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O Brasil - nos seus cinco sé - ahmemo.files.wordpress.com · pouquíssimas coisas mínimas para continuar a ser manipula do em proveito daquelas abstrações ou grandes realizações:

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"O Brasil - nos seus cinco sé­los de existência - é bem co­) se tem apresentado perante a ;tória: o resultado da vontade sua classe dirigente." Esta fra­sintetiza o ponto de partida da álise empreendida pelo intelec-3.1 Antônio Houaiss e pelo jor­lista Pedro do Coutto em Bra­: o fracasso do conservadoris­:~. Cotejando a preocupante :~.!idade brasileira atual com um urado exame do relacionamen­entre nossas elites e as cama­

.s sociais menos favorecidas, os lltores apontam a predominân­l do pensamento conservador 1mo a responsável pelo nosso :sequilíbrio social. . A partir das estatísticas ofi­

ais do governo, e também de tdos fornecidos pelo Banco undial, os Autores elaboraram na verdadeira radiografia do :asil, revelando a gravidade da ·oluçâo do quadro geral do aís. Verifica-se, assim, que mais : 300?o da mâo-de-obra brasilei­, recebe menos de um salário mí­mo por mês, apenas 350?o ee tas residências estâo ligadas a re­:s tratadas de esgotos, e somente !O?o dos alunos do curso primá­o chegam ao segundo grau. . nos- CEBELA

studos Latino-~m~nca ) HOUAISS - Biblioteca . ,_ I ~J.Ql n4-

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Antônio Houaiss Crit ico, f i lólogo, ensafsta, lexicógrafo, enciclopedista,

autor de várias obras e diretor de outras tantas, membro da Academia Brasileira de Letras desde 1971 .

Pedro do Coutto Jornalista e autor do ensaio O Voto e o Povo,

redator da área polltica do Correio da Manhl, repórter de O Globo, colaborador da Última Hora e do Correio Brasi/iense.

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BRASIL O FRACASSO DO

CONSERVADORISMO

56rle

Temas Volume 13

Estudos políticos

Editor Fernando Paixão

Preparação dos originais Denise Azevedo de Faria

Produção gráfica René Etiene Ardanuy

Capa Ettore Bottini

Composição e paginação em video Wander Camargo

Maria Inês Rodrigues

ISBN 85 08 03356 7

1989 Todos os direitos reservados

Editora Ática S.A. - Rua Barão de lguape, 110 Tel. : (PABX) 278-9322 - Caixa Postal 8656 End. Telegráfico " Bomlivro" - São Paulo

A Tatiana Martins Pedro do Coutto e Vanessa Martins Pedro do Coutto, amigas e filhas minhas:

no ano 2000 vão estar em plena juventude, são o futuro, que espero menos conservador

que o passado e o presente, e, por isso, mais digno e mais justo para todos.

Livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela

Verso do samba-enredo da Mangueira para o carnaval de 1988, sobre o tema Abolição: realidade ou fantasia

Agradecimento

Agradecemos a colaboração de Gilberto Paim ( Roberto Gur­shing, José Sampaio Portela Nunes e Ricardo Áugusto Holan­da Gosling, em pesquisas, idéias e observações. Foi muito im­portante para este livro .

À memória de Ruth Marques de Sa//es Houaiss

Este livro baseia-se nas estatísticas oficiais do gover­no e do país. Seu objetivo é deslocar o deba.te nacional em torno dos maiores problemas nacionais para um cam­po claro, objetivo, iluminado e acentuado pela luz dos nú­meros. E, assim, acrescentar informações indispensáveis à plena compreensão da realidade do país, portanto, a nos­sa realidade. Muitos setores insatisfeitos com o subdesen­volvimento brasileiro e as condições políticas, sociais e eco­nômicas, movimentam-se, mas seus argumentos terminam contidos no campo das liberdades políticas, públicas e dos direitos humanos. São legítimos, porém agora superados no tempo. Pois, inegavelmente, o atual governo assegura, ou busca assegurar, as liberdades políticas e públicas, e não há queixas quanto aos direitos humanos, sádica e tra­gicamente violados ao longo do processo que emergiu em 1964 e - esperemos - se esgotou em 1985, com a vitória da chapa Tancredo Neves-José Sarney e a posse de Sarney na presidência da República.

A transição democrática, assim, não está sendo feita: na verdade, já foi feita. Portanto, sai de discussão. Mas as liberdades econômico-sociais estão para ser alcançadas, como o assinalamos nesta viagem que empreendemos pelos mapas das estatísticas oficiais brasileiras e também das for­necidas pelo Banco Mundial. Como as liberdades sociais es-

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tão por fazer, constatamos que, 100 anos depois da aboli­ção, o trabalho escravo, disfarçado ou não, permanece en­tre nós. Ou não será trabalho escravo, conforme revela o IBGE, existirem, no Brasil, 330Jo da força de trabalho, por­tanto da mão-de-obra ativa, recebendo por mês até um sa­lário mínimo? Desejamos, com o nosso trabalho, não subs­tituir o debate político sobre a liberdade, mas ampliar seu conceito ao campo social, incluindo-o nas preocupações na­cionais. Que devem ser um compromisso de todos nós.

Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1988 A.H.- P.C.

AS CONDIÇÕES HUMANAS DE VIVER

Este ensaio aspira a ser lido por homens comuns -que lograram o milagre de serem, neste país, capazes de ler, e de ler não-dirigidamente.

Busca dizer coisas evidentes, mas nem sempre eviden­ciadas. Busca despojar-se de toda teorização, não oferecen­do, por isso, perspectivas ou propostas de soluções para os graves problemas em que, como coletividade, estamos - literalmente - atolados.

Mas tem um objetivo muito claro: lembrar que, de um lado, dentro da efervescência ostensiva de busca de no­vos caminhos - a Constituinte, a Constituição, a Transi­ção, a Democracia, as Liberdades - e, de outro lado, den­tro do desânimo e descrença em que as vítimas atoladas (praticamente quatro quintos dos brasileiros) se acham, há algo que tem de ser imediatamente feito, para serem fei­tos outros algos.

Há, no país, um mínimo divisor comum: as condições humanas (não as subumanas em que estamos) de viver. Quaisquer que forem as intenções, aspirações ou desejos de nossos dirigentes de há já cinco séculos até hoje, que eles saibam (ou os outros que vierem) que o povo brasileiro (a Nação brasileira, o Estado brasileiro, o Poder brasileiro, os

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Donos do poder brasileiro) necessita imediatamente de umas pouquíssimas coisas mínimas para continuar a ser manipula­do em proveito daquelas abstrações ou grandes realizações: precisa de comida, precisa de morada, precisa de escola e precisa de saúde. Tudo mais dispensará, pois saberá, com aquele mínimo, inventar suas artes, suas alegrias, seus amo­res, seu prazer de viver, sua felicidade possível: não quer um milagre superior ao dos outros povos, mas não pode acei­tar ser apenas um elemento incômodo que atrapalha os so­nhos de grandeza dos megalômanos- "Brasil grande potên­cia", que só não o é porque tem o povo que tem.

Pede-se, aqui, um mínimo de pudor: que o bolo de ri­queza aqui criado não seja um monopólio. Se esse bolo, sem essa condição, não oferecer interesse aos apropriado­res, que estes o abandonem, saindo da História, que não souberam compreender.

O título deste ensaio é claro - O fracasso do conser­vadorismo -: isso, afinal de contas, quer dizer que o con­servadorismo tem sempre prevalecido no Brasil, em todos os momentos cruciais da nossa história, e que, examinan­do o nível de desenvolvimento que atingimos - econômi­co, social, cultural, político-, o conservadorismo é o res­ponsável pelos nossos bons êxitos e nossos fracassos, sob todos os aspectos. E há, por acaso, entre si, os agentes ne- . gativos e positivos que se compensem? Estabelecemos, as­sim, um nexo causal: -a vitória sistemática do conservado­rismo é a responsável pelo atraso ou pelo avanço econômi­co, social, cultural e político do Brasil. Mas, quando haja ilhas de prosperidades ou atr(\sos econômicos, sociais ou culturais no país, foram elas criadas à custa de uma brutal concentração de recursos, de que o povo foi a fonte, pelo seu trabalho, e não é usufrutuário, pelo alijamento. Des­de sempre, o povo deste país tem sido criador de bens fruí­dos maximamente por seus donos, de fora ou de cima, .co­ligados.

Os objetores do que acima se diz que pensem duas ve­zes; cãs"õ contrário, terão que afirmar que tudo fizeram, que se sacrificaram, que se esmeraram, que se esfalfaram para que todos os brasileiros fossem beneficiários de uma vida decente Uá que havia tudo para poderem tê-la), mas

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não o conseguiram, porque os brasileiros somos biologica­mente inferiores ou socialmente preguiçosos, impotentes, doentes. Em suma, os que assim pensam e afirmam, ou praticam um racismo ativo - explorando - ou praticam um racismo passivo - lavando as mãos da sua responsabi­lidade nas águas de sua bondade e devoção para com esse povo: racismo ativo, racismo passivo, bi-racismo.

Nesse contexto, conservadorismo significa donos de poder, grupos dirigentes, senhores de empresa, clero, for­ças armadas, lideranças quaisquer - espirituais, campone­sas, operárias, marginais (de corruptos, de contraventores, de ladrões, de traficantes, de prostitutos, de contrabandis­tas, de especuladores) - que se mancomunam para que se conserve (ou para que não seja erradicado) o caldo de cultura em que vicejam.

Basicamente, participam todos dum processo, segun­do o qual se conservam as seguintes características históri-cas do Brasil, ao longo de sua existência: .

1) um desprezo sem medida&. para com . .os inferiores: para com os índios, para com os escravos, para com os po­bres, para com os iletrados, para com os malsãos, para com os fracos, para com os mestiços, para com os desem­pregados, para com os ingênuos, para com a imensa maio­ria das mulheres (houve sempre uma fração que ficava por cima, cultivando o desprezo), para com a imensa maioria dos velhos, para (sobretudo) com a imensa maioria das crianças deste país - que tragicamente produz muitas e as dilapida de uma forma abjeta (os natimortos, os mortos antes de um ano, os desassistidos, os desamparados, os abandonados, os capitães-de-areia, os trombadinhas, os marginais-marginais-marginais, porque não objeto de co­nhecimento do conservadorismo, que não tem culpa dos que não "querem" ser inteligentes, trabalhadores, educa­dos, ricos);

2) uma concentração da riqueza que vem pondo em mãos de uma minoria irrisória imensas glebas, que acolhiam, enquanto escrava, grande parte da população, mas a vem expulsando progressivamente para a inchação urbana, na medida em que, pela lógica dessa concentração, se enrique­ce mais pela simples detenção da terra, se enriquece pelo

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engajamento (quando quer) de bóias-frias, se enriquece pe­la produção preferencial de produtos exportáveis, não acei­tando tipo algum de compromisso para com a criação de urna viabilidade interna, isto é, um mercado consumidor in­terno organizado (com saúde, educação e morada - não mais que isso), daí derivando o mais desorganizado merca­do invisível interno, cuja economia é ela também manobra­da por intermediações, em que avultam os traficantes, os narcotraficantes, os caftens, os prostituintes, os pederasti­zantes;

3) urna concentração de riqueza que faz da produção dos bens materiais monopólios ou oligopólios, por sua pró­pria natureza quase sempre associados a monopolistas ou oligopolistas estrangeiros, a que servem e por quem são ser­vidos e amparados, nos seus eventuais transes;

4) urna participação de benefícios que faz do Brasil um centro de fruição interno de riquezas, já para os donos ostensivos do poder e suas conexões (parentes, amigos, pre­postos), já para urna minoria de semelhantes eventualmen­te alternativos, já para os oligopolistas ou monopolistas es­trangeiros, junto. aos quais, nos requintes, se acolhem, em suas andanças "culturais" - Lisboa, Paris, Nova York (na sucessão cronológica);

5) um país que, por mais que seu povo produza e ex­porte, sempre fica devedor, em face do que importa, para produzir, ou do que paga, corno tributo, para consolidar seu conservadorismo;

6) um país que teve sempre seu mercado interno - de bens materiais e de bens espirituais - marginalizado pelo conservadorismo, de tal modo que teve sempre que desen­volver urna forte economia de bens materiais de consumo interno invisível e urna produção de bens espirituais escor­raçados ou policiados, numa batalha cujo desenlace se apre­senta, já agora, com dupla feição, corno sempre contraditó­ria: a) grande parte dessa cultura começa a ser rnercantiliza­da - na música, nas festividades, no exotismo, no turis­mo - de tal modo que os reais ciiadores são apenas mas­sa de manobra de beneficiários altos, que se lançam corno "protetores", b) urna ideologia se vem criando sobre isso com a trágica circunstância de inculcar no povo a idéia de

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que isso é que é a verdadeira cultura brasileira "possível" e "espontânea", coonestando assim a desídia, o desmaze­lo, a omissão, a proscrição de um verdadeiro sistema nacio­nal de transmissão de cultura- pela escola universal, obri­gatória, gratuita e qualificada em todos os níveis;

7) um país que vem dilapidando sua humanidade, o chamado capital humano (modernarnente chamado de re­cursos humanos), dilapidando-a, em termos educacionais, num estatutó pré-moderno, de tal modo que 700Jo para mais da população não são formados para adaptarem-se a urna produção (material ou espiritual) moderna (que nos países desenvolvidos, capitalistas, começou nos inícios do século XIX e, socialistas, no século XX), já que urna eco­nomia e produção modernas presumem que haja pessoas habilitadas a desempenhar as 30 mil profissões discriminá­veis hoje em dia, a quase totalidade das quais exige, no mí­nimo, urna formação escolar de 8 anos de escolaridade com 8 horas por dia de estudo, em 300 dias/ano, com que so­nhamos em 1824 e só realizamos, caricaturalrnente, até ho­je - 1988 - com urna média de 2 anos de escolaridade com 2 horas por dia, durante 200 dias/ano para menos - o que equivale a um retrocesso de séculos, pois dentro de casa o rendimento seria melhor, se em casas minimamen­te decorosas.

Mas o Brasil é a oitava economia do mundo capitalis­ta - revela o relatório de 1987 do Banco Mundial, edita­do em português pela Fundação Getúlio Vargas -, com um produto interno bruto (PIB) da ordem de 272 bilhões de dólares, corri renda per capita de 1.926 dólares, ou, se­gundo nosso Banco Central, 312 bilhões e 2.168 dólares, respectivamente. Entretanto, ostenta urna dívida externa de 117 bilhões de dólares, impossível de ser resgatada, que o coloca no primeiro lugar dos endividados.

Possui urna dívida interna de 6,2 trilhões de cruzados, correspondendo praticamente a 80% do orçamento da União, que é de 7,2 trilhões. São títulos colocados no mer­cado para financiar o chamado déficit público, que já atin­ge, corno se vê, ponderável parcela do próprio PIB.

Mas, além disso, está submerso numa dívida social que talvez seja até superior à sorna dos compromissos ex-

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ternos e internos. Só em matéria de habitação, o déficit brasileiro oscila entre 7 e 8 milhões de moradias, abrangen­do, portanto, de 35 a 40 milhões de pessoas, pois a média nacional é de - em números redondos - 5 habitantes por domicílio. Mas não é só.

O Brasil tem mais de 11 milhões de moradores que subvivem em favelas e cortiços imundos, um número enor­me que mora sob pontes e viadutos, nos becos e nas sarje­tas. O país tem, em números redondos, 25 milhões de resi­dências. Dessas, segundo informa ·o IBGE, apenas 13 mi­lhões e 800 mil contam com abastecimento regular de água potável. Pouco mais da metade. Desse total de 25 milhões de residências, somente 7 milhões contam com rede de esgo­tos geral. Cinco milhões e 500 mil não contam com qual­quer sistema sanitário. Sete milhões e 300 mil usam fossas rudimentares. Fossas sépticas são de utilização de 3 milhões e 896 mil moradias. Um desastre. Uma vergonha. E esta­mos no final do século e do milênio. Há 166 anos da inde­pendência. Há 100 anos da abolição da escravatura - que continua apenas disfarçada, como no samba da Manguei­ra ·-, há 99 da proclamação da República, neste 1988.

A ESCRAVIDÃO DISFARÇADA

A escravidão permanece disfarçada, porque pratica­mente um terço da mão-de-obra ativa ganha até um salário mínimo. E este salário é dos mais baixos do mundo: sessen­ta e menos dólares. Nos Estados Unidos, o salário míni­mo é de 800 dólares. Na França, Alemanha e Inglaterra, quase isso, portanto muitas vezes o do Brasil.

Em todos os países organizados, existe uma moeda. No Brasil há várias. Duas predominantes: a OTN, quere­ge e mantém indexadas a ela as atividades econômicas, e a URP, que regula os salários. Desnecessário confirmar que a OTN sobe muito mais que a URP. Em março de 1988, a Obrigação do Tesouro Nacional (OTN) foi reajusta­da em 16% em relação ao valor de fevereiro. A unidade de referência de preços (URP) foi reajustada em 9,1 OJo. A OTN equaciona, por exemplo, o valor dos aluguéis. A

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URP, o valor dos salários. Como pode tal dualidade exis­tir? Mas existe entre nós. E, com ela, o valor do trabalho humano desaba a cada mês e faz a população submergir ca­da vez mais na miséria e no desespero. Um longo proces­so, não começou hoje. Começou, na verdade, nos tempos atuais, a partir do movimento militar revolucionário de 1964, que aprofundou o conflito entre capital e trabalho, em prejuízo deste último.

Não há necessidade de teorizar sobre esse fenômeno facilmente constatável. A Enciclopédia Delta Larousse reve­la, quando aborda o tema favelas, que, em 1960, existia na cidade do Rio de Janeiro uma população favelada de 330 mil habitantes. Esse montante representava praticamen­te lOOJo da população carioca. Em 1964, tal contingente passou a situar-se na escala dos 400 mil habitantes. A popu­lação da cidade era de 3 milhões de pessoas. Hoje, 24 anos depois, a população da cidade duplicou. Mas a população favelada- revela relatório da Secretaria de Desenvolvimen­to Social da Prefeitura - multiplicou-se por cinco. Não há - nem será possível ter - indicador econômico-social mais preciso que este, para demonstrar que o modelo de 64, extremamente conservador e concentrador, fracassou eni toda a linha.

Sobre as favelas cariocas, vale assinalar um detalhe no tempo, posto em realce por Lígia do Prado Valadares. No final da década de 20, o famoso urbanista francês Al­fred Agache esteve no Brasil, realizando um plano urbanís­tico para a cidade. Ele deparou 5 mil moradores nas encos­tas de morros. Não lhes deu maior importância. Em seu trabalho final, classificou tais moradias - mal sabia que início de um processo de abismo social - de provisórias. Seriam desempregados que, ao retomarem uma ocupação, deixariam aquela situação. O que ocorreu foi algo muito diferente. Agache não tem culpa. A culpa é do conservado­rismo brasileiro, que exponenciou e agravou de forma dra­mática a questão social no país.

O consumo de carne- está no Almanaque Abril de 1988 -, de 1980 aos dias de hoje, caiu de 16,7 quilos por habitante-ano' para pouco mais de 10 quilos. A população cresceu muito mais que a produção. Mas os preços supera-

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ram a ambas, não existindo a respeito qualquer controle efetivo e sério. É que, no Brasil, o capital pode tudo, o tra­balho quase nada. A produção de leite, em torno de 11 bi­lhões de litros/ano, mantém-se estável. Logo, o consumo per capita cai, porque o índice de progressão demográfica está na escala anual de 2,50Jo.

A mortalidade infantil é muito alta: 90 crianças por mil nascidas vivas, o que representa, segundo o Unicef, o fundo da ONU para a infância, uma taxa de 9%. Nos Esta­dos Unidos, Alemanha, França, Japão, Inglaterra, essa ta­xa é de 12 a 13 crianças por mil nascidas vivas, ou 1,2 a 1,3%. Na União Soviética, de 20 crianças por mil. Em Cu­ba, 19 por mil.

O Brasil possui um médico por 2.500 habitantes; a Ar­gentina, 600; a Espanha, 800; os Estados Unidos, 670.

Há em nosso país 30 milhões de analfabetos, signifi­cando 24% da população em idade de saber ler e escrever. Essa percentagem, em última estatística disponível, ficou estagnada de 1980 a 1985. Logo, como a população aumen-

. tou, o número absoluto de adultos e adolescentes analfabe­tos também.

Em matéria de ensino, a situação é simplesmente trá­gica. Com base nos dados de 1985, a primeira série do pri­meiro grau reúne 6 milhões e 700 mil alunos. A quinta sé­rie, 2 milhões e 700 mil. E a sexta série, 1 milhão 956 mil alunos. Como se vê, pouco mais de um quarto dos alunos da primeira série chega até a sexta série. Mas não se toma providência alguma. A repetência é enorme e desestimulan­te. Motivo: a subnutrição.

O Estatuto da Terra, lei 4.504, concretamente a pri­meira lei de reforma agrária do país, é originária- consta­ta-se até com surpresa - de um projeto do então ministro do Planejamento do governo Castelo Branco, Roberto Cam­pos. Uma lei realmente importante e muito bem feita. Mas não funcionou. Tanto que quase nada foi feito, ao longo de 24 anos. E isso pode ser facilmente comprovado. Basta dizer que o decreto 91.766, de outubro de 1985, aprovou o Plano Nacional de Reforma Agrária. O decreto regula­mentador veio 21 anos depois da lei, que era - e é - ple­namente auto-aplicável. Outra mania nacional é esta: a de

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querer regulamentar o que não precisa ser regulamentado. Mas o hiato de tempo é revelador da força do conservado­rismo brasileiro.

O Brasil - nos seus já cinco séculos de existência - é bem como se tem apresentado perante a história: o re­sultado da vontade de sua classe dirigente.

Paraíso terrestre decantado como tal desde as origens, não é possível negar a esplêndida riqueza natural que lhe é própria, nem é possível negar que sempre teve estruturas produtivas de interesse universal.

Com isso, sua classe dirigente pode orgulhar-se de al­guns bons êxitos evidentes: a ela se deve a unidade nacio­nal, que soube conquistar e preservar, alentando o povo ou a massa - inclusive de escravos - nas conjunturas pró­prias para que essa unidade não se fraturasse.

A essa classe dirigente se deve o que é ela mesma: a concentração da riqueza global em suas próprias mãos, com a conivência e a complacência de seus aliados e associados estrangeiros.

É ela mesma que tem a intuição ou a consciência de que é preciso não dar vez ao seu próprio povo. Por isso, vem sotopondo-o - secularmente, sistematicamente, incle­mentemente, ferozmente -, e que o digam os índios, os negros, os mestiços, a ralé branca, o povo própria e impro­priamente dito, a partir do instante em que existiu como povo, até hoje, na imensa maioria estatística do que vimos sendo, até estes 150 milhões de agora, em que tem estatu­to de dignidade humana uma fração muito reduzida.

A glória do conservadorismo brasileiro permitiu-lhe alguns feitos notáveis. Permitiu-lhe modernizar-se periodi­camente, isto é, permitiu modernizar aspectos do país perio­dicamente, mantendo, porém, sua hegemonia conservado­ra - condição, aliás, do seu conservadorismo glorioso, com o qual tem usufruído de todos os bens materiais e es­pirituais possíveis (estes, quando poucos, compensados com suas andanças européias e hoje cosmopolitas: os nossos ''ho­mens bons" com suas "donas boas" sabem gozar a vida).

Para prevalecer, o conservadorismo brasileiro teve de sonegar ao povo as mais elementares condições de vida,

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praticamente tirando ao povo o acesso aos mais elementa­res bens materiais e espirituais, como o direito ·à vida, o di­reito ao trabalho, o direito à alimentação, o direito à saú­de, o direito ao conhecimento- em suma (e aí está o cer­ne da questão), o direito à cidadania, à participação na coisa pública, à participação nas decisões políticas e na vi­da social como um todo. Poucos países do mundo estão tão compenetrados da catequese conservadora: às mínimas minorias cabe mandar, comandar, dirigir, decidir, saber, conhecer, ordenar, enquanto às máximas maiorias cabe obedecer, apassivar-se, ignorar, silenciar, respeitar, cum­prir, resignar-se, não tugir, não mugir (que os animais, ao menos, fazem).

O conservadorismo brasileiro realizou os seus fins: pois é rico, é próspero e, se necessário, tem recursos para exilar-se em condições ricas e prósperas. Cinicamente, é es­ta a sua base- e o seu projeto -, além de continuar a di­rigir indefinidamente o Brasil e os brasileiros, como o vem fazendo com total bom êxito para os seus fins. Aliás, sem cinismo, perguntará: e há outros fins além desses?

A visceral capacidade de realizar a satisfação dos seus fins contrapõe-se à visceral incapacidade de realizar fins hu­manos, isto é, buscar ou tentar (ou aspirar a ou desejar ou sonhar com) uma prosperidade (material e espiritual) ex­tensível ao seu próprio povo. Que o sonha, sonha, mas em fórmula consabida: primeiro, aumentar o bolo, depois, distribuí-lo. Ora, a história já mostrou que o bolo, para o conservadorismo, nunca é bastante grande e farto, e ficare­mos, décadas após décadas, a esperar o distributivismo con­servador. Ao longo de nossos cinco séculos de conservado­rismo, o progresso só foi realizado na pequena medida em que acrescentou bens aos bens conservadores e não pôs em risco sua hegemonia, como se, entre esta e o "outro" progresso, não houvesse opção senão entre a ordem e a ci­vilidade e a paz e a cultura e o respeito e o amor e o patrio­tismo e a pátria e a liberdade e a dignidade e a honra e a grandeza e a pureza e a democracia e a bondade que o con­servadorismo afirma garantir e, de outro lado, a mazorca, a desordem, a anarquia, o canibalismo, a ineficácia, a im­produtividade, a fome, a ignorância, a incultura, a torpe-

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za, o roubo, a profanação, o estupro, a baixeza, que emer­giriam sem ele.

Ora, se se volta ao reino da racionalidade, o conserva­dorismo, nesta altura, propõe-se aos brasileiros ser, enfim, a racionalidade, de modo que o povo brasileiro deve resig­nar-se a aceitar a sua direção, perfeita, e perfectível a seu modo, quando o julgar; propõe-se ser intérprete do trânsi-

. to, arbitrando quando e como este poderá fazer-se, de mo­do que os pequenos males de que sofre a coletividade -os brasileiros - gerida por ele possam ser guaridas, quer dizer, curados ou cuidados, ainda que com sacrifícios seus, isto é, do conservadorismo, e propõe-nos ser a espada cas­tigadora, o Deus justiceiro, a Verdade revelada, a Salvação, a Voz do Reino do Bem ou o Grande Irmão - fora do qual não há salvação.

Todos os caminhos alternativos de superação dos ma­les de que a imensa maioria da nação brasileira sofre estão previamente condenados pelo conservadorismo.

Toda uma brilhante (mas mínima, para· as proporções de nossa demografia) geração de economistas, econometris­tas, economicistas, economologistas - isolados, sacrifica­damente, nas sós ciências da racionalidade, isto é, das que mostram que o homem (e a mulher, e a criança, e o velho, e o doente etc.) não podem ser tomados em conta, porque são elementos "subjetivos" que envenenam a pureza racio­nal de sua ciência -, toda essa geração mostra por a+ b que a só salvação está na exploração do homem pelo ho­mem, o que, sendo intrínseco à natureza humana, torna a exploração não-exploração, bem como está na exploração dos grandes estados sobre os pequenos, encaminhando-nos à passividade ante as atuais regras do jogo - que são, as­sim, a última palavra, de Deus, da História, do Processo etc.

Qual a certeza que deriva de tanta (ir)racionalidade? A de que o nosso conservadorismo, entrelutando-se por suas cliques de cúpula desde a colônia e os dois reinados e as diversas (a Velha, a Nova, a Re-Nova) repúblicas, sa­be que teve, tem e continuará a ter total domínio sobre ''is­so" que lhe fica sotoposto - escravatura, povinho, zé-po­vinho, rebotalho, gentalha -, podendo, assim, manter a "ordem" que subsiste - gloriosamente - há cinco sécu-

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los, neste território em que, praticamente, tudo aconteceu, mas os seus senhores continuaram os mesmos. Viva o po­vo brasileiro? Não desesperemos. Afirmemos: viverá o po­vo brasileiro, apesar de tudo.

ILUSÃO, LffiERDADE E REFORMA AGRÁRIA

Não alimentemos a ilusão de que - dentro das pers­pectivas e injunções em que se desenvolveu a história do Brasil nestes cinco séculos - a nossa história poderia ter sido menos sangrenta, menos cruenta, menos bárbara, me­nos impiedosa do que foi. Mas não alimentemos a ilusão de que - se não nos alçarmos contra a continuidade da mesma - nos libertaremos desse conservadorismo, que dentro dessas perspectivas e injunções é a só solução, é o só caminho, é a só fórmula graças à qual contentaremos a nossa classe dirigente (que rião está nem estará grata ao que obtém) e os dirigentes das nossas classes dirigentes e os dirigentes dos dirigentes de nossas classes dirigentes, in­ternos, externos e celestes.

Ao longo· da nossa história já velha de cinco séculos, se temos ainda alguma dúvida, não podemos tê-la quanto ao conservadorismo das classes dirigentes brasileiras: ele tem-se apoiado em tamanha certeza de que pode esmagar quaisquer surtos de inconformismo popular, que chega ao ponto de - castigando a ferro e fogo e aniquilando radi­calmente todas as rebeldias dos desgraçados desta terra - apresentar-se como o criador do homem cordial, do as­sistencialismo fraternal, do tudo pelo povo, do tudo pelo social, nos justos momentos em que exibe os mais clamoro­sos índices de fome, subnutrição, falta de alojamento, de escolas, de instrução, de meios de transporte coletivos, de saneamento básico, de dignidade humana. E tendo, para tanto, para sua glória e glorificação, escribas e porta-vozes qualificados na criação dos mitos da esperança, do futuro, da igualdade, da fraternidade e sobretudo da liberdade - plena para uns pouquinhos por cento, com os quais se justificam todas as ignomínias destes cinco séculos de nos­sa história, patentes nas realidades do Brasil presente.

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Esse engodo com a liberdade é ostensivo numa espé­cie de jogo de cúpula: as frações entre si discrepantes das classes dirigentes puderam sempre digladiar-se, absorven­do as paixões sociais, para conciliarem-se, sempre que o po­vo pudesse representar um perigo iminente para a sua hege­monia, que, quando presumidamente era posta em risco, sofria o tratamento do padrão de que Canudos foi um exem­plo inequívoco - numa enfiada retrospectiva de violências que vêm das entradas, passam pela destruição de tabas e quilombos e entram pelos protestos urbanos pacificados a bala. E hoje, como ao longo dos nossos cinco séculos de história, nada autoriza a supor que se trate de passado: to­das as condições estruturais se mantêm para que esse tipo de opressão perdure - tanto é verdade que o máximo con­tingente dos trabalhadores brasileiros não se sabe se se al­ça acima do padrão de escravos - esses seres cujo traba­lho apenas justifica sua sobrevivência no limite do biológi­co, sem quaisquer outros direitos.

Sem reforma agrária, a produção rural ·manteve-se es­tacionária durante longos anos. A safra de grãos permane­ceu em torno de 50 milhões de toneladas. Os preços subi­ram. Alegava-se que a população crescia e, como a produ­ção era a mesma, os preços tinham que ascender. Muito bem: em 1987, a safra de grãos saltou, em face das boas condições climáticas, para 64 milhões de toneladas. E os preços subiram mais ainda. Não há qualquer política agrí­cola e de defesa do consumidor neste país.

De outro lado, sem reforma agrária, as migrações in­ternas prosseguiram velozmente, agravando os problemas das metrópoles e acelerando o processo de favelização. As favelas estão cercando os grandes centros urbanos. Mas na­da se faz para enfrentar racionalmente o desafio.

A concentração de renda segue sua trilha sem que so­fra qualquer resistência. Em 1979, por exemplo, o produ­to interno bruto brasileiro era de 204 bilhões de dólares. A renda per capita- muito baixa diante dos padrões inter­nacionais -, de 1.757 dólares. Em 1987, o PIB alcançou 272 bilhões de dólares e a renda per capita, 1.926 dólares. Como se vê, enquanto o PIB cresceu 350Jo, a renda perca­pita subiu 10%. Claro que o aumento populacional pesou

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para esse resultado. Mas, de qualquer maneira, isso com­prova que os resultados do aumento da produção ficaram com alguém, pois em contabilidade não existe débito sem crédito. E comprova, também, que o produto brasileiro, dentro do modelo conservador imposto por 64, não foi ca­paz de prever as necessidades crescentes do país e prover de serviços e produtos básicos as gerações recentes que vie­ram incorporar-se à população existente no Brasil, quan­do um esforço - desordenado, mas um esforço - de re­forma foi interrompido por um golpe militar, cujos efeitos a sociedade e o país ainda não conseguiram resgatar. O próprio presidente da República, no programa· Conversa ao Pé do Rádio de 23 de outubro de 1987, revelou- que ape­nas lo/o dos proprietários de terras possui 200 milhões de hectares. E para a reforma agrária, só precisamos ---:- frisou - de 30 milhões de hectares ...

A iniqüidade, com ser continuada, tradicional, arraiga­da, nem por isso cria seus próprios fundamentos éticos, ju­rídicos. Pode, se tanto, impor um sistema legal ou legalísti­co graças ao qual perdure - não sem carrear e divulgar os males de que está pejada.

A propriedade fundiária brasileira é, intrinsecamente, uma irrisão: o número de proprietários latifundiários- ain­da que computados com seus parentes consangüíneos ou afins -é tão desprezível que, se desaparecessem de repen­te da nossa história, de duzentos anos para cá, nem a te­riam afetado negativamente. Mas é um milagre de conser­vadorismo. Desde José Bonifácio de Andrada e Silva,. nos inícios do século passado, até hoje, não houve um brasilei­ro imbuído de espírito público que não tivesse denunciado a anomalia dessa apropriação, que, apurada na sua intimi­dade, revela sempre a imensa trapaça sobre a qual está montada. Se isso fosse sem conseqüências, a nação poderia suportá-lo, mas seu preço humano é hediondo.

Mas o esvaziamento precoce da área rural, a criação de exércitos famintos de bóias-frias, a inchação urbana fa­velizada ou mocambozada, a penúria de produtos agríco­las, a concentração de habitantes urbanos malsãos em pe­quenos lotes promíscuos, tudo entra num quadro de irracio­nalidade social a que se junta a impotência coletiva de dar

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escola, instrução, educação, assistência alimentar, médica, sanitária, de infra-estrutura básica. E o país vira o paraí­so dessa caricatura de entidades caritativas - às vezes com alta dotação, pública ou privada - que, não minorando em nada o quadro, servem para duas funções.

Primeiro, servem para pacificar as consciências inquie­tas: somos caridosos, ajudamos os pobres e necessitados, estamos (estivemos, estaremos) vencendo a ignorância (com escolinhas algo simbólicas, com professor.inhas exploradís­simas), saneando pouco a pouco, sanitarizando, odontolo­gizando. E, com efeito, podemos, por exemplo, assegurar que os nossos dirigentes - executivos, legislativos, judiciá­rios- raramente vêem (viram, verão) um desdentado, em­bora 70o/o da população brasileira o seja precocemente. O espetáculo da miséria humana que é a nossa população é muito menos exibido que a beleza dos traseiros praianos: somos uma raça forte e bela!

Segundo, servem para "explicar" nossa marginalida­de social - de meliantes, assaltantes, vigaristas, punguis­tas, narcotraficantes, mas também banqueiros, banquistas, investistas e toda uma fauna potentada que não raro convi­ve com o eleitor do povo não raro financiado por ela.

Um indicador de saúde importante, que reflete indire­ta, mas fortemente, o grau de subnutrição do povo brasi­leiro encontra-se no confronto dos índices que assinalam a presença da tuberculose. Em 1976, segundo o Anuário Estatístico do IBGE, ela atingiu, aparentemente, no país - fora os casos não aparentes ou não registrados - 51 mil 301 pessoas. Em 1986, dez anos depois, portanto, pas­sou a atingir 83 mil 731 pessoas. A tuberculose, assim, co­mo se constata pelos números, cresceu mais percentualmen­te do que a população. Tanto assim que o mesmo IBGE as­sinala que sua incidência por 100 mil habitantes passou de 47 casos para 60,5 casos.

O sarampo, também doença infectocontagiosa, cres­ceu de 68 casos por 100 mil habitantes para 89,3 casos. Crescimento surpreendente está registrado quanto à incidên­cia da malária: de 86 mil casos em 1976 para 443 mil casos, em números absolutos, em 1986.

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Verifica-se, assim, o crescimento da fome, de um la­do, convergindo com a falta de imunização e investimen­tos nas condições sanitárias, de outro, para agravar a qua­lidade de vida no Brasil. A renda se concentra de maneira impressionante, e tal concentração não leva em conta a si­tuação do meio ambiente. Tampouco as condições de saú­de decorrentes da falta de alimentação e dos problemas desse meio ambiente.

Se se analisa com isenção e detenimento o panorama da política brasileira desde o alvorecer da República aos dias de hoje- e lá se irão breve 100 anos -, vai-se verifi­car uma predominância absoluta do conservadorismo até 1930. Com a revolução de 30 e a instalação do primeiro go­verno Vargas, deu-se uma ruptura de cúpula, e o reformis­mo, especialmente nas relações entre capital e trabalho, co­meçou a ter lugar. Vieram as leis trabalhistas, a garantia no emprego, a estabilidade, a Justiça do Trabalho foi im­plantada, o movimento sindical, com todos os defeitos e qualidades que se lhe possam imputar, consolidou-se. Ape­sar de distorções, que sempre existem em tudo, o trabalho, com Vargas, p~ssou a ter voz e vez. E, assim, esse refor­mismo no campo do trabalho atravessou a ditadura de 1937 a 1945. Não avançou no governo Eurico Dutra, acen­tuadamente conservador. Basta ver que pouquíssimas con­quistas nele estão assinaladas. Mas não se pode dizer ter ocorrido um retrocesso, como, por exemplo, ocorreu no plano político, sobretudo na intolerância às posições de es­querda: a cassação do Partido Comunista teve seu proces­so consolidado no biênio 4 7 I 48. Mas essa é outra questão.

DE VARGAS A JK, O CICLO DO REFORMISMO

O fato é que o reformismo, com a volta de Vargas e a eleição de Juscelino Kubitschek, seguiu o seu ciclo. O pe­ríodo de Jânio Quadros foi demasiadamente curto, o presi­dente lançou os 6 milhões de votos que recebera do total de 15 milhões de eleitores pela janela. João Goulart assu­miu e, com ele, sem dúvida, o reformismo ganhou nova força. O presidente da República, inegavelmente, avançou

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no sentido das reformas que constituíam uma eXIgencia da sociedade. O fato de tê-lo feito de forma pouco eficaz ou até atabalhoada não lhe retira o conteúdo mais profun­do. E também não retira a origem política de sua ascensão, totalmente provinda do varguismo. Goulart não possuía talvez condições mais efetivas, tampouco uma visão políti­ca mais ampla, para exercer o governo nas circunstâncias a que, de qualquer forma, foi levado; ao invés de procurar isolar seus adversários, os conservadores, dentro das con­tradições que todos os segmentos têm entre si, ao contrário, terminou unindo a todos contra si próprio.

Mas defendeu a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma e a nacionalização da rede bancária, devolveu ao Congresso Nacional o projeto Sérgio Magalhães, que li­mitava a remessa de lucros, obrigando com isso o deputa­do Ranieri Mazilli, então presidente da Câmara, a promul­gar a lei, e não procurou colocar em prática qualquer polí­tica de compressão e redução salarial. Enfrentou o capita­lismo rural, com a ameaça da reforma agrária, e o capita­lismo urbano, com a encampação da refinaria de Capua­va, o que assustou os conservadores. Uniu-os, ao invés de procurar dividir. Jogou o capitalismo nacional, que come­çava a surgir, nos braços do capitalismo internacional. Ao contrário de Lincoln, nos Estados Unidos, aproximou, pelo temor que despertava, os empresários do campo e da cidade, e, finalmente, como se tudo isso não bastasse, rom­peu com a hierarquia militar.

Mas o fato essencial não repousa, para a análise que aqui fazemos, no fracasso de sua atuação política. É que a vida política de Jango, de apenas onze anos de duração (chegou ao Ministério do Trabalho em 1953, foi deposto da presidência da República em 1964), foi marcada sempre pela desconfiança, pela ç:rise, pelo tumulto que provocou: homem conciliador, sem conseguir bom êxito na concilia­ção, político fraco nas articulações políticas, reformista que não soube conduzir a reforma. Por isso, inclusive, o país tanto se atrasou no campo social, e os resultados aí es­tão. O mais expressivo deles (e por isso o relembramos) po­de ser sintetizado na constatação de que, ao longo de pou­co mais de vinte anos, o número de habitantes de uma cida-

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de como o Rio de Janeiro duplicou, enquanto o total de moradores das favelas cariocas quintuplicou.

Apesar de seus malogros na superação das dificulda­des e de sua incapacidade em saltar ou contornar obstácu­los, Goulart representou e assumiu um esforço de refor­mas. Não importa ter sido ele um grande proprietário ru­ral, cuja herança ultrapassou um bilhão de dólares: a refor­ma era a sua posição, o seu objetivo. E foi, no fundo, con­tra a reforma que se fez a revolução de 64, movimento ni­tidamente conservador.

A lei de remessa de lucros foi a primeira a ser revoga­da pelo governo Castelo Branco, que tinha como ministro do Planejamento, praticamente primeiro-ministro, o atual senador Roberto Campos. A compressão salarial começou rapidamente. E permanece até hoje, retomada agora, 1988, após uma liberação verificada - é justo reconhecer - na primeira fase do governo José Sarney. A liberação da re­messa de lucros não atraiu novos investimentos estrangei­ros. Tanto é assim que o Brasil tem uma dívida externa su­perior a 110 bilhões de dólares e suas reservas cambiais vo­latizaram-se como um jato de lança-perfume. A política de compressão,' na verdade redução salarial, não produziu qualquer efeito antiinflacionário. Ao contrário, a inflação subiu como nunca. Em determinado período, especialmen­te ao longo do governo João Figueiredo, o desemprego atin­giu taxas alarmantes, chegando a 80Jo da mão-de-obra ati­va. Some-se ao desemprego o não-emprego dos jovens que atingem a idade de trabalhar e não conseguem ingressar nesse mercado. Nem por isso a inflação baixou. Os preços continuaram sua trajetória ascensional. A favelização, .co­mo vimos há pouco, cresceu enormemente. As doenças que têm origem na fome e na subnutrição cresceram. Afi­nal, chegamos claramente à constatação seguinte: o conser­vadorismo fracassou, já que todas as soluções propostas e concretizadas foram conservadoras e nenhuma delas deu certo.

O processo de 64, conservador em sua origem e sua fi­losofia, não conseguiu sequer, com todo o arbítrio, colo­car as crianças na escola; calcula-se que 5 milhões estejam vagando pelas ruas, pelos morros, pelos becos e pelas sarje

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tas dos grandes centros urbanos. O que aconteceu no Br_a­sil? A explicação, em síntese, é uma só: o conservadons-

mo fracassou, pois não conseguiu resolver nenhum proble· ma, seja ele econômico, seja ele social.

O movimento de 64, que conduziu o sistema militar ao poder no país e que o ocupou por mais de vinte anos, foi conscientemente conservador em sua origem, nos seus princípios, nos seus objetivos. Para preservar sua posição, uniu, a princípio, o empresariado urbano e rural, a classe média urbana, grande parte da Igreja católica, que depois em grande parte também mudaria de opinião, e os estamen­tos militares. Num país repleto de problemas econômicos e sociais, cujo processo de solução democrática e capitalis­ta teve início no governo Juscelino Kubitschek, o conserva­dorismo teria nitidamente que ingressar num cipoal de con­tradições. Era difícil plantar um retrocesso na tendência evolutiva da sociedade, sem que isso implicasse reação polí­tica: é que a política econômica repousa, de forma quase absoluta, no contexto político. Não se podiá- não se po­de- alimentar um processo de redução salarial e o fo·rtale­cimento do capitalismo dentro de um quadro eleitoral pros­pectivo.

Assim, o governo Castelo Branco torceu imediatamen­te seu pensamento, para evitar, por exemplo, as eleições presidenciais diretas marcadas para 1965. Cassou violenta e arbitrariamente o mandato do então senador Juscelino Kubitschek, para impedir a reaglutinação das forças que lhe haviam dado a vitória em 1955. Mas isso não seria sufi­ciente. Havia a candidatura Carlos Lacerda, então governa­dor do Estado da Guanabara, que tanto liderava a classe média urbana quanto as tendências partidárias conservado­ras. Mas, claro, em eleições presidenciais diretas, Lacerda dependia de votos. E logo sentiu que o planejamento eco­nômico de Roberto Campos, na administração Castelo Bran­co, o distanciaria, ainda mais, da grande maioria do eleito­rado brasileiro, traumatizado com os rumos políticos do movimento de 64.

A política econômica - totalmente conservadora -iniciava (como a que se verifica ainda hoje) forte compres­são salarial , que evidentemente não poderia obter o apoio

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da população e, portanto, das parcelas maiores que com­põem o eleitorado. Lacerda logo rompia com Roberto Cam­pos e iniciava a trajetória que o distanciava do próprio go­verno Castelo Branco. O distanciamento, que era parcial, transformou-se em total, a partir do momento em que, pe­la diferença de um voto, o governo conseguiu, no Congres­so Nacional, prorrogar o mandato do presidente Castelo Branco por mais um ano. Assim, as eleições presidenciais de 1965 foram adiadas para 1966. Lacerda, candidato da UDN, partido que dava sustentação parlamentar'ao gover­no, que na época necessitava pelo menos dessa aparência, passou a investir violentamente contra o presidente da Re­pública. Certamente identificou no governo o desejo de tam­bém afastá-lo do quadro sucessório . Lacerda tinha muita experiência em afastamentos desse tipo, pois em 1955, quan­do a UDN fora derrotada para a presidência da Repúbli­ca, comandou um movimento político-militar para impedir a posse dos candidatos vitoriosos nas urnas, Juscelino e João Goulart. O deslocamento de Lacerda para a oposição significou também a primeira ruptura no apoio da classe média ao governo Castelo Branco e à revolução de 64. Mas, apesar de tudo, Carlos Lacerda procurava manter-se candidato, não mais para 1965, mas para 1966, pois seu no­me já havia sido escolhido pela convenção nacional da União Democrática Nacional.

Entretanto, meses depois, através da emenda constitu­cional n ~ 13, o governo Castelo Branco rejeitou prorrogar tílffibém os mandatos dos governadores dos Estados, para os quais convocou eleições diretas, marcando-as para outu­bro de 1965. Na Guanabara, a vitória de Negrão de Lima, por maioria absoluta, e a vitória de Israel Pinheiro, em Mi­nas Gerais, detonaram uma explosão política no país. Afi­nal, os dois principais líderes civis de 64, Lacerda e Ma­galhães Pinto, este então governador de Minas, haviam si­do derrotados por larga margem. O sistema militar, lidera­do então pelo ministro da Guerra (denominação do atual ministro do Exército), Costa e Silva, emparedou o presiden­te Castelo Branco, ameaçando negar posse aos eleitos. Cas­telo Branco, até mesmo para se livrar de Lacerda, lutava pela posse. Conseguiu . Mas ao preço do Ato Institucional

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n? 2, que acabou com as eleições presidenciais diretas. O pretexto eram as salvaguardas que os militares exigiam.

O Ato Institucional n? 2 não acabou apenas com as eleições presidenciais diretas, mas com a própria candidatu­ra Lacerda, que terminaria também tendo seus direitos po­líticos cassados três anos adiante, quando da decretação do Ato Institucional n? 5.

Com o Ato n? 2, o sistema militar conseguiu distan­ciar seu poder da decisão do eleitorado e, dessa forma, cris­talizar o conservadorismo que o inspirou. Se o povo não podia decidir, qualquer política econômico-social poderia ser adotada. Tanto fazia. Não era preciso agradar as gran­des massas. A compressão salarial prosseguiu e até se agra­vou, especialmente durante o período Médici, com a políti­ca do ministro Delfim Neto, na Fazenda, que, anos depois, a retomaria no governo João Figueiredo, quando ressur­giu, após o período Geisel, na pasta do Planejamento.

De etapa em etapa, o conservadorismo ~ufocou a so­ciedade, sob o argumento de que necessitava consolidar re­cursos para o desenvolvimento econômico. Delfim Neto chegou a afirmar, certa vez, que, para o desenvolvimento social, primeiro era necessário fazer crescer o bolo. Depois de crescer, então, chegaria a hora de reparti-lo. A popula­ção brasileira aguarda ansiosamente essa repartição até ho­je. Os efeitos negativos da política de compressão salarial fazem-se sentir até agora, inibindo, impedindo, sufocando o desenvolvimento social.

O CERCO DO CONSERVADORISMO

O Brasil não conseguiu romper o cerco do conservado­rismo, conservadorismo esse que fez - rel~mbremos e re­pitamos - com que, por exemplo, a população de uma grande metrópole como o Rio de Janeiro tenha duplicado ao longo dos últimos 22 anos, crescendo de 3 milhões pa­ra cerca de 6 milhões de habitantes, enquanto sua popula­ção favelada, no mesmo período, quintuplicou, atingindo mais de 2 milhões de pessoas. Melhor indicador não há pa­ra comprovar sinteticamente o processo crítico e cínico que

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as gerações atuais deparam, perplexas e desiludidas. Mas com a certeza de que só a devolução total do poder de esco­lha ao eleitorado poderá levar à ruptura, há mais de vinte anos exigida, tanto pela sociedade quanto pela realidade. Isso porque problemas como o da reforma agrária, e mes­mo o da reforma urbana, não podem encontrar solução dentro dos padrões do capitalismo clássico conservador e - no nosso caso - selvagem, no qual o lucro é, no fun­do, o objetivo supremo. Prevalecendo tal critério, o mode­lo econômico-social somente pode ser conservador. Portan­to, não levará, como um sem-número de exemplos através dos tempos o comprovam, à justiça social. Que justiça so­cial? Simplesmente a de assegurar o mínimo de dignidade de vida aos seres humanos. Não se trata de repartir pulve­rizando em partes iguais o produto nacional ou as riquezas do país. Trata-se apenas de reconhecer que as pessoas pos­sam ficar ricas, os grupos econômicos possam ampliar seus resultados, mas que isso não continue levando o povo à miséria, à opressão social, a uma forma nítida de escravi­dão, cem anos depois de ter sido ela abolida.

O que é, afinal, ser conservador? Será desejar conser­var uma posiçãe econômica excepcional? Não parece. Pois, na verdade, os que se encontram em tal posição não que­rem apenas conservá-la. Querem ampliar o seu poder, os seus lucros, negando direitos legítimos a número cada vez maior de pessoas. Sobretudo no Brasil, país que apresenta uma das mais altas taxas de crescimento demográfico do mundo e - infelizmente - um dos maiores índices de sub­nutrição e de mortalidade infantil. Os dados quanto aos dois fenômenos estão no relatório do Banco Mundial e tam­bém no último relatório do Unicef, como veremos adiante.

O fato é que o Brasil precisa sobreviver na dignidade, não mais que isso: não precisa ser potência atômica, não precisa pertencer a clubes dos dez mais, não precisa ter for­ças armadas para uma guerra que não haverá, não precisa ser país temido, não precisa inflar o peito de alguns de seus filhos privilegiados com o sacrifício de todos os seus demais filhos humilhados e ofendidos.

(Quando atingir esse estatuto de dignidade humana, tal Brasil saberá decidir, sem opróbrio da imensa maioria dos seus filhos, se quer ser potência atômica, pertencer aos

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clubes dos dez mais, ser temido, ser superpotência e quejan­dos - coisa que virá em sua oportunidade, se o curso da história continuar a ser o que foi até Hiroxima e Nagasaki.)

O Brasil precisa sobreviver na dignidade. Não há ideo­logia, não há partido, não há política, não há classe, não há estamento, não há clique, não há claque que não con­corde com isso. Todos - praticamente todos os que pen­sam o Brasil, sejam brasileiros, sejam estrangeiros (o que, para o caso, não é menos relevante) estão conformes em que:

1) seu território é de uma potencialidade tal que - a estimativa já era de Agassiz (1807-1873) - seu território tem a potencialidade de 1 bilhão de habitantes, como a China de hoje (mas não o auguremos, se para isso tiver­mos que ter também a história trágica que foi a da China);

2) seu futuro poderá ser fecundo e justo: infelizmen­te, o Brasil desde a década de 40 é "o país do futuro", vo­to proferido na melhor boa-fé e tornado estigma, pois o fu­turo é sempre futuro, isto é, sempre projetado sobre os re­petidos presentes sombrios que a maioria da sua população tem vivido sempre; o futuro deve tornar-se presente;

3) seu povo não tem merecido os governos e dirigen­tes que, ao longo da sua história, tem tido, já que estes só fizeram frear, dilapidar, usufruir, subtrair as riquezas imensas produzidas no Brasil, praticamente sem contrapar­tida - o que precisa ser conscientizado por nós todos, pa­ra sairmos do beco em que estamos: o beco conservador.

O beco conservador consolidou-se ao longo da nossa história graças a uma gama extremamente contraditória de lemas nacionais:

• através de lemas ufanistas - "ama com fé e orgu­lho a terra em que nasceste", "ame-o ou deixe-o" - e de uma sempre renovada propaganda mentirosa - ''tudo pe­lo social" -, o conservadorismo vem mistificando o povo;

• acenando sempre com um amanhã em que se coma com saúde e prazer de viver, em que se habite em moradas decentes, em que se aprenda a ser cidadão consciente, em que se tenha um emprego honesto. O povo vem suportan­do o inverso disso continuamente - pois está asfixiado oficialmente pelo ufanismo, pelo esperancismo, pelo futu-

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rismo, pelo espontaneísmo, pelo fraternalismo racial, pelo cordialismo social, pelo bonzismo, pelo carnavalismo, que coonestam a fome, a subnutrição, os salários de morte, a abdicação de direitos, a ausência de justiça, a sonegação de direitos, as endemias, as epidemias endêmicas, a dilace­ração da dignidade, a prostituição masculina e feminina co­mo condição de sobrevivência, o obscurantismo alimenta­do a custa de um uso aberrante dos meios de comunicação de massa. O beco ideológico.

O conservadorismo político - traduzindo o conserva­dorismo econômico - não se restringiu ao longo interreg­no de suspensão das eleições diretas para presidente da Re­pública. Gerou situações incríveis, que o historiador do fu­turo terá dificuldade de explicar à luz da lógica.

Em conseqüência do Ato Institucional n? 2, ainda no governo Castelo Branco, foram proscritas as eleições di­retas para prefeitos das capitais. Caiu-se, então, numa tra­gicômica contradição: os eleitores das cidades menores po­diam eleger seus prefeitos. Os dos grandes centros urbanos, não. O casuísmo foi o seguinte: a revolução de 64, pela aliança com o .latifúndio e as forças conservadoras, não possuía boa posição política nos centros urbanos, especial­mente, é claro, nas capitais. Em decorrência, a oposição venceria as eleições. Solução: acabar com o pleito e deter­minar que os prefeitos das capitais fossem, como foram, nomeados e, não, eleitos. Assim, o eleitorado e a cidada­nia das capitais passaram a ter menos influência que os das demais cidades brasileiras.

Em 1974, o presidente Geisel assumiu o governo e pro­curou colocar em prática a tese da distensão lenta, gradual, segura. Assumiu no início do ano. Chegaram as eleições de novembro. Foi assegurado o acesso da oposição aos ho­rários gratuitos da televisão e do rádio. Os votos brancos e nulos, que nas eleições de 1970, por desencanto, haviam atingido cerca de 300Jo, baixaram para 14%. A taxa nor­mal situa-se em 10%, como ocorre desde 1945 e ocorreu em 1982 e 1986. Muito bem: a oposição venceu o pleito pa­ra o Senado Federal em 16 Estados e ampliou enormemen­te sua presença na Câmara Federal. Era a época do biparti­aarismo, Arena e o antigo MDB, hoje transformado em

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PMDB. Conseqüência: três anos depois, antes das eleições de 1978, o presidente Geisel baixou atos complementares, ditatoriais, colocando o Congresso em recesso à base de um falso pretexto (não votação de um projeto de reforma do Judiciário, que igualmente não implantou por ato execu­tivo), eliminando a propaganda político-partidária livre na televisão e no rádio, entre outras medidas de força -e conservadoras. Entre essas medidas, mudou o critério de preenchimento das cadeiras na Câmara Federal. O siste­ma, implantado em 1969 e até considerado um avanço, era fixar o número de cadeiras com base no eleitorado. Isso fortalecia os Estados de maior índice de alfabetização. Gei­sel estabeleceu o retrocesso: ao invés de com base no eleito­rado, a qualificação passou a decorrer do número de habi­tantes. Os Estados de economia rural, como os do Nordes­te, tiveram suas bancadas ampliadas. Os de economia in­dustrial, como São Paulo e Rio de Janeiro, tiveram suas bancadas congeladas. Além disso, foi fixado um limite, que impediu a progressão da presença de São Paulo no Le­gislativo.

Tudo isso para frustrar o que seria possível conseguir em termos de modernização política. A aliança entre a re­volução de 64 e o latifúndio continuava. As soluções políti­cas, assim, decorriam da maior presença do Brasil de ontem em detrimento do Brasil de hoje. Mas o processo de 64 via, apesar disso, estreitarem-se seus caminhos.

O eleitorado urbano crescia mais que o rural. O país, de qualquer forma, se urbanizava. E o sistema militar de poder havia perdido o apoio da classe média urbana. Não conseguiu o apoio da juventude, num eleitorado formado por número cada vez maior de jovens. Sua faixa de atua­ção política reduzia-se progressivamente. A redemocratiza­ção passava a ser uma exigência nacional, e a atmosfera po­lítica do país ia nessa direção. Geisel eliminou os atos insti­tucionais e, com isso, a possibilidade de o presidente daRe­pública, no caso, João Figueiredo, seu sucessor prefixado, poder cassar mandatos parlamentares e direitos políticos, como desde 64 vinha sendo feito.

Mas a abertura política, que viria a se consolidar com a lei de anistia - originária, deve-se assinalar a bem da

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verdade, de projeto que Figueiredo enviou ao Congresso, logo ao início de seu período -, não viria a influir para que o governo abandonasse a postura conservadora. Mário Henrique Simonsen sai do Ministério do Planejamento pou­cos meses depois da posse de Figueiredo, e Delfim Neto, então, deixa a Agricultura e ocupa a Seplan (Secretaria de Planejamento, da Presidência da República). Os salários, que vinham sendo reajustados ao nível da inflação, passa­ram a sê-lo muitos pontos abaixo. Resultado: a Previdên­cia Social, que arrecada sobre a folha de salários, ingres­sou em período de crise. E os mutuários, cujos salários não acompanhavam a inflação, começaram a deixar de pa­gar as prestações ao BNH. O programa habitacional foi quase ao colapso. O governo teve que reduzir o reajuste das prestações mensais. Para se ter uma idéia do que Del­fim praticou, basta dizer que a antiga ORTN subia 2000Jo e os salários não eram atualizados nem na metade desse índice.

Hoje, neste início de 1989, infelizmente, a defasagem continua muito grave, colocando de um lado a URP, moe­da nacional para os salários, de outro, a OTN, moeda na­cional para a economia e para exprimir a inflação, de mo­do geral. Os sàlários, como sempre, continuam perdendo a corrida para o capital. Com isso, é evidente, concentra­se a renda cada vez mais. E os salários podem comprar ca­da vez menos. A classe média alta, que podia, por exemplo, adquirir um automóvel novo, atualmente já não pode mais fazê-lo. A política conservadora de atribuir os ônus de tu­do aos salários permanece. Com isso, o desenvolvimento social está comprometido.

Uma das principais características - ao mesmo tem­po causa e conseqüência - do conservadorismo é a concen­tração da propriedade e da riqueza, especialmente na área rural. O Almanaque Abril de 1988, com base em dados do Censo Agropecuário do IBGE, de 1985, revela existirem no país, em números redondos, 5 milhões 834 mil estabele­cimentos agrícolas, ocupando espaços cultivados de 376 mi­lhões 286 mil hectares. Desse total, 1,8% das propriedades explora 54% das terras, correspondendo, portanto, a 205 milhões de hectares. Descendo um pouco na escala estatís­tica, vamos ver que aproximadamente 1% das proprieda-

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des rurais abrange 420Jo das áreas agrícolas. Essa realida­de mantém-se praticamente inalterada no qüinqüênio de 1980 a 1985. Logo, não houve qualquer mudança na estru­tura da propriedade rural. Este será, por certo, o melhor in­dicador, para provar que a reforma agrária, como vimos páginas atrás, embora prevista pela Lei do Estatuto da Ter­ra, que é de novembro de 1964, permanece firme no papel e longe da realidade. Em 1980, por exemplo, havia no Bra­sil apenas 53 propriedades com mais de 100 mil hectares. Cinco anos depois, temos somente 61 propriedades com área acima desse limite. Comparando o quadro estatístico da página seguinte, vê-se que o crescimento do número de estabelecimentos de 1980 para 1985 foi em torno de 15%, passando de 5 milhões 159 mil para 5 milhões 834 mil.

A CRISTALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE RURAL

Os percentuais quanto à dimensão das terras explora­das permaneceram os mesmos. A concentração da produ­ção rural, portanto, logicamente, conservou-se.

A comparação não deixa dúvida, pois as variações são mínimas. Basta olhar para o quadro comparativo da pos­se da terra no país, balizado no período de 1980 a 1985, pa­ra chegar com facilidade a essa certeza. Obviamente, em função da estrutura da propriedade vigente, o volume da produção não se distribuiu em 1985 de forma diversa com que se projetou em 1980. Assim, dentro desse panorama conservador, a concentração das áreas agrícolas e pecuá­rias continuou traduzindo-se, de maneira também propor­cional, nas tonelagens de alimentos produzjdos. E, por cer­to, se a produção e a propriedade se mantêm concentradas, os que ocupam as faixas privilegiadas de ambas as concen­trações logicamente impõem os preços. Até mesmo por fal­ta de condições competitivas . E se impõem os preços, estes vão continuar subindo em escalas assustadoras. O consumi­dor terá de arcar com as diferenças para mais e as conse­qüências quanto à ingestão de alimentos para menos. Cla­ro. Trata-se de um reflexo da queda do poder aquisitivo.

Distribuição da posse da terra no Brasil

1980

Extratos de área (ha) Estabele- % Área (ha) % Estabele-cimentos cimentos

Menos de 1 ....... .................... 469.091 9,1 280.003 0,1 645 .624 1 a menos de 2 ..................... 515.515 10,0 706.942 0,2 619 .828 2 a menos de 5 ..................... 903.590 17,5 2.942.802 0,8 1.049.666 5 a menos de 10 ............... .. .. 709.823 13,8 5.074.510 1,4 770.723 10 a menos de 20 ................. 771 .330 15,0 10.751 .394 3,0 818.157 20 a menos de 50 ................. 854.051 16,6 26.384.898 7,2 910.075 50 a menos de 100 ............ .. .. 391.393 7,6 27.358.050 7,5 438.192 100 a menos de 200 ........... .. . 260.714 5,0 ,. 34.671.996 9,5 283.503 200 a menos de 500 .. , ........... 169.455 3,3 51 .957.472 14,3 175.003 500 a menos de 1.000 .......... . 58.352 1,1 40.1 69.719 11,0 60.112 1.000 a menos de 2.000 ........ 27 .1 45 0,5 37.027 .553 10,0 29.099 2.000 a menos de 5.000 ........ 14.832 0,3 43.467 .185 12,0 15.298 5.000 a menos de 10.000 ...... 3.519 0,07 24.054.1 10 6,6 3.534 10.000 a menos de 1 00 . 00~ .. 2.292 0,04 48.280.127 13,2 2.113 100.000 e mais ..................... 53 0,001 11.727.653 3,2 61 sem declaração ........ ..... ........ 8.696 0,1 7 - - 13.791

Total .. ..... ................. .... ... .. .. . 5.159 .851 100 364.854.421 100 5.834.779

Fonte: Sinopse Preliminar do Censo Agropecuário de 1985, IBGE.

1985

% Área (ha)

11 ,0 366.408 10,6 835.816 18,0 3.364.936 13,2 5.462.618 14,0 11 .345.762 15,6 28 .1 79 .753

7,5 30.153.422 5,0 37.456.1 64 3,0 53.145.325 1,0 41 .292.068 0,5 39.617.914

0,26 44.821 .776 0,06 23.957.441 0,03 43.789.385

0,001 12.497.783 0,24 -

100 376.286.577

%

0,1 0,2 0,9 1,5 3,0 7,5 8,0

10,0 14,0 11,0 10,5 12,0

6',4 11 ,6

3,3 -

100

(H <:1'1

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O consumo interno de carne bovina, por exemplo, se­gundo o IBGE, caiu de 16,7 quilos por habitante-ano, em 1980, para 10,7 quilos por habitante-ano, em 1986. Pois, se os que dominam os preços agropecuários conseguem ele­vá-los seguidamente, sem que sejam interrompidos em tal atuação, por que motivo iriam produzir mais e mais barato?

Há que considerar também as exportações. Sua remu­neração, em face da constante queda do valor do cruzado ante o dólar, torna-se mais atraente sob a óptica não-ética do lucro. Menor consumo interno de alimentos- a carne é um exemplo - representa, em conseqüência, maior índi­ce de doenças. E, assim, os custos do Serviço Público com assistência médica sobem na mesma proporção em que de­clina a ingestão de proteínas e vitaminas naturais.

O consumo interno de leite - outro exemplo - en­contra-se praticamente estagnado em torno de 11 a 12 bi­lhões de litros nos últimos cinco anos, embora nesse perío­do a população brasileira tenha crescido pelo menos 15 OJo, conforme prova a projeção das taxas demográficas do pe­ríodo.

Através do tempo, nada se fez no país para romper o ç:írculo da concentração da propriedade. No meio rural, ela chega a ser extremamente arcaica, talvez quase medie­val. As soluções apontadas para a economia são acentuada­mente conservadoras. Tanto assim que, depois de preparar as contestações do antigo MDB às políticas de Roberto Campos, Mário Henrique Simonsen e Delfim Neto, o eco­nomista Celso Furtado foi parar no Ministério da Cultura, com o qual tem pouca afinidade, já que não é homem da cultura artística e sim do universo científico. Está em lugar errado. Mas por quê? Simplesmente porque não é um con­servador. É um reformista. E o governo, mesmo o do atual PMDB, tem horror ao reformismo. Esta, aliás, a contradi­ção. O PMDB, na oposição, era um partido contestador, reformista. No governo, sua maior parte transformou-o em conservador. O principal impasse do país, na realida­de, situa-se neste ponto: a sociedade exige reformas que o poder não realiza. E, por isso, a crise agrava-se dia a dia, aproximando-se claramente de um ponto de ruptura. O imobilismo, no fundo, é o maior aliado do conservadoris-

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mo. Ou seja: da estagnação, do atraso, da falta de corres­pondência entre o crescimento populacional e a moderniza­ção do país.

O poder político apóia-se no Brasil de ontem, que pa­rou de evoluir quando Juscelino Kubitschek concluiu seu mandato. A população, em seu impulso natural, conscien­te ou não, quer novas soluções. O sistema cristalizado de poder não as deseja ou não as consegue concretizar. E não consegue, pelo fato de se prender a formas conservadoras que já se revelaram ineficazes em termos de presente e, so­bretudo, de futuro. O país se urbaniza velozmente, é um Brasil muito diferente do de 1945, por exemplo. Naquela ocasião, dois terços da população estavam nas áreas rurais. Um terço nas grandes cidades. Hoje, dois terços estão nas grandes cidades, um terço nas áreas rurais . Tem-se governa­do o Brasil olhando para o passado. E isso, além de depres­sivo eticamente, é política e economicamente trágico.

A estrutura dos salários, no Brasil, é simplesmente ri­dícula. O último Anuário Estatístico do IBGE revela que, em 1985, havia no país, em números redondos, 48 milhões de trabalhadores. Desse total, 13,30Jo ganhavam até meio salário mínimo. Incrível, pois a lei estabelece um salário mínimo, que, assim, não é sequer respeitado. E se trata de um nível mínimo dos mais baixos do mundo, em torno de 60 dólares. Praticamente, 20% (19,9%, para sermos exa­tos) ganham de meio a um salário mínimo. De um a dois salários mínimos, são 26,3% da mão-de-obra ativa. De dois a três mínimos, são 12,2%. Entre 3 e 5 mínimos, são 12,8%. A partir daí, começa a desmoronar a pirâmide. Apenas 9,5% dos trabalhadores e servidores públicos rece­bem por mês entre 5 e 10 mínimos. De 10 a 20 mínimos, são 4,1%. E, finalmente, apenas 1,9% dos que trabalham ganha por mês mais de 20 salários mínimos. No final de 1985, nesta última situação eram apenas 919 mil e 500 pes­soas em todo o Brasil. E ainda se diz que os salários são causa de inflação. Isso num país em que não se sabe para onde vai o dinheiro: oitava economia do mundo, com um produto interno bruto de aproximadamente 300 bilhões de dólares. Para onde vai o resultado desse produto? Pa­ra o Poder público não vai. Pois este corta os reajustes salariais

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de seu funcionalismo, alegando que não há recursos para reajustá-los nem ao nível da inflação. Reajustando-os abai­xo da linha da inflação, na realidade os está reduzindo em seus vencimentos, de forma clara e até inconstitucional. E os submergindo em carências cada vez maiores. Que ru­mo é esse? Que país é esse? Que conservadorismo é esse?

A estrutura de salários existente no Brasil - como os números mostram - revela que, cem anos depois da Abolição, o trabalho escravo permanece no Brasil, abran­gendo indistintamente negros, brancos, mestiços, caboclos, índios, uma vez que todas as etnias ou raças se representam de alguma forma percentual na força de trabalho. E, se te­mos a constatação - acentuada pelo próprio IBGE - de que 13,30Jo dos que trabalham ganham por m_ês até meio sa­lário mínimo, enquanto 19,9% recebem até um salário mí­nimo, chegamos facilmente à conclusão de que 33,2% dos trabalhadores estão com sua remuneração abaixo da lei. Logo, a escravidão, disfarçada ou não disfarçada, vem à tona. Afirma-se que parte dos que integram a mão-de-obra ativa do país vive de uma economia invisível, de biscates, de serviços não fixos e não permanentes, perambulando à busca de algo que fazer para ganhar algum dinheiro.

Mas temos que considerar também, sempre segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, anuário de 1986, portanto focalizando os dados de 1985, que, dos 48 milhões que trabalham, 11 milhões 209 mil encontram­se nas áreas rurais. E é lógico que a remuneração das re­giões de produção agrícola ou pecuária é mais baixa que nos centros urbanos. Assim não fosse, então não haveria as migrações internas para os centros urbanos. O que se ve­rifica, inegavelmente, em síntese, é que a exploração do tra­balho humano no campo assinala a existência da escravi­dão. Pois não é abjeto que um terço dos trabalhadores bra­sileiros ganhe menos que um salário mínimo e a maior par­te desse terço esteja sufocada e subjugada nas senzalas do século XX?

Não é por outro motivo que as lideranças dos proprie­tários de terras, até eficientemente representados pela UDR, combateram tenazmente o dispositivo do projeto de Cons­tituição, aprovado pela Comissão de Sistematização, que

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condicionava a desapropriação de terras ao interesse social. Quanto a esse ponto, foi inteiramente procedente - e opor­tuna - a carta que o escritor Antônio Calado enviou ao jornalista Carlos Castelo Branco e este publicou em sua co­luna, no Jornal do Brasil. Calado chamava a atenção exata­mente para a permanência do trabalho escravo no meio ru­ral. Mas, mesmo que a escravidão moderna não fosse uma peculiaridade das atividades agrícolas, ela estaria presente no setor, já que no Brasil 33,20Jo ganham menos do que a lei manda pagar e praticamente 25% do total da mão-de­obra declaradamente ativa encontra-se nas áreas rurais. Se projetarmos, na melhor das hipóteses, o percentual de 33,2% sobre a parcela de 250Jo de trabalhadores no cam­po, vamos inequivocamente concluir que, na melhor das hipóteses, no meió rural também um terço dos que traba­lham não chega a ganhar um salário mínimo. O que é is­so, senão trabalho escravo? E é preciso considerar, também, que, no Brasil, a mão-de-obra ativa, em muitos casos, é composta de pessoas não identificadas como trabalhadores. As crianças, por exemplo, estão claramente nesse caso. Es­pecialmente na. agricultura, trabalhando de sol a sol e, mui­tas vezes, como no meio do século passado, lutando para receber apenas um pouco de sal que as mantenha de pé, num ciclo macabro e proposital da exploração do ser humano.

O que se questiona, dentro de tal sistema marcadamen­te conservador, é que não há necessidade, para alguém fi­car rico ou ainda mais rico, de tratar tão mal os que traba­lham. Há nisso um exagero e exagero sobretudo anticristão. Anticristão, porque o próprio Cristo, em sua passagem pe­la Terra, condenou a escravidão, sob todas as suas formas. Surpresa, neste final de século e milênio? Nem tanto. Re­volta, isso sim. Pois devemos todos lembrar-nos de que, apesar de condenada por Cristo, a escravidão oficial resis­tiu, no mundo, nas próprias naçôes cristãs, até cerca de 1800 depois de o filho de Deus pregar um novo relaciona­mento entre os seres humanos. É que a dificuldade de esta­belecer um processo social justo talvez esteja, no fundo, mais nas classes dominantes, nos conservadores, na consciên­cia e na alma dos que predominam, do que em qualquer sistema político ou econômico.

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Justiça s&ial não é, como de certa feita o senador Ro­berto Campos ironizou impudicamente em um de seus arti­gos, sair por aí dividindo bens e recursos financeiros. Pro­curou ele diluir e denegrir o tema, deslocando-o para um princípio vago e caricatura!. Não. Justiça social é, tão-so­mente, retribuir justamente o valor do trabalho. E fazer com que milhões de pessoas participem apenas um pouco, pelo menos isso, da riqueza que produzem.

UM TRATAMENTO PARA O TRABALHO, OUTRO PARA O CAPITAL

Uma das características básicas do conservadorismo é atribuir um tipo de tratamento ao trabalho e outro ao ca­pital. Como focalizamos anteriormente, existem pelo me­nos duas moedas no país: a URP, que reajusta os salários, e a OTN, que rege as aplicações do capital e também os compromissos do Estado com ele assumidos: Fato marcan­te, com repercussão na imprensa, por exemplo, envolveu os decretos 94.042 e 94.233, que determinaram reajustes com efeito retroativo para as obrigações assumidas pelo go­verno com as empresas empreiteiras de obras públicas e fornecedoras de serviços ao Estado. Os decretos, do início de 1987, fizeram retroagir os reajustes a novembro de 1986, quando ocorreu o descongelamento implantado em feverei­ro daquele ano, em conseqüência da entrada em vigor do Plano Cruzado Um. Sem discutir o conteúdo da questão e os motivos que levaram a tais medidas, verifica-se, de pla­no, que não houve reciprocidade no que se refere aos salá­rios dos servidores públicos. Prevaleceu o sistema de dois pesos e duas medidas, como se diz usualmente. Os empresá­rios receberam seus contratos com os reajustes à base das oscilações das OTNs no período. Os servidores não tiveram seus salários atualizados na mesma proporção. Este é ape­nas um exemplo.

A compressão salarial vem de muito antes. Pode-se mesmo dizer que se tornou um dos princípios do movimen­to revolucionário vitorioso em 1964. Foi aumentando de grau até atingir um ponto, que se julgava o máximo, ao

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longo do governo do presidente João Figueiredo. A Previ­dência Social, cuja arrecadação está sujeita à folha de salá­rios, entrou em grave crise, o mesmo verificando-se com o Sistema Financeiro da Habitação. Afinal, como pagar as prestações de casa própria, se a antiga ORTN, indica­dor econômico, subia muito mais que o antigo Índice Na­cional de Preços ao Consumidor - INPC -, que regia os salários?

No início do governo José Sarney, verificou-se inega­velmente uma distensão, uma reversão de tal processo ex­propriativo do trabalho humano. Tanto assim que a Previ­dência Social passou do déficit crônico de muitos anos ao superávit financeiro. O desemprego caiu, ele que chegara praticamente a 80Jo da mão-de-obra ativa, sem contar o não-emprego dos que atingiam a idade para trabalhar e não conseguiam ingressar no mercado de trabalho. Houve uma descompressão.

Mas tal política, infelizmente, não se manteve. E, de uns meses para cá, neste 1988, os salários voltaram a ser contidos nos diques da URP, e, em conseqüência, a situa­ção social voltou a se agravar, ingressando em novo pla­no inclinado descendente. A tendência, portanto, é para uma nova queda nos índices de saúde, como é lógico, acom­panhada do aumento das taxas de favelização. Até mes­mo porque os aluguéis são reajustados pelas OTNs, evoluin­do assim de forma bem mais acentuada que os salários.

Sem uma política salarial adequada e justa, sem uma política habitacional eficiente, sem investimentos de porte na área da educação, tanto o presente quanto o futuro do país ficam comprometidos e abalados. O clima de desespe­rança, muito incentivado pelo processo político-militar de 1964, volta a predominar. O descrédito influi direta e indi­retamente na produtividade e nos resultados do trabalho. Afinal, os seres humanos necessitamos do princípio-espe­rança: a diferença de estar numa fila estagnada, desesperan­te, e de se encontrar em outra que, mesmo lentamente, avan­ça. O governo (ou o Poder, ou a Vida, ou a Realidade) precisa oferecer à sociedade a sensação de avanço, mesmo lento. Sem isso, tudo se agr.ava. A começar pelos proble­mas da infância, focalizados pelo relatório de 1987 do Uni-

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cef. Na verdade, a problemática do menor, portanto do fu­turo, está ligada à problemática do maior, portanto do pre­sente. O que agrava os dois vértices da equação é o exercí­cio de uma política global conservadora, que tem muito mais a ver com o passado. Com ela não se rompe o círcu­lo de giz que aprisiona, pela fome e pela ignorância, gran­de parte das gerações que surgem, aquelas que vêm depois de nós, como definiu, ao tratar de temas sociais, o teatrólo­go Bertolt Brecht, autor, por sinal, do Círculo de giz cauca­siano.

O Brasil figura entre os países que apresentam taxa média de mortalidade infantil. Média, por isso mesmo in­compatível com o fato de ser a oitava potência - digamos assim - econômica do mundo. Afinal, no universo em que vivemos, existem pelo menos 136 países. O Brasil pos­sui- segundo o Unicef- uma taxa de mortalidade infan­til da ordem de 90 crianças por mil nascidas vivas. Taxa maior que a do México, que é de 73. Maior que a da Chi­na, que é de 50. Maior que a da Venezuela, que é 48. Bem maior que a da Argentina, que é de 40 por mil crianças nascidas vivas. Que a da União Soviética, que é de 29. In­finitamente maior que a dos Estados Unidos, que é de 13. Que a da Alemanha Ocidental, que é de 12. Da taxa do Reino Unido, também de 12. Que a da França, de 11 por mil crianças nascidas vivas. Maior que a do Canadá, 10. Maior que a do Japão, país cuja mortalidade infantil é de 9 crianças por mil nascidas vivas. Na Itália, a taxa média de mortalidade infantil é de 13 crianças por mil nascidas vi­vas. Segundo o Unicef, o percentual da população brasilei­ra com acesso à água potável é de 76o/o, em média, sendo que na área rural é de apenas 53%, onde, claro, a mortali­dade infantil é mais elevada. Nas nações desenvolvidas, es­se acesso é de 100%, de acordo com a mesma fonte. O anal­fabetismo brasileiro é de 24%. Na Itália, por exemplo, é de 4%. O mesmo na União Soviética. Na China, é de 17%. Nos Estados Unidos, Alemanha e França é simplesmente de zero%. No Japão, de 1%.

Mortalidade infantil, condições sanitárias e analfabe­tismo são indicadores sintéticos e enfáticos de um sistema de distribuição de renda. E quando se fala em distribuição

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de renda, não se está falando em recursos financeiros. Mas, sim, na distribuição de uma série de serviços de extrema im­portância para a vida humana. Como escrevia Oto Maria Carpeaux, no antigo Correio da Manhã, já no início da dé­cada de 60, o problema não é de renda per capita, mas, sim, de distribuição efetiva e concreta de renda. Os Emirados Árabes podem apresentar uma alta renda per capita. Porém encontra-se ela concentrada nas mãs de poucos, enquanto no estômago de muitos existe fome. A concentração de ren­da é conservadora. É o caso do Brasil, cujo produto inter­no bruto, na escala anual de 300 bilhões de dólares, nem de longe se reverte, para romper o desequilíbrio gritante e paradoxal entre a riqueza e a miséria.

Através de uma política de desenvolvimento, o gover­no Juscelino Kubitschek tentou romper o círculo vicioso desse desequilíbrio, sintetizado na contradição de não se in­vestir por falta de recursos e não se terem recursos por não investir. Investimentos houve, nos anos dourados de 1955 a 1960. E o país avançou muito em todos os setores. Mas a partir de 1961, as condições políticas regrediram. O rom­pimento com o regime democrático, em 1964, motivado por um sistema ·de alianças conservador, somente poderia levar ao conservadorismo. E aí o desenvolvimento social foi contido. Em lugar do esforço pela distribuição de ren­da, a concentração da riqueza. Por isso, por exemplo, co­mo já referimos, as favelas de uma cidade como o Rio de Janeiro cresceram cinco vezes, enquanto a população da ci­dade duplicou·.

A contradição essencial brasileira está no fato de que, tendo um produto interno bruto que equivale a quase o do­bro do PIB da Argentina, por exemplo, o país possui ta­xa de mortalidade muito superior a desse país e, igualmen­te, índice de analfabetismo bem acima. O produto interno bruto da Argentina oscila em torno da metade do PIB do Brasil. Que dizer? Como encontrar uma explicação, já que muitos outros exemplos comparativos poderiam ser toma­dos? A resposta está no sistema concentrador de renda e na falta de investimentos públicos na área social.

No Brasil, com o índice de mortalidade infantil de 92 crianças por mil, equivalente a 9,20Jo portanto, morrem

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por dia cerca de mil crianças. Como certa feita acentuou o ex-presidente da Liga Brasileira de Assistência, Marcos Vinícius Vilaça, a causa direta de mais da metade dessas mortes é uma velha conhecida de nosso país, a fome. Cau­sa direta. Porque, se forem medidos seus efeitos também indiretos, tal índice deve subir a mais de 70o/o. Assim, um país que se alinha entre os grandes produtores de alimen­tos do mundo, detentor do segundo rebanho bovino, so­mente superado pela Índia, possuindo 127 milhões de cabe­ças de gado, segundo o IBGE, não consegue alimentar pelo menos corretamente a grande maioria de seus habitantes. E o tempo vai passando, sem que se busquem soluções efe­tivas para acabar com tal contradição gritante e calamitosa.

O espírito conservador, o pânico à inovação, à refor­ma, a um novo sistema de distribuição de renda, são os pontos fundamentais da problemática brasileira. O conser­vadorismo está presente em todas as decisões políticas. Da mais simples à mais complexa. Esse espírito dominante­mente conservador não é imotivado, fatalistá, ou algo cau­sado pelo sobrenatural. Não. Ele tem características pró­prias, definidas, lógicas, inegáveis. Influi diretamente no comportamento dos legisladores, do governo, fortalecen­do invariavelmente os setores economicamente dominantes da sociedade. Em síntese, ele conduz ao privilegiamento do capital, em detrimento do trabalho. E a isso, mesmo quando estamos num regime democrático, no qual o voto é decisivo. Mas nem assim o país se moderniza e se reestru­tura na proporção em que deveria. Relembremos um exem­plo concreto e recente, mas típico dessa anomalia. Em feve­reiro e abril de 1987, foram assinados dois decretos que es­tabeleceram, em caráter retroativo a novembro de 1986, reajustes nos contratos do governo com empresas emprei­teiras de obras públicas e fornecedoras de serviços e produ­tos. Determinaram essa retroatividade com base nas oscila­ções, para cima dos valores das Obrigações do Tesouro Na­cional do período. Sustentou-se a tese, de acordo com a opinião do consultor geral da República, Saulo Ramos, de que as iniciativas visavam a compensar as perdas empre­sariais com o fim do Plano Cruzado Um, que havia conge­lado todos os preços.

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Muito bem: não se adotou o mesmo critério em rela­ção aos salários dos servidores públicos, igualmente pagos pelo Tesouro, e tampouco os empregados das empresas que receberam os reajustes retroativos foram abrangidos pela legislação. Criou-se um sistema diferenciado, mais uma vez, entre capital e trabalho. As perdas hipotéticas do capital, se é que as houve, pois os reajustes contratuais logicamen­te estavam embutidos nos preços, foram compensadas. Mas as perdas dos servidores e trabalhadores, não. Entre­tanto, a inflação foi igual para todos, como o foi o fracas­so do Plano Cruzado Um.

O que tal fenômeno acarretou? Obviamente, uma maior concentração de renda no país, pela qual parte dos conservadores luta, enquanto outra parte, no máximo, se omite, como é o caso do atual comando do PMDB, outro­ra reformista, hoje conservador. Essa concentração de ren­da é a responsável pelas desigualdades, iniqüidades e injus­tiças sociais que sufocam a população brasileira. Claro. Pois como é possível o governo agir seletivamente entre as empresas que lhe prestam serviços e os servidores que para ele diretamente trabalham? Como é possível que as em­presas recebam ·reajustes do governo por serviços que pres­taram e não sejam obrigadas a reajustar igualmente aque­les que são seus empregados e sem os quais não poderiam ter produzido as tarefas que realizaram?

UMA NÍTIDA LINHA DIVISÓRIA

A fonte do empobrecimento da população do país si­tua-se perfeitamente em dualidades desse tipo. Como rom­pê-las? Somente rompendo o conservadorismo. O conserva­dorismo é a grande linha divisória entre a concentração e a distribuição de renda. É, portanto, o responsável por gran­de parte da mortalidade infantil que se verifica entre nós. Um assassinato de boa parte das mil crianças que morrem diariamente, pelo qual ninguém é punido. Mas o conserva­dorismo é igualmente responsável pela morte de milhões de pessoas, de todas as idades, pelo desencanto das gran­des massas, pela falta de habitação, pela favelização, pela

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depressão dos que trabalham em vão, sem com isso melho­rarem de vida, pelo atraso, pela miséria, pela predominân­cia do Brasil de ontem sobre o Brasil de hoje, pela demo­ra em despontar o Brasil de amanhã.

Até fins do século XVIII , a humanidade contentou­se com 20Jo de literatados. A escrita, inventada 4 mil anos antes, frutificou lentamente, em termos de desenvolvimen­to material, tendo antes oferecido poesia, filosofia, teolo­gia, ciência pura. A partir do Renascimento, a aventura do conhecimento puro começou a transformar-se em tecno­logia, em grande parte propiciada pelas matérias-primas co­loniais. Refletindo esse avanço, certas línguas transitaram de modo vertiginoso quanto ao vocabulário: as línguas clás­sicas, após um milênio de transmissão escrita, passaram, das 3 mil palavras originais, para 50 mil; a partir do Renas­cimento, até inícios do século XIX, as línguas de cultura de ponta passaram a acumular acervos lexicais de até 100 vocábulos; do século XIX - quando as "profissões" hu­manas, correspondendo à divisão material e espiritual do trabalho, passaram de 300-450 para mais de 24 mil (hoje atingindo um mínimo de 30 mil) - do século XIX a hoje em dia, com 450 mil vocábulos, não há como exercer mais de 95% dessas profissões sem uma escolaridade mínima de 8 horas por dia durante pelo menos 8 anos.

O ensino transmitido - nem ·sequer como "aspiração nacional" - tem nada a ver com isso. Teoricamente gra­tuito desde 1824, na constituição outorgada, o conservado­rismo brasileiro transformou-o em anedota risível. As gran­des massas infantis e juvenis brasileiras ou continuam anal­fabetas, ou puderam enfrentar dois anos de estudos de duas horas por dia durante duzentos dias- não mais. São, sequer, analfabetos, pois não ignoram que poderiam ter aprendido a ler: amargam, assim, o dissabor de terem com­preendido o que poderiam ter tido, nada tendo, entretanto.

E o que seria "isso"? A possibilidade de praticar uma profissão decorosa, qualificada, decente, ou de opinar so­bre o estado de coisas do seu mundo, isto é, do Brasil, mesmo que reduzido à sua escala. Desde os inícios do sécu­lo XIX vimos matando, literalmente, para mais de 80% do nosso potencial de trabalho qualificador e do nosso po-

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tencial de dignificação cidadã. Desde 1824, ininterruptamen­te, vimos castrando 800Jo de nossas potencialidades cidadãs, por obra e graça de nosso conservadorismo- que vem olim­picamente resolvendo o "seu" problema, com preceptores exclusivos, com algumas poucas (mas boas) escolas remune­radas e com uma organização institucionalizada de trans­missão de ensino que, para as fachadas, é ponderável, nu­mericamente, mas não qualitativamente. Não pode escon­der que seu ensino superior não é mais que um secundário supletivo, porque o ensino secundário é torpe, e este, ensi­no secundário, não é mais que um ensino primário supleti­vo, porque este, primário, na prática, não existe. Essa desí­dia de quase dois séculos não é acidental, não é possível que continuemos a achar-nos impotentes para dar-nos a nós mesmos, nos nossos filhos, aquela condição sem a qual não poderemos deixar de ser párias, explorados, ma­nobrados, dirigidos ao longe, sem sabermos como comer, como nutrir-nos, como defender-nos das endemias, sem sa­ber como, onde, quando trabalhar - em suma, sem poder sair do século XVIII, não raro convivendo com formas de neolitismo ou paleolitismo mais arcaicas.

o conservadorismo brasileiro conseguiu, nessa área, prodígios de mistificação. Conseguiu, por exemplo, conven­cer a intelectualidade, a tecnocracia, a legislatividade, a pensância, de que não temos condições de criar um bom sistema geral de ensino. Conseguiu convencer-nos, a todos, de que ensinar é generosidade de cima, é prodigalidade, é beneficência e é oneroso (para o conservadorismo). Com is­so- inconfessamente, mas efetivamente-, primeiro, apre­senta-se como generoso com o pouco que dá (ou o muito que sonega, que esta, sim, é a verdade), segundo, afasta o grave risco de ter mais e mais brasileiros capazes de denun­ciar-lhe os procedimentos e, terceiro, afasta o advento de inteligências indesejáveis.

É que, de fato, o Brasil está sendo pressionado porca­rência de inteligências. Os teóricos e práticos do saber no Brasil- a ciência e a tecnologia brasileiras, motivadas por sua vocação intrínseca e razão mesma de ser, isto é, fazer ciência e fazer tecnologia - estão dia a dia clamando aos céus pela incorporação de novos cientistas e tecnólogos,

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vendo, com tristeza e desespero, a impotência de o próprio país criá-los e sustentá-los (a breve prazo, são os mais bara­tos produtores de bens materiais e espirituais para consu­mo coletivo, isto é, não concentracionário - e aí está sua inconveniência, do ponto de vista conservador).

Assim, para contornar o problema, a "administra­ção" burocrática da ciência e tecnologia no Brasil preconi­za a multiplicação de bolsas de estudo no exterior, na certe­za de seduzir candidatos, na certeza de aliciar os Ph.D. daí decorrentes, na certeza de que, assim, as tristes univer­sidades brasileiras, no retorno, não os terão a embaraçá­las, na sua dolorosa, trágica, autofágica política populista de democratismo a serviço (confesso ou não) do conserva­dorismo.

Essa área, mais que qualquer outra, exibe, com um ci­nismo que recua ao grau zero de racionalidade, as contra­dições do nosso conservadorismo - ufanista, mas, conco­mitante, miserista e miserizador.

Que os donos do país não iludam, nem se iludam: no dia em que começarmos uma política educacional efeti­vamente transformadora, seus frutos demandarão o tem­po de maturação de duas a três gerações. Todo o esperan­cismo ufanista com que se quer embair este povo que se ca­le, pois é tóxico que busca coonestar o atual descalabro.

POLÍTICA TRIBUTÁRIA CONCENTRADORA

Um dos fatores que mais contribuem para a concentra­ção de renda no Brasil é de forma clara o sistema tributá­rio. Apesar de sua clareza, o tema não é objeto de debate, nem tampouco é utilizado pelas correntes que combatem o modelo econômico concentrador, em vigor há muitos anos e reforçado pelo movimento de 64. Aliás, deve-se as­sinalar certa falta de conteúdo argumentativo naqueles que postulam reforma da sociedade e uma divisão mais justa do que é produzido no país. Muitos colocam-se na posição correta, mas não saberiam defendê-la, com números e fa­tos, se fossem questionados por especialistas do conservado-

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rismo. Essa carência é responsável pela falta de amplitude de idéias de que deveria revestir-se a discussão desse proble­ma. Afinal, a informação é um meio de produção . E com informação objetiva e real, torna-se mais fácil defender as posições dignas e justas. Torna-se mais fácil produzir e tra­duzir, já que a existência humana é, no fundo, uma tradu­ção permanente dos argumentos que, à medida que forem sendo passados à opinião pública, virão apressar as modifi­cações que o tempo tornará cada vez mais difíceis de evi­tar. O reformismo encontra-se, portanto, também na pos­se das informações e elementos analíticos baseados em con­teúdos verdadeiros.

Falamos em estrutura do sistema tributário e sua for ça concentradora de renda. Vejamos o que acontece com o ICM - Imposto sobre a Circulação de Mercadorias -, cuja alíquota é de 170Jo sobre o preço dos produtos. Esse im­posto, pela Constituição em vigor, é 80% estadual e 20% municipal. Seja: 80% de sua arrecadação vai para os Esta­dos e 20% para os municípios onde o tributo é gerado . Os prazos de recolhimento podem variar de Estado para Estado, mas, para provar como indiretamente proporcio­na a concentraçao de renda a que nos referimos, podemos tomar como exemplo o caso do Estado do Rio de Janeiro.

Pelo calendário fiscal de 1987, o comércio atacadista recolhe o ICM noventa dias após o fato gerador. O comér­cio varejista - esse a que os consumidores têm acesso -recolhe-os, em média, sessenta dias após o fato gerador. Relativamente à indústria, o ICM é recolhido noventa dias após sua geração. Thdo bem: há certamente razões técnicas operacionais que recomendam os prazos adotados. Ocorre, entretanto, que o recolhimento é feito por valores nomi­nais e não com base em valores corrigidos. Isto é, se um co­merciante varejista, em relação às transações que realizou , é obrigado a pagar, digamos como exemplo, 1 milhão de cruzados, se o fato gerador se verificou em março, ele pa­gará esse milhão de cruzados em maio, sem qualquer corre­ção. O mesmo sistema, claro, se aplica, nos respectivos pra­zos legais, ao comércio atacadista e à indústria. Como o re­colhimento é praticado em valores nominais, chega-se facil­mente à conclusão de que a taxa inflacionária do período

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que separa o fato gerador do pagamento do tributo corre a favor do empresário. Isso poderia ser normal, se o mes­mo método fosse adotado quanto às pessoas físicas que contribuem para o imposto de renda. Mas não é assim. Agora mesmo, em 1988, vemos que os que vão pagar o im­posto de renda através da declaração anual terão de arcar com parcelas corrigidas conforme as variações mensais das OTNs. Dois pesos e duas medidas, portanto. O que aconte­ce em decorrência? As pessoas físicas, assalariadas, estão sempre enfrentando a correção monetária. As pessoas jurí­dicas, sem esse problema no ICM, e também sem esse pro­blema no IPI - Imposto sobre Produtos Industrializados -,aplicam o tributo a pagar, nos prazos que têm pela fren­te, no overnight, que financia a dívida pública do Tesouro. Assim, com uma inflação de 180Jo (20,25% ... ) ao mês, con­seguem concretamente reduzir seus pagamentos em torno de 40% (computado o montante de uma taxa sobre outra).

Relativamente ao IPI, o cálculo é mais difícil de fazer, pois as alíquotas apresentam grande variação. E os prazos de recolhimento, de acordo com o Ato Declaratório n~ 1 de 1987, da Secretaria da Receita Federal, também são múltiplos. O IPI sobre a venda de· um automóvel está ho­je em torno de 30% de seu preço. Quanto ao fumo, a alí­quota é maior. O princípio é o da essencialidade do produ­to. De qualquer forma, porém, se a alíquota média for, di­gamos, de 20 a 25%, verifica-se a mesma conseqüência con­centradora encontrada no ICM. Os prazos de recolhimen­to do IPI variam muito, pois a tabela que os rege é bastan­te múltipla. Pode-se, no entanto, estimar que, em média, seja de quarenta dias. O recolhimento do imposto é igual­mente feito pelo valor nominal da geração. Logo, no perío­do que separa o fato gerador de seu recolhimento, a taxa de inflação corre a favor da empresa. Do capital, portan­to. O trabalho não tem o mesmo tratamento.

O IPI pesa em torno de 20% na receita tributária da União. Como o orçamento de 1988 supera 7 trilhões de cruzados, ela ultrapassa a casa de 1 trilhão e 400 bi­lhões. O imposto de renda pesa 55%, o imposto de impor­tação 5,4%, fiondo o resto por conta de tributos diver-

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sos, entre os quais o de combustíveis, energia elétrica e pro­dutos minerais.

O importante é que o recolhimento do ICM e do IPI, pelas diferenças de prazo, permite aos empresários (ao ca­pital, portanto) aplicarem em larga escala no mercado fi­nanceiro. Se é assim, e se as taxas do mercado financeiro são atrativas para permitirem a rolagem da dívida interna da União, e se a dívida interna vem da existência do défi­cit público, é evidente que os empresários não desejam o fim desse déficit. Quando defendem tal hipótese, suas pala­vras não correspondem à sua verdadeira vontade. Mas es­ta é outra questão. O sistema de recolhimento do IPI -Ato Declaratório n ~ 1/87 - está previsto no decreto 87.981, de 23 de dezembro de 1982.

Vamos a outro ângulo concentrador de renda: é cla­ro que tanto a alíquota do ICM, quanto as diversas alíquo­tas do IPI, estão embutidas nos preços dos produtos e bens fabricados. Não há dúvida quanto a isso. Tampouco seria lógico o contrário. As empresas, podendo estabelecer seus preços, naturalmente repassam os tributos a seus con­sumidores. Logo, são estes que pagam de fato as incidên­cias do ICM e do IPI. Muito bem. Entretanto, o decreto 85.,450, de dezembro de 1980, que estabelece o sistema de cobrança do imposto de renda, permite às empresas que de­duzam o ICM e o IPI que pagaram de suas declarações. Que representa isso? Apenas o seguinte: as empresas dedu­zem de seus encargos os tributos que foram pagos pelos consumidores. Tal sistema é ou não concentrador de ren­da? Claro que é. Mas ninguém diz nada sobre isso. O pro­blema, contudo, poderá ser objeto de amplo debate. Pois, pensando (pensando ou simulando?) que defendia os inte­resses dos empresários, o deputado paulista Afif Domin­gues apresentou emenda ao projeto de Constituição estabe­lecendo que nos preços dos produtos deve figurar claTamen­te o montante dos impostos recolhidos. Se assim fosse, quem deveria ter direito à dedução de tais tributos na decla­ração do imposto de renda não seria mais a empresa e sim o consumidor. A matéria, se aprovada, abriria um amplo debate jurídico sobre o tema.

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Algumas aparentes "omissões" dos donos do poder são, antes de mais nada, conivências do conservadorismo.

Essa conivência está quase manifesta no fato de que, até hoje, não há uma explicação satisfatória para a lógica da colossalidade de nossa dívida externa. Fosse ela clara e inequívoca - ainda que assumida e pactuada irresponsa­velmente -, e já teríamos tido a sua discriminação, item por item, devidamente divulgada. Algo que servisse, ao me­nos, para não ser repetido.

Conservadorismo que desde a independência política do país tem sistematicamente recorrido a empréstimos no exterior, tem pago generosas comissões aos negociadores -externos e internos-, tem pago enxundiosos juros e s·o­brejuros e taxas e emolumentos e quotas especiais e rubri­cas compensatórias e custos ad hoc e custos extraordiná­rios e custeios ordinários e propinas eventuais, tem levanta­do funding loans - e não conseguiu jamais livrar-se se­quer de parte do principal da dívida -, a esse conservado­rismo se tem proposto, suplicado, implorado que se proce­desse à criação de uma comissão parlamentar de inquérito para que- apenas! -clareasse a dívida: o famoso princi­pal que fim levou?, onde foi aplicado?, que comissão pa­gou?, que etcs lhe foram subtraidos?, para quens?, cornos?, porquês?, que rendimento, rentabilidade, impulso, progres­so melhor, melhoria, reimpulsos, avanços permitiu, propi­ciou, ensejou, estimulou? O rol de indagações, mesmo li­mitadas, é edificante, procedente, ético, necessário, impera­tivo, inarredável. Quem afasta essa providência? Quem a teme? Quem a crê impertinente, inoportuna, perturbadora? Em suma, quem não quer ver-se nisso envolvido?

E por que tamanha passividade ante os credores e os supercredores - que não desejam senão um tributo suave -como o que o Minotauro exigia- pelas décadas, centú­rias, futuros por vir? Já que não temos mil virgens anuais, bastaria isto: pagar eternamente, em seu lugar, 2o/o das nossas exportações como direito de existir conservadora­mente ...

O conservadorismo, que vem causando (como conti­nuaremos a frisar), através das últimas décadas, um aumen­to extraordinário do número de habitantes em favelas, o

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que por si comprova o fracasso do modelo adotado no pla­no social, na esfera econômico-financeira apresenta como resultado profundamente negativo o aumento alucinante da dívida externa do país.

Quando o presidente Juscelino Kubitschek entregou o governo a seu sucessor, o Brasil devia 2 bilhões de dóla­res e rejeitara a intermediação do Fundo Monetário Inter­nacional para tentar reconsolidar suas finanças. As exporta­ções e as importações brasileiras situavam-se na escala de 1 bilhão e 500 milhões de dólares. Falava-se, como aliás sempre se falou, da queda constante de preços dos produ­tos brasileiros, especialmente os agrícolas, enquanto os pre­ços dos artigos industrializados subiam de forma acentua­da - a famosa deterioração secular dos termos de troca. Lembremos, novamente, a carta-testamento de Vargas, que a certo trecho denuncia as pressões contra o preço do ca­fé, que se havia valorizado no início de seu governo em fa­ce da queda de produção verificada em países concorrentes. Mas esta é outra questão.

A EVOLUÇÃO DA DÍVIDA EXTERNA

O presidente João Goulart assumiu com uma dívida pouca coisa maior que a deixada por JK, porque, evidente­mente governando apenas de janeiro a agosto, o presiden­te Jânio Quadros não encontrou tempo de aumentá-la. Em 1964, ao ser deposto, Goulart deixou uma dívida exter­na da ordem de 2 bilhões 942 milhões de dólares. Castelo Branco entregou-a a Costa e Silva com 2 bilhões 956 mi­lhões. Costa e Silva passou a Médici 3 bilhões 780 milhões. Aí, o processo de endividamento começou a disparar.

Recebendo-a com 3 bilhões 780 milhões, Medici entre­ga a Ernesto Geisel um débito que começava a se tornar ir­resgatável: 12 bilhões 572 milhões de dólares. Os dados são oficiais e fornecidos pelo Banco Central. Encontram-se em seus relatórios, que poucos lêem e menor número ain­da de pessoas relêem e interpretam. Mesmo porque, no fun­do, a m·atéria permanece sob a retina e rotina de economis­tas que não querem traduzi-la para o opinião pública.

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O processo de endividamento começa, então, a setor­nar irresgatável, porque o saldo das exportações brasileiras passa a ser totalmente absorvido no pagamento de juros. A partir de 1974, também, vem a crise do petróleo, em con­seqüência de nova guerra no Oriente Médio. Os países ára­bes, em busca de alianças contra Israel, ameaçam paralisar a economia mundial e impõem preços muito altos para o petróleo. Numa primeira etapa, basta dizer que o preço do barril de 159 litros subiu de 2 dólares para 12 e 14 dóla­res. Depois, subiria ainda mais. País importador, naquele tempo, de quase 700"/o de seu consumo, o Brasil sentiria di­retamente os efeitos da nova realidade econômica. Hoje, o país continua importador, mas produzindo cerca de 500"/o dos 1 milhão e 200 mil barris que praticamente consome por dia.

Geisel, que teve Mário Henrique Simonsen como mi­nistro da Fazenda, recebe o governo com uma dívida exter­na da ordem de 12 bilhões 572 milhões de dólares e a mul­tiplica por quatro. Deixa para João Figueiredo um débito de 49 bilhões 904 milhões. Fazia-se, como já o disse o eco­nomista Gilberto Paim, dívida externa para tudo. Acredi­tando que o dinheiro tomado lá fora era mais barato que o débito assumido internamente, o governo Geisel condu­ziu a dívida para um fatalismo inexorável. E o professor Mário Henrique Simonsen, que conduziu a economia na­quele período, tem agora o garbo e majestade de criticar e desenvolver análises contrárias, algumas até engraçadas, como fez na edição n~ 997 da revista Veja, de 14 de outu­bro de 1987, sobre temas econômicos. Sugere rumos e solu­ções, esquecendo-se de que, ao deter nas mãos as engrena­gens da economia, praticou exatamente o inverso do que agora defende. E apoiou (aliás, como não poderia deixar de ser) integralmente a política de endividamento que mar­cou a administração Geisel.

Que dizer de um dos pontos fundamentais daquela ad­ministração, o "Brasil potência"? Aquele país (ou cúpula?, ou claque?, ou clique?) que despendeu dezenas de bilhões de dólares para adquirir um conjunto de usinas nucleares do qual apenas uma hoje funciona, vários anos depois.

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Mas Geisel entrega 49 bilhões de dólares de passivo a Figueiredo, que passa 91 bilhões a Sarney. Em 1985, a dívi­da sobe para 95 bilhões 857 milhões, em 1986 para 111 bi­lhões, e em 1987 (como revelou o Jornal do Brasil, em sua edição de 20 de abril de 1988) atinge o montante de 121 bi­lhões e 300 milhões de dólares.

Se alguém tivesse dúvida da absoluta impossibilidade de resgate de tal dívida externa - que é um pouco maior que a dívida interna-, para dissipá-la bastaria ver na mes­ma edição do Jornal do Brasil que as exportações brasilei­ras atingiram 26 bilhões de dólares contra 15 bilhões de dó­lares de importações. Isso, na balança comercial. No balan­ço de pagamento, entretanto, que inclui uma série de itens não apenas econômicos, mas financeiros, há um déficit de 1 bilhão e 800 milhões de dólares. E o que ocorreu em rela­ção à dívida externa? O saldo evaporou-se como um jato de lança-perfume (relembremos). Não foi suficiente nem para pagar os juros, taxas de risco, serviços e outros itens que são lançados a nosso débito. Não deu. E tanto não deu que a dívida externa que em 1986 era de 111 bilhões de dólares, em t987 passou a ser de 121 bilhões e 300 mi­lhões de dólares. As exportações cresceram 170/o, em 1987, em relação a 1986. O Brasil pagou o equivalente a 10% da dívida consolidada em dezembro de 1986. Mas, em de­zembro de 1987, a população do país passou a dever, não mais 111 bilhões, mas 121,3 bilhões de dólares. Que dizer disso? Qual o argumento que pode justificar esse processo? A indústria não aumentou a produção, a qualidade não evoluiu, os problemas da habitação não se reduziram, acon­teceu até exatamente o contrário, o povo não comeu me­lhor, comeu menos, não houve mais transporte, houve me­nos, não houve mais assistência médica. Para onde vai, afi­nal, o dinheiro do Brasil?

Realmente, não se consegue explicar. Pois mesmo os déficits sucessivos, que invariavelmente de 1947 a 1987 se verificam na balança de pagamentos, não dariam para tal endividamento. Veja-se, por exemplo, que eles represen­tavam algo em torno de 1 bilhão de dólares por ano até 1978, quando então começaram a disparar. Mas, mesmo assim, prejuízos de 3,6 bilhões de dólares, como o de

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1986, e de 1 bilhão e 800 milhões de dólares, como em 1987, são até exceções.

Há muitos anos, em 1937, um político brasileiro, Jo­sé Américo de Almeida, candidato a presidente da Repú­blica contra Armando de Sales Oliveira, em eleição que não houve, pois Vargas impôs a ditadura do Estado No­vo, afirmava em sua campanha a preocupação de locali­zar onde "estava" o dinheiro. Oito anos depois de 37, José Américo de Almeida, também romancista famoso, autor de A bagaceira, repete a frase no primeiro comício do brigadeiro Eduardo Gomes no Rio de Janeiro, que da­va início à campanha eleitoral. O comício dos lenços bran­cos, como ficou conhecido - e na realidade foi uma ex­plosão de liberdade após o período de 1937 a 1945. Já na­quela ocasião a frase ganhou um sentido inevitável de hu­mor. Afinal de contas, José Américo dizia saber onde es­tava o dinheiro. Hoje, contudo, a frase está reabilitada em seu conteúdo político. Pois, de fato, a afirmação era mais uma pergunta do que uma resposta. Senador, gover­nador da Paraíba, ministro dos Transportes, José Améri­co certamente sentia a angústia de uma dúvida. Hoje, atônitos estão 145 milhões de brasileiros, que não sabem para onde vai o dinheiro do país e sequer imaginam o destino que toma um produto interno bruto da ordem de 300 bilhões de dólares por ano. Afinal, como é possí­vel que uma nação produza 300 bilhões de dólares, seja a oitava economia do mundo, mas, ao mesmo tempo, apresente uma das maiores taxas de analfabetismo da fa­ce da Terra, um dos maiores déficits habitacionais que se conhecem e ostenta o campeonato absoluto em maté­ria de dívida externa? Será brasileira a produção fabrica­da no Brasil? Questiona-se. Pois se brasileira fosse, real­mente, não seria o país possuidor da maior dívida. Uma contradição. Ou será que o conservadorismo nos condu­ziu, pela falta de rompimento com o arcaico, com o pas­sado, com o medievalismo das relações sociais, à situa­ção de sermos um entreposto? Aliás, neste caso, o maior entreposto que o mundo jamais terá conhecido. Mestre Barbosa Lima Sobrinho nos diz sempre: o capital se faz em casa ...

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A DÍVIDA INTERNA E A DÍVIDA SOCIAL

E nem se diga que é só a dívida externa. Existe a dívi­da interna. Da ordem, hoje, de 7 trilhões de cruzados, qua­se igual, portanto, em dólares, à externa. E cuja rolagem está custando por mês ao Tesouro aproximadamente 900 bilhões, resultado da incidência de uma taxa média de ju­ros de 17 ou 180Jo sobre os papéis que voam pelo over e pe­lo open market. Mas o drama também não acaba aí. O Es­tado de S. Paulo revelou, em sua edição de 23 de abril de 1988, que o déficit do Tesouro, em março, foi de 218 bi­lhões de cruzados. Quer dizer: além da rolagem da dívida, ainda há um déficit que se acrescenta a ela. E que dizer da dívida social? Só moradias, faltam 8 milhões no Brasil. Cada moradia /.5 pessoas: 40 milhões sem teto ...

Fala-se por aí, insistentemente, na necessidade de atrair o capital estrangeiro. Todos concordam. Se a União Soviética e até a China estão agindo assim, por que não o Brasil? Acontece que esforços nesse sentido devem ter si­do feitos, já a partir de 1964. Tanto é assim que a lei 4.131, de remessa de lucros (de autoria do deputado Sérgio Maga­lhães, excelente parlamentar brasileiro) - que o presiden­te Goulart (fique aí o registro histórico) se recusou a sancio­nar e foi promulgada pelo presidente do Congresso Nacio­nal, senador Auro Moura Andrade-, foi a primeira a ser revogada pelo governo Castelo Branco, naturalmente por inspiração do ministro Roberto Campos. A justificativa era a de que impedia ou inibia os investimentos estrangei­ros. Em seu lugar, veio a lei 4.390, que ainda se encontra em vigor. Quais os capitais externos que entraram no país? Como recentemente afirmou o insuspeitabilíssimo conserva­dor ministro Antônio Carlos Magalhães, há dez anos não entram investimentos estrangeiros de porte no Brasil. De que adiantou a lei de 1964?

Se tivesse adiantado, a dívida externa não teria o mon­tante que tem, tampouco a economia brasileira estaria co­mo está. Não se sabe que dinheiro entrou. Mas sabe-se - veja-se o exemplo do roubo praticado em 1987 contra a IBM, a maior empresa de informática do mundo -que ele sai do país até por telex. Se um grupo de empregados

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desonestos consegue mandar dinheiro para fora do país de forma tão simples, que farão aqueles cujos interesses es­tão sempre traduzidos em dólares? Este é um dos aspectos mais tristes e trágicos do Brasil conservador: o dos que não estão ao lado do povo, mas são integrados em alguns pou­cos grandes grupos ligados à economia multinacional. Mul­tinacional, sim, porque nem mais só aos Estados Unidos, como as esquerdas acusavam num dos temas dominantes da campanha sucessória de 1960, em que Jânio Quadros derrotou o general Teixeira Lott. O conservadorismo vincu­lava, no fundo, o destino do país à política norte-america­na. Mas onde está a política norte-americana hoje? As multinacionais são um Estado dentro do Estado, os Esta­dos-Unidos-além -de-fronteiras.

Este foi, sem dúvida, um dos maiores erros do conser­vadorismo e do movimento de 64. E, sobretudo, do movi­mento conservador de 64, que ainda não foi substituído pe­los ventos da reforma indispensável. Não se trata de man­dar mudar o sistema capitalista, mas de corrigir, enfim, seus terríveis e gritantes defeitos, quando se assanha em ob­ter lucros e mais lucros sem ver a face trágica dos explora­dos - seres humanos, flora, fauna, clima, ambientes, em suma, a própria vivibilidade. É a voracidade na concentra­ção de renda, independente e indiferentemente a quaisquer conseqüências sociais. Que, pelo menos, se dêem ao povo condições mínimas com que possa sobreviver de forma me­nos indecorosa. Não na fome, na miséria, nas favelas, nos· mocambos, nos becos, nas sarjetas.

A estrutura do sistema tributário brasileiro na vigên­cia da Constituição conservadora representa um fator pre­ponderante para a concentração de renda. Vimos, páginas antes, que as empresas podem deduzir do imposto de ren­da os tributos que pagam. Trata-se de matéria regulada pe­lo artigo 225 do decreto 85.450, de dezembro de 1980, que rege a incidência e a cobrança do imposto de renda sobre as pessoas físicas e jurídicas. Esse artigo diz textualmente: "os tributos são dedutíveis, como custa ou despesa opera­cional, no período base de incidência". Como não distin­gue entre que impostos, trata-se evidentemente de todos. Entre eles, portanto, o ICM, que é estadual, e o IPI, que

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é federal. E também o próprio imposto de renda pago du­rante o exercício em que as empresas declaram. No caso da dedução do imposto de renda pago no decorrer do exer­cício, ela é, digamos, absolutamente legítima. Afinal, repre­senta um custo nítido, uma redução de recursos financei­ros disponíveis. Perfeito. Mas o que não se compreende é que as pessoas jurídicas possam realizar esse abatimento e as pessoas físicas não tenham a mesma faculdade. Nova­mente, dois pesos e duas medidas. O capital sempre privile­giado, de um lado, o assalariado sempre prejudicado, de outro.

Relativamente ao ICM e ao IPI, embora essa prática exista também nos Estados quanto a tributos assemelhados, não há dúvida no que a matéria traduz de equívoco essen­cial: pois sabem todos, muito bem (como, aliás, não pode­ria deixar de ser), que as empresas produtoras e vendedo­ras cobram o custo dos dois tributos ao consumidor. Se quem paga é o consumidor - e, tanto assim, que em mui­tos casos, no de automóveis, por exemplo, as empresas jus­tificam o alto preço de venda em função do elevado valor do imposto-, não é legítimo que aquele que não foi tribu­tado deduza o tributo em sua declaração de renda. Quem deveria deduzir é o verdadeiro pagador do preço final. Mas não. As empresas beneficiam-se do alívio de uma car­ga fiscal, transferindo-a à população de modo geral. Mas a população de modo geral não pode deduzir o ICM e o IPI que pagou do imposto de renda. Quem deduz é exata­mente quem não pagou nem um imposto nem outro. O de­creto 85.450 fala em conceito de lucro real. Qual será ele? Uma figura indefinida, misteriosa, que, no final da ópera, vai contribuir para aumentar ainda mais a concentração de renda no país.

No caso do imposto de renda, responsável por 55 OJo da receita tributária da União, verifica-se claramente que a contribuição dos assalariados é muito maior que a das empresas. Nominalmente, como publicou o Jornal doBra­sil, em suplemento especial no mês de março deste ano, as contribuições se equivalem. Situam-se aproximadamen-1le na escala de 1 trilhão e 100 bilhões de cruzados cada uma. Mas é preciso levar em conta que os assalariados

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são tributados na fonte. Pagam, portanto, antecipadamen­te, ao contrário do que se verifica com as empresas. É só considerar a taxa de inflação ao longo dos meses, pa­ra ter idéia da diferença abismal entre o tratamento dis­pensado a uns e a outras, no campo voraz da ação do leão, nobre animal, na floresta, triste metáfora ou alego­ria tributária criada no Brasil.

Neste 1988, o governo implantou uma escala de reco­lhimento do imposto de renda terrível contra as pessoas físicas. Elas têm que pagar o tributo corrigido mensalmen­te à base das oscilações da OTN - algo em torno de 200Jo ao mês em matéria de correção -, além de um novo im­posto dentro do imposto de renda, o recolhimento trimes­tral, que representa um novo e brutal acréscimo contra os que são obrigados a trabalhar em mais de um lugar. E quem não é? Poucos, da classe média. E os trabalhado­res em geral não o fazem porque não lhes sobra tempo ou não há empregos ... Este, um novo aspecto do descrité­rio tributário. E, de descritério em descritério, a capacida­de de consumo da população desce cada dia um degrau na escala econômica. Em conseqüência, a população per­de a capacidade de alguma poupança e de consumo. É de­bitada. E, como não há débito sem crédito, alguém vai fi­cando cada vez mais com sua parte. Vai-se concentrando a renda, ao invés de se procurar distribuí-la de forma con­creta e justa.

A política conservadora, que tem como base invariá­vel taxar os salários, reduzindo-os, e privilegiar o capital, através do tempo produziu efeitos extremamente danosos no consumo de alimentos e, em conseqüência, evidentemen­te nos níveis da saúde humana. Doenças como a tuberculo­se, fenômeno típico da subalimentação, voltaram a apresen­tar incidência crescente, como se vê em estatísticas do pró­prio anuário do IBGE. Bem recentemente, reportagem da jornalista Carina Caldas, publicada no Jornal do Brasil, de 8 de maio de 1988, revela queda brutal no consumo de vários alimentos básicos. Os dados são todos de entidades patronais: Associação Brasileira da Indústria de Massas, que representa 70% do consumo nacional do setor, da As­sociação das Indústrias de Trigo do Rio de Janeiro, do Sin-

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dicato do Comércio Atacadista de Carnes, do Sindicato das Indústrias de Laticínios e Derivados do Rio e São Pau­lo, e também do IBGE.

O consumo de carne bovina, por exemplo, que em 1985 era de 19 quilos por habitante-ano, continua caindo em 1988 para 11 quilos por habitante-ano. O IBGE confir­ma essa tendência em seu anuário de 1986. O consumo de massas alimentícias, que em 1980 era de 4,9 quilos per ca­pita, está descendo para 3,9 quilos. O consumo de trigo (so­bretudo depois da retirada do subsídio), que em 1980 era de 56,1 quilos per capita, desce agora, em 1988, para 42,9 quilos per capita. Mas, mesmo antes da retirada do subsí­dio do trigo, que foi praticada este ano, em 1987 já caíra para 47 quilos per capita.

Acentua a repórter que a queda do poder aquisitivo está impondo cortes na mesa do brasileiro. Come-se de 30 a 400Jo menos carne, alimento fundamental, 20% menos ar­roz, 20% menos leite, este outro produto fundamental, mas que apresenta reajustes mensais de preço superiores às atualizações salariais. As vendas dos queijos, então, fo­ram este ano 35% menores no primeiro trimestre de 1988 em relação a igual período de 1987. A venda de iogurtes de­clinou em torno de 10% - e vale frisar que o iogurte é al­go consumido apenas pela classe média intermediária para cima. As famílias pobres nem sequer podem pensar em ad­quiri-lo.

Esses dados são indicadores e comprovadores (afinal de contas, óbvios) da crise que ronda e sufoca cada vez mais a população brasileira. Deveriam servir como adver­tência, mas o impulso inercial para a concentração de ren­da - transformado em ideal tecnoburocrático até de inte­lectuais ecoiiometrizados - apaga o dado crítico da cons­ciência dos responsáveis pelo abastecimento e o que há de humano nisso: na realidade, irresponsáveis na percepção do processo social, estão, direta e indiretamente, impondo essa miserização aliados à conspiração do silêncio posta em prática por setores do governo e pelos próprios gover­nos que, no passar dos anos, se vêm omitindo em campo tão sensível quanto decisivo para a sobrevivência de milhões de seres humanos no Brasil. Mas o conservadorismo, raiz

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da maior parte dos problemas brasileiros, é isso. É assim mesmo. Prima por não ter compromisso com a existência humana e parte para garantir, a uns poucos, lucros cada vez maiores, em detrimento da imensa maioria da popula­ção. A mesma reportagem do Jornal do Brasil calcula, com razão, serem necessários 80 mil cruzados mensais - em março de 1988 - para que uma família de seis pessoas pos­sa alimentar-se corretamente. Corretamente? O dado ser­ve para análise, pois a média das famílias brasileiras é de cinco pessoas. Mas como 80 mil cruzados? Se apenas 20Jo dos q,ue trabalham no país ganham mais do que isso por mês? As conseqüências não são difíceis de prever. E levam a um impasse cada vez maior, aproximando-se do insupor­tável neste final do século e do milênio. Pressionando pa­ra baixo os valores do trabalho, o conservadorismo conduz a população a buscar mais assistência médica gratuita, a do Inamps e dos hospitais estaduais e municipais públicos. Além do impacto social negativo e desumano, ainda por ci­ma os cofres públicos têm que despender mais recursos pa­ra socorrer número crescente de doentes.

Esses números encontram-se nas estatísticas da Data­prev, empresa de processamento de dados da Previdência Social. Ela revela, em seu boletim de n~ 3, de 1987, que em 1980 o Inamps forneceu, em números redondos, 179 milhões de consultas em todo o país, para uma população então de 119 milhões de habitantes: percentual de 1,5. Mas em 1985, para uma população de 131 milhões, forneceu 238 milhões de consultas: percentual de 1 ,8. Para quem não souber interpretar números, o crescimento teria sido de 0,30Jo. Mas não é isso. O aumento real de consultas foi na realidade de 20%, muito alto. Pode-se dizer que houve evolução, maior eficiência dos serviços. Certo. Mas tal as­pecto não elimina a necessidade maior da população em so­correr-se de serviços médicos. Ninguém vai a médico por­que os tenha a seu dispor, ou os deseja para se distrair ou distraí-los ...

Com a queda do consumo de alimentos verificada em 1987 e 1988, conforme os dados das entidades patro­nais a que nos referimos há pouco, a tendência é infeliz­mente para que a população continue tornando-se mais

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doente e obrigada a recorrer mais aos serviços médicos di­tos gratuitos. Porque recorrer a serviços médicos não gra­tuitos é simplesmente impossível: é só ver o preço das con­sultas personalizadas ou contribuir mensalmente para as quase-arapucas que são os chamados "seguros-saúde" ou "garantias de saúde".

CAI A SAÚDE, CRESCEM AS CONSULTAS

Mas em relação às estatísticas da Dataprev, há um la­do a considerar, que reflete bem o atraso predominante nas áreas do interior.

Em 1985, para um total de 238 milhões de consultas, praticamente 218 milhões foram dadas nos meios urbanos e 20 milhões em áreas rurais, portanto, do interior. A des­proporção é flagrante. Pois, se dois terços da população brasileira estão nos centros urbanos, teoricamente, em con­dições sanitárias iguais, teriam que ter sido dadas dois ter­ços das consultas nos meios urbanos e um terço nos meios. rurais. Mas não. Nada disso. Verifica-se que 900Jo das con.­sultas foram nas áreas urbanas e apenas 10% nas áreas ru­rais. Será porque nos campos se adoece menos? Não. É porque lá a assistência médica quase não existe. Uma tragé­dia, sobretudo para um país cujo produto interno bruto é o oitavo do mundo. E basta ver onde estão os maiores ín­dices de mortalidade infantil. Nos meios agrários. Portan­to, no interior morre-se por falta de socorro e de assistên­cia: uma vergonha, um cenário medieval. Mas que dizer de um país cuja rede de tratamento de esgotos cobre ape­nas 35% das residências?

O conservadorismo - muitos se enganam quanto ao verdadeiro conteúdo da classificação - não é uma posição destinada a conservar, preservar, sustentar, alimentar, coo­nestar as diferenças sociais, econômicas e políticas. Se as­sim fosse, a pobreza e a miséria não teriam evidentemente crescido no Brasil como cresceram, principalmente depois do movimento essencialmente conservador de 64. Nos gran­des centros urbanos, por exemplo, a proporção entre não­favelados e favelados se teria mantido. Mas a asfixia de

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grande parte da sociedade está revelando claramente, atra­vés da favelização, que o conservadorismo realmente não conserva, mas agrava, deteriora, conspurca, envenena as condições e tensões sociais: a grande contradição do con­servadorismo é que - lutando alegadamente contra a co­munistização (cuja essência é um enigma) - oferece ou pratica ou dá a miserização (cuja essência é ostensiva).

Isso porque o conservadorismo está voltado para con­servar situações de dominação, nas diferenças da escala so­cial e humana. Sua contradição essencial repousa no con­fronto entre a estagnação de um comportamento, partin­do do princípio de que a concentração de renda é indispen­sável, e o dinamismo da população, tanto no sentido de seu crescimento demográfico (no Brasil tido como muito alto), quanto no que se refere à intensidade de suas reivin­dicações. Hoje, claro, reivindica-se muito mais intensamen­tt: do que em 1940, do que em 1950 ou 1960, quando a po­breza era aceita como um fatalismo e, a rigor, era menos violentadora da vida humana em nossas plagas, incluindo a escravidão e o etnocídio de quase quatro séculos. De ou­tro lado, o conservadorismo leva à não-solução de proble­mas. Com isso, eles vão permanecendo como uma guilhoti­na sobre a cabeça de cada vez maior número de pessoas. O inconformismo quase universal existente no nosso país é uma decorrência de tudo isso. E tem mil formas de mani­festação: uma é na televisão, que somente passou a existir no Brasil a partir do segundo semestre de 1950.

A comunicação visual ampliou consideravelmente o contato de todos com os fatos, de todos com a sua própria realidade e a realidade dos outros. Os apelos, por seu tur­no (e são muitos), foram sendo cada vez mais colocados diante dos olhos e da sensibilidade de todos. O aumento dos apelos, de um lado, e o dos problemas, de outro, fo­ram gerando uma situação sufocante de desespero e angús­tia. Falamos no início do crescimento da população favela­da do Rio de Janeiro. Não é um fenômeno isolado nem tí­pico. Veja-se o que aconteceu em São Paulo, segundo pu­blica o Jornal do Brasil em sua edição de 30 de abril de 1988. Nos últimos 14 anos, portanto a partir de 1974, a po­pulação da cidade de São Paulo cresceu 600Jo, atingindo

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10 milhões 554 mil habitantes. No mesmo período, as fave­las da capital paulista, onde não existem morros, chegaram a 818 mil habitantes. Em 1974, eram 71 mil 840 favelados. O crescimento percentual de favelados foi, portanto, de 1.0390Jo . De uma rapidez até muito maior que a do Rio de Janeiro, que, de 1964 para cá, acusa um aumento da or­dem de 500%. Entretanto, em números absolutos, como vimos, as favelas do Rio, hoje, já têm mais de 2 milhões de moradores: são a terceira "cidade" brasileira em popu­lação .

Enquanto se conservam os métodos e as soluções ina­dequados e concentradores, o povo vai ficando dia a dia (hora a hora, minuto a minuto .. . ) mais pobre. E a polui­ção, sem culpa da pobreza (mas, sim, resultante do capita­lismo selvagem), vai cercando e sufocando os grandes cen­tros urbanos. O conservadorismo, no fundo, é terrivelmen­te egoísta, auto-hipnótico em matéria social, e faz com que os que o defendem procurem miragens e situações irreais para escapar ao peso da responsabilidade coletiva, diante da realidade progressivamente ameaçadora da miséria. E não apenas pelo lado da insegurança pública, já flagrante e sensível. Mas ·também pelo aspecto epidêmico da imundí­cie q~e acarreta.

O conservadorismo, como já o dissemos, caracteriza­se pelo imobilismo, que leva a uma estagnação estrutural. Essa estagnação, no Brasil, é facilmente perceptível no pla­no social, aquele que, por trágica coincidência, mais preci­sa evoluir, pois se relaciona diretamente com a existência humana. Da mesma forma que é fundamental manter o equilíbrio ecológico na natureza, não menos essencial é es­tabelecer um mínimo de equilíbrio nas relações que envol­vem os seres humanos. A miséria crescente, porém, está de­vastando esse relacionamento, recalcando-o, o que cria um problema tão grave quanto o que seria causado - e in­felizmente é causado - pela devastação das florestas, ma­tas, nascentes de água, rios, plantas.

De acordo com o último Anuário estat{stico do IBGE, vê-se que apenas 55% dos domicílios brasileiros dispõem de água tratada. Ora, isso é o mínimo que alguém pode ter. Mas quase a metade da população brasileira nem isso tem .

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Vê-se, igualmente, pior ainda, que somente 350Jo dos domicí­lios são ligados a redes gerais de esgotos. Um terço não é li­gado a nada. Quase um terço, a fossas sépticas e rudimenta­res. Isso em 1985.

Mas como era em 1965, por exemplo? Vamos recorrer como sempre ao IBGE, órgão oficial das estatísticas brasi­leiras. Em 1985, tínhamos uma população em torno de 135 milhões de habitantes e o Brasil contava com 25 milhões de moradias. Em 1965, eram 82 milhões de habitantes pa­ra pouco mais de 16 milhões de residências. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística revela, partindo da di­visão municipal, que a percentagem das moradias ligadas à rede de esgotos era de 33%. E as que contavam com abas­tecimento de água tratada representavam a metade das resi­dências brasileiras. Não mudou quase nada. Mas a popula­ção cresceu muito. Para não irmos direto a 85, chegamos à estação de 1975: nossa parada, uma década adiante. O que encontramos? Um total de 107 milhões de habitantes e 20 milhões de residências, praticamente: O percentual das que recebiam água tratada era praticamente o mesmo, da mesma forma que as residências ligadas a redes implan­tadas de esgotos.

As variações percentuais são mínimas. Portanto, co­mo a população é muito maior (nasceu no Brasil uma po­pulação praticamente igual à da França, 50 milhões de pes­soas), o problema sanitário agravou-se substancialmente. Vale acentuar um aspecto extremamente importante: as mí­nimas evoluções verificadas no número de domicílios que contam com água tratada e esgotos são infinitamente infe­riores ao crescimento populacional do período. Assim, en­quanto nos vinte anos em confronto - 1965 a 1985 - a população do país cresceu mais de 50%, a rede de abasteci­mento d'água aumentou pouco mais de 5%. E a rede de es­gotos não se ampliou nem em 3%. Seria querer o mínimo que, pelo menos, a percentagem de água tratada e esgotos instalados superasse o crescimento demográfico. Somente dessa forma, concretamente, o déficit social contido nesses dois itens estaria sendo reduzido. Mas tal perspectiva, se es­teve na cabeça de alguém, não passou de um sonho. A rea­lidade é outro ou outra, muito diverso e diversa .

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A imutabilidade estrutural é uma das características de nosso país, no qual (alguém já o disse) está quase tudo por fazer. Enquanto permanecem praticamente inalterados os percentuais de abastecimento de água tratada e esgotos para os domicílios existentes, a estrutura da propriedade ru­ral, fortemente concentrada na mão de poucos estabeleci­mentos, permanece a mesma, percentualmente, através dos tempos. Já focalizamos a situação em 1980 e 1985. Nada mudou em relação a 1970, por exemplo. A diferença é que em 1980 existiam 5 milhões 159 mil estabelecimentos agríco­las e explorados 376 milhões 286 mil hectares. Em 1970, eram 4 milhões 924 mil estabelecimentos para 294 milhões 145 mil hectares. Entretanto, ontem, como hoje, cerca de 20Jo dos proprietários detêm mais de 50% das áreas. E, co­mo vemos no censo de 1970, mais de 50% dos proprietá­rios (estabelecimentos) possuíam apenas 9 milhões 83 mil hectares. Mais de 50%, portanto, tinham pouco mais de 3% d.as terras. Mas 1.449 proprietários detinham 33 mi­lhões de hectares. Ou seja: 0,07% dos estabelecimentos co­briam 15% das áreas agrícolas. Somando os proprietários acima de 10 mil hectares, verifica-se que a estrutura da pos­se da terra não ·se alterou de 1970 a 85: pouco menos de 2% são donos de mais de 50% das terras.

Nem mudou a estrutura da propriedade rural com o tempo, nem as condições sanitárias do país .

Nem mudará, com a nova Constituição, que consagra a manutenção do nosso arcaísmo fundiário.

O processo da reforma agrária no país, como vimos, apesar de ter sido um dos principais pontos do debate da sucessão presidencial de 1960 e, igualmente, de ter consti­tuído um dos aspectos nevrálgicos da crise política de 1963, que culminou com o movimento militar conservador de 64, caminha hoje, como ontem, muito lentamente no país. O problema agrário, pela concentração da propriedade e da renda que gera, termina contribuindo de forma extrema­mente acentuada para o processo inflacionário do país. Pois é evidente que os grandes produtores rurais controlam o mercado e, na realidade, impedem qualquer estabilização de preços. Por estabilização de preços, entenda-se o equilí­brio que, pelo menos, deveria ocorrer entre eles e a desvalo-

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rização monetária. Mas tanto a estrutura da produção quan­to o próprio sistema de comercialização empurram os au­mentos para níveis estratosféricos, contribuindo assim pa­ra sensibilizar ainda mais os índices percentuais que os con­sumidores de todos os níveis têm que defrontar diretamente.

O resultado, como também já vimos, é a redução do consumo. Não há outro jeito. E a redução do consumo au­menta a vulnerabilidade da população mais pobre às doen­ças de quase todos os tipos. Recentemente, a Secretaria de Saúde de Pernambuco revelou, em matéria publicada no Jornal do Brasil, que 300Jo dos casos de internação hos­pitalar no Estado decorrem diretamente da subnutrição. E sabemos todos que 50% dos casos de mortalidade infantil no país têm a mesma origem direta.

Vale assinalar que, quanto mais alta for a inflação, mais o governo gastará diariamente para a rolagem de sua dívida interna, hoje na escala (como também vimos) de cer­ca de 6 trilhões de cruzados. Os papéis do overnight são di­retamente sensibilizados pelo fenômeno, como é lógico, pois o Tesouro não conseguiria captar recursos privados pa­ra financiar a sua dívida (6 trilhões) e o seu déficit (em tor­no de 200 bilhões mensais), se pagasse taxas aquém da in­flação. Ao contrário: para captar volumes cada vez maio-· res, tem que compensar os tomadores com valores - cla­ro- acima da inflação.

REFORMA AGRÁRIA, AINDA UM SONHO

Mas voltando à reforma agrária, há três dados funda­mentais. Primeiro: a existência no país de 376 milhões 286 mil hectares agrícolas. Segundo: a afirmação feita pelo pre­sidente José Sarney no seu programa Conversa ao Pé do Rádio, edição de 23 de outubro de 1987. Nessa ocasião, o presidente da República revelou que, do total de terras exis­tentes, só devem ser desapropriadas as dos grandes latifun­diários. As terras dos grandes latifundiários, juntas, somam 200 milhões de hectares. Sarney acrescentou que o gover­no, para seu programa de reforma agrária, precisaria so­mente de 30 milhões de hectares. Esse montante correspon-

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de a 1,50Jo das áreas dos grandes proprietários. E menos de 10% de toda a extensão agrícola brasileira. Muito bem: em outro Conversa ao Pé do Rádio, Sarney disse que seu governo já havia desapropriado 3 milhões e 400 mil hecta­res, permitindo o assentamento de 85 mil famílias, o que corresponde a pouco mais de 400 mil pessoas.

O que significa isso? Simplesmente que o governo de­sapropriou praticamente 10%, apenas, do que ele próprio considera fundamental desapropriar. E não chegou, assim, a redistribuir nem 1% das terras agricultáveis existentes, produtivas ou não, mas pertencentes aos estabelecimentos implantados, que são 5 milhões 159 mil, de acordo com as estatísticas do IBGE, de 1985. O Jornal do Brasil, na sua edição de 11 de maio de 1988, e o Correio Brasiliense, na edição de 15 do mesmo mês e ano, observam a lentidão que marca e tolhe o processo da reforma agrária no Brasil, com base nas áreas declaradamente agrícolas, de proprieda­des definidas.

Mas, se considerarmos que as áreas de exploração da terra deveriam ser mais que o total de 376 milhões de hecta­res, incluindo, como prevê a lei do Estatuto da Terra, os la­tifúndios improdutivos da União, dos Estados e dos Muni­cípios, ver-se-á que o que foi feito até agora dilui-se num universo ainda muito maior. E o peso percentual do que foi realizado passa a ser muito menor.

Veja-se bem que nos referimos não somente às terras particulares, mas também às terras públicas, para efeito de reforma agrária. O conservadorismo, dessa forma, não abarca e protege exclusivamente a iniciativa privada, mas igualmente leva ao não cumprimento, desde 1964, da lei que tem como objetivo modernizar a estrutura rural do país. No ritmo em que seguimos, a reforma agrária perma­necerá no papel, desde o início da República, pelo menos até o final do século, até o ano 2000, portanto.

Não se trata, nem de longe, de responsabilizar somen­te o governo José Sarney, mas todos os governos, especial­mente a partir de 1964, que não conseguiram sequer fazer cumprir uma lei em pleno vigor - a do Estatuto da Terra -, que, inegavelmente, constituiria um instrumento refor­mador, modernizador, e significa provavelmente a última

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proposta de solução da questão da terra nos moldes capita­listas. O conservadorismo, com seus tradicionais aliados, o imobilismo e a omissão e a pusilanimidade, emperrou o avanço rural brasileiro, tanto no que se refere a áreas priva­das, quanto no que se relaciona diretamente com as áreas públicas disponíveis.

Há planos e mais planos para execução da reforma agrária. A Sociedade Nacional de Agricultura os tem em seus arquivos . O curioso é que o mais recente, elaborado pelo Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, é de maio de 1985 . Qual o seu nome? Primeiro Plano Na­cional de Reforma Agrária, na Nova República. Logo, os planos anteriores não serviram. Tanto assim que, se servis­sem, não haveria necessidade de uma nova proposta. No papel, as especificações são apresentadas detalhadamente, região por região, área por área. Em outubro de 1985, atra­vés do decreto 91.766, o presidente da República o apro­vou oficialmente. Como princípio básico da. reforma agrá­ria, está citado o Estatuto da Terra, a mesma lei de novem­bro de 1964. Sinteticamente, não pode haver melhor pro­va de que o conservadorismo imperou ao longo dos gover­nos militares. Afinal, um decreto de outubro de 1985 refe­re-se fundamentalmente à legislação de novembro de (na­quela época) 21 anos antes . E como, ao longo do governo José Sarney, foram feitas as desapropriações necessárias a pouco mais de 1 OJo do que o governo julga essencial desa­propriar, consegue-se dimensionar claramente o tempo que se perdeu. Agora, como Proust, partiremos em busca do tempo perdido? Que fazer? Que dizer? Os números falam por si. E a realidade fala mais alto: prova-o a vitória da União Democrática Ruralista nessa matéria, ao enterrar por cinco anos mais qualquer tentativa de dar um mínimo de racionalidade à questão, em prejuízo da imensa maioria da população·, pelo jogo negativo de seqüelas bárbaras.

Um terceiro aspecto importante: para que se tenha idéia da estrutura medieval da exploração da terra no Bra­sil e da concentração de renda que gera, basta somar esses números àqueles que o relatório de 1987, do Banco Mun­dial, fornece sobre o valor da produção agrícola brasileira: é uma das maiores do mundo. Alcançou, em 1985 (pois o

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relatório de 1987 baseia-se nos índices que colheu relativos a 1985), um montante, em números redondos, de 37 bilhões de dólares. Somente foi superada pelo valor da produção da China (139 bilhões de dólares), dos Estados Unidos (85 bilhões de dólares), da Índia (61 bilhões de dólares), e do Japão (41 bilhões de dólares, país muito menor em área, mas de produtividade muito alta). A União Soviética, diz o relatório, não forneceu dados sobre o valor de sua produ­ção agrícola, alegando não pertencer ao sistema do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, outro nome do Banco Mundial- mas, com seus maus êxitos re­lativos, é a terceira ou mesmo segunda do mundo.

Conclui-se, assim, que, embora possuindo uma das maiores produções agrícolas do mundo, o Brasil está atra­sadíssimo em matéria de reforma agrária e de moderniza­ção das atividad.es rurais. Exporta muito mais alimentos do que importa, mas grande parte de sua população, pelo menos 400Jo, passa fome. Vão dormir à noite em meio à fo­me e à desesperança: e 40% dos brasileiros são quase 60 milhões de seres humanos, fique claro. ·

Por isso, certamente, a saúde do país é precária. Co­mo afirmou o sanitarista Sérgio Arouca, presidente da Fun­dação Osvaldo Cruz, em entrevista ao Correio Brasiliense, de 9 de maio de 1988, o atendimento à saúde no Brasil avan­ça pelas epidemias. Quer dizer: as preocupações com a ação no setor são motivadas por surtos epidêmicos. Triste, tal realidade.

O atraso brasileiro pode ser medido, igualmente, pelo fato de aproximadamente 10% da população do país não ter sequer registro civil, uma certidão de nascimento. Foi o que revelou o presidente da Associação Interamericana de Juízes de Menores (Jornal do Brasil, 25 de maio de 1988), o juiz Jorge Uchoa de Mendonça. Para ele, o problema de­corre do fato de milhões de famílias não terem recursos pa­ra pagar tal registro nos cartórios. A Legião Brasileira de Assistência realiza um grande volume de registros civis, pa­gando-os pelos carentes. Só no ano passado, registrou mais de um milhão. Um dado a mais para o quadro social brasileiro.

Quem examinar o balanço de pagamento do país des­de 1947, verifica que nunca o Brasil fechou um exercício

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com superávit. A balança comercial (venda e compra de mercadorias) fecha com saldo, como fechou com saldo su­perior a 11 bilhões de dólares em 1987, mas o balanço de pagamento, que inclui juros, serviços da dívida, fretes, se­guros de transporte, este aponta prejuízos invariáveis. Em 1986, por exemplo, porque o governo declarou a moratória, o balanço acusa um prejuízo de 12, 3 bilhões de dólares. Em 1985, de 3,2 bilhões de dólares. E, assim, lá vão recur­sos para o exterior. Sem contar as remessas de outros tipos, como os dep<?sitos feitos ilegalmente em bancos internacio­nais seguros, em torno dos quais não se tem qualquer in­formação concreta. Mas sabe-se que existem em grandes montantes. Em tudo isso, encontra-se clara ou nebulosa­mente a remessa de parcelas do produto brasileiro para além de suas fronteiras. O povo, com sua pobreza, paga a diferença da conta. E desmente o slogan lançado pelo ex-ministro Delfim Neto, ao longo do governo Figueiredo, de que exportar é a solução. Não é. Se fosse, não nos en­contraríamos hoje como nos encontramos, com uma dívi­da externa imensa e uma miséria interna ainda maior. Con­centrou-se a renda conservadoramente, socializaram-se os prejuízos, lançados a débito da conta social de uma popula­ção, nesta altura de 1988, da ordem de 145 a 150 milhões de habitantes. O conservad()rismo de cinco séculos tem fei­to do Brasil um país exportador de bens, com o mínimo de fruição dos reais produtores, os brasileiros.

UM LIVRO CHAMADO VERDADE

Encerremos este livro-verdade, quando os chamados meios de pagamento (nova denominação das emissões de papel-moeda) atingem níveis muito elevados, prenuncian­do uma inflação galopante para todo o exercício de 1988 e 1989. A base monetária (outro eufemismo) atingiu 43,80Jo em março, recorde histórico. Em abril, mãis 14,1%. Os da-. dos foram revelados pelo Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo. Nos quatro primeiros meses do ano, entraram em circulação - acentua o jornal paulista- 1 trilhão 312 bilhões de cruzados. Não vamos discutir tecnicamente os

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números. Fiquemos só na expectativa de um surto inflacio­nário sem precedentes e, com ele, o empobrecimento ain­da maior da população, com todas as conseqüências conhe­cidas que acarreta.

A política colocada em prática está errada. A de ho­je, a de ontem. Se estivesse certa, os resultados, evidente­mente, não seriam esses.

Evidentemente, também, a favelização não seria cres­cente como é, as doenças infectocontagiosas, como a tuber­culose, não voltariam a registrar índices crescentes, a saú­de brasileira não seria tão precária. O fato é que o cresci­mento do número dos moradores de favelas avança em ve­locidade várias vezes maior que o aumento da população em geral: melhor indicador físico e objetivo do empobreci­mento não existe. E - relembremos - o país não perma­neceria tendo apenas pouco mais de um terço de suas resi­dências ligadas a redes gerais de esgotos, o analfabetismo (sem discutir o "alfabetismo") não seria de 240/o sobre as populações adultas e adolescentes, o consumo de água tra­tada não estaria contido na escala de 55 O!o dos domicílios. Não há necessidade de dizer mais nada. A predominar o conservadorismo, a tendência inegável é o agravamento ain­da maior da deterioração do nosso universo social. A cul­pa, no fundo da questão, está nele, conservadorismo, e nos efeitos terrivelmente negativos que gera e amplia, à me­dida que a população cresce e se torna mais miserável, mais faminta, mais tragicamente injustiçada.

Num antefim, insistamos: se o processo de favelização galopante do país constitui o indicador social mais forte da deterioração da qualidade de vida no Brasil, as invasões de áreas urbanas pelos que não têm condição sequer de mo­rar representam um dado a mais nessa tendência de abaixa­mento que não humilha somente os poderes públicos, mas igualmente a sociedade brasileira como um todo. E as inva­sões estão aí, especialmente no Rio de Janeiro e Brasília, acrescendo a circunstância de que em Brasília se verificaram até a distância menor de um quilômetro tanto do palácio do Planalto quanto do Alvorada. É o desespero que explo­de e irrompe aos olhos de todos. As edições do Jornal do Brasil da última semana de maio de 1988 refletem essa dra-

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mática realidade da proliferação de favelas planas em áreas de circulação de grandes cidades brasileiras. A favelização e as invasões são a prova cabal do absoluto fracasso da po­lítica econômico-social adotada a partir de 1964 e até ago­ra, infelizmente, não revertida.

Outra prova está na taxa de desemprego, hoje de 5o/o sobre o total da mão-de-obra ativa brasileira, que reúne 50 milhões de trabalhadores. Já foi de 8% no governo João Figueiredo. Diminuiu, é verdade (mas a salários reais mais baixos ainda). Mas o problema social permanece um desafio. Pois, ao índice de desemprego, há que somar o percentual de não-emprego, seja, os jovens que chegam à idade de trabalhar e não conseguem ingressar no mercado de trabalho ou emprego. É que o país precisa ter uma polí­tica capaz de assegurar a absorção, por ano, de pelo me­nos 1 milhão e 200 a 1 milhão e 500 mil pessoas no univer­so do trabalho remunerado.

Outro indicador terrível: a produção dé alimentos bra­sileira é grande, como vimos: 37 bilhões de dólares. A im­portação não chega a 3 bilhões de dólares, especialmente em trigo, pois o Brasil só produz praticamente a metade dos 6 ou 7 milhões de toneladas de trigo que consome anual­mente. Mas a população em grande parte passa fome. Lo­go, uma parcela substancial dessa produção, especialmente soja, é exportada com o ·preço da fome crescente no país. Há tempos, lançaram-se as campanhas "exportar é a solu­ção" e "exportar é o que importa". Nem uma coisa nem outra. Se fosse a solução, 40 milhões de brasileiros não esta­riam - ou seriam? - famintos. São dados da realidade, mais fortes que quaisquer argumentos retóricos. Indicam a pobreza nacional e, o que é pior, o fato de, conservadora­mente, nada se fazer de concreto para eliminá-la ou reduzi-la.

O verdadeiro Brasil é este: um PIB de 300 bilhões de dólares, uma população carente, miserável, faminta e da qual grande parte não pode exercer sequer o direito de mo­rar. Sua simples sobrevivência, no fundo, é um ato de he­roísmo anônimo em escala poucas vezes vista na história da humanidade.

Isto deve continuar?

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AS USINAS DO PENSAMENTO E O FUTURO

Qualquer país, da mesma forma que tem em seu terri­tório usinas siderúrgicas, usinas hidrelétricas ou termelétri­cas, usinas de cimento e de fabricação de asfalto, ou de re­fino de petróleo, possui também suas usinas de pensamen­to, ou seja, os segmentos de sua sociedade onde se produz o pensamento nacional. E a exemplo das técnicas de fabri­cação, que se alteram em períodos cada vez mais curtos, conseqüência dos avanços científico-tecnológicos, o pensa­mento de qualquer nação também se altera. E se altera à medida que os grupos sociais de maior presença vão consta­tando realidades e procurando alterá-las.

É verdade que há uma diferença fundamental entre as produções econômicas e a do pensamento. Nas primei­ras localizam-se poderosos interesses econômicos que, logi­camente, investem nos avanços, mas não desejam alterar os seus efeitos no plano social, através de melhor distribui­ção de renda e de um moderno conceito de justiça no que se relaciona com o trabalho humano. Daí o clássico confron­to entre capital e trabalho.

Mas o confronto entre capital e trabalho não pode ser analisado como uma luta eterna, ou simplificado entre a opção capitalista e a opção socialista. Ao contrário, ele for­nece outra visão: a solução dos problemas sociais, que no Brasil são imensos, não se restringe à luta que coloca fren­te a frente a privatização ou a estatização. Essa luta é res­saltada pelos conservadores, taticamente, para obstruir e im­pedir qualquer reforma. A luta verdadeira não está apenas nesse limite, fatal e gigant(!sco. Na verdade, encontra-se en­tre conservadorismo e reformismo, pois é plenamente pos­sível modernizar a estrutura da distribuição de renda e dos efeitos concretos do progresso, sem que se recorra, necessa­riamente, à estatização ou à doutrina marxista.

À medida que tal possibilidade vai sendo assimilada pelas usinas que produzem o pensamento brasileiro, a cri­se política se vai agravando. Porque a angústia cresce com a constatação e a certeza das absurdas injustiças que predo­minam entre nós: como o fato de termos um salário míni­mo ridículo, salários não menos ridículos pelos quais são

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pagos mais de 800Jo da mão-de-obra brasileira, como o fa­to de apenas 35% das residências do país estarem ligadas a redes tratadas de esgotos, e, ainda por cima, como o fa­to de apenas 12% dos 29 milhões de alunos do curso primá­rio chegarem ao antigo ginásio.

As usinas do pensamento nacional estão nas universi­dades e nas escolas, envolvendo professores e alunos. Na imprensa, na televisão, nas emissoras de rádio, nos meios de comunicação de massa, portanto, pelo poder de trans­missão e irradiação do conhecimento do dia-a-dia. Entre os artistas, pelo poder de transmissão de atitudes e pela força de criação que lhes é própria. Pelos intelectuais, de modo geral, pelas mesmas razões. Pela Igreja Católica e a sua organização no Brasil e o processo de modernização que atravessa. As usinas de pensamento estão onde se en­contram os profissionais em geral, e em especial os de ní­vel superior, entre eles os cientistas e os pesquisadores. Es­tão igualmente nos sindicatos dos trabalhadores e nos pa­tronais. Estão nas forças armadas. E também no empresa­riado, embora o pensamento conservador viva, logicamen­te, na maioria do empresariado. E, em muitos casos, por equívoco, nas forças armadas, especialmente por parte de setores seus que confundem reformismo com comunismo, e este com a subversão da ordem constituída.

A realidade dominante, entretanto, é que, seja lá co­mo for, todos os dias a compreensão do reformismo evo­'lui, na medida em que se livra do dilema capitalismo-socia­lismo, ou do dilema da propriedade privada-estatização.

De tão injustas, as condições de vida no Brasil são sin­gulares. Veja-se um exemplo: no mês de maio de 1988, con­vidado pelo émpresariado paulista, esteve no Brasil o ensaís­ta Guy Sorman, considerado um dos expoentes franceses e mundiais do que se chama neoconservadorismo. Sorman é conhecido por sua defesa da livre iniciativa, da participação do capital estrangeiro na economia e mesmo de sua interna­cionalização como fator de progresso. Fez uma palestra re­produzida com destaque por O Estado de S. Paulo, jornal de grande circulação e influência na vida brasileira. Surpreen­deu a todos, principalmente os que o convidaram. Susten­tou simplesmente que suas opiniões sobre o mundo conti-

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nuam as mesmas, mas que, no Brasil, se tornaria, não um conservador ou um reformista, mas um revolucionário, tais as condições de vida humana que constatou. Frisou, inclusi­ve, que no Brasil não existe o modelo tradicional da explo­ração do homem pelo homem. Foi além: exploração, disse, pressupõe sentido econômico, seja ele justo ou injusto. O que há aqui é o abandono do ser humano. Seria assim, di­zemos nós, uma nova figura de análise representada na es­poliação do trabalho com o abandono de quem trabalha.

As contradições econômico-sociais brasileiras condu­ziram, portanto, o pensador francês à perplexidade e à re­volta. E o conflito que deparamos nesta fase final do sécu­lo é que, enquanto as usinas de pensamento produzem uma postura moderna e modernizadora, a estrutura so­cial permanece medievalizada. O impasse brasileiro come­ça e termina aí. A incapacidade de o país se desenvolver de duas formas fundamentais: primeiro, de forma bem mais nacional; segundo, de forma a que possa libertar da miséria dois terços de nossa população. Objeto também de observação de Sorman, ao dizer, com um pouco de exa­gero, que, dos 145 milhões de brasileiros, 100 milhões es­tão na miséria. ·

Além da injusta estrutura de distribuição dos efeitos do progresso e da produção, vemos, com base em reporta­gem do jornalista Luís Roberto Marinho, publicada no Correio Brasiliense de 5 de junho de 1988, que o IBGE vai reformular os cálculos do Produto Interno Bruto verifica­do em 1987. Em vez de ter crescido 2,90Jo em relação ao re­sultado de 1986, como chegara a anunciar o governo, o cres­cimento teria sido de somente 1%. Isso, com um gravíssi­mo aspecto: a produção industrial teria declinado 0,2% no mesmo período. O que compromete o setor mais avan­çado da produção, exatamente aquele que incorpora as tec­nologias mais apuradas. Confirmado o fenômeno, o Brasil estaria concretamente regredindo, pois o PIB não pode ja­mais crescer menos que o aumento da população. E a po­pulação brasileira cresce à taxa aproximada de 2,3% ao ano. Mas 2,3% não seriam suficientes. Representariam es­tagnação, significariam algo profundamente conservador. A economia teria que se projetar em escala bem acima do

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índice demográfico, para emergir e não submergir na po­breza e no atraso de que são prova, hoje, as próprias esta­tísticas oficiais, que destacam o atraso, a omissão e a fal­ta de soluções para os desafios que se colocam, não ape­nas para o governo, mas para o destino do país.

® impressão e acabamento por

W. Rol h & Cio. Lido. com filmes fornecidos

pela editora

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Diante desses fatos, cabe tar: como é possível que que possui a oitava econ< mundo, com um PIB da de 300 bilhões de dólaw produzir em seu tecido s< manhas desigualdades? I fizeram diante disso as no tes? Para Pedro do Cout1 tônio Houaiss, está claro 1

se ativeram unicamente à ção de seus interesses de permanecendo indiferen anseios e às necessidac pulares.

Examinando o nível di volvimento que nosso Paí çou nos campos econ social, cultural e político , tores constatam o fracasse luções propostas pelo co dorismo. Sem a preten apresentar soluções mágic tônio Houaiss e Pedro di to procuram, sim, salien dades nem sempre tão evi lembrando a urgência de esse modelo político.