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NOVOS ESTUDOS 89 ❙❙ MARÇO 2011 17 RESUMO Contra as previsões de que a China substituirá em breve os eua como a principal potência econômica mundial, o autor argumenta que o modelo de crescimento chinês, voltado à exportação e lastreado por enormes reservas em dólares, confinou o país asiático a um papel subordinado, ao qual boa parte de sua elite se mantém comprometida. PALAVRAS-CHAVE: Economias do Leste Asiático; República Popular da China; modelo de crescimento voltado à exportação; relações econômicas entre China-EUA. ABSTRACT Against predictions that China will soon replace the us as the world’s dominant economic power, the author argues that the prc’s exportation-oriented growth and vast dollar reser- ves have trapped it in a subordinate role — to which much of its elite remains committed. KEYWORDS: East Asian economies; People’s Republic of China; export-oriented growth; China-US economic relations. O BRAÇO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? Hung Ho-Fung tradução de Fernando Rugitsky** DOSSIÊ CHINA A crise das hipotecas subprime e o declínio global re- sultante levaram muitos a especular que algum desafiante poderia emergir para substituir os Estados Unidos como ator dominante na economia mundial capitalista 1 . Como a crise financeira nos Estados Unidos e no Norte global 2 originou-se do elevado endividamento, da baixa produtividade e do consumo excessivo, parecia natural olhar para os seus opostos — a imensa acumulação de dívida americana pe- los exportadores do Leste Asiático, sua capacidade produtiva e suas elevadas taxas de poupança — a fim de identificar candidatos pro- váveis. Imediatamente depois de o colapso do Lehman Brothers em 2008 ter revelado o início da recessão global, proclamou-se o triunfo final do modelo de desenvolvimento do Leste Asiático, sobretudo o [*] Publicado originariamente em New Left Review, nº 60, nov.-dez. 2009, pp. 5-25. [**] Agradeço às sugestões à tradu- ção feitas por Raphael Neves e Lucia Del Picchia. [n. t.] [1] Uma versão anterior deste en- saio foi apresentada na conferência em homenagem a Giovanni Arrighi, promovida pela Universidad Nóma- da e pelo Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía (Madri), entre 25 e 29 de maio de 2009. Agradeço aos comentários dos participantes pre- sentes na ocasião. [2] A distinção entre global North [Norte global] e global South [Sul global] é comum na literatura ligada às teorias do sistema-mundo, à qual este artigo se filia. Por esse motivo, optou-se por traduzir essas expres- sões de forma literal, ainda que resul- tem incomuns em português. [n. t.] O dilema da República Popular da China na crise global*

O braço

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O braço direito dos Estados Unidos

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  • NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011 17

    RESUMO

    Contra as previses de que a China substituir em breve os

    eua como a principal potncia econmica mundial, o autor argumenta que o modelo de crescimento chins, voltado

    exportao e lastreado por enormes reservas em dlares, confinou o pas asitico a um papel subordinado, ao qual boa

    parte de sua elite se mantm comprometida.

    PALAVRAS-CHAVE: Economias do Leste Asitico; Repblica Popular da

    China; modelo de crescimento voltado exportao; relaes econmicas

    entre China-EUA.

    ABSTRACT

    Against predictions that China will soon replace the us as the

    worlds dominant economic power, the author argues that the prcs exportation-oriented growth and vast dollar reser-

    ves have trapped it in a subordinate role to which much of its elite remains committed.

    KEYWORDS: East Asian economies; Peoples Republic of China;

    export-oriented growth; China-US economic relations.

    O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS?

    Hung Ho-Fung

    traduo de Fernando Rugitsky**

    DOSSI CHINA

    A crise das hipotecas subprime e o declnio global re-sultante levaram muitos a especular que algum desafiante poderia emergir para substituir os Estados Unidos como ator dominante na economia mundial capitalista1. Como a crise financeira nos Estados Unidos e no Norte global2 originou-se do elevado endividamento, da baixa produtividade e do consumo excessivo, parecia natural olhar para os seus opostos a imensa acumulao de dvida americana pe-los exportadores do Leste Asitico, sua capacidade produtiva e suas elevadas taxas de poupana a fim de identificar candidatos pro-vveis. Imediatamente depois de o colapso do Lehman Brothers em 2008 ter revelado o incio da recesso global, proclamou-se o triunfo final do modelo de desenvolvimento do Leste Asitico, sobretudo o

    [*] Publicado originariamente em

    New Left Review, n 60, nov.-dez.

    2009, pp. 5-25.

    [**] Agradeo s sugestes tradu-

    o feitas por Raphael Neves e Lucia

    Del Picchia. [n. t.]

    [1] Uma verso anterior deste en-

    saio foi apresentada na conferncia

    em homenagem a Giovanni Arrighi,

    promovida pela Universidad Nma-

    da e pelo Museo Nacional Centro de

    Arte Reina Sofa (Madri), entre 25 e

    29 de maio de 2009. Agradeo aos

    comentrios dos participantes pre-

    sentes na ocasio.

    [2] A distino entre global North

    [Norte global] e global South [Sul

    global] comum na literatura ligada

    s teorias do sistema-mundo, qual

    este artigo se filia. Por esse motivo,

    optou-se por traduzir essas expres-

    ses de forma literal, ainda que resul-

    tem incomuns em portugus. [n. t.]

    O dilema da Repblica Popular da China na crise global*

  • 18 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung

    [3] Ver Altman, Roger. The great

    crash, 2008: a geopolitical setback

    for the West. Foreign Affairs, jan.-fev.

    2009.

    chins. Comentadores do establishment americano concluram que a grande crise de 2008 seria o catalisador para um deslocamento do centro do capitalismo global dos Estados Unidos para a China3.

    Mas na primavera de 2009 muitos j haviam se dado conta de que as economias do Leste Asitico no eram to formidveis quanto as aparncias sugeriam. Enquanto a contrao brusca da demanda por importaes do Norte global levou os exportadores asiticos a aterris-sagens foradas, a perspectiva de tanto o mercado de ttulos do tesouro americano quanto o dlar atingirem nveis muito baixos colocou-os diante do difcil dilema de se livrar dos ativos americanos, e assim pre-cipitar um colapso do dlar, ou comprar mais, evitando uma queda imediata mas aumentando a sua exposio a um colapso no futuro. O investimento coordenado pelo Estado, que se estendeu at o fim de 2008 sob o megaprograma de estmulo da Repblica Popular da China (RPC), encorajou uma recuperao significativa da economia chinesa, assim como dos seus parceiros comerciais asiticos, mas o crescimento gerado provavelmente no se sustentar sozinho. Econo-mistas e assessores chineses tm se preocupado com a possibilidade de a RPC titubear mais uma vez quando o efeito do estmulo enfraque-cer, visto que improvvel que os consumidores americanos voltem a assumir essa conta em um futuro prximo. Apesar de toda a discusso acerca da capacidade da China de destruir o status de moeda-reserva do dlar e de construir uma nova ordem financeira global, a RPC e seus vizinhos tm poucas alternativas no curto prazo, a no ser sustentar o domnio econmico americano por meio da ampliao do crdito.

    Neste artigo, trao as origens histricas e sociais da dependncia crescente da China e do Leste Asitico em relao aos mercados de consumo do Norte global, como fonte do seu crescimento, e aos ins-trumentos financeiros dos Estados Unidos, como reserva de valor de suas poupanas. Em seguida, avalio as possibilidades de superao dessa dependncia em longo prazo, argumentando que, para criar uma ordem econmica mais autnoma na sia, a China teria que transfor-mar um modelo de crescimento orientado para as exportaes que tem beneficiado principalmente os setores exportadores da regio costeira, que o perpetuam em um modelo impulsionado pelo con-sumo domstico, por meio de uma ampla redistribuio de renda para o setor rural-agrcola. Isso no ser possvel, contudo, sem romper o predomnio poltico da elite urbana costeira.

    TIGRES E GANSOS

    A histria da rpida ascenso do Japo e dos quatro tigres asi-ticos Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura , no ps-guerra, conhecida e no preciso repeti-la aqui. Mas, se sua es-

  • 19NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011

    calada dinmica pode ser atribuda ao direcionamento de recursos preciosos para setores industriais estratgicos pelas autoridades centralizadas, igualmente importante reconhecer que foi a geopo-ltica da Guerra Fria no Leste Asitico, em primeiro lugar, que tornou possvel o surgimento de estados desenvolvimentistas na regio. Na verdade, durante esse perodo esteve em curso no Leste Asitico uma guerra quente. O apoio da China comunista s guerrilhas e seu envolvimento nas guerras da Coreia e do Vietn levaram a regio a um estado de emergncia permanente, e Washington julgava o Leste Asitico o elo mais vulnervel na sua estratgia para conter o co-munismo. Considerando que seus principais aliados asi ticos o Japo e os quatro tigres eram importantes demais para fracas-sarem, o governo americano lhes forneceu apoio financeiro e mili-tar abundantes para disparar e dirigir o crescimento industrial, ao mesmo tempo que mantinha o mercado americano e o europeu es-cancarados para os produtos manufaturados asiticos. Esse acesso aos mercados ocidentais constituiu uma vantagem adicional de que outros pases em desenvolvimento no desfrutavam, sem a qual inimaginvel que as economias asiticas tivessem tido tanto suces-so. Visto sob essa tica, o rpido crescimento econmico do Leste Asitico est longe de ser um milagre. Os Estados Unidos o proje-taram como parte de um esforo para criar baluartes subordinados e prsperos contra o comunismo na regio da sia e do Pacfico. Essas economias nunca se destinaram a desafiar os interesses geo-polticos e geoeconmicos americanos. Em vez disso, eram clientes subservientes que auxiliavam Washington a realizar seus planos para a regio.

    Organizados em redes produtivas de subcontratao de mlti-plas camadas centradas no Japo, os exportadores asiticos ocupa-vam diferentes elos da cadeia de valor, cada um se especializando em produtos com determinado nvel de lucratividade e sofisticao tecnolgica. O Japo focou-se nos itens com maior valor agregado; os quatro tigres, em produtos de nvel intermedirio; os tigres emer-gentes do Sudeste Asitico, em produtos de baixo custo, intensivos em trabalho. Esse famoso padro de gansos voadores formou uma rede de fornecedores confiveis de uma ampla gama de bens de con-sumo para o Primeiro Mundo.

    Quando as tenses da Guerra Fria comearam a arrefecer nos anos 1980, os dficits de transaes correntes e fiscais dos Estados Unidos aumentaram, como resultado de cortes de impostos neoliberais e do crescimento dos gastos militares relacionados s fases finais da Guer-ra Fria. Em vez de sair da rbita da hegemonia americana, no entanto, as economias asiticas estreitaram seus laos com os Estados Unidos, financiando os seus dficits gmeos em franca ascenso. A industria-

  • 20 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung

    lizao orientada para as exportaes do Leste Asitico estivera ligada a nveis baixos de consumo domstico. Os subsequentes supervits comerciais e altas taxas de poupana permitiram que esses estados acumulassem poder financeiro substancial na forma de grandes reser-vas cambiais. Considerando os ttulos do tesouro americano o inves-timento mais seguro das finanas globais, a maioria dos exportadores do Leste Asitico despejou voluntariamente seu dinheiro acumulado em ttulos de baixo retorno, tornando-se os principais credores dos Estados Unidos. Esse financiamento do dficit de transaes corren-tes americano estimulou, ento, o apetite dos Estados Unidos pelas importaes asiticas, e o crescimento adicional dos supervits co-merciais asiticos ainda aumentou as compras de ttulos do tesouro. Esses processos que se alimentavam mutuamente ampliaram de for-ma contnua a dependncia econmica e financeira do Leste Asiti-co em relao aos Estados Unidos, colaborando para prolongar a sua frgil prosperidade enquanto a hegemonia americana se consolidava.

    A partir do anos 1980 e de forma mais acelerada nos anos 1990, as reformas de mercado da rpc transformaram-na em um tigre asitico retardatrio. Muitos previram que esse pas seria singularmente capaz de romper com as dependncias gmeas da sia em relao aos Esta-dos Unidos, em decorrncia de sua autonomia geopoltica e de sua magnitude demogrfica e econmica excepcional. Mas no foi dessa vez que a China se libertou da servido de fornecer aos Estados Unidos crdito barato e importaes de baixo custo. Pior, a intensidade de seu modelo de crescimento impulsionado pelas exportaes e baseado na represso do consumo privado fez com que sua dependncia econ-mica e financeira em relao aos Estados Unidos fosse ainda maior do que a de seus antecessores. Se compararmos os aspectos mais impor-tantes da economia poltica da China com os de seus vizinhos em um estgio similar de desenvolvimento, conclumos que o modelo chins , em grande medida, uma rplica levada ao extremo do crescimento inicial do Leste Asitico. O Grfico 1 mostra que a dependncia comer-cial da economia chinesa, medida pelo valor total de suas exportaes como percentual do produto interno bruto (pib), tem crescido conti-nuamente, atingindo um nvel jamais alcanado pelas outras econo-mias do Leste Asitico. Por outro lado, a participao percentual do consumo privado chins no PIB tem diminudo, caindo bem abaixo da participao dos outros pases durante a decolagem de suas econo-mias (Grfico 2). Conforme indica a Tabela 1, os Estados Unidos so, sozinhos, o mercado de exportao mais importante para a China como foram antes para o Japo e os tigres asiticos , tendo sido ape-nas ultrapassados recentemente pela Unio Europeia, considerada em sua totalidade. A China j se tornou o principal fornecedor asitico dos Estados Unidos.

  • 21NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011

    A drstica expanso dos setores exportadores da China no ape-nas a razo por trs de seu impressionante crescimento econmico, mas tambm, por meio de um supervit comercial crescente, de seu po-der financeiro global. Como indicado no Grfico 3, as reservas cambiais

    GRFICO 1

    Exportaes como percentual do PIB nas economias do Leste Asitico, 1965-2004

    * Outras economias do Leste Asitico representa a mdia de Japo, Coria do Sul e Taiwan. Exclui Hong Kong

    e Cingapura em decorrncia do alto percentual de comrcio de entreposto nessas economias.

    Fonte: Banco Mundial e Centro de Dados Econmicos de Taiwan, banco de dados Aremos.

    40

    30

    20

    10

    01970 1980 1990 2000

    China

    Outras economias do Leste Asitico*

    GRFICO 2

    Consumo privado como percentual do PIB nas economias do Leste Asitico

    * Outras economias do Leste Asitico representa a mdia de Japo, Coria do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong.

    Fonte: Banco Mundial e Centro de Dados Econmicos de Taiwan, banco de dados Aremos.

    80

    70

    60

    50

    40

    1960 1970 1980 1990 2000

    China

    Outras economias do Leste Asitico*

  • 22 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung

    da China atualmente excedem bastante as de seus vizinhos do Leste Asitico. At agora, a China, como os outros exportadores, tem inves-tido a maior parte de sua poupana em ttulos do tesouro dos Estados Unidos. s vsperas da crise das hipotecas subprime, a China emergira como o maior exportador para os Estados Unidos e, ao mesmo tempo, o seu maior credor, financiando o dficit de transaes correntes ame-ricano e sustentando sua capacidade de absorver importaes (Grfico 4). Enquanto as exportaes de baixo custo da China ajudaram a baixar a inflao nos Estados Unidos, sua compra espetacular de ttulos do tesouro contribuiu para reduzir seu retorno e, assim, tambm as taxas de juros nos Estados Unidos. Dessa maneira, a China emergiu nos lti-mos anos como o principal suporte da vitalidade econmica americana.

    CRISE AGRRIA

    A habilidade da China de instituir uma verso extrema do modelo do Leste Asitico de crescimento impulsionado pelas exportaes ao longo das ltimas trs dcadas dependeu tanto da conjuntura global quanto da sua economia poltica interna. Em primeiro lugar, a deco-lagem com desenvolvimento intensivo em trabalho coincidiu com o incio de uma expanso sem precedentes do livre-comrcio global, a partir da dcada de 1980. No fosse pela deslocalizao [outsourcing] da indstria do Norte global e pelo crescente apetite deste para im-portar produtos manufaturados de baixo custo, teria sido impossvel para a RPC prosperar por meio das exportaes. Mas, essencialmente, a competitividade excepcional da China , em grande parte, baseada na prolongada estagnao dos salrios industriais em comparao com outros pases asiticos em estgios equivalentes de desenvolvimento.

    TABELA 1

    Exportaes do Leste Asitico para os Estados Unidos e para o mundo (em trilhes de dlares, US$)

    Fonte: Estatsticas de Direo do Comrcio do fmi e Centro de Dados Econmicos de Taiwan, banco de dados

    Aremos.

    China

    Japo

    Coria do Sul

    Taiwan

    Hong Kong

    Cingapura

    2,3

    66,7

    10,8

    14,8

    9,3

    4,8

    27,3

    177,3

    30,3

    30,7

    30,2

    23

    24,7

    122

    24,3

    26,4

    37,9

    21,6

    EUA EUAMundo

    1985

    Mundo EUA Mundo

    149

    443,3

    131,3

    113

    173,6

    118,2

    163,3

    136

    41,5

    29,1

    46,5

    23,9

    762,3

    594,9

    284,3

    198

    289,5

    207,3

    1995 2005

    Pas

  • 23NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011

    Muitos argumentam que a competitividade salarial da China origina-se de seu regime de cmbio fixo, que subvaloriza sua moeda consideravelmente. Outros afirmam que o imenso excedente de mo de obra rural do pas permitiu seu desenvolvimento, com uma oferta ilimitada de trabalho, por muito mais tempo que outras economias asiticas. Mas um exame mais prximo revela que ambas as explica-es so inadequadas. Em primeiro lugar, conforme indica o Grfico 5, a diferena entre os nveis de salrio da China e os de seus vizinhos mui-to maior do que a que um cmbio subvalorizado poderia explicar. Mes-mo que se estimasse o iuane entre 20% e 30% em relao ao dlar como defendem muitos crticos americanos da manipulao cam-bial chinesa , os salrios chineses ainda seriam significativamente menores. Em segundo lugar, uma oferta ilimitada de trabalho no um fenmeno natural resultante da estrutura populacional da China, como com frequncia se supe. Na realidade, uma consequncia das polticas rurais-agrcolas do governo, que, intencionalmente ou no, faliram o campo e geraram um contnuo xodo rural.

    A relao entre essas polticas e os baixos nveis salariais pode ser ilustrada comparando-se o desenvolvimento rural da China com o do Japo, da Coreia do Sul e de Taiwan, que tambm dispunham de grandes populaes rurais e setores agrrios no incio de sua decolagem econmica. No Japo do ps-guerra, o Partido Liberal Democrata, ento no poder, direcionou ativamente recursos para o campo, por meio de gastos com infraestrutura rural, financiamento do desenvolvimento agrrio, subsdios s propriedades rurais e ta-

    GRFICO 3

    Reservas cambiais como percentual do PIB no Leste Asitico

    * Outras economias do Leste Asitico representa a mdia de Japo, Coria do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong.

    Fonte: Banco Mundial e Centro de Dados Econmicos de Taiwan, banco de dados Aremos.

    50

    40

    30

    20

    10

    01970 1980 1990 2000

    China

    Outras economias do Leste Asitico*

  • 24 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung

    rifas sobre a produo estrangeira. Na Coreia do Sul, o regime Park lanou o Saemaul Undong [Movimento Novas Vilas] no incio dos anos 1970, deslocando recursos fiscais significativos para melhorar a infraestrutura rural, financiar a mecanizao agrcola e instalar ins-tituies e cooperativas educacionais rurais. Essa iniciativa foi um sucesso notvel: aumentou a renda das famlias rurais de 67% da

    GRFICO 4

    Percentuais da dvida pblica de longo prazo dos Estados Unidos detidos pela China e pelo Leste Asitico (%)

    Fonte: Tesouro dos Estados Unidos.

    40

    30

    20

    10

    01978 1984 1994 2000 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

    Outras economias do Leste Asitico*China

    GRFICO 5

    Salrio industrial no Leste Asitico como percentual do salrio nos Estados Unidos

    Fonte: Agncia de Estatsticas do Trabalho dos Estados Unidos, Estatsticas de Trabalho Estrangeiro (Japo e

    Tigres Asiticos); Anurio Estatstico da China.

    1950 1960 1970 1980 1990 2000

    60

    50

    40

    30

    20

    10

    Coria do Sul

    Japo

    Taiwan

    China

  • 25NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011

    [4] Lie, John. The State, industria-

    lization and agricultural sufficiency:

    the case of South Korea. Develop-

    ment Policy Review, vol. 9, n 1, 1991,

    pp. 37-51.

    renda urbana, em 1970, para 95%, em 1974, eliminando virtualmen-te a disparidade de renda rural-urbana4. Em Taiwan, o governo do Kuomintang adotou polticas similares nos anos 1960 e 1970, pa-ralelamente a esforos conscientes para promover a industrializao rural. A estrutura descentralizada resultante da indstria taiwanesa permitiu aos agricultores trabalharem de forma sazonal nas fbri-cas das proximidades sem abandonar completamente a agricultura ou migrar para as grandes cidades. Isso ajudou a reter uma parcela considervel da mo de obra nas vilas, encorajando um crescimento rural-urbano mais equilibrado. Ao longo dos anos 1960 e 1970, a renda rural per capita se manteve acima de 60% do nvel urbano. Sob tais polticas, no surpreendente que o excedente de mo de obra rural tenha secado rapidamente e que os salrios industriais tenham se elevado nesses pases.

    As razes para a adoo dessas trajetrias diferentes variaram. No Japo, a importncia dos votos rurais para o sucesso eleitoral do Partido Liberal Democrata explica sua ateno ao desenvolvimento rural. Para os regimes autoritrios de direita da Coreia do Sul e de Taiwan, a promoo do desenvolvimento rural-agrcola foi uma ma-neira de minimizar o deslocamento social que usualmente acompa-nha a industrializao e de se antecipar ao crescimento da influncia da esquerda no campo. Foi tambm uma forma crucial de garantir a segurana alimentar no contexto das tenses da Guerra Fria. Em contraste, o desenvolvimento industrial da China desde meados dos anos 1980 tem sido muito mais desequilibrado do que o do Japo, o da Coreia do Sul e o de Taiwan. Ao longo dos ltimos vinte anos, o governo chins tem concentrado grande parte dos investimentos no setor urbano-industrial, particularmente nas reas costeiras, deixando defasado o investimento rural e agrcola. Bancos pblicos tambm focaram os seus esforos no financiamento do desenvolvi-mento urbano-industrial, enquanto o financiamento rural e agrcola foi negligenciado. Nas ltimas duas dcadas, a renda rural per capita nunca excedeu 40% do nvel urbano.

    Esse vis urbano emergiu, ao menos parcialmente, devido ao predomnio de uma poderosa elite urbano-industrial das regies costeiras do sul um segmento que germinou aps a integrao inicial da China na economia global, que expandiu seus recursos financeiros e sua influncia poltica com o boom das exportaes e que se tornou crescentemente adepto da prtica de moldar a poltica do governo central a seu favor. De acordo com uma avaliao recente, a faco elitista do Partido Comunista Chins (pcc) composta de lderes antigos que construram suas carreiras nas regies costei-ras e na administrao financeira e do comrcio controla mais as-sentos no politburo do que a faco populista rival, que tem laos

  • 26 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung

    [5] Li, Cheng. One party, two coa-

    litions in Chinas politics. Brookings

    Institute, 16/08/2009.

    [6] Jikun, Huang, Rozelle, Scott e

    Honglin, Wang. Fostering or stri-

    pping rural China: modernizing

    agriculture and rural to urban capital

    flows. The Developing Economies, vol.

    44, n 1, 2006, pp. 1-26.

    mais estreitos com as provncias do interior. Embora Hu Jintao, o atual chefe de Estado, seja um lder da faco populista, Xi Jinping escolhido pelo partido para suceder Hu em 2012, em detrimento do prprio favorito de Hu foi governador das provncias litorneas de Fujian e Zhejiang e um dos principais membros da faco eli-tista5. A crescente influncia dessa faco assegurou que fosse dada mais ateno ao aumento da competitividade das exportaes chi-nesas e da atratividade ao investimento estrangeiro em detrimento do desenvolvimento agrrio. As revoltas urbanas de 1989, provocadas pela hiperinflao e pela deteriorao do padro de vida nas grandes cidades, apenas tornaram o partido estatal mais determinado a garantir nos anos 1990 a prosperidade econmica das reas metropolitanas custa do campo.

    O resultado desse vis urbano tem sido uma relativa estagnao econmica no campo e um concomitante rigor fiscal empreendido pelos governos locais rurais. A partir dos anos 1990, a deteriorao das rendas rurais e o declnio das indstrias coletivas rurais em-presas das vilas e dos municpios que costumavam ser vibrantes geradoras de empregos nos estgios iniciais das reformas de mer-cado foraram a maior parte dos jovens trabalhadores do campo a migrar para a cidade, criando um crculo vicioso que precipitou uma crise social rural. O setor agrrio da China no s foi apenas ne-gligenciado, como tambm explorado em benefcio do crescimento urbano. Um estudo recente concluiu que houve uma transferncia l-quida contnua e crescente de recursos do setor rural-agrcola para o urbano-industrial, entre 1978 e 2000, tanto por meio de poltica fiscal (impostos e gastos do governo) quanto por meio do sistema finan-ceiro (depsitos de poupanas e emprstimos)6. As excees a essa tendncia foram os anos em que a economia urbana passou por um declnio temporrio, como ocorreu aps a crise financeira asitica de 1997-1998 (ver Grfico 6).

    Esse modelo que favorece o desenvolvimento urbano em detrimen-to do desenvolvimento rural da rpc , portanto, fonte da prolongada oferta ilimitada de trabalho chins e, assim, da estagnao salarial que caracterizou o seu milagre econmico. Esse padro tambm res-ponsvel pelo ascendente supervit comercial da China, a fonte de seu crescente poder financeiro global. No entanto, os baixos salrios e o baixo padro de vida no campo, que resultaram dessa estratgia de de-senvolvimento, limitaram o mercado de consumo domstico chins e aprofundaram sua dependncia em relao demanda por consumo do Norte global, a qual se sustenta cada vez mais por emprstimos substanciais da China e de outros exportadores asiticos. Como esses outros exportadores foram integrados no motor de exportao chins, por meio da regionalizao de redes produtivas industriais, as vulne-

  • 27NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011

    [7] A panda breaks the formation.

    Economist, 25/08/2001.

    rabilidades da economia chinesa tornaram-se fragilidades do Leste Asitico como um todo.

    DEPENDNCIA SINOCNTRICA

    Nos anos 1990, a China se estabeleceu de forma gradual como o mais competitivo exportador asitico em vrios nveis de sofisticao tecnolgica. Como resultado, os outros pases incluindo o Japo e os quatro tigres originais, alm de um grupo de tigres emergentes do Sudeste Asitico, como a Malsia e a Tailndia foram colocados sob intensa presso para se ajustar. A competitividade da RPC induziu muitos exportadores de produtos manufaturados, vindos de outros lugares da sia, a se mudarem para l. Uma reportagem da Economist de 2001 notou o temor e desespero com o qual os vizinhos da China reagiram a sua ascenso:

    O Japo, a Coreia do Sul e Taiwan temem um esvaziamento das suas indstrias, enquanto fbricas mudam-se para a China devido aos seus baixos custos. O Sudeste Asitico preocupa-se com o deslocamento dos fluxos co-merciais e de investimento. [] A China no um ganso [voador] [] porque fabrica tanto produtos simples quanto sofisticados, fraldas descartveis e mi-crochips [] Ela fabrica produtos ao longo de toda a cadeia de valor, em uma escala determinante dos preos mundiais. Da a ansiedade do Leste Asitico. Se a China mais eficiente em tudo, o que resta para os seus vizinhos produzirem?7

    GRFICO 6

    Transferncia monetria total do campo para as cidades (bilhes de yuan em preos constantes)

    Fonte: Huang, Rozelle e Wang, Fostering or stripping rural China.

    400

    300

    200

    100

    1980 1985 1990 1995 2000

    Agricultura para indstria

    reas rurais para reas urbanas

  • 28 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung

    Decerto, os vizinhos da China reestruturam meticulosamente os seus setores exportadores a fim de minimizar a competio frontal com a economia chinesa e de lucrar com a sua ascenso. Sob a antiga ordem in-dustrial do Leste Asitico, cada economia exportava grupos especficos de bens de consumo acabados. Agora, esses pases comearam a aumen-tar a proporo de componentes de alto valor agregado (Coreia do Sul e Taiwan) e de bens de capital (Japo) nas suas exportaes para a China.

    Conforme a Tabela 2 indica, as exportaes da Coreia do Sul, de Hong Kong e de Taiwan para a China ultrapassaram suas exportaes para os Estados Unidos ao longo da ltima dcada, enquanto as do Japo e de Cin-gapura para a China aproximaram-se rapidamente de suas exportaes para os Estados Unidos. At 2005, o modelo de regionalismo asitico de gansos voadores centrado no Japo foi substitudo por uma rede pro-dutiva sinocntrica na qual a China exportava a maior parte dos bens de consumo para o Norte global em nome dos seus vizinhos asiticos, que a proviam com componentes e mquinas necessrios para mont-los. Essa estrutura pode ser vista como um time de funcionrios, tendo a China como chefe, liderando os demais no fornecimento de exportaes baratas para os Estados Unidos e na utilizao de suas poupanas conquistadas arduamente para financiar as compras americanas dessas exportaes.

    A integrao regional no Leste Asitico reflete-se claramente na correlao entre os altos e baixos dos dados de exportao da China e seus vizinhos. Por exemplo, a recuperao da sia da crise financeira de 1997-1998 e o crescimento renovado do Japo aps 2000 podem ser atribudos, ao menos em parte, absoro de seus componentes manufaturados e de seus bens de capital pelo boom econmico chins. Quando a atual crise global comeou a se delinear e a demanda dos con-sumidores dos Estados Unidos passou a se contrair de forma abrupta no outono de 2008, as exportaes asiticas despencaram imediata-mente, enquanto as da rpc encolheram na mesma proporo apenas trs meses depois. A causa dessa disparidade temporal foi o fato de que a queda nas exportaes asiticas deveu-se em grande parte a um de-clnio das encomendas de componentes e de bens de capital realizadas pela China, antecipando a queda violenta nas encomendas por pro-dutos acabados realizadas pelos Estados Unidos e por outros pases, que ocorreria nos meses seguintes. Os limites do modelo de desen-volvimento chins excessiva dependncia no consumo do Ocidente e crescimento letrgico do mercado domstico traduzem-se inevi-tavelmente em vulnerabilidades de seus parceiros asiticos, deixando todas essas economias expostas a qualquer contrao da demanda por consumo do Norte global. Reequilibrar o desenvolvimento da China, portanto, no necessrio apenas para a sustentabilidade de seu cres-cimento econmico, mas tambm para o futuro coletivo do Leste Asi-tico como um bloco econmico integrado.

  • 29NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011

    OBSTCULOS PARA O REEQUILBRIO

    Os governos da China e do Leste Asitico utilizaram suas reservas internacionais para comprar ttulos da dvida americana no apenas em busca de retornos presumivelmente estveis e seguros, mas tam-bm como parte de um esforo deliberado de financiar o crescente d-ficit em transaes correntes dos Estados Unidos e, assim, assegurar um aumento contnuo da demanda americana por suas prprias ex-portaes. Mas o dficit no se expande indefinidamente, o que pode s vezes resultar em um colapso do dlar ou do mercado de ttulos do tesouro e em um salto das taxas de juros, colocando um fim farra de consumo americana. Isso no seria somente um golpe mortal para o motor exportador da China, como tambm dizimaria seu poder finan-ceiro global por meio de uma drstica desvalorizao de seus investi-mentos preexistentes.

    Antes da crise atual, o governo chins experimentou diferentes maneiras de diversificar e ampliar os retornos sobre suas reservas internacionais. Tentou investir em aes estrangeiras e financiar a aquisio de corporaes transnacionais pelas companhias estatais, mas quase todas as tentativas terminaram como fracassos cons-trangedores. Isso foi menos o resultado de ms decises de inves-timento do que dos limites impostos pela magnitude excepcional das reservas internacionais da China, tornando difcil para Pequim entrar e sair livremente de certos ativos financeiros sem desorga-nizar os mercados globais. Ao mesmo tempo, as compras de im-portantes companhias estrangeiras pelos chineses tinham grande probabilidade de incentivar reaes protecionistas ou nacionalis-tas. Como resultado, as aquisies estrangeiras da China foram, em sua maioria, de empresas em declnio que procuravam compradores

    TABELA 2

    Exportaes para a China e para os Estados Unidos como percentual das exportaes totais

    Fonte: Estatsticas de Direo do Comrcio do fmi e Centro de Dados Econmicos de Taiwan, banco de dados

    Aremos.

    Japo

    Coria do Sul

    Taiwan

    Hong Kong

    Cingapura

    7,1

    0

    0

    26

    1,5

    37,6

    35,6

    18,1

    30,8

    21

    5

    7

    0,3

    33,3

    2,3

    China ChinaEUA

    1985

    EUA China EUA

    27,5

    18,5

    23,3

    21,8

    18,3

    13,5

    21,8

    22

    45

    9,5

    22,9

    14,6

    14,7

    16,1

    11,5

    1995 2005

    Pas

  • 30 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung

    desesperadamente. Esses obstculos para diversificar seus inves-timentos ficaram evidentes na compra desvantajosa, em 2005, do setor de computadores pessoais da ibm pela Lenovo, uma impor-tante corporao de informtica ligada ao governo chins; na perda substancial incorrida no investimento de 2007 da Corporao de Investimento da China, o fundo soberano chins, na Blackstone; e no crescimento do sentimento anti-China na Austrlia, em 2009, desencadeado pela tentativa da Chinalco, uma companhia estatal gigante de recursos minerais, de ampliar significativamente sua par-ticipao na Rio Tinto, a maior companhia mineradora da Austrlia. A acumulao pela China de estoques de petrleo importado e de outras mercadorias, para se proteger contra o aumento dos preos das matrias-primas, tambm levou a perdas substanciais quando os preos despencaram no rastro do declnio global.

    Alm de expor o pas s vicissitudes dos mercados globais, o mo-delo chins, orientado para a exportao, restringiu drasticamente o consumo. Conforme sugerido anteriormente, a competitividade das exportaes chinesas foi construda sobre uma estagnao salarial de longo prazo, a qual, por sua vez, originou-se de uma crise agrria sob um regime de polticas de vis urbano. Em vez de compartilhar uma parte maior dos lucros com os empregados e melhorar seu padro de vida, o prspero setor exportador transformou a maior parte de seu excedente em poupana corporativa, que hoje constitui uma grande proporo da poupana agregada nacional. Como indica o Grfico 7, a partir do final dos anos 1990, o total dos salrios como percentual do PIB declinou, em conjunto com a queda no consumo privado. Essas duas tendncias decrescentes contrastam de forma marcante com o volume crescente dos lucros corporativos. Embora o consumo esteja aumentando em termos absolutos, ele tem crescido muito mais vaga-rosamente do que o investimento (ver Grfico 8).

    A restrio do consumo privado no apenas dificultou que as empresas orientadas para o mercado domstico reduzissem os seus estoques, como tambm trouxe frustraes para muitas empresas es-trangeiras que tinham expectativas elevadas em relao ao mercado supostamente gigante da China. Embora j consolidada como com-pradora importante de bens de capital, componentes manufaturados e recursos naturais do Japo, do Sudeste Asitico, do Brasil e de outros lugares, a China ainda precisa realizar seu potencial de grande impor-tador de bens de consumo tanto do mundo desenvolvido quanto do mundo em desenvolvimento. A revista Economist tomou as dores des-ses desalentados investidores estrangeiros, dizendo que o mercado se revelar menor do que o esperado e demorar mais para se desen-volver. E, como tantas empresas estrangeiras esto se acumulando, a competio dever ser intensa []. Como as empresas estrangeiras

  • 31NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011

    [8] A billion three, but not for me.

    Economist, 18/03/2004.

    [9] Speed bumps for automakers in

    China, India. Forbes, 26/03/2007.

    podero gerar retornos aceitveis na China?8. No mesmo esprito, quando ficou claro que a demanda chinesa por automveis crescera muito mais vagarosamente do que a capacidade produtiva do setor, a revista Forbes reconheceu que a competio crescente na China levou sobrecapacidade industrial e ao rpido declnio das margens de lucro dos fabricantes de carros para um nvel em grande parte alinhado com o resto do mundo, entre 4% e 6%9.

    Na tentativa de reequilibrar o desenvolvimento da China, carac-terizado pelo premi Wen Jiabao em 2007 como instvel, desequi-librado, descoordenado e insustentvel, o governo central sob Hu Jintao e seu aliados populistas buscou, a partir de 2005, estimular o consumo domstico aumentando a renda disponvel de camponeses e trabalhadores urbanos. A primeira onda de tais iniciativas incluiu a abolio de impostos agrcolas e um aumento dos preos de aquisio de produtos agrcolas pelo governo. Embora essas medidas para me-lhorar o padro de vida rural tenham sido apenas um pequeno passo na direo correta, seu efeito foi instantneo. Condies levemente superiores no setor rural-agrcola diminuram o fluxo migratrio para as cidades e seguiram-se uma repentina escassez de trabalho e um salto salarial nas zonas costeiras de processamento de exportaes,

    GRFICO 7

    Salrios, lucros e consumo privado como percentual do PIB

    Escala da esquerda: nveis dos salrios e do consumo; escala da direita: nveis dos lucros.

    Fonte: Anurio Estatstico da China.

    55

    53

    51

    49

    47

    45

    43

    41

    39

    37

    32

    30

    28

    26

    24

    22

    20

    18 1995 2000 2005

    Salrios

    Consumo privado

    Lucros

  • 32 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung

    Fonte: Centro de Dados da China.

    GRFICO 8

    ndices de crescimento do investimento e do consumo, 1980-2008

    180

    160

    140

    120

    100

    80

    60

    40

    20

    0

    1980 1985 1990 1995 2000 2005

    Consumo das famlias

    Investimento em ativos fixos

    1980 = 1

    Fonte: Centro de Dados da China.

    GRFICO 9

    Crescimento percentual anual real das vendas do varejo, 1986-2008

    20

    15

    10

    5

    0

    -5

    -10

    1990 1995 2000 2005

  • 33NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011

    [10] Refere-se a Arthur Lewis (1915-

    1991), economista que formulou

    um influente modelo de desenvol-

    vimento econmico caracterizado

    por uma oferta ilimitada de traba-

    lho. Esse modelo foi muito utilizado

    para interpretar o desenvolvimento

    de economias subdesenvolvidas e,

    graas a ele, Lewis ganhou o Prmio

    Nobel de economia em 1979. [n. t.]

    [11] Fang, Cai e Yang, Du (orgs.). The

    China Population and Labor Yearbook.

    Leiden: Brill, 2009, vol. 1.

    [12] Siwanyi neiwai [Por dentro e

    por fora dos quatro trilhes]. Caijing,

    16/03/2009.

    [13] Ver Jiuye xingshi yanjun lao-

    dong hetong fa chujing ganga [Gra-

    ve desemprego ameaa lei do contrato

    de trabalho]. Caijing, 04/01/2009.

    induzindo muitos economistas a declararem que o ponto de virada lewisiano10 quando esgota o excedente de mo de obra rural ha-via sido finalmente atingido11.

    Assim como a oferta ilimitada de trabalho na China era mais uma consequncia de polticas do que uma precondio natural de seu de-senvolvimento, a chegada do ponto de virada lewisiano foi, na verdade, o resultado de tentativas estatais de reverter o vis urbano precedente, e no um processo guiado pela mo invisvel do mercado. Concomi-tantemente elevao da renda dos camponeses e dos salrios indus-triais, ocorreu um crescimento sem precedentes das vendas do varejo, mesmo descontando-se a inflao (ver Grfico 9). Mas, logo aps o governo dar o primeiro passo em direo ao crescimento impulsiona-do pelo consumo domstico, os interesses ligados ao setor exportador passaram a reclamar ruidosamente da deteriorao de suas perspec-tivas. Reivindicaram-se polticas compensatrias para assegurar sua competitividade e tentou-se sabotar iniciativas adicionais para elevar o padro de vida das classes trabalhadoras, tais como a Nova Lei do Contrato de Trabalho, que aumentaria a remunerao dos trabalha-dores e dificultaria sua demisso, e a apreciao controlada do iuane.

    Quando a crise global estourou, emperrando o motor exportador da China, o governo lanou imediatamente, em novembro de 2008, um megapacote de estmulo fiscal somando US$ 570 bilhes (incluindo gastos do governo e emprstimos direcionados dos bancos pblicos). De incio, muitos comemoraram essa interveno substancial como uma oportunidade preciosa para acelerar o reequilbrio da economia chinesa em direo ao consumo domstico e torceram para que o est-mulo consistisse sobretudo em gastos sociais, como financiamento de seguro de sade e seguridade social, que poderiam elevar ainda mais a renda disponvel e, assim, o poder de compra das classes trabalhadoras. No entanto, no mais do que 20% do pacote de estmulo foi alocado para despesas sociais. A grande maioria destinou-se a investimento em ativos fixos em setores j minados por sobrecapacidade, tais como ao e cimento, e na construo do maior sistema ferrovirio de alta velocidade do mundo, cuja lucratividade e utilidade so incertas12. Sem fornecer muito auxlio para as instituies de bem-estar social ou para as pequenas e mdias empresas de trabalho intensivo, o pacote de es-tmulo gerou apenas uma melhora limitada da renda disponvel e do emprego. Pior, o governo central, aparentemente horrorizado com o co-lapso repentino do setor exportador, recuou dos seus esforos reequi-libradores e retomou inmeras medidas de promoo de exportaes, como abatimentos em impostos sobre o valor adicionado das exporta-es e a interrupo da apreciao do iuane. Industriais desses setores valeram-se da crise para demandar, como questo de sobrevivncia, uma suspenso da Nova Lei do Contrato de Trabalho, de 200713.

  • 34 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung

    [14] Zhongguo GDP zengzhang

    jin 90% you touzi ladong [Aproxi-

    madamente 90% do crescimento do

    PIB da China foi impulsionado pelo

    investimento]. Caijing, 16/07/2009.

    A despeito de seu tamanho impressionante, o estmulo fiscal fez pouco para promover o consumo domstico e, assim, reduzir a de-pendncia da China em relao s exportaes. Ainda que uma gran-de quantidade de recursos tenha sido direcionada para as provncias ocidentais, para aliviar a disparidade de desenvolvimento entre o lito-ral e o interior, o crescimento promovido pelo estmulo, majoritaria-mente intensivo em capital e orientado para as cidades, na realidade agravou a polarizao rural-urbana (ver Tabela 3). Enquanto o grande vis urbano do investimento em ativos fixos prosseguiu, a disparida-de rural-urbana no crescimento da renda, que se reduzira aps 2005, ampliou-se novamente sob esse estmulo, freando a melhora relativa do padro de vida rural, que havia ajudado a estimular um crescimento modesto no consumo domstico.

    Os gastos substanciais na realidade logram manter a economia aquecida graas a um surto de curto prazo de investimento impul-sionado pelo Estado, enquanto se aguarda mercado para as expor-taes melhorarem. At o vero de 2009, os dados mostravam que o estmulo interrompera de forma bem-sucedida a queda livre da economia chinesa e encorajara uma modesta recuperao. Mas, ao mesmo tempo, quase 90% do crescimento do pib nos primeiros sete meses de 2009 foi impulsionado somente por investimen-tos em ativos fixos estimulados por uma exploso de crdito e um aumento do gasto do governo14. Muitos desses investimentos so ineficientes e, em geral, no so lucrativos (ver Tabela 3). Se a recu-perao do mercado para a exportao no ocorrer a tempo, o dficit fiscal, emprstimos no executveis e uma exacerbao da sobreca-

    TABELA 3

    Vis urbano persistente e lucratividade em queda sob o pacote de estmulo

    * Valor baseado nos seis primeiros meses de 2009.

    ** Valor representa variao nos oito primeiros meses sobre o mesmo perodo do ano anterior.

    Fonte: Agncia Nacional de Estatsticas da China.

    Ano

    Proporo urbano-rural nos

    investimentos em ativos fixos

    Disparidade urbano-rural

    no crescimento da renda

    per capita real (%)1998

    Crescimento dos lucros nos

    estabelecimentos industriais

    5,6

    3,4

    17,4

    5,7

    3

    31

    20062005

    Partido

    2007 2008 2009

    5,9

    2,7

    36,7

    6,1

    0,4

    4,9

    5,9*

    3,1*

    -10,6**

  • 35NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011

    [15] Xu Xiaonian, da Escola Interna-

    cional de Negcios China-Europa,

    em Xangai, citado em China stimu-

    lus plan comes under attack at Sum-

    mer Davos. China Post, 13/07/2009.

    pacidade vo gerar um declnio mais profundo no mdio prazo. Nas palavras de um eminente economista chins, esse megaprograma de estmulo como beber veneno para matar a sede15.

    PERSPECTIVAS

    Nas ltimas duas dcadas, a China emergiu como montadora final e plataforma de exportao da rede produtiva do Leste Asitico. Ela tambm obteve o status de maior credor dos Estados Unidos e maior portador de reservas internacionais, e demonstrou potencial tanto para ser a fbrica do mundo como para se tornar seu maior mercado. A China est, pois, preparada para estabelecer uma nova ordem eco-nmica regional e global, auxiliando a sia e o Sul global a sair de suas posies de dependncia econmica e financeira em relao ao Norte em geral e aos Estados Unidos em particular.

    O potencial de liderana da China, contudo, est longe de ser realizado. At agora, a estratgia chinesa de emprestar para os Esta-dos Unidos a fim de facilitar suas compras de exportaes chinesas apenas aprofundou a dependncia do pas, assim como de seus for-necedores, em relao aos consumidores americanos e ao mercado de ttulos dos Estados Unidos. A competitividade de longo prazo das exportaes da RPC est enraizada em uma abordagem desen-volvimentista que arruna o campo e prolonga a oferta ilimitada de mo de obra migrante de baixo custo para os setores exportadores do litoral. O supervit comercial resultante, em permanente cresci-mento, pode inflar o poder financeiro global da China, na forma de acumulao ampliada de dvida americana, mas a represso salarial de longo prazo limita o crescimento de seu poder de consumo. A crise financeira atual, que dizimou a demanda por consumo do Nor-te global e aumentou a probabilidade de um colapso do mercado de ttulos dos Estados Unidos e do dlar, um alerta tardio para a urgncia de uma mudana de rumo.

    Pequim sabe muito bem que a acumulao contnua de reser-vas internacionais contraprodutiva, uma vez que elevaria o ris-co associado aos ativos que a China j detm ou ento induziria um deslocamento para outros ainda mais arriscados. O governo tambm sabe da necessidade de reduzir a dependncia do pas em relao s exportaes e de estimular o crescimento da demanda domstica por meio do aumento da renda disponvel das classes trabalhadoras. Tal redirecionamento de prioridades deve envolver o afastamento dos recursos e das preferncias polticas das cidades litorneas para o interior rural, onde a prolongada marginalizao social e o subconsumo abriram um amplo espao para melhorias. Mas os interesses que se enraizaram ao longo de vrias dcadas

  • 36 O BRAO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS? yy Hung Ho-Fung

    de desenvolvimento impulsionado pelas exportaes tornam essa tarefa intimidadora. Oficiais e empresrios das provncias litor-neas, que se tornaram um grupo poderoso capaz de moldar a for-mao e a implementao das polticas do governo central, esto at agora inflexveis em sua resistncia a tal reorientao. Essa fac-o dominante da elite chinesa, como exportadores e credores da economia mundial, estabeleceu uma relao simbitica com a clas-se dominante americana, que tem se empenhado em manter sua hegemonia domstica assegurando o padro de vida dos cidados dos Estados Unidos, como consumidores e devedores do mundo. A despeito de rusgas ocasionais, os dois grupos da elite de ambos os lados do Pacfico compartilham um interesse em perpetuar os seus respectivos status quo domstico, assim como o atual desequilbrio da economia global.

    A no ser que haja um realinhamento poltico fundamental que desloque o equilbrio de foras da elite urbana litornea para as for-as que representam os interesses populares rurais, a China deve continuar liderando os outros exportadores asiticos na tarefa de servir diligentemente os Estados Unidos mantendo-se refm de-les. O establishment anglo-saxo tornou-se recentemente mais res-peitoso em relao aos seus parceiros asiticos, convidando a China a se tornar uma parte interessada na ordem global ChiAmerica-na, ou G2. O que eles pretendem que a China no complique a situao, mas continue contribuindo para manter a dominncia econmica americana (em retorno, talvez, de mais considerao em relao s preocupaes de Pequim no que diz respeito ao Tibet e a Taiwan). Isso permitiria a Washington ganhar um tempo precioso para assegurar o seu comando sobre setores emergentes da econo-mia mundial por meio de investimentos do governo, financiados com emisso de dvida, em tecnologia verde e outras inovaes, transformando, assim, sua combalida supremacia em hegemonia verde. Isso parece ser exatamente aquilo em que o governo Obama est apostando como resposta de longo prazo para a crise global e o poder americano declinante.

    Se a China reorientasse o seu modelo de desenvolvimento e al-canasse um equilbrio maior entre consumo domstico e expor-taes, poderia no apenas se livrar da dependncia em relao ao mercado de consumo em queda dos Estados Unidos e do vcio em relao arriscada dvida americana, mas tambm beneficiar em outras economias asiticas industriais igualmente ansiosos para escapar desses perigos. Mais essencialmente, se outras economias emergentes adotassem uma reorientao similar e o comrcio Sul-Sul se aprofundasse, elas poderiam, ento, tornar-se consumi-doras umas das outras, prenunciando uma nova fase de crescimen-

  • 37NOVOS ESTUDOS 89 yy MARO 2011

    to autnomo e justo no Sul global. At isso ocorrer, no entanto, uma recentralizao do capitalismo global do Ocidente para o Oriente e do Norte para o Sul, na sequncia da crise global, pouco mais do que uma iluso.

    Hung Ho-Fung professor de Sociologia na Universidade de Indiana, Bloomington. Organizou

    recentemente o livro China and the transformation of global capitalism (Baltimore: Johns Hopkins Univer-

    sity Press, 2009).

    Rece bido para publi ca o em 20 de agosto de 2010.

    NOVOS ESTUDOS

    CEBRAP

    89, maro 2011pp. 17-37