre abstrações. Realmente, ossos olhos foram reduzidos a
instrumentos para identificar e medir, superficialmente, o mundo. Daí, a falta de
consciência e de significado daquilo que vemos.
Talvez por isso, a mudança tecnológica tenha assumido os contornos de
mudança perceptiva, sem que, no entanto, isso seja verdade. Falta pensamento, reflexão
sobre aquilo que se vê, por exemplo, na televisão. O controle remoto não modificou tal
quadro, pois o zappear é um movimento mais autômato do que reflexivo.
O que são, afinal, essas estruturas perceptivas às quais Arnheim se refere? O
autor diz que os princípios estruturantes da percepção e da representação visual
aplicam-se ao comportamento humano em geral:
A tendência no sentido de uma configuração mais simples, por exemplo, dirige as atividades do organismo a um nível fisiológico e
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psicológico tão básico que o país ou período histórico dos quais tomamos nossos exemplos humanos faz pouca diferença (ARNHEIM 2005, p.153).
Tais princípios perceptivos, portanto, continuam sendo válidos para explicar a
percepção humana. Porém, como todo modelo teórico, não é verdadeiro nem falso, mas
útil na explicação de determinados fenômenos. Arnheim afirma, ainda, que “todas as
características fundamentais que operam de maneiras refinadas, complicadas e
modificadas na arte madura apresentam-se com clareza elementar nas pinturas de uma
criança ou de um bosquímano” (2005, p.153).
Essas características fundamentais podem ser definidas como relações que o
cérebro estabelece entre forma inventada e forma observada, percepção do espaço em
relação aos meios bidimensionais, interação do comportamento motor e do controle
visual, conexão íntima entre percepção e conhecimento. Para Merleau-Ponty,
(...) os sentidos e, em geral, o corpo próprio, apresentam o mistério de um conjunto que, sem abandonar sua ecceidade e sua particularidade, emite, para além de si mesmo, significações capazes de fornecer sua armação a toda uma série de pensamentos e de experiências (2006, p. 178).
Pensando em ambientes digitais, é interessante lembrar que uma das disciplinas
que constituem a Teoria do Conhecimento é a computação, que, por meio de uma
metodologia cibernética aplicada ao estudo de inteligências artificiais baseadas na
estrutura neurológica humana, é utilizada como modelo para compreender essa mesma
estrutura. O homem olha a tecnologia como um ser estranho e novo, quando, na
verdade, apenas vê o próprio rosto.
Assim sendo, como um produto da mente - a tecnologia computacional - afeta a
própria mente? Como uma organização inferior (nenhum computador supera a
neurologia humana), em termos de estrutura e de funcionamento, pode influenciar, tão
fortemente, a própria estrutura que a gerou? Não há certo exagero no fascínio
tecnológico das atuais gerações?
Pelo menos em termos de percepção, parece que os dados são insuficientes para
afirmações mais bombásticas. A Semiótica, a Semiologia e a Linguística continuam,
porém, trabalhando com categorias de apreensão do real com base em estruturas
arcaicas da mente humana. Portanto, será que a tecnologia é mesmo capaz de modificar
tais estruturas de formação neurológica da linguagem?
Da mesma forma, é difícil chegar a conclusões sobre características de um
período histórico dentro desse mesmo período. A única coisa que parece estar
acontecendo é a mudança de comportamento em relação à produção e à recepção de
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informação e de entretenimento. Logo, o que há de nobre na tecnologia é sua origem
humana. Mudam gestos, culturas e significações, mas a estrutura perceptiva parece se
manter quase sem alterações, a não ser por certa aceleração. Seria tudo, então, uma
questão de velocidade? Este não é, no entanto, o lugar para aprofundarmos essa
discussão.
A percepção do telespectador
Ainda no âmbito da percepção, segundo Arnheim, não se percebe nenhum objeto
como único ou isolado. Ver algo implica determinar-lhe um lugar no todo: localização
no espaço, posição na escala de tamanho, claridade ou distância. A experiência visual é,
assim, dinâmica. O que uma pessoa ou um animal percebe é uma interação de tensões
dirigidas, inerentes a qualquer percepção como tamanho, configuração, localização ou
cor. Uma vez que essas tensões possuem magnitude e direção, pode-se descrevê-las
como "forças" psicológicas.
Para qualquer relação espacial entre objetos há uma distância "correta", que o
olho estabelece intuitivamente, pois o ver é a percepção da ação. Isso significa que tudo
o que acontece em qualquer lugar é determinado pela interação entre as partes e o todo,
o que o autor chama de processos de campo. O que um artista, por exemplo, cria com
materiais físicos são experiências perceptivas, ou seja, a obra de arte é a imagem que se
percebe, não a tinta.
A visão atua no material bruto da experiência, criando um esquema correlato de
formas gerais, que são aplicáveis não somente a um caso individual concreto, mas,
também, a um número indeterminado de outros casos semelhantes. Um exemplo:
embora se atribua um peso maior à parte superior do espaço visual, observa-se, no
mundo circundante, que um número maior de coisas geralmente se reúne mais próximo
do solo. A preferência estilística para sobrepujar a atração para baixo está em harmonia
com o desejo do artista de se libertar da imitação da realidade.
Tomemos a questão do equilíbrio: por que o equilíbrio pictórico é indispensável
à nossa percepção? Numa composição equilibrada, configuração, direção e localização
determinam-se mutuamente, de tal modo que nenhuma alteração pareça possível. O
todo assume o caráter de "necessidade" das partes. Em uma composição cujos fatores
estão em desequilíbrio, os elementos tendem a mudar de lugar ou de forma a fim de
conseguir um estado que melhor se relacione com a estrutura total. Por isso, tal arranjo
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parece inválido, acidental e transitório. Sob condições de desequilíbrio, a proposição do
artista torna-se incompreensível.
Todo esse conhecimento é válido para analisar a percepção do telespectador
diante de sua TV digital. Quando pensamos na televisão, porém, é preciso desconfiar
das imagens, no entanto, como diria Barthes, desconfiar do espetáculo das imagens é
privilégio do olhar cultivado, o que, infelizmente, não caracteriza a maior parte dos
telespectadores.
O que, em alguns milênios de produção artística da humanidade, transformou a
busca grega da bela forma, da perfeição do corpo, do prazer erótico e estético, em prazer
sensual da carne exposta? Pensar no apelo erótico-grotesco da programação televisiva, é
pensar em nós mesmos, em nosso tempo, no espaço que nos envolve; é pensar em
nossos desejos e rejeições: arte e erotismo, arte e pornografia, arte e desejo, arte e prazer
estético, arte e prazer carnal. Ovídio avizinha olhar e triturar. O homem que devora com
os olhos expõe-se a ser deglutido pela imagem que o seduz. A observação constata: ver
gera sonhos, esperança, imaginação, arte, pois a imagem é, de certa maneira, o limite do
sentido.
Até que ponto, em que grau ou nível e de que forma específica mudanças
tecnológicas modificam a percepção de mundo de um determinado grupo social? Como
mensurar o tempo de desenvolvimento e de estabilização de tais mudanças? A imprensa
de Gutemberg levou mais de um século até, efetivamente, popularizar normas e padrões
de relação do homem com o texto impresso. Por muito tempo, e em alguns caso até
hoje, não houve mudanças significativas.
É verdade que podemos pensar, até certo ponto e em alguns casos mais do que
em outros, na tecnologia como extensão do homem, clássica discussão proposta por
Marshall McLuhan: a pedra, ferramenta que lasca o sílex, o carvão utilizado como
instrumento de pintura nas paredes das cavernas, o telefone como prolongamento de
nosso sistema auditivo-fonador. Em alguns casos, no entanto, a ideia torna-se mais
difícil de ser entendida, como no caso da eletricidade como extensão de nosso sistema
nervoso central. Tal comparação é bastante delicada, pois nem mesmo nossa ciência
contemporânea conseguiu delimitar, exatamente, o funcionamento de um sistema tão
complexo como a mente humana.
Pistas para pensar a configuração digital
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Um dos maiores problemas do fascínio diante das tecnologias digitais é a
afirmação de que elas são as grandes, e novas, responsáveis pela educação das pessoas.
É como criar robôs que treinam autômatos. Mesmo a dita interatividade da internet não
garante qualidade estética. Os sites mais acessados são tão burros quanto a programação
da TV aberta. Sim, é verdade que as tecnologias computacionais permitiram que
qualquer um seja autor, o que é bom por princípio, mas medíocre de fato. A maior parte
do conteúdo postado é dispensável, ou seja, a própria internet, assim como a TV digital,
podem se mostrar bastante úteis para um controle massivo da programação, apenas
acrescentando a ilusão de liberdade, o que não tem gerado qualidade estética em
nenhuma instância.
Se “novas” configurações tecnológicas, além de gerar mudanças
comportamentais, podem também alterar nosso equipamento perceptivo, ainda não
temos como saber. Aparentemente, continuamos a perceber o mundo por estruturas
neurológicas milenares que não se modificam tão facilmente, mas é verdade que poderá
haver modificação, mesmo na estrutura biológica humana, como uma espécie de reação
evolutiva a um estímulo externo.
Pesquisas futuras talvez tenham a resposta.
Referências Bibliográficas
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora.
Tradução de Ivonne Terezinha de Farias. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.
BARTHES, Roland. Inéditos: imagem e moda. Tradução de Ivone Castilho Benedetti.
São Paulo: Martins fontes, 2005. (Coleção Roland Barthes)
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos
Alberto Ribeiro de Moura. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Tópicos)
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