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1 O CICLO CAROLÍNGIO NA LITERATURA DE CORDEL NORDESTINA SIQUEIRA, Ana Marcia Alves (UFC) 1. INTRODUÇÃO A importância do fenômeno da literatura de cordel no quadro das literaturas ibéricas – e de suas ex-colônias – evidencia a força da transmissão oral e de estruturas e temas advindos de narrativas medievais, especialmente, de repertórios ligados a temáticas guerreiras, lendárias e heróicas, ou ainda, à exaltação de valores morais, sociais e religiosos. Entretanto, estes repertórios não procederam tão somente da Idade Média, mas incorporaram, ao longo de séculos, os legados antigos de diferentes povos, bem como criações de períodos mais recentes. A sobrevivência de uma produção literária tão rica – poemas, cantigas, romances, estórias, narrativas, fábulas –, procedente tanto da tradição popular quanto da erudita, possibilita a ilação de que a Idade Média não cobre apenas os dez séculos da cronologia histórica que a delimita, mas recua a tempos imemoriais, para colher a memória do passado, como avança no tempo futuro, legando uma herança que ainda hoje vive pela boca do povo e pela pena de escritores e poetas, configurando a longa duração da voz de que nos fala Zumthor (1993), em consonância com Le Goff (2008) e a Escola dos Anais. Os primeiros colonizadores trouxeram para as Américas a cultura de “oralidade” da Europa medieval. Esses primeiros aventureiros eram, em geral, pessoas simples, camponeses emigrados pela falta de terras, ou desocupados urbanos que decidiam cruzar os mares à procura de fortuna. Ou seja, pessoas, pouco cultas e alheias às novidades quinhentistas, estavam ainda impregnadas da visão de mundo e da mentalidade medieval. Esses colonos povoaram o litoral brasileiro e, ao longo da colonização, adentraram pelo sertão, região de difícil acesso, que possibilitou a conservação de algumas das características da sociedade colonizadora. Em resumo, o Nordeste brasileiro recebeu da metrópole modelos sócio-econômico-culturais ainda muito próximos dos medievais. Juntamente com estes modelos, veio a ideologia dominante que se balizava em uma profunda

O CICLO CAROLÍNGIO NA LITERATURA DE CORDEL … · A importância do fenômeno da literatura de cordel no quadro das literaturas ibéricas – e de suas ex-colônias – evidencia

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O CICLO CAROLÍNGIO NA LITERATURA DE CORDEL

NORDESTINA

SIQUEIRA, Ana Marcia Alves (UFC)

1. INTRODUÇÃO

A importância do fenômeno da literatura de cordel no quadro das literaturas ibéricas –

e de suas ex-colônias – evidencia a força da transmissão oral e de estruturas e temas advindos

de narrativas medievais, especialmente, de repertórios ligados a temáticas guerreiras,

lendárias e heróicas, ou ainda, à exaltação de valores morais, sociais e religiosos. Entretanto,

estes repertórios não procederam tão somente da Idade Média, mas incorporaram, ao longo de

séculos, os legados antigos de diferentes povos, bem como criações de períodos mais

recentes.

A sobrevivência de uma produção literária tão rica – poemas, cantigas, romances,

estórias, narrativas, fábulas –, procedente tanto da tradição popular quanto da erudita,

possibilita a ilação de que a Idade Média não cobre apenas os dez séculos da cronologia

histórica que a delimita, mas recua a tempos imemoriais, para colher a memória do passado,

como avança no tempo futuro, legando uma herança que ainda hoje vive pela boca do povo e

pela pena de escritores e poetas, configurando a longa duração da voz de que nos fala

Zumthor (1993), em consonância com Le Goff (2008) e a Escola dos Anais.

Os primeiros colonizadores trouxeram para as Américas a cultura de “oralidade” da

Europa medieval. Esses primeiros aventureiros eram, em geral, pessoas simples, camponeses

emigrados pela falta de terras, ou desocupados urbanos que decidiam cruzar os mares à

procura de fortuna. Ou seja, pessoas, pouco cultas e alheias às novidades quinhentistas,

estavam ainda impregnadas da visão de mundo e da mentalidade medieval.

Esses colonos povoaram o litoral brasileiro e, ao longo da colonização, adentraram

pelo sertão, região de difícil acesso, que possibilitou a conservação de algumas das

características da sociedade colonizadora. Em resumo, o Nordeste brasileiro recebeu da

metrópole modelos sócio-econômico-culturais ainda muito próximos dos medievais.

Juntamente com estes modelos, veio a ideologia dominante que se balizava em uma profunda

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religiosidade e ultrapassava diferentes dicotomias, como, por exemplo, aquela existente entre

a cultura oficial dos grupos dominantes, em processo avançado de formalização e de escrita, e

a cultura produzida pela camada popular, ainda predominantemente oral, com suas técnicas,

estruturas, temas, personagens e intérpretes próprios. Circunstâncias específicas da região –

isolamento, latifúndios, distanciamento do poder administrativo, organização patriarcal, seca,

banditismo – levaram ao congelamento desses modelos e propiciaram a identificação do viver

e do sentir sertanejo, de seu imaginário com o imaginário medieval.

O mundo medieval e seu aspecto essencialmente oral não estavam destinados a

desaparecer, segundo Zumthor (apud PELOSO, 1996, p.50):

Aqueles que partiam – aventureiros, missionários, marginais de toda espécie, jogados nos portos do Ocidente – mergulhavam ainda, até o ventre, até a boca, no velho mundo medieval, campesino e guerreiro, que tinha sido o mundo da voz [...] Nos estabelecimentos bem frágeis que eles edificavam, em nome de reis distantes, na solidão do seu Novo Mundo, eles mantinham – eles manterão, por tanto tempo quanto foi socialmente e tecnicamente – o sopro desta voz, desta palavra viva, presença e calor [...] É o que testemunha, à sua maneira e no seu setor, a literatura de cordel. A voz que engendra, e à qual ela, hoje ainda, e em toda ocasião retorna, constituía o lugar fundador da consciência do grupo. No meio de uma natureza brutal e hostil, a voz, o canto estendiam à área dos corpos até o fundo das sombras onde levava o eco. [...] Os colonos levavam nas suas barcaças uma imagem arquetípica, difusa tanto em toda a Eurásia como também na África negra: aquela do cantador cego, vagando de aldeia em aldeia, trazendo consigo poemas inspirados.

Desde a época medieval, com a ausência da escrita e com o analfabetismo, os que

sabiam ler formavam os círculos divulgando oralmente essa literatura, tal como ainda hoje,

em feiras no Nordeste, podem ser vistos cantadores que lêem/cantam esses folhetos.

Perpetuou-se o costume de histórias narradas nos serões familiares; histórias dos livros

(produto raro) ou então veiculadas por cantadores ambulantes que iam pelas fazendas ou

feiras, transmitindo notícias, reproduzindo histórias, inventando cantos, improvisos, repentes

e desafios. Enquanto não se difundiu a tipografia, os folhetos constituíam um meio barato de

divulgação dessa produção poética, que era transmitida oralmente, mas que, geralmente tinha

uma origem ou inspiração erudita.

Assim, a tradição oral ibérica dos romanceiros, das histórias de cavalaria e também

dos contos maravilhosos, folclóricos e dos heróis clássicos, trazida pelos colonos, foi e é

transformada e revificada pelos poetas e escritores brasileiros, eruditos e populares. Desse

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amálgama entre o antigo e o novo, cristalizando tradições e lançando novos elementos,

compõem-se os textos produzidos pela “voz popular”.

O trabalho em conjunto de eruditos e cantadores conformam uma voz coletiva, que

expressa anseios, problemas, angústias, sonhos e desejos; conformando, portanto, o registro

das preocupações e acontecimentos de uma época em que a poesia popular, medieval ou

sertaneja, podia cantar os acontecimentos notáveis em suas diversas manifestações, no

romance, na xácara ou mesmo em composições menos extensas.

A propósito, observa-se, na região, uma especial predileção por aventuras

cristalizando imagens de valentia e heroísmo, ao gosto do cavaleiro andante, figura popular no

medievo e também no sertão brasileiro. Tais aspirações têm como fulcro as histórias trazidas

pelos colonizadores, o cordel e a tradição oralmente perpetuada pela população das regiões

interioranas, alheias às constantes transformações das cidades.

Para Queiroz (1977), a épica de Carlos Magno e os doze pares de França, muito

popularizada pelo cordel, constituiu a matriz para a épica do cangaço, na qual Antônio Silvino

e Lampião são relacionados ao chefe supremo que conduziu seus pares por incontáveis

aventuras no sertão brasileiro. Isto porque em uma sociedade de criadores de gado, como a do

sertão nordestino, o ideal do cavaleiro andante e o gosto por aventuras e torneios perduram na

forma de residualidade (PONTES, 1999), isto é, na forma de imagens ou temáticas

remanescentes do imaginário medieval, que se constroem de um modo original, híbrido –

amálgama formado pelos elementos residuais em uma nova configuração.

Por isso, ainda são correntes, além da épica carolíngia, diversas histórias de origem

cavaleirescas. Os habitantes do sertão julgam encontrar nessas lendas a imagem ideal da

ordem social em que vivem, e os grandes latifundiários, chefes de extensas parentelas, de

certo modo, consideram-se “pequenos Carlos Magno, rodeados de seus pares” (QUEIROZ,

1977, p. 38).

Galvão (1972), ao analisar a matéria do romance Grande Sertão: Veredas, de

Guimarães Rosa, justifica:

O tratamento de uma matéria como essa em termos de novela da cavalaria prende-se a dois fatores. Um, a sobrevivência verificável do imaginário medieval no sertão brasileiro, seja na tradição oral, seja no romance de cordel. Outro, o pendor irresistível que têm os letrados brasileiros, dentro e fora da ficção, para representar o sertão como um universo feudal. O primeiro fundamenta, portanto, a verossimilhança; o segundo entra em

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tensão com aquele por veicular representações que servem a propósitos de dominação (GALVÃO, 1972, p.12).

De início, a utilização da idealização do modelo feudal retratado nas novelas de

cavalaria serviu, em terras brasileiras, como instrumento de divulgação dos valores da colônia

e também como instrumento de catequese usado pelos jesuítas nas representações

comemorativas de festas religiosas. A partir dos séculos XV, os romances épicos e novelescos

criados para serem cantados por jograis passam a ser adaptados ao gênero popular e

difundidos em larga escala, facilitando, dessa maneira, o interesse de tornar conhecidos, no

Novo Mundo, os valores monárquicos, a grandeza dos reis cristãos, a bondade e beleza de

princesas e donzelas e a valentia e o heroísmo de nobres cavaleiros. Mais tarde, essa temática

permaneceu como um ideal a servir aos grandes proprietários de terras e chefes políticos, mas

também aos bandos de rebeldes e cangaceiros recriados pela literatura.

Por outro lado, Silvano Peloso (1996, p.46) esclarece que há um fascínio pelas

aventuras de Amadis de Gaula e que o gosto pelos romances de cavalaria “atravessa toda a

literatura de viagem ibérica da época, influenciando inteiras gerações de leitores no Velho e

no Novo mundo”. Segundo seu raciocínio, isso se deve ao fato de os componentes dessa

literatura de tons populares serem aqueles de sucesso garantido ao longo dos tempos: ação

emocionante, aventuras fantásticas, sentimentos e cenas de amor, heróis invencíveis e de

corações nobres, belas damas, vigoroso tom descritivo e otimismo unido à coragem.

Em suma, as explicações se complementam e levam a constatação de que as aventuras

de Carlos Magno e seus pares povoam o imaginário1 do sertanejo, como povoaram o

imaginário do medievo, especialmente, do povo ibérico após a Reconquista, porque essas

aventuras representam um símbolo de resistência ao inimigo, como também sintetizam o ideal

cavaleiresco. Nesta perspectiva, primeiramente, analisaremos a difusão da temática carolíngia

na literatura ibérica, buscando compreender as motivações que subjazem o fenômeno, para

então discutir o aproveitamento desse “material mítico-literário” no cordel nordestino.

1 Conforme Franco Júnior (2003, p.106), imaginário define-se como um conjunto ou sistema de decodificadores e representantes culturais, historicamente variáveis, de um complexo de emoções e pensamentos, ou seja, de um inconsciente coletivo. Constituem, portanto, formas próprias de os homens verem o mundo e a si mesmos.

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2. GÊNESE E DIFUSÃO DO MITO CAROLÍNGIO

A origem desse mito encontra-se enraizada a uma tradição oral francesa muito antiga,

alusiva ao um fato histórico: a batalha entre os Pares de França e o exército do rei Marcílio,

governante sarraceno de Saragossa. Embora a história aponte como motivo da morte dos

estimados cavaleiros de Carlos Magno, quando da retirada do exército da Península Ibérica,

uma emboscada de guerreiros bascos, o poema épico La chanson de Roland (1982), registrado

por escrito entre 1087 e 1090 pelo escritor anglo-normando Turold (MACEDO, 2000), narra a

heróica luta e as proezas de Roland, sobrinho do Imperador e principal cavaleiro franco, que

juntamente com Olivier, o arcebispo Turpin e os demais pares resistem até a morte ao ataque

traiçoeiro dos sarracenos no desfiladeiro de Roncesvales.

De acordo com o poema, o imperador da barba florida retorna tarde demais a

Roncesvales; porém, empreende uma vitoriosa batalha contra o emir Baligant. Após o

aniquilamento do exército inimigo, ocorre o batismo de todos os sobreviventes, inclusive da

rainha sarracena.

Segundo Macedo (2000), o episódio figurou na memória ocidental como pungente

exemplo da epopéia cristã contra os inimigos muçulmanos:

Cantada às vésperas das primeiras cruzadas, seus personagens principais expressavam o clima da Guerra Santa: Rolando e os demais guerreiros francos recebem a auréola do martírio; os mouros ou sarracenos encarnam os detestáveis e satânicos inimigos da fé; e Carlos Magno é sempre lembrado como vencedor absoluto e vingador implacável (MACEDO, 2000, p.19).

A canção apresenta, portanto, o imperador como um símbolo lendário que atua

como defensor e promotor da fé cristã, um paradigma da figura do rex cristianissimus.

Outrossim, a partir do século XII, o ideário carolíngio difundiu-se por toda a Europa,

inclusive na Península Ibérica. Entretanto, no cenário onde se desenrolaram as aventuras

geradoras do mito e que a luta contra mouros mobilizava todas as atenções, esse modelo

inicialmente foi rejeitado a favor de heróis locais, que retratavam as circunstâncias

específicas do contexto ibérico, como Rodrigo Diaz de Vivar – o El Cid – identificado

como o grande herói da Reconquista e o modelo a ser imitado (Cf. MENENDEZ PIDAL,

1960). Suas vitórias e proezas foram registradas no célebre Cantar de Mio Cid e em muitas

outras crônicas redigidas por monges a serviço dos reis cristãos.

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Somente no final do século XII, com a atuação dos monges de Cluny e de Cister,

que difundiram a matéria carolíngia e a associaram a retomada do túmulo de Santigo de

Compostela, essa visão passa a mudar lentamente até chegar ao ponto em que os heróis da

famosa batalha de Roncesvales constarem em cancioneiros, romances e crônicas ibéricas. Já

no século XV, verifica-se na Península, uma enorme profusão de novelas e romances de

cavalaria sobre o tema carolíngio. Os personagens tradicionais (RolandoRoldão e

OliveirosOlivério) passam a ser acompanhados por novos cavaleiros, como Bernardo del

Carpio, Carlos de Montalvão, Floresvento, Valdevinos e o Marquês de Mântua.

Em 1525, o espanhol Nicolau de Piemonte escreveu sua versão da matéria

carolíngia: Historia del Emperador Carlomagno y de los Pares de Francia, y de la cruda

batalla de hubo Oliveiros com Fierabras, Rey de Alexandria, hijo del grande Almirante

Balan. Essa obra apresenta uma significativa reelaboração da temática e obteve ampla

divulgação (PINTO CORREIA, 1992, v.1).

Cascudo (1953, p.443) informa que, nesta versão inspiradora de quase todas as

versões subseqüentes, o autor havia aproveitado uma versão em prosa da canção de gesta

Fierabras, de 1478, publicada as instâncias de Enrique Balomier, cônego de Lausanne.

Menendez y Pelayo (1945) analisa cuidadosamente a obra, fornecendo uma reprodução

parcial de seu prólogo:

E sendo certo que em língua castelhana não há escrita que disto faça menção, mas tão-somente da morte dos doze pares, que foi em Roncesvalles, pareceu-me justa e proveitosa coisa que a dita escrita e os tão notáveis feitos fossem notórios nesta parte da Espanha, como são manifestos em outros reinos. Por fim, eu, Nicolas de Piamonte, proponho trasladar a dita redação de língua francesa em romance castelhano, sem discrepar, nem acrescentar coisa alguma do texto francês. E é dividida a obra em três livros: o primeiro fala do princípio da França, de quem tomou o nome e do primeiro rei cristão que houve em França e deste até o rei Carlos Magno que depois foi imperador de Roma, e foi trasladado do latim em língua francesa. O segundo fala da cruel batalha que teve o conde Oliveiros com Fierabras, rei de Alexandria, filho do grande Almirante Balan e este está em metro francês muito bem trovado. O terceiro fala de algumas obras meritórias que fez Carlos Magno e finalmente da traição de Galalão e da morte dos doze pares, e foram tirados estes livros de um livro bem aprovado, chamado Espelho historial (MENENDEZ Y PELAYO, 1945, t.1, p.227-228).

A citação longa justifica-se pelo interesse em elucidar a origem das diferentes

aventuras que foram acrescentadas ao texto matriz francês, La chanson de Roland, que trata

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tão somente da batalha de Roncesvales. Observação que também reafirma a filiação das

aventuras retratadas pelo cordel nordestino à adaptação portuguesa dessa história

empreendida por Jerônimo Moreira de Carvalho (1863), sob o título: História do Imperador

Carlos Magno e dos Doze Pares de França.

A obra, dividida em cinco livros foi publicada em duas partes em Lisboa;

respectivamente em 1728 e 1737. Uma terceira parte foi publicada, em 1745, pelo

reverendo protonotário apostólico Alexandre Gaetano Gomes Flaviense que traduziu e

acrescentou às aventuras a crônica castelhana de Bernardo del Carpio, herói ibérico que

derrota os Doze Pares. O título: Verdadeira terceira parte da história do imperador Carlos

Magno, em que se escrevem as gloriosas ações e vitórias de Bernardo del Carpio. E de

como venceu em batalha os Doze Pares de França, com algumas particularidades dos

príncipes de Espânia, seus povoadores e reis primeiros. (CASCUDO, 1953, p.445).

Essas versões e adaptações foram constantemente modificadas ao longo do século

XIX, efetuando principalmente a diminuição do texto muito extenso. A edição portuguesa

de 1863, utilizada como fonte principal nesse trabalho, já apresenta o texto usado até nossos

dias, o qual serviu como matriz da tradição brasileira; ou seja, como modelo de todas as

adaptações populares do tema, principalmente, das narrativas de cordel (Cf. FERREIRA,

1979).

3. CARLOS MAGNO E OS PARES DE FRANÇA NO SERTÃO

Marlyse Meyer (1995) chama a atenção para o fato de que história tornada tradição

popular no Brasil, não provenha de fonte oral, mas sim origem impressa, conforme visto.

Houve, portanto, um trânsito entre a gesta primitiva francesa em verso, a transposição em

prosa da novela de origem culta do século XVIII e a forma popular do cordel sertanejo que,

retoma a expressão versificada do gênero épico medieval. Há uma interrelação entre popular e

erudito revelada pela proximidade entre a forma poética do cordel e a forma poética da gesta

francesa primitiva cantada pelos jograis. Partindo do texto culto registrado no século XVIII, o

cantador ou cordelista nordestino se expressa por meio da forma poética característica do

gênero épico.

José Bernardo da Silva, em seu folheto Roldão no Leão de Ouro, faz uma adaptação

rimada muito próxima do texto original em prosa. Neste, a passagem aparece do seguinte

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modo: “Se me foi acendendo um tal amor à princesa que representa, que, passando à loucura

esta vontade estou dias e noites a olhar a pintura” (CARVALHO, 1863, t.2, p.43). Enquanto

no folheto se lê: “Roldão achou no retrato a rainha da formosura / contemplava em seu palácio / dia

e noite tal pintura / e foi lhe tomando amor / para ser sua futura.” (SILVA apud FERREIRA, 1979, p.

29).

Tanto a canção de gesta quanto o cordel são constituídos por fôrma literária (Cf.

MOISÉS, 1999) específica, em épocas distintas que, entretanto, convergem entre si por

revelarem, cada qual de modo distinto, a relação entre memória coletiva e estrutura poética

manifestada pela voz, conforme a concepção de Zumthor (1993). A transmissão de ambos os

textos passam pela voz, pressupõem uma performance, já que o cordel, embora registrado

pela escrita – a letra – é, segundo Ferreira (1979), o texto oral impresso. Sua rima é produzida

para o ouvido e a memória. Ou seja, no cordel, as letras apenas registram a voz interligada à

tradição e à memória – assim como na canção de gesta – poesia compartilhada entre artista e

público.

Cascudo, em Mouros, franceses e judeus (1984), lista diversas manifestações da

cultura tradicional brasileira exemplificativas da disseminação e hibridação da temática:

cantorias, desafios, cavalhadas, reisados, congadas e xilogravura, passando pelo costume de

se batizar os filhos com os nomes de Roldão, Carlos Magno e Oliveiros.

A presença dessa temática revela diferentes influências que engendraram uma

tradição baseada na mistura possibilitada pela memória coletiva, certamente, porque o

modelo de valentia, a exaltação da fé cristã, o gosto pela proeza guerreira e o apreço pelo

sentimento de honra, características do regime feudal, constituem valores profundamente

respeitados pelo sertanejo.

Assim, dentre os componentes presentes no ciclo cavalheiresco ibérico e na literatura

de cordel destaca-se a luta ou o combate, atividade representativa da busca contínua de

provação e da realização de proezas. Fato gerador de núcleos narrativos construídos,

geralmente, em torno de provas, ardis e combates contra inimigos poderosíssimos como

gigantes ou monstros.

Tanto no romance cavaleiresco quanto no folheto de cordel o combate simboliza um

meio de vencer o obstáculo ou o opressor em qualquer circunstância sob a qual se apresente.

A provação do herói, que ostenta como armas principais sua coragem e sua destreza,

representa a travessia do “passo das águas mortas” – provação terrível –, cuja finalidade é a

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libertação. Por isso o adversário, representante do obstáculo, é o inimigo infiel, o gigante, o

dragão ou a fera abominável.

Embora os cordéis sertanejos apresentem mudanças, há um núcleo básico de

significação que costuma ser preservado levando-se em conta o texto matriz, de Jerônimo M.

Carvalho (1863). Vários poetas recriaram o texto matriz tão fielmente quanto sua liberdade

poética o permitiu, já que cada um, à sua maneira e segundo suas possibilidades expressivas,

tomou-o em partes distintas. Processo que pode ser comparado ao regimento de uma orquestra

em que cada artista desempenha um andamento na partitura comum da tradição herdada.

Dessa forma, um pequeno segmento ou episódio ainda não explorado, embora seja construído

pela criatividade única do artista, traz em seu bojo situações e significados de domínio

comum.

Os poetas populares selecionam episódios ou aventuras preferidos, ou os mais

significativos da História do imperador Carlos Magno e os doze Pares de França , para então

produzir sua recriação utilizando a métrica e as rimas típicas do cordel. Esse processo

necessariamente pressupõe reduções e supressões, que, por sua vez, juntam-se a perspectiva

adotada ou a ênfase de determinados aspectos próprios da subjetividade do cordelista.

Complementa a quadro a necessidade de adequação do texto a uma práxis local que,

entretanto, não o afaste muito da matriz textual, tendo em vista a necessidade da aceitação

pelo público do cordel. A expectativa deste público, em geral conservador, é que o poeta seja

o mais fiel possível à tradição. Isto porque a dinâmica da literatura popular não pressupõe

obrigatoriamente a originalidade, mas a manipulação-apropriação de um manancial já

conhecido e apreciado pelos ouvintes. O artista deve, porém, nele intervir com glosas e

comentários referentes à sua própria cultura. Conforme afirma Lessa e Silva (1983, p. 3), “O

poeta de cordel não é propriamente um reacionário. É antes um conservador. Às vezes, por

atitude e convicção pessoal, de outras por espírito prático”.

Lembramos ainda que a passagem do texto em prosa para a sextilha, com o uso do

ritmo e das rimas que simplificam a comunicação, por tornar o conteúdo mais conciso e

facilitar a memorização, obedece aos imperativos da produção e da recepção de cordéis.

Produção esta ligada à oralidade, como destacamos.

Um dos elementos habitualmente modificados pelo cordelista sertanejo diz respeito à

irrupção do maravilhoso, acontecimento muito comum na gesta carolíngia. Ao contrário, o

romance de cordel evita a imaginação desenfreada característica das novelas de cavalaria. Há

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sempre uma referência que imprime o concreto mesmo em meio a um episódio fantástico. Tal

postura pode estar relacionada a uma tentativa de o poeta popular introduzir um tom

moralizante na história, ajustando a tradição herdada ao vivido. O folheto participa, portanto,

da realidade circundante, denunciando, muitas vezes, a corrupção, protestando contra os maus

costumes, chamando a atenção para aquilo que o povo aprecia ou despreza. Os males ou atos

prejudiciais ao povo sempre encontram condenação nos seus versos.

Ferreira (1979) localiza, como exemplo da questão, um trecho do folheto A prisão de

Oliveiros, de José Bernardo da Silva. Embora o autor faça a adaptação de uma passagem do

texto matriz português, reduz seus efeitos dramáticos com uma mensagem prática voltada

para a denúncia social, inexistente no texto setecentista: “Na hora da refeição / tudo ali se

descuidou / Oliveiros enfrentou / O Almirante Balão / viu que a vida estava cara / a solução

era rara / saltou numa das varandas...” (FERREIRA, 1979, p. 31).

O herói do folheto desempenha o papel de um porta-voz dos hábitos e costumes

nordestinos, realizando uma função em conformidade com o seu ambiente regional. Fato

notado no modo como o poeta popular trabalha a oposição entre Bem e Mal, uma das

categorias mais abrangentes e definidoras da ideologia cavaleiresca. Ao contrário dos

romances de cavalaria, nos quais o combate apresenta uma dimensão religiosa (luta contra o

muçulmano, contra o herege), na literatura de cordel, o confronto tem, de modo geral, uma

conotação movente: hora pode refletir um contexto social no uso de expressões reveladoras da

relação superior/subordinado, por exemplo, ligando ao mal o patrão ou coronel opressor em

oposição ao povotrabalhador representante do bem; ora se tornar ambíguo por assimilar os

valores de honra e bondade dos Doze Pares a figuras consideradas bandidos, como mostra o

exemplo do Cancioneiro de Lampião, de Nertan Macedo (1959, p.4): “Nos Doze Pares de

França Foi buscar inspiração o imperador Carlos Magno houvera de ter paixão. Valente

como Olivério, brigava como Roldão...”.

São comuns referências à saga carolíngia em histórias exclusivamente sertanejas, já

que na literatura de cordel, o vaqueiro ou o cangaceiro tem traços de Carlos Magno ou de seus

cavaleiros, embora suas armas sejam fuzis e facões. No cordel As lágrimas de Antônio Silvino

por Tempestade, de Leandro Gomes de Barros, a cena em que Antônio Silvino lamenta a

morte dos companheiros lembra a de Roncevalles: “Eu choro a falta que me faz / Todos os meus

companheiros / Qual Carlos Magno chorou / Por seus doze cavaleiros. / Nada me faz distrair / Não

deixarei de sentir / A morte dos cangaceiros.” (BARROS apud CURRAN, 1998, p. 69).

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Por outro lado, a permanência de referências medievais no cordel é delineada pelo

fato de ser comum a identificação do mal com a figura do mouro ou do turco. Estes, ainda que

desligados do seu contexto próprio (Reconquista, Cruzadas), continuam a representar os

antagonistas. O estatuto destes personagens muda, pois deixam de funcionar como

representação do inimigo infiel para constituírem um símbolo, uma referência para outros

conflitos presentes. Nesse sentido, vencer o mouro é vencer uma guerra em que a vitória

significa mudança. Há ainda o exemplo, em A chegada de Lampião no céu, no qual

Fierrabrás, originalmente filho de rei Balão que luta com Oliveiros, no texto matriz,

transforma-se em um enviado do diabo que tenta reconduzir a alma Lampião ao inferno:

“Disse-lhe a Virgem mãe suprema: Vai-te pra lá Ferrabrás, / A alma que eu pôr a mão / Tu

com ela nada faz, / Arrenegado da Cruz / Na presença de Jesus / Tu não vences, Satanás!”

(CAVALCANTI, 1948, p.12).

Normalmente, nas novelas de cavalaria, a vitória sobre o mal e seus representantes é

atribuída à lealdade do cavaleiro para com o seu senhor e sua fé. A honra do paladino cristão

depende, portanto, de sua lealdade. Contudo, nas histórias de cordel brasileiras, somente a

coragem possibilita que o herói conserve sua honra. Os princípios norteadores da ação do

herói são muito diferentes. O motivo que não se modifica na passagem da História de Carlos

Magno, de 1863, para a versão nordestina é o combate contra o mal que não significa, porém,

uma tentativa de reverter a ordem. A superação do cotidiano, no caso do folheto nordestino,

realiza-se no plano simbólico e ritual do heróico, da aventura, onde “se pode passar à

superação e àquilo que se chamou encantamento do mundo” (FERREIRA, 1979, p. 120).

4. Á GUISA DE CONCLUSÃO

A transformação do herói cavaleiresco no herói sertanejo, portanto, não diz respeito

ao vivido, mas ao campo do discurso, à sua recriaçãotransmissão que faz viver o passado no

presente, unindo dois mundos possíveis em uma voz poética perpetuadora de valores e

símbolos presentes no imaginário medieval e no sertanejo.

Dessa forma, muitos cordéis do passado e reescrituras da atualidade ainda atestam a

permanência da saga carolíngia no sertão, tais como: A Batalha de Oliveiros com

Ferrabrás, A Prisão de Oliveiros, O cavaleiro Roldão, A Morte dos Doze Pares de

França, Roldão no leão de ouro, História de Carlos Magno. Mais de 1000 anos após a

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Batalha de Roncesvales, o Imperador da barba florida e seus Doze Pares permanecem como

modelos de valentia, coragem e altivez, nos versos da literatura de cordel de Leandro

Gomes de Barros, João Martins de Athayde, João Melquíades Ferreira, Antônio Eugênio da

Si1va, José Bernardo da Silva, dentre outros.

Por fim, consideramos também que a identificação entre vaqueiros, sertanejos,

valentões, cangaceiros ou jagunços a Carlos Magno e seus Doze Cavaleiros diz respeito ao

processo de idealização da realidade, convertendo-a em mito ou lenda. Isto é, o povo imagina,

inventa, aumenta, para que a fantasia possa encantar o real. Como assinala Eliade, os sonhos,

os devaneios, as imagens de suas nostalgias, de seus desejos, de seus entusiasmos

[constituem] forças que projetam o ser humano historicamente condicionado em um mundo

espiritual infinitamente mais rico que o mundo fechado do seu “momento histórico”

(ELIADE, 1991, p. 9).

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