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Trabalho Final de Graduação - FAU USP
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o caso prestes maian o c o n t e x t o d a l u t a p e l o c u m p r i m e n t o d a
f u n ç ã o s o c i a l d a p r o p r i e d a d e u r b a n a
daniela perre rodrigues
orientação Ana Claudia Castilho Barone
banca
Ana Claudia Castilho Barone
Cibele Saliba Rizek
João Sette Whitaker Ferreira
deZeMbro 2012
trabalho final de graduação
faculdade de arquitetura e urbanismo da universidade de são paulo
1 Peter Marcuse, Searching for the just city. Debat in urban theory and practice [Em busca da cidade justa. Debates em teoria e prática urbana]. Routledge, Nova York, 2009.
“A idéia de cidade justa é ir além de simplesmente remediar as injustiças, mas enfrentar as causas estruturais das
injustiças, sem vícios nem delongas.” 1
aGraDecimeNtos
Agradeço, primeiramente, à minha família, responsável por toda minha
formação e transformação. Especialmente à minha mãe, aos meus dois pais,
e à minha avó, por cada sorriso, cada abraço, cada palavra ou cada silêncio.
E também às minhas queridas irmãs: Aline, Anelise, Anna e Thaís, por
cada inesquecível momento que passamos juntas. Agradeço ao Gabriel, pelo
amor, respeito e por estar ao meu lado compartilhando, de maneira incrível,
tudo que a vida nos proporciona.
Aos velhos amigos, por toda a paciência nesse ano em que estive tão longe,
mas tão perto ao mesmo tempo, pois não saíram do meu pensamento. Aos
amigos que descobri nesses seis anos de FAU e que certamente continuarão
comigo. Deixo-os representados aqui através de um único nome, Marina: fiel
companheira nessa trajetória, dividindo comigo todos os momentos em que
nada ou em que tudo fazia sentido.
Aos colegas da Peabiru, pelo convívio diário nesse ano, por toda a paciência
com o meu interminável assunto sobre o tfg, pelo aprendizado constante,
pela troca e principalmente pela prática do diálogo.
E, finalmente, agradeço às minhas orientadoras, que tornaram este
trabalho possível. À Malu, pelo incentivo e motivação inicial. À Karina, pelos
conselhos e pelo sorriso. E à Ana, por cada orientação, pelos ensinamentos,
pela confiança e paciência, e sobretudo, pelos saberes da cidade.
Sem vocês, não teria sido possível.
ÍNDice
primeiras palavras 11
PARTE 01construção da idéia de limitar o direito absolutode propriedade e subordiná-lo ao cumprimento deuma função social 15
PARTE 02contradições entre os avanços jurídicos e asações municipais 27
PARTE 03o caso prestes maia 45
últimas palavras 75
ANEXOconstrução da estrutura fundiária no Brasil 77
referências bibliográficas 103
lista de imagens 117
lista de abreviaturas 121
2 MARICATO, 2001, p. 88, apud NETO, 2006, p. 142.
11
primeiras palavras
Diante do desordenado crescimento das cidades brasileiras e da expansão
de suas áreas periféricas carentes de infra-estrutura urbana, apenas uma
minoria da população tem acesso à moradia, transporte, saúde, educação,
espaços públicos, enfim, acesso à cidade. Esse processo tem sido estimulado
pelo mercado imobiliário e consentido pelo poder público. Dessa maneira,
o atual cenário é de grande exclusão social, de cidades produzidas como
espaço da minoria e da ilegalidade atingindo a maior parte da população,
que vive sob essa constante segregação social e espacial.
Não parece ser por falta de leis reguladoras que essa situação se mantém e
se agrava. A legislação urbanística brasileira, considerada muito avançada por
diversos autores, entre eles o jurista Edésio Fernandes, pressupõe políticas
públicas que viabilizem e fiscalizem sua aplicação. Entretanto, há uma prática
constante em nosso país de se aplicar a lei de acordo com as circunstâncias,
tornando a legislação ineficaz quando contraria fortes interesses ou quando
o assunto são direitos sociais.
[...] a lei é importante, mas não basta. Sua aplicação também
passa pela correlação de forças especialmente em países como
o Brasil no qual o poder político, patrimônio e poder econômico
se confundem.2
Sendo assim, as precárias condições urbanísticas em que vivemos não
parecem ser decorrentes da falta de planejamento ou da omissão do
poder público. Pelo contrário, são fruto de um pacto político-econômico
que ordena, de acordo com os interesses daqueles que detém o poder, o
desenvolvimento das cidades.
12
3 MARICATO, 1999, p. 08.4 FERREIRA, 2012.5 BRASIL. Constituição Federal, 1988.
As tragédias que atingem as cidades freqüentemente, como
enchentes, deslizamentos, crescimentos das favelas, poluição, enfim,
participam do cotidiano da sociedade sem que ela se dê conta de que o
fio que liga todos esses fatos está na base do processo de crescimento
urbano brasileiro.3
O direito privado de propriedade, com as suas raízes muito firmes em cinco
séculos de formação da sociedade brasileira, pode conduzir ao favorecimento
dos interesses particulares dos proprietários de terra, em detrimento dos
interesses coletivos. Esse conflito de interesses delineia a produção das
cidades e pode se configurar como um impedimento à efetivação do direito
à moradia e à cidade.
Cidades que são a representação espacial de uma sociedade
cindida, herdeira da lógica escravocrata, onde as elites exercem
uma hegemonia onipotente, e utilizam-se do Estado e da Justiça
para quase sempre passar para trás o bem coletivo, garantindo seus
interesses particulares.4
Por muito tempo, a propriedade da terra foi fundamentada no patrimônio
individual, com direito assegurado a um indivíduo de destiná-la ao fim
que lhe parecesse melhor; entretanto, essa abordagem foi evoluindo no
sentido dos deveres do proprietário em relação ao coletivo, sofrendo uma
demorada redefinição.
art. 182 §2º
A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende
às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no
Plano Diretor.5
13
Esse trabalho pretende justamente discutir essa redefinição do direito
de propriedade e sua subordinação legal ao cumprimento de uma função
social, e analisar a contradição entre esses avanços jurídicos e a aplicação
deles através de ações municipais.
[...] aquilo que se festeja hoje como um salto de modernidade,
a formação de cidades guiadas pela exclusão social, o consumo
exacerbado e a defesa incondicional da propriedade, é na verdade
um caminho inexorável para a barbárie. É hora do Brasil se
organizar para uma verdadeira rebelião cívica urbana, para deixar
às futuras gerações cidades verdadeiramente democráticas e
socialmente justas.6
Para isso, o trabalho foi composto por três capítulos. O primeiro versa
sobre a luta pela Reforma Urbana, contexto esse em que se estabeleceu
a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade. O segundo pretende
introduzir questões sobre as contradições existentes entre o estatuto jurídico
conquistado e as ações do poder público municipal. O terceiro capítulo
consiste em um estudo sobre o caso do Edifício Prestes Maia, que já foi
ocupado três vezes por movimentos de moradia nos últimos 10 anos, e
o direito à propriedade privada daquele imóvel continua sendo absoluto e
mais protegido do que o direito à moradia.
Esse estudo foi realizado fundamentalmente a partir de dois tipos de
materiais: as teses acadêmicas que já estudaram o assunto e as notícias
de jornais publicadas na mídia nesse período de 2002 até os dias de hoje.
Optamos por não entrar em contato direto com o movimento de moradia
responsável pelas ocupações do Edifício Prestes Maia, pois, acreditamos que
a relação entre a academia e os movimentos populares, ora de aproximação,
ora de afastamento, está repleta de contradições e de desafios a serem
enfrentados que não estão no escopo deste trabalho.6 FERREIRA, 2012.
14
Durante a minha trajetória pela FAU tive algumas oportunidades de
praticar atividades de extensão, isto é, atividades que pressupõem uma
troca de conhecimentos e experiências entre a universidade e a sociedade.
Essas oportunidades me levaram a inúmeros questionamentos relacionados
à interação entre a população e a universidade, entre eles, as expectativas
decorrentes do caráter transformador incitado por essa relação, as dificuldades
de comunicação e os limites de atuação de cada um dos agentes.
Por fim, trazemos um capítulo anexo que consiste em uma revisão
bibliográfica sobre a construção da estrutura fundiária no Brasil, realizada
através da leitura de diversos autores que abordaram este assunto.
15
parte 01construção da idéia de limitar o direito absoluto de propriedade e subordiná-lo ao cumprimento de uma função social
Para compreendermos o significado da Constituição de 1988, a primeira
Constituição do Brasil a tratar da questão urbana, quando as cidades já
abrigavam mais de 80% de toda a população do país, é necessário entendermos
o contexto político no qual o Brasil estava inserido naquele momento.
A tal contexto político é preciso acrescentar o fim do regime
autoritário no Brasil dos anos 80, para compreender o significado da
Constituição de 1988, resultado do compromisso histórico dos grupos
sociais interessados em assegurar suas plataformas reivindicatórias
no novo texto. No que tange à questão da propriedade, o texto
constitucional inclui a propriedade privada entre os alicerces da
Ordem Econômica, juntamente com a função social da propriedade,
esta também considerada autonomamente.7
A Constituição brasileira de 1988, promulgada em um momento
de ascenso das forças sociais que lutavam pela democratização
do país, assegura ao poder municipal a competência para definir
o uso e a ocupação da terra urbana, e o Estatuto da Cidade reforça
essa orientação autônoma e descentralizadora. O fortalecimento
da autonomia do poder local se deu como reação à centralização
autoritária da política urbana exercida pelo poder ditatorial no período
anterior, entre 1964 e 1985.8
As crescentes demandas e carências sociais resultaram na pressão dos
movimentos sociais urbanos que evidenciaram a questão do acesso à terra
urbana e da igualdade social, passando a exigir iniciativas do poder público
e recuperando a bandeira da Reforma Urbana. Esta, surgiu pela primeira vez
no Brasil em 1963 e foi abortada pelo Golpe Militar. Dessa maneira, em 1980
7 TEPEDINO, 1999, p. 268, apud PAGANI, 2009, p. 56.8 MARICATO, 2010, p. 06.
16
foi constituído o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) com
objetivo de lutar pela democratização do acesso a condições melhores de
vida nas cidades brasileiras.
O Direito à Cidade compreende os direitos inerentes às pessoas
que vivem nas cidades de ter condições dignas de vida, de exercitar
plenamente a cidadania, de ampliar os direitos fundamentais
(individuais, econômicos, sociais, políticos e ambientais), de participar
da gestão da cidade, de viver num meio ambiente ecologicamente
equilibrado e sustentável.9
A partir de então, foi criado o Fórum pela Reforma Urbana, com a finalidade
de unificar todos os movimentos urbanos que faziam reivindicações naquele
momento. Os movimentos de luta por moradia apareciam em maioria e
passaram a refletir sobre a necessidade de mudanças mais estruturais e
menos imediatistas, como a transformação dos parâmetros que regiam a
propriedade fundiária no Brasil
A consciência histórica sobre a ilegitimidade da “propriedade
ociosa” teve origem nos movimentos camponeses que, durante toda a
história do Brasil, enfrentaram a oposição dos latifundiários, também
conhecido como “coronéis”. Estes comandavam milícias privadas e
tinham poder de vida e morte sobre escravos, que constituíam a maior
parte da força de trabalho até o final do século XIX e a população
branca que, desterrada e deslocada no modo de produção escravista,
despendia dos mencionados coronéis para a sua sobrevivência.10
Esse ideal de Reforma Urbana ganhou maior consistência política na
Assembléia Nacional Constituinte, em 1986, cujo regimento previa a
realização de audiências públicas e a apresentação de propostas de iniciativa
popular, entre elas estava a Emenda Popular da Reforma Urbana.9 SAULE, 1997, p. 23, apud PAGANI, 2009, p. 73.10 MARICATO, 2010, p. 17.
1717
11 BALDEZ, Miguel. A cerca jurídica e a questão da terra no Brasil. Conferência na FAU USP, 2001.12 BALDEZ, Miguel. A cerca jurídica e a questão da terra no Brasil. Conferência na FAU USP, 2001.13 MARICATO in BASSUL, 2010, p. 78.
Segundo BALDEZ11, o povo estava politicamente organizado e isso
representava uma grande ameaça ao poder público. A estratégia para
desarticular a luta popular foi transformar o povo em constituinte, e dessa
maneira, os movimentos sociais foram congelados na constituição e a luta
política tornou-se uma luta juridicista.
[...] todos nós na luta pelas emendas populares achando que
éramos constitucionalistas sem nos darmos conta que nós estávamos
sendo integrados, metidos dentro de uma camisa de força que era
a constituição, a minha luta era política, a luta do povo era política
e com esse golpe sensacional nós todos fomos obrigados e nós
não tínhamos saída, nós fomos puxados para a luta juridicista que
é fundamentalmente um mecanismo de organização das sociedades
burguesas [...] 12
Essa emenda suscitou inúmeras reações, como por exemplo, a crítica do
deputado constituinte Luiz Roberto Ponte que considerava que a terra, foco
das preocupações da reforma urbana, não seria um problema importante,
já que representava apenas 5% dos recursos necessários para construir
uma habitação digna. Já para Ermínia Maricato, o custo relativamente
baixo do solo na produção de moradia se dava em conjuntos habitacionais
praticamente fora das cidades. Destaca-se assim o ambiente conflituoso em
que a proposta da reforma urbana foi examinada.13
Ao final do processo constituinte, a Emenda Popular da Reforma Urbana
foi parcialmente aprovada, o que desagradou ambos os lados do debate –
o MNRU mostrava-se insatisfeito porque a função social da propriedade,
diretriz fundamental da emenda, havia sido submetida a uma lei federal e a
um plano diretor municipal; já a Federação Nacional das Indústrias do Estado
de São Paulo (FIESP), por exemplo, tornava pública sua inconformidade com
a aprovação da usucapião urbana.
18
Essa passagem elucida a origem dos entraves à concretização dos ideais da
Reforma Urbana. A subordinação de questões colocadas pela Emenda Popular
da Reforma Urbana a uma lei federal e à instrumentos municipais conferiu
ao projeto uma necessidade de regulamentação posterior. Apontamos este
como o primeiro indício de limitação e retardamento do processo. Soma-se
a isso a coleção de opositores que a proposta reuniu diante da rejeição de
vários setores do mercado. Estes se mantiveram organizados durante todo
o processo, afim de não permitir a realização plena dos ideais propostos.
Fruto do acordo possível, foram inseridos na Constituição de 1988 os
artigos 182 e 183, que estabelecem instrumentos para o controle da produção
do espaço urbano, além de introduzirem o princípio de função social da
propriedade urbana.
[...] pode-se dizer, sem medo de errar, que a propriedade constitui
um direito e um encargo, a propriedade obriga.14
A idéia de estabelecer instrumentos urbanísticos que dessem ao Poder
Público o controle sobre a produção do espaço urbano foi impulsionada por
ações provenientes do Estado do Bem-Estar Social, na Europa. Entretanto,
segundo FERREIRA15, essa tradição européia de forte regulação estatal, não
conseguiu impedir, nem naqueles países, processos marcantes de exclusão
social e de gentrificação, capitaneados pelas forças do mercado. Apesar
disso, segundo o mesmo autor, é inegável que na Europa e até mesmo nos
Estados Unidos haja uma cultura política de respeito ao papel importante do
Estado no controle urbano.
Já no Brasil, trata-se de uma tentativa de reverter um processo histórico-
cultural de segregação espacial e de enfrentar os privilégios urbanos adquiridos
pelas classes dominantes ao longo de 500 anos, sob o fundamento de se
redistribuir a propriedade imobiliária urbana e de propiciar à população de
baixa renda o acesso à moradia digna.
14 ARRONE, 1999, p. 185, apud PAGANI, 2009, p. 80.15 FERREIRA, 2005, p. 16.
1919
Tal processo histórico, apresentado com mais detalhes em um capítulo
anexo a este trabalho, tem origem no descobrimento do Brasil, quando
todo o território brasileiro passa a pertencer à Coroa Portuguesa. O regime
de distribuição de terras adotado foi o mesmo vigente em Portugal, o
Sistema Sesmarial. As sesmarias consistiam em concessões de porções
de terra da Coroa à homens de posses, que pudessem extrair proveitos
da terra. O solo colonial não se constituiu como patrimônio destes, já que
a efetiva propriedade da terra pertencia ainda à Coroa. Entretanto, diante
da abundância de terras e do descontrole do Estado, as sesmarias eram
concedidas em tamanho muito maior do que o permitido, e, como muitos
não tinham condições de solicitar uma sesmaria, a ocupação indiscriminada
do território ocorreu desde o início da colonização.
A promulgação da Lei de Terras, em 1850, marca um momento de ruptura
fundamental no que diz respeito à forma de apropriação da terra no Brasil. A
partir dela, a única forma legal de reconhecimento da posse da terra passou
a ser a compra devidamente registrada. Dessa maneira, a terra continuou
sendo um privilégio da parcela mais rica da população, que podia adquiri-la,
pois a propriedade baseada na cessão pública ou na ocupação, não era mais
permitida. Não coincidentemente, no mesmo momento é aprovada a lei que
extingue o tráfico de escravos e regulamentada a importação de colonos
europeus livres para trabalhar no Brasil. Os escravos libertos e os imigrantes
não tinham acesso a terra e não lhes restava outra saída senão vender sua
força de trabalho para os grandes donos de terra. Sendo assim, a sociedade
foi dividida em duas categorias: os proprietários fundiários de um lado, e
de outro, os escravos libertos e imigrantes, sem nenhuma possibilidade de
comprar terras.
Essa diferenciação social e a hegemonia das elites verificadas nos latifúndios
foram, posteriormente, reproduzidas nas cidades. Com a industrialização,
a cidade torna-se o lócus do sistema de produção e a presença de um
operariado urbano se faz necessária, tornando visível a segregação social
20
e espacial. Esse panorama de extrema desigualdade no acesso à terra vai
culminar na grande mobilização popular em torno da questão urbana, que
abordávamos nas páginas anteriores.
Retornando à questão da Carta Constitucional de 1988, o tratamento
dado até então à propriedade da terra no Brasil passa a ser de interesse
público, visando impedir que o direito de propriedade ocasione excessos
em detrimento do bem estar coletivo, através do controle do Estado sobre o
cumprimento da função social da propriedade.
No Estado Social e Democrático de Direito, opera-se uma completa
mudança na concepção de propriedade, visando desvinculá-la do
liberalismo individualista. [...] O direito individual não pode ser
exercido ou mesmo concebido em prejuízo da coletividade.16
A partir de então, a propriedade deve atender à sociedade como um todo, em
prol da coletividade e não mais dos interesses de seu proprietário, ficando o direito
de propriedade privada desprotegido quando seu titular negligencia a função social.
A função social da propriedade é o núcleo basilar da propriedade
urbana. O direito de propriedade urbana somente é passível de ser
protegido pelo Estado, no caso da propriedade atender à sua função
social. É esta a exata orientação constitucional, ao dispor no inciso XXI
do art. 5º que é garantido o direito de propriedade e, em seguida, pelo
inciso XXIII, dispor que a propriedade atenderá à sua função social.17
Sendo assim, a Constituição de 1988 apresenta avanços no que diz respeito
ao direito de propriedade privada, segundo os quais a propriedade deve ser
utilizada de forma condizente com os fins sociais que ela preordena, como
produzir ou morar. O Poder Público é dotado de meios legais para intervir
no domínio da terra quando julgar que uma propriedade não cumpre sua
função, podendo inclusive conferir a perda da mesma pelo particular.
16 CHEMERIS, 2002, p. 40, apud PAGANI, 2009, p. 46.17 SAULE, 2007, p.197, apud PAGANI, 2009, p. 49.
2121
18 BALDEZ, Miguel. A cerca jurídica e a questão da terra no Brasil. Conferência na FAU USP, 2001.
[...] a Constituição de 1988 prevê direitos sociais e coletivos que
pressupõem políticas públicas e o neoliberalismo não quer isso, o que
o neoliberalismo impõe é o fim do Estado, é a perda da soberania. 18
Ainda que de forma tímida, o princípio da função social da propriedade
privada já havia sido implementado em constituições que antecederam a
vigente. Entretanto, o mesmo não ocorreu com a legislação civil, pois o
Código Civil que tratava a propriedade como um direito absoluto perdurou
até 10 de janeiro de 2002, quando foi aprovada a Lei nº 10.406 e revogada a
superada Lei nº 3.071 de 01 de janeiro de 1916.
Segundo o novo texto constitucional, o Plano Diretor Municipal deve
ser o instrumento capaz de garantir o cumprimento da função social,
possibilitando o acesso à cidade e à moradia aos habitantes. Entretanto, esse
e outros instrumentos ordenadores tiveram suas aplicações limitadas devido
à ausência de leis regulamentadoras. Dessa maneira, começava-se a construir
o Estatuto da Cidade, uma lei federal sob a qual a maior parte dos ideários da
reforma urbana presentes na Constituição haviam sido submetidos. Essa Lei
regulamentaria os artigos 182 e 183 da Constituição, com o intuito de colocar
à disposição do Poder Público Municipal instrumentos legais capazes de
respaldar a implementação de políticas públicas que garantam o acesso à
cidade e à moradia.
Em 1989 foi apresentado o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº181, pelo
senador Pompeu de Souza, que não viveu para presenciar a aprovação do
seu projeto, já bastante modificado, ocorrida apenas em 2001, depois de
várias décadas de embates decorrentes da divergência de interesses.
Ao justificar seu projeto, o autor afirmava que pretendia com ele conter
a valorização imobiliária, já que a mesma dificultava o acesso democrático
a terra. Além disso, afirmava que essa valorização resultava, na maioria
das vezes, de investimentos públicos, portanto, era custeada por todos
22
em benefício de poucos. Um ano depois de sua apresentação, o projeto
foi aprovado no Senado e enviado à Câmara dos Deputados, onde seria
reformulado e permaneceria por 11 anos.
As definições do projeto referentes ao cumprimento da função social da
propriedade e ao abuso de direito sofreram restrições radicais de vários
setores do empresariado urbano. Os proprietários de terras, construtores
e incorporadores, ou seja, o capital imobiliário urbano, parecia unido na
rejeição ao Estatuto da Cidade.
A Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP),
por exemplo, considerava que este projeto do Estatuto da Cidade investia
contra dois princípios de ordem natural, consagrados pela doutrina social da
Igreja e arraigados na sociedade brasileira: o da propriedade privada e o da
livre iniciativa.19
Assim sendo, de um lado o conjunto de movimentos sociais que
construíram o ideário da reforma urbana apoiava o Estatuto da Cidade e
cobrava sua aprovação; de outro, o empresariado urbano, reforçado por
instituições de defesa da propriedade privada, opunham-se radicalmente ao
projeto.
Dentro da Câmara dos Deputados, o Estatuto da Cidade tramitou entre
diversas Comissões. Nesse período, foram apresentadas várias emendas para
mudar o caráter do projeto, sendo a maioria delas de índole conservadora.
Entretanto, essas rejeições atenuaram-se em 1996, quando o deputado Luís
Roberto Ponte – que anteriormente havia criticado o enfoque que a reforma
urbana dava para o problema da terra – transformou a abordagem conceitual
do projeto em pragmáticos instrumentos municipais. Alguns instrumentos
já previstos foram mantidos, e outros acrescidos, como a transferência do
direito de construir, a outorga onerosa e as operações urbanas consorciadas. 19 TFP, 2004, p. 5, apud BASSUL, 2010, p. 81.
2323
20 CÂMARA DOS DEPUTADOS, s/d, p. 377, apud BASSUL, 2010, p. 83.
O instrumento denominado transferência do direito de construir possibilita
que se transfira o potencial construtivo de um lote para outro lote de mesmo
proprietário, ou que se venda para um terceiro. Já a outorga onerosa trata-se
de uma concessão municipal para que o proprietário de um imóvel edifique
além do estabelecido pelo coeficiente de aproveitamento básico, mediante
contrapartida financeira. Permite também a mudança do uso do solo admitido
em determinada área, igualmente mediante contrapartida financeira. Por fim,
as operações urbanas consorciadas consistem em intervenções coordenadas
pelo poder público municipal, com a participação da iniciativa privada,
objetivando melhorias urbanísticas em áreas determinadas pelo município.
A moeda de troca do poder público para atrair investimentos privados é
também a concessão de aumento de coeficiente de aproveitamento e de
mudanças no uso do solo. Os recursos obtidos em uma operação urbana
devem ser investidos dentro da própria área de intervenção.
No caso dos três instrumentos citados, o poder público municipal
conta com investimentos da iniciativa privada. Deste modo, como temos
observado cotidianamente, só há investimentos privados em áreas da cidade
atrativas do ponto de vista do capital imobiliário. Portanto, são instrumentos
claramente favoráveis ao mercado, através de investimentos públicos
custeados por muitos e em benefício de poucos, e centralizadores do ponto
de vista das melhorias urbanísticas, estimulando o processo de segregação
sócio-espacial.
Esses instrumentos acrescidos já vinham sendo aplicados em algumas
cidades e muitos proveitos empresariais vinham sendo obtidos – os
instrumentos podem ser benéficos para as atividades imobiliárias urbanas,
ao inovar nas formas possíveis de parceria entre o poder público e as
empresas privadas.20 Além disso, o empresariado urbano passou a ver a
deterioração das condições de vida nas grandes cidades como um fator de
risco para o mercado.
24
A situação urbana ficou muito ruim, se degradou demais [...] Em São Paulo,
você percebe que os empresários tomaram consciência de que o modelo
não deu certo e se vê uma abertura para pensar em modelos alternativos.21
Portanto, o que parecia uma ameaça para o setor empresarial passou a ser
percebido como uma oportunidade de mercado. As causas para que, em 1996,
o deputado Luís Roberto Ponte recuasse na crítica e propusesse um acordo
se somam. Segundo BASSUL, uma tentativa de acordo coordenada pela
Secretaria de Política Urbana teria sido um fator de influência na atitude do
deputado. Além disso, entidades ligadas ao movimento pela reforma urbana
haviam tomado a iniciativa de buscar um processo de negociação com os
deputados contrários à aprovação. O MNRU cedeu em suas propostas, com
perspectivas de recuperar essas perdas posteriormente, e o empresariado
despiu o projeto original de sua abordagem conceitual incorporando os tais
instrumentos favoráveis ao capital imobiliário, resultando na aprovação do
projeto sem disputas.
Em 1997 se deu a primeira votação do Estatuto da Cidade na Câmara
dos Deputados e, para espanto de todos os presentes, não houve uma
objeção se quer ao relatório apresentado. Todas as manifestações
foram favoráveis ao parecer, que foi aprovado por unanimidade.
Depois de tão longo tempo de obstrução, que parecia denunciar fortes
resistências ao teor da proposta de lei, assistiu-se uma votação por
consenso, sem nenhuma ressalva.22
Em 2001 o projeto do Estatuto da Cidade volta para o Senado Federal, para
ratificação das alterações promovidas na Câmara e é aprovado por unanimidade.
Conservadores ou progressistas, empresários ou trabalhadores, mais
à direita ou à esquerda, todos, sem exceção, apoiaram e elogiaram
a proposta legislativa que nascera sob tachas como “socialista e
confiscatória” ou “um desrespeito ao direito do cidadão e à propriedade”.23
21 ROLNIK, 2003, apud BASSUL, 2010, p. 88.22 ARAUJO e RIBEIRO, 2000, p. 3, apud BASSUL, 2010, p. 84.23 BASSUL, 2010, p. 86.
2525
24 GRAEFF, 2003, p. 1, apud BASSUL, 2010, p. 86.25 BASSUL, 2010, p. 86.26 ALFONSIN, 2002, p. 163, apud BASSUL, 2010, p. 86.27 PAGANI, 2009, p. 68.28 MARICATO, 2010, p. 05.
Como vimos, as representações do empresariado urbano em nenhum
momento solicitaram o veto integral do Estatuto da Cidade, nem teriam
razão, pois, do ponto de vista do setor da construção, o projeto não é ruim.24
Houve apenas pequenas objeções, e a principal delas era relativa à proposta
de Concessão de Uso Especial para fins de Moradia para as áreas públicas.25
Esse instrumento seria destinado a assegurar juridicamente a moradia em
terras públicas. Como a Constituição de 1988 continuou impossibilitando
que os imóveis públicos fossem adquiridos por usucapião, estar-se-ia diante
de uma dificuldade quase intransponível para a regularização fundiária dos
assentamentos em área pública, o que colocaria os moradores na posição de
terem de resignar-se com a irregularidade.26
Ao sancionar o projeto sem esse dispositivo, o Presidente da República,
Fernando Henrique Cardoso, afirmou que em reconhecimento à importância
e à validade do instituto da concessão de uso especial para fins de moradia,
o Poder Executivo submeterá sem demora ao Congresso Nacional um texto
normativo que preencha essa lacuna. A Medida Provisória nº 2.220, de 04 de
setembro de 2001, regraria a aplicação desse instituto.
Em 10 de julho de 2001 o Estatuto da Cidade tornou-se a Lei nº 10.257.
Segundo PAGANI27, a postergação na promulgação desse marco jurídico se
deveu ao fato de que os instrumentos jurídicos constantes do Estatuto da
Cidade têm o condão de alterar significativamente o conteúdo econômico da
propriedade imobiliária urbana.
Contudo, segundo MARICATO28, a Lei nº 10.257 não é suficiente para
resolver os problemas estruturais de uma sociedade historicamente desigual
na qual o direito à moradia e à cidade não são assegurados para a maioria
da população. Para a autora, aplicar o Estatuto da Cidade em tal contexto,
culturalmente excludente, tradicionalmente conservador, não é tarefa
simples especialmente porque nessas sociedades o poder político e social
26
vem associado à propriedade patrimonial e, diante disso, existem juízes que
ainda ignoram essa lei e tratam a propriedade como um direito absoluto e
não relativizado pela função social.
Se, no século XVII, a Revolução Francesa seguiu a utopia de libertar
a terra das relações de servidão e garantir seu acesso amplo por meio
da propriedade privada individual, no século XXI, a grande utopia
é a restrição ao direito individual de propriedade tendo em vista o
interesse coletivo.29
29 MARICATO, 2010, p. 07.
2727
30 VILLAÇA, 1986, apud CORAZZA, 2012.31 MARICATO, 2003.
parte 02contradições entre os avanços jur íd icos e as ações munic ipais
A partir da Constituição Federal de 1988 e da posterior promulgação do
Estatuto da Cidade, fruto da luta de muitos trabalhadores, intelectuais e
movimentos sociais, as questões fundiárias urbanas ganharam tratamento
legal inovador e avançado. Entretanto, a aplicação das leis que se referem ao
acesso à terra urbana no Brasil tem se dado de forma ineficaz e contraditória.
Apesar dos instrumentos jurídicos favoráveis, as leis não têm sido suficientes
para garantir a efetivação dos direitos adquiridos, isto é, garantir a realização
plena da função social da cidade e da propriedade urbana.
A criação de leis é um importante instrumento de luta dos
trabalhadores, no entanto, há de se assinalar historicamente a
correlação de forças na sociedade para se verificar a possibilidade
de sua aplicação, caso contrário, serão sempre instrumentos
legitimadores da suposta democracia da classe dominante.30
A efetivação do direito à cidade e à moradia não se limita à competência
do Poder Judiciário de atestá-los. Outros atores como o mercado imobiliário,
o poder público representado por uma gestão municipal, os movimentos
sociais, etc., têm papéis determinantes nesse processo. Cada ator envolvido
representa um interesse diverso de utilização do solo urbano. Esses
interesses, sejam eles particulares ou coletivos, freqüentemente são opostos
e geram um conflito, isto é, uma disputa pela terra. Essa disputa se dá em
meio a uma correlação de forças desigual entre os agentes envolvidos.
Destaca-se o papel da aplicação da lei para manutenção de poder
concentrado e privilégios, nas cidades, refletindo e ao mesmo tempo
promovendo, a desigualdade social no território urbano.31
28
É por esse motivo que, para fins desta pesquisa, estudaremos a região central
de São Paulo. Poderíamos questionar a aplicação da lei e o cumprimento
dos direitos adquiridos a partir da década de 1980 em diversas situações e
regiões da cidade. Entretanto, é sobretudo na região central, diante da ampla
oferta de infraestrutura, equipamentos e serviços, que se trava uma intensa
disputa pela terra urbana.
A partir da década de 70, ocorreu um intenso processo de abandono do
centro, que gerou desvalorização imobiliária e redução de investimentos
públicos na região. De acordo com a Sempla (Secretaria Municipal do
Planejamento), entre 1990 e 2001, os distritos República e Sé perderam
cerca de 20 mil habitantes, isto é, mais de 25% de sua população total.
Paralelamente, a periferia da cidade de São Paulo e a região metropolitana,
começavam a ganhar população exponencialmente, devido ao grande
estoque de terrenos disponíveis, ao baixo custo da terra e à produção pública
habitacional. Em decorrência desse crescimento horizontal da cidade,
problemas como falta de acesso à infraestrutura, equipamentos, empregos,
transporte, etc., acentuavam-se cada vez mais.
Após a década de 90, diante do esgotamento dos terrenos disponíveis
na periferia e do agravamento dos problemas de mobilidade, se fortaleceu
novamente o interesse pela região central, dotada de completa infraestrutura
urbana. E então, a conseqüente disputa pelo centro abriu caminhos opostos
para o desenvolvimento urbano da região. De um lado, está a questão
da ampliação do uso habitacional no centro para a população de baixa
renda, que descobre a permanência na região como única possibilidade de
sobrevivência. De outro, a possibilidade de transformar a área central em
uma grande fonte de lucro, através de atrativos ao mercado imobiliário e à
população de alta renda.
Assim sendo, perante a revelada fragilidade dos mecanismos criados para
garantir o acesso à terra urbana, os movimentos sociais passam a lutar pelo
cumprimento dos direitos constitucionais adquiridos. Ao reivindicarem
programas habitacionais para a população de baixa renda na área central
da cidade de São Paulo, região muito privilegiada se comparada aos bairros
periféricos, a luta por moradia se expandiu para a luta pela reforma urbana e
pelo direito à cidade.
A Reforma Urbana é a luta por um centro como lugar do povo, do direito
à moradia, à cidade, à cidadania, um centro aberto e democrático e não
um centro de repressão, da expulsão, da exclusão e da limpeza social.32
2929
32 FÓRUM CENTRO VIVO, 2006.
30
crescimeNto DemoGráfico
3131
empreGos por habitaNte (2001 - 2009)
32
viaGeNs Diárias ao Distrito Da sé (2007)
páginas anteriores:fig 01. Mapa Crescimento demográfico do Município de São Paulo.fig 02. Mapa Empregos por habitante no Município de São Paulofig 03. Mapa Viagens Diárias Distrito Sé.
ao lado:fig 04. Mapa Edifícios Vazios no centro selecionados pela FAUUSPFonte: FUPAM / COHAB-SP / 2009
3333
Devido à grande quantidade de prédios vazios ou subutilizados no centro
da cidade de São Paulo, que não cumprem sua função social e desperdiçam
infraestrutura urbana, os movimentos sociais viram a possibilidade de
habitar essa região, principalmente após 2002, com a concretização do Plano
Diretor Estratégico (PDE) e a posterior demarcação de suas Zonas Especiais
de Interesse Social (ZEIS). Dessa maneira, como forma de pressionar o
poder público, mas também por falta de alternativas de onde morar, os
movimentos sem-teto promovem ocupações dos imóveis ociosos, dando-
lhes uma função social.
34
As comunidades auto-organizadas de luta por moradia no centro,
através das ocupações dos edifícios, dando vida a espaços que não
cumprem a sua função social, demonstram que o caminho para o
cumprimento da função social da propriedade na será espontâneo e
haverá um longo caminho para torná-la realidade.33
O Estatuto da Cidade, mesmo depois de muitos anos de lutas, e passados
já três anos da aprovação do Plano Diretor, continua letra morta no município
de São Paulo, no tocante à implementação do artigo 182. Note-se que a
obstrução a esse avanço é um dos motivos do prosseguimento da reação
desesperada de movimentos populares como a dos Sem-Teto, por exemplo.34
Mais de setenta ocupações de imóveis abandonados na área central foram
efetuadas entre 1997 e 200735, cerca de 10 mil famílias em 44 edifícios,
segundo o Instituto Pólis, 2009. Atualmente, de acordo com Neuhold (2009),
aproximadamente 30% desses edifícios ocupados foram transformados em
habitação popular (por iniciativa pública ou privada); 20% foram reformados
para outro uso que não habitacional; 20% permanecem vazios e com dívidas
tributárias, e sobre os 20% restantes não há informações. Não obstante, essas
ocupações, em sua maior parte, foram reprimidas de maneira violenta, através
de muitos confrontos com a polícia, sobretudo nas reintegrações de posse.
Essa repressão aos movimentos de moradia pode ser observada
principalmente na área central da cidade de São Paulo, afinal, é uma região
consolidada e plenamente dotada de infra-estrutura urbana, portanto, com
grande potencial lucrativo para o setor imobiliário. Ou seja, esse território
é disputado entre os movimentos de moradia e os grandes proprietários
imobiliários, sendo notável a desigual correlação de forças entre esses atores.
Podemos observar que a repressão mais violenta aos movimentos de
moradia se dá exatamente nas áreas centrais da cidade, onde a guerra
dos lugares atinge adversários de maior poder na estrutura capitalista.36
33 AFFONSO, 2010.34 VILLAÇA, 2005, apud AFFONSO, 2010, p.52.35 AFFONSO, 2010. 36 RAMOS, 2009, p.42.
3535
ocupações No ceNtro eNtre 1997 e 2005
36
remoções No ceNtro eNtre 2005 e 2012
3737
37 http://www.novaluzsp.com.br/38 http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/legislacao/index.php?p=1382
páginas anteriores:fig 05. Mapa Ocupações (1997-2005).Elaboração: Beatriz Kara José, 2006.fig 06. Mapa Remoções (2005-2012).Fonte: Fórum Centro Vivo/Observatório de Remoções/Fogo no Barraco/ Artigos de Periódicos (Cesad)Elaboração: Daniela P. Rodrigues, 2012.
Os proprietários acreditam na valorização dos seus imóveis através da
proposta municipal de requalificação do centro. Nesse contexto, uma das
formas de obter esse resultado concretizou-se na aprovação do Projeto
Nova Luz37. Trata-se de um projeto de intervenção urbana em uma área
consolidada do centro de São Paulo, envolvendo o polígono formado
pelas Avenidas Ipiranga, São João, Duque de Caxias, Casper Líbero e Rua
Mauá. A intervenção proposta pretende requalificar a área central, através
de um instrumento urbanístico denominado Concessão Urbanística. Este
instrumento visa promover investimentos na área e para tanto, concede ao
capital privado o direito de exploração e de desapropriação do perímetro
delimitado, conforme diretrizes determinadas por lei38 e mediante
contrapartidas públicas. O Projeto Nova Luz foi apresentado em agosto
de 2011, pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e pela SP
Urbanismo (antiga EMURB) e vem sendo desenvolvido pelo Consórcio Nova
Luz, que compreende: Concremat Engenharia, Cia. City, AECOM Technology
Corporation e a Fundação Getúlio Vargas.
Essa proposta vai de encontro com os interesses daqueles que lutam
para fazer valer os instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade: os
movimentos que pleiteiam soluções de moradia para a população de baixa
renda nessa área. O poder público afirma que a requalificação proposta pelo
Nova Luz reverterá o quadro de imóveis ociosos na região central – quadro
esse resultante justamente da especulação dos proprietários que aguardam
a revalorização. Entretanto, as recentes ações municipais não apontam para
o favorecimento dos interesses coletivos através do cumprimento da função
social da propriedade, mas sim dos interesses ligados ao capital imobiliário:
proibição da circulação de carroças de catadores de materiais recicláveis na
área central; retirada dos vendedores ambulantes; remoção dos moradores de
rua e fechamento dos albergues do centro; interdição dos cortiços; incêndios
em favelas localizadas em áreas de interesse imobiliário; reintegrações de
posse com despejos violentos de moradias irregulares e ocupações; etc.
38
O discurso que prevalece é aquele do senso comum: os centros
urbanos precisam ser revitalizados, embelezados. Poucos se arriscam
a mostrar o caráter ideológico desse discurso, que associa uso popular
a deterioração, como se a única maneira de recuperar o centro fosse
trazer de volta as elites. Essa visão reforça práticas de órgãos públicos de
varrer as pessoas do centro, como se fossem literalmente lixo. E mostra
o descaso pelos que vivem atualmente no centro e que são vítimas de
violência constante, documentada no dossiê do Fórum Centro Vivo.
A visão de que as melhorias no centro só virão com a valorização
imobiliária recria antigos mecanismos de impedimento do acesso a
terra pela população. Falta opor claramente o projeto que está por trás
do senso comum da revitalização e o projeto da reforma urbana.39
Ao considerarmos as reintegrações de posse; onde o judiciário declara
invasão de propriedade privada, determina a devolução do imóvel ao seu
proprietário e ordena o despejo dos moradores através de força policial;
percebemos que os argumentos absolutamente favoráveis à subordinação
do direito de propriedade à sua função social presentes na lei não tem sido
suficientes para barrar o processo de remoção das ocupações dos imóveis
ociosos na região central.
As remoções são freqüentemente justificadas pelos riscos a que os
moradores estão expostos devido à precariedade das habitações improvisadas
ou por privilegiarem o interesse público, que poderá ser comprometido
com a permanência das ocupações no local. Ou seja, a habitação de baixa
renda na área central contraria o processo de revitalização da região –
percebemos a designação de interesses individuais como interesse público
em detrimento dos coletivos. E, dessa maneira, a habitação popular na
região central tem tido um destino comum: remoções sem nenhum tipo de
atendimento ou garantia para as famílias e os imóveis continuam vazios e
ociosos, demonstrando o total desrespeito às leis e aos direitos adquiridos.
39 FIX, 2008, apud AFFONSO, 2010, p.38.
4141
40 FÓRUM CENTRO VIVO, 2006.41 GOHN, 1991, p.35, apud RAMOS, 2009, p.97.42 Hila Jilani, representante do secretário-geral das Nações Unidas para a Situação dos Defensores de Direitos Humanos, em entrevista à Prima Página, 16 de dezembro de 2005.
páginas anteriores:fig 07. Foto Carroceiros.Mariana Cavalcante, 2005.fig 08. Foto Direito à Moradia.Isadora Lins, 2005.
A prática de despejos forçados ocorre quando há remoção de
pessoas ou grupos de suas casas contra a sua vontade, constituindo
uma grave violação dos direitos humanos, particularmente do direito a
uma moradia adequada, nos termos da resolução 1993/77 da Comissão
de Direitos Humanos das Nações Unidas e do art.49 da Declaração
de Istambul sobre os Assentamentos Humanos (ONU), que prevê a
“necessidade de promover, com vigor, habitações acessíveis e serviços
essenciais aos sem-teto, evitando despejos forçados que contrariam a
legislação e facilitando o acesso de todas as pessoas, particularmente
dos grupos pobres e vulneráveis, não apenas a informações sobre leis
habitacionais, inclusive quaisquer direitos subjetivos, como também a
recursos quando essas leis forem violadas.40
Em suma, ocorreram e continuam ocorrendo inúmeros despejos violentos
e reintegrações de posse na região central de São Paulo. Essas ações
decorrem do aval do Poder Judiciário, visto que nas suas sentenças sempre
prevalece o direito de propriedade à revelia do cumprimento de sua função
social, e diante da omissão do poder público municipal, responsável pelo
desenvolvimento urbano. Note-se que a palavra omissão pressupõe uma
neutralidade do Estado perante o conflito, entretanto, este, tendo o Poder
Judiciário e a Polícia Militar como parte de seu aparato, intervém no território
garantindo a dominação de uma classe sobre o espaço urbano.41
O direito à propriedade é talvez mais protegido do que o direito a se
ter uma propriedade e do que o direito a ter terra para as pessoas sem-
terra. [...] Há interesses muito conflituosos neste país, que vão tornar
difícil para qualquer governo implementar uma política que pode não
agradar algumas pessoas. [...] Mas você não pode reconhecer um
direito e não garantir que as pessoas realmente tenham esse direito.42
Por outro lado, em janeiro de 2010, a atual gestão municipal noticiou para
a imprensa um investimento da prefeitura em parceria com o governo federal
42
para desapropriar e reformar 53 prédios abandonados no centro de São Paulo,
através do programa Renova Centro43; apesar da notável prioridade dada até
então pelos projetos de reabilitação da área central, com a construção de
grandes equipamentos culturais para atrair novos públicos para essa região,
e, da proposta de redução dos recursos direcionados para habitação de
interesse social. No entanto, as informações referentes ao andamento do
programa e à situação dos imóveis selecionados para desapropriação não
são disponibilizadas publicamente. A única coisa que se sabe é que, desde o
lançamento do programa até hoje, somente o Hotel Cineasta está em obras,
e será destinado para artistas aposentados.
Segundo Neuhold (2009), as primeiras experiências de produção
habitacional na área central aconteceram na gestão da Luiza Erundina (PT
- 1989/92). Essas iniciativas foram interrompidas durante as gestões de
Paulo Maluf (PPB – 1993/96) e de Celso Pitta (PPB – 1997/00), para serem
retomadas em 2001, durante a gestão de Marta Suplicy (PT – 2001/04).
Até 1990 a produção pública habitacional concentrava-se nos bairros
periféricos da cidade. As ações dos movimentos de moradia, como as
ocupações dos imóveis vazios, e o esgotamento de terrenos disponíveis
na periferia, podem ser considerados fatores importantes que contribuíram
para pressionar o poder público a produzir unidades habitacionais no centro
da cidade.
Entretanto, destaca-se a insuficiência das unidades produzidas até hoje
frente à demanda existente, a renda familiar como fator limitante ao acesso
dessas unidades, bem como a descontinuidade dos programas habitacionais,
como políticas de determinados governos cuja ininterrupção sempre esteve
atrelada à permanência dos mesmos partidos no poder executivo, e não a
uma política de Estado em prol da efetivação do direito à moradia digna na
área central.43 http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/cohab/noticias/?p=15692
fig 09. Foto Reforma Hotel Cineasta, Renova Centro.Fonte: PMSP, 2012.
4343
44 CORAZZA, 2012.45 Coordenador do Movimento de Moradia do Centro, MMC, em entrevista concedida à Roberta dos Reis Neuhold, 2008.
A atual gestão tem sido negligente com as camadas mais pobres da
população e bastante generosa com o mercado imobiliário. Porém,
é necessário pensar se uma gestão municipal progressista pode
garantir que as leis sejam cumpridas e os direitos dos trabalhadores
respeitados.44
Para o coordenador do MMC (Movimento de Moradia do Centro), de
acordo com Neuhold (2009), essas pequenas conquistas silenciaram os
movimentos sem-teto. Seriam, pois, políticas sociais, ou fragmento delas,
que inverteriam os sentidos e a própria luta pela cidadania, mantendo-se
afastadas do horizonte da universalização dos direitos.
Tenho certeza que são conquistas pontuais. É um cala a boca. Você
já viu uma criança brigando por uma bala? Como é que o pai faz,
rapidamente, ou a mãe, ou o avô? Vai lá e dá a bala para ela. Daqui a
meia hora ela está querendo bala? Então, o que ele devia brigar é pela
fábrica de balas, e não pela bala. Então nós, proletários e proletárias,
temos que brigar pela Reforma Urbana feita com a participação
popular ativa, com o povo organizado, é que resolverá o problema
das desigualdades sociais. Nós temos que brigar para que se tenha
programa e política de Estado e não política de governo. Calma, meu
irmão, foi o governo que mais fez. É verdade, foi o que mais fez. Mas
e quando acabar o governo Lula? Esse povo que ganhou alguma
coisa, que avançou? Vai ficar como? [...] A nossa grande briga se dá
exatamente em cima da política de Estado, só que nós no satisfazemos
com qualquer migalha. As balinhas distribuídas...45
4545
46 Jorge Hamuche em entrevista concedida à Mariana Desidério Barbosa, em junho de 2011, publicada no site www.edificiosabandonados.com.br, acessado em setembro de 2012.
fig 10. Foto Edifício Prestes Maia.Eduardo Costafig 11. Mapa de Localização.Elaboração: Daniela P. Rodrigues, 2012.
parte 03o caso prestes maia
O edifício Prestes Maia é composto por dois blocos, A e B, sendo que o
primeiro possui 9 andares com entrada pela Rua Brigadeiro Tobias, 700; e
o segundo, 22 andares, e entrada pela Avenida Prestes Maia, 911. Localizado
praticamente em frente à Estação da Luz, tem acesso fácil garantido ao
metrô, bem como aos trens da CPTM e a diversas linhas de ônibus. A
Avenida Prestes Maia é uma das avenidas de maior circulação da cidade,
dá continuidade a Avenida Tiradentes até desembocar nas Avenidas Nove
de Julho e 23 de Maio, interligando as zonas Norte e Sul da capital paulista.
Possui grande concentração de variados tipos de serviços, além de uma
completa infraestrutura, com ampla oferta de transportes, saúde e educação.
Originalmente o edifício abrigava a Companhia Nacional de Tecidos,
porém, em 1978, época da descentralização industrial em São Paulo e
também da acentuação do processo de abandono do centro pelas classes
dominantes e a conseqüente desvalorização imobiliária da região, a fábrica
se mudou para o interior e o edifício foi vendido para o Banco Citibank.
Posteriormente foi comprado em um leilão por Jorge Hamuche, empresário
do ramo dos tecidos e também incorporador imobiliário, e desde então,
aproximadamente 20 anos, o prédio encontra-se vazio e com uma dívida de
IPTU de mais de cinco milhões de reais.
No cartório, o Prestes Maia ainda pertence à falida Companhia Nacional
de Tecidos. Jorge Hamuche diz que não é de seu interesse registrar o prédio
e que tem uma carta de arrematação provando sua propriedade. Ele justifica
o abandono do prédio devido à situação econômica do país e ao descaso do
poder público com a região da Luz, diz que nesses últimos 18 anos nenhum
investimento ali seria rentável, e que, portanto, a demora pra ocupar o prédio
nada tem a ver com especulação imobiliária 46. Com a opinião de que o
46
edifício não tem vocação para moradia, seria um desperdício de potencial,
pretende fazer do Prestes Maia um grande prédio de escritórios, após a
esperada valorização da região, decorrente do Projeto Nova Luz.
movimento sem teto do centro
A organização de movimentos de moradia no centro da cidade se fortaleceu
na década de 1990, em presença de uma abertura da possibilidade de diálogo
entre eles e o poder público municipal naquele momento. Em 1991, diante
do anseio de reunir os movimentos organizados em torno da questão das
habitações de aluguel na área central para denunciar as precárias condições
de vida nos cortiços e encaminhar reivindicações ao poder público, foi criada
a Unificação das Lutas de Cortiços (ULC).
Com o passar dos anos foram surgindo discordâncias entre os diferentes
grupos que formavam a ULC: questões relativas aos projetos políticos, à
organização interna, às estratégias de luta e às relações político-partidárias.47
Dessa maneira, em 1993, houve uma primeira divisão do movimento –
alguns grupos saíram da ULC para formar o Fórum de Cortiços. Quatro anos
depois, em 1997, uma nova dissidência da ULC deu origem ao Movimento
de Moradia do Centro (MMC).
O Fórum de Cortiços dividiu-se em 1998, originando o Movimento
dos Trabalhadores Sem Teto da Região Central (MTSTRC) e em 2000, o
Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). Com relação ao Movimento de
Moradia do Centro, este foi dividido em 2003, quando algumas famílias
se desligaram do MMC e criaram o Movimento de Moradia Região
Centro (MMRC).
Todos esses movimentos eram ligados à União dos Movimentos de
Moradia de São Paulo (UMM), fundada na década de 1980. No ano de 47 NEUHOLD, 2009, p. 45.
fig 12. Mapa Perímetro Nova Luz.Elaboração: Daniela P. Rodrigues, 2012.fig 13. Esquema Divisão dos Movimentos de Moradia.Fonte: NEUHOLDElaboração: Daniela P. Rodrigues,2012.
4747
48 AQUINO, 2009.49 AQUINO, 2009.50 AQUINO, 2009.
2004, o MSTC, junto com o MMRC e o MTSTRC, entre outros movimentos
da região metropolitana de São Paulo, desligaram-se da UMM e fundaram
a Frente de Luta por Moradia (FLM). Para fins desta pesquisa, nos
ateremos apenas às questões relativas ao Movimento Sem Teto do
Centro (MSTC), responsável pelas ocupações do Edifício Prestes Maia
entre 2002 e 2010.
As principais maneiras pelas quais as famílias sem-teto tomam
conhecimento sobre os movimentos de moradia, neste caso sobre o MSTC,
se dão através de divulgação realizada em cortiços ou de cartazes colados
em postes e pontos de ônibus, bem como por divulgação de pessoas que
já faziam parte do movimento, com quem os novos integrantes mantêm
relações de amizade, profissionais, mas principalmente de parentesco.
Algumas pessoas demonstram uma resistência inicial em participar do
movimento, muitos só tinham ouvido falar em sem-teto pelos noticiários
televisivos, a partir das coberturas de ocupações, tendiam a achar que os
sem-teto eram compostos por baderneiros.48
A atividade que mais ocupa os integrantes das famílias que compõem
o movimento é a de camelô, mas também se encontram catadores de
material reciclável, garçons, manicures, faxineiras, seguranças. Boa parte
deles escolheu morar no centro por ser uma região com grande oferta de
serviços e oportunidades para esses tipos de atividades. Segundo uma das
coordenadoras do MSTC, qualquer pessoa deveria exercer seu direito de
escolher onde quer morar.49
Quanto à origem, tem-se uma grande maioria de nordestinos, além de
pessoas de outros países da América do Sul, dos quais se destacam muitos
bolivianos, que trabalham principalmente em confecções dos bairros do
Brás e do Bom Retiro, localizados na região central de São Paulo.50
48
interesse do mstc pelo prédio
Entre 2000 e 2001, de acordo com o relato 51 de Manoel Del Rio, advogado
do MSTC, surgiu um interesse da coordenação do movimento pelo Edifício
Prestes Maia, que estava abandonado há mais de 15 anos. Segundo ele, mais
ou menos nessa época, havia saído o Programa de Arrendamento Residencial
(PAR) da Caixa Econômica Federal, o que ocasionou uma grande procura de
prédios para serem apresentados ao programa.
O Programa de Arrendamento Residencial atuou em parceria com a
Prefeitura do Município de São Paulo durante a gestão da Marta Suplicy
com o intuito de promover a construção de conjuntos de locação social e a
reforma de edifícios reivindicados por movimentos de moradia no centro da
cidade. As famílias atendidas pelo PAR, que tivessem renda mensal de até
R$1800,00, pagariam por mês 0,7% do valor do imóvel. 52
Entre 2001 e 2002 há um período de negociações entre os proprietários do
Edifício Prestes Maia (Jorge Hamuche e seu sócio Eduardo Amorim), com
o MSTC e a Prefeitura do Município de São Paulo. Entretanto, não houve
nenhum tipo de acordo que viabilizasse a compra do imóvel pela Secretaria
Municipal de Habitação.
primeira ocupação
Diante dessas características, somados a vacância imobiliária do centro e a
existência de uma legislação favorável aprovada, como exposto nos capítulos
anteriores, que o Edifício Prestes Maia é ocupado pelo MSTC em 2002.
De acordo com o Fórum Centro Vivo 53, o edifício Prestes Maia foi ocupado
pela primeira vez em novembro de 2002, por 468 famílias, aproximadamente
1630 pessoas, organizadas pelo MSTC. O edifício foi inteiramente ocupado,
51 AQUINO, 2009.52 http://www.caixa.gov.br/pj/pj_social/mg/habitacao_social/par/saiba_mais.asp53 Fórum Centro Vivo, 2006, p.70.
4949
fig 14. Organização interna da Ocupação Prestes Maia (2002-2007).Fonte: RAMOSElaboração: Daniela P. Rodrigues, 2012.fig 15. Biblioteca Popular Prestes Maia.Henrique Parra, 2006.
mesmo sem contar com o funcionamento dos elevadores, dando o título ao
Prestes Maia de maior ocupação vertical da América Latina.
O edifício é uma construção de planta livre, com amplas dimensões,
capaz de comportar muitas famílias. Ao escolherem quem ia morar em
cada andar, as pessoas idosas ou com dificuldades de mobilidade tiveram
prioridade para ficar nos andares mais baixos, e houve uma intenção
de que as pessoas que partilhavam laços de parentesco ficassem no
mesmo andar. Os moradores definiram o espaço de cada família através
de uma lógica de aproveitamento das janelas, portanto, distribuíram-se
de forma perimetral, configurando a formação de um pátio no centro.
Eram aproximadamente 14 famílias por andar, sendo que cada uma ficou
com cerca de 10m², além de um espaço coletivo de convívio no centro.
Os banheiros e lavanderias eram coletivos, um por andar. No subsolo,
onde originalmente havia um estacionamento, estabeleceu-se um espaço
também coletivo no qual foi instalada a Biblioteca Popular Prestes Maia,
e também onde aconteciam assembléias, reuniões e confraternizações.
Além disso, era utilizado pelos catadores para armazenamento e separação
de materiais recicláveis.
Na organização interna da ocupação, as decisões eram tomadas
coletivamente em assembléias. Haviam comissões de moradores
encarregadas de funções específicas, como elétrica e hidráulica, por exemplo.
Os moradores pagavam uma taxa mensal de manutenção do prédio, no
valor de 20 reais. Havia programas de reciclagem, de alfabetização, oficinas
culturais e uma biblioteca comunitária.
Na portaria havia um regulamento interno fixado na entrada onde
constavam as normas de comportamento para as famílias moradoras da
ocupação, como por exemplo, definição de horários para entrada e saída, e
proibição do consumo de bebidas alcoólicas dentro do edifício.
50
Para que as negociações com o poder público fossem satisfatórias,
era necessário que a ocupação servisse de modelo de organização,
freqüentemente apontado pela coordenação como importante para o
atendimento no centro e não na periferia.54
A relatada necessidade de transformar a Ocupação Prestes Maia em
um modelo de organização pode ser compreendida visto que ocupar uma
propriedade alheia é um ato ilegal e não se justifica por si só, precisa se
tornar legítima perante a opinião pública. O modelo de organização apontado
acima dava visibilidade a ocupação e a legitimava, além de tornar viável a
vida em um prédio abandonado há anos.
negociações durante a ocupação (ações e reações / momentos de ruptura / hipóteses)
Já no início de 2003 os proprietários entraram na justiça com o pedido de
reintegração de posse. Em 12 de março o Juiz da 25ª Vara Cível do Foro Central
de São Paulo expediu a ordem de reintegração, discutindo apenas o caráter
ilegal da ocupação, sem colocar em pauta os direitos daquelas famílias.
Entretanto, apesar da ilegalidade contida no ato de ocupar um prédio que
não é deles, existe um contexto histórico e político por trás da ocupação, que
a torna apta a pleitear direitos. Tal contexto deve ser associado ao elevado
problema habitacional que aflige o município de São Paulo, bem como aos
instrumentos urbanísticos recém adquiridos, para fins do cumprimento da
função social da propriedade urbana no município de São Paulo.
Entre eles, nos cabe aqui citar a aprovação do Plano Diretor Estratégico 55
em 2002, com o intuito de ordenar o desenvolvimento da política urbana
municipal, a demarcação das Zonas Especiais de Interesse Social 56 em 2004,
destinando porções do território prioritariamente à regularização fundiária e
54 AQUINO, 2009.55 http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/legislacao/plano_diretor/index.php56 http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/legislacao/planos_regionais/index.php?p=822
fig 16. Foto “468 famílias ameaçadas”.Bijari, 2006.
5151
57 http://ww2.prefeitura.sp.gov.br/arquivos/secretarias/financas/legislacao/Lei-15234-2010.pdf58 Ofício do Secretário da Habitação e Desenvolvimento Urbano Paulo Teixeira para o Juiz de Direito da 25² Vara Cível do Foro Central da Capital, nº 469/SEHAB-G/2003.59 http://www3.prefeitura.sp.gov.br/cadlem/secretarias/negocios_juridicos/cadlem/integra.asp?alt=06092003D%20437290000
fig 17. Foto Direito à Cidade.Diana Helene.
a produção de habitação de interesse social, e a regulamentação do IPTU
progressivo no tempo 57 em 2010, forçando o proprietário do solo urbano
não edificado, subutilizado ou não utilizado a promover o seu adequado
aproveitamento.
Nesse sentido, em resposta à ordem judicial de reintegração de posse, o
então Secretário da Habitação Paulo Teixeira determina o cancelamento do
despejo, argumentando:
Os imóveis reintegrados estavam abandonados há alguns anos
pelos proprietários, o que ensejou a atual ocupação [...] face ao
candente problema habitacional que atualmente aflige grandes
contingentes populacionais urbanos. Tendo conhecimento do
problema esta municipalidade está apoiando negociações entre os
proprietários do imóvel e a Caixa Econômica Federal, objetivando o
seu arrendamento para os atuais ocupantes, com utilização do PAR
(Programa de Arrendamento Residencial) destarte solucionando o
litígio de modo menos dramático para estes e também sem causar
prejuízos para os proprietários.58
Posteriormente, em setembro de 2003, Marta Suplicy anunciou o Decreto
de Interesse Social (DIS) nº 43.729 59. Este decreto declarou o Edifício Prestes
Maia, entre outros na área central, de interesse social para desapropriação. A
Secretaria Municipal afirmou que estava contratando projetos de viabilidade
técnica para que as famílias fossem atendidas pelo PAR. Entretanto, a
desapropriação não se concretizou por falta de acordo entre o Judiciário,
a Prefeitura e os proprietários do edifício. Foram alegados problemas de
documentação do edifício, e a gestão seguinte revogou o decreto.
Esse primeiro período reflete um momento histórico claro, após anos
de lutas dos movimentos sociais e de intelectuais pela Reforma Urbana, o
Estatuto da Cidade acabava de ser promulgado, bem como o Plano Diretor
52
Estratégico (PDE) do Município de São Paulo e a demarcação das Zonas
Especiais de Interesse Social (ZEIS). Esses condicionantes representam um
período de ascensão e fortalecimento do processo de mobilização popular,
que são a explicação para o Prestes Maia ter sido ocupado nesse momento
– os instrumentos jurídicos recém conquistados e aplicação deles são a
esperança e a reivindicação do MSTC ao ocupar o edifício. O diálogo aberto
com as instâncias populares perceptível na gestão municipal de Marta Suplicy
(2001/2004) e o empenho em ampliar o uso habitacional no centro através de
programas como o Morar no Centro revelam uma convergência de interesses
entre o poder público e os movimentos de moradia, refletindo justamente
esse momento de euforia das forças populares, o que possivelmente justifica
a resistência da Ocupação Prestes Maia nesses dois primeiros anos, apesar
dos já existentes investimentos com vistas à revitalização do centro.
Em 2005, o Decreto de Interesse Social (DIS) foi revogado pelo então
eleito Prefeito do município de São Paulo, José Serra (PSDB); e o processo
de reintegração de posse do Edifício Prestes Maia teve continuidade. Além
disso, outros edifícios ocupados no centro de São Paulo sofreram remoções
forçadas, entre eles, os prédios da Rua Plínio Ramos, da Rua do Ouvidor, da
Rua Paula Souza e da Rua Tenente Pena. As famílias provenientes desses
despejos montaram um acampamento em frente aos prédios vazios,
simbolicamente batizado de Favela José Serra, em alusão ao prefeito que
autorizara a remoção dos prédios ocupados. A Secretaria da Habitação
cedeu um auxílio de R$ 250,00 para cada família (apelidada pelos moradores
de bolsa-miséria) que acabaram por aceitar e desmontar o acampamento.
Perguntado sobre o que fazer com os sem-teto, o secretário da
Habitação Orlando de Almeida Filho respondeu: tem um monte de
gente sem; eu, por exemplo, estou sem carro, que roubaram o meu,
estou sem relógio rolex, que não posso comprar... Cada um mora
onde pode morar. Desde que possa comprar o imóvel e morar.60
60 Trecho da entrevista ao Orlando Almeida Filho, ex Secretário Municipal da Habitação, concedida à repórter Natalia Viana em 1º de novembro de 2005.
fig 18. Conjunto Residencial Olarias. Programa Morar no Centro.Fonte: COHAB-SPfig 19. Conjunto Residencial Parque do Gato. Programa Morar no Centro.Fonte: COHAB-SP
53
5555
61 FCV, 2006, p. 33.62 SIQUEIRA, 2009.63 Orlando de Almeida Filho, Secretário Municipal da Habitação, em entrevista à Revista Notícia da Construção, 19/09/2005, defende a ocupação do centro pela classe média.
páginas anteriores:fig 20. Foto Favela José Serra.Mariana Cavalcante, 2005.fig 21. Foto Janela no Prestes Maia.Eduardo Costa.
acima:fig 22. Foto Despejo Plínio Ramos.Isadora Lins, 2005.
A reintegração de posse do Edifício Plínio Ramos, realizada em agosto de
2005, foi a mais violenta de que se teve notícias nos últimos anos na cidade
de São Paulo, segundo o Dossiê de Denúncias do Fórum Centro Vivo 61. Dois
meses depois foi realizada a reintegração de posse do Edifício Paula Souza.
E, no entanto, esta aconteceu sem violência, talvez devido a um recuo dos
moradores frente à violência sofrida pela ocupação Plínio Ramos. Em ambos
os casos, as famílias não foram encaminhadas para programas habitacionais.
Nesse mesmo ano, o Secretário Municipal de Habitação, Orlando de Almeida
Filho, anunciou que não dará prosseguimento ao projeto de reforma do
Edifício São Vito e que trabalhará com a possibilidade de implosão, visando
solucionar os males provenientes da deterioração do edifício.62
Se você coloca na mesma área uma população de renda inferior,
ela não vai conseguir acompanhar o ritmo, sendo previsíveis os
conflitos sociais [...] Se você reforma um prédio antigo, não consegue
a liberação dos bombeiros, por exemplo, por que não há áreas para
escada de incêndio. Acontece que o prédio já está lá. Só se derrubar e
fizer de novo. E esse não é o interesse. Precisamos achar alternativas
que possibilitem a aprovação do projeto, nestes casos [...] Trata-se
de uma realidade de mercado. Ninguém tem recursos hoje. Se não
houver créditos por parte das instituições financeiras, ficará difícil
viabilizar qualquer projeto.63
Enquanto isso os proprietários do Edifício Prestes Maia continuaram
exigindo a reintegração de posse do imóvel e a coordenação do MSTC
continuou entrando com recursos de adiamento do despejo. Em fevereiro de
2006, o movimento, em reunião com o poder público municipal, recebeu a
notícia de que a proposta de transformar o edifício Prestes Maia em moradia
popular era inviável, devido ao seu alto custo tanto de desapropriação quanto
pelas reformas necessárias (declarado pela COHAB após uma avaliação
técnica). Esse diagnóstico desfavorável contribuiu para os argumentos do
Ministério Público Estadual em favor do despejo.
56
A reação dos moradores para esta notícia culminou em um protesto no
dia 07/02/2006. Este, foi amplamente divulgado pela mídia, apoiado por
diversos coletivos de arte e fortemente reprimido pela polícia militar.
[...] São freqüentes as manifestações por meio de passeatas na
região central, causando transtornos a quem transita na cidade e
desrespeitando aqueles que de forma ordeira e civilizada fazem suas
inscrições nos programas públicos de atendimento habitacional [...] A
população da cidade de São Paulo que acorda cedo, trabalhar, estuda,
que quer melhorar de vida, pretende realizar o sonho de ter sua casa
própria, não tolerará ser passada pra trás por lideranças que incitam a
invasão de propriedades alheias.64
No mesmo dia, o poder público municipal ofereceu aos sem-teto um auxílio
de R$ 5.000,00 para as famílias que deixassem a cidade de São Paulo e
voltassem para a sua terra natal. Todos que recebessem esses recursos seriam
considerados atendidos e retirados dos cadastros dos programas de moradia.
Essa proposta municipal de verba assistencial para que as famílias sem-
teto voltem para sua terra natal, já oferecida também às famílias provenientes
dos despejos citados anteriormente, demonstra uma pretensão do poder
público que vai além de expulsar as pessoas da região central, mas também
expulsá-las da cidade de São Paulo.
Será que podemos classificar esse tipo de conduta como uma
política pública? Desconsiderando completamente os direitos
constitucionais de um cidadão brasileiro. Quem seriam os verdadeiros
paulistanos com direitos de nascença, seriam eles os Guaranis? Como
numa cidade considerada cosmopolita como São Paulo; composta de
originais, como os indígenas; os que obrigados foram arrastados para
cá, escravos africanos; os que aqui reinaram tortura, conquistadores
portugueses; os que acreditaram numa terra sonho, italianos e
64 Orlando de Almeida Filho, Secretário Municipal da Habitação, em artigo no jornal Folha da Tarde, 26/02/2006.
5757
65 AFFONSO, 2010.66 Reunião da Polícia com os moradores da Ocupação Prestes Maia, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=C2qTWnIDm2U&feature=related
japoneses, ou mesmo judeus; os refugiados de genocídios, armênios;
os que buscaram oportunidades, coreanos e seus rivais chineses; os
estrangeiros que prestam o papel de escravos voluntários no centro de
São Paulo, refugiados da miséria, bolivianos e peruanos; sem contar os
haitianos que estão por desembarcar, os angolanos, cabo-verdianos;
há também os nossos próprios, brasileiros, atraídos como estes
estrangeiros, por razões bastante conhecidas, fruto das desigualdades
deste país, os nordestinos e povos do norte, estão aqui há algumas
décadas, desde que os estrangeiros emanciparam-se a patrões. Seria
São Paulo ainda o mesmo sertão de índios brabos da outrora original
Guarani? Quem pode distinguir-se? Quem é branco? Quem é preto?
Não sabemos há muito tempo, mas, o que temos certeza e podemos
infelizmente apontar por aí é quem é pobre. Esta foi uma cidade que
nasceu para ter os ares frios e temperados como os da Espanha, já
brotou colonizada, nova rica, deslumbrada, e devemos a todo momento
recordar que ninguém, ninguém, daqui surgiu espontaneamente. Aqui
se construíram natividades, lares-cidade, sonhos, paixões. Tentar
exportar a própria pobreza é no mínimo uma porcaria.65
No final de 2006, apesar da força de vários coletivos de artistas e intelectuais
para chamar a atenção da opinião pública, ocorre uma decisão judicial que
determina a reintegração de posse do edifício. A Polícia Militar chega a alegar
uma impossibilidade de realizar a reintegração devido à probabilidade de
confronto violento, entretanto, o Juiz permanece com a sua decisão.
Foi favorável ao proprietário a desapropriação. Então isso é fato
consumado, não dá pra fugir disto, vocês só tem duas saídas: ou sai,
ou sai! Nós temos que cumprir a determinação do juiz e estamos
aqui reunindo os órgãos envolvidos para que isto ocorra da forma
menos traumática possível [...] Eu falei desde o começo, o governo
está fora. O problema é entre vocês, o dono do prédio, que pediu a
reintegração, e nós.66
58
Aziz Ab’Saber realiza uma palestra no dia 11/11/2006 no subsolo do edifício,
fazendo um discurso próximo ao das lideranças do MSTC, elucidando
as atitudes dos governantes em oposição às famílias e estimulando as
práticas de coletivização para o sucesso da ocupação, isto é, para garantir o
atendimento por parte do poder público.67
A mudança da gestão municipal de Marta Suplicy do PT (2001/2004)
para José Serra do PSDB (2005/2006) representa um momento de
reação conservadora diante da fragilidade - que se revelava - das recentes
conquistas dos trabalhadores. A revogação do DIS, os inúmeros despejos
truculentos de edifícios ocupados no centro de São Paulo e a decisão judicial
pela reintegração de posse do Prestes Maia, muito possivelmente estão
relacionados com a conjuntura política/social desse período entre 2005 e
2006, momento esse de claro abalo na articulação do poder público com os
movimentos sociais e de forte direcionamento dos investimentos públicos e
privados para a revitalização do centro.
Entre os dias 06 e 22/02/2007 os moradores montam um acampamento
na frente da Prefeitura, com o intuito de pressionar novas negociações,
reivindicando o adiamento do despejo e um atendimento habitacional para
as famílias. Durante o período do acampamento, o Tribunal de Justiça de
São Paulo determinou que a reintegração de posse do Prestes Maia deveria
acontecer no dia 25/02/2007.
Em vista da estremecida relação e da impossibilidade de diálogo entre
os moradores do Prestes Maia e o Secretário da Habitação, Orlando de
Almeida, um grupo de artistas e intelectuais lança um apelo ao poder público
municipal para que se tente mais uma vez uma solução amigável.
[...] o local estava abandonado e servia de ponto para o tráfico de drogas.
Os atuais moradores afastaram o crime e revitalizaram o comércio da
região. Eles sobejamente demonstraram que a cidade é revitalizada 67 AQUINO, 2009.
5959
68 Aziz Ab’Saber, Maria Rita Kehl e Pádua Fernandes, Revitalizar sem segregar: o direito à cidade. Tendências e Debates, Folha de São Paulo, 12/04/2007.
pelos próprios cidadãos: se forem expulsos devido a um projeto
segregacionista e estetizante, é parte da cidade que morre [...] Embora
o Judiciário não tenha se manifestado em favor desses cidadãos que,
vale dizer, construíram para a cidade um novo espaço onde o lixo,
a lama e o crime vicejavam, é preciso lembrar que o direito está do
lado deles. A função social da propriedade e o direito à moradia estão
previstos na Constituição brasileira, mas, quando ela será aplicada
em favor dos pobres? O Pacto Internacional de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais da ONU também os ampara – mas quando o Brasil
cumprirá seus deveres internacionais para com os direitos humanos?
[...] A legalização da ocupação Prestes Maia, além de resolver o
problema da falta de moradia para centenas de famílias que hoje vivem
no prédio e cuidam dele, representaria um grande passo de civilidade
para o nosso município. Seria uma estratégia inteligente para que a
vocação original do espaço urbano seja cumprida: a hospitalidade, a
cooperação criativa, o trabalho coletivo, o encontro. E que o direito à
cidade seja garantido àqueles que a constroem.68
Dessa maneira, o prefeito Gilberto Kassab, recém empossado perante a
candidatura de José Serra ao governo do Estado de São Paulo, nomeia Walter
Abraão Filho, Diretor Comercial da COHAB, como novo mediador do conflito.
A partir de então, o movimento consegue pleitear uma nova abertura de
negociações junto à Prefeitura e a reintegração de posse é suspensa por 60 dias.
Em abril de 2007 foi criado um plano de ação conjunta entre o Município,
o Estado e a União, que contemplava o adiamento da reintegração de posse
e a escolha de três edifícios no centro que pudessem se tornar habitação
popular, que deveriam ser comprados com uma liberação de 20 milhões
de reais do PAC. Além disso, essa verba deveria garantir o pagamento de
seis meses de auxílio aluguel para os moradores do Prestes Maia, enquanto
aguardariam uma moradia definitiva.
60
No mesmo mês o próprio Prefeito Gilberto Kassab visitou o Prestes
Maia e anunciou que a reintegração de posse fora suspensa por mais 60
dias e que seria promovida a saída progressiva das famílias para moradias
definitivas ou auxílio aluguel, graças ao esforço conjunto das três esferas de
governo. Walter Abraão Filho também compareceu à ocupação neste mês
para esclarecer quais opções de atendimento as famílias teriam, sendo elas:
_auxílio aluguel de R$300,00 por mês durante seis meses até que os
imóveis no centro fossem comprados;
_unidades de um empreendimento já pronto da CDHU em Itaquera, um
bairro na periferia da cidade de São Paulo.
Houve uma comoção por parte da maioria das pessoas presentes, muitas
palmas, gritos de alegria, abraços:69
Fiquei muito alegre com a notícia. No fundo, eu sempre achei
que seríamos vitoriosos.70
A partir da recepção positiva dos moradores com relação às propostas de
atendimento do poder público municipal, podemos perceber um primeiro
indício de desarticulação do movimento. A ocupação é um ato político, que
só se justifica na esfera política. A partir do momento em que os moradores
aceitam o desmonte dessa ocupação perante uma promessa do poder
público de atendimento de demanda, acabam por enfraquecer e esvaziar o
movimento político.
Ao aceitarem as unidades habitacionais da CDHU em Itaquera revelam-se
coniventes com a produção pública de habitação na periferia da cidade –
sendo que a premissa principal do movimento era reivindicar habitação na
área central – além de se disporem a uma fragmentação da luta, ao optarem
por atendimentos isolados de acordo com interesses individuais.
69 AQUINO, 200970 Anita Mendes, moradora do Prestes Maia, em entrevista ao jornal A Folha de São Paulo em 14/04/2007.
fig 23. Mapa Localização CDHU Itaquera.Elaboração: Daniela P. Rodrigues, 2012.
6161
71 G1 – O Portal de Notícias da Globo, 15/06/2007.72 G1 – O Portal de Notícias da Globo, 15/06/2007.
Dessa maneira, compreendemos que o discurso que coloca os
movimentos populares em constante oposição ao poder público acaba
por amparar uma visão maniqueísta sobre a luta pela terra urbana. Essa
luta envolve uma complexa trama que entrelaça interesses diversos e não
deve ser simplificada. Os movimentos por moradia, assim como o poder
público, não representam um todo homogêneo, e dessa maneira, em alguns
momentos o poder público pode agir em consonância com as reivindicações
populares, assim como, os movimentos podem se beneficiar de políticas
que não favoreçam necessariamente o coletivo, ou seja, nem sempre há
uma oposição absoluta entre eles. E são justamente esses, ora conflitos, ora
associações, que desenharão as políticas municipais.
No mês seguinte, maio de 2007, iniciou-se a saída pacífica das famílias
que optaram por ir para unidades da CDHU em Itaquera. Os proprietários
receberam o imóvel desocupado no dia 18/06/2007. Falaram em transformar
o edifício em um centro de escritórios, e disseram ter conseguido um desconto
na dívida de IPTU (através do Programa de Parcelamento Incentivado da
Prefeitura do Município de São Paulo). Segundo Manoel Del Rio, advogado
do MSTC, tal desconto não tem base jurídica, para a Prefeitura abrir mão de
impostos seria necessária uma aprovação legal.71
Portanto, após cincos anos de ocupação e muitas ameaças de reintegração,
o Prestes Maia foi desocupado mediante acordo entre as três esferas de
governo, resultando em uma desocupação pacífica dos moradores. Das 468
famílias, o acordo foi que 150 seriam atendidas pela CDHU em Itaquera e as
demais receberiam uma ajuda de custo de R$ 300,00 por mês 72, enquanto
aguardavam um atendimento definitivo.
Como se vê, o período descrito anteriormente como momento de forte
reação conservadora perante as reveladas frágeis conquistas populares,
culmina em 2007, com a reintegração de posse do Edifício Prestes Maia.
Atitudes como a troca do mediador do conflito efetuada pelo Prefeito
62
Gilberto Kassab, ao declarar o intuito de se obter um acordo amigável; a
forma pacífica de remoção das famílias; somadas à desarticulação do
movimento; resultaram em uma aceitação bastante positiva com relação
às propostas municipais de atendimento habitacional – tanto das famílias
quanto da opinião pública.
Podemos observar nessa passagem a intenção do Prefeito Gilberto Kassab
de provocar a aceitação da opinião pública, com o provável intuito de se
manter no poder, visto que no ano seguinte (2008) aconteceriam novas
eleições municipais, onde o mesmo foi reeleito.
papel da biblioteca, da mídia e dos artistas
Não obstante, o Edifício Prestes Maia foi o que resistiu ocupado por
mais tempo após receber o primeiro mandado de reintegração de posse.
Essa resistência, principalmente entre 2005 e 2006, parece estar vinculada
diretamente à participação de diversos apoiadores pela luta por moradia no
centro da cidade. Os artistas e intelectuais que apoiaram a Ocupação Prestes
Maia, nos vários momentos citados anteriormente, são pessoas públicas,
que aparecem na mídia freqüentemente e, portanto, são formadores de
opinião. Ao apoiarem a luta dos moradores publicamente, deram grande
visibilidade à ocupação e conquistaram uma opinião pública positiva,
além de denunciarem as práticas higienistas do poder municipal. Inclusive
a mídia, ao explorar a história pessoal de alguns moradores da ocupação
Prestes Maia, acabou por humanizar a discussão.
Dessa maneira, essa relação entre atores externos e moradores legitimou a
ocupação perante a opinião pública e fortaleceu a luta, fator esse determinante
para a resistência da ocupação por cinco anos, enquanto outras ocupações
contemporâneas ao Prestes Maia resistiram por muito menos tempo.
6363
73 REVISTA ÉPOCA, 2006, apud AFFONSO, 2010, p.107.
Por outro lado, percebe-se que a conquista da opinião pública através
desse apoio dos artistas não universalizou os direitos, ou seja, não foi eficaz
na conscientização da população dos direitos daquelas famílias e do papel
do estado de garanti-los. Podemos afirmar isso, pois, se essa estratégia
de divulgação tivesse sido efetivamente conscientizadora, legitimaria e
fortaleceria todas as ocupações, entretanto, legitimam apenas o Prestes
Maia e por isso ele resiste mais que os outros.
Outro fator importante para a concretização desse símbolo de resistência
e determinante para o processo de tornar a ocupação legítima perante
a opinião pública foi a organização interna da ocupação. A existência
de uma Biblioteca Popular, de programas de alfabetização, reciclagem,
assim como o regulamento interno da ocupação, as decisões coletivas e
a manutenção predial dividida em comissões de moradores com funções
específicas, também foram estratégias de visibilidade da ocupação na
mídia e pela conquista da opinião pública. Ao atrair pessoas de fora
que se interessavam em conhecer o modelo de organização do Prestes
Maia, convencia-se que os moradores não eram baderneiros, mas sim
trabalhadores.
O catador de lixo Severino Manoel de Souza fechou os olhos. A
guilhotina preparava-se para decepar Machado de Assis. Algumas
das melhores páginas da literatura brasileira seriam reduzidas a
papel branco, 8 centavos o quilo. Pára, gritou Severino. Isso é um
crime muito grande. Foi nesse momento, tendo por cenário um
galpão de reciclagem, que começou a biblioteca dos sem-teto do
edifício Prestes Maia. Após este evento, ele e a mulher Roberta
Maria da Conceição, de 44 anos, passaram a abrigar todos os
exemplares sem-teto que iam topando pela rua, a reportagem
conta passagens trágicas da vida do casal e revela como foram
parar na ocupação.73
64
Seu Severino e Roberta tendiam a valorizar o papel da biblioteca enquanto
principal elemento de divulgação positiva da ocupação, responsável
pelos contínuos adiamentos da reintegração e posteriormente pelo
atendimento prometido às famílias. Defendiam que a biblioteca trouxe
visibilidade e respeito à ocupação e ao movimento. Entretanto, para
Jomarina, coordenadora da ocupação, a biblioteca só era freqüentada por
pessoas de fora e não por moradores, e essas pessoas que visitavam
a biblioteca não se preocupavam com os problemas dos moradores,
portanto, para ela, a biblioteca não era tão importante assim para a
ocupação.74
Ou seja, o modelo de organização interna tornou a ocupação legítima
perante a opinião pública, e seus moradores passaram a ser considerados
aptos a pleitear direitos, pois eram merecedores. Sendo assim, também não
foi eficaz no que tange a universalização dos direitos. Portanto, também
não conscientizou a população do papel do estado de garantir o direito à
moradia digna e à cidade a todos, não só aos que comprovam seu mérito
perante a opinião pública.
O contexto já mencionado do elevado déficit habitacional, da vacância
imobiliária do centro e da existência de uma legislação favorável ao
cumprimento da função social da propriedade urbana, isso sim legitima
todas as ocupações através da consciência de que todos os moradores
de prédios ocupados no centro de São Paulo são possuidores de direitos
e de que devem reivindicá-los. Portanto, a organização interna e o
apoio dos artistas demonstram-se estratégias frágeis de legitimação,
apesar de terem sido determinantes para a resistência da Ocupação
Prestes Maia em um momento onde todas as outras ocupações foram
despejadas e seus moradores não tiveram nenhum tipo de atendimento
habitacional.
74 AQUINO, 2009.
fig 24. Biblioteca Popular Prestes Maia.Antonio Brasiliano, 2006.
6565
75 AQUINO, 2009.76 Jomarina, ex-coordenadora da ocupação Prestes Maia, em entrevista concedida à Elenira Arakilian Affonso, 13/01/2010.
destino das famílias
Após a desocupação do Prestes Maia, os moradores que optaram por
permanecer na região central concentraram-se em cortiços ou migraram para
outro prédio ocupado, na Rua Mauá. Essa ocupação foi uma alternativa aos
altos preços de aluguel cobrados na região. Essas famílias argumentavam
que os prédios oferecidos pela CDHU em Itaquera eram muito distantes,
carentes de serviços, empregos e infraestrutura. Já os moradores que
escolheram Itaquera diziam que: mais vale um pássaro na mão do que dois
voando. 75 (temos aqui novamente um indício de individualização da luta,
que pode, de certa maneira, transformar um movimento de moradia em
apenas uma reivindicação popular atendida)
Lá em Itaquera é assim, o apartamento é bom, é grande, dois
quartos, sala, cozinha, mas a infra-estrutura... No primeiro ano,
quando as pessoas foram pra lá, em 2007, as pessoas perderam
escola, a escola é longe. Mesmo assim conseguiram bastante
coisa, tem perua, tem ônibus, mas mesmo assim, às vezes os pais,
para vim trabalhar, tem dificuldade de condução. Porque se você
mora no centro, você acessa tudo, você vai a pé, nem que ande
bastante, você consegue e lá não. Você tem que disponibilizar de
duas conduções, uma perua até o metrô e pegar o metrô, o ônibus
ou dois ônibus. [...] A Radial Leste é congestionada de manhã e a
tarde, é complicado. E o ponto de ônibus é longe, agora que eles
colocaram um asfaltinho na metade da rua, até pra chegar nos
condomínios é difícil, é barro quando chove.76
Segundo dados publicados pela Prefeitura do Município de São Paulo, no
ano de 2007, 148 famílias já estavam morando em casa própria da CDHU
em Itaquera. Outras 342 famílias recebiam auxílio aluguel e aguardavam
uma moradia definitiva na região central.
66
procura de imóveis no centro
Para aqueles que optaram por aguardar por uma moradia definitiva na
região central, o governo federal disponibilizaria para cada família cerca de
R$27.650,00, como subsídio, e a CDHU complementaria com o restante
para atingir o valor da unidade. Apenas o valor complementado pela CDHU
seria financiado para as famílias.
Esse atendimento no centro, entretanto, resvalou em questões urbanas
como os altos custos dos imóveis nessa região e também nas regras de
aplicação dos recursos, o que impossibilitou que o processo fosse completado.
A coordenação do movimento passou anos à procura de imóveis passíveis de
desapropriação para fins de habitação de interesse social, entretanto, a seleção
desses edifícios passava obrigatoriamente por uma avaliação da CDHU com
relação a sua adequação urbana para interesse social. Tratava-se de um estudo
de compatibilidade com o entorno para não haverem conflitos sociais, isto
é, se o entorno passou por revitalização, se existissem moradores de classe
média, ou mesmo a presença de uma associação de comerciantes ativa, os
prédios eram descartados.77 A existência desse estudo revela um preconceito
relacionado à coexistência com os sem-teto por parte do poder público.
Outro motivo alegado pelo poder público como impedimento para a
compra de imóveis no centro era a questão do desmembramento dos
prédios antigos, que possuíam uma escritura única, o que contrariava as
regras de aplicação dos recursos.
A partir de 2008, com a crise financeira mundial, acirrou-se a procura por
imóveis em busca de investimentos mais estáveis na cidade de São Paulo,
e, dessa maneira, houve uma renovação do interesse pela região central.
Soma-se a isso o empenho da atual gestão municipal em seu projeto Nova
Luz 78, gerando uma onda de especulação no centro da cidade e resultando
77 AFFONSO, 2010.78 Ver projeto em http://www.novaluzsp.com.br/home.asp.
6767
79 Manoel Del Rio, advogado do MSTC, em entrevista concedida a Elenira Arakilian Affonso, 2009.80 AFFONSO, 2010.81 Manoel Del Rio, advogado do MSTC, em uma reunião no dia 06/11/2007, em comemoração aos cinco anos da ocupação Prestes Maia, segundo AQUINO, 2009.
em um aumento significativo no valor dos imóveis. Essa questão coloca-se
como um obstáculo ao prometido atendimento habitacional no centro: se
em 2007 havia a possibilidade de se adquirir um imóvel no centro, em 2010,
a oferta diminuiu e os preços aumentaram consideravelmente.
Veja bem, o quanto valorizou daquela época para agora. Vamos ver,
se ele tivesse vendido o imóvel, segundo dos dados que eu coleto
por aí, é o melhor investimento, dá um retorno maior do que uma
indústria, comércio, do que qualquer outro investimento. É como se
fosse um cofre, entendeu? É um dinheiro lá no cofre valorizando, ele
não está parado, embora ele esteja se deteriorando, vazio.79
Segundo AFFONSO 80, apenas 11,5% das famílias que optaram por não
ir para Itaquera conseguiu efetivamente comprar seus imóveis, mas não
na região central. Estes romperam com o processo em grupo em busca de
edifícios centrais passíveis de desapropriação e resolveram seus problemas
individualmente. As famílias remanescentes permanecem até hoje sem
atendimento habitacional definitivo.
Se eles tiverem nos enganando, vamos dar uma rasteira e se eles
não cumprirem, vamos ocupar o Prestes Maia de novo? Ao que a
grande maioria respondeu em coro: Vamos!81
Dentre todas as dificuldades encontradas, essa questão da solução
individual versus a solução coletiva, possivelmente foi o fator de maior
ameaça à preservação do movimento, presente inicialmente na opção
de algumas famílias irem para unidades habitacionais em Itaquera, e
posteriormente, entre as famílias que optaram pela carta de crédito, que
acabaram buscando soluções individuais para não perderem a chance de
adquirir uma casa própria. Esse processo foi incentivado pelo poder público
que, se empenhando em promover a fragmentação, atraiu o movimento
para os seus objetivos.
68
Você está entendendo porque não está realizando? Quanto tempo
existe essa busca para que não saia do coletivo? Já está fadado ao
fracasso! Se ela (referindo-se à coordenadora do movimento) continuar
com essa teoria, eles vão ficar presos nessa situação a vida toda e vão
perder as cartas de crédito. Porque vai ter uma hora que este governo vai
cortar o subsídio, porque isto é contrato, não vai ser vitalício. A qualquer
momento esse subsídio vai acabar. Se o próximo governo não achar que
é interessante repassar, a CDHU não vai assumir os R$ 27.000,00.82
Cabe citar também a disputa entre os movimentos de moradia para garantir
o atendimento habitacional de seus integrantes. As administrações públicas
municipais, ao perceberem as discórdias entre os movimentos, tenderam a
incentivar a fragmentação e o enfraquecimento da luta. Nesse sentido, os
movimentos vêm se distanciando da perspectiva de uma luta conjunta para
a democratização do acesso às políticas sociais. 83 Fragmenta-se assim a luta
em torno do direito à moradia digna no centro de São Paulo.
Eles buscaram uma forma de dividir os movimentos [...] Na verdade
a palavra certa é cooptação. Vamos pegar o movimento mais forte,
ou o que dá mais porrada, a gente atende e engessa esse movimento.
Assim, ele não vai mais se agrupar, porque já foi atendido.84
estado de abandono em que continuam os prédios reintegrados
Entre a desocupação (do Edifício Prestes Maia) e as novas ocupações
do mesmo, realizadas em 2010 pelo MSTC, o prédio ficou vazio e lacrado.
Para garantir que o prédio não fosse ocupado novamente, tanto o Prestes
Maia quanto os outros edifícios citados foram construídas paredes nos
vãos das portas e janelas do térreo e do primeiro andar, ação essa nomeada
pelo poder público de emparedamento e pelas famílias despejadas de
muro da vergonha.
82 Ivana Haddad Nasser, responsável pelo atendimento ao grupo Prestes Maia na CDHU, em entrevista concedida à Elenira Arakilian Affonso em 09/02/2010.83 NEUHOLD, 2009.84 Míriam Hermógenes, apud, SIQUEIRA, 2009, p. 119.
7171
85 Revista Veja, 26/10/2008.86 Jornal da Tarde, 27/04/2010.
acima:fig 25. Foto “Dignidade”.Antonio Brasiliano, 2005.
páginas anteriores:fig 26. Foto Muro da Vergonha.Fórum Centro Vivofig 27. Foto Zumbi Somos Nós.Julia Valiengo, 2006.
Em reportagem da Revista Veja, mais de um ano após a saída das famílias
que ocupavam o Prestes Maia, é descrita a situação de abandono na qual
se encontrava o edifício naquele momento. A reportagem também descreve
a situação do Edifício da Rua do Ouvidor, de onde 650 pessoas foram
removidas em 2005, e continua vazio até então.85
Após a reeleição do Prefeito Gilberto Kassab (2008/2012), projetos como
a Nova Luz e as operações de higienização no centro da cidade podem ter
motivado as novas ocupações do Edifício Prestes Maia, que vieram ocorrer
em 2010, bem como a não realização plena dos atendimentos habitacionais
prometidos às famílias anteriormente (2007).
segunda ocupação
No dia 27/04/2010 o Edifício Prestes Maia foi ocupado pela segunda vez
pelo MSTC. Eles reivindicam a desapropriação do edifício, e de mais outros
três, o Edifício do INSS na Avenida 9 de julho; o segundo na Rua Mauá e o
terceiro na Av. São João.
Em uma reunião do movimento com a Secretaria de Habitação do Município
foi acordado que sob o comprometimento dos movimentos desocuparem
os imóveis, a Prefeitura vai colaborar junto aos órgãos estadual e federal na
negociação de parte das reivindicações, mas caso o movimento insista em
manter as invasões a Prefeitura se isentará das responsabilidades.86
terceira ocupação
A terceira ocupação do Edifício Prestes Maia aconteceu no dia 04/10/2010,
quando cerca de dois mil integrantes da FLM (Frente de Luta por Moradia
– união entre movimentos de moradia no centro, entres eles o MSTC,
72
oficializada em 2004) ocuparam quatro prédios no centro: São João nº 588,
Ipiranga nº 799, Prestes Maia nº 911 e Av. Nove de Julho nº 584. O perfil
dos edifícios é muito semelhante ao do Prestes Maia: abandonados por
cerca de 20 anos e devedor de IPTU. O movimento reivindica a reforma dos
edifícios para a população de baixa renda. Jorge Hamuche, proprietário do
Edifício Prestes Maia, logo entrou com uma ação do poder público para a
desocupação do prédio.87
Em junho de 2011, segundo Mariana Desidério Barbosa 88, viviam no
Prestes Maia 300 famílias, cerca de 1500 pessoas, desde 04/10/2010. Elas
ocupam 20 andares do prédio, sendo que os dois últimos estão interditados
por infiltração.
Em outubro de 2011 a Ocupação São João e a Ocupação Prestes Maia
comemoraram um ano de resistência, sendo que os outros dois edifícios
ocupados no mesmo dia já haviam sofrido remoções forçadas.
Apesar da regulamentação da Lei nº 15.234 em julho de 2010, que define
a aplicação do IPTU progressivo no tempo em imóveis dentro do perímetro
da Operação Urbana Centro, que é o caso do Edifício Prestes Maia, este não
consta na lista de imóveis notificados pela prefeitura.89
situação atual
Não há informações disponíveis na mídia sobre a atual situação da
Ocupação Prestes Maia. A única notícia veiculada pela imprensa no ano
de 2012 diz respeito a uma visita do candidato a Prefeitura de São Paulo,
Fernando Haddad (PT), ao edifício no dia 13/09/2012. Essa mesma
reportagem que o edifício está ocupado, naquele momento, por cerca de
300 famílias.90
87 Jornal A Folha de SP, 05/10/2010.88 www.edificiosabandonados.com.br, acessado em 10/09/2012.89 Veja lista em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/980800-donos-de-1053-imoveis-podem-ter-iptu-progressivo.shtml90 G1 – O Portal de Notícias da Globo, 13/09/2012.
7373
91 http://observatorioderemocoes.blogspot.com.br/
Segundo dados do Observatório de Remoções91 (formado por
pesquisadores do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos
e do Laboratório do Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) as famílias que
atualmente ocupam o edifício já foram notificadas de uma futura remoção,
bem como, a CDHU já realizou uma vistoria no imóvel para verificar
possibilidades de desapropriação e reforma.
7575
últimas palavras
O caso estudado nos permitiu uma interpretação possível da história do
Edifício Prestes Maia. História essa que consideramos emblemática por
estar inserida em um conjunto generalizado de ações do capital imobiliário,
apoiadas e incentivadas pelo poder público, condenando o destino da cidade
e de seus habitantes.
Acreditamos na importância do resgate dessa história, pois a disputa
pela apropriação da terra tem se dado de forma extremamente violenta, em
função dos projetos de infraestrutura, de revitalização, dos megaeventos,
etc. Não demora aquele território se transforma e ninguém sabe mais o que
aconteceu, a história vira outra.
Após 30 anos de lutas sociais nas quais a questão principal era os direitos,
estes continuam sendo violados. O destino da cidade vem sendo traçado
sem a superação de questões históricas, como o problema do acesso à
terra urbana.
Este trabalho espera ter contribuído para uma leitura crítica a respeito
da política urbana no município de São Paulo e do progresso atribuído às
conquistas decorrentes da luta pela Reforma Urbana.
7777
aNexoconstrução da estrutura fundiária no brasil
Entender a formação da estrutura fundiária brasileira requer algumas
explicações sobre a formação e estruturação da Monarquia Absoluta
Portuguesa, responsável pela colonização do Brasil e pelo seu
ordenamento territorial.
O reino de Portugal foi constituído entre o século XI e XIII a partir de
disputas com o povo árabe e espanhol. As terras conquistadas através
dessas disputas foram incorporadas ao domínio do rei, o que determinou
a configuração física do país. No século XIV, uma revolução resultou na
formação da Monarquia Absoluta Portuguesa. A estrutura patrimonial
portuguesa é decorrente da centralização do poder nas mãos do rei, e
é essa característica que guiará o modelo de ordenamento territorial no
Brasil colonial.
A partir de então, terminadas as guerras, o país voltou-se para o comércio
internacional, através de aventuras pelos mares, com o apoio do capital
holandês e inglês, iniciando um período de colonização na África, na Ásia
e no Brasil.
O território brasileiro já pertencia a Portugal antes do seu descobrimento.
Com intuito de solucionar as disputas por terras foi assinado, em 1494, o
Tratado de Tordesilhas entre Portugal e Espanha, por intermédio do Papa.
Consistia em uma linha imaginária traçada a partir do Norte do Brasil até
o Sul. Destinava as terras a leste da linha para Portugal e a oeste para
Espanha. Essa divisão foi posteriormente alterada pelo Tratado de Madri,
em 1750, diante do bandeirismo que alargou as fronteiras do país, em
benefício de Portugal.
78
Esse tratado, que atribuiu poderes absolutos ao rei de Portugal sobre terras
ainda desconhecidas, constitui um importante referencial para os estudos
do ordenamento jurídico da terra no Brasil:
O descolamento existente entre o instrumento jurídico que
reconhece oficialmente o domínio e a realidade da configuração
geográfica, ambiental e da ocupação humana se reproduz desde o
período colonial até os dias de hoje.92
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, a forma anterior de organização
territorial e a relação que os índios tinham com a terra foi ignorada. Portanto, o
atual regime de terras no Brasil tem origem no descobrimento, quando todo o
território brasileiro passa a pertencer à monarquia portuguesa e, dessa maneira,
foi aplicado aqui o mesmo ordenamento jurídico de Portugal – as Ordenações
Afonsinas. A colonização do Brasil foi feita sob a estrutura patrimonial
portuguesa, que manteve o domínio do território por meio do sistema de
distribuição de terras e também sob a expansão do capitalismo comercial.
Faoro assinala o caráter patrimonialista que o Estado português
assume, cuja referência é a indissociação entre o público e o privado
atinente à forma da propriedade. O traço marcante antifeudal da
Coroa será o de não abrir mão da soberania do Estado na concessão
de domínio da propriedade fundiária. [...] A falta de fronteiras entre o
público e o privado tem na sua origem a concentração fundiária em
poder da Coroa e a derivação da monarquia agrária para a monarquia
mercantil e colonial, sem que se dê a absolutização da propriedade.93
Em 1375, num contexto de crise econômica na Europa, foi instituída em Portugal,
por D. Fernando I, a Lei de Sesmarias. Consistia na prática de doar terras não
cultivadas gratuitamente, viabilizando seu aproveitamento, com intuito de reverter
uma deficiência de abastecimento. Essa doação se dava através de uma concessão
condicionada ao uso produtivo da terra (ocupação com cultivo e desbravamento).
92 NETO, 2006, p. 60.93 SMITH, 1990, p. 97-98, apud NETO, 2006, p. 58.
7979
94 FAORO, 2008, apud AMBROSIO, 2012.95 Ordenações Filipinas, Livro IV, p. 822 e 824, apud AMBROSIO, 2012.96 NASCIMENTO, 1985, p. 7, apud VARON, 2005, p. 34.
Diante da necessidade de superar essa crise produtiva na agricultura e
manter a população no campo, a finalidade principal da Coroa Portuguesa
ao conceder sesmarias era a distribuição das terras não cultivadas sob a
forma de pequenas propriedades, forçando o lavrador a cultivar a terra que
recebesse, sob a pena de perdê-la. Segundo FAORO94, foi quando a terra
passou a ser utilizada como instrumento para consagrar a agricultura e o
repovoamento.
Sesmarias são propriamente as dadas de terras, casas ou pardieros,
que foram, ou são de alguns Senhorios, e que já em outro tempo
foram lavradas e aproveitadas e agora não o são. [...] E se as pessoas
que assi forem dadas as sesmarias, às não aproveitarem ao tempo que
lhes foi assinado, ou no tempo que neste Ordenação lhes assinamos,
quando expressamente não lhe for assinado, façam logo os sesmeiros
executar as penas que lhe forem postas, e dêm as terras que não
stiverem aproveitadas, a outros que as aproveitem, assinando-lhes
tempo, e pondo-lhes a dita pena.95
O Regime de Sesmarias, vigente na metrópole desde o século XIV, é
transferido para a colônia. Sendo assim, a outorga de sesmarias foi o
primeiro modo de aquisição de terras no Brasil.
Não se pagava ao Rei de Portugal qualquer tributo pela utilização da terra.
Entretanto, cabia àqueles que recebessem sesmarias o pagamento do dízimo
de Deus. Isso se explica pela notável importância da relação entre a Igreja
Católica e o Estado: todo o território brasileiro estava sob a competência
da Ordem de Cristo, cujo dirigente no Brasil era o Rei de Portugal, as terras
eram conquistadas em nome de Deus e concedidas à Coroa.
Deus é quem, por dádiva, doava as terras por meio de seu
representante legítimo, o Papa.96
80
A igreja, em função da sua aliança com o Estado, teve um papel
importante no desenvolvimento da estrutura administrativa da
colônia, na formação e configuração do espaço urbano das cidades
brasileiras, e na própria constituição da propriedade fundiária.97
O sistema de sesmarias em Portugal foi motivado pelo abandono das terras
pelos seus senhores, que em punição as perdiam para serem distribuídas
entre os que não possuíam terras. Ao ser transplantado para o Brasil, com
algumas especificidades em relação à metrópole, esse sistema foi deturpado,
na medida em que as terras não tinham sido abandonadas nem deixadas sem
cultivo, pelo contrário, eram vagas, sem dono, nunca apropriadas, já que os
portugueses não visualizavam no índio um semelhante – pelo contrário, os
índios foram escravizados até serem substituídos pelo escravismo negro,
que já era uma prática comum na Europa, para enfrentar as necessidades
da colonização.
Além disso, enquanto em Portugal a condição de que a terra fosse
produtiva sob pena de perdê-la visava estimular a agricultura para que o povo
tivesse o que comer, abatendo as epidemias; no Brasil visava à exploração
da terra, que deveria produzir sim, mas produzir conforme os interesses do
mercantilismo europeu.
Entretanto, Portugal possuía várias outras colônias mais lucrativas na África
e na Ásia, e, dessa maneira, não haviam pessoas nem recursos para serem
investidos na colonização do Brasil. Somente após as constantes invasões
do litoral brasileiro por povos europeus, com intuito de se apossarem das
terras descobertas por Cabral, a Coroa Portuguesa resolveu programar de
fato uma política de colonização no Brasil.
A colonização portuguesa não gerou um conjunto sistemático de regras
escritas. Pelo contrário, os portugueses permitiram uma ocupação livre da
terra, desde que os lucros do comércio real e a efetiva ocupação estivessem 97 VARON, 2005, p. 52.
8181
98 ROLNIK, 2003, p. 16-17.99 COSTA NETO, 2006, apud AMBROSIO, 2012.
garantidos. Porém, algumas normas presentes nos códigos lusos são
importantes para a definição posterior de uma ordem urbanística brasileira,
como por exemplo, o regime sesmarial.98
No ano de 1532, o Rei de Portugal, D. João III, enviou a Martim Afonso de
Souza sua decisão de dividir o litoral brasileiro em 12 Capitanias Hereditárias
– para compensar o desinteresse na colonização, entregou à iniciativa privada
a solução do caso, isentando a Coroa Portuguesa do ônus da ocupação
efetiva da terra por conta própria.
Os donatários recebiam porções de terras da costa do Brasil equivalentes
a sessenta léguas, das quais dez ficavam em sua posse e o restante
deveria ser doado para quem as pudesse aproveitar, conforme previa o
instrumento das sesmarias. O que caracteriza esse instrumento era a
obrigação do aproveitamento da terra num prazo estabelecido de 5 anos.
Caso alguma exigência não fosse satisfeita – como ocupar, produzir,
pagar os tributos – uma cláusula permitia que a terra retornasse à Coroa
(terras devolutas).
Os escolhidos pelos donatários para receber as cartas de sesmarias
eram sempre pessoas que dispunham de recursos e escravos para
que pudessem extrair proveitos da terra. Sendo assim, a concessão de
sesmarias já tinha um caráter mercantil, de forma que o sesmeiro deveria
comprovar condições de providenciar mão de obra e de produzir para o
comércio exterior.99
Como a Coroa Portuguesa transferia apenas a posse da terra, ou seja, o
poder político de administrar aos donatários e de usufruir aos concessionários,
o solo colonial não se constituiu como patrimônio destes já que a efetiva
propriedade da terra pertencia ainda à Coroa.
82
[...] do ponto de vista desse direito burguês que é o nosso direito, o
direito construído a partir da revolução burguesa, o conceito de posse
dizia uma relação de fato enquanto o conceito de propriedade é uma
relação jurídica, propriedade a gente não vê, fala-se de propriedade
como quem fala da casa onde se mora, minha propriedade, mas não,
do ponto de vista jurídico, propriedade é só uma relação abstrata, é
uma forma na verdade de fazer-se a apropriação da posse.100
As Capitanias Hereditárias não alcançaram os resultados esperados para
a colonização das terras brasileiras, provando que essa tarefa não podia ser
delegada apenas a particulares. Sendo assim, em 1549 as Capitanias foram
abolidas e Tomé de Souza foi nomeado o primeiro governador-geral do Brasil.
Já o instrumento das sesmarias perdurou no Brasil por três séculos, visando
incentivar a vinda de pessoas para a colônia através da doação das terras.
Tomé de Souza permitia dar sesmarias maiores para aqueles que quisessem
construir engenhos de açúcar, transformando o sistema português – onde
as sesmarias eram cedidas em pequenas áreas, com tamanho definido pela
capacidade de produção do titular – com intuito de adaptá-lo as exigências
da metrópole em relação à colônia.
No final do século XVII, Portugal apresentava um quadro de dependência
financeira, visto que o comércio com as Índias havia praticamente terminado.
Dessa maneira, a colônia brasileira despontava como base comercial única
para a atividade mercantil do Reino.101 Conseqüentemente, um enorme fluxo
de imigrantes se dirigiu ao Brasil.
A principal perspectiva era a cana-de-açúcar, que tinha grande valor
comercial na Europa. Para implantação desta monocultura, as sesmarias
deveriam assumir grandes extensões territoriais. Portanto, muito mais do
que um instrumento de ordenamento, as sesmarias foram no Brasil um
instrumento de dominação.
100 BALDEZ, Miguel. A cerca jurídica e a questão da terra no Brasil. Conferência realizada na FAU USP, 2001.101 PRADO, 1991, p. 34, apud VARON, 2005, p. 42.
8383
102 CHAUÍ, 2000, p. 83, apud NETO, 2006, p. 61.103 PORTO, 1965, p. 53, apud VARON, 2005, p. 41.104 PORTO, 1965, p. 93, apud NETO, 2006, p. 68.105 PORTO, 1965, p. 59 apud VARON, 2005, p. 43.
A concepção patrimonial se ajusta perfeitamente à idéia de monopólio
exclusivo da Coroa sobre os produtos do território metropolitano e
colonial, monopólio que é um dos pilares da monarquia absolutista
do período mercantilista.102
Nesse contexto, apesar de as Ordenações determinarem que não fossem
dadas mais terras do que a pessoa pudesse aproveitar, as autoridades na
colônia desprezaram essa recomendação, diante da abundância de terras e
da pretensão de ocupar o imenso território. Dessa maneira, dispensou-se o
rigor na aplicação das regras e as áreas cedidas eram imensas.
O território brasileiro era incomparavelmente maior do que Portugal,
o que inviabilizou a fiscalização do funcionamento do sistema.103 A
aplicação da Lei de Sesmarias no Brasil foi acompanhada de imprecisões
no tamanho e na localização das áreas, afinal, dada a vasta extensão e
escassa população do território brasileiro, os limites das terras não eram
precisos nem relevantes.
O medidor enchia o cachimbo, acendia-o e montava a cavalo,
deixando que o animal marchasse a passo, e quando o cachimbo se
apagava, acabando o fumo, marcava uma légua.104
Sendo assim, o sistema sesmarial na colônia resultou no inverso do
que havia ocorrido em Portugal: enquanto lá a distribuição de terras
gerou, em regra, a pequena propriedade, no Brasil foi a causa principal
do latifúndio.105
Portugal, percebendo o descontrole na questão da apropriação da terra,
utilizou a lei como forma de coibir os desmandos, com intuito de gerar mais
lucros para a metrópole. Entretanto, para as regras relativas ao tamanho das
sesmarias, sempre havia exceções. Sem conseguir entender que o modelo de
produção da colônia estava intrinsecamente ligado à forma de apropriação
84
da terra e ao seu descontrole, editou normas cada vez mais restritivas para o
regime sesmarial, que acabaram por gerar uma situação fundiária caótica, na
qual a irregularidade da propriedade acabou sendo o usual.106
Diante disso, o processo de obtenção de sesmarias tornou-se burocrático,
demorado e oneroso. Muitos sesmeiros não conseguiam se submeter às
exigências excessivas da Coroa e perderam suas terras. Esses acabavam
por se fixar em terras devolutas, isto é, terras sem título nem demarcações,
portanto, sem obrigações com a Coroa. Conseqüentemente, outra forma de
obter terras existiu nas brechas do sistema sesmarial: a posse pura e simples
do território.
O não cumprimento das exigências legais, principalmente a
demarcação e a medição das terras, causou enorme balbúrdia
entre sesmeiros e posseiros. Durante o século XVIII, a situação da
propriedade territorial começou a configurar a existência de um
problema grave. [...] As sesmarias não sendo demarcadas, nas cartas
não constando o tamanho exato delas, a constante mobilidade dos
agricultores em busca de novas terras férteis, todas essas razões
faziam com que as autoridades não tivessem como ter certeza, ao
efetuarem novas concessões, de que não estavam desrespeitando o
direito de terceiros.107
A posse de terras por pequenos lavradores que não tinham condições de
solicitar uma sesmaria, já que as concessões eram feitas àqueles que se
encontravam próximos ao poder, ocorreu como alternativa desde o início da
colonização.
Os colonos diretos, trabalhadores livres que por aqui aportavam,
não sendo homens de posse ou fidalgos, preferiam simplesmente
ocupar um pedaço de chão a enfrentar a burocracia para obter uma
(incerta) concessão de sesmarias.108
106 VARON, 2005, p. 45.107 SILVA, 1996, p. 61, apud NETO, 2006, p. 72.108 BATTAGLIA, 1995, apud AMBROSIO, 2012.
8585
109 LIMA, 1991, p. 51, apud VARON, 2005, p. 46.110 ROLNIK, 2003, p.22.111 MARICATO, 1999, p. 16.
Enquanto sob um aspecto essa ocupação livre representava uma forma
radicalmente diferente da ocupação da terra, em outro, se baseava na mesma
lógica sesmarial: seu fundamento de domínio era a ocupação efetiva da terra.
A prática corrente, fácil de ser realizada e sem custo, era obter a legalização
das posses, através da solicitação de carta de datas de terras, dirigida ao
donatário, depois ao Governador Geral. Porém, no final do século XVII, com
as modificações implementadas pela metrópole no sistema sesmarial, foram
geradas complicações para obtenção da carta de datas. O pequeno colono
se afastava cada vez mais da legalização das terras apossadas por não se
caracterizar como homem de posses e por não ter prestígio nem recursos
para obtenção das sesmarias. Assim, as sesmarias tornam-se o latifúndio
inacessível ao lavrador sem recursos. 109
A coexistência de uma legalidade inscrita na lei (lei-dos-livros) e
uma legitimidade inscrita na prática social (lei-em-ação), estabelecida
desde o período colonial, e a natureza complementar da livre ocupação
e do sistema sesmarial, constituem aspectos fundamentais da lei de
propriedade urbana no Brasil.[...] A existência de um padrão dual de
ordens em permanente tensão define os termos do desenvolvimento
urbano no Brasil.110
Em 1808, a família real portuguesa, fugindo de Napoleão, desembarca no
Rio de Janeiro, acompanhada de 10 mil pessoas. As melhores edificações
da cidade foram desocupadas para recebê-las. Suas portas eram marcadas
com as letras P.R., que significavam Príncipe Regente, ou, para os cariocas,
Prédio Roubado, Ponha-se na Rua.111 Protegidos militarmente pela Inglaterra,
a mesma passou a controlar o comércio brasileiro, afinal, a Revolução
Industrial não podia conviver com monopólios mercantilistas. Com a
abertura dos portos, a produção industrial no Brasil também foi liberada,
findando as restrições que protegiam as mercadorias portuguesas. E foi
nesse contexto que o Brasil se tornou um país independente.
86
Diante do agravamento da situação de total descontrole na ocupação da
terra, através da Resolução de 17 de junho de 1822, o príncipe regente D.
Pedro suspendeu o regime de sesmarias até a convocação da Assembléia
Geral Constituinte.
Devido às características de como foi estruturado o acesso à
terra no Brasil, a propriedade absoluta não havia se concretizado,
pela inexistência de títulos que legitimasse a grande maioria dos
possuidores de terras em seus domínios, e fundamentalmente,
porque a suspensão das sesmarias não havia revogado as Ordenações
e demais regulamentações da época da colônia, e, assim sendo, a
condicionalidade estipulada nas concessões permanecia e a qualquer
momento as terras cedidas, por não cumprirem as condições
estipuladas na cessão, poderiam cair em comisso. 112
Em 1824 foi promulgada a primeira Constituição brasileira que evidenciava
a permanência da elite como dona do poder. O direito de voto e de ser eleito
era condicionado a uma renda mínima, ou seja, os direitos individuais eram
filtrados pela condição patrimonial.113
A Constituição omitia qualquer referência à organização territorial e,
portanto, diante da indefinição do Estado, a ocupação indiscriminada da
terra (apossamento de terras devolutas) transformou-se em regra e se
disseminou de forma ampla, descontrolada e desordenada, sendo a única
forma de aquisição do domínio sobre a terra por um período de 28 anos –
conhecido como fase áurea do posseiro 114. Segundo MARICATO 115, nesse
período consolidou-se de fato o latifúndio brasileiro em função da ocupação
indiscriminada das terras e da expulsão dos pequenos posseiros pelos
grandes proprietários rurais. Para SMITH 116, o desmoronamento do instituto
de sesmarias no início do século XIX pôs à mostra a essência sobre a qual
repousava: o regime de posses.
112 SILVA, 1996, p. 80, apud VARON, 2005, p. 61.113 MARICATO, 1999, p. 17.114 SILVA, 1996, p. 81, apud NETO, 2006, p. 75.115 MARICATO, 1999.116 SMITH, 1990, apud NETO, 2006, p. 74.
8787
117 SILVA, 1996, p. 88, apud NETO, 2006, p. 78.118 SILVA, 1996, apud NETO, 2006, p. 78.
O regime de posses somente se encerrou em 1850 com a promulgação
da Lei de Terras, proibindo a ocupação das terras devolutas, pelo menos na
letra da lei.
O colapso na exportação do ouro, a baixa nas exportações do açúcar e
a expansão do café indicam mudanças na economia brasileira, as quais
determinarão as condições para a promulgação da Lei de Terras.
A expansão cafeeira na primeira metade do século XIX teve
repercussões imediatas na questão da apropriação da terra. 117
A instalação da sede da monarquia portuguesa no Rio de Janeiro, a abertura
dos portos da colônia a todas as nações e a ameaça inglesa de intervenção
no capital envolvido com o tráfico negreiro, colocaram o Brasil em uma nova
etapa do seu desenvolvimento.
O Brasil estava inserido num processo econômico e político de caráter
capitalista internacional, com leis de terras sendo formuladas em vários
países da América Latina, América do Norte e Oceania.
Para SILVA 118, a solução para o problema fundiário vinha sendo protelada
devido à complexidade dos interesses em jogo, que opunham o controle
do processo de ocupação territorial por parte do Estado aos interesses dos
proprietários de terras. Na década de 1840, o rearranjo de forças políticas
reunidas em torno do imperador e a riqueza econômica gerada pelo
ciclo do café produziram condições favoráveis à retomada da questão do
ordenamento jurídico da propriedade territorial.
Em 18 de setembro de 1850 é aprovada a Lei nº 601, que traçaria os rumos
legais básicos do sistema fundiário brasileiro, a Lei de Terras.
88
Pelo disposto nessa Lei, tornou-se proibida a aquisição de terras
devolutas por outro título que não o de compra. As sesmarias não
cultivadas foram declaradas devolutas; as produtivas, confirmadas
e isentas dos pagamentos dos encargos e as posses antigas foram
legitimadas.119
Ou seja, a lei determinava que as terras devolutas fossem medidas e
demarcadas para posterior cessão a título oneroso. Como o Brasil já existia
enquanto nacionalidade, essas terras devolutas não retornariam ao Rei de
Portugal, mas sim ao Poder Público, que se torna oficialmente proprietário
de todo o território ainda não ocupado e, a partir de então, passa a
realizar leilões para a sua venda. As sesmarias comprovadas com títulos
e as ocupações comprovadas com efetiva utilização, ocupação pacífica e
sem contestação da Coroa, ganhariam um tempo para serem registradas
e legitimadas. Objetivando assim garantir o domínio de todo possuidor
de terra que tivesse título legítimo de aquisição através de normas que
revalidassem as terras possuídas por sesmarias e por outras concessões
do Governo Geral.
Artigo 1º. Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por
outro título que não seja o de compra.120
A promulgação da Lei de Terras marca um momento de ruptura
fundamental no que diz respeito à forma de apropriação da terra no Brasil.
A partir dela, a única forma legal de reconhecimento da posse da terra
passou a ser a compra devidamente registrada. Dessa maneira, a terra
continua sendo um privilégio da parcela mais rica da população, que
podia adquiri-la, pois a propriedade baseada na cessão pública ou na
ocupação, como era feita através do antigo sistema de sesmarias, não é
mais permitida.119 COSTA NETO, et al., 2000, p. 443, apud NETO, 2006, p. 80.120 ROLNIK, 2003, p. 23.
8989
121 TRECANNI, 2001, p. 83, apud NETO, 2006, p. 87.122 AMBROSIO, et al., 2012.123 MARICATO, 1999, p. 23.124 NETO, 2006, p. 81.
A Lei nº601 de 1850, adotando a compra como único meio de acesso
a terra, foi um instrumento utilizado para favorecer a transferência
e privatização das terras do Estado, legitimando os latifúndios
existentes, seja os que se tinham constituído através das sesmarias ou
das posses. Ao mesmo tempo, os elevados preços cobrados faziam
com que o acesso a terra fosse um privilégio reservado unicamente a
quem dispunha de vultosos capitais.121
Portanto, a partir deste momento, o direito de acesso à terra se desvincula
da efetiva ocupação, ou seja, a propriedade da terra se torna absoluta e
passa a ser uma mercadoria. Além disso, pela primeira vez na história do
Brasil, diferencia-se solo público de solo privado, influenciando também na
dinâmica de apropriação da terra urbana.
A partir de agora, os que se apossassem de terras devolutas ou alheias
estariam sujeitos ao despejo sem pagamento de benfeitorias, pena de 2 a 6
meses de prisão e multa de cem mil réis.
Criava-se assim o modelo de propriedade privada no Brasil, que
impedia que a maioria da população tivesse acesso, concentrando
cada vez mais as terras nas mãos de poucos.122
A generalização da compra e venda da terra não se implantou imediatamente
após a aprovação da Lei de Terras. Murilo Marx aponta que até 1911 a Câmara
de São Paulo apresentou iniciativas de concessão de terras municipais, o que
acaba definitivamente apenas em 1917 com a proibição dessa prática pelo
Código Civil.123
A Lei de Terras inaugurou um período de tentativas de implementação de
instrumentos para a regularização da ordenação da propriedade da terra.124
Os limites precisos dos terrenos passam a ser importantes para atribuição
de um preço e do registro de propriedade privada.
90
O sistema dos Estados Unidos, de vender terras em lotes quadrados,
é, em geral, menos aplicável ao Brasil, onde em todos os municípios
existem, encravadas irregularmente, terras que foram dadas sob o
sistema brasileiro de águas vertentes, que, aliás, é o mais próprio
para um país montanhoso e cortado de córregos e ribeirões, por
mais praticável e barato; ao passo que o das linhas meridianas, ou de
xadrez, requerem melhores engenheiros, maior número de marcos,
instrumentos, etc. Algumas vezes, poderia ter mais vantagens, nos
grandes chapadões, ainda absolutamente desocupados, o tal sistema;
mas melhor é que a lei não imponha como princípio, para só ter
exceção quando não admitam circunstâncias locais.125
O fato apresentado diz respeito ao sucesso que os Estados Unidos obtiveram
à mesma época da promulgação da nossa primeira Lei de Terras, sem que
dificuldades técnicas para demarcação e precisão dos limites das terras se
constituíssem como obstáculos. Já no Brasil, argumentos de dificuldades
técnicas serviram de retórica daqueles interessados na indisciplina vigente
no ordenamento da terra. Lembrando que Portugal, movido pelo interesse do
capital mercantil, foi um dos pioneiros em vencer obstáculos técnicos, o que
lhe garantiu uma notável superioridade tecnológica no campo da navegação.126
O período entre a implementação da Lei de Terras e a proclamação da
República, em 1889, acumula irregularidades que agravam ainda mais a
confusão existente na documentação imobiliária.
A definição e demarcação das terras devolutas, após 1859, foi
uma das maiores farsas que marcaram a história do Brasil. Ela se
assemelha à farsa que marcou a proibição do tráfico de escravos entre
1831 e 1859, isto é, era proibido, mas feito à luz do dia e envolvendo
autoridades de prestígio na sociedade brasileira [...] Desde 1854,
quando é regulamentada a Lei de Terras de 1850, até praticamente os
nossos dias, as terras devolutas têm sido privatizadas, tirando proveito
125 LIMA, et al., 1954, p. 64, apud NETO, 2006, p. 84.126 NETO, 2006, p. 85.
9191
127 MARICATO, 2000, p. 149, apud NETO, 2006, p. 115.128 BALDEZ, Miguel. A cerca jurídica e a questão da terra no Brasil. Conferência realizada na FAU USP,2001.129 MARTINS, apud ROLNIK, 2003, p. 23.
de uma situação de fragilidade na demarcação da propriedade da terra
no Brasil durante mais de quatro séculos, apesar das medidas legais
que buscaram proteger o patrimônio público.127
Diante da pressão inglesa que, em conseqüência de seu avanço no modo
de produção industrial, queria ampliar o seu mercado consumidor, uma
semana antes da promulgação da Lei de Terras é aprovada a lei que extingue
o tráfico de escravos, garantindo que a população de escravos fosse liberta
para se constituir como uma massa de trabalhadores assalariados excluídos
do acesso a terra, não lhes restando outra saída senão vender sua força de
trabalho para os grandes donos de terras.
Segundo BALDEZ 128, o latifúndio no Brasil se forma em função da
acumulação econômica sobre a terra e da cerca jurídica construída em
torno da terra, e isso não tem importância enquanto não se tem a figura do
trabalhador livre. Só com o trabalhador livre é que vai surgir o risco de se
perder a terra: se o trabalhador é escravizado, evidentemente, ele não tem
acesso à terra. Portanto, no regime colonial a terra era secundária, o que
importavam eram os escravos. A terra era proveniente de uma concessão da
Coroa, já os escravos implicavam em um investimento.
A própria Lei de Terras regulamentou a importação de colonos europeus
livres para trabalhar no Brasil, e essa expressão importação evidencia que
os colonos eram concebidos como uma mercadoria para substituição da
mão-de-obra escrava. A conexão entre o novo regime de terras e o projeto de
importação de colonos europeus foi elucidada por José de Souza Martins – a
terra no Brasil é livre quando o trabalho é escravo; no momento em que se
implanta o trabalho livre, ela passa a ser cativa.129
[...] não é por acaso que a Lei nº601, das terras, e a Lei Eusébio de
Queiroz, que extingue o tráfico negreiro, são ambas do mesmo ano
– 1850. No momento em que os trabalhadores vão deixando de ser
92
objeto direto da dominação, se inicia o processo de sua reconceituação,
agora como sujeito (capaz abstratamente de participar de qualquer
mercado, mas destinado concretamente a só participar do mercado
de trabalho), fecham-se para ele as portas do acesso natural a terra.130
A Lei de Terras de 1850 já teve um caráter ambiguamente
conservador, o que mostra que, no fundo, os grandes proprietários de
terra foram paulatinamente constituindo e reforçando seu poder. [...] É
que a Lei de Terras, longe de ter por objetivo a liberalização do acesso
a terra, teve por objetivo justamente o contrário: instituir bloqueios
ao acesso à propriedade por parte dos trabalhadores, de modo que
eles se tornassem compulsoriamente força de trabalho das grandes
fazendas.131
Ou seja, a Lei de Terras coibiu a pequena produção de subsistência,
dificultando o acesso a terra pelos pequenos produtores, inclusive escravos
libertos e imigrantes, e forçou seu assalariamento nas grandes plantações.
Antes da aprovação dessa Lei, o poder e a riqueza eram medidos pelo
número de escravos que cada latifundiário detinha, sendo, portanto, a
posse de escravos mais importante do que a da terra em si. Com a Lei de
Terras, a terra passa a servir de garantia para empréstimos bancários em
um momento em que estes se ampliavam como estratégia de expansão
dos cultivos, transferindo o indicativo de poder e riqueza das elites – sua
hegemonia não era mais medida pelo número de escravos, mas pela terra
que possuíam, agora convertida em mercadoria.132
Nesse mesmo momento começa a se consagrar o registro imobiliário da
terra, diante do valor econômico que ela adquire e do papel de garantia para
empréstimos e financiamentos. Só através do registro imobiliário é que se
pode identificar o proprietário da terra para garantir o financiador.
130 BALDEZ, 1989, p. 10, apud, NETO, 2006, p. 87.131 MARTINS, 1999, p. 76, apud NETO, 2006, p. 87.132 FERREIRA, 2005, p. 03.
9393
133 PORTO, 1965, p. 186, apud NETO, 2006, p. 95.134 SODERO, 1990, p. 79, apud NETO, 2006, p. 95.135 MARÉS, 2003, p. 78, apud NETO, 2006, p. 105.136 NETO, 2006, p. 130.
A sociedade foi dividida em duas categorias: os proprietários fundiários
de um lado e de outro os escravos libertos e os imigrantes, sem nenhuma
possibilidade de comprar terras. Dessa maneira, a distribuição de terras no
Brasil se deu em um sistema com pouca ou nenhuma concorrência.
O período que se inicia com a proclamação da República em 1889 caracteriza
mais uma etapa de agravamento na indisciplina da documentação e no
registro da propriedade imobiliária.
A lavoura cafeeira seguiu os moldes tradicionais da agricultura do país
por ser fundamentada na grande propriedade e na monocultura, portanto, o
latifúndio que era imperial, passou a ser também republicano. Para PORTO133,
o Brasil republicano herdou, no que se refere ao problema fundiário, todos
os vícios da colônia e do império: tudo quanto o sistema sesmarial podia
produzir de nefasto, prejudicial e desastroso, estava consumado, restando,
quando muito, evitar os males quanto ao futuro.
A Constituição Republicana de 1891 cria o regime federativo, transferindo
aos Estados o domínio das terras devolutas que foram apropriadas pelo
poder público brasileiro em 1850. De acordo com SODERO 134, a propriedade
da terra permaneceu concentrada nas mãos de uma aristocracia rural que
não se dispunha a alterar nem permitir que se tentasse a reformulação da
estrutura agrária no país.
O século XX, assim, se abre para o Brasil como uma perspectiva
de crise, de não-solução, no campo jurídico e político do problema
fundiário.135
Na Lei de Terras, não havia normas específicas que objetivassem o
ordenamento da confusa situação da propriedade imobiliária em áreas
urbanas. Segundo NETO 136, esse ordenamento era necessário tanto pela
indisciplina resultante da outorga de concessões de datas de terras pelos
94
Conselhos das Câmaras Municipais, em conflito com as concessões feitas
pelo governo provincial e com o apossamento indiscriminado das terras,
quanto pela perspectiva de crescimento das cidades. Dessa maneira, da
mesma forma que nas áreas rurais, o aprofundamento dos conflitos
resultantes da indisciplina na documentação da propriedade imobiliária
se faz presente nas áreas urbanas desde o início do primeiro governo
republicano.
A falta de controle das autoridades municipais sobre o ordenamento
da propriedade da terra no município de São Paulo contribuiu para
a manutenção de um processo de expansão urbana desordenada
e fragmentada, determinada por interesses de particulares que
prevaleceram sobre a necessidade de formação dos espaços de
interesse público como ruas, praças, avenidas e destinação de espaços
à moradia da população de baixa renda, que se afastaram das áreas
centrais da cidade.137
A preocupação com a questão urbana só surge quando os fluxos migratórios
começam a inverter os números de ocupação territorial por habitante, a favor
das cidades. Essas alterações produziram profundas mudanças na economia
urbana. Entretanto, o poder público não adota as medidas necessárias.
No que diz respeito à consolidação das normas territoriais, a abordagem
continua sendo predominantemente agrária, não revelando preocupações
com o crescimento das cidades.
[...] no nosso código civil que foi completado em 1899, publicado
em 1916 e que entrou em vigor em 1917, o tratamento que de dá a
posse da terra já é um tratamento de preservação de uma suposta
propriedade [...] não há como pensar na propriedade antecedendo a
posse, a propriedade é inevitavelmente uma conseqüência da posse,
pressupõe a posse [...] a posse é uma relação de fato, e a necessidade
de um vínculo jurídico nasceu, quando a apropriação do bem de 137 NETO, 2006, p. 139.
9595
138 BALDEZ, Miguel. A cerca jurídica e a questão da terra no Brasil. Conferência realizada na FAU USP,2001.139 RIBEIRO e CARDOSO, 1981, p. 81, apud FERREIRA, 2005, p. 05.140 MARICATO, 1999, p. 19.141 FERREIRA, 2005, p. 07.
produção se deslocou do campo para cidade, mas não se podia abrir
mão da propriedade fundiária, então se cria uma relação jurídica
através da qual se dê sustentação a propriedade fundiária [...] 138
No período agro-exportador e de industrialização incipiente, reflexo da
Revolução Industrial, prevaleceu uma visão de que as cidades brasileiras não
poderiam expressar o atraso nacional frente às modernas cidades européias.
[...] visaram criar uma nova imagem da cidade, em conformidade
com os modelos estéticos europeus [...] as elites buscavam afastar
de suas vistas – e das vistas do estrangeiro – o populacho inculto,
desprovido de maneiras civilizadas, mestiço. As reformas urbanas
criaram uma cidade para inglês ver.139
As reformas urbanas do final do século XIX e início do XX definiram a
sociedade republicana sem escravos. Nela, a massa trabalhadora pobre será
varrida para debaixo do tapete.140 Dessa maneira, reproduzia-se nas cidades
a mesma diferenciação social resultante da hegemonia das elites que se
verificavam nos latifúndios.
É dessa mesma época que datam os primeiros cortiços e as primeiras
ocupações dos morros com moradias populares. A cidade já tinha como marca a
diferenciação sócio-espacial, onde todas as intervenções urbanas promovidas pelo
poder público visavam produzir melhorias nos bairros de classes dominantes,
ficando a população mais pobre excluída em áreas menos privilegiadas.
Na jovem república ou no Brasil industrial, o acesso à cidade
urbanizada só foi possível para aqueles que pudessem pagar por ela.
As relações de poder se estabeleciam no âmbito urbano por um lado,
em torno do privilégio dado às elites no direcionamento de recursos
públicos e na construção de bairros de elite, e de outro, pela exclusão
que atingia a população urbana mais pobre.141
96
Ao longo do século XX começa a ser constituída uma complexa legislação
estabelecendo normas para a construção de edifícios. Dessa forma, saiu
beneficiado o mercado imobiliário, capaz de respeitar tais regras ou de
dobrá-las graças a sua proximidade com o poder público. Já a população
mais pobre, incapaz de responder às exigências legais, era excluída das
localizações urbanas privilegiadas.
A localização na cidade e a legislação urbana incidente influem no
preço da terra. Quando alguém compra uma casa está comprando
também uma determinada oportunidade de acesso aos serviços,
equipamentos e infra-estrutura. Portanto, a moradia está intensamente
vinculada com a terra, já que cada novo edifício exige um novo solo,
um novo pedaço de cidade, e a superação do obstáculo da vontade do
dono da terra.
Com a intensificação da industrialização, a cidade tornava-se o lócus
do sistema de produção, com um aumento considerável da população de
baixa renda, pela necessária presença do operariado urbano, intensificando
a diferenciação e segregação espacial e revelando a importância da
intervenção estatal.
Até 1930 a provisão habitacional para essa população foi garantida pela
iniciativa privada através de moradias operárias ou de aluguel. Entretanto,
apenas os funcionários da baixa classe média tinham acesso a essas moradias,
ficando a população mais pobre entregue aos cortiços, evidenciando a
demanda por habitação de baixa renda.
O período seguinte, a Era Vargas, presenciou os efeitos de uma crescente
migração interna, decorrente da estagnação rural, em busca dos empregos
industriais, compondo um novo quadro econômico e elevando o problema
da provisão habitacional para a massa operária.
9797
142 MARICATO, 1997, p. 35, apud FERREIRA, 2005, p. 11.
O Estado mantém uma postura ambígua entre os interesses da
burguesia agrária e os da burguesia industrial. [...] A essência do
populismo consistirá em reconhecer a questão social, mas dando a ela
um tratamento paternalista e simbólico, que nega a auto-organização
dos trabalhadores. A oposição e as lideranças operárias são esmagadas,
mas a massa trabalhadora seria submetida à intensa propaganda do
governo e das benesses que este lhe concede: instituição da Previdência,
promulgação da CLT, fixação do salário mínimo.142
Nesse momento, surgem as primeiras acusações contra o direito de
propriedade da terra ilimitado e absoluto. A Igreja Católica e as forças sociais
desencadeadas pelo processo de urbanização defendem a idéia de direito de
propriedade articulado com a sua função social. Entretanto, essa concepção
não evolui, em virtude do princípio constitucional que consagra o direito
absoluto de propriedade.
Por volta de 1940 houve um desestímulo à moradia de aluguel e a exaltação
das virtudes da casa própria – a Lei do Inquilinato estimulou a propriedade
privada do imóvel urbano, restringindo ainda mais o acesso à habitação.
Portanto, com o declínio da oferta de moradia de aluguel, e sem que o Estado
suprisse a demanda por habitações, nesse momento, o loteamento irregular
na periferia, a simples ocupação de terras e a autoconstrução tornaram-
se a opção de moradia nas cidades, liberando o Estado e o mercado da
responsabilidade sobre o problema da habitação urbana.
Os anos 50 se caracterizam pela exacerbação da situação de extrema
desigualdade no acesso à terra urbana. O Brasil representava uma boa
oportunidade de investimentos, vide a existência de um inesgotável exército
industrial de reserva, representado pela população agrária pobre do Nordeste
disponível para migrar para as cidades industriais em busca de emprego. Com
a intensificação da migração rural-urbana explodia a demanda habitacional e
cresciam os bairros periféricos de baixa renda.
98
A primeira proposta de Reforma Urbana no Brasil, defendida em
um Congresso de Arquitetos, em 1963, incorporou o conceito da
propriedade ociosa como ilegítima, a partir da cultura herdada da
Reforma Agrária. Nessa proposta, [...] a questão da terra era vista
como central para a transformação que o país demandava.143
Abortada pelo Golpe Militar de 31 de março de 1964, inicia-se uma fase
repressiva contra a ascensão dos movimentos sociais e sindicais, varrendo
todas as propostas de reformas durante muito tempo.
A proposta dos arquitetos foi incorporada pelo Regime Militar
que a aplicou pelo avesso, constituindo um aparato institucional
tecnocrático, fortemente centralizado, de política habitacional, de
transporte e de saneamento, ignorando a questão fundiária.144
Dessa maneira, o debate regrediu e foi circunscrito à política habitacional.
O Estado passaria a promover deliberadamente soluções habitacionais
de baixo custo nas periferias. Com a criação do Banco Nacional da
Habitação, inaugura-se uma nova fase de intervenção estatal na habitação,
vinculada à ideologia de aquisição da casa própria. O modelo do BNH, em
sua concepção original, destinava-se a erradicar condições subumanas
de vida e facilitar o acesso à casa própria popular pelas classes menos
favorecidas. Entretanto, para alavancar o milagre brasileiro, tinha como
objetivo central a acumulação privada de setores da economia envolvidos
com a produção habitacional.
Esse financiamento habitacional proporcionou mudanças nas nossas
cidades, porém, proporcionalmente significativas nas faixas de renda
média ou alta: os centros verticalizaram-se, gerando valorização
especulativa da terra urbana, a produção imobiliária para a classe média
foi dinamizada, grandes empresas de obras públicas de infra-estrutura
foram beneficiadas.145
143 MARICATO, 2010, p. 17.144 MARICATO, 2010, p. 17.145 FERREIRA, 2005, p. 14.
9999
146 PESSOA, 1981, p.60.147 PESSOA, 1981, p. 64.148 MARICATO, 1999, p. 44.149 GRAZIA, 2003, p. 57, apud BASSUL, 2010, p. 75.150 RIBEIRO e CARDOSO, 2003, p. 12, apud BASSUL, 2010, p.75.
A deflagração desse sistema foi uma das causas, embora não a
principal, do progressivo encarecimento do solo urbano no Brasil. A
implantação do sistema habitacional brasileiro, ao se fazer sem apoio em
política urbano-fundiária paralela, não serviu de acesso ao sonho da casa
própria e, ainda pior, limitou o acesso das classes populares ao espaço
físico das cidades brasileiras de maneira ordenada, legal e regular.146
A submissão da terra urbana ao capital imobiliário fazia com que os
limites das periferias que abrigavam uma enorme população de migrantes
se expandissem e o mercado formal se restringisse a uma parcela da cidade.
Segundo PESSOA 147, o mercado de livre concorrência do preço da terra urbana,
sem qualquer intervenção estatal, leva ao descontrole absoluto dos preços.
A valorização imobiliária está na base da segregação espacial e da
carência habitacional. Em torno da apropriação da renda imobiliária
é travada uma luta no contexto urbano que não é nada mais nada
menos do que a própria expressão da luta de classes.148
Nos anos 70, os excluídos do milagre brasileiro começam a mobilizar-se
em torno da questão urbana, reivindicando a regularização dos loteamentos
clandestinos, a construção de equipamentos de educação e saúde, a
implantação de infra-estrutura nas favelas, etc. Em 1976 foi elaborado um
anteprojeto de lei de desenvolvimento urbano, baseado na constatação de
que as administrações locais não dispunham de um instrumental urbanístico
para enfrentar a especulação imobiliária e promover a distribuição dos
serviços públicos urbanos.149 Esse anteprojeto suscitou manchetes nos
jornais alertando os leitores para o fato de que o governo militar pretender
socializar o solo urbano.150 Diante disso, o governo recuou.
As reivindicações sociais cresciam. A campanha eleitoral de 1981, primeira
eleição direta de governadores após o golpe, trouxe a questão urbana para
a política nacional. Em 1982, João Figueiredo enviou ao Congresso Nacional
100
uma versão abrandada do projeto elaborado anteriormente, motivado pelo
risco de que a questão urbana pudesse empolgar as camadas populares em
torno de lideranças da oposição ao regime autoritário.151
A Constituição vigente era a do Regime Militar, que se caracterizava pelo
seu perfil autoritário e ignorava a natureza já predominantemente urbana
do Brasil. Portanto, esse projeto era acusado de acabar com o direito de
propriedade no Brasil e nunca foi posto em votação no Congresso Nacional.
Em 1985, a redemocratização do país propiciaria a convocação de uma
Assembléia Nacional Constituinte. Esta Constituinte e suas decorrências
foram abordadas no primeiro capítulo deste trabalho.
151 RIBEIRO e CARDOSO, 2003, p. 13, apud BASSUL, 2010, p. 75.
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Observatório de Remoções
Fogo no Barraco
Artigos de Periódicos (Cesad)
Elaboração: Daniela P. Rodrigues, 2012.
fig 07. Foto Carroceiros.
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fig 08. Foto Direito à Moradia.
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fig 09. Foto Reforma Hotel Cineasta – Renova Centro.
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Eduardo Costa
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Eduardo Costa
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fig 26. Foto Muro da Vergonha.
Fonte: Fórum Centro Vivo
fig 27. Foto Zumbi Somos Nós.
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Foto capa e contracapa:
Julio Bittencourt
121121
lista De abreviaturas
BNH Banco Nacional da Habitação
CDHU Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano
COHAB Companhia Metropolitana de Habitação
CPTM Companhia Paulista de Trens Metropolitanos
DIS Decreto de Interesse Social
EMURB Empresa Municipal de Urbanização
FIESP Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
FLM Frente de Luta por Moradia
FSP Folha de São Paulo
IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano
JT Jornal da Tarde
MMC Movimento de Moradia do Centro
MMRC Movimento de Moradia da Região Centro
MNRU Movimento Nacional pela Reforma Urbana
MSTC Movimento Sem Teto do Centro
MTSTRC Movimento dos Trabalhadores Sem Teto da Região Central
OESP O Estado de São Paulo
PAC Programa de Aceleração do Crescimento
PAR Programa de Arrendamento Residencial
PDE Plano Diretor Estratégico
PLS Projeto de Lei do Senado
PPB Partido Progressista Brasileiro
PSDB Partido Social Democrático Brasileiro
PT Partido dos Trabalhadores
TFP Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade
ULC Unificação das Lutas de Cortiços
UMM União dos Movimentos de Moradia de São Paulo
ZEIS Zonas Especiais de Interesse Social