O Cachimbo Sagrado

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  • O CACHIMBO SAGRADO Ritos Sioux, Alce Negro

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    O CACHIMBO SAGRADO

    OS SETE RITOS SECRETOS DOS NDIOS SIOUX

    relatados por

    ALCE NEGRO Traduzido para o portugus por:

    Anderson M. A. Bertolli

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    N D I C E

    PRLOGO, por Joseph Epes Brown .....................................................................................4

    INTRODUO, por Frithjof Schuon ....................................................................................8

    O CACHIMBO SAGRADO

    PREFCIO, por Hehaka Sapa (Alce Negro)....................................................................... 24

    1. A CHEGADA DO CACHIMBO SAGRADO.................................................................. 26

    2. A GUARDA DA ALMA................................................................................................. 32

    3. Inipi: O RITO DA PURIFICAO................................................................................ 52

    4. Hanblecheyapi: IMPLORANDO UMA VISO............................................................. 65

    5. Wiwanyag wachipi: A DANA DO SOL........................................................................ 89

    6. Hunkapi: O PARENTESCO........................................................................................... 123

    7. Ishna ta awi cha lowan: PREPARAO DA GAROTA PARA OS DEVERES DE MULHER.................................. 138

    8. Tapa wanka yap: O LANAMENTO DA BOLA ........................................................ 149

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    PRLOGO

    Depois de estudar durante anos a grande quantidade de material existente sobre as naes ndias de Amrica do Norte, grande parte do qual est escrito pelos prprios ndios, fiquei convencido de que muitos de seus velhos sacerdotes possuam uma elevada sabedoria. E esta sabedoria est obscurecida para ns por causa do carter singular de suas tradies; por causa de seu, diramos, gnio poli sinttico, que concede uma grande importncia aos diversos aspectos do mundo e da Natureza.

    Ms nesta afirmao e uso das muitas formas da Natureza sempre encontramos a

    idia da Unidade e da Transcendncia divinas. O ndio, por tanto, no um pago nem um idlatra, mais sim quem sabe que o Grande Esprito infinito e que, por conseguinte, inclui em Si mesmo todas as possibilidades, de modo que todas as formas so funes ou reflexos Dele, que em sua essncia sempre um.

    Com o fim de comprovar que esta sabedoria era conhecida e compreendida de um modo integral por ao menos os velhos sacerdotes dos ndios, empreendi uma viajem que ia durar vrios anos e que me levou a conhecer muitas naes ndias da Amrica do Norte.

    Dediquei a maior parte destes anos aos ndios das plancies, pois acreditava desde muito tempo que estes povos eram em certo sentido os aristocratas dos ndios, j que seus ancios possuam umas qualidades e uns nveis de espiritualidade que raramente se encontram no mundo de hoje. Para aprender destes povos deve-se viver efetivamente com eles, deve-se caar e viajar com eles, e compartilhar todos os aspectos de sua vida; e faa o que fizer se ver imensamente recompensado, porque inclusive hoje, em suas vidas de uma grande pobreza material, se encontram todavia, no ritmo de sua sociedade e na beleza das formas de sua antiga cultura, aquelas grandes qualidades por falta das quais, o mundo moderno se est empobrecendo apesar de sua opulncia material.

    Durante minha estada com os ndios da reserva de Pine Ridge, tive a extraordinria

    beno de falar com um ancio sacerdote dos sioux ogalala, Alce Negro (Hehaka Sapa), que me pediu para ficar com ele para recolher um relato sobre sua antiga religio; este ancio sabia que logo iria morrer, e no queria que estes conhecimentos sagrados, muitos dos quais ele era o nico depositrio, desapareceriam com ele. Assim, vivi com Alce Negro durante oito meses no inverno de 1947-48, e ao longo deste perodo registrei diariamente o que me contava, e alm do que aprendi me beneficiei grandemente do fato de compartilha a nobre vida de sua famlia e de seus muitos amigos.

    Alce Negro j no est vivo, mas este seu livro, e tenho a esperana de que,

    graas a ele, seguir vivendo, e que aqueles que o lerem compreendero melhor o que constituiu o centro e a vida deste grande povo.

    Encontrei muitos ancios de grande santidade entre os ndios, mas em Alce Negro

    havia um poder espiritual nico, e estou seguro de que isto era reconhecido por todos os que tiveram a oportunidade de conhec-lo. Alce Negro nasceu em princpios da dcada dos sessenta do sculo passado (1860), e portanto conheceu os dias em que seu povo percorria as plancies caando o biso e lutou contra os homens brancos em Little Big Horn e em Woundad Knee Creek. Era primo do grande chefe-sacerdote Tashunka Uitco (Cavalo Louco), e conheceu Tatanka Iotanke (Touro Sentado), Mahpyia Luta (Nuvem vermelha) e a (Cavalo Americano).

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    Mesmo no falando ingls, teve oportunidade de observar bem o mundo do homem

    branco, pois viajou com Bfalo Bill Itlia, Frana e Inglaterra, onde danou frente Rainha Victoria. Mas, mesmo fora caando, viajando ou lutando, Alce Negro no era como os demais homens.

    Em sua juventude foi instrudo no sagrado saber de seu povo por grandes

    sacerdotes, entre os que se contavam (Caador do redemoinho), (Caminho Negro) e o sbio Hehaka PA (Cabea de Alce), de quem aprendeu toda a histria de sua antiga religio.

    Com este conhecimento, Alce Negro rezou e jejuou muito, e graas a ele se

    transformou em um homem sbio que recebeu muitas vises e um poder especial destinado a ser empregado para o bem de sua nao. Esta misso perseguiu Alce Negro durante toda sua vida e lhe causou muito sofrimento, pois, mesmo havendo recebido o poder de guiar a seu povo pelo caminho sagrado de seus antepassados, no via por qual meios deveria fazer realidade a viso.

    Creio que esta a razo pela qual Alce Negro desejava fazer um livro que

    explicaria a religio dos sioux, pois tinha a esperana que, graas a este livro, seu povo, assim como os homens brancos, obteriam uma melhor compreenso da beleza e da verdade de sua antiga religio.

    Alce Negro pertencia ao grupo ogalala dos dakotas teton, uma das ramas mais

    poderosas da grande famlia sioux. Sioux na realidade o nome genrico aplicado a numerosas tribos que tm uma origem comum e falam uma mesma lngua; inclui as seguintes naes, classificadas segundo a lngua: assiniboin, crow, dakota, hidatsa, iowa, kansa, mandan, missouri, omaha, osage, oto, e ponca.

    Ao longo de suas migraes e guerras com as tribos vizinhas, os dakotas (os

    aliados) se dividiram em sete ramas, constituindo o que chamamos Sete Fogos do Conselho (Otchenti Chakowin): os ogalala minneconjou, ochenopa (Duas Marmitas), unopapa, brl, blackfeet-sioux, e os sans arc. Segundo a antiga histria que conheci atravs de Alce Negro, e segundo os documentos dos primeiros viajantes e missionrios, no sculo XVI os dakotas estavam estabelecidos nas fontes do Missippi, e em XVII foram expulsos de Minnesota at o oeste por seus poderosos inimigos, os chippewas. Ao abandonar os bosques e os rios, os dakotas substituram a canoa pelo cavalo com notvel facilidade, e no sculo XIX eram conhecidos e temidos como uma das naes mais poderosas das plancies;

    Com efeito, estes sioux dakotas foram quem sabe os que, de todas as tribos ndias,

    ofereceram uma maior resistncia expanso dos brancos at o oeste. Este livro contm mltiplos dados que os ndios, at estes ltimos tempos, haviam

    abstido de divulgar porque estimavam, e com razo, que estas coisas so demasiado sagradas para ser comunicadas a qualquer um; em nossos dias, os poucos velhos sbios que ainda vivem entre eles dizem que, ao aproximar-se o fim de um ciclo, quando em todas as partes os homens se tornaram inaptos para compreender e, sobre tudo, para por em prtica as verdades que lhes foram reveladas na origem. o que tm por conseqncia a

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    desordem e o caos em todos os terrenos , est ento permitido, e tambm desejvel, tirar este conhecimento para a luz do dia; pois a verdade se defende por sua prpria natureza contra a profanao, e possvel que chegue assim a aqueles que esto qualificados para penetr-la profundamente e so capazes, graas a ela, de consolidar a ponte que deve construir-se para sair desta idade obscura.

    Esta historia do Cachimbo sagrado dos sioux foi transmitida oralmente pelo

    precedente guardio do Chanumpa, Hehaka Pa (Cabea de Alce), a trs homens: dos trs, Hehaka Shapa (Alce Negro) era o nico que ainda estava vivo na poca em que estivemos com os sioux.

    Quando Hehaka Pa confiou esta histria sagrada dos sioux a Alce Negro, lhe disse

    que devia ser transmitida de gerao em gerao, pois, enquanto for conhecida e o Chanumpa estiver em uso, nosso povo viver; mas, a partir do momento em que se esquea, nosso povo j no ter um centro e perecer.

    Esta a razo pela qual fazemos votos para que este livro ajude de certa forma, por

    dbil que seja, a preservar este centro de uma nobre nao, muitos de cujos membros, ainda hoje e apesar de uma necessidade terrvel, esto resolvidos a salvaguardar estes ritos antigos que lhes foram revelados ao principio pelo Grande Esprito.

    Nas notas temos estabelecido incidentalmente concordncias com outras tradies

    com o fim de evidenciar a universalidade e a ortodoxia ou a verdade intrnseca da tradio dos sioux, e com o fim de mostrar que esta, que de fato coincide com a da maior parte dos ndios da Amrica do Norte, possuem os elementos de uma verdadeira espiritualidade. J hora dos ndios da Amrica voltem a tomar conscincia de si mesmos, de seu patrimnio espiritual e de sua civilizao, pois j faz demasiado tempo que a verdadeira natureza de sua antiga sabedoria vem sendo falsificada nos livros, seja por simples ignorncia, ou pela influencia de todo tipo de prejuzos.

    Convm assinalar que os ritos descritos neste livro por Black Elk correspondem a

    seus prottipos originais, de modo que apresentam em certos aspectos uma diferencia bastante considervel com respeito s formas mais complicadas mas no indispensveis que estes ritos hajam tomado posteriormente.

    Aos leitores que desejem conhecer mais de perto ao santo homem que nos ditou

    este livro, recomendamos a excelente obra de John G. Neihardt, Black Elk Speaks (Nova York, William Morrow, 1932)*.

    Com exceo das que mencionam outra fonte, todas as notas concernentes

    tradio dos sioux provm diretamente de Black Elk e, em ocasies, tambm de seu amigo Little Warrior, homem notvel que nos ajudo em mais de um aspecto.

    Desejamos expressar nossa gratido, em primeiro lugar, ao filho de Alce Negro,

    quem nos serviu de intrprete. Graas a ele desfrutamos da oportunidade excepcional de ter um intrprete que compreendia perfeitamente o ingls e o lakota e que, tambm, estava familiarizado com a sabedoria e os ritos de seu povo; com efeito, a carncia destes dois conhecimentos principalmente o que originou tantos escritos cheios de graves erros sobre os ndios.

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    Para as palavras ndias utilizaremos neste livro a ortografia internacional

    convencional, na que as consoantes se pronunciam como no ingls e as vogais como no italiano, salvo para os sons estranhos a estas duas lnguas, os quais se transcrevem de um modo aproximado o indicativo.

    JOSEPH EPES BROWN Southwest Harbor, Maine, agosto de 1953. _______________________________________________________________________________________________________________________________________ * Existe uma traduo espanhola com o ttulo Los ltimos sioux, Barcelona, Noguer, 1974 [N. do T.]

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    INTRODUO

    A tradio dos ndios de Amrica do Norte ou, mais precisamente, dos das plancies e dos bosques cujo domnio se estende desde as Montanhas Rochosas e muito mais Alm at o Oceano Atlntico, possuem um smbolo e um meio de graa de primeira importncia: o Chanumpa, o qual representa uma sntese doutrinal a sua vez concisa e complexa, e tambm um instrumento ritual em que se apia toda a vida espiritual e social; descrever o simbolismo do Cachimbo sagrado e de seu rito equivale, pois, em certo sentido, a expor toda a sabedoria dos ndios.

    Verdade que a tradio ndia compreende forosamente variaes bastante

    considerveis devidas disperso secular das tribos1, e que se referem, por exemplo, ao mito da origem do Chanumpa ou ao simbolismo das cores; por isto, no pretendemos mostrar aqui mais que os aspectos fundamentais da sabedoria ndia, os quais permanecem sempre idnticos apesar da variedade de suas expresses. No obstante, utilizaremos preferencialmente os smbolos empregados pelos sioux, nao a que pertencia Hehaka Shapa (Alce Negro)2, o venervel autor deste livro.

    Os ndios da Amrica do Norte so uma das raas que tem sido mais estudadas

    pelos etnlogos e, sem dvidas, no poderamos afirmar que se conheam perfeitamente; a etnografia, como qualquer outra cincia ordinria, no engloba todo o conhecimento possvel, e no poderia ser, por conseguinte, a chave de todo conhecimento. Se queremos penetrar o sentido da sabedoria dos ndios, no podemos faz-lo mais que com a ajuda de outras doutrinas tradicionais ou sagradas ou, mais precisamente o que o mesmo, luz da philosophia perennis que permanece uma e imutvel em todas as formas que pode tomar atravs das pocas.

    O ndio de antigamente no se deixa classificar facilmente em uma das categorias

    conhecidas de civilizao ou de no-civilizao, e parece constituir, desde este ponto de vista, um tipo parte no conjunto dos tipos humanos; inclusive quando se acredita no poder reconhecer o carter de civilizado, se est obrigado a reconhecer nele um homem estranhamente inteiro: sua dignidade e sua integridade, sua nobreza feita de retido, de coragem e de generosidade, alm da potente e sbria originalidade de sua arte que lhe assemelha guia e ao sol, fazem dele uma espcie de ser mitolgico que fascina e obriga ao respeito; quem sabe os antigos alemes ou os mongis anteriores ao Budismo nos teriam dado uma impresso anloga. _________________________________________________________________________ 1 Esta caracterstica encontrada tambm no hinduismo e quem sabe inclusive em todas as demais tradies de forma mitolgica; na ndia, os mesmos smbolos podem variar consideravelmente segundo as regies: um mesmo termo pode designar aqui uma realidade fundamental e em outro lugar um aspecto secundrio da mesma realidade. 2 Hehaka Shapa morreu em 1950 na reserva de Pine Ridge (Dakota do Sul).

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    E quanto civilizao, as experincias deste sculo XX nos obrigam a reconhecer que bem pouca coisa, ao menos em quanto se distingue e se separa do patrimnio religioso; com efeito, se, se entende a palavra civilizado no sentido muito superficial que tem correntemente, e que significa que um homem se encontra submetido a condies de vida artificiais, diferenciadas e abstratas, o pele vermelha no perde nada por no responder a esta definio; ao contrrio, a simplicidade de seu tipo de vida ancestral o ambiente que permite a seu gnio afirmar-se; queremos dizer com isto que o objeto deste gnio, como, como os demais, acontece com a maior parte dos nmades ou semi-nmades e, em todo caso, com os caadores guerreiros, muito menos a criao exterior, artstica si se quer, que a prpria alma, e homem inteiro, matria plstica do artista primordial .

    Esta ausncia de belas artes propriamente ditas no falamos aqui da

    pictografia no , pois, simplesmente um menos, j que est condicionada e compensada por uma atitude espiritual e moral que, precisamente, no permite ao homem se exteriorizar at o ponto de se converter em servidor da matria inerte, como o exige forosamente toda arte esttica.

    Um trabalho servil, dizer, que reduza ao homem a um papel aparentemente

    perifrico, incompatvel com uma civilizao fundada na Natureza e o Homem em suas funes primordiais; a arte est feita para o homem e no o homem para a arte, se dir segundo esta perspectiva, e, com efeito, a arte ndia antes de tudo um enquadramento desta criao divina, central e livre que o ser humano.

    O objeto da manifestao genial , sempre o homem enquanto smbolo e mediador:

    o que se exterioriza nunca se separa do microcosmos vivo para converter-se em um ser novo, inerte, em uma espcie de dolo que acabaria por absorver ou esmagar ao criador humano; em uma palavra, o ndio concebe a arte como uma funo viva do homem como ser central e soberano, e a prpria essncia espiritual desta arte, e no nenhum tipo de incapacidade, o que exclui a projeo do homem na matria e como uma espcie de esquecimento de si mesmo frente a um ideal materializado.

    A arte ndia de uma simplicidade totalmente primordial, sua linguajem

    concentrada, direta, atrevida; como o ndio quero dizer, no s nobre, mais tambm poderosamente original , sua arte as vez qualitativa e espontnea; possui um simbolismo preciso ao mesmo tempo em que um frescor surpreendente. Enquadra, temos dito, a pessoa humana, e isto o que explica a alta qualidade que alcana aqui a arte da indumentria: cocares majestosos sobre tudo o grande adorno em plumas de guia, vestimentas cintilantes de franjas e bordados com smbolos solares, mocassins com desenhos brilhantes que parecem querer tirar dos ps todo o peso e toda a uniformidade, vestidos femininos de uma simptica simplicidade; este jeito ndio, tanto em seus aspectos concisos como em suas expresses mais ricas, no , acaso, um dos mais sutis, mas sim, certamente, um dos mais geniais que existem.

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    Alguns autores se acreditam na obrigao de por em duvida o que a tradio ndia possua a idia de Deus, e isto porque acreditam descobrir nela um pantesmo ou imanentismo puro e simples; mas este erro no devido seno ao fato de que a maior parte dos termos ndios que designam a Divindade se aplicam a todos os aspectos possveis desta, e no s a seu aspecto pessoal; Wakan Tanka o Grande Esprito Deus, no s enquanto Criador e Senhor, mais sim tambm enquanto Essncia impessoal. Este nome de Grande Esprito, como traduo da palavra Sioux Wakan Tanka e dos termos similares em outras lnguas ndias, s vezes d lugar a objees; sem dvidas, sim Wakan Tanka e os termos correspondentes podem tambm traduzir-se por Grande Mistrio ou Grande Poder Misterioso (ou tambm Grande Medicina), e Grande Esprito no , sem dvida, absolutamente adequado, esta ltima traduo , no obstante, de todo suficiente; certo que a palavra esprito possui certa indeterminao, apresenta a vantagem de no implicar nenhuma restrio, e isto exatamente o que convm ao termo poli sinttico de wakan. A expresso Grande Mistrio proposta por alguns, como traduo de Wakan Tanka ou dos termos semelhantes em outras lnguas ndias, tais como Wakonda ou Manito , no confere a Grande Esprito a idia que se tenta refletir, pois a palavra mistrio no expressa em suma mais que uma qualidade extrnseca; por demais, o que importa questo de saber, no se o termo ndio expressa exatamente o que ns entendemos por esprito, seno se a idia expressa pelo termo ndio pode se traduzir por esprito ou no.

    Dissemos anteriormente que o Grande Esprito Deus, no s enquanto Criador

    e Senhor, mas tambm enquanto Essncia impessoal; acrescentamos que, inversamente, Deus, no s como puro Principio, mas tambm como Manifestao: Assim, pois, Ele Deus como tal e em Si mesmo, e por conseguinte Deus como Manifestao csmica, se est permitido se expressar assim, e por ltimo, Deus como reflexo de Si mesmo nesta Manifestao, dizer, como ser divino no criado.

    O que acabamos de dizer se desprende de modo necessrio do mesmo uso que

    fazem os ndios da maior parte dos termos que designam ao Grande Esprito; mas, aparte disto, os sioux estabelecem explicitamente uma distino entre os aspectos essenciais de Wakan Tanka: Tunkashila (Av) Wakan Tanka enquanto este se fala mais alem de toda manifestao, e inclusive mais alm de toda qualidade ou determinao, seja qual seja; Ate (Pai), pelo contrrio, Deus no ato: o Criador, o Sustentador e o Destruidor.

    De modo anlogo destinge, no que concerne Terra, a Unchi (Av) e Ina

    (Me): Unchi a substancia de todas as coisas, enquanto que Ina seu ato criador considerado aqui como um parto, ato que produz, conjuntamente com a inspirao por Ate, a todos os seres. Atravs das espcies animais e dos fenmenos fundamentais da Natureza, o ndio contempla as essncias anglicas e as Qualidades divinas: nesta ordem de idias, citaremos as consideraes seguintes de uma carta de Joseph Epes Brown:

    difcil, para aqueles que consideram a religio dos homens vermelhos desde o

    exterior, compreender a importncia que tm para eles os animais e, de modo general, todas as coisas que contm o Universo. Para estes homens, todo objeto criado importante, pela simples razo de que conhecem a correspondncia metafsica entre este mundo e o Mundo real.

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    Nenhum objeto para eles o que parece ser s segundo as aparncias; no vem na coisa aparente mais que um dbil reflexo de uma realidade principal3.

    Por isto toda coisa wakan, sagrada, e possui um poder, segundo o grau da

    realidade espiritual que reflete; assim, muitos objetos possuem um poder para o mal, tanto como para o bem, e todo objeto tratado com respeito, pois o poder particular que contm pode ser transferido ao homem; os ndios sabem bem que no h nada, no Universo, que no tenha sua correspondncia analgica na alma humana.

    O ndio se humilha ante toda a Criao, sobre tudo quando implora ( dizer,

    quando invoca ritualmente ao Grande Esprito na solido), porque todas as coisas visveis foram criadas antes que ele (anterioridade que, desde o ponto de vista de determinado simbolismo das criaturas, tm tambm um sentido puramente principal) e que, por ser seus antepassados, merecem respeito; mas o homem, mesmo tendo sido criado em ltimo lugar, , no obstante, o primeiro dos seres, pois s ele pode conhecer ao Grande Esprito (Wakan Tanka)4.

    _________________________________________________________________________ 3 Traduzimos a palavra francesa principiel por principal, ainda que esta no se encontre em nossos dicionrios. Com efeito, principal no equivalente a primordial, principal, ou original. Todas estas palavras no do conta exata de seu significado concreto, que seria o de relativo ou pertencente aos Princpios ou ao Principio, entendendo Principio em um sentido metafsico e no natural [N. do T.]. 4 Se fala geralmente da religio do ndio como de um culto da Natureza e dos animais. Este termo demasiado amplo e demasiado confuso a sua vez. Uma investigao detida e uma observao cuidadosa nos ensina, pelo contrario, que o ndio no adora aos objetos que invoca ou menciona em seus ritos. A terra, os quatro ventos, o sol, a lua e as estrelas, as pedras, a gua, os diversos animais, todos so representantes de uma vida e de um poder misterioso (Alice C. Fletcher, The Elk Mystery or Festival.) Uma coisa no somente o que para os sentidos, e sim tambm o que ela representa. Os objetos, naturais ou artificiais, no so para o primitivo, como podem o ser para ns, smbolos arbitrrios de tal realidade distinta e superior; so para ele a manifestao efetiva desta realidade: a guia ou o leo, por exemplo, no tanto um smbolo ou uma imagem do Sol como que o Sol baixo uma de suas aparncias (por ser a forma essencial mais importante que a espcie na que se manifesta; do mesmo modo, toda casa o mundo em efgie e todo altar est situado no centro da terra; se este modo de considerar as coisas resulta inconcebvel, to s porque ns estamos mais interessados pelo que as coisas so que pelo que significam, mais interessados pelos fitos que pelas idias universais. Quando se diz que um grupo humano descende de um totem, no h nele, como o cr o antroplogo, um absurdo puro e simples: s se expressa assim que o grupo descende do Sol, o Progenitor e Prajpati de todos os seres na forma particular na qual, em uma viso ou em sonhos, se revelou a si mesmo ao antepassado fundador do cl. O mesmo raciocino justifica a comida eucarstica: o Pai- Progenitor sacrificado e dividido por seus descendentes nas espcies da carne do animal sagrado: Este meu corpo, tomai e comei. De modo que, como disse Lvy Bruhl dos smbolos deste gnero, estes no tm por funo representar aos olhos seu objeto, mas sim permitir participar nele, e que se sua funo essencial consiste em representar, no pleno sentido desta palavra, a seres ou objetos invisveis, e fazer efetiva sua presencia, resulta que no consistem necessariamente em reprodues ou imagens destes seres e destes objetos. O objetivo da arte primitiva inteiramente distinto das intenes estticas ou decorativas do artista moderno (para quem os antigos motivos sobrevivem somente como formas de arte desprovidas de significao) e este objetivo explica seu carter abstrato. (Ananda K. Coomaraswamy, Figures of Speech or Figures of Thought).

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    Estas consideraes permitiram compreender melhor como toda coisa caracterstica, dizer, que manifesta uma essncia, wakan, sagrada. Crer que Deus o sol, certamente um erro totalmente pago e alheio ao pensamento ndio, mas igualmente absurdo crer que o sol no nada mais que uma massa incandescente, dizer, que no Deus de nenhum modo.

    Poderamos, tambm, nos expressar da maneira seguinte: wakan o que

    integramente conforme a seu prprio gnio; o Principio Wakan Tanka, dizer, o que absolutamente Si mesmo; e por outra parte, o sbio aquele que perfeitamente conforme a seu gnio ou a sua essncia; esta no outra que o Grande Esprito ou o Grande Mistrio.

    wakan, sagrado, o que permite conformar-se diretamente com a Realidade

    divina; o homem wakan quando sua alma manifesta o Divino com a evidencia espontnea e fulgurante das maravilhas da Natureza: os elementos, o sol, o relmpago, a guia, o biso, o urso, as montanhas, as correntezas, as estrelas, e assim sucessivamente.

    Por isto a covardia espcie de abandono da personalidade o pecado por

    excelncia; e isto explica tambm o individualismo aparente ou real dos ndios, atitude que, partindo da personalidade, terminou por converter-se num individualismo enraizado.

    Enquanto ao conhecimento do Grande Esprito, que s o homem, entre todas as

    criaturas terrestres, pode alcanar, Hehaka Shapa o definiu um dia nestes termos: Sou cego e no vejo as coisas deste mundo; mas quando a luz vem de Cima, ilumina meu corao e posso ver, pois o Olho de meu corao (Chante Ishta) v tudo.

    O corao o santurio em cujo centro h um pequeno espao nele que habita o

    Grande Esprito, e este o Olho (Ishta). Este o Olho do Grande Esprito por ele que Ele v todas as coisas, e por ele que

    lhe vemos. Quando o corao no puro, o Grande Esprito no pode ser visto, e se voc houver de morrer nesta ignorncia, vossa alma no poder regressar imediatamente a Seu lado, ento dever se purificar mediante peregrinaes atravs do mundo.

    Para conhecer o Centro do corao e o que reside o Grande Esprito, deveis ser

    puros e bons, e viver segundo a maneira em que o Grande Esprito nos ensinou. O homem que, deste modo, puro, contm o Universo na bolsa de seu corao (Chante Ognaka). _________________________________________________________________________ universais. Quando se diz que um grupo humano descende de um totem, no h nele, como cr o antroplogo, um absurdo puro e simples: s se expressa assim que o grupo descende do Sol, o Progenitor e Prajpati de todos os seres na forma particular na qual, em uma viso ou em sonhos, se revelou a si mesmo ao antepassado fundador do cl. O mesmo raciocino justifica a comida eucarstica: o Pai-Progenitor sacrificado e dividido por seus descendentes nas espcies da carne do animal sagrado: Este meu corpo, tomai e comei. De modo que, como disse LvyBruhl dos smbolos deste gnero, estes no tm por funo representar aos olhos seu objeto, mas permitir participar nele, e que se sua funo essencial consiste em representar, no pleno sentido desta palavra, a seres ou objetos invisveis, a fazer efetiva sua presencia, resulta que no consistem necessariamente em reprodues ou imagens destes seres e destes objetos. O objetivo de arte primitivo inteiramente distinto das intenes estticas ou decorativas do artista moderno (para quem os antigos motivos sobrevivem somente como formas de arte desprovidas de significao) e este objetivo explica seu carter abstrato . (Ananda K. Coomaraswamy, Figures of Speech or Figures of Thought).

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    No poderamos fazer nada melhor, antes de comentar sumariamente o simbolismo do Chanumpa, que citar a explicao que dele foi dada por Hehaka Shapa em seu primeiro livro (Black Elk Speaks): Enchendo o Cachimbo sagrado com a casca do salgueiro vermelho; mas antes que a fumemos, deveis ver como feita e o que significa.

    Estas quatro cintas que pendem do fornilho so as quatro Regies do Universo: a

    negra representa o Oeste, nele vivem as criaturas do Trovo para nos enviar a chuva; a branca representa o Norte, de onde vem o grande Vento Branco que purifica; a vermelha representa Leste, de onde brota a luz e donde mora a claridade da alvorada a fim de dar a sabedoria aos homens; a amarela representa o Sul, de onde vem o vero e o poder de crescer.

    Mas estes quatro espritos no so em suma mais que Um Esprito, e esta pluma de

    guia simboliza o Uno, que como um pai; mas representa, tambm, os pensamentos dos homens, que devem se elevar at as alturas como fazem as guias. No o Cu um pai, e a Terra uma me, e todos os seres vivos seus filhos, quer tenham ps, asas ou razes?

    E este couro da boquilha, que h de ser de pele de biso, indica a Terra, da qual

    viemos e de cujo seio nos nutrimos toda a vida, semelhantes a recm nascidos, com todos os animais, pssaros, rvores e ervas. E porque significa tudo isto, e mais do que nenhum homem pode compreender, o Cachimbo sagrado.

    Quando o ndio leva a cabo o rito do Chanumpa, sada ao cu, terra, e aos quatro

    pontos cardinais, seja oferecendo o Cachimbo, cujo canho representa, como o quer, por exemplo, o ritual dos sioux, j dirigindo a fumaa at as direes indicadas e as vezes tambm o fogo central5 o agni vdico que arde ante o oficiante; a ordem destes gestos pode variar, mas seu plana esttico sempre o mesmo, j que constitui o esquema doutrinal, dogmtico se quiser, que ser atualizado pelo rito.

    Conforme alguns usos rituais, comearemos nossa enumerao com o Oeste: este

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    Assim como o Universo depende de quatro determinaes primordiais, a saber: a gua, o Frio, a Luz, e o calor; a primeira, a gua, no outra coisa que o aspecto positivo da obscuridade, que normalmente deveria opor-se luz como o frio se ope ao calor; o aspecto positivo da obscuridade , em efeito, sua qualidade de sombra que protege contra a fora ao ressecante sol e que produz ou favorece a umidade; necessria que o cu se escurea antes de poder acontecer a chuva, e que Deus manifeste a Clera o trovo antes de conceder a Graa, cujo smbolo natural a chuva.

    E quanto ao frio do Vento santificante e purificador que d fora, seu

    aspecto positivo a pureza, de modo que poderia opor-se a Pureza do Norte ao Calor do Sul como se ope a Chuva do Oeste a Luz do Leste; a relao entre o Frio e a Pureza evidente: as coisas inanimadas e, portanto, frias, dizer, os minerais, no esto sujeitos corrupo como os seres animados e, portanto, quentes. a Luz do Leste, j temos dito, o Conhecimento; o Calor a Vida e, por conseguinte, o Amor e tambm a Bondade, a Beleza, a Felicidade.

    Antes de ir mais distantes, devemos responder a uma objeo que poderia surgir do

    fato de que os Quatro Ventos, na doutrina dos sioux, parecem corresponder a uma funo bastante secundaria da Divindade, que se divide em quatro aspectos subdivididos quatro vezes; agora bem, aparte de que no o simbolismo mitolgico dos sioux o que nos propomos estudar aqui em primeiro lugar, seno a metafsica da Quaternidade que se apresenta em todas as variantes da tradio ndia, a doutrina sioux reconhece aos quatro Princpios, mediante uma notvel derrubada da hierarquia mitolgica ordinria, uma preeminncia sobre as demais Divindades, e isto indica claramente que, no rito do Chanumpa, o melhor na perspectiva com ele vinculada, os pontos cardinais representam as quatro Manifestaes divinas essenciais e, por conseguinte, tambm seus Prottipos no Ser.

    necessrio, por demais, no esquecer nunca que, para outros ndios, o simbolismo

    toma formas muito diferentes das que possuem os sioux: assim, para no citar mais que este exemplo, nos arapaho, os quatro princpios esto simbolizados por quatro Ancios que, emanados do Sol, velam pelos habitantes do mundo terrestre, a quem se atribui simbolicamente o dia (Sudeste), o vero (Sudoeste), a noite (Noroeste) e o inverno (Nordeste); por ltimo, convm fazer notar que a Quaternidade a via de regra considerada como se constitusse no fundo uma Duodecimidade , e cada um de seus elementos concebido segundo trs aspectos, fazendo abstrao do eixo vertical Cu -Terra que agrega Quaternidade dois elementos novos mesmo de outra ordem.

    Dito isto, voltamos para a considerao dos quatro Princpios em si mesmos: se

    poderia tambm, sempre partindo do Oeste at o Norte, designar aos quatro Lugares Csmicos respectivamente com os termos seguintes: umidade, Frio, Sequido, Calor; o aspecto negativo correlativo da umidade a obscuridade, e o aspecto positivo correlativo da sequido a luz. A Ave do Trovo (Wakinyan Tanka), que habita no Oeste e que protege a terra e a vegetao contra a seca e a morte, descrito como lanando relmpagos pelos olhos e produzindo o trovo com as asas6 a analogia com a Revelao do Sinai, acompanhada de troves, de relmpagos e de uma nuvem espessa, tanto mais impressionante quanto o acontecimento bblico teve lugar em um penhasco, e que a mitologia ndia estabelece precisamente um vnculo entre a Ave do Trovo e Penhasco, tal como veremos na continuao.

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    Enquanto assimilao simblica da Revelao ao Oeste, pode parecer inslita e

    paradoxal, mas no h de perder nunca de vista que os pontos cardinais tm aqui forosamente um significado positivo: o Oeste no ser, pois, o contrrio do Leste, a saber, a Obscuridade e a Ignorncia, seno seu complemento positivo, portanto a Chuva e a Graa. Um poderia se surpreender, por outra parte, do fato de que a tradio ndia estabelea um vnculo simblico entre o Vento do Oeste, portador do trovo e da Chuva, e o Penhasco, personificao Anglica ou semi divina de um aspecto csmico de Wakan Tanka: esta aproximao , no obstante, plausvel, pois o penhasco rene em si mesmo os mesmos aspectos complementares que a tormenta: o aspecto terrvel por sua dureza destrutiva , para os ndios, smbolo de destruio, de h nas armas de pedra, com as que devem naturalmente se relacionar as pedras do raio e o aspecto de Graa pelo fato de que d nascimento a fontes que, como a chuva, regam o pas7.

    Os Quatro Ventos so como as Potncias produtoras (no sentido do termo

    snscrito Shakti) das Regies do Mundo, e se concebem como dando a volta ao horizonte e determinando a vida terrestre mediante suas influncias combinadas.

    O vento como o alento do mundo terrestre nele que vivemos; representa assim

    a respirao csmica. O alento em certo sentido o veculo da alma ou do esprito; dai a conexo etimolgica destas palavras em muitas lnguas; mas tambm o veculo ativo e a vida, pois ele quem alimenta e purifica o sangue, suporte passivo e inferior do elemento vital. O alento , pois, ao mesmo tempo, a alma da vida, e est feito assim a imagem do Verbo divino cujo Alento criador h feito ao homem. _______________________________________________________________________________________________________________________________________ 6 Segundo a mitologia iroquesa, Hino, o Esprito do trovo, o guardio do Cu. Armado com um potente arco e com flechas de fogo (de relmpagos), destri todas as coisas nocivas. Sua esposa o Arco ris Oshadagea, a Grande guia do Orvalho, est igualmente a servio de Hino. Habita no Cu do Oeste e leva no oco de sua espalda um lago de orvalho. Quando os espritos malficos do fogo destroem sobre a terra toda classe de verdor, Oshadagea empreende o vo e, desde suas asas despregadas, a umidade benfica vai caindo gota a gota (Max Fauconnet, Mythologie des deux Amriques, em Mythologie Genrale de la Librairie Larousse). A associao do relmpago com a Ave do Trovo tanto mais notvel quanto que nas tradies mais diversas o relmpago assemelhado Revelao, como a chuva o Graa. A guia pertence ao mesmo simbolismo universal que o relmpago, de onde a associao deste animal com So Joo, Autor inspirado do Apocalipse e Filho do Trovo. 7 Convm mencionar, a este respeito, o feito de que, no mundo pele vermelha, as Montanhas Rochosas (Rocky Mountains) - por tanto, os penhascos - se encontram a Oeste, que elas do nascimento a numerosos rios que fertilizam as plancies. Quando uma viso vem da parte dos Seres do Trovo do Oeste, vem com terror e como um furaco; mas quando o furaco da viso passa, o mundo mais verde e mais feliz; porque cada vez que vem a este mundo a verdade revelada (the truth of vision), esta como a chuva. O mundo mais feliz depois do Terror do furaco. (Black Elk Speaks, being Life Story of a Holy Man of the Ogalala Sioux, contada a John G. Neihardt.) Anascesis responde a mesma conexo csmica entre o terror e a Graa: Fazer medicina (to make medicine) praticar, durante um perodo especialmente consagrado, o aluno, a ao de graas, a orao, a abnegao e inclusive a tortura voluntria O objetivo subjugar inteiramente as paixes da carne e aperfeioar a si mesmo espiritual. a abstinncia corporal e a concentrao mental em pensamentos elevados purificam o corpo y a alma Ento o esprito individual se torna mais conforme ao Esprito da Grande Medicina que est sobre ns (then the individual mind gets closer towards conformity with the Mind of the Great Medicine above us) (Woodon Leg um ndio cheyenne em seu livro: A Warrior whofought Custer).

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    O pontos cardeais esto associados simbolicamente, j o dissemos, a quatro Divindades, designadas de diversas maneiras e que personificam outros tantos aspectos complementarios do Esprito universal; este os une em si mesmo, como as cores se unem na luz; e ele Wakan Tanka no sentido que se identifica a Deus em virtude da unicidade de Essncia, como a luz se identifica essencialmente ao Sol.

    Segundo a cosmologia dos sioux, estas quatro Divindades ou semi-Divindades se

    subdividem a sua vez cada uma em quatro entidades hierarquizadas, que levam os nomes mais diversos, tais como Sol, Lua, Biso, Alma, e que indicam outras tantas ramificaes ou reflexos do Esprito no cosmos; estas ramificaes no so outra coisa que os anjos secundrios cujas inumerveis modalidades penetram at os confins do criado.

    Os sioux estabelecem uma relao analgica entre os Quatro Ventos e os Quatro

    perodos cclicos, simbolizados pelas quatro plumas de guia que adornam o crculo sagrado utilizado na Dana do Sol e em outras ocasies; o primeiro perodo o da Pedra; o segundo, o do Arco; o terceiro, o do Fogo, o quarto, o do Cachimbo, representando cada um destes smbolos o meio espiritual do perodo respectivo.

    Assim mesmo, h quatro idades atravs das quais toda coisa criada deve passar: a

    primeira o Sul, que amarelo e a fonte de toda vida, e esta a primeira idade num ciclo histrico, a segunda o Oeste, que negro; a terceira o Norte, que branco; e a quarta, o Leste, que vermelho: a humanidade terrestre se fala atualmente na quarta idade, que terminar com um grande desastre.

    Esta repartio, que atribui Idade de ouro ao Sul e a Idade de ferro ao Leste,

    enquanto que as demais doutrinas tradicionais atribuem a primeira ao Norte e a segunda ao Oeste, pode surpreender a primeira vista, mas h que levar em conta aqui duas coisas: primeiramente, no que concerne Idade de ouro o Krita Yuga hindu, se bem exato atribu-lo ao Norte em razo da situao polar do Paraso terrestre, no menos certo que, de fato, o plo atual est coberto de gelo e que, desde o ponto de vista qualitativo, o Sul que corresponde efetivamente ao Paraso e, por conseguinte, Idade de ouro, de modo que o simbolismo em questo pode se fundamentar no calor e a fertilidade do Sul assim como na situao hiperbrea do Jardim primordial; em segundo lugar, no que concerne Idade de ferro o Kal -Yuga, se bem evidentemente justo atribu-lo, segundo a perspectiva geogrfica do Velho Mundo, ao Oeste, j que ali onde e sol se pe e onde h tido nascimento o materialismo moderno que estende sua ignorncia humanidade inteira, no menos certo que, para os peles vermelhas, este materialismo destruidor da Natureza vm do Leste; ali onde se situa o que, para os orientais, o obscuro Ocidente e dali de onde vieram estes espritos (washichun) de rostos plidos que exterminaram a raa vermelha; mas isto no impede de modo algum que o Salvador universal, o Messias esperado por todos os povos para o fim da Idade de ferro, venha igualmente do Leste, de modo que o simbolismo solar desta direo permanece intacto na teoria sioux dos quatro perodos cclicos.

    Na mesma ordem de idias, a cosmologia dos cheyennes insiste na posio rtica

    da sede da Tradio primordial: situa o Paraso terrestre no extremo Norte, numa ilha surgida das guas primordiais, onde reinava uma primavera perptua e na qual os homens e os animais falavam a mesma lngua; este relato descreve a continuao as tribulaes, em particular dos dilvios, depois das quais a raa vermelha ou melhor seus antepassados

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    primordiais se estabeleceram definitivamente no Sul, convertido a sua vez numa regio frtil.

    No queremos nos esquecer de mencionar aqui que o Chanumpa compreende, junto

    a seu simbolismo quaternrio, outro, ternrio este, que se refere aos trs mundos, aos quais correspondem respectivamente o cu, os pontos cardeais e a terra. Estes trs mundos, pelo demais, se encontram tambm indicados, entre os ndios corvos (Crow, Absaroka), na forma de trs anis pintados no mastro central da Dana do Sol, mastro que significa a rvore da Vida ou eixo do Mundo, conforme ao simbolismo hiperbreo; so ento interpretados como formando um ternrio (em sentido ascendente corpo, alma, esprito, ou grosseiro, sutil, puro)8.

    As funes essenciais da Existncia e seus dois fundamentos paterno e

    materno9 ou divino e existencial devem ser recordados e atualizados sempre de novo pelo Chanumpa afim de que o homem no perda nunca o contato com o Todo, do que como uma partcula; o rito do Chanumpa equivale a um vinculo e a uma consagrao, pois como nenhuma coisa boa pode ser feita pelo homem s, quero primeiro fazer uma oferenda e enviar uma voz at o Esprito do Mundo para que me ajude a ser verdadeiro>> (Alce Negro). Assim pois, o Chanumpa pontifex : o instrumento eucarstico que une ao homem, perseguido como est pelas limitaes do finito ao Infinito, e isto explica a venerao e o amor que os ndios lhe manifestam.

    Isto nos leva a considerar outro aspecto deste rito nele que aparece a analogia entre

    a fumaa do tabaco sagrado (kinni-kinnik) e o incenso: na maioria das tradies, o incenso em certo modo a resposta humana Presena divina; por conseguinte, a fumaa indica a presena espiritual do homem frente a Presena sobrenatural10 de Deus, como enuncia este encantamento iroqus: Sade! Sade! Sade!

    _______________________________________________________________________________________________________________________________________ 8 Recordaremos que, em diversas tradies, a imagem do Sol est tambm vinculada a da rvore, porque est representado nele como o fruto da Arvore do Mundo; abandona sua rvore ao principio de um ciclo e vem a repousar nele ao final, de modo que a rvore efetivamente a estao do Sol. (Ren Gunon, LArbre du Monde, em tudes traditionnelles, feveiro, 1939.) 9 O Grande Esprito em efeito o Pai ou o Av; a Terra a Me que engendra a todos os seres, a nica Me. Os ndios pawnies designam a Deus com o nome de Pai (Tirawa) e o distinguem mais claramente do Esprito manifestado (Kawaharu); na mesmo ordem de idias dizer, no que concerne a assimilao simblica do cu a Deus enquanto principio paterno os ndios ps negros chamam ao Grande Esprito Poder solar (Natosiwa), mas sem o identificar nunca com o sol visvel. 10 Este adjetivo no constitui um pleonasmo, porque a Presena natural de Deus no outra que a Existncia e as diversas expresses ou formas desta, tais como, precisamente, os smbolos da Natureza, o Sol, a Lua, o Biso e outros que para o ndio so wakan, sagrados. Citemos aqui este exemplo, de um simbolismo profundo, dada por um chefe ndio conhecida etnloga Alice C. Fletcher: Tudo o que se move se detm em um lugar para fazer ali seu ninho, em outro para descansar de seu vo. Um homem que caminha se detm quando quer. Assim como a Divindade se deteve. O sol, to radiante e to belo, um dos lugares em que Ela se deteve. Tem estado com a lua, as estrelas e os ventos. As rvores, os animais, todos esto donde ela se deteve, e o ndio pensa nestes lugares e envia para eles suas rezas para alcanar o local em que a Divindade se deteve, e receber ajuda e bnos.

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    Tu que criaste todas as coisas, escute nossa voz. Obedecemos agora a teus Mandamentos. O que Tu criaste volta at Ti, a fumaa do tabaco (sagrado) se eleva a Ti, pelo que se v que nossa palavra verdadeira11.

    No ritual do Chanumpa o homem representa o estado de individualismo; o

    espao com suas seis direes representam o Universal nele que o individual deve, transmutando-se, se reabsorver; a fumaa que se perde no espao e que se identifica com ele, indica esta transmutao do endurecido, opaco ou formal, no livre, transparente ou informal; indica, ao mesmo tempo, o irreal do eu e, por conseguinte a do mundo, que, espiritualmente, se identifica com o microcosmos humano.

    Mas esta reabsoro da fumaa no espao que Deustranscreve igualmente

    o mistrio da identidade em virtude da qual, para falar em termos sufes, o sbio no foi criado: o homem no seno ilusoriamente um peso subtrado do espao e ilhado nele; em realidade ele este espao, e deve converter-se no que , como dizem as Escrituras hindus12.

    O homem, ao absorver com a fumaa sagrada o perfume da Graa, e ao se exalar

    com ele at o ilimitado, se expande sobrenaturalmente no Espao divino, se assim pode se dizer; mas Deus tambm representado pelo fogo que consome o tabaco: este ltimo o homem ou, desde o ponto de vista macro csmico, o Universo; o espao se encarna aqui no fogo do Chanumpa, como os pontos cardeais se unem, segundo outro simbolismo, no fogo central.

    Segundo Hehaka Shapa, todo o que faz um ndio, o faz em um crculo, e assim

    porque o Poder do Universo atua sempre mediante crculos, e todas as coisas tendem a ser redondas. Nos dias de antigamente, quando ramos um povo forte e feliz, recebamos todo nosso poder do crculo sagrado da nao, e enquanto o crculo permanecia inteiro, o povo florescia. A rvore florida era o centro vivo do crculo, e o crculo das quatro direes o nutria.

    O Leste dava a paz e a luz, o Sul, o calor, o Oeste, a chuva, e o Norte, com seu

    vento frio e potente, dava a fora e a resistncia. Este conhecimento nos veio do mundo exterior (o Mundo transcendente, o Universo), com nossa religio. Todo o que faz o Poder do Universo o faz em forma de crculo.

    O cu circular, e ouvi dizer que a terra redonda como uma bola, e tambm as

    estrelas so redondas. _______________________________________________________________________________________________________________________________________ 11 Citado por Paul Radin em sue Histoire de la Civilisation indienne. 12 Os moinhos de orao budistas pertencem a um simbolismo inversamente anlogo ao do Chanumpa: enquanto que neste a Realidade divina se atualiza nas direes do espao para as quais se dirigem, a partir do centro que o estado de individualismo as aspiraes espirituais do individuo, o moinho de orao encarnar a Realidade divina na forma de uma Palavra revelada, fixada no espao pelas letras sagradas que a transcrevem, e bendizendo, mediante sua rotao, ao Universo em sua manifestao espacial. Segundo uma Upanishad, Brahma est no Norte, no Sul, no Leste, no Oeste, no Znite e no Nadir. No mesmo sentido, o Alcoro disse: Onde quer que v, ali encontra o rosto de Allh.

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    O vento, em sua fora mxima, se redemoinha. Os pssaros fazem seus ninhos em forma de crculos, pois tm a mesma religio que ns Nossas tendas (tipis) eram circulares como os ninhos dos pssaros e estavam sempre dispostas em crculo: o centro da nao, um ninho feito de muitos ninhos, nele o Grande Esprito queria que protegssemos a nossos filhos. ( Black Elk Speaks.)

    Assim sendo, todas as formas estticas da existncia se encontram determinadas

    por um arqutipo concntrico, material ou mental; centrado em seu ego qualitativo, totmico, quase impessoal, o ndio tende independncia, e por conseguinte indiferena, respeito ao mundo externo; se rodeia de silncio como se este fosse um crculo mgico, e este silncio sagrado porque transmite as influncias celestes.

    O ndio extrai sua fora espiritual deste silncio, cujo suporte natural a solido;

    sua orao habitual muda: o que esta exige no um pensamento, e sim uma conscincia do Esprito, e esta conscincia imediata e informal como a abbada celeste.

    Se o Grande Esprito atua sempre mediante crculos, desde outro ponto de vista

    tambm atua sempre mediante Quaternidade13, como indicam as direes espaciais e os ciclos temporais, e ento o crculo se converte em cruz, por isto o ndio, cuja vida se desenrola em certo modo entre o ponto central e o espao ilimitado, realiza as coisas estticas segundo o principio circular, e as coisas dinmicas. as aes segundo o princpio quaternrio, dizer, e conformidade com as quatro virtudes cardeais que so para ele o valor, a pacincia, a generosidade e a fidelidade.

    Esta estrutura profunda da vida ndia significa que o homem vermelho no se

    prope fixar-se nesta terra na que tudo, segundo a lei de estabilizao e tambm de condensao, e ainda de petrificao, ameaa em cristalizar-se; e isto explica a averso do ndio s casas, sobre tudo as de pedra, e tambm a ausncia de uma escritura que, segundo esta perspectiva, fixaria e mataria o fluxo sagrado do esprito.

    A civilizao europia, pelo contrrio, tanto em suas formas dinmicas como em

    suas formas estticas, profundamente sedentria e urbana: est, pois, ancorada no espao e se estende quantitativamente por ele, enquanto que a civilizao ndia tem seu eixo em certo modo fora d espao, no centro principal, no localizado; sua expanso ser por conseguinte qualitativa, no sentido de que no seno movimento puro, smbolo do _______________________________________________________________________________________________________________________________________ 13 Depois do que acabamos de dizer, no podemos deixar de dizer que o crculo tem tambm um significado dinmico em relao com a cruz considerada segundo seu simbolismo esttico; no falamos do quadrado, forma esttica por excelncia, porque no intervm na perspectiva nmade da que aqui se trata. Em efeito, se a cruz representa, no uma tendncia centrfuga, mas sim os pontos cardinais, o crculo a sua vez no indicar uma tendncia concntrica, mas sim o movimento circular dos Quatro Ventos ao redor do mundo, dizer, o passo da potencia ao ato dos quatro Princpios csmicos; a mesma imagem volta a aparecer na esvstica ( sustica), na que a cruz simples evidentemente esttica, enquanto que os colchetes so dinmicos e circulares.

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    ilimitado, e no delimitao quantitativa, mercantil, da extenso espacial. Importa por demais, precisar aqui que o Cristianismo, como outras religies do Velho Mundo, fixa o Celestial no plano terrestre e constri santurios com a matria mais esttica, a pedra; a tradio dos peles vermelhas, por sua parte, integra o terrestre o espacial se quer no Celestial onipresente, e tambm por isto a terra deve permanecer intacta, virgem, sagrada, tal como saiu das Mos divinas pois s as coisas puras refletem o Eterno14.

    O ndio no pantesta, mas sabe que o mundo est misteriosamente

    submergido em Deus. O que acabamos de dizer permitir compreender por que a natureza paisagem,

    cu, estrelas, elementos, animais selvagens so suporte necessrio da tradio dos peles vermelhas ao mesmo nvel que os templos para as demais religies; todas as limitaes impostas natureza por obras artificiais, pesadas, irremovveis e impostas ao homem por sua escravido em respeito a elas so, pois, sacrlegas, inclusive idlatras, e levam em si mesmas os germes da morte15.

    Resulta deste modo de ver que o destino dos peles vermelhas trgico no sentido

    prprio do termo: trgica uma situao sem sada que resulta, no de uma causa fortuita, mas sim do choque fatal de dois princpios.

    O esmagamento da raa ndia trgico porque o homem vermelho no podia seno

    vencer ou morrer16; h sucumbido porque representava um esprito incompatvel com o mercantilismo dos caras plidas. Poderia se definir este drama imenso como a luta, no s entre uma civilizao mercantil e materialista e outra cavalheiresca e espiritualista, mas tambm entre a civilizao urbana no sentido estritamente humano pejorativo deste termo, que implica uma idia de artifcio e de servilismo e o reino da Natureza, considerada como a vestimenta majestosa, pura e ilimitada, do esprito divino. Agora bem, a Natureza, da que o ndio se sente como a encarnao e que ao mesmo tempo seu santurio, acabar por vencer a este mundo artificial e sacrlego, pois ela a Vestimenta, o Hbito, a Mo do Grande Esprito. FRITHJOF SCHUON ________________________________________________________________________ 14 Esta perspectiva explica as grandes revolues nmades que, partindo das estepes mongis com uma impetuosidade inaudita, pretendiam varrer as cidades, lugares de corrupo e petrificao, da superfcie da terra; lembremos que o anel de Gengis Khan levava a esvstica, que aparece tambm com muita freqncia na arte dos peles vermelhas. Enquanto a atitude dos peles vermelhas frente a Natureza por uma parte e para as cidades por outra, Tcito assinala caractersticas de todo anlogas nos alemes: Consideram que o feito de encerrar entre muros e representar com aspecto humano aos deuses seria degradar sua majestade: lhes consagram bosques e selvas, e invocam, com os nomes de divindades, ao Mistrio que no vem mais que atravs do temor reverencial (deonumque nominibus appelant secrehum ilhud, quod sola reverentia vident). sabido que os germanos no tem cidades e que nem sequer poderiam suportar que suas casas se encostassem com outras. Marcelino, autor do sculo IV, refere que os germanos contemplavam as cidades romanas com horror, como se fossem prises e sepulcros, e que as abandonavam depois de hav-las tomado. 15 Como disse um guardio do Chanumpa a Joseph Epes Brown, Deus mostra uma bondade deixando a natureza intacta: Ainda que tenhamos sido pressionados de todas as maneiras possveis pelo homem branco, nos fica ainda muito que dar graas ao Grande Esprito, porque, inclusive neste perodo de obscurecimento, sua obra na natureza permanece sem mudana e nos recorda continuamente a Presena divina.

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    _______________________________________________________________________________________________________________________________________ 16 Cabe se perguntar quem foi menos nobre, se os mtodos desleais empregados durante o avano para o Oeste, ou os tratos infligidos aos ndios depois de sua derrota: A tentativa de suprimir a autoridade dos chefes e o ordem social indgena comeou com o agente que veio a Pine Ridge em 1879 Segundo sua convico sincera, o ndio no podia adaptar-se a sua nova situao mais que aceitando criar ganho e se estabelecer em terrenos destinados ao cultivo. Sem duvidas, como todos os homens de sua poca, o agente estimava tambm que isto devia ir acompanhado do abandono completo dos costumes ndios. Assim, quando os ndios pareciam se empenhar com demasiada tenacidade em seu costume de acampar em grupos e de celebrar conselho entre si, ou quando no se mostravam bastante solcitos para colaborar, retinha suas raes ou se servia da polcia para impor uma mudana pela fora A sufocao da sociedade indgena e da autoridade dos chefes foi seguida mais tarde por regulamentos oficiais que proibiam as danas ndias, os ritos, em uma palavra, os costumes pagos Com efeito, as crianas eram raptadas para ser incorporados s escolas do governo; lhes cortavam o cabelo, lhe tiravam suas roupas ndias. Lhes estava proibido falar sua prpria lngua Os que persistiam em seu antigo modo de vida e os que fugiam e eram capturados, eram encerrados. Na medida do possvel se prendia as crianas na escola ano atrs de ano com o fim de tir-los da influencia de seus familiares (Gordon Macgregor, Warriors without Weapons). 17 Caim, que matou a seu irmo Abel, o pastor, e se construiu uma cidade, prefigura a civilizao moderna civilizao que foi descrita como uma mquina mortfera desprovida de conscincia e de ideal (G. La Piana), nem humana, nem normal, nem crist (Eric Gill), e de fato, uma anomalia, por no dizer uma monstruosidade (Ren Gunon). disse: \os valores da vida declinam lentamente. O que fica uma aparncia de civilizao sem nenhuma de suas realidades (A. N. Whitehead). Crticas parecidas poderiam se citar indefinidamente. A civilizao moderna, por seu divorcio de todo principio, comparavel a um cadver sem cabea cujos ltimos movimentos so convulsivos e insignificantes. No , pelo demais, de suicdio, seno de assassinato do que queremos falar (Ananda K. Coomaraswamy, Sou eu e Guardio de meu Irmo?). Lhes chamamos selvagens porque seus costumes diferem dos nossos, que consideramos como a perfeio da urbanidade; eles pensam o mesmo das suas Ao ter poucas necessidades dispem de muito tempo livre para cultivar a alma mediante a conversao. Nosso gnero laborioso de vida o estima servil e baixo, comparado com o seu; e a instruo segundo a qual ns mesmos nos valorizamos, eles a consideram frvola e v (Benjamin Franklin, Remarks concerning the Savages of North America).

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    O CACHIMBO SAGRADO

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    HEHAKA SHAPA (ALCE NEGRO) (Fotografia de J. E. Brown, 1947.)

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    PREFACIO DE HEHAKA SAPA

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    Na grande viso que me sobreveio no alvorecer de minha vida, quando havia

    conhecido apenas nove invernos, havia algo cuja importncia me foi se revelando a medida que as luas passavam. Quero falar de nosso Cachimbo sagrado e do que significa para nosso povo.

    Os homens brancos, ao menos os que so cristos, nos disseram que Deus enviou

    seu Filho aos homens para restabelecer a ordem e a paz na terra; e nos disseram que Jesus Cristo foi crucificado, mas que deve regressar no dia do Juzo final, que ser o fim do ciclo deste mundo. Eu sei e compreendo que isto certo; mas que os homens brancos saibam que, tambm para os peles vermelhas, pela vontade de Wakan Tanka, o Grande Esprito, um animal se transformou em bpede para trazer o Cachimbo muito santo a seu povo; e sabemos, tambm, que esta Mulher Biso Branco que trouxe nosso Cachimbo sagrada aparecer de novo ao final deste mundo, acontecimento que ns, os ndios, sabemos que no est j muito distante.

    A maioria das pessoas chamam a nosso cachimbo Cachimbo da paz, mas em

    nossos dias j no h paz na terra, nem sequer entre vizinhos, e sei que isto assim desde muito tempo. Se fala muito sobre a paz, mas no se trata mais que de discursos.

    possvel, e esta minha splica, que por nosso Cachimbo sagrado, e graas a este

    livro no qual explicarei o que realmente nosso Cachimbo, a paz venha aos que so capazes de compreender; esta compreenso deve vir do corao e no unicamente da cabea. Aqueles se daro conta de que ns, os ndios, conhecemos ao nico Deus verdadeiro e lhe pedimos constantemente.

    Eu ditei este livro sem outro desejo que o de ajudar a meu povo a dar-se conta da

    grandeza e a verdade de nossa prpria tradio, e tambm para facilitar a vinda da paz terra, no s entre os homens, mas entre eles e toda a Criao.

    Devemos compreender que todas as coisas so obra do Grande Esprito. Devemos

    saber que Ele est em toda coisa: nas rvores, nas ervas, nos rios, nas montanhas, e em todos os quadrpedes e os povos alados; e, o que ainda mais importante, devemos compreender que Ele tambm mais alm de todas estas coisas e de todos estes seres.

    Quando tivermos compreendido tudo isto profundamente em nossos coraes,

    temeremos, amaremos e conheceremos ao Grande Esprito; ento nos esforaremos para ser, atuar e viver como Ele quer.

    HEHAKA SHAPA (ALCENEGRO) Manderson, S. D., dezembro de 1947

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    A CHEGADA DO CACHIMBO SAGRADO

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    Muitos invernos se passaram desde que isso aconteceu: dois lakotas1 que tinham sado para caar e estavam observando sobre uma colina; viram ao longe, no mesmo instante em que saa o sol, algo que avanava em sua direo de um modo estranho e maravilhoso.

    Quando se aproximou mais, viram que era uma mulher muito bela, vestida com

    brancas peles de gamo, e que levava sob o ombro direito uma bolsa com franjas. Ento um dos homens teve pensamentos impuros e falou a seu amigo; mas este lhe disse para no ter tais pensamentos, porque certamente aquela era uma mulher wakan, uma mulher sagrada2.

    Logo esta mulher estava prxima; e depois de soltar sua bolsa, pediu ao homem

    que tinha tido pensamentos impuros que se aproximasse dela. Quando o homem se aproximou da mulher misteriosa, uma grande nuvem lhes envolveu, e quando, pouco depois, se dissipou, a mulher continuava em p e no solo estava o homem mau reduzido condio de um esqueleto com vermes devorando seus ossos3.

    A mulher disse ento ao outro, ao homem bom: Considere isso que viu! Vou ao encontro de teu povo e desejo falar a teu chefe

    ehloghecha Najin, Chifre Oco Em P. Regressa e diga a ele que prepare uma tenda espaosa onde reunir todo seu povo e ira se preparar para minha chegada. Quero dizer-lhes algo muito importante.

    O jovem caador correu para a tenda4 de seu chefe e lhe narrou todo o acontecido,

    que esta mulher misteriosa viria lhe visitar e que teria que preparar sua recepo. O chefe Chifre Oco Em P dispunha naquela poca de vrias tendas desmontadas, e

    mandou fazer com elas uma grande, tal como havia pedido a mulher5. Rapidamente enviou um mensageiro para avisar a tribo que deveriam colocar suas

    melhores roupas e se reunir sem tardar na tenda. Todos estavam muito intrigados enquanto aguardavam na vasta tenda a chegada da

    mulher celeste, e todos se perguntavam o que poderia querer lhes dizer.

    _________________________________________________________________________ 1 Os lakotas so os sioux do ramo teton. Alce Negro pertencia ao grupo ogalala deste ramo. As outras trs tribos dos sioux propriamente ditos so os dakotas do oeste, os santi e os yankton (nakotas). E quanto a famlia lingstica sioux, compreende muitas outras tribos, principalmente os corvos, os hidatsa e os mandan. 2 Traduzimos esta palavra wakan em si mesma por sagrado ou santo as vezes por mistrio ainda por poder ou poderoso, como fazem muitos etnlogos. Estes ltimos termos podem ser exatos, mas no do completamente o sentido da palavra wakan; no devemos esquecer, que para os sioux, como para os povos tradicionais em geral, o poder ou o carter sagrado de um ser ou de uma coisa est em proporo capacidade da coisa para refletir o mais diretamente possvel o Principio ou os Princpios que esto em Wakan Tanka; este Um. O termo poder equivocado no sentido de que pode sugerir uma fora puramente terrestre ou psquica. 3 Alce Negro nos explicou que isto no deve ser interpretado simplesmente como um acontecimento temporal, mas tambm como uma verdade eterna. Todo homem nos disse que est apegado aos sentidos e s coisas deste mundo e que, por isto, vive na ignorncia, devorado por serpentes suas prprias paixes. 4 O tipi, tenda cnica de pele de biso, utilizada pelos ndios das plancies.

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    Logo os jovens que vigiavam a chegada da desconhecida anunciaram que a percebiam ao longe, se aproximando com graa e dignidade; e de repente a mulher misteriosa entrou na tenda e lhe deu a volta no sentido do movimento do sol 6, e aps completar toda a volta se deteve frente Chifre Oco Em P 7. Pegou a bolsa de seu ombro e, a suspendendo com as duas mos diante do chefe, lhe disse:

    Contemple isso e O ame sempre! uma coisa muito sagrada - lilla wakan -, e

    deveis sempre considera-la como tal. Nunca um homem impuro dever ser autorizado a v-la, pois nesta bolsa se encontra um Cachimbo sagrado. Com ele, nos invernos futuros, enviars vossa voz a Wakan - Tanka, vosso Av e Pai 8.

    Depois de falar assim, a mulher celeste tirou da bolsa um Chanumpa, e tambm

    uma pedrinha redonda que colocou no solo. Dirigindo o Cachimbo, pela haste, para o cu, disse:

    Com este Cachimbo de mistrio caminhareis pela Terra; pois a Terra vossa Av

    e Me 9 e sagrada. Cada passo dado sobre ela dever ser como uma reza. O fornilho deste Cachimbo de pedra vermelha; a Terra. Este biso jovem que est gravado na pedra, e que olha para o centro, representa aos quadrpedes10 que vivem sobre vossa Me.

    A haste do Cachimbo de madeira, e isso representa tudo o que cresce sobre a

    Terra. E essas doze plumas que pendem de onde a haste penetra no fornilho so de Wambali Galeshka, al guia Pintada11, e representam a guia e a todos os seres alados do ar. Todos estes povos, e todas as coisas do Universo, esto vinculados a ti, que fumas o Cachimbo; todos enviam suas vozes a Wakan - Tanka, o Grande Esprito.

    Quando rezares com este Cachimbo, rezareis por todas as coisas e com elas.

    _________________________________________________________________________ 5 A tenda de cerimnia dos Sioux construda com vinte oito varas; uma delas a clave que suporta todas as demais, e esta vara, dizem os sbios, representa o Grande Esprito que sustenta o Universo; este representado pelo conjunto da tenda. 6 A circundar segundo o movimento do sol de uso corrente entre os sioux; visto que, o movimento inverso se utiliza igualmente em certas ocasies, para danas ou em ritos que precedem ou seguem a uma catstrofe: este movimento, com efeito, o dos Seres do Trovo que sempre atuam de modo contrario s leis gerais da natureza, porque chegam de uma maneira terrvel e sempre trazem a destruio. A razo da circundao solar foi explicada por Alce Negro nestas palavras:

    No o Sul a fonte da vida? E a rama florida, no vem verdadeiramente dali ? E o homem, no vem dali, avanando para o sol poente de sua vida? No se aproxima depois ao frio Norte, onde esto os cabelos brancos? E depois, no chega, se ainda vive, a fonte de luz e de conhecimento que o Leste? No regressa, por ltimo, ao lugar de onde veio, que sua segunda infncia, a fim de devolver sua vida a

    todo o vivo, e sua carne Terra de onde veio? Quanto mais pensais nisso, mais significados haver (Black Elk Speaks, op. cit.).

    7 Chifre Oco Em P, em sua qualidade de chefe da tribo, devia estar sentado a Oeste, que era o lugar de honra; do Oeste, na tenda, se v a porta, que o Leste, de onde vem a luz, a qual simboliza a sabedoria; um chefe deve possuir sempre esta iluminao para poder guiar a sua tribo de uma maneira wakan, sagrada, conforme ao mistrio. 8 Wakan Tanka como Av o Grande Esprito enquanto independente da criao: ento no qualificado, no determinado, no sentido da Divindade (Godhead) da doutrina crist, ou do Brahma-Nirguna da doutrina hindu. Wakan Tanka como Pai o Grande Esprito considerado em relao com sua manifestao, seja como Criador, como Conservador ou como Destruidor; ento o Deus (God) cristo ou o Brahma-Saguna hindu.

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    A mulher celeste tocou ento com o extremo do Cachimbo a pedra redonda posta no solo, e disse:

    Com este Cachimbo estareis unidos a todos os vossos antepassados: vosso Av e

    Pai, vossa Av e Me. Vosso Pai Wakan Tanka tambm o presenteia com esta pedra redonda que feito da mesma pedra vermelha que o fornilho do Cachimbo. a Terra, vossa Av e Me, e o lugar onde vivereis e crescereis.

    Esta Terra que Ele vos deu vermelha, e os homens que vivem nela so vermelhos;

    e o Grande Esprito vos deu tambm um dia vermelho e um caminho vermelho12. So venerveis; no os esqueceis.

    Cada aurora que chega um acontecimento sagrado, e todos os dias so sagrados,

    pois a luz vem de vosso Pai Wakan Tanka; e deveis tambm concordar sempre que os homens e todos os demais seres que esto nesta Terra so sagrados e devem ser tratados como tal13.

    Desde agora o Cachimbo de mistrio estar nesta Terra vermelha, e os homens

    tomaro o Cachimbo e enviaro suas vozes ao Grande Esprito. Estes sete crculos14 que vs na pedra significam muitas coisas, pois representam os sete ritos segundo os quais se utilizar o Cachimbo.

    O primeiro grande crculo representa o primeiro rito que vos transmitirei, e os

    outros seis crculos representam os ritos que vos sero revelados diretamente, a seu devido tempo15.

    Chifre Oco Em P, seja respeitoso a estes presentes e para com teu povo, porque

    so sagrados. Com este Cachimbo, os homens prosperaro e todo o bem vir a eles. 9 Igualmente temos que distinguir, em Wakan Tanka, entre o Av e o Pai, tambm se distingue, em Maka, a Terra, entre a Av e a Me; esta a Terra considerada como produtora de todas as coisas que crescem, por tanto em ao, enquanto que a Av a substancia de todas estas coisas, ou seja a potencialidade. Esta distino , no fundo, a que estabelecem os escolsticos entre a natura naturata e a natura naturans. 10 O biso era para os ndios o mais importante de todos os animais quadrpedes, porque lhes proporcionava seu alimento, suas roupas, e tambm suas tendas, que eram feitas de peles curtidas. Como o biso continha em si todas estas coisas e por muitas outras razes era um smbolo natural do Universo, dizer, da totalidade das formas manifestadas. Todas as coisas se encontram simbolicamente contidas neste animal: a terra e tudo o que cresce nela, todos os animais, inclusive os povos bpedes ; cada parte do biso representa, para o ndio, uma destas categorias da criao. Igual acontece com as quatro patas do biso: representam as quatro idades, que so uma condio da criao. 11 O guia Pintada Wambali Galeshka voa mais alto que todas as demais criaturas e v todas as coisas, e por isto considerada como a funo reveladora de Wakan Tanka. uma ave solar, suas plumas so parecidas com os raios do sol; quando um ndio leva uma destas plumas no importa como, inclusive, simplesmente na mo , aquela representa, ou melhor a Presena Real. O ndio que leva o tocado feito de plumas de guia se converte realmente na guia, dizer, se identifica em principio ou virtualmente com o resplendor de Wakan Tanka. A guia Pintada corresponde ao que a doutrina hindu denomina Buddhi: o Intelecto, que o principio informal e transcendente de toda manifestao. Buddhi definido como o raio que emana diretamente de Atm, o Sol espiritual. Todo isto permitir compreender o que significa o canto com tanta freqncia mal interpretado da Dana dos Espritos (Ghost Dance): Wambali Galeshka wanyan nihi youwe: A guia Pintada vem para me levar ao leo.

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    Do alto, o Grande Esprito vos deu este Cachimbo afim de que, graas a ele, podereis obter o conhecimento. Estai sempre agradecidos por este grande presente!

    Agora, antes que eu v, desejo vos dar instrues sobre o primeiro rito com o qual

    teu povo dever utilizar este Cachimbo. Que para ti seja sagrado o dia em que um dos teus morra! Devers ento guardar

    sua alma16 como vou lhe explicar, e assim ganhars muito em poder, pois cada alma12 fortalecer tua abnegao e teu amor a teu prximo.

    Enquanto um dos vossos permanea com sua alma junto a teu povo, estareis em

    condies de enviar vossa voz ao Grande Esprito atravs dela17. Que seja igualmente sagrado o dia em que uma alma se libere e regresse a sua

    morada, que Wakan Tanka; porque nesse dia quatro mulheres sero santificadas e com o tempo traro filhos que caminharo pela luz da vida segundo o mistrio, dando exemplo a teu povo.

    2 O caminho vermelho o centro que enlaa o Norte com o Sul; a via boa e reta, porque, para os ndios, o Norte Pureza e o Sul Vida. Este caminho vermelho assim similar via reta e estreita do Cristianismo: a linha vertical da cruz, ou tambm o irt-el-mustaqm do Alcoro. Por outra parte, existe, na cosmologia dos sioux, o caminho azul ou negro que enlaa o Oeste com o Leste, e que a via do erro e da destruio. O que viaja por este caminho disse Black Elk est distrado, dominado pelos sentidos, e vive para si mesmo mais que para seu povo. O povo, deve se entender aqui no sentido do prximo do Evangelho. 13 Quando o ndio mata na caa ou na guerra, deve realizar ritos de reconciliao, de purificao ou de duelo, a fim de restabelecer o equilbrio perdido. 14 Os sete crculos esto dispostos circularmente por ordem de tamanho, de modo que o menor se encontra situado junto ao maior. 15 Segundo Alce Negro, dois destes ritos eram conhecidos pelos sioux antes da chegada da Mulher celeste, a saber: os ritos da cabana de suar e rito para obter uma viso. O ritual do Chanumpa foi adicionado a estas duas tcnicas espirituais. 16 Ao traduzir a palavra sioux wanaghi, temos empregado o termo alma e no o de esprito que muitos etnlogos preferem; pensamos que o primeiro termo, entendido em seu sentido cristo e escolstico, mais exato, porque o que guardado e purificado neste rito a totalidade dos elementos psquicos do ser; estes elementos, se bem que esto localizados em uma forma material habitualmente a raiz dos cabelos, so em realidade de natureza sutil ou anmica, e intermediaria entre o corpo material e o puro Esprito. No devemos esquecer que, por outra parte, que o Esprito puro a presena de Wakan Tanka quem est no centro dos elementos sutis e materiais. A alma assim retida, de modo que j ser descrito, em uma prolongao do estado individual, a fim de que a parte sutil ou psquica do ser seja purificada e possa consumar-se uma liberao virtual. Isto muito parecido ao estado que a doutrina catlica denomina o purgatrio. Para explicaes mais detalhadas desta importante questo, ver Ren Gu non, LHomme et son Devenir selon le Vdnta.

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    Me olhem, porque sou eu o que levaro sua boca, e graas a isso se convertero em santos.

    O homem que guarda a alma de uma pessoa deve ser virtuoso e puro, e deve se

    servir do Cachimbo para que todos, com a alma, enviem juntos suas vozes ao Grande Esprito.

    O fruto de vossa Me Terra, e o fruto de tudo o que leva, sero assim benditos, e

    teu povo marchar ento segundo o mistrio pelo caminho da vida. No se esquea que o Grande Esprito vos deu sete dias para lhe enviar vossa voz.

    E enquanto isso acontecer, vivereis. O resto vos ser revelado pelo Grande Esprito. Ento a mulher celeste se virou para sair da tenda, mas voltando-se novamente para

    Chifre Oco Em P, disse: Olha este Cachimbo! Lembre-se sempre o quanto sagrado Ele , e o trate assim,

    porque ele te guiar at tua meta. Veja! Em mim h quatro idades18. Agora eu vou, mas olharei pelo teu povo durante cada uma destas idades e, ao final, regressarei.

    Depois de dar a volta na tenda seguindo o movimento do sol, o mulher misteriosa

    saiu; mas, a uma curta distncia, se virou para o povo e se sentou. Quando se levantou, as pessoas viram com surpresa que ela havia se transformado em um jovem biso vermelho e castanho. Ento esse jovem biso, depois de se distanciar um pouco, se deitou no cho e se espojou, e olhou para as pessoas; e quando se levantou novamente, era um biso branco. Distanciou-se e se espojou pelo solo, e se transformou em um biso negro, que se distanciou mais, se inclinou para cada uma das quatro Regies do Universo, e desapareceu por detrs da colina. 17 bom disse Alce Negro ter algo frente a ns que nos recorde a morte, porque isto nos ajuda a compreender a no permanncia da vida terrena, e esta compreenso nos pode ajudar a nos preparar para nossa prpria morte. O que est bem preparado sabe que ele no nada ao lado de Wakan Tanka, que tudo; conhece ento este Mundo divino que o nico real. 18 Segundo a mitologia dos sioux, ao principio do ciclo um biso foi colocado no Oeste para reter as guas que ameaam a Terra. Cada ano este biso perde um pelo, e em cada uma destas idades cclicas perde uma pata. Quando todos seus pelos e suas quatro patas tiverem desaparecido, as guas inundaro de novo o mundo e o ciclo ter chegado a seu fim. O mesmo mito voltas a falar, em uma forma sumamente concordante, na tradio hindu: cada pata do touro Dharma a Lei divina representa uma idade (yuga) do ciclo total (mah-yuga), e em cada idade o touro retira uma pata. No curso destas quatro idades, a espiritualidade se obscurece progressivamente, at que o ciclo termine com um cataclismo; ento restaurada a espiritualidade primordial e um novo ciclo comea. Os peles vermelhas, como os hindus, admitem que em nossa poca, o biso ou o touro se sustenta sobre sua ltima pata e est quase pelado. Se encontram mitos anlogos em outras tradies.

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    A GUARDA DA ALMA

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    Com este rito purificamos as almas1 de nossos mortos e nosso amor pelo prximo

    aumenta. As quatro mulheres puras que comem a parte sagrada do biso2, como descreverei, lembraro sempre que seus filhos sero santificados e que, por isso, devero ser criados conforme o mistrio.

    A me deve sacrificar tudo por seus filhos e desenvolver nela e neles um grande

    amor por Wakan Tanka, o Grande Esprito, pois com o tempo estas crianas se transformaro em homens de mistrio e em guias da nao, e tero o poder de converter em santos aos demais. No incio no somente guardvamos as almas de nossos grandes chefes, mas depois comeamos e guardar as de quase todos os homens virtuosos.

    Guardando uma alma segundo os ritos prescritos, tal como os recebemos de Ptesan

    Win - A Mulher Biso Branco, e purificamos afim de que esta alma e o Esprito se convertam em um e para que possa regressar ao lugar onde nasceu Wakan Tanka e j no tenha nenhuma necessidade de errar pela terra, como o caso dos homens perversos; alm disso, a guarda de uma alma nos ajuda a recordar de nossa mortalidade, assim como do Grande Esprito que alm de toda morte.

    Quando se guarda uma alma, muitos homens se renem na tenda dela para rezar; e

    no dia em que a alma liberada todos se renem e enviam suas vozes ao Grande Esprito por intermdio desta alma que vai viajar por seu cu sagrado. Mas vou lhe explicar primeiro como nosso povo realizou este rito na sua origem.

    Um bisneto de Chifre Oco em P tinha um filho ao qual ele e sua mulher gostavam

    muito; mas chegou um dia em que esta criana morreu, o que entristeceu enormemente a seu pai, que foi a contar seu sofrimento ao guardio do Chanumpa, que naquela poca era Chifre Oco Alto.

    Fomos instrudos pila Mulher Biso no uso do Cachimbo sagrado e na guarda de

    uma pessoa falecida. Agora a perda de meu amado filho me causa uma extrema tristeza, e desejo guardar sua alma como nos foi ensinado; e visto que s tu o guardio do muito santo Chanumpa, te peo que me instruas.

    How! Hechetu welo! Est bem!, disse Chifre Oco Alto; elos dois foram ao lugar

    onde repousava a criana e l estavam as mulheres chorando. Quando chegaram, as lamentaes cessaram; Chifre Oco Alto se aproximou da criana e disse:

    Este menino parece morto, mas no est realmente, pois guardaremos sua alma

    entre ns, e graas a ela nossos filhos e os filhos de nossos filhos se convertero em santos.

    _________________________________________________________________________1 Mediante um decreto que revela tanta incompreenso como hostilidade, este rito da guarda da alma foi proibido pelo governo em 1890, e se chegou inclusive a exigir que todas as almas guardadas pelos sioux fossem liberadas em certa data fixada arbitrariamente por decreto. Para uma descrio deste rito tal como foi praticado em 1882, ver Alice C. Flercher, The Shadow or Ghost Lodge (16 and 17 AnnualReport of the Peabody Museum, vol. III, nms. 3 y 4; Cambridge, 1884). 2 O biso, que representa o Universo, contem todas as coisas, como o cavalo ashwamdha. A parte que corresponde ao gnero humano e tambm a Mulher Biso Branco certo pedao de carne tomado do cotovelo. Esta carne para os ndios, mutatis mutandis, o que a Sagrada Eucaristia para os cristos; o Chanumpa tem o mesmo papel, mas a analogia formal ento muito menos direta.

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    Vamos agora fazer como a Mulher Biso e o Chanumpa nos ensinaram. desejo do Grande Esprito que assim se faa. E, pegando uma mecha dos cabelos da criana, Chifre Oco Alto rezou:

    Wakan Tanka, nos veja! a primeira vez que fazemos tua vontade da maneira,

    como Tu ensinaste atravs da Mulher Biso. Guardaremos a alma desta criana para que nossa Me Terra leve seus frutos, e para que nossos filhos caminhem pela iluminao da vida conforme o mistrio.

    Chifre Oco Alto comeou ento a purificar a mecha de cabelos da criana;

    trouxeram uma brasa e colocaram encima um pouco de erva aromtica3 (wachanga). Wakan Tanka! rezou de novo Chifre Oco Alto , esta fumaa da erva

    aromtica vai subir at Ti e se estender atravs do Universo; seu perfume ser sentido pelos seres alados, os quadrpedes e os bpedes, porque compreendemos que todos somos parentes; que todos nossos irmos animais nos amem e j no nos temam mais!

    Chifre Oco Alto pegou a mecha de cabelos e, a suspendendo sobre a fumaa, a

    dirigiu para o Cu, para a Terra e para as quatro Direes do Universo; e disse alma que estava nos cabelos:

    Olha alma! O lugar desta terra onde mores ser um lugar sagrado; este centro far

    que a nao seja sagrada como tu. Nossos filhos caminharo desde agora pela luz da vida com corao puro e passo firme. Depois de purificar a mecha na fumaa, Chifre Oco Alto se virou para a me e o pai da criana, e disse:

    Receberemos um grande saber graas a esta alma que acaba de ser purificada.

    Sejam bons com ela e a amem, porque foi santificada. Cumprimos o desejo do Grande Esprito tal como nos ensinou a Mulher celeste; no recordam de como, ao deixarmos, se transformou a segunda vez? Este gesto representava a guarda da alma que vamos realizar.

    Que isto nos ajude a recordar que todos os frutos dos seres alados, dos bpedes e

    dos quadrpedes so na realidade presentes do Grande Esprito. Todos so sagrados e devem ser tratados como tal. A mecha foi envolta numa pele de bfalo e esse precioso saquinho foi colocado num lugar especial da tenda. Em seguida Chofre Oco Alto pegou o Chanumpa e, depois de pass-lo na fumaa, o encheu com cuidado, segundo o rito; e dirigindo a haste para o cu ele rezou:

    Av nosso, Wakan Tanka, Tu s tudo, e sem dvida est por cima de tudo! Tu s

    o Primeiro. Tu o tens sido sempre. Esta alma que guardamos estar no centro do crculo sagrado desta nao: graas a este centro nossos filhos possuiro um corao valente e avanaro pelo reto caminho vermelho segundo o mistrio. ____________________________________________________________________________________________ 3 A erva aromtica wachanga que os ndios preparam em forma de trana tem a mesma funo ritual que o incenso nos distintos cultos do velho mundo.

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    Wakan Tanka!, Tu s a Verdade. Os homens que aproximam seus lbios a esse Chanumpa se convertero na Verdade; no haver neles nada impuro. Nos Ajude a caminhar sem travas pelo caminho da vida, com nossos pensamentos e nossos coraes constantemente fixos em Ti!

    Ento se acendeu e fumou o Chanumpa, e deu a volta ao crculo no sentido do

    movimento do sol. Nele, o mundo inteiro foi oferecido ao Grande Esprito. Quando o Chanumpa voltou a Chifre Oco Alto, este o esfregou com erva aromtica para cada lado Oeste, Norte, Leste, Sul a fim de purific-lo, porque poderia ter sido tocado por algum indigno; e voltando-se para a assistncia disse:

    Parentes meus, este Chanumpa um santurio. Todos sabemos que no pode

    mentir. Nenhum homem que tenha alguma mentira em seu corao pode lev-lo a sua boca.

    Alm disso, parentes meus!, nosso Pai Wakan Tanka nos fez conhecer sua

    vontade aqui na terra, e devemos sempre cumprir o que Ele deseja se queremos ir pelo caminho sagrado.

    a primeira vez que realizamos este rito da guarda alma, e ser de grande proveito

    para nossos filhos e os filhos de seus filhos. parentes meus, Av e Me Terra, somos de terra e pertencemos a Ti! Terra

    Me de quem recebemos nosso alimento!, Tu cuidas do nosso crescimento como fazem nossas prprias mes.

    Cada passo que damos sobre Ti deve ser conforme o mistrio; cada passo deve ser

    como uma orao. Se lembrem disto, irmos e irms: o poder desta alma pura os acompanhar em vosso caminho, pois ela tambm fruto da Terra Me; uma semente que, plantada em vosso centro, crescer com o tempo em vossos coraes e far que as geraes caminhem conforme ao mistrio.

    Chifre Oco Alto levantou as mos4 e enviou sua voz ao Grande Esprito: Pai e Av Wakan Tanka!, Tu s o incio e o fim de todas as coisas. Pai meu Wakan Tanka, Tu s o Uno que vigia e mantm a tudo o que vive. Av minha!, Tu s a fonte terrestre de toda existncia. Me Terra, os frutos que levas so a fonte de vida dos povos da Terra. Tu velas sem cessar por teus frutos, como uma me.

    ____________________________________________________________________________________________ 4 Elevamos as mos, quando rezamos, porque dependemos inteiramente do Grande Esprito; sua Mo generosa atende todas as nossas necessidades. Depois golpeamos o solo porque somos miserveis criaturas, gusanos que se arrastam frente sua presena. Palavras de um sioux ps negros ao Padre de Smet (Life, Letters and Travels; F. P. Harper, Nova York, 1905, p. 253).

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    Que os passos que damos sobre Ti durante a vida sejam sagrados e sem fraqueza! Nos ajude, Wakan Tanka!, a caminhar pelo caminho vermelho com passo firme. Que ns, que somos tua nao, possamos estar de p perante Ti de uma maneira

    que Te alegre! Nos d a fora que vem da compreenso de Teus Poderes! Porque nos foi feito conhecer Tua vontade, queremos caminhar santamente pela

    estrada da vida, levando em nossos coraes o amor a Ti e o conhecime