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11 O CONTRATO DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO: UM ESFORÇO PARA A CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO CONSTITUCIONAL À MORADIA ALBERTO FETT * Sumário: Introdução; Primeira parte: Contrato incorporativo e patrimônio de afetação; 1.1 Breves apontamentos acerca do contrato incorporativo; 1.1.1 Direitos e deveres das partes no contrato de incorporação; 1.1.1.1 Deveres do incorporador; 1.1.1.2 Direitos do incorporador; 1.1.1.3 Direitos dos adquirentes; 1.1.1.4 Deveres dos adquirentes; Segunda parte: O direito constitucional à moradia; 2.1 O patrimônio de afetação no contrato incorporativo; 2.1.1 A extinção do contrato incorporativo e da vigência do regime do patrimônio de afetação; 2.2 O papel da Constituição enquanto normalizadora da realidade social; 2.3 As formas de concretização da norma constitucional para garantir o direito à moradia; 3 Considerações finais; Referências bibliográficas. I NTRODUÇÃO O direito à moradia foi alçado ao status de garantia constitucional positivada através da Emenda nº 26, de 2000, inserindo-o no artigo 6º da Carta Política 1 . Assim, adveio a necessidade da criação de meios mais eficazes para sua realização, e um deles foi o surgimento e regulamentação * Professor no UniRitter. Advogado. Bacharel em Comunicação Social (Publicidade e Propaganda pela FAMECOS – PUCRS). Especialista em Direito Civil (UniRitter). Mestrando em Direito da Integração (UFRGS/PPGD). 1 Constituição Federal, Art. 6º. “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (grifamos).

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O CONTRATO DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O PATRIMÔNIO DE

AFETAÇÃO: UM ESFORÇO PARA A CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO

CONSTITUCIONAL À MORADIA ALBERTO FETT*

Sumário: Introdução; Primeira parte: Contrato incorporativo e patrimônio de afetação; 1.1 Breves apontamentos acerca do contrato incorporativo; 1.1.1 Direitos e deveres das partes no contrato de incorporação; 1.1.1.1 Deveres do incorporador; 1.1.1.2 Direitos do incorporador; 1.1.1.3 Direitos dos adquirentes; 1.1.1.4 Deveres dos adquirentes; Segunda parte: O direito constitucional à moradia; 2.1 O patrimônio de afetação no contrato incorporativo; 2.1.1 A extinção do contrato incorporativo e da vigência do regime do patrimônio de afetação; 2.2 O papel da Constituição enquanto normalizadora da realidade social; 2.3 As formas de concretização da norma constitucional para garantir o direito à moradia; 3 – Considerações finais; Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

O direito à moradia foi alçado ao status de garantia constitucional positivada através da Emenda nº 26, de 2000, inserindo-o no artigo 6º da Carta Política1. Assim, adveio a necessidade da criação de meios mais eficazes para sua realização, e um deles foi o surgimento e regulamentação * Professor no UniRitter. Advogado. Bacharel em Comunicação Social (Publicidade e Propaganda

pela FAMECOS – PUCRS). Especialista em Direito Civil (UniRitter). Mestrando em Direito da Integração (UFRGS/PPGD).

1 Constituição Federal, Art. 6º. “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (grifamos).

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do regime do patrimônio de afetação, bem como a possibilidade de sua instituição nos contratos de incorporação imobiliária, cuja fórmula é bastante difundida no mercado. Devido à possibilidade de planos de financiamento flexíveis, esta constitui, diante da eterna crise econômica brasileira, para muitos, a única forma de aquisição do imóvel próprio.

O patrimônio de afetação foi instituído pela Medida Provisória nº 2.2212, de 05.09.2001, posteriormente convertida na Lei 10.931/2004, e visa a garantir “as receitas de cada incorporação sejam rigorosamente aplicadas na realização do respectivo empreendimento, impedindo o desvio de recursos de um empreendimento para outro, ou para obrigações gerais da incorporadora, estranhas às obrigações vinculadas ao empreendimento afetado”3. Estas inovações à regulamentação incorporativa materializaram-se através de acréscimo dos artigos 31-A a 31-F à lei das incorporações imobiliárias (Lei nº 4.591/64), justamente dispondo acerca da possibilidade de a afetação patrimonial ser instituída neste tipo de contrato.

Pretende-se, com essa medida, resguardar os direitos de adquirentes dos imóveis (ainda na planta) colocados à venda, financiadores da obra, trabalhadores, enfim, daqueles cujos esforços foram diretamente empregados na consecução do objetivo final da incorporação, qual seja, a conclusão das futuras unidades autônomas e sua respectiva alienação aos compradores.

Por força de lei4, pode o incorporador instituir o regime do patrimônio de afetação, mas, uma vez tomada esta decisão pelo empresário, tem caráter irretratável. 2 A Medida Provisória 2.201/01, embora tivesse o escopo de proteção dos adquirentes de imóveis

oferecidos pelas empresas incorporadoras e dos agentes financiadores das obras, acabou trazendo certas incoerências em seu texto, algumas eliminadas com a edição da Lei 10.931/2004, outras mantidas, como, por exemplo, a unilateralidade na constituição do regime de afetação (dependente unicamente da vontade do incorporador). De outra banda, o art. 30-D da MP em tela acabava por desvirtuar a própria natureza do patrimônio de afetação, tornando-o comunicável com o patrimônio geral da empresa incorporadora, ou seja, respondendo por seus direitos e obrigações. Esse mesmo dispositivo (art. 30-D e seus parágrafos da MP 2.221/01) ainda cometia um impropério mais grave: na falência do incorporador, os adquirentes responderiam por todas as dívidas do empresário, fiscais, trabalhistas e previdenciárias e, até mesmo, as pessoais, como o Imposto de Renda do falido. A Lei 10.931 corrigiu esta flagrante incoerência da lei em relação à sua própria ratio.

3 CHALUB, Melhim Namen. A Incorporação Imobiliária como Patrimônio de Afetação – A teoria da afetação e sua aplicação às incorporações imobiliárias. Comentários à Medida Provisória 2.221, de 04.09.2001. Revista de Direito Imobiliário, n.55, p.63, jul.-dez. 2003.

4 A Lei 10.931/2004 acrescentou à Lei 4.591/64, entre outros, o art. 31-A, cujo texto aqui transcrevemos: “A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da

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A questão da unilateralidade quanto à sua adoção será também objeto de arguições no desenvolvimento deste trabalho.

Embora o regime da afetação confira maior segurança a todo o processo incorporativo, o empresário incorporador não está livre da falência. Deve ser destacado o fato de os bens afetados, embora pertencentes ao patrimônio geral do incorporador, devido à sua funcionalidade, não estão sujeitos à quebra, por isso, uma vez instituídos no contrato de incorporação, seus efeitos se farão presentes também na esfera falimentar5.

PRIMEIRA PARTE: CONTRATO INCORPORATIVO E PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO

Destarte, iniciaremos este estudo pela análise do contrato incorporativo em seus aspectos principais, observando sua criação, partes envolvidas e seus respectivos direitos e deveres, bem como os efeitos da instituição do patrimônio de afetação e, por fim, sua extinção

1.1 Breves Apontamentos Acerca do Contrato Incorporativo

A etimologia da palavra incorporação fornece os primeiros dados acerca do conteúdo do contrato incorporativo. O sufixo in refere-se à constituição de uma forma, passagem a um novo estado, enquanto a palavra corpo denota um sentido de estrutura física, e, por fim, o sufixo ação

afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes”.

5 Embora o escopo deste trabalho não seja a questão falimentar, destaque-se a entrada em vigor da recente lei de falências (Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005), cujo escopo foi o de modernização da legislação falimentar brasileira, antes regulada pelo Decreto-Lei 7.661/1945, especialmente no tocante à recuperação judicial, medida destinada à manutenção da empresa e, por conseguinte, da realização de sua função social, enquanto geradora de riquezas, empregos e divisas para o país. Entre as inovações trazidas por este novo diploma, encontra-se previsão normativa acerca do regime dos patrimônios de afetação nos contratos atingidos pela falência, conforme prescreve o artigo 119, IX, da Lei 11.101/2005: “Art. 119. Nas relações contratuais a seguir mencionadas prevalecerão as seguintes regras: (...); IX – os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer”.

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traz uma noção básica de ato. Com isso, podemos dizer literalmente: incorporação é o ato de transformação da estrutura física6.

O contrato de incorporação é complexo, nele “enfeixam-se negócios ligados à construção civil e empreendimentos imobiliários7”. É tipificado, regulado pela Lei 4.591/64, pois, não obstante a matéria de condomínio estar disciplinada no Código Civil, este nada dispõe sobre a incorporação imobiliária.

Para ARNOLDO WALD, “chama-se incorporação imobiliária, incorporação edilícia ou simplesmente incorporação o contrato pelo qual uma parte (o incorporador) obriga-se a fazer construir um edifício composto de unidades autônomas, alienando-as a outras partes (os adquirentes), em regime de condomínio, com as frações ideais do terreno”8.

O artigo 28, parágrafo único, da Lei 4.591/64 define incorporação imobiliária: “Para efeito desta Lei, considera-se incorporação imobiliária a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas”9.

A importância da lei, conforme ensina SÍLVIO DE SALVO VENOSA, foi conferir à incorporação caráter real (observada, evidentemente, a necessidade do registro no Cartório de Registro de Imóveis), fato relevante à proteção dos adquirentes. Ressalta este autor: “Não existe incorporação quando proprietários de imóvel em conjunto assumem a tarefa, ainda sob a regência de um administrador”10. Na verdade, estariam aqueles formando um condomínio.

Neste contrato, são partes o incorporador11, embora este não seja, necessariamente, o construtor, e os adquirentes. O conceito de incorporador

6 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, p.7, 219 e 429, apud

CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação Imobiliária, Ensaio de uma Teoria Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p.17.

7 VENOSA, Sílvio de Salvo, Direito Civil: Contratos em espécie. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2003, v.3, p.509. (Coleção Direito Civil).

8 WALD, Arnoldo. Obrigações e contratos. 16.ed. rev. e ampl. de acordo com o novo Código Civil de 2002, com a colaboração do Prof. Semy Glanz – São Paulo: Saraiva, 2004, p.491.

9 Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/sicon/ExecutaPesquisaLegislacao.action>. Acesso em: 28 out. 2005.

10 VENOSA, Sílvio de Salvo. Op.cit., p.510. 11 O conceito de incorporador encontra-se no artigo 29 da Lei 4.591/64: “Considera-se incorporador

a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que, embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais

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abarca proprietários ou titulares de direitos aquisitivos que exerçam a mesma atividade, conforme o artigo 30 da Lei 4.591/64.

Trata-se de obrigação de resultado (entrega das unidades construídas). O contrato bilateral, oneroso e formal pode ser de execução continuada ou diferida. O objeto (consistente nas obrigações de fazer e de dar) é a promoção da construção e entrega das unidades pactuadas mediante o pagamento do preço estabelecido no instrumento. O comprador do imóvel adere às cláusulas redigidas pelo incorporador; é, portanto, contrato de adesão, podendo ser, conforme o caso, preliminar.

Assim, ensina VENOSA, “o contrato de incorporação abrange ajuste referente à alienação de fração ideal de terreno ligado à futura unidade autônoma e a possibilidade de o incorporador promover a construção do edifício de três formas: diretamente, por empreitada ou administração”12.

O incorporador é figura essencial neste complexo contrato, pois através dele se concretizarão todas as etapas de administração do processo construtivo até o seu término. A lei atribui-lhe uma série de responsabilidades, cujo não cumprimento poderá ensejar até mesmo sua destituição por parte dos adquirentes. Esta possibilidade existe porque estes, embora se relacionem individualmente com o incorporador, formam um grupo cujo objetivo é o mesmo, qual seja o término da construção e a transferência das unidades autônomas para suas respectivas esferas patrimoniais. Há entre eles um vínculo negocial. Exceções pessoais e gerais poderão ser opostas ao incorporador como forma de evitar prejuízos, tanto individuais como do grupo de adquirentes. Assim, por exemplo, se a incorporação se originou de documentação falsa, para obtenção do registro imobiliário, todos os negócios estarão viciados, por isso, qualquer interessado, ou mesmo a assembleia, tem legitimidade para pedir a declaração da nulidade.

Em contrapartida, em caso de inadimplemento de adquirente, caberá “ao incorporador ou à comissão de representantes rescindir o contrato.

frações a unidades autônomas, (VETADO) em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a termo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas”. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/sicon/ExecutaPesquisaLegislacao.action>. Acesso em: 08 nov. 2005.

12 VENOSA, Sílvio de Salvo. Op.cit., p.510.

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Pode, no entanto, incumbir à Assembleia essa tarefa, por disposição contratual”13.

Importante lição é a de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA: “Não é qualquer pessoa que pode ser incorporador, porém aquelas a quem o legislador reconhece essa qualidade”14. A Lei 4.591/64 (art. 31) atribui a três pessoas a incorporação: o proprietário do terreno, a ele equiparados, o promitente-comprador, o cessionário deste ou o promitente-cessionário. Contudo, para evitar abusos, o legislador conferiu à promessa de compra e venda certas condições, enumeradas no art. 32 da Lei 4.591/64. Pode ser também o construtor, “não uma pessoa qualquer, que se inculque esta condição, porém aquela que faça da construção uma atividade disciplinada e que, devidamente licenciada, esteja enquadrada naquelas condições previstas nos Decretos nº 35.569, de 11 de dezembro de 1933; nº 3.955, de 31 de dezembro de 1941, e Decreto-Lei nº 8.620, de 10 de janeiro de 1946, bem como demais disposições legais e regulamentos atinentes à espécie”15. Por fim, pode ser incorporador o corretor de imóveis, matriculado, conforme prescreve a Lei nº 4.116, de 27 de agosto de 1962.

Ainda em relação ao grupo de adquirentes, vale ressaltar a possibilidade da entrada de novos componentes depois de iniciada a construção, e ensina VENOSA: “É negócio trilateral... no qual é exigida a concordância do administrador do contrato, o incorporador. Pode ser abusiva a cláusula que exija excessivo preço para a anuência”16. Importante assinalar a necessidade da perfeição contratual entre cada adquirente e o incorporador, sem a qual as obrigações não serão cumpridas corretamente, inviabilizando a flexibilidade típica da relação contratual.

Os adquirentes poderão valer-se, inclusive, das disposições consumeristas, por tratar-se, na grande maioria dos casos, de relação de consumo, onde, regra geral, uma das partes adere ao contrato redigido pela outra, economicamente mais forte e com muito maior conhecimento acerca do negócio. O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 3º, § 1º, fazendo menção ao objeto da relação de consumo, qual seja o produto, determina que este poderá ser móvel ou imóvel, corpóreo ou incorpóreo.

13 VENOSA, Sílvio de Salvo. Op.cit., p. 512. 14 PEREIRA, Caio Mário da Silva, Condomínio e Incorporações: edição atualizada segundo a legislação

vigente. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.252. 15 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p.254. 16 VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p.511.

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Entretanto, a relação de consumo entre incorporador e adquirente não será aqui analisada, pois entendemos não ser essencial ao tema ora proposto17.

Destarte, resta clara a complexidade de relações envolvidas neste contrato, pois podem se dar em nível individual, cada adquirente com o incorporador, bem como do grupo com aquele, graças ao vínculo negocial que os une, conforme já referido.

Mister é o estabelecimento de um critério para identificarmos a diferença entre um negócio jurídico com pluralidade de declarações de uma multiplicidade de negócios ligados a uma fattispecie complexa. BETTI aponta o seguinte critério: “Perante uma pluralidade de declarações conexas, há que se distinguir se, a cada umas delas se ligam, como efeitos jurídicos próprios e independentes, os efeitos jurídicos que correspondem ao seu destino, ou se esses efeitos só estão ligados ao complexo das declarações reunidas”18. Tal assertiva, portanto, faz distinção quanto à forma como os efeitos jurídicos resultantes alcançam sua finalidade, independente ou conjuntamente.

Assim, mesmo havendo essa pluralidade de relações, representadas por negócios jurídicos diversos, com efeitos próprios e independentes, agrupam-se todos ao redor de um núcleo, qual seja a atividade incorporativa, regulada pela Lei 4.591/64. Assim, “formando o centro nuclear da incorporação imobiliária lato sensu, encontramos um negócio jurídico unitário, composto de diversas outras declarações reunidas, complementares umas das outras: é o negócio jurídico incorporativo, ou incorporação imobiliária lato sensu”19.

Do contrato de incorporação surge um direito real, obviamente se registrado no Cartório de Registro de Imóveis. No Código Civil, integra o rol dos Direitos reais o direito do promitente comprador (art. 1.225, VII). Desta forma, o legislador procurou cercar de mais segurança o sujeito que

17 Para uma visão do ponto de vista da relação de consumo, consultar: CHALUB, Melhim Namhen. O

Contrato de Incorporação Imobiliária Sob a Perspectiva do Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito Imobiliário. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.24, p.92-135, 2001. Também, BESSA, Leonardo Roscoe. O Contrato de Incorporação e os Direitos do Consumidor. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v.26, n.77, p.42-60, mar. 2000.

18 BETTI, Emílio. Teoria Geral do Negócio Jurídico, t.II, n.37, p.183, apud CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação Imobiliária, Ensaio de uma Teoria Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p.180.

19 CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação Imobiliária, Ensaio de uma Teoria Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p.180.

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deposita uma enorme dose de confiança na realização do pactuado entre este e o incorporador.

Como já referido, a promessa de compra e venda, desde que submetida ao registro, é revestida de eficácia real, constituindo, assim, uma forma de proteção ao cumprimento do estabelecido no contrato de incorporação.

Outra particularidade deste contrato é a existência de carência em uma primeira fase, anterior à formalização da incorporação. Trata-se, na verdade, muito mais de um estudo de viabilidade do empreendimento, onde o incorporador capta clientes no mercado, prepara o lançamento e recebe propostas de aquisição das unidades. Nesta fase, é também possível que o incorporador proceda a ajustes nos contratos preliminares, certamente úteis para o momento de confeccionar os definitivos.

ARNALDO RIZZARDO ensina: “Este instrumento de reserva ou equivalente não pode deixar de conter os dados essenciais dos contratos definitivos, entre os quais as cláusulas e as condições relativas ao direito de denúncia do empreendimento no prazo de carência...”20, entre outras.

Uma vez terminado o prazo de carência e, óbvio, não ocorrer denúncia, inicia-se nova fase do contrato, onde caberá ao incorporador “celebrar os contratos de venda da fração ideal do terreno e da construção, além de apresentar a convenção de condomínio, tudo de acordo com a minuta constante do processo levado ao registro imobiliário, no prazo de sessenta dias21”. Em caso de não celebração, o interessado poderá levar a proposta ou documento preliminar a registro com o objetivo de seu direito ganhar oponibilidade erga omnes, bem como assegurar o cumprimento compulsório do pactuado no respectivo contrato, consoante o § 4º do artigo 35 da Lei 4.591/6422.

Não ocorrendo a celebração do contrato de construção, bem como da convenção do condomínio, haverá a possibilidade de ação contra o

20 RIZZARDO, Arnaldo. Op. cit., p.1342. 21 RIZZARDO, Arnaldo. Op. cit., p.1343. 22 Artigo 35, § 4º, da Lei 4.591/64: “Descumprida pelo incorporador e pelo mandante de que trata o

§ 1º do art. 31 a obrigação da outorga dos contratos referidos no caput deste artigo, nos prazos ora fixados, a carta-proposta ou o documento de ajuste preliminar poderão ser averbados no Registro de Imóveis, averbação que conferirá direito real oponível a terceiros, com o consequente direito à obtenção compulsória do contrato correspondente”. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/sicon/ExecutaPesquisaLegislacao.action>. Acesso em: 13 dez. 2005.

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incorporador, que será obrigado a realizá-la, ou a indenizar o custo correspondente, hipótese em que terceiro realizará a obra, conforme dispõem os artigos 632 e seguintes do Código de Processo Civil.

A Lei 4.591/64 prevê três possibilidades contratuais para a construção do edifício: por conta e risco do incorporador (art. 41 da Lei 4.591/64); por empreitada (art. 55 da Lei 4.591/64); e a chamada construção por administração (art. 58 da Lei 4.591/64).

Em relação à modalidade por conta e risco do incorporador, este se comprometerá com a venda das unidades autônomas no prazo e preço ajustados. Já quando a incorporação se dá por empreitada, esta poderá ser a preço fixo (§ 1º do art. 41) ou reajustável por índices previamente estipulados no contrato (§ 2º do art. 41). Importante anotar, em ambos os casos haverá uma comissão de representantes cuja função será “fiscalizar o andamento da obra e a obediência ao projeto e às especificações, representar os contratantes e fiscalizar a construção. Na empreitada sob regime reajustável, cabe à dita comissão fiscalizar, ainda, o cálculo do reajustamento”23.

Quando for caso de construção por administração, o risco é integralmente dos condôminos, conforme o artigo 58, incisos I e II, da Lei de Incorporações. ARNALDO RIZZARDO cita jurisprudência da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro (Apelação Cível nº 2.041), onde os Desembargadores entenderam ser causa legítima para a não construção do empreendimento pelo incorporador quando as parcelas forem adequadas à realidade econômico-financeira dos condôminos, mas, fazendo ciência à construtora da necessidade de reajuste, aquelas se mantenham fixas. O fundamento aduzido pelos magistrados é o inadimplementi non est adimplementum24.

É claro, caso a inexecução do empreendimento resulte de fraude, como, por exemplo, falsidades no lançamento, poderão o incorporador e os diretores das empresas incorporadoras responder criminalmente, pois, tipificado estaria o crime contra a economia popular, conforme o artigo 65 da Lei 4.591/64. A pena prevista é de um a quatro anos de reclusão e multa de cinco a cinquenta vezes o maior salário mínimo do país. Aliás, conforme ressalta MARCO AURÉLIO DA SILVA VIANA: “O lançamento da incorporação reclama o prévio atendimento de requisitos legais, enumerados no art. 32 da 23 RIZZARDO, Arnaldo. Op. cit., p.1344. 24 RIZZARDO, Arnaldo. Op. cit.

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Lei 4.591/64. Só após o arquivamento da documentação é permitida a negociação”25. Outros atos, como negociar frações ideais descumprindo as exigências; omitir gravame ou ocupação do imóvel; não efetivar o contrato no prazo, salvo denúncia admitida; omitir o orçamento atualizado; paralisar a obra por mais de trinta dias ou retardá-la excessivamente sem justa causa, constituem contravenção contra a economia popular, cuja pena é multa de cinco a vinte salários mínimos, conforme o artigo 66 da Lei 4.591/64.

Importante foi o acréscimo, feito pela Lei 10.931/2004, dos arts. 31-A a 31-F à Lei 4.591/64, tratando do patrimônio de afetação. Esta análise será, contudo, realizada em capítulo à parte, para melhor desenvolvimento do tema.

A seguir, trataremos dos direitos e deveres das partes no contrato incorporativo.

1.1.1 Direitos e deveres das partes no contrato de incorporação

1.1.1.1 Deveres do incorporador

Segundo magistério de CAIO MÁRIO, “ao incorporador impõe a lei uma série de deveres e de responsabilidades, em todas as fases da incorporação. Suas obrigações nascem antes desta, precedendo-a, portanto. Vivem com ela e acompanham o incorporador enquanto se desenvolve a obra. E sobrevivem à conclusão desta, não bastando, como título liberatório, a quitação fornecida pelos adquirentes contra a entrega do edifício”26.

É claro, independente da natureza da relação jurídica, seja real ou pessoal, sobre ela incidirá a boa-fé objetiva, como elemento externo à vontade das partes, em todas as etapas da formação do contrato, desde a fase preliminar até a fase pós-contratual, pois não podemos esquecer da existência dos chamados deveres anexos (Nebenpflichten) e do sentido de cooperação entre os contratantes. A relação obrigacional compreende muito mais do que uma relação de crédito e débito; na verdade, um feixe de relações a compõe, para buscar um resultado mais favorável às partes, reforçando a ideia de cooperação entre credor e devedor. No contrato incorporativo, há o emprego de uma alta dose de confiança, tendo em vista que, na maior parte dos casos, o empreendimento ainda não existe

25 VIANA, Marco Aurélio da Silva. Manual do Condomínio e das Incorporações Imobiliárias. São Paulo:

Saraiva, 1982, p.97. 26 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op.cit., p. 261.

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fisicamente. Na verdade, vende-se ao adquirente uma expectativa (formalizada pela promessa de compra e venda) e ao ordenamento jurídico incumbe protegê-la, no sentido de impedir sua frustração27.

Além disso, registre-se, a quebra destes deveres anexos poderá ensejar o rompimento da relação contratual, antes mesmo do cumprimento da obrigação principal iniciar-se, é a chamada quebra positiva do contrato28.

O incorporador é a parte que mais deveres concentra, estando esses discriminados nos artigos 32 e seguintes da Lei 4.591/64. Para ARNOLDO WALD29, alguns de seus mais significativos exemplos são: o registro da incorporação, com a prova do direito real, posse, irrevogabilidade das promessas, se existirem, bem como a faculdade de alienar, demolir e construir; certidões negativas de dívidas, protestos, ações civis e penais e ônus reais, relativas aos alienantes e ao incorporador; histórico da propriedade por vinte anos, projeto aprovado, discriminação das áreas, memorial de especificações, avaliação do custo global da obra; indicações das frações vinculadas às unidades, minuta da convenção; mandato do titular do direito real; prazo de carência, se assim desejar; declaração e plantas das garagens; atestado de idoneidade financeira. Dentro de sessenta dias após o prazo da carência, após os contratos prévios: deve acontecer a conclusão do contrato de incorporação com o respectivo registro, apontar os responsáveis pelo custeio, acusar eventuais ônus reais ou fiscais, caso existam, o preço e a forma de pagamento, custo da fração ideal; é necessário também colocar seu nome no local onde será realizada a obra e observar os prazos; deve contratar com o seguro obrigatório de “garantia do cumprimento de suas obrigações” (conforme art. 20, e, do Decreto-Lei nº 73/66); apresentar os custos das unidades não alienadas; Havendo denúncia, deve restituir as quantias, no caso de haver carência; conclusa a obra, deverá: proceder à averbação da construção, bem como a instalação 27 Em relação à boa-fé objetiva, suas funções (interpretativa, integradora, operacional e

concretizadora) e efeitos nos contratos ver: COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A Obrigação como Processo. São Paulo: José Bushatsky. 1976; do mesmo autor: A Boa-fé no Direito Brasileiro e Português. In: FRADERA, Véra Maria Jacob de (Coord.). O Direito Privado Brasileiro na Visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 33-58. FRADERA, Véra Maria Jacob de. A Boa-Fé Objetiva, uma noção presente no conceito alemão, brasileiro e japonês de contrato. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS – Ed. Especial, novembro de 2003, p.125-140; MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

28 A este respeito, consultar FRADERA, Véra Maria Jacob de. A quebra positiva do contrato. AJURIS, n.44, 1988.

29 WALD, Arnoldo. Op. cit., p.493.

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do condomínio, com seu respectivo instrumento; quando a entrega tiver sido contratada a prazo e a preço certo: de seis em seis meses, no mínimo, os adquirentes devem ser informados do estado da obra; manter o projeto como originalmente concebido, as condições de pagamento e o preço, a menos se reajustável; sem justa causa, não pode o incorporador interromper ou atrasar o andamento da obra; e, por fim, responder por perdas e danos. SÍLVIO DE SALVO VENOSA acrescenta: “Também é sua a administração geral da construção e sua a responsabilidade, ainda que nomeie subcontratantes ou prepostos”30. Destarte, entendemos ser do incorporador, conforme já aludimos anteriormente, a obrigação de gestão de todo o negócio incorporativo. Nesta mesma esteira, ARNALDO RIZZARDO31 ensina: outra importante atribuição do incorporador é a escolha do construtor, pois dele dependerá em grande parte o sucesso do empreendimento.

Importante lembrar, o incorporador seja pessoa física ou jurídica poderá responder com seus bens pessoais em caso de impossibilidade de conclusão da obra, se os adquirentes não puderem, por sua conta, continuar o empreendimento (art. 43, III, da Lei 5.491/6432).

1.1.1.2 Direitos do incorporador

Para WALD33, os direitos mais específicos do incorporador são: a fixação do prazo de carência, onde poderá ocorrer a desistência do empreendimento; a estipulação das condições do contrato, pois são geralmente impostas, porquanto se trata de contrato de adesão; o artigo 52 da Lei 4.591/64 prevê os casos em que se poderá exercer o direito de retenção, mas, no caso do incorporador, é o artigo 43 que o assegura; a exigência das prestações dos adquirentes; a possibilidade de constituí-los em mora, após o atraso de três prestações.

Ainda na esfera dos direitos do incorporador, frisa ARNALDO RIZZARDO: “Se o compromisso de compra e venda envolver unidade autônoma, e o incorporador figurar como promitente vendedor, faculta-se 30 VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p.518. 31 RIZZARDO, Arnaldo. Op. cit., p.1348. 32 Lei 4.591/64, Art. 43. Quando o incorporador contratar a entrega da unidade a prazo e preços

certos, determinados ou determináveis, mesmo quando pessoa física, ser-lhe-ão impostas as seguintes normas: (...); III – em caso de falência do incorporador, pessoa física ou jurídica, e não ser possível à maioria prosseguir na construção das edificações, os subscritores ou candidatos à aquisição de unidades serão credores privilegiados pelas quantias que houverem pago ao incorporador, respondendo subsidiariamente os bens pessoais deste.

33 WALD, Arnoldo. Op. cit., p.494.

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fique consignado, no contrato, que o atraso das prestações concernentes ao terreno determine, também, a mora na construção”34. O mesmo autor enumera, ainda, o direito de o incorporador transferir a terceiro o contrato do adquirente, o qual, mesmo constituído em mora, não satisfaz a obrigação (art 1º, inc. VI, da Lei nº 4.864), sem esquecer, porém, a possibilidade de purgação da mora, no intervalo de noventa dias após a notificação judicial.

Destacamos, ainda, o direito de o incorporador não instituir o regime de afetação no contrato incorporativo.

1.1.1.3 Direitos dos adquirentes

ARNALDO RIZZARDO enumera os seguintes direitos do adquirente: sessenta dias após o término do prazo de carência, caso houver, ou a partir do momento em que o contrato é exigível, quando não há carência, a celebração daquele, tanto sobre a fração ideal como do terreno. Caso não seja outorgado o contrato na data oportuna, poderá postular o pagamento de multa de 50% sobre as parcelas pagas; em caso de desistência do incorporador, impor a restituição das parcelas pagas àquele no prazo de trinta dias. Esgotado o prazo, sem o atendimento, é possível executar o incorporador com correção monetária e juros de 6% ao ano, conforme o artigo 35 da Lei 4.591/64. Obtenção das quantias pagas em caso de rescisão do contrato de compra e venda do terreno, quando o alienante é o próprio incorporador, exceto se a rescisão se der por culpa do adquirente, conforme o disposto no artigo 44, § 2º, da Lei 4.591/64; promover no Registro de Imóveis a averbação da construção, cuja existência é fundamental para a individualização e discriminação das unidades, sempre que houver omissão do incorporador e do construtor; informações acerca do andamento da obra de, no mínimo, seis em seis meses (artigo 43, I, da Lei 4.591/64); a posição de credor privilegiado em caso de falência do incorporador, quanto ao recebimento das quantias pagas. Em tal hipótese, respondem subsidiariamente os bens particulares daquele (artigo 43, III, da Lei 4.591/64). Há, ainda, importante direito assegurado ao adquirente, o da promoção de notificação do incorporador para o reinício das obras paralisadas, em trinta dias, ou retardadas excessivamente e dar-lhes andamento normal, podendo, em caso de não o fazer, ser destituído pela maioria absoluta dos votos dos adquirentes, sem prejuízo das responsabilidades civil e criminal; a exigência da entrega das chaves das

34 RIZZARDO, Arnaldo. Op. cit., p.1348.

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unidades após o cumprimento das obrigações e pago o preço. Caso o incorporador insista na retenção das chaves, com o escopo de forçar a composição de preços, poderá ajuizar contra este ação de execução de dar coisa certa, prevista nos artigos 621 e seguintes do Código de Processo Civil. Receber do alienante não incorporador o valor investido no empreendimento, em caso de rescisão total ou parcial da promessa de venda do terreno35.

Ressalta Arnoldo Wald outro importante direito do adquirente, qual seja, desde que em dia com as prestações, imitir-se na posse do imóvel, bem como receber as devidas quitações, na medida em que forem efetuados os pagamentos.

SÍLVIO DE SALVO VENOSA lembra que os adquirentes têm o direito de constituir uma Comissão de Representantes36: “Quaisquer que sejam as modalidades de incorporação, podem os interessados reunir-se em Assembleia Geral durante o andamento das obras, a fim de tratarem de assuntos a elas relacionados (art. 49)”37. A importância da Assembleia, uma vez não existir ainda condomínio, pois este geralmente constitui-se após o término do empreendimento, é possibilitar a deliberação de vários pontos não contemplados pela lei. Neste estágio da incorporação, também não existe ainda a figura do síndico, é o incorporador quem representa a comunidade.

1.1.1.4 Deveres dos adquirentes

Para WALD38, são deveres dos adquirentes, entre outros: pagar o preço de acordo com o ajustado; em caso de mora, conforme o artigo 63, §§ 8º e 9º da Lei 4.591/64, pagar multa, juros, juros de mora e prestações corrigidas; caso a mora for superior a três prestações e não ocorrer sua purgação em dez dias após a notificação (art. 63, § 1º, da Lei 4.591/64), o adquirente

35 RIZZARDO, Arnaldo. Op. cit p.1351. 36 A Comissão de Representantes, uma vez constituída, poderá contar, às suas expensas, com

engenheiros, contabilistas, etc., no sentido de auxiliar na fiscalização do andamento das obras. Também a instituição financiadora, quando houver, poderá nomear profissionais para acompanhamento dos trabalhos. Embora a responsabilidade do incorporador não desapareça, esta será estendida à Comissão de Representantes em caso de omissão ou negligência no exercício de suas atividades. Assim, se o incorporador procede mal, e a Comissão, tendo ciência, não toma as devidas providências, poderá ser corresponsabilizada por eventual prejuízo decorrente de sua omissão.

37 VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p.521. 38 WALD, Arnoldo. Op. cit., p.494.

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estará sujeito a sofrer a alienação da unidade; e, por fim, cumprir com o pagamento dos tributos. ARNALDO RIZZARDO ensina: “Em geral, paga o adquirente um sinal exigido como entrada, na modalidade de arras confirmatórias, comprometendo-se a saldar regularmente as prestações mensais representadas por notas promissórias”39.

Até o presente momento, relatamos brevemente os aspectos gerais da lei de incorporações imobiliárias. Agora, passaremos à análise dessa faceta mais recente do contrato incorporativo, qual seja a possibilidade de ser instituído patrimônio de afetação e sua conexão com a concretização do direito constitucional à moradia.

SEGUNDA PARTE: O DIREITO CONSTITUCIONAL À MORADIA

Na segunda parte deste trabalho, trataremos do patrimônio de afetação e seu regime jurídico, para, logo após, entendê-lo em face do direito constitucional à moradia, bem como dos mecanismos de concretização deste comando positivado na Constituição Federal enquanto normalizadora da realidade social, em relação à qual se encontra atrelada, como determinante de sua própria evolução, na medida em que impede sejam subvertidos seus princípios e espírito.

2.1 O Patrimônio de Afetação no Contrato Incorporativo

A ocorrência de quebra de grandes construtoras/incorporadoras como a Encol motivou o legislador a adotar medidas de proteção ao crédito daqueles cujos investimentos estão voltados à área imobiliária, especialmente as pessoas que ainda não realizaram o sonho comum a grande parcela da população brasileira, a aquisição da casa própria.

A lei de incorporações imobiliárias (Lei 4.591/64), por si só, não conseguia atingir um nível de segurança satisfatório, seja aos adquirentes das unidades autônomas, ou mesmo às instituições financeiras responsáveis pelo custeio das edificações.

A exigência de uma resposta por parte dos tribunais às pessoas prejudicadas por quebras inesperadas de incorporadoras consubstanciou-se “por meio de decisões eficazes e imediatas ao problema do consumidor,

39 RIZZARDO, Arnaldo. op. cit., p.1349.

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visto que concediam a adjudicação compulsória dos imóveis livres de todos os ônus, inclusive da garantia de hipoteca dos agentes financeiros”40.

Contudo, o ressarcimento dos adquirentes era demorado, não recebiam seus imóveis em razão da falência e isso acarretava sérios riscos ao desenvolvimento econômico, especialmente pelo fato de os agentes financeiros arcarem diretamente com os prejuízos experimentados pelo incorporador41. Tal conjuntura levou bancos e financeiras a tornarem cada vez mais rígido o processo de liberação de capital para os empreendedores imobiliários, originando um efeito cascata prejudicial à economia do país, pois viram-se diminuídas as oportunidades de emprego da mão-de-obra na construção civil, a arrecadação de tributos e a oferta de imóveis aos consumidores.

O Direito pátrio criou, assim, a possibilidade da instituição do regime do patrimônio de afetação (Medida Provisória nº 2.221/2001 posteriormente convertida na Lei 10.931/2004) no contrato incorporativo, onde os bens constituintes da incorporação, como o solo e as acessões, permanecem apartados do patrimônio do empreendedor. De acordo com o magistério de ARNALDO RIZZARDO, “o incorporador transfere para um regime próprio o terreno e as acessões, ficando em nome da incorporação. Desvinculando-se do poder de disposição, e não do domínio, do incorporador, e passam a acompanhar a incorporação, importando maior segurança para os adquirentes de unidade, já que não mais responderão esses bens pelas obrigações do incorporador, a menos que ligadas ao empreendimento”42.

Assim, a Lei nº 10.931/2004 acrescentou ao diploma regulador das incorporações imobiliárias (Lei 4.591/64) uma série de disposições, alocadas nos arts. 31-A a 31-F. Entre essas, encontram-se novas obrigações do empresário incorporador/construtor face ao patrimônio de afetação, cujo

40 TUTIKIAN, Cláudia Fonseca. Patrimônio de Afetação na Incorporação Imobiliária. RDCPC, n.31,

p.47-48, set.-out. 2004. 41 Visando a garantir a recuperação de seus investimentos em caso de insolvência do incorporador,

os agentes financeiros tentaram instituir as chamadas Sociedades de Propósito Específico (SPE), exigindo dos empresários fossem abertas sociedades com a finalidade específica de administrar e gerir aquele determinado empreendimento. Contudo, isso não impedia que ocorressem migrações de receitas de um empreendimento para outro, ou mesmo para o patrimônio geral do incorporador. MATOS, Sandro Rafael Barioni de. Regime especial tributário: aspectos sob a ótica da lei 10.931/2004. In: MARQUES FILHO, Vicente de Paula; DINIZ, Marcelo de Lima Castro (Orgs.). Incorporação Imobiliária e Patrimônio de Afetação. Curitiba: Juruá, 2005, p.125.

42 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.1341.

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conteúdo, embora não nos pareça taxativo, encontra-se no art. 31-D da Lei 4.591/6443.

Evita-se, com isso, uma manobra extremamente arriscada, muitas vezes levada a cabo pelo empresário incorporador, qual seja o desvio de recursos destinados a certa incorporação para outra, ou mesmo para o patrimônio geral da empresa construtora, levando-o, não raro, à bancarrota44.

A instituição do regime do patrimônio de afetação, além de representar segurança para adquirentes e agentes financiadores, é uma excelente ferramenta de organização a serviço do incorporador, tendo em vista a tomada de diversas ações em sua decorrência, como, por exemplo, em caso de a empresa possuir diversas incorporações, a obrigatoriedade de manter uma conta corrente individual para cada obra, com contabilidade própria.

Este regime, entretanto, deve ser previsto no contrato, pois depende de manifestação do incorporador, bem como de sua averbação no Cartório de Registro de Imóveis, conforme já dispunha o art. 30-A, da Medida Provisória 2.221/01: “A critério do incorporador a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto da incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes”. O artigo 30–B indica, conforme já dito, a 43 Art. 31-D – I – promover todos os atos necessários à boa administração e à preservação do

patrimônio de afetação, inclusive mediante adoção de medidas judiciais; II – manter apartados os bens e direitos objeto de cada incorporação; III – diligenciar a captação dos recursos necessários à incorporação e aplicá-los na forma prevista nesta Lei, cuidando de preservar os recursos necessários à conclusão da obra; IV – entregar à Comissão de Representantes, no mínimo a cada três meses, demonstrativo do estado da obra e de sua correspondência com o prazo pactuado ou com os recursos financeiros que integrem o patrimônio de afetação recebidos no período, firmados por profissionais habilitados, ressalvadas eventuais modificações sugeridas pelo incorporador e aprovadas pela Comissão de Representantes; V – manter e movimentar os recursos financeiros do patrimônio de afetação em conta de depósito aberta especificamente para tal fim; VI – entregar à Comissão de Representantes balancetes coincidentes com o trimestre civil, relativos a cada patrimônio de afetação; VII – assegurar à pessoa nomeada nos termos do art. 31-C o livre acesso à obra, bem como aos livros, contratos, movimentação da conta de depósito exclusiva referida no inciso V deste artigo e quaisquer outros documentos relativos ao patrimônio de afetação; VIII – manter escrituração contábil completa, ainda que esteja desobrigado pela legislação tributária.

44 TUTIKIAN, Cláudia Fonseca. Op.cit., p.49.

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necessidade da averbação da instituição do regime de afetação no Cartório de Registro de Imóveis. Sem esta providência, não estará a incorporação sujeita a tal regime. Estas disposições mantiveram-se na Lei 10.931/2004 e, por conseguinte, implementaram a Lei 4.591/64.

Registre-se, a constituição do patrimônio de afetação é, como foi dito, opcional, mas irretratável. Uma vez instituído, “perdurará enquanto persistirem os direitos de créditos ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação”45.

A ideia de autonomia privada, presente nos contratos, como, por exemplo, a possibilidade de o incorporador instituir o regime de afetação na incorporação, reforça a ideia de cooperação entre os contratantes, pois, embora aquele possa vir a responder pelas dívidas do patrimônio afetado, maior chance de sucesso terá o empreendimento, pois oferece certa segurança aos adquirentes que o preferirão a outro, cujo patrimônio envolvido não tenha destinação prévia, podendo, assim, inclusive, ter como destinação a massa falida, em caso de insucesso do empresário incorporador.

A Lei 10.931/2004 dispõe também acerca da responsabilidade do patrimônio da incorporadora sobre as dívidas da incorporação afetada (art. 3º, parágrafo único, da Lei 10.931/2004) por outro lado, existem isenções tributárias estabelecidas no art. 3º da Lei 10.931/2004, assim dispostos: o terreno e as acessões objeto da incorporação imobiliária sujeitas ao regime especial de tributação, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, não responderão por dívidas tributárias da incorporadora relativas ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ, à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS e à Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PIS/PASEP, exceto aquelas calculadas na forma do art. 4º sobre as receitas auferidas no âmbito da respectiva incorporação. Contudo, o artigo 4º estabelece o percentual de 7% (sete por cento) da receita mensal recebida, como pagamento unificado dos seguintes tributos: I – Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ; II – Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PIS/PASEP; III -Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL; e IV – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS. Ainda, em seu artigo 6º, a Lei

45 TUTIKIAN, Cláudia Fonseca. Op.cit., p.50.

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10.931/2004 determina sejam não parceláveis os créditos tributários devidos pela incorporadora sujeita ao regime especial previsto no art. 4º.

Na prática, entendemos não ter repercussão negativa para o empreendedor imobiliário a adoção do regime de afetação; ao contrário, viabiliza de forma mais efetiva o crédito necessário à consecução da obra e confere maior credibilidade junto aos adquirentes. É, sem dúvida, uma demonstração de confiabilidade do empresário.

Propicia uma maior organização ao empreendedor, uma vez que cada incorporação afetada possui contabilidade própria, conta corrente separada, entre outras medidas assecuratórias do cumprimento da função do patrimônio de afetação. Igualmente, não podemos esquecer, “sendo o incorporador sujeito passivo de todas as responsabilidades civis, fiscais, trabalhistas, etc., relacionadas à incorporação, seu patrimônio pode responder por prejuízos causados ao patrimônio de afetação; entretanto, o oposto não acontecerá, pois o patrimônio afetado garante apenas suas próprias obrigações”46.

Além disso, é necessário afastar a ideia de cisão patrimonial do incorporador quando este institui o regime do patrimônio de afetação, tendo em vista os bens afetados (o solo, as acessões, equipamentos, etc.) integrarem o patrimônio geral do empresário. Na verdade, o patrimônio afetado é, de certa forma, destacado do restante por uma questão de garantia do cumprimento de seu objetivo, deixando-o a salvo de eventuais desequilíbrios na contabilidade geral da empresa incorporadora, bem como, para melhor atender à função social do contrato e proteger a economia popular.

O Professor CHALUB, ao discorrer sobre a questão da incindibilidade do patrimônio do incorporador, ensina: “Este patrimônio especial, como se sabe, não tem personalidade distinta do incorporador, daí por que a contabilização separada não indica cisão do patrimônio geral do incorporador; expressa, tão-somente, uma conta gráfica em que se registram os atos relativos à incorporação e corporifica o tratamento especial que a lei

46 ACCORSI, Alifrancy Pussi Farias; ROSA, Maria D. Bachega Feijó. Regime especial tributário:

aspectos sob a ótica da Lei 10.931/2004. In: MARQUES FILHO, Vicente de Paula; DINIZ, Marcelo de Lima Castro (Orgs.). Incorporação Imobiliária e Patrimônio de Afetação. Curitiba: Juruá, 2005, p.90.

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define para afetação, para que se cumpra a função do negócio incorporativo”47.

O incorporador responde tanto pelo patrimônio afetado quanto pelo geral, devido assumir o risco do negócio, como é característica de toda atividade empresária. Mas assim como poderá experimentar prejuízos, também fará jus ao lucro, caso o empreendimento alcance o sucesso esperado. Por isso, “ele é o beneficiário dos lucros e, na contrapartida, é ele o sujeito passivo das perdas decorrentes da atividade”48.

Segundo CHALUB, “a afetação não interfere no conteúdo do direito subjetivo do incorporador, mas apenas condiciona o exercício de seus poderes de modo que fique assegurado o cumprimento da função econômica e social do acervo correspondente à incorporação”49.

De outra banda, não podemos ignorar a presença de estelionatários, presentes neste nicho de mercado, responsáveis por lesar, de forma fragorosa, a economia popular.

É por isso uma lástima a determinação do regime de afetação depender apenas do incorporador (art. 31-A da Lei 4.591/64), não havendo nenhuma disposição obrigando-o a adotar tal medida. Se tal houvesse, certamente os criminosos estariam diante de um sério entrave para levar adiante incorporações fraudulentas.

Além disso, esta discricionariedade do empresário “concede vantagem exagerada ao incorporador, agravando ainda mais a vulnerabilidade dos adquirentes e contrapondo-se ao fundamento axiológico da norma, expresso na concepção original do anteprojeto do Instituto dos Advogados Brasileiros e em todos os projetos de lei da Câmara, que, unissonamente, concebem a afetação como regra geral”50.

Não se está aqui a atacar a autonomia privada, pelo contrário, trata-se de um elemento fundamental para o desenvolvimento das relações contratuais, especialmente por dar a elas uma maior flexibilidade e adequação, pois, é certo, o Direito não tem se mostrado capaz de acompanhar as rápidas e constantes mudanças da vida moderna,

47 CHALUB, Melhim Namen. A Incorporação Imobiliária como Patrimônio de Afetação – A teoria da

afetação e sua aplicação às incorporações imobiliárias.Comentários à Medida Provisória 2.221, de 04.09.2001. Revista de Direito Imobiliário, n.55, p.77.

48 CHALUB, Melhim Namen. Op.cit., p.86. 49 CHALUB, Melhim Namen. Op. cit., p.63. 50 CHALUB, Melhim Namen. Op. cit., p.76.

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especialmente em relação à economia. Mas, neste caso, entendemos a unilateralidade como um fator de esvaziamento da função exercida pelo regime do patrimônio de afetação, qual seja o de resguardar a economia popular na eventual falência do empresário, bem como impedir a transferência do prejuízo inteiramente à entidade financiadora do empreendimento.

Mas como o Direito não se limita a um diploma legal, propicia outros meios para minimizar os efeitos desta infeliz disposição legal. Embora o poder decisório quanto ao estabelecimento do regime de afetação concentre-se nas mãos do empresário, uma vez instituído o patrimônio de afetação, este deverá cumpri-lo, pois, do contrário, poderá abalar a confiança dos demais contratantes, ensejando, como veremos adiante, o rompimento do contrato.

Com o escopo de fiscalização do andamento da incorporação, existe a comissão de representantes do patrimônio de afetação, cujo papel é decidir pela continuidade da obra ou a venda do patrimônio de afetação quando da falência do incorporador ou da paralisação da obra por mais de 30 (trinta) dias sem justa causa. Caso a opção seja pela alienação do patrimônio afetado, conforme leciona NEGRÃO, “decidida a venda e pagos os tributos e obrigações previdenciárias, trabalhistas e as decorrentes do contrato firmado com o proprietário do terreno, não havendo ressarcimento integral, o adquirente será inscrito no quadro geral como credor privilegiado, na falência do incorporador, pela diferença do aporte efetivado e o produto líquido da venda. Se houver saldo, este será arrecadado em favor da massa (LF, art. 119, VIII)”51.

Contudo, “os adquirentes, se decidirem por continuar as obras, ficarão sub-rogados nos direitos, obrigações e encargos relativos à incorporação, inclusive aqueles relativos ao financiamento da obra, se houver”52.

A Comissão de adquirentes, uma vez instituída, é irrevogável, e agirá em nome do incorporador, tendo, inclusive, poderes para outorgar escrituras públicas definitivas da transferência dos imóveis aos adquirentes, desde que tenham adimplido com suas obrigações. Esta atribuição poderá ser exercida mesmo após o término da obra.

51 NEGRÃO, Ricardo. Op.cit., p.85-86. 52 TUTIKIAN, Cláudia Fonseca. Op.cit., p.53.

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Uma questão polêmica, cujo deslinde se impõe, é a de tivesse o dono do terreno destinado à construção do prédio celebrado, com o empresário incorporador, um contrato de superfície. Neste caso, devido ao principal efeito deste pacto, a bifurcação do domínio, operando-se a separação da propriedade do solo da coisa superficiária, a consequente cessação (se o contrato for por tempo determinado) ou interrupção (caso o pactuado seja por tempo indeterminado) do princípio da acessão. Sendo assim, entendemos estar a salvo o dono do terreno, caso o incorporador venha a falir ou se torna insolvente, pois, como aponta CHALUB, o Direito de superfície é “Direito real autônomo, temporário ou perpétuo, de fazer ou manter construção ou plantação sobre ou sob solo alheio; é a propriedade – separada do solo – dessa construção ou plantação, bem como é a propriedade decorrente de aquisição feita ao dono do solo de construção ou plantação nele já existente”53.

Assim, entendemos ser o regime do patrimônio de afetação, tal e qual concebido pelo legislador, incompatível com o contrato de superfície, devido à impossibilidade de se afetar o solo conjuntamente com as acessões.

Contudo, importa ressaltar, tanto na incorporação pelo regime de empreitada como naquela por administração, o terreno é de terceiro estranho à relação. Assim, quando o incorporador adquire o terreno a partir da alienação de um número x de unidades autônomas ao seu proprietário, até o implemento desta condição, a propriedade não se transfere. Nestes casos, o terreno não poderá ser objeto da afetação. Por isso, “o terreno, até a conclusão do empreendimento e entrega das unidades autônomas aos adquirentes, não integra o patrimônio afetado, não respondendo por eventuais dívidas e obrigações do empreendimento. Não importa, aí, quem é o proprietário do terreno, que pode ser até o próprio incorporador; o fato é que ele não integrará o patrimônio de afetação”54.

Após esta breve explanação acerca da instituição do regime do patrimônio de afetação no contrato incorporativo, cabe-nos considerar alguns aspectos da extinção de tal regime, bem como do próprio pacto entre o construtor e os adquirentes.

53 LIRA, Ricardo César Pereira. Tese apresentada à Congregação da Faculdade do Estado do Rio de

Janeiro. Concurso para a Titularidade de Direito Civil, 1979, apud CHALUB, Melhim Namhen. Direito de Superfície. Revista de Direito Civil, n.53, p.76

54 MATOS, Sandro Rafael Barioni de. Op.cit., p.129.

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2.1.1 A extinção do contrato incorporativo e da vigência do regime do patrimônio de afetação

O contrato de incorporação pode ser extinto pelo cumprimento ou pela inexecução. Havendo sucesso na execução do empreendimento e sendo o contrato cumprido a contento, como qualquer outro, extingue-se. “Extingue-se, ainda, como outros contratos: pela denúncia, pelo distrato, pela mora não purgada; por anulação; por força maior (ex.: desapropriação)”55. Como há previsão na lei de incorporações da contratação com correção monetária, assim como é obrigação do incorporador levar em consideração a inflação, a jurisprudência vem optando pela não aplicação da teoria da imprevisão por onerosidade excessiva, quando o motivo alegado para impossibilidade de conclusão do empreendimento é a taxa inflacionária.

Com relação a este último aspecto, entendemos ser mais adequada a aplicação da doutrina de WINDSCHEID, teoria da pressuposição, muito semelhante à teoria da imprevisão, mas desta divergente em alguns pontos. Conforme anota JORGE MOSSET ITURRASPE, o renomado jurista alemão entendia por pressuposição “una limitación de la voluntad, exteriorizada en la declaración negocial, en su supuesto de hecho, por la cual la voluntad negocial sólo tiene valor para el caso previsto, que el declarante considera cierto y, por ende, innecesario colocar como condición de que exista, aparezca o persista una determinada circunstancia”56.

Houve grande discussão na Alemanha acerca da teoria da pressuposição, e muitos juristas entenderam-na exatamente igual à da imprevisão, como, por exemplo, LENEL57. Contudo, modernamente, se aceita o fato de que sua contribuição “radica en haber avanzado, dentro de la teoría del objeto del contrato, y haber manifestado que hay motivos que, no obstante no ser referidos expresamente por las partes, no pueden ser considerados irrelevantes, porque de la forma como actuaron las partes, en el caso considerado, se puede deducir, en forma inobjetable, que fueron

55 WALD, Arnoldo. Op. cit., p.495-496. 56 ITURRASPE, Jorge Mosset. La Frustración Del Contrato. Argentina: Rubinzal – Culzoni, 1991, p.91. 57 As críticas de LENEL, O. La Cláusula rebus sic stantibus. Madrid: RDP, 1935, influenciaram

sobremaneira a comissão para a segunda discussão do Projeto de Código Civil da Alemanha, que concluiu: 1 – tal doutrina atentava contra a segurança jurídica e, portanto, o Código não podia basear-se nela; 2 – sua inclusão na lei levaria consigo o perigo de que se apagasse para o juízo a diferença entre pressuposição e motivo, e a prática pudesse chegar, equivocadamente, a levar em conta o influxo de um motivo situado fora do contrato.

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tenidos en cuenta, pues, de lo contrario, no se tendría configurado el sinalagma originario ni la equivalencia de las prestaciones”58.

Por isso, entendemos ser incompreensível o incorporador não “pressupor” a variação inflacionária, mesmo com prestações fixas, tendo em vista a necessidade de um estudo prévio das condições para a realização do empreendimento. Portanto, não necessita estar no contrato o fato de se levar em conta o aumento da inflação, pressupõe-se, pois no momento da conclusão do contrato, outra não era a “verdadeira intenção” do incorporador senão a construção do empreendimento e a entrega das unidades autônomas aos adquirentes, mediante uma contraprestação, qual seja o pagamento do preço ajustado pelos adquirentes. Embora seja um fator econômico, e não puramente jurídico, é tão relevante para a realização do negócio quanto o consenso ou o objeto do contrato, pois, sem preço exato, haveria um sério óbice à prestação devida pelos adquirentes.

A extinção do regime do patrimônio de afetação se dá, de regra, conforme prescreve o artigo 31-E da Lei 4.591/64, das seguintes formas: 1 – pela averbação da construção, registro dos títulos de domínio, ou do direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento; 2 – pela revogação, em razão da denúncia da incorporação depois de restituídas aos adquirentes as quantias por eles pagas (art. 136); 3 – pela liquidação deliberada pela assembleia geral, nos termos do art. 31-F, § 1º, da Lei 6.491/64, com a redação da Lei 10.931/2004.

Entretanto, conforme já colacionamos no presente trabalho, a quebra positiva do contrato é uma forma de extinção do contrato incorporativo, pelo fato do descumprimento de deveres anexos à prestação principal, ou, ao menos, motivaria a destituição do incorporador através da deliberação da Assembleia de credores.

Não obstante, em ordenamentos alienígenas tenha sido abolida a quebra positiva do contrato59, no Brasil (assim entendem majoritariamente a

58 ITURRASPE, Jorge Mosset. Op. cit., p.94. 59 Em seu artigo sobre a quebra positiva do contrato (FRADERA, Véra Maria Jacob de. A quebra

positiva do contrato. Revista da AJURIS, n.44, 1988), a doutrinadora afirmava que a adoção deste conceito, na época, não era possível, pois no Código Civil de 1916 não havia um artigo referente à boa-fé objetiva. Depois, a doutrina e a jurisprudência brasileira passaram a adotar uma ideia de que a boa-fé objetiva estaria pressuposta naquele diploma. A partir de então, passou-se a admitir, sem oposição, este conceito entre nós. Contudo, recentemente, na Alemanha, devido à reforma do Direito das Obrigações alemão, entrada em vigor em 1º de janeiro de 2002, foi realizada a

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doutrina e a jurisprudência), é possível a aplicação deste instituto por descumprimento dos deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva, pois não há um artigo contendo as hipóteses de incidência dos casos onde ele seria cabível, como ocorre, por exemplo, na Alemanha. Igualmente, foi inserida, na atual codificação pátria, uma noção ampla de necessidade de boa-fé nos negócios jurídicos (arts. 113 e 422 do Código Civil60).

Com isso, chegamos à seguinte conclusão: o descumprimento das obrigações relativas ao patrimônio afetado consiste um descumprimento de dever anexo, traduzido na tarefa de melhor zelar pela administração do empreendimento.

Por outro lado, com a não instituição do regime do patrimônio de afetação, o empresário estaria deixando de utilizar uma ferramenta capaz de otimizar todo o processo de gestão do empreendimento, pois, conforme já aludimos, há individualização de cada incorporação, com conta corrente e contabilidade própria, entre outras medidas, cuja instituição colabora com uma maior organização e transparência dos atos praticados pelo empreendedor.

Neste sentido, também se pode vislumbrar, na ausência da instituição do patrimônio de afetação pelo incorporador, em caso de prejuízos aos mutuários causados por má administração deste, segundo a concepção da obrigação como processo, defendida por CLÓVIS DO COUTO E SILVA, se tratar uma obrigação desempenhada de forma incompleta, pois ausente aquilo que REIMER SCHMIDT61 denominou de obligenheiten (ou pequenas obrigações), entre as quais, inclusive, “o dever de afastar danos”62.

O incorporador responde pelo andamento da incorporação como um todo e, sem dúvida, a questão da administração dos recursos é de fundamental importância para a consecução do empreendimento. Ora, sob

codificação das instituições pretorianas (entre elas a da Quebra) e reuniu-se, no § 280 do BGB, uma noção geral de violação contratual, de tal sorte que essa forma peculiar de descumprimento contratual não mais existe naquele país. Sobre o assunto, consultar: RANIERI, Filippo. La nouvelle partie générale du droit des obligations. In: Droit Privé Comparé et Européen, Volume 3. La Réforme du Droit Allemand des Obligations. Coloque du 31 mai 2002 et noveaux aspects, p.25; SILVA, Jorge Césa Ferreira da. A boa-fé e a Violação Positiva do Contrato. 2.ed. São Paulo: Renovar, 2004.

60 Art. 113 do CC: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”(grifamos); Art. 422 do CC: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé” (grifamos).

61 SCHMIDT, Reimer. Die Obligenheiten, 1953, apud COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A Obrigação..., op. cit. 62 COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A Obrigação..., op. cit., p.113.

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este aspecto, sem dúvida a instituição do patrimônio de afetação é uma maneira de afastar riscos ao destinatário da obrigação principal, ou seja, os mutuários.

Além disso, entendemos desta forma, em parte, minimizar os efeitos da unilateralidade da instituição do regime do patrimônio de afetação das mãos do empresário. Ao invocar a quebra dos deveres anexos, estariam os adquirentes, de certa forma, diminuindo a concentração do poder nas mãos do empresário, estabelecendo um relativo equilíbrio, ao menos na esfera jurídica, uma vez que, economicamente, nada, ou quase nada, se pode fazer para colocarmos as partes em igualdade de condições.

Como bem aponta CHALUB, de regra, “o patrimônio de afetação extingue-se após o cumprimento de sua finalidade, a conclusão da obra, individualização das unidades e sua entrega aos adquirentes”63.

Desta feita, dados os principais aspectos do patrimônio de afetação, tendo em vista a unilateralidade decisória de sua instituição, sugerimos algumas formas de evitar tal incoerência, cujo exame passa, necessariamente, pela ideia de Constituição e da realização dos direitos fundamentais.

2.2 O papel da Constituição enquanto normalizadora da realidade social

A Constituição de um país, embora não se possa ignorar o contexto em que está inserida, sob pena de ter sua eficácia reduzida, em grande medida deve regular esta realidade, no sentido de impedir sejam transgredidos seus princípios fundamentais64.

Neste sentido, a Constituição Federal brasileira, através de Emenda ao seu texto (Emenda nº 26, de 2000), introduz no caput do art. 6º (onde se encontram os denominados “direitos sociais”) o direito à moradia.

63 CHALUB, Melhim Namen. A incorporação Imobiliária..., p.84. 64 Neste sentido HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição (Die Normative Kraft der

Verfassung). Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1991. “Em síntese se pode afirmar: a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade. A Constituição jurídica não se afigura apenas a expressão de um realidade. Graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social...”, p. 24.

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Embora se pudesse extrair do próprio espírito da Constituição, o legislador brasileiro entendeu por bem explicitar a questão inserta no aludido dispositivo, muito embora constantes alterações do texto Constitucional sejam prejudiciais à consolidação de sua força (normativa) e eficácia65.

A propósito, o art. 5º, § 2º, de no Constituição deixa clara a existência dos chamados direitos fundamentais não escritos, que podem ser deduzidos, por via de ato interpretativo, com base nos direitos constantes do “catálogo”, bem como no regime e nos princípios fundamentais de nossa Lei Suprema66.

Contrariamente ao direito civil, a Constituição não se presta a regular em minúcia os interesses gerais dos particulares, mas em determinar as bases, ou os princípios gerais norteadores dos demais diplomas ordenadores da vida social.

A incompletude da Constituição é, via de regra, mesmo desejável, pois sua função é, justamente, a de abarcar as mudanças sociais e políticas, sem prejuízo de sua força normativa. Ela deve ser aberta ao (seu) tempo, permitindo adequar-se quando necessário, mas, importante apontarmos, não possui o escopo codificador do diploma civil, por exemplo67.

Neste sentido, HESSE, em alusão à rigidez e à mobilidade da Constituição, ensina com propriedade:

“Ambos são, por causa da tarefa da Constituição, necessários, a abertura e amplitude, porque somente elas, possibilitam satisfazer a transformação histórica e a diferenciabilidade das condições de vida, as determinações obrigatórias, porque elas em seu efeito

65 HESSE, Konrad. Op. cit., p.21. Assim se manifesta o ilustre jurista alemão em relação ao conteúdo

da Constituição: “... Abstraídas as disposições de índole técnico-organizatória, ela deve limitar-se, se possível, ao estabelecimento de alguns poucos princípios fundamentais, cujo conteúdo específico, ainda que apresente características novas, em virtude das céleres mudanças na realidade sociopolítica, mostra-se em condições de ser desenvolvido. A ‘constitucionalização’ de interesses momentâneos ou particulares exige, em contrapartida, uma constante revisão constitucional, com a inevitável desvalorização da força normativa da Constituição”.

66 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3.ed. rev., ampl. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.93.

67 Embora, como se pode notar no atual diploma civil brasileiro, a quantidade de cláusulas gerais que possui, denota a intenção de flexibilização em sua aplicação. Assim, a boa-fé objetiva (arts. 187, 422, 113, todos do Código Civil) e a função social (art. 421 do CC) são exemplos nesta seara. Segundo MIGUEL REALE, coordenador da Comissão elaboradora do atual Código Civil, tais cláusulas foram positivadas neste, em grande medida, graças às diretrizes da eticidade e da socialidade, presentes na base de sua construção. Ver REALE, Miguel. Estudos preliminares do Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.36 e ss.

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estabilizador, criam aquela constância relativa, que somente é capaz de preservar a vida da coletividade de uma dissolução em mudanças permanentes, imensas e que não mais podem ser vencidas. É necessária a coordenação desses elementos para que ambos possam cumprir sua tarefa. O persistente não deve converter-se em impedimento onde movimento e progresso estão dados; senão o desenvolvimento passa por cima da normalização jurídica. O movente não deve abolir o efeito estabilizador das fixações obrigatórias; senão, a tarefa da ordem fundamental jurídica da coletividade permanece invencível.”68

Mas, uma vez determinado pela Constituição, o comando deve ser realizado. A força normativa deve atuar sobre a realidade, por mais difícil ou contrária que possa ser.

Mais uma vez, socorremo-nos de HESSE, ao afirmar, com lucidez, a força normativa da Constituição:

“... está, por um lado, condicionada pela possibilidade de realização dos conteúdos da Constituição. Quanto mais suas normas partem das realidades da situação histórica e procuram conservar e aperfeiçoar aquilo que já está delineado na condição individual da atualidade, tanto mais rápido podem elas desenvolver o efeito normalizador.”69

É preciso destacar a pertinência e a necessidade de se resguardar e assegurar o direito à moradia à população de baixa renda (a grande maioria no Brasil), pois a dignidade da pessoa humana, seguramente, não se realiza sem esta premissa.

O que precisamente passaremos a desenvolver a seguir é uma análise do contrato de incorporação imobiliária, pois, na realidade presente, é maneira corrente de concretização da casa própria para milhares de pessoas.

Existe um sem-número de planos de pagamento oferecidos para a aquisição do imóvel próprio; contudo, impossível deixar de frisar, com imensa vantagem para empresas incorporadoras e instituições financeiras,

68 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federativa da Alemanha. Tradução

(da 20ª Edição alemã) de Luis Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1988, p.45. 69 Idem, p.48.

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cujo lobby exercido nas mais altas esferas do país, já levou a distorções sensíveis na política habitacional brasileira.

Em relação às incorporadoras, como será aprofundado mais adiante, conferiu a faculdade da adoção do mecanismo da instituição do patrimônio de afetação (ou seja, tornou unilateral o exercício de um direito do mutuário, algo por si só paradoxal).

Sob este aspecto, resta prejudicada a concretização da norma constitucional em epígrafe, dadas as condições específicas impróprias, criadas pelo legislador infraconstitucional.

Neste caso, cabe à Constituição normalizar o tema sobre o qual o constituinte legislou. Aqui, releva a força normativa da Constituição, no sentido de que:

“(...) A vontade do constituinte histórico não é capaz de fundamentar e, de todo, manter a validez real da Constituição assim criada. Até que ponto a Constituição consegue obter essa validez é, antes, uma questão de sua força normativa, de sua capacidade de produzir efeito determinante e regulador na realidade da vida histórica.”70

E é importante dizer, a realidade, muitas vezes, apresenta-se hostil diante do conteúdo normativo da Constituição. Contudo, é neste momento que se deve consolidar sua eficácia, na medida de sua capacidade de ordenar (e orientar) a vida é justamente mais necessária em momentos onde a realidade fática torna-se (aparentemente) incompatível com a Constituição.

A Constituição deve guardar congruência com a realidade, mas isso não significa submeter-se a ela, mas, antes, garantir a paz social e não permitir que os princípios constitucionais sejam subvertidos.

Sob este aspecto, o tema abordado guarda pertinência com a questão do contrato incorporativo e o patrimônio de afetação. O contrato de incorporação é bastante detalhado em relação aos direitos e deveres das partes, procura equilibrar esta relação, no sentido de evitar abusos de uma ou de outra parte.

Mas torna-se difícil a concretização da norma constitucional explicitada do art. 6º se o Estado, que deve garantir tal previsão do direito à

70 HESSE, Konrad. Idem, Ibidem, p.48.

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moradia, permite a edição de artigo contrário ao espírito da Constituição Federal.

O dispositivo infraconstitucional a que nos referimos é o art. 31-A da Lei 4.591/64 (nota de rodapé nº 4), cujo conteúdo atribui uma faculdade ao empresário incorporador de instituir ou não o regime do patrimônio de afetação.

De certa forma, este dispositivo determina um “esvaziamento” de seu propósito, na medida em que, de um lado, foi criado para conferir maior segurança às relações entre incorporador e mutuário, protegendo a parte mais fraca, mas, de outro, tornou inócuo o comando, pois concentrou nas mãos de quem pode mais a decisão final de submeter ou não o empreendimento ao patrimônio de afetação.

Neste caso, podemos questionar se esta “falha” na aplicação da Constituição se deu por um ato involuntário ou se, como sói acontecer nos governos democráticos terceiro-mundistas, esta inocuidade da medida visando à realização de comando constitucional se deveu a pressões políticas e econômicas de certos grupos dominantes, como, sabidamente, o são as empreiteiras no Brasil.

Sobre esta questão, importante lembrarmos as lições de LOEWENSTEIN, ao aludir às falhas conscientes na aplicação da Constituição:

“(...) Una disposición constitucional se puede presentar desde el primer momento como irrealizable. Sin embargo, en la mayor parte de los casos, las razones de esta inobservancia son de tipo puramente político: el convencimiento del gobierno actualmente en el poder, de que la aplicación de dicha disposición iría contra sus intereses específicos; la aversión de la constelación de partidos que controlan la asamblea legislativa contra la disposición en cuestión; la presión social y económica de determinados grupos de interés contra su realización (…)”71 (grifamos).

Assim, muitas vezes, temos, por parte do legislador infraconstitucional, uma “falha consciente” na norma que deveria realizar um comando constitucional. Tenta-se, não obstante, compor interesses antagônicos, algo necessariamente impossível. Como atender às pressões político-econômicas de grupos poderosos e, ao mesmo tempo, ampliar a segurança de quem está adquirindo a casa própria?

71 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion. 2.ed. Ariel, 1976, p.224.

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Assim, o próximo subcapítulo versará sobre como concretizar a norma constitucional.

2.3 As Formas de Concretização da Norma Constitucional para Garantir o Direito à Moradia

Em relação a tudo o que foi dito até agora, entendemos necessário fornecer alternativas para o fiel cumprimento da Constituição Federal, ou, na pior das hipóteses, mais nos aproximarmos da prescrição lá contida.

Mas como fazê-lo no caso do patrimônio de afetação no contrato de incorporação imobiliária, na medida em que restou concentrado o poder de decisão sobre sua instituição na pessoa do incorporador?

Pensamos em duas situações que se afiguram possíveis (mas, é claro, não insuscetíveis de críticas) no sentido de conferir ao adquirente do imóvel sob o regime do contrato de incorporação imobiliária uma defesa de seus interesses.

No âmbito do direito privado, como já dissemos alhures, a boa-fé objetiva pode auxiliar nesta questão.

Evidentemente, embora amplamente difundidos, os deveres anexos, oriundos da boa-fé objetiva (art. 422 do CC), neste caso específico, por haver previsão legal a conferir a faculdade de instituição do patrimônio de afetação ao incorporador, esta não poderia atuar contra legem. Ao menos, até que fosse declarada inconstitucional72.

De outra banda, ao lado dos deveres anexos, existem as chamadas Obligenheiten, ou, como se pode traduzir para o português, pequenas obrigações.

Note-se, o termo utilizado não é mais dever (como nos deveres anexos), pois, justamente, não derivam aquelas de disposição legal inafastável. Porém, mesmo ostentando um caráter facultativo, essas pequenas obrigações, se não observadas, podem acarretar um ônus ao incorporador que, utilizando-se de um subterfúgio legal, deixa de conferir

72 Observe-se, ainda, primeiramente, a lei seria declarada inconstitucional apenas no âmbito inter

partes. Somente se o STF determinar ao órgão competente a retirada do mundo jurídico daquele comando infraconstitucional (pois contrário à Constituição) é que se poderia falar em efetiva inconstitucionalidade, vinculando a todos.

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maior segurança jurídica às relações das quais participa, especialmente estando presente uma parte vulnerável, o adquirente73.

Por outro lado, o legislador, ao permitir a unilateralidade de decisão quanto à implementação do patrimônio de afetação, não permite o cumprimento da função social da propriedade e dos contratos, contrariando, desta feita, os artigos. 3º, I e III, e 5º, XXIII74, além de dispositivos infraconstitucionais do Código Civil, tais como os artigos. 421 e 2.035, parágrafo único75.

Mas aqui nos importa, sobretudo, a violação ao próprio espírito constitucional, na medida em que a norma editada pelo legislador infraconstitucional não permite, ou torna incerta, a realização do direito à moradia; em outras palavras, torna-o menos seguro.

Sob este aspecto, se pode invocar a função social da propriedade, porquanto assegurada pela Constituição.

Podemos, quanto ao tema, socorrer-nos do direito comparado, especialmente, invocando o direito alemão, cuja influência sobre o nosso ordenamento jurídico é sensível.

O ponto de partida para o desenvolvimento a seguir exposto é a doutrina de MARTIN WOLF, para quem, em comentário ao art. 153 da Constituição de Weimar, defendia ser o conceito de propriedade tanto mais abrangente, abarcando toda a sorte de direitos subjetivos privados de natureza patrimonial, o que conduziu a um conceito funcionalista de propriedade76.

Posteriormente, naquele país, o Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht), com fundamento no art. 14 da Lei Fundamental

73 No caso do direito brasileiro, a relação entre o adquirente e a empresa incorporadora, em sua

esmagadora maioria, rege-se pelo Código de Defesa do Consumidor (L. 8078/90), cujos arts. 2º e 3º conceituam consumidor e fornecedor.

74 Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Art. 5º. (...); XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;(...).

75 Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Art. 2035, parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

76 SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado Social de Direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental da propriedade. Revista Eletrônica Sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n.9, março, abril, maio de 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 12 jul. 2009.

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alemã (Grundgesetz) e com arrimo na proteção ao direito de propriedade, desenvolvendo a ideia de WOLF, determinou que a garantia constitucional da propriedade não se cinge aos direitos reais, mas abrange também as posições jurídico-subjetivas patrimoniais de natureza pública (BVerGE 53, 257 (290)).

Sobre o tema, INGO W. SARLET ensina:

“As posições jurídico-subjetivas patrimoniais de natureza pública acabaram sendo colocadas sob a proteção da garantia fundamental da propriedade, na medida em que se considerou que o princípio do Estado de Direito exige um tratamento igualitário relativamente às posições jurídico-subjetivas privadas...”

Com isto, arremata o Professor SARLET:

“Com a inclusão de direitos subjetivos patrimoniais de natureza pública na esfera da seguridade social no âmbito da garantia fundamental da propriedade, verificou-se uma ampliação do conceito de propriedade vigente no direito privado, do qual o conceito constitucional de propriedade acabou por se desprender quase completamente.”77

Para conter uma generalização desta aplicação da proteção constitucional à propriedade, o Tribunal Federal alemão delimitou o âmbito de sua aplicabilidade78, evitando abusos.

Não se pretende, evidentemente, no Brasil, uma aplicação tal e qual a desenvolvida pelo Tribunal Federal alemão, mas de realizar, partindo do princípio de que a relação de propriedade se transformou com a sociedade e a complexidade de suas relações, estabelecer maior segurança aos

77 SARLET, Ingo W. Idem, p.4. 78 Quanto ao tema, em sua excelente tese de doutorado, realizado na Alemanha, LUIS AFONSO HECK,

sob a prestigiosa orientação de KONRAD HESSE, já referia a postura do Tribunal Constitucional alemão quanto a “... estender a proteção da garantia à propriedade para posições da Seguridade Social”. HECK, Luis Afonso. O Tribunal Constitucional Federal e o desenvolvimento dos princípios constitucionais. Contributo para uma compreensão da jurisdição constitucional federal alemã. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1995, p.163. Em relação à delimitação pela jurisprudência alemã, alguns critérios fundamentais são: a) posição jurídica individual (isto é, ao direito subjetivo à prestação social) deve corresponder a uma contraprestação particular de seu titular; b) deve tratar-se de uma posição jurídica patrimonial, que pode ser tida como de fruição individual de seu titular; c) ela deve servir de garantia de garantia de subsistência de seu titular. SARLET, Ingo W. Op.cit., p.6.

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adquirentes da casa própria no regime da incorporação imobiliária, especialmente quando o incorporador capta recursos no mercado.

Defendemos a ideia de que os valores pagos a título de aquisição de casa própria (garantia constitucional) devem ser tratados como uma forma de propriedade, porquanto asseguram um espaço de liberdade e autonomia aos cidadãos79.

Mesmo na Alemanha, entre outras situações, foi considerada como posição jurídico-subjetiva de direito público o chamado auxílio moradia (Wohngeld), justamente por se esta uma garantia fundamental do Estado.

Por conseguinte, uma lei que determina seja unilateralmente instituída uma medida de proteção ao adquirente da casa própria através do contrato de incorporação imobiliária, expondo a economia popular a riscos maiores desnecessariamente, fere, em nosso sentir, a função social da propriedade (e, por certo, do contrato!).

Por outro lado, a própria natureza do contrato incorporativo aponta para um desequilíbrio natural entre as partes (incorporador e mutuário), estando incluído, inclusive, no âmbito das relações de consumo. Por isso, foge a qualquer juízo de proporcionalidade o dispositivo que confere ainda mais poder à parte mais forte da relação jurídica entabulada (o incorporador), submetendo, desta feita, o mutuário a um risco maior ao que poderia estar exposto, caso o Estado tivesse editado norma no sentido de realmente protegê-lo.

Mais uma vez, parece-nos, houve muito mais uma atitude motivada por pressões políticas e econômicas sobre o legislador a uma medida visando à concreção de uma norma constitucional, decorrente do Estado de Direito, qual seja implementar uma forma mais segura de aquisição da casa própria, protegendo, assim, por via oblíqua, a economia popular.

Sobre a proporcionalidade no contexto do Tribunal Constitucional Federal alemão, ensina o Professor LUIS AFONSO HECK:

“O Tribunal Constitucional Federal também entende o preceito da proporcionalidade, juntamente com o preceito da proibição de

79 Neste sentido a Juíza Raupp-von Brünneck afirma em seu voto dissidente (BVerfGE 32, 111 (142),

que “... a propriedade contém um certo grau de proteção à liberdade, na medida em que assegura ao cidadão as condições necessárias para uma vida autônoma e responsável, assim também esta proteção deverá atingir as posições jurídico-subjetivas de direito público, já que estas têm alcançado uma crescente importância para a pessoa no que diz com a sua existência econômica...” (SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado Social de Direito..., op. cit., p.8).

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excesso, como resultante da essência dos direitos fundamentais. Esses, como direitos defensivos, têm um conteúdo de proporcionalidade distintamente reconhecível; em sua interpretação e aplicação, a jurisprudência desenvolveu critérios, praticáveis e, no geral, reconhecidos, para o controle de intervenções estatais – como v.g. o princípio da proporcionalidade. Nesse contexto, ele exige que o particular fique preservado de intervenções desnecessárias e excessivas; uma lei não pode onerar o cidadão mais intensamente do que o imprescindível ao interesse público. Assim, a intervenção deve ser apropriada e necessária para alcançar o fim desejado, nem deve gravar em excesso o afetado, i.e., deve poder ser dele exigível”80 (grifamos).

Assim, a intervenção do legislador, no caso concreto da edição do dispositivo 31-A da Lei 4.591/64 (ver nota de rodapé nº 4), atribuindo uma faculdade ao incorporador de afetar o patrimônio da obra que é financiada com o dinheiro do mutuário, portanto decidindo, unilateralmente, se vai ou não expô-lo a um risco maior de perder seu investimento, contraria, igualmente, o princípio da proporcionalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho, realizamos algumas observações:

a) O contrato de incorporação imobiliária, regulado pela Lei 4.591/64 é amplamente utilizado pela população como forma de adquirir a casa própria, especialmente na modalidade em que o incorporador capta recursos no mercado, a fim de conseguir a verba necessária à conclusão da obra.

b) Neste sentido, dadas as frequentes fraudes ocorridas no setor, cujo paradigma é o caso Encol, foi criada a possibilidade de instituição do patrimônio de afetação, como medida de conferir maior segurança aos adquirentes de imóveis sob o contrato de incorporação imobiliária. Tal regime permite uma maior organização e transparência na condução dos negócios do incorporador, evitando o desvio de verba captada no mercado de uma obra para a outra, na medida em que cada empreendimento conta com contabilidade própria.

80 HECK, Luis Afonso. O Tribunal Constitucional Federal e o desenvolvimento dos princípios

constitucionais. Contributo para uma compreensão da jurisdição constitucional federal alemã. Porto Alegre, 1995, p.176-177.

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c) A instituição do patrimônio de afetação visa, portanto, a conferir maior segurança na aquisição da casa própria, salvaguardando, também, a economia popular.

d) Contudo, o Estado, inicialmente através de Medida Provisória, posteriormente transformada em lei, alterou a lei reguladora das incorporações imobiliárias (4.591/64), inserindo o art. 31-A, cujo conteúdo é facultar ao incorporador a instituição do patrimônio de afetação na obra comercializada.

c) Tal medida é, contudo, contrária ao espírito constitucional, na medida em que contraria preceitos como o da função social da propriedade e da proporcionalidade, contrariando, desta feita, a Constituição do Brasil.

e) Quanto à função social, esta é atingida na medida em que defendemos estar o mutuário em uma posição jurídico–subjetiva que equivale à propriedade e, portanto, merece a mesma garantia constitucional desta.

f) Por último, consideramos a medida do legislador, ao concentrar nas mãos do incorporador a decisão sobre a submissão da incorporação ao regime do patrimônio de afetação, algo desproporcional, na medida em que expõe a parte mais vulnerável da relação jurídica a um risco desnecessário.

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O DIREITO DAS RELAÇÕES COLETIVAS DE TRABALHO E SEUS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS: A LIBERDADE

ASSOCIATIVA LABORAL LEANDRO DO AMARAL D. DE DORNELES*

INTRODUÇÃO

Expõe amplamente a literatura especializada contemporânea que a liberdade sindical é o grande ideal a ser buscado pelo direito coletivo do trabalho. Da mesma forma, quando da abordagem deste tema, invariavelmente faz-se referência à Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o que implicitamente consagra esta organização como uma das mais legítimas esferas de delimitação deste princípio. Mas, afinal de contas, qual o alcance deste princípio, especialmente nos dias atuais, quando, por exemplo, a sistematização do direito coletivo parece apontar para uma tendência que estimula ou, ao menos, é permissiva da pulverização dos seus sujeitos representativos?

Enfim, apresentam-se atualmente ao direito do trabalho inúmeras questões com forte repercussão tanto no âmbito das relações jurídicas individuais quanto no das coletivas: advento de uma sociedade pós-industrial, gradativa redução da centralidade do trabalho na dinâmica social, diversificação das relações de trabalho e dos métodos produtivos, crise do Estado social e da própria legitimidade dos tradicionais entes representativos de classe. Esse é o contexto no qual a OIT vem demarcando sua atuação, e é a partir da análise de suas Convenções, Recomendações e demais documentos normativos, bem como das decisões do Comitê de Liberdade Sindical (CLS), que se propõe, neste estudo, a sistematização do princípio da liberdade associativa laboral.

* Especialista, Mestre e Doutor em Direito. Professor de Direito do Trabalho (UFRGS).

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Os resultados parciais de pesquisa, que se apresentam neste artigo, estão estruturados em três partes. A primeira expõe uma das principais premissas teóricas do estudo, qual seja de que os princípios básicos do direito das situações coletivas de trabalho são desdobramentos próprios do princípio protetivo. Em sequência, busca-se uma sistematização do princípio da liberdade associativa laboral com base em uma interpretação dos principais documentos elaborados pela OIT. A seguir, algumas considerações críticas, considerando a realidade brasileira.

1 – O DIREITO DAS SITUAÇÕES COLETIVAS E O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO

O direito coletivo do trabalho, ou direito das situações laborais coletivas1, não é exatamente uma disciplina jurídica autônoma, mas sim, inequivocamente, uma das ramificações do direito do trabalho. Deste, aquele retira sua função normativa básica, qual seja a busca pelo trabalho decente2. No entanto, pela especificidade de seu objeto – os sujeitos da relação de trabalho coletivamente considerados, suas legítimas representações, seus legítimos interesses, seus conflitos e meios de

1 Propõe-se para discussão neste estudo a expressão utilizada pela autora portuguesa PALMA

RAMALHO, tendo por base, resumidamente, a seguinte justificativa: “De novo por um motivo de rigor técnico, preferimos designar este centro regulativo do Direito Laboral pela expressão direito das situações laborais colectivas, porque é relativamente às situações jurídicas a que se reportam as suas normas e não aos respectivos titulares nem, muito menos, ao complexo normativo, que o adjectivo colectivo pode ser aplicado com propriedade. Para comprovar a impropriedade técnica da designação direito colectivo do trabalho reportada aos titulares das situações laborais, basta, aliás, atentar no facto de algumas situações laborais colectivas serem protagonizadas pelos empregadores e pelos trabalhadores individualmente e com independência em relação às respectivas associações representativas: assim, por exemplo, a legitimidade para a celebração de acordos colectivos de trabalho e de acordos de empresa é do empregador [...] e a adesão à greve é um acto individual de cada trabalhador [...]”. RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2005, p.33.

2 O trabalho decente, a priori, não tem uma definição exata. “Todas as sociedades têm sua própria ideia do que é um trabalho decente, mas a qualidade de emprego pode querer dizer muitas coisas. Pode referir-se a formas de trabalhos diferentes, e também a diversas condições de trabalho, assim como a conceitos de valor e de satisfação”. Mas, acima de tudo, significa a percepção de que a quantidade de postos de trabalho não pode estar dissociada de sua qualidade, o que se obtém a partir da confluência de quatro aspectos básicos: o pleno emprego, a proteção social, a observância dos direitos fundamentais dos trabalhadores e promoção do diálogo social. Vide, entre outros documentos: Organización Internacional del Trabajo. Conferencia Internacional del Trabajo. Memorial del Director General: trabajo decente. Disponível em: <http://www.oit.org/public/spanish/standards/relm/ilc/ilc87/rep-i.htm#1.%20La%20finalidad>. Acesso em: 25 set. 2004; Organización Internacional del Trabajo. Comisión Mundial para la Dimensión Social de la Globalización. Por una globalización justa: crear oportunidades para todos. Disponível em: <http://www.oit.org>. Acesso em: 15 jan. 2004, p. 122.

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composição –, o direito coletivo do trabalho acaba por adquirir, nos dizeres de CABANELLAS, uma “relativa autonomia”3.

O direito do trabalho, basicamente, percebe seu principal objeto (a relação de emprego) a partir de duas distintas dimensões, quais sejam a individual e a coletiva4. Portanto, a verificação dos princípios do direito coletivo não pode ser dissociada dos princípios gerais próprios do direito do trabalho, a partir do qual aquele se ramifica. Aliás, o raciocínio seria o mesmo se o objeto deste estudo fosse o direito das relações individuais de trabalho. Afinal, princípios nada mais são do que valores consagrados socialmente e, uma vez absorvidos pelo Direito, normatizam-se através de proposições de condutas (explícitas ou implícitas no ordenamento jurídico) de caráter extremamente abstrato. Tendo o direito do trabalho princípios próprios – que inclusive lhe conferem autonomia dentro da ciência jurídica –, nada mais natural que tais princípios se projetem em suas subdivisões internas.

Como referido, os princípios encarnam valores básicos, que por sua vez dão o fundamento a uma disciplina do conhecimento. No caso do Direito, o fundamento básico de seus princípios e de todo o seu instrumental normativo é o valor dignidade da pessoa humana. Sem o resguardo a este valor, o Direito perde seu verdadeiro sentido. Mais especificamente, o direito do trabalho, dentro da especialidade de seu objeto, tem por fundamento a dignidade do trabalhador, ou a promoção do trabalho decente (digno).

Pois bem, o que vem a ser dignidade da pessoa humana? Trata-se de uma expressão recorrente na área jurídica, mas cujo delineamento faz-se extremamente complexo, inclusive com o risco de banalização. Por isso a importância de uma resposta – mesmo que preliminar e superficial – à pergunta inicialmente proposta.

Para tanto, a filosofia ocidental moderna nos dá alguns parâmetros. A história recente desta área do saber, debatendo-se acerca desta indagação, consolidou o seguinte pressuposto: a dignidade é o traço que distingue os seres humanos dos demais seres vivos. Pouco, mas já é um avanço, na medida em que nos leva a uma segunda pergunta: o que torna distinto e único o ser

3 CABANELLAS, Gillermo. Derecho Sindical y corporativo. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica

Argentina, 1959, p.15-16. 4 ARTURO DE DIEGO, Julián. Manual de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social. 5.ed. Buenos Aires:

Abeledo Perrot, 2002, p.63-68.

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humano? Para não cair em tautologia ao responder esta pergunta (“o traço distintivo do ser humano é a sua dignidade”, o que voltaria à pergunta inicial, sem avanços), duas concepções – em uma visão bastante superficial, mas suficiente para os propósitos deste artigo – se destacaram:

● A primeira, ainda vinculada a visões religiosas, percebia como traço distintivo do ser humano a sua imagem e semelhança a Deus.

● A segunda, historicamente mais recente e prevalecente na filosofia dos direitos humanos, procura romper com a visão religiosa e percebe na razão o traço distintivo dos seres humanos.

Para esta segunda concepção, por ser o único ser racional – ao menos assim se pensa a partir da filosofia moderna ocidental –, o ser humano é o único realmente capaz de livre-arbítrio. A razão humana o liberta, ao menos potencialmente, das amarras das paixões e das ações instintivas. Diante das situações da vida, o ser humano antevê, através de sua razão, inúmeras possibilidades, tendo a liberdade de escolher, segundo critérios racionais, aquela mais adequada a reger suas ações. Outros seres, aprisionados pelas suas ações instintivas, não têm as mesmas potencialidades. Esse traço distintivo, que é universal ao ser humano, potencialmente o liberta das agruras do mundo, desmistificando-o, revelando mistérios inimagináveis que, uma vez dominados, abririam derradeiramente as portas em direção à emancipação humana. Por isso, nenhum ser humano pode ser senhor de outro: todos são iguais em seu livre-arbítrio, em seu potencial emancipatório. Daí a liberdade e a igualdade como lemas fundamentais das revoluções burguesas, eventos históricos decorrentes da filosofia da modernidade.

No entanto, em um segundo momento, com o desenvolvimento capitalista e o advento da chamada “questão social”, a consagração, em suas dimensões puramente formais, da liberdade e da igualdade como valores regentes da normatividade aplicável às relações de trabalho revelou-se falaciosa e destoante do fundamento em prol da dignidade humana. Reconhecida a desigualdade material característica da relação de base que posteriormente seria objeto do direito do trabalho – a relação de trabalho subordinado (ou de emprego, mais precisamente), percebeu-se que a consagração jurídica de uma liberdade meramente formal (liberdade contratual na estipulação da relação jurídica de trabalho) acabava por aprisionar o trabalhador em um estado de miserabilidade condenável do ponto de vista jurídico (que, lembrando, tem na dignidade da pessoa

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humana seu fundamento principal5). Daí a consagração dos princípios basilares do direito do trabalho, pois:

● se a dignidade da pessoa humana fundamenta o Direito e, mais especificamente, a dignidade do trabalhador o direito do trabalho;

● se a dignidade está vinculada à ideia de razão humana como traço distintivo e como potencial libertador (que também é traço distintivo: o ser humano é o único capaz da derradeira emancipação, por ser o único ser potencialmente livre);

● se a liberdade jurídica consagrada em seu aspecto puramente formal como regente das relações de trabalho revelou-se contrária à dignidade e seu propósito emancipatório;

● então, nesta relação de base caracterizada por uma desigualdade substancial, o direito deve buscar o reequilíbrio, desenvolvendo um anteparo normativo de preservação da dignidade do hipossuficiente, ou, em outras palavras, a igualdade e a liberdade substancial (não meramente formal).

Em outras palavras, para o direito do trabalho, a verdadeira liberdade somente se faz reconhecendo a desigualdade real de classes e estabelecendo um sistema protetivo especial ao hipossuficiente, garantindo-lhe direitos mínimos. Mais ainda: se a preservação da dignidade é um caminho emancipatório, e na medida em que a perspectiva capitalista sobre a qual o direito do trabalho se sustentou era de crescimento econômico constante6, mais do que garantir direitos mínimos, o direito do trabalho deveria se voltar à constante ampliação destes direitos mínimos. Daí os princípios basilares do direito do trabalho: proteção do trabalhador e promoção da melhoria de sua condição social. Na condição de princípios basilares do direito do trabalho, ambos manifestam-se – sob lógicas distintas, mas com o mesmo propósito de resguardo da dignidade do trabalhador – tanto no direito das relações individuais quanto no direito das relações coletivas de trabalho.

No plano individual, o princípio da proteção tem por pressuposto a hipossuficiência do trabalhador e, consequentemente, a garantia de direitos

5 Como, aliás, bem ilustra LA CUEVA: discorrendo sobre a evolução histórica do direito do trabalho,

exalta o autor que, já no Século XX, universaliza-se a ideia central do direito do trabalho, qual seja “a garantia de uma existência, presente e futura, que seja digna da pessoa humana”. Vide LA CUEVA, Mario de. Derecho Mexicano do Trabalho. Mexico: Editorial Porrúa, 1954, p.22.

6 Vide DORNELES, Leandro do Amaral D. de. A transformação do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p.15-50.

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mínimos, nunca máximos. É como se o direito do trabalho operasse a partir da seguinte linguagem: “o trabalhador é hipossuficiente e, portanto, demanda proteção”. Na relação jurídica empregatícia, os polos (empregado e empregador) estão em permanente conflito, tendo em vista que seus interesses principais são conflitantes. Esse conflito se revela na medida em que a máxima satisfação da pretensão principal de um dos sujeitos implica, necessariamente, a não satisfação integral da pretensão principal do outro sujeito. O empregador visa a ganhos econômicos (lucro), o mesmo ocorrendo com o empregado (maiores salários); como o aumento de salários reduz a margem de lucros, e vice-versa, o conflito é permanente. O problema é que, historicamente, o sujeito que se revelou mais apto à satisfação de sua pretensão principal foi o empregador. Isso justificou, por parte da normatividade jurídica, uma intervenção direta na relação, através da proteção ao hipossuficiente.

Mas bem, pergunta-se, o que é proteção ao trabalhador? A dificuldade em encontrar uma resposta clara a esta pergunta demonstra o alto grau de abstração do princípio da proteção. Daí o seu desdobramento em outros subprincípios, tais como o da irrenunciabilidade7 e o da continuidade8, citando exemplificativamente. Cada um destes “subprincípios” vai se desdobrando em institutos normativos sólidos, e desta forma os princípios vão dando coerência valorativa ao aparato normativo juslaboral9.

O mesmo ocorre com o princípio da melhoria da condição social do trabalhador no plano individual. Para o direito do trabalho, a lógica operacional revela-se da seguinte forma: “não basta proteger o trabalhador; na medida do possível, deve-se promover a constante melhoria de sua condição social, a ampliação do mínimo resguardado”. O desdobramento

7 Se o poder negocial do empregado é falho, e se a relação é subordinativa, sendo o empregador o

sujeito subordinante (o que lhe dá maior poder de imposição negocial), tem-se que uma das formas necessárias de proteção é revestir os direitos trabalhistas de um caráter de indisponibilidade.

8 Sendo a relação de trabalho meio de sobrevivência do trabalhador, nada mais natural que um outro desdobramento da proteção revele-se na máxima perpetuação possível do contrato de trabalho, desenvolvendo técnicas para a sua conservação, tais como a estabilidade e as indenizações nas despedidas injustas.

9 A reprodução inversa da sequência lógica apresentada nesta explanação ajuda a entender o raciocínio desenvolvido. Ao se perguntar “qual é o fundamento do disposto no art. 7º, inciso I, da CF”, a resposta será: “o princípio da continuidade da relação de emprego”; ao se perguntar sobre o fundamento deste último, a resposta será “a proteção do trabalhador”; e ao se indagar sobre este, a resposta derradeira será “a preservação da dignidade do trabalhador”.

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natural deste princípio é o “subprincípio” da condição mais benéfica, que por sua vez tem como um dos seus desdobramentos normativos naturais o art. 468 da CLT, que veda, por via da negociação individual, alterações nas condições de trabalho que venham a prejudicar o trabalhador.

Pois bem, visto que os princípios basilares do direito do trabalho são o da proteção e o da promoção da melhoria da condição social do trabalhador, e que os mesmos se desdobram em “subprincípios” no plano individual, cabe fazer o mesmo raciocínio no plano coletivo. Proteção do trabalhador e promoção da melhoria da condição social são princípios do direito do trabalho e, como tais, manifestam-se também nas situações jurídicas coletivas. Apenas, neste plano, a lógica operacional é distinta.

Enquanto, idealmente, o plano individual parte do pressuposto da hipossuficiência, no plano coletivo, o pressuposto é outro: a autossuficiência dos sujeitos. O trabalhador individualmente considerado é hipossuficiente, tem menor poder negocial e demanda uma proteção através da limitação da autonomia de vontades (direitos mínimos que moldam o contrato e, consequentemente, restringem a margem negocial das partes ao estabelecerem um “patamar jurídico básico”). Mas, historicamente, a coletividade organizada não apenas se revelou apta para contrabalançar o maior poder negocial do empregador, como representou o “pontapé” inicial para a conquista de direitos ou mesmo para o surgimento do próprio direito do trabalho. Sem a luta dos sindicatos, possivelmente sequer existiria o direito do trabalho, ao menos tal como se o conhece hoje. Nada mais natural, portanto, que ao se estruturar, este ramo jurídico reservasse um espaço para a manutenção da autonomia coletiva privada. Daí o pressuposto da autossuficiência: se na relação individual há fragilidade negocial, no plano coletivo não há10; se na relação individual a proteção se faz restringindo a autonomia negocial, com o intuito de neutralizar a hipossuficiência, no plano coletivo, a proteção deve se dar através da garantia de ampla constituição de sujeitos coletivos, igualmente aptos, presumidamente, para neutralizar a hipossuficiência dos trabalhadores nas

10 Trata-se de um pressuposto formal da lógica operacional do direito do trabalho, com base em

experiências históricas; ou seja, mesmo que na prática tal autossuficiência revele-se falaciosa, o pressuposto do direito das situações laborais coletivas permanece inalterado: autossuficiência. O mesmo ocorre no direito das situações laborais individuais: por mais que o trabalhador tenha, na prática, poder negocial perante o seu empregador, para o direito do trabalho ele continuará sendo visto como um hipossuficiente, pois esse é um pressuposto formal da lógica operacional do plano individual, igualmente sedimentado a partir da generalização de determinadas experiências históricas.

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relações negociais (e nas demais situações de defesa de seus direitos). Nas palavras de KROTOSCHIN:

“As restrições impostas ao individualismo [...] explicam-se pela primazia que se deve atribuir ao interesse social, ainda mais tendo-se em conta que, pelo menos no sistema econômico chamado capitalista, somente assim é possível a igualdade entre as partes. Desde que a liberdade jurídica do indivíduo tem se mostrado inoperante no terreno econômico, especialmente nas relações entre patrão e trabalhador, a associação profissional tem constituído e segue constituindo o meio pelo qual os trabalhadores, despertada sua consciência de grupo, influem primeiro sobre as condições de trabalho e, depois, sobre outros assuntos vinculados com a sua situação de trabalhadores. O trabalhador, débil e economicamente inferior como indivíduo ilhado, se faz forte mediante a organização e se coloca em pé de igualdade com os empregadores e com as suas organizações, não apenas juridicamente mas também social e economicamente.”11

Portanto, o desdobramento natural do princípio da proteção do trabalhador, no plano coletivo, é o princípio da liberdade de associação laboral (art. 8º da Constituição), basilar ao direito das relações coletivas de trabalho. No plano das relações coletivas, “proteger” é, especialmente, garantir a constituição de legítimas organizações representativas, através das quais aquele que é presumidamente hipossuficiente torna-se, também presumidamente, autossuficiente.

Mas se “a proteção é insuficiente, deve-se promover a melhoria da condição social do trabalhador”. O outro princípio basilar do direito do trabalho também se manifesta no plano coletivo, através do princípio da autodeterminação das vontades coletivas. Este é o princípio que confere às legítimas representações laborais um amplo instrumental para atuação em defesa dos interesses de classe. Aqui destaca-se o incentivo à negociação coletiva12, a) fazendo com que normas oriundas do plano coletivo possam prevalecer, em certas circunstâncias, sobre as do plano individual13, b)

11 KROTOSCHIN, Ernesto. Instituciones de derecho del trabajo. 2.ed. Buenos Aires: Depalma, 1968, p.177-

178. Não grifado no original. 12 Embora este estímulo à negociação coletiva não esgote o alcance do princípio. 13 Exemplificativamente, art. 7º, inciso XXVI, da Constituição (“São direitos dos trabalhadores [...]

reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”) e art. 622 da CLT (“Os empregados e as emprêsas que celebrarem contratos individuais de trabalho, estabelecendo

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determinando que certas matérias somente possam ser tratadas no âmbito coletivo14, ou, ainda, c) predeterminando no tempo a vigência dos instrumentos normativos negociados15. “Sendo a negociação coletiva travada entre autossuficientes, naturalmente deverá haver a ampliação dos direitos dos trabalhadores, por mais que esse processo revele eventuais e estratégicos retrocessos”, estabelece a lógica operacional do princípio da autodeterminação das vontades coletivas.

Na verdade, tal como ocorre entre os princípios da proteção e da melhoria da condição social do trabalhador, a distinção entre os princípios da liberdade associativa laboral (sindical) e da autodeterminação das vontades coletivas revela-se útil apenas para fins didáticos. Do ponto de vista normativo, são indissociáveis, um complementa o outro: liberdade associativa e autodeterminação das vontades coletivas são desdobramentos didáticos de um mesmo propósito valorativo-jurídico, qual seja a busca pelo trabalho decente, a proteção à dignidade do trabalhador.

2 – PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO LABORAL (LIBERDADE SINDICAL)

Trata-se de um princípio de extrema relevância ao direito das relações coletivas de trabalho, reconhecido universalmente, inclusive, perante a comunidade internacional. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), de 1948, por exemplo, assegura em seu artigo 20 o direito de reunião e de associação pacíficas, embora ninguém seja obrigado a pertencer a uma determinada associação16. Esse direito desdobra-se no item 4 do art. 23, segundo o qual toda pessoa tem direito a fundar sindicatos e a se sindicalizar para a defesa dos seus interesses17.

condições contrárias ao que tiver sido ajustado em Convenção ou Acôrdo que lhes fôr aplicável, serão passíveis da multa nêles fixada”).

14 Por exemplo, art. 6º-A da Lei 10.101/00 (“É permitido o trabalho em feriados nas atividades do comércio em geral, desde que autorizado em convenção coletiva de trabalho e observada a legislação municipal, nos termos do art. 30, inciso I, da Constituição”).

15 Art. 614, § 3º, da CLT: “Não será permitido estipular duração de Convenção ou Acôrdo superior a 2 (dois) anos”.

16 Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/udhr/lang/spn.htm>. Acesso em: 15 jul. 2003.

17 No original: “4 – Toda persona tiene derecho a fundar sindicatos y a sindicarse para la defensa de sus intereses”. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/udhr/lang/spn.htm>. Acesso em: 15 jul. 2003.

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Em 16 de dezembro de 196618, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais19 (PIDESC), com o intuito de delinear e, ao fazê-lo, promover a instrumentalização dos direitos econômicos, sociais e culturais assegurados na DUDH. Isso se apreende do próprio preâmbulo do referido Pacto, ao especificar que, “[...] em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, não se pode realizar o ideal de um ser humano livre, liberado do temor e da miséria, a menos que se criem condições que permitam a cada pessoa gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, tanto como de seus direitos civis e políticos [...]”20. Em seu art. 8º, o PIDESC consagra o seguinte:

“1. Os Estados Partes no presente pacto se comprometem a garantir:

a) O direito de toda pessoa a fundar sindicatos e a filiar-se àquele de sua escolha, com sujeição unicamente aos estatutos da organização correspondente, para promover e proteger os seus interesses econômicos e sociais. Não poderão impor-se outras restrições ao exercício deste direito do que as prescritas pela lei e que sejam necessárias em uma sociedade democrática em interesse da segurança nacional ou da ordem pública, ou para a proteção dos direitos e liberdades alheios;

b) O direito dos sindicatos a formar federações ou confederações nacionais e destas a fundar organizações sindicais internacionais ou a filiar-se às mesmas;

c) O direito dos sindicatos a funcionar sem obstáculos e sem outras limitações do que as prescritas em lei e que sejam necessárias em uma sociedade democrática em interesse da segurança nacional ou da ordem pública, ou para a proteção dos direitos e liberdades alheios;

d) O direito de greve, exercido em conformidade com as leis de cada país.

18 O PIDESC entrou em vigor no dia 23 de março de 1976, três meses após a sua trigésima quinta

ratificação, nos termos do seu art. 49. 19 Aprovado pelo Congresso Nacional através do Decreto Legislativo 226, de 12 de dezembro de

1991, e promulgado através do Decreto 592, de 6 de dezembro de 1992. 20 Organização das Nações Unidas. Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Disponível em: <http://www.unhchr.ch/spanish/html/menu3/b/a_cescr_sp.htm>. Acesso em: 28 fev. 2004.

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2. O presente artigo não impedirá de submeter a restrições legais o exercício de tais direitos pelos membros das forças armadas, da polícia ou da Administração Pública.

3. Nada que esteja disposto neste artigo autorizará aos Estados Partes na Convenção da Organização Internacional do Trabalho de 1948, sobre a liberdade sindical e a proteção ao direito de sindicalização, a adotar medidas legislativas que menosprezem as garantias previstas na referida Convenção ou a aplicar a lei de forma a menosprezar ditas garantias.”21

Nesse sentido, o PIDESC repete a regra já existente na DUDH – de que um trabalho decente pressupõe a oportunidade de o próprio trabalhador escolher e decidir o que deve entender por dignidade – e vai além, garantindo às representações sindicais o direito de coalizão, de ramificação e de atuação, inclusive através da greve.

Já o preâmbulo da Constituição da OIT esclarece que, em primeiro lugar, a sua atuação pauta-se pelo fomento da justiça social22. Esta, segundo o mesmo documento, não pode ser estabelecida enquanto houver um grande número de pessoas trabalhando em condições de injustiça, miséria e privações, o que sempre ensejará uma ameaça à paz e à harmonia universais. É, portanto, urgente a melhora destas condições de trabalho degradantes, especialmente no que diz respeito à duração do trabalho, ao fomento da contratação e ao combate ao desemprego, à garantia de um

21 Organização das Nações Unidas. Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Disponível em: <http://www.unhchr.ch/spanish/html/menu3/b/a_cescr_sp.htm>. Acesso em: 28 fev. 2004. A referida convenção é a de número 87, que será tratada adiante.

22 RAMON explica que os princípios nos quais se baseia a política jurídico-laboral podem ser sintetizados na noção de justiça social. Para o autor, no direito do trabalho, a justiça social consiste em harmonizar as relações obreiro-patronais e buscar uma proporcional distribuição dos bens produzidos na mesma relação. Essa simbiose entre proporcionalidade e harmonia deve ser alcançada mediante os princípios (critérios de medida) da preeminência (o ser humano é a fonte, o centro e o fim das normas laborais), da dignidade, da vitalidade (o direito do trabalho deve se voltar para a conservação e a melhoria da vida dos trabalhadores), da liberdade (trabalhadores e empregadores são livres para eleger sua ocupação e para associar-se), da dotação (os trabalhadores devem ter acesso à propriedade), da igualdade (reconhecimento da igualdade entre empregadores e trabalhadores, e destes entre si, quando cabível), da desigualdade (reconhecimento da desigualdade entre empregadores e trabalhadores, e destes entre si, quando cabível), da nivelação (busca do equilíbrio entre as classes sociais), da produção (busca pelo melhor rendimento no trabalho), da proteção (proteção especial aos trabalhadores, justificada pela hipossuficiência) e da participação (que visa a uma melhor distribuição de benefícios entre trabalhadores e empregadores). Vide MUÑOZ RAMON, Roberto. Derecho del trabajo: teoria fundamental. México: Editorial Porrúa, 1976, p.22-23.

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salário capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador, à proteção ao trabalho infanto-juvenil, feminino e do trabalhador estrangeiro, à isonomia, à liberdade de atuação sindical e ao ensino profissionalizante, entre outras questões23. Tendo em vista esta situação descrita, surgiu a OIT com o intuito de atuar no âmbito internacional, uma vez que “[...] se qualquer nação não adotar um regime de trabalho realmente decente, esta omissão constitui um obstáculo aos esforços das outras nações que desejem melhorar a sorte de seus trabalhadores em seus próprios países”24.

A Declaração de Filadélfia, que complementa os fundamentos de atuação da OIT, ainda estabelece que a liberdade de associação e de expressão é fundamental para o progresso constante.

Mais recentemente, em 18 de junho de 1998, a Conferência Internacional do Trabalho aprovou a Declaração da OIT Relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho (DRPDFT). O seu artigo 1º recorda que, ao se incorporar livremente à OIT, todos os seus Membros aceitaram os princípios e direitos enunciados em sua Constituição e na Declaração de Filadélfia, e estão comprometidos a se esforçar por atingir os objetivos gerais da Organização em toda a medida de suas possibilidades e atendendo às suas condições específicas. Já o seu artigo 2º classifica como garantia fundamental para o trabalho decente, entre outros temas, a liberdade de associação e a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva.

Tradicionalmente, as normas e a literatura especializada se referem à liberdade sindical como princípio maior regente do direito coletivo do trabalho, e a ela se vincula a ideia de pluralidade sindical. Neste estudo, a partir de uma análise das normas e documentos elaborados pela OIT, propõe-se uma outra classificação: liberdade associativa laboral. Esta expressão revela-se mais ampla do que a expressão liberdade sindical. No Brasil, por exemplo, tem-se atualmente um regime de liberdade associativa (art. 8º, caput, da Constituição), mas não de pluralidade sindical (art. 8º, inciso II, da Constituição)25.

23 Organización Internacional del Trabajo. Constitución. Disponível em: <http://www.oit.org>. Acesso em: 03 maio 2005. 24 Organización Internacional del Trabajo. Constitución. Disponível em: <http://www.oit.org>.

Acesso em: 03 maio 2005. 25 Convém lembrar que as restrições constitucionais à liberdade associativa laboral se referem,

especificamente, às entidades sindicais (art. 8º, incisos II, III) e não, por exemplo, às associações profissionais, cuja liberdade está resguardada pela primeira parte do caput do art. 8º.

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A Convenção 87 da OIT, referida como fundamento básico da pluralidade sindical, embora formalmente denominada “Convenção sobre a liberdade sindical e a proteção do direito de sindicalização”, em seu texto, refere a autonomia para os trabalhadores e as empresas constituírem quaisquer organizações que estimem convenientes (art. 2º) e, em seu artigo 10, esclarece que o seu objeto é “toda organização” de trabalhadores ou de empregadores que tenha por objeto fomentar e defender os interesses de suas respectivas classes. Sindicato é um tipo de organização representativa dos interesses de classe – aquele historicamente consagrado, juridicamente privilegiado e, possivelmente, o mais eficiente na satisfação de seus propósitos. Mas há outras formas de associação e organização que cada vez mais tomam força: coalizões efêmeras de negociação de greve, associações profissionais, conselhos de gestão, representações não sindicais de trabalhadores, conselhos tripartites de concertação social, etc. Trata-se de uma diversificação representativa extremamente relevante, não apenas porque se trata de um fenômeno concreto, inegavelmente existente nas mais diversas realidades da produção, mas também porque atualmente se apresentam, no mundo do trabalho pós-industrial, crescentes fenômenos de complexificação e diversificação das relações de trabalho (e, consequentemente, de suas legítimas representações). Talvez ciente disso, a Conferência Internacional do Trabalho tenha proposto como princípio fundamental ao trabalho decente a liberdade de associação e a liberdade sindical, em 1998, conforme já referido26.

É corrente a ideia de que o princípio da liberdade de associação laboral justifica-se na ideia de autonomia coletiva privada, noção que reconhece legitimidade e suficiência aos grupos sociais organizados na defesa direta de seus respectivos interesses27. A autonomia coletiva privada

26 Não esquecendo que a Declaração de Filadélfia (Declaração relativa aos fins e objetivos da OIT)

consagra a liberdade de associação como um dos princípios fundamentais sobre os quais se sustenta a atuação da OIT.

27 Nos dizeres de SANTOS, a autonomia coletiva privada consiste “(...) no poder reconhecido aos grupos sociais de criar normas jurídicas para a tutela de interesses de uma coletividade, comunidade ou classe de pessoas globalmente consideradas, revelando-se como um instrumento de tutela de interesses coletivos pertinentes ao grupo globalmente considerado, que não se confundem com a mera soma de interesses individuais dos membros da coletividade nem com os interesses pertinentes a toda a sociedade”. Ainda, para o autor, uma visão ampla da autonomia coletiva privada deve consagrar algumas garantias, como a) a de fundação de sindicatos, b) a de constituição de órgãos não associativos, como conselhos tripartites de concertação social, c) a autonomia para redação dos estatutos sindicais, observados princípios gerais democráticos, d) a do exercício da concertação social, e) a da participação na elaboração do regulamento interno das

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pressupõe o pluralismo social, situando os grupos organizados em uma zona intermediária entre o interesse privado e o público, tendo neste seus principais limites, embora atue de forma autônoma em relação ao poder público28.

Mais especificamente no que se refere à liberdade associativa laboral, em uma concepção ideal, tal princípio manifesta-se em um duplo aspecto, a saber:

● Liberdade individual de associação ao sindicato, ou seja, consagrando a autonomia do sujeito, conforme o seu interesse, de filiação, de não filiação e de desfiliação, conforme o caso, das associações constituídas29.

● Liberdade organizacional, que pressupõe a autonomia para os trabalhadores se agruparem e constituírem associações para a defesa dos interesses de seus integrantes, em caráter efêmero ou permanente, conforme a necessidade e a demanda a ser defendida, destacando-se os sindicatos. A liberdade organizacional igualmente consagra a autonomia para os sindicatos desdobrarem-se em federações, confederações e entidades representativas afins30.

empresas, e f) a do livre exercício da negociação coletiva. Vide SANTOS, Ronaldo Lima dos. Teoria das normas coletivas. São Paulo: LTr, 2007, p.125-149.

28 RÜDIGER, Dorothee Susanne. O contrato coletivo no direito privado – contribuições do direito do trabalho para a teoria geral do contrato. São Paulo: LTr, 1999, p.94-108.

29 KROTOSCHIN, Ernesto. Instituciones de derecho del trabajo. 2.ed. Buenos Aires: Depalma, 1968, p.194-196. Conforme expõe o autor, alguns sistemas jurídicos admitem certas restrições à ideia de liberdade associativa (tais como mecanismos de sindicalização incentivada ou até mesmo compulsória) em seu duplo aspecto – em especial, à liberdade individual de associação – tendo em vista o propósito próprio do direito das situações coletivas de trabalho, qual seja a atenuação ou eliminação da ideia de hipossuficiência na relação capital/trabalho. Segundo expõe, “(...) a agrupação de trabalhadores e de empregadores, sobretudo dos primeiros, obedece a uma necessidade sociológica e econômica. Não apenas a consciência de grupo impulsiona a associação, senão que no campo prático da vida laboral ela resulta da impossibilidade para o trabalhador ilhado de se manter frente ao poderio econômico do empregador”. Mais adiante, expõe que: “Se tem em conta que se uma das funções mais importantes das organizações, especialmente das obreiras, consiste na representação dos trabalhadores para se fazerem ouvir com uma força igual à patronal, deve se dar a estas organizações a possibilidade de serem autenticamente representativas, aumentando no que for possível o número de seus aderentes por todos os meios que não se considerem contrários aos bons costumes”.

30 Para uma outra classificação, mais ampla do que a aqui proposta, NASCIMENTO aponta como desdobramentos (ou “dimensões”) da liberdade sindical a liberdade de associação (faculdade de os trabalhadores agruparem-se em associações representativas) de organização (autonomia dos trabalhadores para escolherem livremente os meios de união), liberdade de administração (consagração da ideia de democracia interna e de não ingerências externas), a liberdade de exercício das funções (garantia de um amplo espectro de instrumentos jurídicos para que as associações ajam em busca da satisfação de seus interesses e de suas demandas) e a liberdade de

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Presente na liberdade organizacional está a ideia de pluralidade. Esta, por sua vez, se aperfeiçoa na medida em que contempla uma série de possibilidades ou prerrogativas, a saber:

a) Coexistência múltipla de organizações sindicais representativas – ou seja, na inexistência de monopólios sindicais fictícios, impostos pela legislação ou pelo poder público (unicidade representativa), característica que não abarca a autolimitação espontânea (unidade representativa). A multiplicidade significa a garantia da possibilidade jurídica de coexistência simultânea de mais de uma organização sindical representativa do mesmo grupo de trabalhadores em uma mesma base territorial. Aqui, o ideal é o da unidade do movimento sindical: a partir da atuação das inúmeras entidades sindicais existentes, aquelas que se revelassem, através de sua atuação, mais aptas na defesa dos interesses de classe acabariam por absorver as demais existentes, em um processo de “aglomeração espontânea”, livremente desencadeada pelos próprios trabalhadores, e não através da imposição externa31. O esquema a seguir exemplifica a questão:

filiação e de desfiliação (garantia de filiação ou desfiliação do trabalhador em relação às associações existentes). Vide NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Compêndio de direito sindical. 5.ed. São Paulo: LTr, 2008, p.39-51. Neste artigo, está se partindo da distinção, como princípios maiores do direito coletivo, entre o princípio da liberdade de associação laboral e o princípio da autodeterminação das vontades coletivas, e neste último, aqui não abordado, estariam abrangidas a autonomia administrativa e funcional.

31 Conforme a Ementa 319 do CLS: Apesar de que os trabalhadores possam ter interesse em evitar que se multipliquem as organizações sindicais, a unidade do movimento sindical não deve ser imposta mediante intervenção do Estado por via legislativa, pois dita intervenção é contrária ao princípio enunciado nos artigos 2 e 11 da Convenção 87. A Comissão de Expertos em Aplicação de Convênios e Recomendações da OIT têm assinalado que “existe uma diferença fundamental quanto às garantias estabelecidas para a liberdade sindical e a proteção do direito de sindicalização entre uma situação, de um lado, em que o monopólio sindical é introduzido ou mantido por lei e, de outro, as situações de fato, que existem em certos países, em que todas as organizações sindicais se agrupam voluntariamente em uma só federação ou confederação, sem que isso resulte direta ou indiretamente das disposições legislativas aplicáveis aos sindicatos e à criação de associações profissionais. O fato de que os trabalhadores e os empregadores obtenham, em geral, vantagens ao evitar uma multiplicação do número das organizações competidoras não parece suficiente, a efeito, para justificar uma intervenção direta ou indireta do Estado, sobretudo a intervenção deste por via legislativa”. Ainda que apreciando em todo o sentido o desejo de um governo de fomentar um movimento sindical forte, evitando os efeitos de uma multiplicação indevida de pequenos sindicatos competidores entre si e cuja independência poderia ver-se comprometida por sua debilidade, o Comitê tem assinalado que é preferível em tais casos que o governo procure alentar os sindicatos para que se associem voluntariamente e formem organizações fortes e unidas, e não que imponha por via legislativa uma unificação obrigatória que priva os trabalhadores do livre exercício de seus direitos sindicais e viola os princípios incorporados nas Convenções Internacionais do Trabalho relativas à liberdade sindical.

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SINDICATO A SINDICATO C

SINDICATO B SINDICATO D

A garantia da multiplicidade de sindicatos como ideal jurídico-normativo está presente na Convenção 87 da OIT, que, em seu artigo 2º, consagra a possibilidade de todos os trabalhadores e empregadores constituírem as organizações que estimarem convenientes, sem prévia autorização, bem como de se afiliarem às mesmas, com a condição básica de observância dos respectivos estatutos. Segundo a Ementa 313 do CLS: “A existência de uma organização sindical em um setor determinado não deveria constituir um obstáculo para a constituição de outra organização se os trabalhadores assim o desejam”. Da mesma forma, a Ementa 314: “As disposições de uma constituição nacional relativas à proibição de criar mais de um sindicato por categoria profissional ou econômica, qualquer que seja o grau de organização, sobre uma base territorial dada que não poderá ser inferior à área de um município, não estão em conformidade com os princípios da liberdade sindical”. As Ementas 315 e 316, inclusive, facultam a possibilidade de criação de mais de um sindicato por empresa, se assim for o desejo da base representada.

b) Diversidade representativa – a diversidade consagra a ideia de inexistência de formas preestabelecidas para a representação dos trabalhadores. Enquanto a ideia de coexistência de múltiplas organizações sindicais representativas rechaça o monopólio sindical, a ideia de diversidade representativa afasta o monopólio de uma forma representativa única: os interesses dos trabalhadores devem poder se fazerem representados por sindicatos, associações, coalizões efêmeras e quaisquer outras representações não sindicais estrategicamente eleitas pelos próprios trabalhadores.

De certa forma, a ideia de diversidade já se encontra parcialmente fundamentada neste estudo, ao se justificar a utilização da expressão

PROFESSORES DO MUNICÍPIO

“X”

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“liberdade associativa laboral” em detrimento da consagrada “liberdade sindical” (arts. 2º e 10º da Convenção 87; art. 2º da DRPDFT, de 1998; Declaração de Filadélfia). Mas há ainda outros documentos que dão base à argumentação em seu favor. Exemplificativamente, a Convenção 135 sobre os representantes dos trabalhadores, de 1971, em seu art. 3º, estende seus efeitos aos representantes laborais que exerçam funções não exclusivas dos sindicatos. A Convenção 144 sobre a consulta tripartite (normas internacionais do trabalho), de 1976, estabelece disposições de fomento a instâncias ou conselhos consultivos tripartites (capital/trabalho/governo) em matérias afeitas ao mundo do trabalho. Em sentido semelhante, a Convenção 150 (sobre a administração do trabalho, de 1978) e a Recomendação 113 (sobre a consulta, de 1960). A Convenção 154 sobre a negociação coletiva, de 1981, em seu art. 3º, contempla a possibilidade de representantes não sindicais de trabalhadores participarem de negociações coletivas. A Recomendação 94 sobre a colaboração no âmbito da empresa, de 1952, em seu art. 1º, propõe o estímulo à implantação de instâncias de colaboração entre trabalhadores e empregadores no âmbito empresarial em matérias de interesse comum não abrangidas dentro do campo de ação dos organismos de negociação coletiva.

A diversidade representativa afina-se à ideia de estímulo à “concertação social” tão presente na atuação da OIT, ainda mais considerando-se a pluralismo tão característico das sociedades atuais. Por concertação social pode-se entender um sistema de permanente diálogo social entre poder público e as legítimas representações sociais, visando a

TUTELA DOS INTERESSES DE

CLASSE

Conselhos consultivos tripartites sindicatos

representantes não sindicais

outras associações

permanentes ou efêmeras de

representação

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democratizar o poder, dar maior legitimidade às políticas de administração pública das relações de trabalho, além de proporcionar que os próprios atores sociais envolvidos participem diretamente no processo de transformação de suas pretensões em direitos. Conforme se observa a partir da leitura da Ementa 1076 do CLS, trata-se para a OIT de um necessário processo de responsabilização dos atores sociais na “busca do bem-estar e da prosperidade da comunidade em geral”, ainda mais tendo-se em conta a “complexidade crescente dos problemas que se colocam nas sociedades”.

c) Cindibilidade dos interesses representados – ou seja, na possibilidade de que um grupo de trabalhadores representados por um determinado sindicato se divida (cisão), conforme seus interesses mais específicos venham à tona e não se revelem adequadamente representados pela entidade já existente, eventualmente voltada a interesses mais genéricos ou majoritários. Em suma, o que se busca através da ideia de cindibilidade é a garantia jurídico-normativa de que os grupos minoritários tenham também o direito e a liberdade de coalizão própria, se assim entenderem apropriado. E, ainda, pode-se concluir que, para o ideal de concertação social arquitetado pela OIT, ambas as espécies de representações (gerais e específicas) não deveriam se excluir, mas se complementar em suas atuações.

A cindibilidade igualmente consagra a ideia de que, em termos de organização laboral e de representação sindical, não deve haver base material ou territorial mínima (ou elementar) a ser obrigatoriamente observada. Ao longo de seu desenvolvimento, o direito das relações coletivas de trabalho consagrou, como critérios delimitadores de sua base material de representação, as noções de empresa, de profissão (ou ofício)32 e, como critério consagrado no ordenamento brasileiro, de categoria. No primeiro caso, a “célula” básica de representatividade sindical é o local de trabalho ou a unidade econômica, presumindo-se o despertar dos laços de solidariedade que caracterizam o sindicalismo a partir de um critério espacial; no segundo caso, a representatividade é estabelecida a partir do ofício, profissão ou das atribuições exercidas pelo trabalhador, presumindo-se o despertar dos laços de solidariedade a partir de um critério de identidade funcional; e no terceiro caso, uma espécie de simbiose dos sistemas de enquadramento anteriormente referidos, tem-se uma maior

32 RUSSOMANO, Mozart Victor. Princípios gerais de direito sindical. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998,

p.99-100.

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abstração do conceito de profissão (ou ofício) e a representatividade passa a se formar a partir do setor de atividade econômica em que o trabalhador presta seus serviços, identificado com base na atividade preponderante do empregador.

A cindibilidade consagra o entendimento segundo o qual, dentro destas bases mínimas (materiais, geográficas ou mistas, conforme a tradição do sistema jurídico em análise) de organização consagradas, podem existir grupos e interesses mais específicos (ou minoritários) que igualmente devem ter assegurado o direito de associação, como, por exemplo, na constituição de sindicatos ou organizações para a defesa dos interesses específicos das mulheres dentro da profissão ou categoria dos bancários. E a coexistência destas organizações não é excludente, mas complementar: uma empregada bancária, por exemplo, pode ter interesse em se associar ao sindicato dos bancários, na defesa daqueles interesses que são comuns à empresa, profissão ou categoria (conforme o caso); simultaneamente, em associar-se ao sindicato das mulheres bancárias para a defesa dos seus interesses profissionais específicos decorrentes da questão de gênero. Nesse caso, o critério associativo é a especialização infinita de interesses conforme os mesmos vão se legitimando e se organizando. Como tais interesses não serão, possivelmente, coincidentes ou excludentes, não há que se falar necessariamente em um ideal de unidade, e sim no ideal de coordenação: organizações de representação material mais geral agindo de forma harmônica e coordenada com as organizações de representação mais específica. O esquema a seguir exemplifica a questão:

PROFESSORES DO MUNICÍPIO “X”

Professoras do Município

“X”

SINDICATO DOS PROFESSORES DO MUNICÍPIO X

Sindicato das professoras do Município “X”

atuação coordenada

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A ideia de cindibilidade, além de implícita no já referido artigo 2º da Convenção 87 da OIT, pode ser percebida a partir da análise de algumas das decisões elaboradas pelo Comitê de Liberdade Sindical. A Ementa 209 dispõe que “a expressão ‘sem nenhuma distinção’ que contém [o art. 2º da Convenção 87] significa que se reconhece a liberdade sindical sem discriminação de nenhuma classe devida à ocupação, ao sexo, à cor, à raça, às crenças, à nacionalidade, às opiniões políticas etc. não só aos trabalhadores do setor privado da economia, senão também aos funcionários e aos agentes dos serviços públicos em geral”. A liberdade de associação e organização sindicais alcança inclusive trabalhadores permanentes, temporários, em período de prova e domésticos (Ementas 255, 256 e 267 do CLS): todos têm direito a constituir suas organizações específicas. Nesse sentido, dispõe a Ementa 217 do mesmo comitê que: “O estabelecimento, para os efeitos do reconhecimento do direito de associação, de uma lista de profissões com caráter limitativo estaria em contradição com o princípio de que os trabalhadores, sem distinção, devem ter direito a constituir as organizações que estimem convenientes e se afiliar às mesmas”. Ainda, da mesma forma que é possível a coexistência de várias organizações representativas, a liberdade associativa também deve possibilitar que um mesmo trabalhador (ou empregador) se filie, simultaneamente, a quantas organizações estimar conveniente. Neste sentido, a Ementa 360 do CLS: “Os trabalhadores deveriam poder, se assim o desejarem, afiliar-se simultaneamente a um sindicato de ramo e a um sindicato de empresa”.

d) Unidade fundamental dos interesses representados – enquanto a ideia de cindibilidade dos interesses representados reconhece a diversidade de relações – e, consequentemente, a diversificação das condições de vida e a especialização das respectivas demandas –, a ideia de unidade fundamental não permite o esquecimento de que, dentro da diversidade, há unidade. As organizações podem ser empresariais, municipais, regionais e nacionais; organizações de âmbito territorial local podem se agrupar em uniões (federações, confederações, por exemplo) de âmbito territorial maior. A prerrogativa da unidade não se aplica apenas no que se refere aos limites territoriais, mas também materiais: trabalhadores de empresas, profissões e categorias distintas podem se agrupar em uma organização única, representativa dos interesses gerais de todos. Por mais que atualmente se identifique um processo de particularização de condições e demandas, os trabalhadores ainda são uma classe social definida a partir do papel que

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desempenham no espaço produtivo capitalista: fornecedores, nos termos e limites de um contrato preestabelecido, de sua força de trabalho. Isso lhes dá um contorno básico, lhes permite a identificação de interesses básicos em comum, que não podem ser negligenciados no âmbito da liberdade associativa. O esquema a seguir exemplifica a questão:

A ideia da unidade fundalmental, além de igualmente implícita no

artigo 2º da Convenção 87, revela-se em inúmeros outros dispositivos elaborados pela OIT. Já foi visto que o art. 10º da mesma Convenção se reporta a qualquer organização representativa voltada aos interesses de classe. O artigo 5º estabelece que as organizações de trabalhadores têm o direito de constituir federações e confederações, assim como de filiarem-se às mesmas, e toda organização, federação ou confederação tem o direito de filiar-se a organizações internacionais de trabalhadores e de empregadores. Segundo as Ementas 714, 716 e 719 do CLS, uma legislação que impeça a formação de federações ou confederações formadas pela união de organizações provenientes de atividades distintas está em confronto com o princípio da liberdade associativa. Ainda, conforme a Ementa 335, é lícita, se espontaneamente assim o desejarem os trabalhadores e os empregadores, a constituição de uma organização única abarcando trabalhadores de categorias, profissões ou localidades distintas.

3 – A LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO LABORAL: CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS

Até o presente, buscou-se a descrição do princípio da liberdade associativa tendo por referência principal a produção normativa da OIT. Ultrapassada esta primeira etapa, algumas reflexões se fazem necessárias.

Federação dos professores, metalúrgicos, bancários e comerciários

Confederação dos

professores

União nacional

dos trabalhado

res

Sindicato dos

professores do Estado

“YY”

Sindicato dos professores e metalúrgicos do Município

“Y”

Sindicato dos bancários e comerciários do Município

“W”

Sindicato dos

professores do Município

“X”

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A primeira diz respeito aos desdobramentos aqui propostos do princípio da liberdade associativa laboral: coexistência de múltiplas organizações sindicais, diversidade representativa, cindibilidade dos interesses representados e unidade fundamental dos interesses representados. Até que ponto tais desdobramentos, muitos se perguntarão, não enfraquece a ação coletiva laboral? Aqui cabe frisar que tais aspectos da liberdade associativa são tidas pela OIT como meras possibilidades jurídicas, e não obrigatoriedades. Para a OIT, que atua em um campo complexo e diversificado – as diversas realidades produtivas mundiais de seus países-membros –, o mais relevante é que os vários sistemas jurídicos nacionais propiciem aos próprios trabalhadores (e empregadores) organizarem-se espontaneamente, adotando os modelos associativos que estimarem convenientes e se revelarem, na prática, mais bem sucedidos no propósito de tutela dos interesses de classe. Não há um modelo ou fórmula ideal, daí a pregação da liberdade em uma acepção tão ampla. O pressuposto é que não há um modelo padrão a ser preestabelecido: os diversos sistemas jurídicos devem dar plena liberdade para que o modelo mais apto seja estabelecido conforme as demandas produtivas, culturais, econômicas, etc., acomodem-se mais adequadamente, conciliando o propósito fundamental do direito das relações laborais coletivas, qual seja a proteção do trabalhador. A mesma liberdade é necessária para que um determinado modelo preestabelecido se adapte, eventualmente, às realidades cambiantes do mundo produtivo pós-industrial. A liberdade associativa laboral não é (tão somente) um fim em si, mas sim (igualmente) um meio para se chegar ao melhor modelo de tutela das demandas laborais coletivas e ao trabalho decente.

Essa preocupação pela liberdade associativa laboral é facilmente justificável na medida em que, em diversas realidades nacionais – incluindo-se a latino-americana, em geral, e a brasileira, em especial –, as organizações sindicais foram cooptadas, em algum momento histórico, pelo poder público e utilizadas como instrumento de manobra ideológica. Ou, ainda, não se pode perder de vista que as diversas sociedades são regidas por distintos centros de produção de poder – Economia (produção), Direito, Política, Ciência, etc. – e quanto mais autônomos são estes centros uns dos outros, provavelmente mais estáveis serão as instituições da realidade em apreço. No entanto, em muitos países essa autonomia não se apresenta de forma sólida, e o poder econômico acaba cooptando o poder político e o direito. Nestas situações, o direito do trabalho – ramo do direito cujo objeto

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recai sobre uma relação social nuclear ao processo produtivo capitalista – e as organizações laborais coletivas – historicamente, um dos principais movimentos sociais que se revelaram aptos para contrapor forças com o poder econômico capitalista – podem ser manipulados por regramentos jurídicos excessivamente detalhistas e restritivos.

Além disso, consolidada a lógica capitalista há séculos, somando-se a isso o grande desenvolvimento atual das tecnologias de manipulação da informação, não há mais sentido, generalizando, pensar o trabalhador como um ser incapaz, demandante de ações tutelares por parte do Estado, em um viés tipicamente paternalista. Com essa afirmação, e isso deve ser destacado, não se quer justificar ou defender a desnecessidade de uma atuação estatal nas relações produtivas. Nas realidades em que a fragilidade laboral é evidente – o mundo produtivo é muito diversificado, e lidar com modelos jurídicos únicos é uma tarefa cada vez mais difícil –, a ação estatal se justifica, mas nunca para oprimir os processos de amadurecimento das organizações laborais e de desenvolvimento das relações coletivas.

Assim, para a OIT, o papel do Estado se aperfeiçoaria:

a) Através da propositura normativa de modelos facultativos de associação laboral ou, pelo menos, não impeditivos de modelos alternativos espontaneamente estabelecidos. Nesse sentido, por exemplo, as Ementas 346 e 384 do CLS:

“346. O Comitê indicou que em diversas oportunidades, e em particular a propósito da discussão do projeto de Convenção sobre o direito de sindicalização e de negociação coletiva, a Conferência Internacional do Trabalho havia invocado a questão do caráter representativo dos sindicatos e admitido, até certo ponto, a distinção que as vezes se faz entre os diferentes sindicatos de acordo com seu grau de representatividade. A Constituição da OIT no § 5º do artigo 3 consagra a noção de ‘organizações mais representativas’. Por conseguinte, o Comitê estimou que o simples fato de que a legislação de um país estabeleça uma distinção entre as organizações sindicais mais representativas e as demais organizações sindicais não deveria ser em si criticável. No entanto, é necessário que uma distinção deste gênero não tenha como consequência conceder às organizações mais representativas – caráter que se deriva de um número mais elevado de afiliados – privilégios que excedam de uma prioridade em matéria de representação nas

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negociações coletivas, consultas com os governos, ou inclusive em matéria de designação dos delegados ante organismos internacionais. Em outras palavras, tal distinção não deveria ter por consequência privar as organizações sindicais, que não tenham sido reconhecidas como as mais representativas, dos meios essenciais para defender os interesses profissionais de seus membros nem do direito de organizar sua gestão e sua atividade e de formular seu programa de ação, previsto pela Convenção 87.”

“384. Toda obrigação imposta a um sindicato – à exceção de certas cláusulas puramente formais – de copiar seus estatutos sobre um modelo obrigatório seria contrária às regras que garantem a liberdade sindical. Muito diferente é o caso em que um governo se limita a pôr um modelo de estatuto à disposição das organizações em formação sem impor a aceitação do modelo proposto. A preparação de tipos de estatutos e regras para guia dos sindicatos, sempre que as circunstâncias sejam tais que não exista de fato nenhuma obrigação de aceitá-los nem nenhuma pressão exercida em tal sentido, não estranha necessariamente uma intervenção no direito das organizações de redigir seus estatutos e regramentos em completa liberdade.”

b) Coibindo modelos de organizações laborais distorcidos, desde que assim caracterizados por intermédio de procedimentos formais comandados por organismos neutros, como o Poder Judiciário. Nesse sentido, a Ementa 495 do CLS estabelece que a liberdade sindical se justifica na medida em que as associações operam através de atividades lícitas, sempre com o intuito de defesa dos interesses profissionais. Práticas sindicais que afetem direitos fundamentais de terceiros – como o boicote, por exemplo – destoam dos limites próprios da liberdade sindical (Ementa 518 do CLS). Ainda, a Ementa 687 estabelece que “o cancelamento do registro de um sindicato somente deveria ser possível por via judicial”, nunca por via administrativa (Ementa 684 do CLS), o que se justifica para garantir o amplo direito de defesa (Ementa 699 do CLS) e evitar abusos na interpretação legal (Ementa 680 do CLS).

c) Preservando os direitos básicos (direito das condições mínimas e princípio da irrenunciabilidade) e as condições de trabalho mais benéficas aos trabalhadores (princípio da norma mais favorável). Como já referido

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anteriormente33, a própria ideia de trabalho decente para a OIT envolve a proteção social e a observância dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Além disso, o art. 3º da Recomendação 91 da OIT (sobre os contratos coletivos, de 1951) estabelece que, em um eventual conflito entre normas oriundas do contrato individual e normas oriundas da negociação coletiva, estas devem ser aplicadas desde que as primeiras não sejam mais favoráveis aos trabalhadores.

Em outras palavras, a liberdade de associação laboral não afasta ou impede a ação estatal normativa, apenas lhe dá limites, privilegiando as legítimas organizações ou modelos surgidos a partir dos próprios trabalhadores, dentro do pressuposto de que o desenvolvimento real da concertação e do diálogo social34 é um dos principais meios para a efetiva proteção e promoção da melhoria da condição social dos trabalhadores.

4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, está-se abordando o princípio da liberdade de associação laboral em uma “concepção ideal”, a partir de uma leitura possível acerca da produção normativa elaborada pela OIT. Os esquemas e a classificação até então referidas retratam a ideia de que as organizações representativas de trabalhadores e empregadores devem ter ampla liberdade para se estruturarem, nas diversas realidades nacionais, conforme seus interesses se apresentem legítimos e conforme as estratégias livremente eleitas para defendê-los se revelem mais aptas. Não se trata de uma organização necessária. O pressuposto é que, conforme as opções sejam ofertadas, as próprias organizações se autodeterminem e, na medida em que esta autodeterminação se revele imprópria, haja liberdade para a estipulação e a implementação de novas estratégias associativas, até que algum modelo se revele mais apto na defesa de classe. Em suma, a “palavra de ordem” para a OIT é a voluntariedade na busca de um modelo de organização ideal e maduro, e não a sua imposição fictícia.

No Brasil, embora os princípios da liberdade de associação laboral e da autodeterminação das vontades coletivas estejam previstos no art. 8º da Constituição – com algumas restrições previstas no próprio texto 33 Vide nota de rodapé nº 2. 34 Na ideia de “desenvolvimento real da concertação e do diálogo social” está implícita a

necessidade de que os atores sociais estejam em posição de equivalência, o que se obtém, para a OIT, através do desenvolvimento espontâneo, mais ou menos “dirigido” pelo Estado, das organizações de classe.

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constitucional –, não é demais recordar que nossa cultura juslaboral coletiva alimentou-se historicamente de outras fontes que não a autonomia coletiva privada. Boa parte dos principais institutos sindicais brasileiros têm origem na concepção corporativista, cujos pressupostos, em alguns aspectos, apresentam-se diametralmente opostos aos que aqui estão apresentados35.

A influência do modelo corporativista no Brasil explica a permanência de alguns institutos bastante peculiares que caracterizam o hibridismo do atual sistema sindical brasileiro. Em que pese a consagração do princípio em análise no art. 8º da Constituição36, o inciso II do mesmo artigo restringe a possibilidade de criação de mais de um sindicato em uma determinada base territorial (“unicidade sindical”)37, o inciso III respalda a manutenção da categoria única como célula básica de representatividade sindical, o inciso IV mantém a figura da contribuição sindical compulsória, de natureza tributária38, e o art. 114, § 2º, mantém, embora atualmente bastante desfigurado, o atípico poder normativo da Justiça do Trabalho (o que transfere ao Poder Judiciário a tarefa de solução de determinado conflito negocial coletivo)39. Sem entrar no mérito da conveniência ou não da permanência de tais institutos no sistema brasileiro, inegável é a sua estranheza quando analisados sob o ponto de vista do ideal de liberdade associativa, ao menos tal como o mesmo se revela a partir da atuação da OIT.

No entanto, essa mesma “estranheza” talvez seja dissipada quando a análise do modelo brasileiro atual parta das peculiaridades históricas e culturais arraigadas em nosso sindicalismo, que não podem ser rompidas abruptamente. A realidade sindical nacional é extremamente diversificada e, assim, certas limitações jurídicas que em algumas circunstâncias possam 35 Em especial, pelo fato de as concepções corporativistas, ao contrário dos pressupostos que

fundamentam a ideia de autonomia coletiva privada, negarem a legitimidade do conflito de classes como um importante instrumento promotor do desenvolvimento e da justiça social. No mesmo sentido, SANTOS, Ronaldo Lima dos. Teoria das normas coletivas. São Paulo: LTr, 2007, p.133.

36 “É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:” 37 “é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de

categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município.”

38 “assembleia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei” (não grifado no original).

39 “Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.”

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se apresentar justificáveis40, em outras talvez representem empecilhos à atuação de associações representativas mais efetivas. De qualquer forma, como reflexão, fica a impressão de que, entre os institutos geralmente apontados como resquícios de um modelo corporativista e opressivo, a regra da unicidade deva ser uma das primeiras a serem repensadas em uma eventual proposta de reforma legal.

40 É o caso, por exemplo, do chamado “poder normativo”. Trata-se de uma função atípica e

controvertida conferida ao Judiciário Trabalhista, condenável quando abordado a partir das premissas das normas e decisões da OIT. Mas entre os argumentos em sua defesa está o fato – inegável, diga-se de passagem – de que para grande parte das organizações brasileiras o pressuposto da autossuficiência sobre o qual se sustenta o plano das relações coletivas é falacioso, justificando, muitas vezes, a interferência do Poder Judiciário na composição de conflitos coletivos.

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APONTAMENTOS AO CONTRATO DE ADMINISTRAÇÃO DE

VALORES MOBILIÁRIOS SOB A ÓPTICA DO PEQUENO INVESTIDOR

RICARDO EHRENSPERGER RAMOS*

Resumo: Considerando-se a realidade macroeconômica atual, de controle inflacionário e de redução de juros, têm se destacado os investimentos de pequenos poupadores em valores mobiliários, em aquisição dos mais diversos papéis ou por meio de adesão em fundos de investimento, em busca de maiores rentabilidades. A intenção do presente trabalho é apresentar sucintamente os conceitos jurídicos de valor mobiliário e do serviço de administração de valores mobiliários, que devem contemplar o inerente dinamismo do mercado financeiro. Tendo em vista o risco inerente a tais investimentos, entende-se que deve ser analisada com atenção a responsabilidade dos administradores de valores mobiliários por eventuais perdas financeiras, do que se depreende a necessidade de proteção do investidor como dever a ser imposto ao contratado.

Palavras-chave: Valores Mobiliários. Administração de Valores. Risco. Proteção. Investidor.

Sumário: Introdução; I – Fundamentos e conceitos jurídicos elementares; A) Natureza jurídica dos valores mobiliários; B) Administração de valores mobiliários e a sua formalização; II – Responsabilidade civil do administrador de valores mobiliários; A) As perdas financeiras nos investimentos em valores mobiliários; B) Dever de proteger o investidor; Conclusão; Referências.

* Advogado em Porto Alegre, RS.

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INTRODUÇÃO

Os valores mobiliários constituem a engrenagem básica de funcionamento do mercado financeiro, este que, por sua vez, é tido como capaz de influenciar o desenvolvimento econômico de um país, ou contribuindo para a expansão da sua poupança interna, ou tornando mais eficiente a transformação da poupança acumulada em capital produtivo1.

Atraídos por tais mercados em face da estabilização econômica e pela consequente redução das taxas de juros, buscando maiores rentabilidades em seus investimentos, pessoas físicas sem conhecimentos aprofundados nem sempre têm tido sucesso em suas escolhas, arriscando a sua estabilidade e o seu próprio futuro. Além disso, os desdobramentos financeiros para os poupadores são da ordem do dia, tendo em vista a alta volatilidade de tais aplicações, em face da crise financeira internacional, que inclusive já transcende o mercado de capitais e atinge toda a economia de mercado.

Em uma realidade de cada vez mais investimentos privados em valores mobiliários, especialmente destes poupadores de menor porte, se mostra fundamental aprofundar a análise das relações que se estabelecem com aqueles que fazem a administração de tais papéis, atividade esta da mais alta complexidade. Esta é a proposta do presente trabalho, sob o enfoque particular do pequeno investidor e sua relação com as instituições que vêm se especializando na prestação destes serviços de corretagem e intermediação bursátil.

O estudo, portanto, passa pela delimitação de como se caracterizam os valores mobiliários, da natureza do serviço de administração destes papéis e da relação contratual existente entre as partes envolvidas, e chega ao estudo de quais são e como se materializam os deveres básicos de proteção do administrador para com os investidores, e como os riscos inerentes a estas aplicações são assumidos pelos contratantes.

Portanto, para bem esclarecer os objetivos do presente trabalho, desde já se informa que não serão analisados: o ponto de vista dos chamados investidores institucionais e aos investidores qualificados, com suas aplicações de grande porte, por geralmente possuírem corpo técnico especializado para o monitoramento do mercado financeiro2; as relações 1 EIZIRIK, Nelson et al. Mercado de capitais – regime jurídico. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.4. 2 A Instrução CVM nº 409/04, inclusive, dá tratamento especial aos chamados “investidores

qualificados”, estabelecendo quase que uma regulamentação própria para os altos patrimônios

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societárias internas das emissoras de tais papéis, com seus complexos desdobramentos acerca do controle acionário nas sociedades anônimas; as questões regulatórias deste específico setor do mercado financeiro, atinentes ao Banco Central e à Comissão de Valores Mobiliários, que serão tratadas apenas para elucidação das noções de valor mobiliário e de administrador, e a responsabilidade criminal advinda de eventuais atos de má gestão.

Juridicamente analisado por CLÓVIS DO COUTO E SILVA, o mercado de capitais estabeleceria uma ordem de cooperação entre institutos de direito público e privado, como de direito administrativo da economia, direito financeiro, direito civil e comercial. Dada esta interpenetração de sentidos, é necessário considerar o mercado de capitais como o que o jurista chama de um conjunto de sistemas abertos, dotados de diversos graus de “privaticidade” e “publicidade”, com diferentes graus de pessoalidade e de patrimonialidade3.

E, por isso, o interesse do Estado no mercado de capitais justificaria controles tais que poderiam sim restringir o poder de negociação das partes envolvidas, em franca limitação de sua autonomia quanto às cláusulas do próprio contrato, ou mesmo quanto ao local onde devem ser transacionados os títulos4. Mas tudo dentro de uma realidade de participação madura e desenvolvida de diversos segmentos sociais na atividade financeira.

Considerando tais concepções é que a Lei nº 6.385/76 foi promulgada, para disciplinar o mercado de valores mobiliários e dispondo, entre outros assuntos, sobre a emissão, distribuição, negociação e intermediação de valores mobiliários, criando ainda a Comissão de Valores Mobiliários para a execução das atribuições necessárias para tanto5, justamente pretendendo contemporizar liberdade negocial e interesse regulatório.

aplicados com sofisticação, conhecimento e experiência financeiras. Nesse sentido, WALD, Arnoldo. O investidor qualificado no direito comparado. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, ano 44, n.139, jul.-set. 2005.

3 COUTO E SILVA, Clóvis do. A fundamentação jurídica do mercado de capitais. Artigo avulso, Biblioteca da Faculdade de Direito da UFRGS, 1973, p.13. Segundo o autor, o mercado de capitais seria “o mercado a longo prazo, de debêntures e ações, da emissão e da circulação de valores mobiliários, dos meios de financiamento duradouros e da participação. Pela sua importância, o mercado de capitais e o de dinheiro exigem instituições específicas destinadas a proteger, em primeiro lugar, a estabilidade da moeda, e, com isso, o limite e a forma das diferentes transações”.

4 Ibid., p.14. 5 Lei nº 6.385/76, artigo 4º: O Conselho Monetário Nacional e a Comissão de Valores Mobiliários

exercerão as atribuições previstas na lei para o fim de: I – estimular a formação de poupanças e a sua aplicação em valores mobiliários;

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Porém, antes disso, a Lei nº 4.728/65 já disciplinava o mercado de capitais, prevendo um capítulo específico para as sociedades e fundos de investimento, que até hoje constituem a principal ferramenta de aplicação em valores mobiliários para os pequenos investidores. A análise de tal diploma é fundamental para o estudo pretendido, pois nele determina-se que depende de prévia autorização do Banco Central do Brasil o funcionamento das sociedades de investimento que tenham por objeto a aplicação de capital em carteira diversificada de títulos ou valores mobiliários, ou a administração de fundos em condomínio ou de terceiros, para aplicação em tais tipos de ativos (artigo 49), e definindo-se ainda a competência do Conselho Monetário Nacional para fixar as normas a serem observadas pelas referidas sociedades, e as relativas a, entre outras questões financeiras específicas, normas e práticas na administração da carteira de títulos e limites máximos de custos de administração.

Dessa forma, ambas as leis regulam questões atinentes ao tema, estabelecendo-se atribuições, concomitantemente, à Comissão de Valores Mobiliários e ao Banco Central do Brasil, o que pode causar certa sobreposição de atos normativos. Todas estas questões são bem expostas pela doutrina6, e são aqui referidas apenas nos estritos limites necessários para a compreensão do sistema de mercado de capitais e de valores mobiliários.

II – promover a expansão e o funcionamento eficiente e regular do mercado de ações, e estimular as aplicações permanentes em ações do capital social de companhias abertas sob controle de capitais privados nacionais; III – assegurar o funcionamento eficiente e regular dos mercados da bolsa e de balcão; IV – proteger os titulares de valores mobiliários e os investidores do mercado contra: a) emissões irregulares de valores mobiliários; b) atos ilegais de administradores e acionistas controladores das companhias abertas, ou de administradores de carteira de valores mobiliários; c) o uso de informação relevante não divulgada no mercado de valores mobiliários; V – evitar ou coibir modalidades de fraude ou manipulação destinadas a criar condições artificiais de demanda, oferta ou preço dos valores mobiliários negociados no mercado; VI – assegurar o acesso do público a informações sobre os valores mobiliários negociados e as companhias que os tenham emitido; VII – assegurar a observância de práticas comerciais equitativas no mercado de valores mobiliários; VIII – assegurar a observância no mercado, das condições de utilização de crédito fixadas pelo Conselho Monetário Nacional.

6 ROCHA, Tatiana Nogueira da. Fundos de investimento e o papel do administrador: a indústria dos Fundos no mercado brasileiro e a liberdade para agir, os poderes e obrigações dos seus administradores. São Paulo: Textonovo, 2003.

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Mas como a questão que se pretende enfrentar perpassa a produção regulatória do mercado de capitais, exigindo o posicionamento da doutrina jurídica que contemple a complexidade e multidisciplinaridade do tema, impõe-se uma abordagem que considere questões de direito civil e financeiro, mas para depará-las com a realidade enfrentada por investidores e administradores, a fim de encontrar os elementos relevantes para o adequado enquadramento jurídico.

A intenção, portanto, é ir além das concepções estanques, pois, como defende RICARDO LORENZETTI, o Direito Privado deve ter mais atenção à estrutura econômica que sustenta a aplicação dos direitos subjetivos e como atuam aqueles que se veem diretamente afetados, a fim de incentivá-los para que a incidência seja favorável7.

I – FUNDAMENTOS E CONCEITOS JURÍDICOS ELEMENTARES

Entendemos que a análise adequada dos contratos de administração de valores mobiliários deve ser precedida da conceituação do que se entende por valor mobiliário e por administração destes papéis. Somente assim pode se depreender com clareza o objeto de estudo.

Além disso, é fundamental se ter em conta a função de tais papéis dentro do mercado financeiro, de modo que a análise jurídica capte a prática cotidiana do mercado financeiro, que pode abarcar interesses meramente especulativos, nítido caráter de investimento produtivo e gerador de riquezas, ou ainda poupança de longo prazo.

Mas o mercado financeiro recorre a constantes inovações em busca do trinômio creditício de liquidez, certeza e exigibilidade. E isto geralmente se faz por meio de novos instrumentos, trazendo evidentes reflexos para a sua conceituação jurídica, que deve estar atenta a este dinamismo, para bem regulá-lo e assim passar-lhe credibilidade.

Apenas delimitando-se com clareza os institutos em questão é que se acredita poder depreender com mais precisão o alcance do contrato, dando o tratamento adequado pela disciplina jurídica, principalmente quando do delicado momento da ocorrência de perdas financeiras nos investimentos realizados, apesar de esta preocupação dever se fazer presente desde antes da sua conclusão.

7 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. Tradução de Véra Maria Jacob de

Fradera. São Paulo: RT, 1998, p.309.

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A) Natureza Jurídica dos Valores Mobiliários

Por meio de uma breve mas necessária referência à formatação legal do mercado financeiro brasileiro, apenas para fins de contextualização do estudo pretendido, é importante destacar que a Lei nº 6.385/76, em seu artigo 4º, define as finalidades a serem almejadas pelo Conselho Monetário Nacional e pela Comissão de Valores Mobiliários, no exercício de suas atribuições8.

A legislação contempla e tutela o que se diz, pelo aspecto financeiro, como sendo a função econômica essencial do mercado de capitais, garantindo às empresas, mediante a emissão de valores mobiliários, a captação de recursos não exigíveis para o financiamento de projetos ou mesmo para alongar o prazo de dívidas9.

E, por isso, a emissão de valores mobiliários permite a transferência dos riscos originalmente inerentes à atividade empresarial, sendo adquiridos e negociados conforme as expectativas e a percepção de risco dos investidores, formando um mercado secundário que se movimenta a partir de tais expectativas. Os seus adquirentes estabelecem estratégias para a composição de suas carteiras, tendo em vista não apenas os resultados, mas também as possibilidades de administrar os riscos assumidos. Desta maneira, os títulos de valores mobiliários contemplam participação no

8 Lei nº 6.385/76, artigo 4º: O Conselho Monetário Nacional e a Comissão de Valores Mobiliários

exercerão as atribuições previstas na lei para o fim de: I – estimular a formação de poupanças e a sua aplicação em valores mobiliários; II – promover a expansão e o funcionamento eficiente e regular do mercado de ações, e estimular as aplicações permanentes em ações do capital social de companhias abertas sob controle de capitais privados nacionais; III – assegurar o funcionamento eficiente e regular dos mercados da bolsa e de balcão; IV – proteger os titulares de valores mobiliários e os investidores do mercado contra: a) emissões irregulares de valores mobiliários; b) atos ilegais de administradores e acionistas controladores das companhias abertas, ou de administradores de carteira de valores mobiliários; c) o uso de informação relevante não divulgada no mercado de valores mobiliários; V – evitar ou coibir modalidades de fraude ou manipulação destinadas a criar condições artificiais de demanda, oferta ou preço dos valores mobiliários negociados no mercado; VI – assegurar o acesso do público a informações sobre os valores mobiliários negociados e as companhias que os tenham emitido; VII – assegurar a observância de práticas comerciais equitativas no mercado de valores mobiliários; VIII – assegurar a observância no mercado das condições de utilização de crédito fixadas pelo Conselho Monetário Nacional.

9 EIZIRIK, Nelson et al. Mercado de capitais – regime jurídico. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.8.

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negócio ou endividamento de seu emitente, com vistas a financiar as atividades empresariais10.

Mas, historicamente, sempre foi muito dificultada a conceituação legal dos valores mobiliários, desde os primeiros diplomas legais atinentes, ainda da década de 60, impedindo a possibilidade de consenso acerca da matéria. A dinâmica financeira já demonstrava a necessidade de se superar a concepção de valores mobiliários por meio do rol taxativo do artigo 2º da Lei nº 6.385/76, que exigia alterações legislativas supervenientes para a inclusão de novos papéis utilizados no mercado de capitais, como se deu com o advento da Lei nº 10.303/01.

Além disso, também havia imprecisão técnica em seu regime jurídico, uma vez que havia valores mobiliários que estavam sujeitos à supervisão do Banco Central do Brasil (em vez da CVM)11, dada a já mencionada sobreposição de competências.

Foi somente com a Lei nº 10.198/01 que, promulgada com a finalidade de regular, fiscalizar e supervisionar os mercados de títulos ou contratos de investimento coletivo, finalmente foi definido, em seu artigo 1º, um conceito generalizável de valor mobiliário, assim definido:

“Constituem valores mobiliários, sujeitos ao regime da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, quando ofertados publicamente, os títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.”

Em face deste histórico legislativo, onde se privilegiou primeiramente a enumeração dos valores mobiliários, em detrimento de sua conceituação, houve farta produção doutrinária acerca do tema12, produto dos esforços para sanar as lacunas e insuficiências da lei. Antes das tardias definições legislativas, tais obras já mencionavam a necessidade de se analisarem os

10 YAZBEK, Otavio. Regulação do mercado financeiro e de capitais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p.87. 11 ROCHA, Tatiana Nogueira da. Fundos de investimento e o papel do administrador: a indústria dos

Fundos no mercado brasileiro e a liberdade para agir, os poderes e obrigações dos seus administradores. São Paulo: Textonovo, 2003, p.60.

12 WALD, Arnoldo. O mercado futuro de índices e os valores mobiliários. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, ano 24, n.57, jan.-mar. 1985; MATTOS FILHO, Ary Oswaldo. O conceito de valor mobiliário. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, ano 24, n.59, jul.-set. 1985.

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valores mobiliários em seu contexto funcional13, sempre sensível à dinâmica e cambiante realidade do mercado financeiro, mas com a inarredável obrigação de servir como proteção contra abusos aos investidores.

O conceito de valor mobiliário passaria então pela presença de quatro características fundamentais: 1ª) investimento em dinheiro; 2ª) empreendimento comum; 3ª) expectativa de lucro; e 4ª) gestão do empreendedor ou de terceiros. Assim entendidos, os valores mobiliários incluiriam as cotas de fundos de investimento, regulados pelo Banco Central do Brasil, e não pela Comissão de Valores Mobiliários14.

Alguns destacam semelhança entre os valores mobiliários e os títulos acionários15, com toda a afinidade que se verifica de plano com o Direito Societário, com o regime jurídico das sociedades anônimas, e abarcando ainda a característica de negociabilidade que lhes é intrínseca. Outros salientam a sua necessária distinção dos títulos de crédito16, por serem emitidos em massa e de terem circulação irrestrita (contra a emissão decorrente de um ato de comércio dos títulos de crédito), além de sua fungibilidade. Ou seja, se assemelham mas não se confundem, mesmo representando um direito de crédito e circulando com facilidade.

Mas já na década de 80, se conceituava o valor mobiliário como a) a contribuição para investimento, b) referente a empreendimento comum, c) com expectativa de lucro, d) contratado com a presença de risco, e) não necessariamente com controle do investidor, f) que pode não ter qualquer especialização ou conhecimento técnico acerca do negócio17.

Nesse contexto que defende um entendimento abrangente do tema, se viu necessário ampliar o conceito de valor mobiliário18, a fim de tutelar e

13 Nesse sentido: GOLDBERG, Daniel Krepel. A Lei 10.303, de 2001, e a inclusão dos derivativos no rol

dos valores mobiliários. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, ano 42, n.129, jan.-mar. 2003.

14 QUEIROZ, José Eduardo Carneiro. O conceito de valor mobiliário e a competência da Comissão de Valores Mobiliários e do Banco Central do Brasil. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Aspectos atuais do direito do mercado financeiro e de capitais. São Paulo: Dialética, 1999, v.1, p.135.

15 YAZBEK, Otavio. Regulação do mercado financeiro e de capitais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p.90-94. 16 SALLES, Marcos Paulo de Almeida. Os valores mobiliários da Lei das Sociedades Anônimas.

Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, ano 36, n.107, jul.-set. 1997.

17 MATTOS FILHO, Ary Oswaldo. O conceito de valor mobiliário. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, ano 24, n.59, p.41-48, jul.-set. 1985.

18 BRAGA, Luiz Otavio Escalier. Aspectos referentes à informação, à proteção dos minoritários e às novas práticas de gestão como condição de desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro.

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regulamentar contratos de investimentos que transcendiam o conteúdo usualmente transacionado, como era o caso de produtos agropecuários. Assim, seria mais adequado considerá-los como títulos ou contratos ofertados publicamente, que geram direito de participação, de parceria ou de remuneração, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor19.

Mesmo os que recorrem a análises de direito comparado sobre o tema destacam como traços comuns a todos os valores mobiliários a sua constituição como investimentos em empreendimentos economicamente rentáveis, a finalidade de lucro de seus adquirentes, o risco que é inerente à operação, a ausência de controle do investidor sobre o empreendimento, a vinculação das relações jurídicas decorrentes do investimento à criação do título, a desnecessidade de especialização ou conhecimento técnico do adquirente acerca da atividade em que se está investindo, e a necessidade de proteção estatal aos investidores20.

Transcendendo estas particularidades, os investimentos em valores mobiliários se viabilizaram para o grande público por meio da constituição de fundos de investimento. Esta figura jurídica permitiu a participação no mercado dos pequenos investidores como alternativa à aplicação na tradicional caderneta de poupança, e ampliando as opções para quem busca maior ou menor liquidez, risco ou rentabilidade. Por tais questões de mercado, há o entendimento doutrinário de que as respectivas quotas de fundos de investimentos devem também ser classificadas como valores mobiliários21, admitindo a circulação dos mais variados papéis.

A questão, portanto, apesar dos meandros legislativos e de fiscalização estatal, é, apreendendo a noção de valor mobiliário nesta ampla acepção, encontrar as características básicas do contrato que se estabelece entre o investidor e a administradora de valores mobiliários, abarcando a diversidade destes títulos. A intenção é separar a questão regulatória, já há muito amplamente discutida, da relação civil formalizada por conta deste cada vez mais comum instrumento de aplicação financeira.

Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Direito. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.

19 Ibid., p.96. 20 FARIA, Guiomar T. Estrella. Valores Mobiliários no direito brasileiro e no direito comparado.

Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Livraria do Advogado, v.9, n.1, nov. 1993.

21 PERRICONE, Sheila. Fundos de Investimento: A política de investimento e a responsabilidade dos administradores. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, RT, ano 4, n.2, jan.-mar. 2001.

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B) Administração de Valores Mobiliários e a Sua Formalização

Considerados os valores mobiliários na concepção acima exposta, passa-se à análise de sua administração, com destaque para a relação entabulada entre o prestador do serviço e o investidor contratante.

A administração de valores mobiliários se justificaria por razões técnicas de mercado, uma vez que os investidores normalmente não têm acesso direto aos mercados de capitais, principalmente nas negociações em bolsas de valores, ou não lhes é franqueado com facilidade, ou ainda é por demais específico e complexo.

Para que as negociações transcorram ordenadamente, as empresas administradoras de valores que operam diretamente no mercado precisam, por isso, estabelecer suas relações comerciais com apoio na estreita confiança com os demais operadores do mercado e com seus próprios clientes22.

Por tudo isso, há quem defenda que a regulação do mercado de capitais tem por objetivo principal a proteção da capacidade funcional do mercado de capitais, entendida esta “capacidade funcional” como o conjunto de mecanismos eficientes de mercado, trabalhando em prol de uma formatação jurídica que confira a maior liberdade possível na transferência de valores mobiliários, desde que garantidas a confiança geral, a transparência das operações, a justiça e a integridade do mercado23.

Para uma segunda corrente, a finalidade primordial da regulação financeira é conferir proteção não ao mercado e à sua sistemática de funcionamento, mas ao investidor, servindo a regulação do mercado de capitais para conferir segurança às aplicações financeiras em valores mobiliários emitidos publicamente e negociados no mercado24, mediante a estipulação de regras estáveis e claras, e garantindo a efetiva tutela de eventuais pretensões reparatórias.

22 KÜMPEL, Siegfried. Direito do Mercado de Capitais – do ponto de vista do direito europeu, alemão e

brasileiro – introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. O autor destaca que “levando-se em consideração que cada participante do mercado precisa aceitar qualquer outro participante que lhe for nomeado pelo corretor competente (obrigação de contratar), é necessário assegurar uma solvência suficiente de todos os participantes do mercado” (p.182-183).

23 KÜMPEL, Siegfried. Direito do Mercado de Capitais – do ponto de vista do direito europeu, alemão e brasileiro – introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.177. A “capacidade funcional do mercado” seria exercida por meio da intermediação das sociedades corretoras e dos bancos, garantindo que a oferta e a demanda de seus clientes sejam levadas ao mercado.

24 EIZIRIK, Nelson et al. Mercado de capitais – regime jurídico. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.18.

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Apesar de aparentemente opostas, pode se verificar que as visões acima mostram significativa preocupação em promover a confiança no mercado, mesmo se defendendo objetivos diversos. E é de se louvar tal preocupação, haja vista que a idoneidade das operações e a representação efetiva dos interesses dos investidores são juridicamente relevantes, além de extremamente salutares para todos os envolvidos25.

Mas para se analisar o contrato com adequação, é preciso, primeiramente, fazer a distinção entre a atividade de administração de valores mobiliários (seja por meio de fundos de investimento – em conjunto com outros investidores, ou por meio de aquisição direta de papéis) e a de simples gestão de uma determinada carteira de investimentos, mesmo que atrelada a uma determinada política de investimentos a ser executada26.

A administradora de valores mobiliários é legalmente responsável pelo patrimônio aplicado, perante o investidor e também em face dos órgãos reguladores27, desenvolvendo suas atividades dentro de um contexto privatista, na sua relação contratual, e publicista, sob o aspecto fiscalizatório28. A descrição não reflete com inteireza a complexidade da atividade, mas apenas capta o que ela tem de mais relevante para a presente abordagem, mais especificamente no seu aspecto jurídico.

25 Nesse sentido, ver parecer de JUDITH MARTINS-COSTA, publicado na Revista de Direito Mercantil,

Industrial, Econômico e Financeiro (ano 44, n.140, out.-dez. 2005), que expõe com propriedade a importância da proteção da confiança no tráfico negocial, e não só para fins de observância de preceitos morais ou sociais: “Quanto maior o grau de confiança na conduta alheia, maior tenderá a ser o nível de integração econômica e, com isso, de eficiência e desenvolvimento”.

26 ROCHA, Tatiana Nogueira da. Fundos de investimento e o papel do administrador: a indústria dos Fundos no mercado brasileiro e a liberdade para agir, os poderes e obrigações dos seus administradores. São Paulo: Textonovo, 2003, p.101.

27 São diversos os requisitos da legislação pertinente para se operar no mercado de administração de valores mobiliários, desde o credenciamento no Sistema de Informações do Banco Central – SISBACEN (Circular nº 2.616/95), passando por vedações à administração por pessoas físicas, e chegando até a imposição de valores mínimos de capital realizado e de patrimônio líquido para a sociedade administradora.

28 A gestão da carteira de investimentos é atividade inerente a profissionais altamente especializados do mercado financeiro, que têm por função primordial definir o momento adequado de compra ou venda de papéis mobiliários, de acordo com a política de investimentos preestabelecida pelo fundo ou pelo investidor, individualmente. Ou seja, das aplicações que foram confiadas à administradora (lato sensu), caberá a seu corpo técnico gerir e manejar tais recursos (stricto sensu), dentro das oportunidades a serem encontradas no mercado de capitais.

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Nestes termos, a administração de valores mobiliários tem por fundamento legal basilar os artigos 23 a 25 da Lei nº 6.385/76, que tratam da administração de carteiras e custódia de valores mobiliários29.

E em complemento a tais disposições, a questão é regulamentada pela Instrução CVM nº 306/99, que define em seu artigo 2º a administração de carteira de valores mobiliários como sendo a gestão profissional de recursos ou valores mobiliários, sujeitos à fiscalização da Comissão de Valores Mobiliários, entregues ao administrador, com autorização para que este compre ou venda títulos e valores mobiliários por conta do investidor. É neste âmbito que o administrador profissional de carteira de valores mobiliários exercerá suas atividades, desde que autorizado pela CVM, uma vez preenchidos os requisitos dos artigos 4º a 8º de tal diploma.

Na mesma Instrução, o inciso III do artigo 14 delimita a questão, impondo ao administrador de carteira de valores mobiliários, como regra de conduta, entre outras tantas, a de cumprir fielmente o contrato firmado com o cliente, a ser firmado prévia e obrigatoriamente por escrito.

Por conta de tal dispositivo, o contrato a ser firmado entre administrador e investidor deve conter as características básicas dos serviços a serem prestados, entre as quais se incluem: a) a política de investimentos a ser adotada, que deve estar de acordo com o perfil do investidor, a sua situação financeira e com os seus objetivos; b) a remuneração cobrada pelos serviços; c) as informações sobre outras atividades que o próprio administrador exerça no mercado e os potenciais conflitos de interesse existentes entre tais atividades e a administração da 29 Art. 23. O exercício profissional da administração de carteiras de valores mobiliários de outras

pessoas está sujeito à autorização prévia da Comissão. § 1º. O disposto neste artigo se aplica à gestão profissional e recursos ou valores mobiliários entregues ao administrador, com autorização para que este compre ou venda valores mobiliários por conta do comitente. § 2º. Compete à Comissão estabelecer as normas a serem observadas pelos administradores na gestão de carteiras e sua remuneração, observado o disposto no art. 8º, inciso IV. Art. 24. Compete à Comissão autorizar a atividade de custódia de valores mobiliários, cujo exercício será privativo das instituições financeiras e das entidades de compensação e liquidação. Parágrafo único. Considera-se custódia de valores mobiliários o depósito para guarda, recebimento de dividendos e bonificações, resgate, amortização ou reembolso, e exercício de direitos de subscrição, sem que o depositário tenha poderes, salvo autorização expressa do depositante em cada caso, para alienar os valores mobiliários depositados ou reaplicar as importâncias recebidas. Art. 25. Salvo mandato expresso com prazo não superior a um ano, o administrador de carteira e o depositário de valores mobiliários não podem exercer o direito de voto que couber às ações sob sua administração ou custódia.

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carteira de valores mobiliários; d) os riscos inerentes aos diversos tipos de operações com valores mobiliários nos mercados de bolsa, de balcão, nos mercados de liquidação futura e nas operações de empréstimo de ações que pretenda realizar com os recursos do investidor, explicitando que a aplicação em derivativos pode resultar em perdas superiores ao investimento realizado; e) a autorização, se for o caso, para que o administrador assuma a contraparte das operações, conforme disposto no art. 16, sendo que, no caso de cliente pessoa jurídica, deve ser indicado, por escrito, ao administrador, o nome da pessoa natural com poderes para tal autorização; e f) o conteúdo e a periodicidade das informações a serem prestadas pelo administrador ao cliente.

Além disso, o administrador de carteira de valores mobiliários se submete às vedações previstas no artigo 16 da Instrução CVM nº 306/9930, que, tal como ocorre com as regras de conduta que lhe são exigidas, limitam

30 Instrução CVM nº 306/99, artigo 16: É vedado ao administrador de carteira:

I – atuar como contraparte, direta ou indiretamente, em negócios com carteiras que administre, exceto nos seguintes casos: a) quando se tratar de administração de carteiras individuais e houver autorização, prévia e por escrito, do respectivo titular; b) quando, embora formalmente contratado como administrador de carteira, não detenha, comprovadamente, poder discricionário sobre a mesma e não tenha conhecimento prévio da operação. II – proceder a qualquer tipo de modificação relevante nas características básicas dos serviços que presta, exceto quando houver autorização, prévia e por escrito, do titular da carteira; III – fazer propaganda garantindo níveis de rentabilidade, com base em desempenho histórico da carteira, ou de valores mobiliários e índices do mercado de capitais; IV – fazer quaisquer promessas quantificadas quanto a retornos futuros da carteira; V – conceder empréstimos ou adiantamentos, ou abrir créditos sob qualquer modalidade, usando, para isso, os recursos que administra, salvo em se tratando de concessão a terceiros de empréstimo de ações para a realização de operações nos mercados autorizados a funcionar pela CVM, desde que haja autorização, prévia e por escrito, do titular da carteira; VI – promover negociações com os valores mobiliários das carteiras que administra, com a finalidade de gerar receitas de corretagem para si ou para terceiros; VII – negligenciar, em qualquer circunstância, a defesa dos direitos e interesses do titular da carteira, ou omitir-se em relação à mesma; e VIII – promover operações cujo objetivo consista em burlar a legislação fiscal e/ou outras normas legais e regulamentares, ainda que tais negócios aumentem a valorização da carteira administrada. Parágrafo único. Nos casos de distribuição pública em que a pessoa jurídica responsável pela administração da carteira de valores mobiliários participe do consórcio de distribuição, admitir-se-á a subscrição de valores mobiliários para a carteira administrada, desde que em condições idênticas às que prevalecerem no mercado ou em que o administrador contrataria com terceiros, devendo o fato ser informado imediatamente à CVM.

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o seu espaço de atuação, com consequências diretas para o regramento contratual.

E também merece destaque a prática negocial do mercado, como se vê compilada nos Códigos de Autorregulação da Associação Nacional dos Bancos de Investimento – ANBID, instituídos no ano de 2000. O Código de Autorregulação da ANBID para Serviços Qualificados ao Mercado de Capitais estipula, em seu artigo 17, que o contrato para a prestação de qualquer dos serviços por ele disciplinados deverá conter obrigatoriamente, no mínimo, disposições sobre: descrição de procedimentos operacionais que disponham sobre as obrigações das partes e contenham, no mínimo, os horários a serem cumpridos pelas partes e a metodologia de troca de informações; infrações e penalidades; descrição dos serviços; prazo de vigência do contrato; cláusula de remuneração do serviço, incluindo o detalhamento da metodologia aplicada; previsão de custos a serem reembolsados pelos clientes e que não constituem taxa de prestação do serviço objeto do contrato; termo de confidencialidade das informações; e responsabilidade do prestador de serviços por eventuais perdas e/ou danos resultantes de dolo, fraude e/ou culpa relativos aos serviços prestados por ele próprio e/ou por terceiros por ele contratados.

Estas exigências, ainda que sem coercitividade jurídica, revelam um mínimo contratual que é tido consensualmente pelo mercado de capitais como o adequado para a formalização de avenças de tal natureza.

Todas estas limitações regulamentares ao âmbito de atuação do administrador de valores mobiliários se fazem presentes com o intuito de minimizar os riscos a que estão expostos os investidores em valores mobiliários, ou ao menos bem informar o contratante das peculiaridades do investimento. Mas, mesmo com tudo isso, tais papéis ainda assim pressupõem a assunção de risco, onde o sucesso está vinculado à sorte do investimento31.

Ainda que revestidos de alta técnica, a atividade de administração de valores mobiliários se mostra de resultados evidentemente aleatórios. São variáveis de política econômica, de administração de empresas, de contextos mercadológicos, de cunhos sociopolíticos, ou de quaisquer outros fatores que possam ter reflexos na economia de mercado. Por tudo isso, há fácil enquadramento com a noção clássica de contrato aleatório, com a

31 MATTOS FILHO, Ary Oswaldo. O conceito de valor mobiliário. Revista de Direito Mercantil,

Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, ano 24, n.59, p.45, jul.-set. 1985.

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inerente noção de risco, sendo determinados o preço de compra, a qualidade e a quantidade dos valores mobiliários adquiridos, mas indeterminado o seu valor de revenda32.

É verdade que a oposição de interesses entre os contratantes pode ser minorada em face da estipulação de remuneração do administrador como proporção dos ganhos auferidos, mas tal medida não traz qualquer elemento de comutatividade às prestações das partes. Mesmo que a relação esteja permeada de confiança, colaboração e alteridade, ainda assim a remuneração e o serviço prestado não necessariamente vão se equivaler.

PONTES DE MIRANDA já destacava que a empresa de investimento pode se utilizar da concepção do trust, com a propriedade fiduciária entregue ao trustee, que opera em benefício dos que lhe confiaram a atividade. A propriedade do que se entrega para investimento pode ser transferida a outra pessoa, com cláusula de resilição, com a fiduciaridade, ou ainda sem transferência da propriedade, com outorga de poderes de gestão. Mas a relação jurídica entre os investidores e a sociedade de investimento é bem mais complexa. Não é a de mediação, nem de intermediação; não se trata de presentação ou de mandato (intermediariedade), porque lhe faltam alguns elementos e tem outros a mais. A outorga de poderes, no negócio jurídico entre o cliente e a sociedade de investimento, antecede à atividade, como acontece no contrato de mediação; mas, naquele, não fica protraída a conclusão dos contratos entre a sociedade de investimento e os terceiros. E os clientes de modo nenhum se põem em contato com as pessoas com quem a sociedade de investimentos trate33.

Especificamente no tocante aos fundos de investimento, PETER ASHTON defende que a relação jurídica se daria, ao mesmo tempo, por meio de um contrato de mandato entre a companhia de investimentos administradora e os inversores, submetido ao regramento da comissão mercantil; de um contrato de depósito da carteira de títulos do fundo, entre uma instituição financeira e a companhia de investimentos, submetida a um regulamento de administração; e de um condomínio ativo e permanente,

32 ADIERS, Leandro Bittencourt. Valores mobiliários, especulação e consequências jurídicas. Revista

de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, ano 40, n.121, jan.-mar. 2001. 33 PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, t.51,

p.288-296.

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entre os investidores, sobre os valores mobiliários que foram fracionados nas cotas por eles adquiridas34.

Deste modo, e em consonância com os estudos na área, é impositiva a noção de que o contrato de administração de valores mobiliários é não só atípico e aleatório, mas altamente complexo.

As práticas de mercado exigem a visão do contrato como operação econômica destinada à circulação de riquezas, tal como defendido por ENZO ROPPO, cabendo a prudente análise para se definir quem assume os riscos, e como se categorizam as circunstâncias que alteram o equilíbrio econômico do contrato, sem prejulgamentos.

Portanto, deve ser considerada adequadamente a inerência do risco à aplicação, uma vez devidamente alertado o investidor, ressalva esta que já indica que não se exime o administrador de responsabilidade por qualquer perda sofrida pelo seu cliente, analisando-se com atenção estes deveres anexos à relação principal de administração de valores mobiliários.

II – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADMINISTRADOR DE VALORES MOBILIÁRIOS

O contexto em que está sendo abordada a questão exige uma análise mais cuidadosa da responsabilidade civil sobre os contratos em tela.

O artigo 17 da Instrução CVM nº 306/99 determina expressamente que a pessoa natural ou jurídica, no exercício da atividade de administração de carteira de valores mobiliários, é diretamente responsável, civil e administrativamente, pelos prejuízos resultantes de seus atos dolosos ou culposos e pelos que infringirem normas legais, regulamentares ou estatutárias35.

Quanto aos fundos de investimento, a Circular BACEN nº 2.616/95 determina, em seu artigo 2º, inciso II, que, nas instituições admitidas a

34 ASHTON, Peter Walter. A natureza jurídica dos fundos abertos de investimento. Porto Alegre: Emma,

1968, p.84. 35 Merece referência a Lei nº 7.913/89, que dispõe sobre a ação civil pública de responsabilidade por

danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários, com destaque para o seu artigo 2º, onde se determina que as importâncias decorrentes da condenação reverterão aos investidores lesados, na proporção de seu prejuízo, demonstrando que, mesmo diante de objetivos metaindividuais, há flagrante intenção de se promover a proteção do investidor. Nesse sentido, TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. A Lei 7.913, de 7 de dezembro de 1989 – A tutela judicial do mercado de valores mobiliários. Revista dos Tribunais, ano 80, v.667, p.70-78, maio 1991.

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administrá-los (artigo 6º)36, deverá se proceder à designação de membro estatutário da administração da instituição administradora, tecnicamente qualificado, para responder, civil e criminalmente, pela gestão, supervisão e acompanhamento do fundo, bem como pela prestação de informações a esse relativas. O inciso II do parágrafo único do mesmo artigo ainda destaca a responsabilidade do administrador inclusive perante terceiros, pela ocorrência de situações que indiquem fraude, negligência, imprudência ou imperícia na administração do fundo.

Mas o problema se instala quando se procede à avaliação da conduta técnica do gestor. A assunção de riscos tem fundamento e se faz mais presente quando há busca por maiores ganhos, já que são nos papéis mais depreciados que estão as maiores perspectivas de valorização. Esta é a lógica do mercado, de modo que os valores mobiliários reconhecida e notoriamente tidos por rentáveis, capazes de oferecer menores riscos e maiores garantias de remuneração, por isso mesmo terão alto preço.

O questionamento mais intrincado se dá sobre onde se inicia a responsabilidade do administrador quando as perdas se fazem presentes, e o investidor vê frustrada a sua ideia de valorização do capital empregado, quando justamente ele que optou e assumiu os maiores riscos.

A) As Perdas Financeiras nos Investimentos em Valores Mobiliários

É no contexto jurídico acima exposto que devem ser tratados os prejuízos em aplicações dessa natureza. A questão é relevante, principalmente em face dos resultados conturbados nas bolsas de valores de todo o mundo, provocando a avaliação sobre a existência ou não de culpa dos administradores em face de tais perdas.

Há quem mencione a corrente doutrinária que defende o entendimento de que a responsabilidade dos administradores de instituições financeiras seria objetiva. Mas quem o faz apenas pretende referendar a posição contrária, uma vez que não há previsão legal

36 Circular BACEN nº 2.616/95, artigo 6º: A administração do fundo pode ser exercida por banco

múltiplo, banco comercial, caixa econômica, banco de investimento, sociedade de crédito, financiamento e investimento, sociedade corretora de títulos e valores mobiliários ou sociedade distribuidora de títulos e valores mobiliários.

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prevendo-a, mas justamente o contrário, havendo claros parâmetros de indicação do elemento culpa37.

Em se tratando de fundos de investimento, o administrador capta poupança mediante a venda de cotas que estão sob sua administração, e aplica os recursos resultantes dessa venda nos ativos financeiros admitidos na política de investimentos38. É inerente o caráter fiduciário, pois o administrador age em benefício dos cotistas, a ponto de os recursos dos fundos de investimento deverem ser protegidos de qualquer dificuldade financeira que a instituição administradora possa ter39.

É por isso que o Código de Autorregulação da ANBID para os Fundos de Investimento, ao tratar da sua administração, prescreve que a busca pela maior performance possível somente poderá se dar dentro dos termos previstos no regulamento e no prospecto do fundo, observando-se sempre a política de investimentos previamente fixada40.

37 PERRICONE, Sheila. Fundos de Investimento: A política de investimento e a responsabilidade dos

administradores. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, RT, ano 4, n.2, p.96, jan.-mar. 2001.

38 A doutrina trata da vinculação das atividades dos administradores aos prospectos dos fundos de investimento, como destacado em: MONTEIRO, Jorge Ferreira Sinde. Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações. Coimbra: Almedina, 1989, p.102 et seq.

39 ROCHA, Tatiana Nogueira da. Fundos de investimento e o papel do administrador: a indústria dos Fundos no mercado brasileiro e a liberdade para agir, os poderes e obrigações dos seus administradores. São Paulo: Textonovo, 2003, p.99.

40 Art. 28. A gestão compreende o conjunto de decisões que, executadas com observância dos termos do Regulamento e do Prospecto, determinam a performance do Fundo de Investimento. § 1º. A gestão dos Fundos de Investimento deve ser exercida por gestor que esteja devidamente autorizado pela CVM para o exercício da atividade de administração de carteira de valores mobiliários. § 2º. A Instituição Participante gestora do Fundo de Investimento é responsável: I – pelas decisões de investimento e desinvestimento, segundo a política de investimento estabelecida nos respectivos Regulamentos e Prospectos; II – pelas respectivas ordens de compra e venda de ativos financeiros e demais modalidades operacionais; e III – pelo envio das informações relativas a negócios realizados pelo Fundo de Investimento ao administrador do Fundo ou ao prestador de serviço contratado para tal. Art. 29. O Regulamento e o Prospecto dos Fundos de Investimento devem indicar o gestor do respectivo Fundo de Investimento, bem como fazer menção à sua qualificação e registro junto à CVM. Parágrafo único. Além de figurar no Regulamento e no Prospecto, deve haver contrato específico formalizando a relação entre gestor e administrador, se este último não for o responsável pela gestão do Fundo de Investimento. Art. 30. Sem prejuízo das determinações contidas no art. 28, o Regulamento pode prever a existência de Conselho Consultivo, Comitê Técnico ou Comitê de Investimentos, no formato definido na regulamentação vigente, pelos quais o cotista pode encaminhar sugestões relativas à

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Dessa forma, não há que se falar em culpa por depreciação de ativos de carteira de investimentos que resultar das oscilações do seu preço de mercado. Tais perdas são um risco que os investidores assumem ao ingressarem em tais fundos41. Daí advém a já destacada natureza aleatória do contrato de administração de valores mobiliários, pois não há qualquer garantia quanto ao retorno dos investimentos42.

E o risco que estamos tratando é específico, pois os ativos mobiliários de uma carteira de investimentos certamente estão expostos a outros riscos que não só o de mercado, decorrentes das oscilações de preços. Não que estes outros não sejam relevantes, apenas não constituem o nosso presente objeto de estudo43.

Mesmo com o aumento dos esforços de regulação do mercado de capitais, tais controles podem reduzir os riscos dos investidores, mas isso não significa que seja possível a sua eliminação, pois são da essência do mercado de capitais. Ao alcance da ciência do direito estaria apenas o combate àqueles riscos que são decorrentes de comportamentos ilícitos, pois os riscos dos investimentos em títulos de renda variável seriam eliminados ou ao menos combatidos com práticas comerciais ou de administração que

aplicação da política de investimento ao gestor, desde que sem interferência na gestão do Fundo de Investimento. Parágrafo único. As sugestões de tais organismos devem ser sempre formalizadas em ata e comunicadas ao administrador do Fundo de Investimento e, caso este não seja também responsável pela gestão da carteira do Fundo, ao respectivo gestor. Art. 31. O Regulamento de um Fundo de Investimento deve ser claro e objetivo quanto à política de investimentos, incluindo as faixas de alocação de ativos, limites de concentração e a maneira pela qual se dá o processo de análise e seleção dos mesmos, sendo vedado estabelecer: I – exceção a parâmetros objetivos da política de investimentos, mesmo que vinculada à anuência dos cotistas; e II – a possibilidade de realização de operações não previstas ou vedadas de forma objetiva, sem que haja a respectiva alteração no Regulamento, incluída aí a mudança nas faixas de alocação de ativos, mesmo que as operações de que ora se trata sejam pontuais e praticadas com autorização expressa dos cotistas.

41 PERRICONE, Sheila. Fundos de Investimento: A política de investimento e a responsabilidade dos administradores. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, RT, ano 4, n.2, p.96, jan.-mar. 2001.

42 EIZIRIK, Nelson et al. Mercado de capitais – regime jurídico. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.8. 43 PERRICONE, Sheila. Fundos de Investimento: A política de investimento e a responsabilidade dos

administradores. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, RT, ano 4, n.2, p.87, jan.-mar. 2001. A autora cita o risco de crédito (como o caso de inadimplemento do emissor), o de liquidez (em face da dificuldade de venda de um ativo que compõe a carteira), o legal (pela não observância das formalidades necessárias para conferir segurança jurídica àquele crédito) e o operacional, diretamente ligado à gestão do fundo, por conta de procedimentos inadequados de controle ou errôneas avaliações de risco, aqui tratado em destaque.

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garantissem retornos ao aplicador44, o que é até difícil de se imaginar ser possível.

A especulação, por si só, não pode ser tida a priori como atividade potencialmente causadora de danos. Pelo contrário, são vários os estudos que abordam a importância do papel econômico da especulação e sua licitude45, com sua inerente audácia, sua racionalidade própria, onde se assumem riscos em busca de uma rentabilidade compensadora, mas por isso mesmo exposta a perdas e ganhos maiores do que aqueles investimentos mais conservadores.

Mas como as aplicações de caráter especulativo são baseadas em presunções, ainda que derivadas de avaliações concretas, estão sujeitas a equívocos e a alto risco, pois não há como se anteciparem com segurança movimentos macroeconômicos, mercadológicos ou mesmo de gestão do negócio46.

O que se exige, portanto, é que a administração dos valores mobiliários se dê dentro dos limites preestabelecidos pela política de investimento, e que sejam seguidas as regras de conduta que garantam a confiabilidade do mercado e que reflitam o zelo para com os interesses dos investidores.

Justamente em face da aleatoriedade do contrato, são extremos os casos em que perdas financeiras nos investimentos podem ser imputadas aos administradores. Por isso, ganha importância a contratação formal dos serviços de administração de valores mobiliários, como forma de estipular exaustivamente as obrigações e direitos das partes e o perfil de investimentos nos quais serão alocados os recursos.

Mesmo depois da definição de que as instituições financeiras estão submetidas às disposições do Código de Defesa do Consumidor47, a eventual hipossuficiência do investidor não pode servir de justificativa para se imputarem incondicionalmente aos administradores as perdas que são

44 Ibid., p.18-19. 45 SPERCEL, Thiago. Teoria dos jogos aplicada à responsabilidade civil dos administradores de

instituições financeiras. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, ano 43, n.135, jul.-set. 2004.

46 ADIERS, Leandro Bittencourt. Valores mobiliários, especulação e consequências jurídicas. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, ano 40, n.121, p.165, jan.-mar. 2001.

47 Nesse sentido, STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2591-1, e STJ, Súmula nº 297, e Recursos Especiais nºs 729.887-RJ e 475.067-RJ.

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inerentes às oscilações do mercado de capitais48. Não ao menos quando da contratação bem informada e devidamente esclarecida, onde os serviços prestados seguiram o perfil de investimentos que o próprio aplicador escolheu.

Sintetizando, a inevitabilidade do risco, a recusa a paternalismos e a autorresponsabilização do investidor certamente mitigam o alcance da responsabilização do administrador49, como limites à proteção que merece o aplicador, que passaremos a tratar a seguir.

Portanto, o risco é intrínseco ao investimento e é frequente a falta de conhecimento técnico do investidor acerca do negócio, mas nada disso exime o administrador de adotar uma série de medidas para exercer suas atividades com correção e de modo a afastar definitivamente qualquer responsabilidade pelas perdas financeiras dos seus contratantes.

B) Dever de Proteger o Investidor

A doutrina que trata especificamente do direito financeiro e do mercado de capitais dá ênfase à obrigação do administrador de salvaguardar interesses dos investidores, como dever inarredável de conduta. E a questão é muito mais relevante para os pequenos aplicadores.

Assim, aqueles que prestam serviços referentes a valores mobiliários devem fazê-lo com os necessários cuidados, evitando-se na medida do possível os conflitos de interesses. Tais deveres de conduta se sobreporiam às próprias determinações legais sobre a compra e venda de valores mobiliários, de tal modo coercitivos que fique garantida a confiança do investidor na regularidade, lealdade e integridade dos mercados de capitais. Isto porque sem uma suficiente proteção da confiança a capacidade funcional dos mercados de valores mobiliários poderia ser posta em risco50.

Por isso, há na doutrina a classificação destes específicos deveres de conduta em duas categorias distintas, os gerais e os especiais51. Os deveres

48 Nesse sentido: VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Notas sobre o regime jurídico das ofertas ao

público de produtos, serviços e valores mobiliários no direito brasileiro – Uma questão de complementação da proteção de consumidores e investidores. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: ano 36, n. 105, jan.-mar. 1997.

49 RODRIGUES, Sofia Nascimento. A protecção dos investidores em valores mobiliários. Coimbra: Almedina, 2001, p.33.

50 KÜMPEL, Siegfried. Direito do Mercado de Capitais – do ponto de vista do direito europeu, alemão e brasileiro – introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.183-184.

51 Ibid., p.204 et seq.

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gerais impõem ao contratado conhecimentos técnicos, zelo e senso de responsabilidade, sempre se pautando sua atuação no interesse de seus clientes. Implicam também deveres de informação, bem como a obrigação de se evitarem conflitos de interesses, no caso da administração de valores mobiliários de investidores institucionais de grande porte, que exigem tratamento preferencial, ou ainda quando o administrador representa, concomitantemente, emitentes e compradores de um mesmo título.

E os deveres especiais de comportamento seriam os de regramento para a utilização de análises técnicas sérias de valores mobiliários, com vistas a passar para o investidor o seu esmero, neutralidade e integridade, e ainda os de custódia segregada dos valores dos clientes, evitando confusão com o patrimônio do administrador52.

Para bem tratar da questão, a já citada Instrução CVM nº 306/99, em seu artigo 14, define regras de conduta a serem observadas pelo administrador de carteira de valores mobiliários. Estipula-se, entre outras medidas, a vinculação aos objetivos de investimento, sempre com probidade e diligência, nos estritos termos do contrato que deve ser firmado com o investidor, evitando práticas que possam ferir a relação fiduciária mantida com seus clientes, e prestar as informações que lhe forem solicitadas pelo titular da carteira, pertinentes aos valores mobiliários integrantes da carteira administrada53.

52 No mesmo sentido: ADIERS, Leandro Bittencourt. Valores mobiliários, especulação e

consequências jurídicas. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, ano 40, n.121, p.173-174, jan.-mar. 2001; MARTINS-COSTA, Judith, Oferta pública para a aquisição de ações (OPA) – Teoria da confiança – Deveres de proteção violados – A disciplina informativa e o mercado de capitais – Responsabilidade pela confiança – Abuso do poder de controle. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, ano 44, n.140, p.243 et seq., out.-dez. 2005.

53 Instrução CVM nº 306/99, artigo 14: A pessoa natural ou jurídica responsável pela administração da carteira de valores mobiliários deve observar as seguintes regras de conduta: I – desempenhar suas atribuições de modo a atender aos objetivos de investimento do(s) titular(es) da carteira; II – empregar, no exercício de sua atividade, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma dispensar à administração de seus próprios negócios, respondendo por quaisquer infrações ou irregularidades que venham a ser cometidas sob sua gestão; III – cumprir fielmente o contrato firmado com o cliente, prévia e obrigatoriamente por escrito, o qual deve conter as características básicas dos serviços a serem prestados, dentre as quais se incluem: a) a política de investimentos a ser adotada, que deve estar de acordo com o perfil do investidor, a sua situação financeira e com os seus objetivos; b) a remuneração cobrada pelos serviços;

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O dever de consideração para com o alter, a boa-fé e a confiança como base do tráfico jurídico54 se concretiza, em grande parte, no dever de informação (para nosso estudo, do administrador), a que corresponde um direito subjetivo da contraparte (o investidor), e ainda um dever de se informar desta, como limite àquele primeiro ônus55.

O direito à informação pode inclusive ser necessário para a realização de um direito primário, como a própria definição ou não da contratação, uma vez não tendo o investidor acesso à informação sem a ajuda do administrador, que não só pode fornecê-la com facilidade, mas decorre de um dever anexo à relação contratual que está por se formar56.

A doutrina civilista desenvolveu o conceito de dever pré-contratual de informação que deve ser imposto também ao administrador de valores mobiliários, implicando prestação de informações, conselhos e recomendações ao interessado em investir em papéis de tal natureza. Por isso, a informação acerca de valores mobiliários, ofertas públicas, seus mercados e atividade de intermediação, suscetível de influenciar as decisões

c) as informações sobre outras atividades que o próprio administrador exerça no mercado e os potenciais conflitos de interesse existentes entre tais atividades e a administração da carteira de valores mobiliários; d) os riscos inerentes aos diversos tipos de operações com valores mobiliários nos mercados de bolsa, de balcão, nos mercados de liquidação futura e nas operações de empréstimo de ações que pretenda realizar com os recursos do investidor, explicitando que a aplicação em derivativos pode resultar em perdas superiores ao investimento realizado; e) a autorização, se for o caso, para que o administrador assuma a contraparte das operações, conforme disposto no art. 16, sendo que, no caso de cliente pessoa jurídica, deve ser indicado, por escrito, ao administrador, o nome da pessoa natural com poderes para tal autorização; e f) o conteúdo e periodicidade das informações a serem prestadas pelo administrador ao cliente; IV – evitar práticas que possam ferir a relação fiduciária mantida com seus clientes; V – manter atualizada, em perfeita ordem e à disposição do cliente, toda a documentação relativa às operações com valores mobiliários integrantes das carteiras sob sua gestão; VI – manter em custódia, em entidade devidamente habilitada para tal serviço, os valores mobiliários integrantes das carteiras sob sua gestão, tomando todas as providências úteis ou necessárias à defesa dos interesses dos seus clientes; VII – transferir à carteira qualquer benefício ou vantagem que possa alcançar em decorrência de sua condição de administrador de carteira; e VIII – prestar as informações que lhe forem solicitadas pelo titular da carteira, pertinentes aos valores mobiliários integrantes da carteira administrada.

54 COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976, p.29 e 44. 55 FABIAN, Christoph. O dever de informar no direito civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 56 Ibid., p.106-107.

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dos investidores, deve ser completa, atual, clara, objetiva e lícita, comumente divulgada por meio de prospectos57.

Pode se dizer que estes deveres advêm por conta da característica que se tem como inerente ao investidor em valores mobiliários: a sua falta de conhecimentos técnicos especializados acerca do empreendimento58. A proteção legal, construindo tal arcabouço de obrigações para o administrador, é decorrência desta presumida fragilidade do aplicador.

Alargado o papel dos deveres acessórios em face do que MENEZES

CORDEIRO chama de complexidade intraobrigacional, a boa-fé deve pautar constantemente a relação entre as partes, constituindo-se como regra de conduta inarredável que deve também ser aplicável ao administrador de valores mobiliários, como fundamento de inadmissibilidade de abusos de direito e de comportamentos contraditórios, e em garantia mediata da ordem econômica59.

Desta forma, mesmo que, para alguns, a finalidade principal do chamado direito do mercado de capitais não seja a proteção do investidor, ainda assim é fundamental fazê-lo, do que decorre a responsabilização do administrador quando haja uma evidente violação de disposição legal que visa a esta tutela específica. Mas sempre se levando em consideração que onde se assume risco, consentidamente, os danos eventualmente sofridos geralmente não podem ser atribuídos a terceiros; devem ser assumidos na medida em que se concorreu para a sua ocorrência60.

Por isso se impõe fazer referência ao ônus de autoinformação, que não constitui necessariamente um dever, mas uma faculdade do interessado, que a exercerá, se quiser, com os evidentes ganhos. O investidor que percorre os meandros do mercado com desenvoltura certamente tem mais elementos para fundamentar suas escolhas. Por isso, o dever de informação do administrador deve ser contemporizado, pois lhe é

57 DA SILVA, Eva Sónia Moreira. Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação.

Coimbra: Almedina, 2003, p.163. 58 MATTOS FILHO, Ary Oswaldo. O conceito de valor mobiliário. Revista de Direito Mercantil,

Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, ano 24, n. 59, p.46, jul.-set. 1985. 59 MENEZES CORDEIRO, António M. da Rocha. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001,

p.586 et seq. 60 MONTEIRO, Jorge Ferreira Sinde. Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações.

Coimbra: Almedina, 1989, p.459 et seq.

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exigível “quando a parte que poderia ser credora da prestação da informação cumpriu o seu ónus de auto-informação, ou seja, fez tudo o que se encontrava razoavelmente ao seu alcance para se auto-informar”61.

De qualquer forma, tem se falado na existência de um princípio de proteção dos investidores não institucionais, com benefícios ao próprio funcionamento do mercado, denotando como seu fundamento o interesse público, a segurança e a igualdade (informativa e de oportunidades). E como medida geral de proteção dos investidores62, ou mesmo dos potenciais aplicadores que ainda sequer fizeram aportes a este título, é primordial fomentar a sua plena informação, e as prováveis graves consequências da sua recusa63.

Daí a necessidade de leitura do inciso III do artigo 14 da Instrução CVM 306/99 com a extensão necessária. O dever de fiel observância do contrato, quanto à política de investimentos a ser adotada, deve estar de acordo com o perfil do investidor, a sua situação financeira e com os seus objetivos (alínea a), implicando troca de informações entre administrador e investidor que levem em consideração, especificamente: a) a segurança almejada, de acordo com a intenção especulativa ou o propósito poupador meramente previdente; b) a prescindibilidade dos recursos, verificando se o aporte é resultado de excedentes de capital ou produto de sacrifícios e restrições financeiras; e c) a necessidade de sua resgatabilidade, quando não se conta tão cedo com o capital investido ou se pode vir a ser necessário retomá-lo a curto prazo.

Sendo assim, nem toda a proteção será capaz de mitigar os riscos a que estão expostas as aplicações em valores mobiliários, mas, uma vez garantido que a sua administração esteja confiada a quem aja com competência e probidade, a informação adequadamente trocada serve de ferramenta mais eficaz em prol dos interesses do investidor.

61 DA SILVA, Eva Sónia Moreira. Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação.

Coimbra: Almedina, 2003, p.122. 62 RODRIGUES, Sofia Nascimento. A protecção dos investidores em valores mobiliários. Coimbra:

Almedina, 2001. 63 Uma vez observados os deveres de informação pelo administrador, e mantendo-se silente o

investidor, ou nada opondo, revela-se evidente manifestação de vontade de contratar. Nesse sentido: FRADERA, Véra Jacob de. O valor do silêncio no novo código civil. In: ALVIM, Arruda; CÉSAR, Joaquim Portes de Cerqueira; ROSAS, Roberto (coord.). Aspectos controvertidos do novo código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.569-596.

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CONCLUSÃO

Desta forma, fica evidenciada, como já destacava CLÓVIS DO COUTO E SILVA, a ambivalência de interesses públicos e privados no regramento do mercado de capitais, mais especificamente no tocante à administração de valores mobiliários, com repercussões diretas sobre o contrato de administração de carteiras de valores mobiliários.

Mas o entendimento de que o aplicador, principalmente o de pequeno porte, tem inerente hipossuficiência e desconhecimento técnico com relação ao administrador, não releva a complexidade e o risco que acompanham todo e qualquer investimento em valores mobiliários.

A questão é mais complexa que a simples situação de inferioridade de um contratante aderente em situação de disparidade de poder. Conforme visto, os deveres de informação do administrador e a pressuposição da confiança do investidor na capacidade técnica do contratado não são suficientes para delimitar a responsabilidade pelas eventuais perdas financeiras.

TERESA NEGREIROS, citando EROS ROBERTO GRAU, aponta que o direito contratual contemporâneo, não apenas por parte da doutrina, mas também da jurisprudência, “a pretexto de proteger contratantes que nada têm de hipossuficientes, vem atentando contra a certeza e a segurança jurídicas”, cabendo ao Estado apenas o papel de terceiro regulador e de árbitro64. É preciso, portanto, verificar onde há abusos do administrador ou assunção consciente de riscos pelo investidor.

Mas é evidente que esta concepção não serve de proteção para operações irregulares, como mostra o caso do Banco Santos. Submetida a intervenção do Banco Central em novembro de 2004, a instituição financeira, seu controlador, Edemar Cid Ferreira, e outros 11 executivos ligados ao grupo foram penalizados pela CVM no inquérito que apurou emissões irregulares de debêntures e o descumprimento das normas de administração e gestão de fundos de investimentos65.

Desta forma, sem se proceder à ruptura da teoria contratual clássica, se deve atentar apenas para a vontade das partes ao longo da execução do 64 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,

p.278. 65 Conforme reportagem de Monica Ciarelli, no caso em tela, as multas aplicadas somaram R$ 667,5

milhões, em 2008. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/economia,cvm-aplica-multas-recordes-ao-banco-santos-e-a-cid-ferreira,284052,0.htm>. Acesso em: 26 abr. 2009.

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contrato, se os resultados obtidos se coadunam com a vontade inicialmente externada e se os deveres anexos inerentes ao contrato são observados desde antes da sua formalização e durante toda a sua vigência.

Somente assim se acredita poder afastar contratações forçadas, ao mesmo tempo em que, sendo notórios os riscos, premiam-se com as maiores rentabilidades aqueles que buscarem os dados mais fidedignos e atualizados, com garantia à plena observância da boa-fé, do equilíbrio econômico e da função social como referências da atividade contratual.

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DOS EFEITOS DA SENTENÇA DECRETATÓRIA DE FALÊNCIA

NATÁLIA TAVES PIRES* JOÃO CARLOS LEAL JÚNIOR**

BRUNA MOZINI GODOY*** JANAINA LUMY HAMDAN****

1 – INTRODUÇÃO

Modernamente, a insolvência empresarial assume uma vultosidade determinante em decorrência dos interesses econômicos público e privado, sem prejuízo dos direitos sociais. As crises econômico-financeiras enfrentadas pelas empresas são decorrentes da política econômica e esta do capitalismo globalizado. Neste aspecto, o mundo empresarial desarranjado acarreta inúmeros malefícios, tais como a supervalorização do crédito, a desconfiança do mercado, a incerteza dos consumidores, a insegurança trabalhista e o desemprego, mazela social marcadamente presente no Brasil.

A criação de uma nova lei idônea a modificar e a inovar a legislação anterior obsoleta, atualizando o regime jurídico brasileiro de insolvência empresarial, buscou oferecer soluções para questões até então sem respostas, a fim de motivar a possibilidade de regeneração das empresas viáveis em estado de crise.

* Mestra em Direito pelo Centro Universitário Eurípides Soares da Rocha – Marília/SP. Especialista

em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade de Direito da Alta Paulista. Professora do Curso de Especialização em Direito Empresarial e pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina. Advogada. E-mail: [email protected].

** Discente e pesquisador da Universidade Estadual de Londrina, com projeto de Iniciação Científica pela mesma instituição. Estagiário do Ministério Público Federal – PR. E-mail: [email protected].

*** Discente e pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. Integrante da AIESEC em Londrina/PR.

**** Discente e pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina.

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Assim, a atual Lei de Recuperação de Empresas e Falência tem por objetivo assegurar a manutenção das empresas viáveis que se encontrem em crise econômico-financeira. A reestruturação empresarial proporciona novas possibilidades de satisfação dos credores, diminuição do desemprego, fortalecimento e facilitação do crédito, acabando, enfim, por poupar o mercado das consequências funestas da insuficiência dos agentes econômicos.

No direito concursal atual, os credores têm melhores perspectivas de realização de seus haveres, os fornecedores não perdem seus clientes, os empregados mantêm seus empregos e o mercado sofre menos os impactos e as repercussões da insolvência empresarial.

No momento em que emerge a insolvência de um empresário ou de sociedade empresária, vindo a ser decretada a falência, há assombroso prejuízo social, que é, naturalmente, maior do que o causado ao interesse privado dos credores. Com o surgimento do referido diploma, surge a necessidade de se observarem quais os reais motivos para a convocação dos credores para a resolução dos problemas econômico-financeiros da empresa.

Na maior parte dos casos, se a crise não encontrou uma solução de mercado, o melhor para todos é a falência, com a realocação em outras atividades econômicas produtivas dos recursos materiais e humanos anteriormente empregados na empresa falida. Deste modo, somente as empresas viáveis devem ser objeto de recuperação judicial e, neste passo, o exame de viabilidade deve ser feito pelo Judiciário, em função de vetores com importância social.

O Direito Comercial, seja dos comerciantes, seja dos atos de comércio, praticamente não existe mais. Assim, o concurso empresarial é matéria de inegável relevância econômica, que ultrapassa as fontes do direito privado.

Imperioso, destarte, analisarem-se os efeitos da sentença que decreta a falência, o que se busca neste feito.

2 – DA SENTENÇA

O vocábulo sentença vem do verbo latino sentire. Diz-se, então, que o juiz sente o fato e o direito e faz incidir o direito sobre o fato. Falir deriva do latim fallere, que significa “faltar”, e figura nos léxicos modernos como suspender os pagamentos, não ter como pagar os credores, fracassar.

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A sentença, historicamente, nada mais era do que uma opinião do juiz, muito embora tenha crescido sua importância, passando a traduzir a mais significativa das expressões da jurisdição. É, dessarte, reputada a peça crucial do processo, consubstanciando-se na prestação jurisdicional, ato pelo qual o juiz soluciona o conflito de interesses que lhe é submetido. Deve ser clara, precisa e concisa, com a devida apreciação de tudo aquilo que foi postulado pelas partes.

Considerada um dos mais importantes atos processuais, ela, de fato, expressa a soberania do Estado, evidencia a função jurisdicional, atendendo ao que é objeto do processo, à composição da lide, que se presume justa.

No que atina especificamente à sentença falimentar, esta apresenta uma peculiaridade que a distingue da sentença prolatada em um processo comum, pois o magistrado, ao reconhecer uma situação, até então unicamente de fato, decretará a falência, dando início à execução coletiva.

Enquanto nos processos ordinários a sentença constitui o ato final ao menos da fase cognitiva, é a partir da sentença que decreta a falência que se inicia o processo falimentar, instaurando-se a execução concursal do patrimônio do devedor. Por possuir tal característica, é denominada pela doutrina como uma decisum sui generis.

Quanto aos efeitos jurídicos que produz, de acordo com a doutrina clássica, a sentença pode ser classificada em declaratória1, constitutiva2 e condenatória3. A primeira está limitada a declarar a existência ou a inexistência de um direito, não ensejando uma execução; a segunda cria, extingue ou modifica certa relação jurídica; e a última envolve a obrigação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa, dando ensejo à execução4.

A decisão que decreta a falência introduz o falido e seus credores no regime jurídico-falimentar, emergindo disto seu caráter constitutivo, pois a partir de sua edição a pessoa, os bens, os atos jurídicos e os credores do empresário falido são submetidos a um regime jurídico especifico5.

Diante das concepções acima relacionadas, atinentes à classificação das sentenças, é mister salientar que as variadas correntes doutrinárias

1 A sentença declaratória retroage à data dos fatos. Gera, assim, efeitos ex tunc. 2 Tem a sentença constitutiva efeito ex nunc, ou seja, vale para o futuro. 3 Gera efeitos a partir do momento da citação válida. 4 Torna-se necessário ressaltar que todas as sentenças têm cunho declaratório, antes de serem

constitutivas ou condenatórias. 5 COELHO, Fabio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

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divergem quanto à natureza jurídica da sentença de falência, conforme será explicitado a seguir.

3 – DA NATUREZA JURÍDICA

A natureza jurídica da sentença é a de afirmação da vontade da lei, declarada pelo juiz, como órgão do Estado, aplicada a um caso concreto a ele submetido. Cuida-se de um ato de comando, lógico, envolvendo um ato de vontade e de inteligência do magistrado, na afirmação da lei, como órgão investido de jurisdição pelo Estado.

Muita discussão houve a respeito da natureza jurídica da sentença decretatória do concurso de credores. Conforme anota WALDO FAZZIO JÚNIOR6, para MATIROLLO tratava-se de sentença “anormal”; LIEBMAN considerava-a título executivo falencial; BONELLI, por seu turno, concebia a mesma como uma sentença sui generis; para CALAMANDREI, teria natureza de provimento cautelar; SATTA, por fim, reputava-a como “declaratória de consituición”, sem que houvesse unanimidade.

A doutrina pátria clássica, de regra, acreditava no duplo aspecto da sentença decretatória de insolvência: a face declaratória (CARVALHO DE MENDONÇA) e a face constitutiva (WALDEMAR FERREIRA) ou, ainda, ambas (MIRANDA VALVERDE)7.

O diploma anterior, que tratava dos institutos da falência e da concordata, Decreto-Lei 7.661, de 1945, utilizava o adjetivo “declaratória”8, o qual não condiz com a verdadeira natureza do provimento jurisdicional falimentar, pois não há um estado de falência preexistente, mas tão-somente um estado de insolvência. Se a sentença de quebra não gera um estado de falência, impossível negar que altera substancialmente o estado patrimonial do falido, suas relações com os credores, institui a massa falida e até mesmo produz um período que antecede e retroage, em que o curso dos atos obrigacionais praticados pode ser revogado9.

6 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. São Paulo: Atlas, 2005. 7 Ibid. 8 Corroborando o que foi aduzido, a título de exemplo, o artigo 5° prescrevia que: “Os sócios

solidária e ilimitadamente responsáveis pelas obrigações sociais não são atingidos pela falência da sociedade, mas ficam sujeitos aos demais efeitos jurídicos que a sentença declaratória produza em relação à sociedade falida. [...]”; também o artigo 15: “O resumo da sentença declaratória da falência será, dentro de vinte e quatro horas, depois do recebimento dos autos em cartório [...]” [grifo nosso].

9 FAZZIO JÚNIOR. Op. cit.

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Com a nova lei, de nº 11.101, promulgada no ano de 2005, eliminou-se a confusão gerada anteriormente pelo adjetivo “declaratória”, havendo a limitação do termo para “sentença que decretar a falência”, conforme se infere de dispositivos, como o artigo 94, caput10.

Posto isso, na medida em que produz uma nova situação jurídica, consubstanciada no concurso de credores e execução coletiva incidente sobre o patrimônio do devedor, a sentença que decreta a falência do devedor é um provimento jurisdicional de conhecimento, na modalidade constitutiva, responsável pelo estado jurídico de falência.

4 – DO CONTEÚDO DA SENTENÇA FALIMENTAR

A sentença de falência tem o conteúdo genérico de qualquer sentença judicial, além do específico, que é prescrito pela lei. Logo, o juiz competente para julgar o pedido de falência deverá atentar-se ao artigo 45811 do Código de Processo Civil e ao artigo 99 da Lei de Recuperação de Empresas e Falências, doravante denominada LRE. Conforme o aludido dispositivo do codex processual, a sentença decretatória de falência deverá conter o relatório12, que é a narrativa dos fatos discutidos e dos elementos constantes dos autos; a fundamentação13, que é a parte em que o juiz aponta suas razões de decidir; e, finalmente, o dispositivo14 legal que embasa a sentença que decreta a falência.

10 “Art. 94. Será decretada a falência do devedor [...]”. 11 “Art. 458. São requisitos essenciais da sentença: I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a

suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem.”

12 Também chamado de exposição, que é a parte vestibular da sentença, deve mencionar o nome das partes, o resumo do pedido e da defesa e, por fim, o resumo das provas e das razões finais e das principais ocorrências no processo, consistindo numa síntese dos atos nele ocorridos. A exposição não faz coisa julgada.

13 A motivação da decisão serve para verificar os argumentos utilizados pelo juiz. Se não apresentada a fundamentação da decisão, não se sabe por que a parte não faz jus ao direito, e ela não tem como discordar para poder recorrer. É necessário que o juiz focalize todos os argumentos que contrariem sua conclusão. Em não o fazendo, sua sentença ficará eivada de nulidade, não contém propriamente fundamentação, pois não aprecia o que se está discutindo. A fundamentação não fará coisa julgada.

14 A conclusão é a decisão propriamente dita, o que se dispõe, a prestação jurisdicional, a solução da demanda contida na sentença. O juiz acolherá ou rejeitará o pedido. Consistirá o dispositivo num resumo, numa síntese do decidido, vindo ao final da sentença. O dispositivo é a parcela da sentença que transita em julgado.

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Pelo ventilado artigo 99 da LRE, deverá a sentença conter a identificação do devedor, a localização de seu estabelecimento principal e, se for o caso, a designação dos sócios de responsabilidade ilimitada ou dos representantes legais da sociedade falida; o termo legal da falência, se possível; a nomeação do administrador judicial, entre outros elementos indicados na lei. Poderá, ainda, o juiz, na sentença, determinar medidas cautelares, buscando resguardar o interesse da massa falida.

De uma forma mais abrangente, WALDO FAZZIO JÚNIOR15 assinala que, na sentença de falência, o juiz descreverá a síntese do pedido; procederá à identificação da empresa falida, de seus sócios e dos que forem a esse tempo seus administradores; fixará o termo da falência, sem, no entanto, poder retroagir por mais de 90 (noventa) dias, contados do pleito de falência, de recuperação judicial ou do primeiro protesto por falta de pagamento, excluindo-se, para essa finalidade, os protestos que tenham sido cancelados.

Ordenará, ainda, ao falido que apresente, em 5 (cinco) dias, no máximo, a relação nominal dos credores, com endereço, importância, natureza e classificação dos respectivos créditos, caso esta ainda não conste nos autos, sob pena de desobediência; assinalará o prazo para as habilitações de crédito; ordenará a suspensão de todas as ações ou execuções contra o falido, ressalvadas as hipóteses previstas nos §§ 1º e 2º do artigo 6º16; proibirá a prática de atos de disposição ou oneração de bens do falido, submetendo-os, preambularmente, à autorização judicial e do Comitê, se houver, exceto os bens cuja venda seja inerente às atividades normais do devedor e se autorizada a continuação provisória.

Também, ordenará as diligências necessárias para salvaguardar os interesses das partes envolvidas, podendo ordenar a prisão preventiva do falido ou de seus administradores quando requerida com fundamento em provas da prática de crime definida na LRE; determinará ao Registro

15 FAZZIO JÚNIOR. Op. cit. 16 “Art. 6º. A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial

suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. § 1º. Terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que demandar quantia ilíquida. § 2º. É permitido pleitear, perante o administrador judicial, habilitação, exclusão ou modificação de créditos derivados da relação de trabalho, mas as ações de natureza trabalhista, inclusive as impugnações a que se refere o art. 8º desta Lei, serão processadas perante a justiça especializada até a apuração do respectivo crédito, que será inscrito no quadro-geral de credores pelo valor determinado em sentença.”

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Público de Empresas que proceda à anotação da falência no registro do devedor, para que conste a expressão “falido”, a data de decretação da falência e a inabilitação empresarial; nomeará o administrador judicial; ordenará sejam expedidos ofícios aos órgãos, repartições públicas e demais entidades para apresentar informações sobre a existência de bens e direitos do falido; manterá a continuação provisória das atividades do falido com o administrador judicial ou determinará a lacração dos estabelecimentos da empresa falida.

Caberá ao magistrado atuante, ainda, determinar a intimação do Ministério Público; a comunicação por carta às Fazendas Pública Federal e de todos os Estados e Municípios em que o devedor tiver estabelecimento, para que tomem ciência da falência; e, por derradeiro, a publicação de edital contendo a íntegra da decisão que decreta a falência e a relação de credores.

5 – DOS EFEITOS

Enquanto no processo comum a sentença acarreta os efeitos de irretratabilidade17, irrecorribilidade18 e exequibilidade19, a sentença que decreta a falência traz inúmeras outras implicações ao falido e à universalidade dos credores. MAMEDE20, com propriedade, averba que o efeito imediato da decretação da falência é, por força do artigo 7521 da LRE, afastar o devedor de suas atividades.

Além deste, de forma resumida e genérica, é possível citar, entre os efeitos da sentença que decreta a falência: formação da massa falida subjetiva; suspensão das ações individuais; suspensão condicional da fluência de juros; exigibilidade antecipada dos créditos contra o devedor, sócios ilimitadamente responsáveis e administradores solidários; suspensão da prescrição e arrecadação dos bens do devedor. 17 Uma vez proferida a sentença, o juiz não pode mais modificá-la, salvo em fase de recurso que lhe

caiba apreciar. Pode a sentença, todavia, ser corrigida em caso de erro material e modificada na hipótese de acolhimento de embargos de declaração.

18 Resulta de terem sido esgotados os prazos cabíveis para a interposição de recurso, decorrendo, daí, a coisa julgada material. Curial destacar que, para a doutrina, a coisa julgada não é um efeito, mas uma qualidade da sentença. E como decorrência da coisa julgada, a sentença pode produzir o efeito de extinguir a lide, de solucionar o conflito de interesses.

19 As sentenças condenatórias gozam de exequibilidade, isto é, podem ser executadas. Vale dizer, que o vencido pode ser compelido a vergar-se à sua condenação, nos termos em que lhe foi imposta.

20 MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro: Falência e Recuperação de Empresas. São Paulo: Atlas, 2006, v.4.

21 “Art. 75. A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades [...]” [grifo nosso].

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Quanto à pessoa do devedor, ou melhor, quanto ao empresário individual falido e aos sócios ilimitadamente responsáveis, torna-se necessário mencionar os efeitos da sentença de falência, sendo os mais importantes: inabilitação temporária para o exercício da atividade empresarial (que persiste até a sentença extintiva de suas obrigações) e perda da administração e disponibilidade de seus bens.

A seguir, de forma sintética, será explicado cada um dos efeitos supracitados.

5.1 Formação da Massa Falida Subjetiva

Ocorre, como um dos efeitos da decretação da falência do empresário ou sociedade empresária, a formação da massa de credores22, cujo objetivo é concorrer ao ativo do devedor, pelo montante de seus haveres. Assim, após a realização do ativo, haverá a partilha de seu produto, de forma equitativa, em conformidade com a classificação de cada crédito.

A massa falida subjetiva (massa de credores ou corpus creditorum) concorre aos bens que estão a cargo da massa falida objetiva (patrimônio colocado sob regime falimentar). A massa falida não tem bens: eles pertencem ao devedor, que perdeu, em verdade, sua posse e administração em virtude da sentença que decretou a falência.

Cada um dos credores, segundo leciona RICARDO NEGRÃO23, deverá apresentar requerimento ao Juízo falimentar dentro do prazo de 15 (quinze) dias, contados a partir da publicação do edital da sentença que decreta a falência, constando daquele seu nome completo, endereço, o valor do crédito (atualizado até a decretação da falência) e sua classificação. Poderá, por fim, juntar os documentos que entender pertinentes, assim como requerer as provas que pretende produzir.

Na opinião de FÁZZIO JÚNIOR,

“a propriedade dos bens do falido é simplesmente nominal, uma vez que a massa dele pode e vai dispor. Configura-se um estágio necessário de transição: a propriedade do devedor sobre seus bens é mitigada pela apropriação judicial; a massa falida

22 A massa de credores, ou corpus creditorum, atua em dupla função: representando o devedor, sub-

roga-se nos direitos dele; na posição de terceiro, exerce direitos próprios. 23 NEGRÃO, Ricardo. Aspectos Objetivos da Lei de Recuperação de Empresas e de Falências. São Paulo:

Saraiva, 2005.

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objetiva serve de ponte para a entrega desses bens, ou do produto de sua realização, para a massa falida subjetiva. Por massa falida objetiva entenda-se a ponte entre o devedor desapossado e os credores”24.

5.2 Suspensão das Ações Individuais

Há, desde o momento da prolação da sentença que decreta a falência, a suspensão das ações singulares pendentes em face do devedor. A falência envolve todos os bens do devedor e, de acordo com a legislação, todos os credores devem concorrer no juízo universal, visando a assegurar a par conditio creditorum25. Tem-se, portanto, a necessidade de que todas as ações individuais contra o devedor sejam suspensas.

Há determinadas ações que, iniciadas antes da falência, não são suspensas26. Assim, prosseguem com o administrador judicial (representante da massa) aquelas ações e execuções por créditos que não são sujeitos a rateio, as ações referentes a obrigações personalíssimas e as que demandarem quantia ilíquida27.

Impende ressaltar, por oportuno, ser necessário que o autor dessas ações informe sua situação ao juízo universal, a fim de que os atos processuais posteriores à decretação da falência não sejam eivados de nulidade.

5.3 Suspensão Condicional da Fluência de Juros

A assertiva “suspensão condicional da fluência de juros” significa que os juros não correm contra a massa após a decretação da falência. Isso decorre da presunção legal juris tantum de que o ativo é insuficiente para o pagamento deles.

Desta feita, se houver condições, após o pagamento do débito quirografário com a venda dos bens da massa, serão pagos os juros pactuados e os legais. Os juros incidem sobre a massa, mas somente poderão ser exigidos se o ativo apurado for suficiente para o pagamento do

24 FAZZIO JÚNIOR. Op. cit., p.283. 25 Princípio basilar, verdadeira pedra angular do direito concursal. Todos os credores são iguais

perante a lei, tendo chance de receber seus créditos existentes para com o devedor falido. 26 São as exceções previstas nos parágrafos do artigo 6º da LRE, já mencionadas algures. 27 FAZZIO JÚNIOR. Op. cit.

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principal28. Assim, deve ser verificado se os juros podem ou não ser exigidos, conforme as forças do ativo liquidado.

Neste ínterim, revela-se importante ressaltar a opinião de WALDO FAZZIO JÚNIOR29. São, para o autor, “excluídos da regra os juros atinentes às debêntures e aos créditos com garantia real. Estes, na conformidade da lei, serão satisfeitos pelo produto dos bens dados em garantia”.

5.4 Exigibilidade Antecipada dos Créditos Contra o Devedor e Sócios Ilimitada e Solidariamente Responsáveis

O artigo 7730 da LRE deixa claro que a sentença que decreta a falência determina o vencimento antecipado das obrigações do devedor e dos sócios ilimitada e solidariamente responsáveis, com o abatimento proporcional dos juros. Conforme pontuam FÁBIO ULHOA COELHO31 e, na mesma linha, RICARDO NEGRÃO32, tal efeito já se verificava na lei de falências revogada, não se operando, dessarte, nenhuma modificação nesse aspecto.

Consoante a doutrina de CLÓVIS BEVILÁQUA33, a razão pela qual o credor não tem que esperar a data do vencimento da dívida, em caso de concurso creditório, é que o mesmo importa execução geral do devedor, sendo, assim, patente sua insuficiência econômica. Deste modo, reúnem-se todos os credores a fim de apurarem as preferências, porventura existentes, e ratear, entre si, o acervo de bens do insolvente.

Assevera MANDEL34, sobre o assunto, que:

“Não seria realmente sensato que um credor com créditos ainda não vencidos na data da decretação tivesse de aguardar o vencimento de seu crédito para participar do processo e defender seus direitos. Mas essa medida não serve para beneficiar o credor

28 O artigo 124 da LRE é claro: “Se o ativo apurado não bastar para o pagamento do principal”.

Somente assim haverá a suspensão dos juros. 29 Ibid., p.289. 30 “Art. 77. A decretação da falência determina o vencimento antecipado das dívidas do devedor e

dos sócios ilimitada e solidariamente responsáveis, com o abatimento proporcional dos juros, e converte todos os créditos em moeda estrangeira para a moeda do País, pelo câmbio do dia da decisão judicial, para todos os efeitos desta Lei.”

31 COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

32 NEGRÃO. Op. cit. 33 BEVILÁQUA, Clóvis apud NEGRÃO. Op. cit. 34 MANDEL, Julio Kahan. Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas anotada. São Paulo: Saraiva,

2005.

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em relação aos juros, pois a antecipação do vencimento modifica sua fluência, e deverá haver um abatimento proporcional de valores.”

5.5 Suspensão da Prescrição

Em conformidade com o artigo 6º da LRE, durante o processo de falência fica suspenso o curso da prescrição relativa a obrigações de responsabilidade do devedor; e de acordo com o artigo 157 do mesmo diploma, após o trânsito em julgado da sentença de encerramento do processo falimentar, voltará a fluir o prazo prescricional das obrigações do devedor, que foram suspensos em razão da decretação da falência35.

A suspensão refere-se apenas ao falido e não às obrigações de terceiro para com o falido ou com a massa. Assim, não se suspende a prescrição das obrigações em que o falido é credor.

5.6 Arrecadação dos Bens do Devedor

A arrecadação do ativo do devedor é um dos efeitos da falência, que se consubstancia no ato de imissão, pelo administrador judicial, na posse dos bens sujeitos ao concurso de credores36. Com a arrecadação do patrimônio do devedor, origina-se a massa falida objetiva, também chamada de massa ativa, que é o próprio ativo do devedor sob a gestão do administrador judicial ou, como averba COELHO37, “o conjunto de bens arrecadados do patrimônio do falido”.

A decretação da falência indisponibiliza todos os bens do devedor e determina que todos os bens da massa sejam entregues ao administrador judicial para arrecadação, inclusive os bens da massa falida em poder de terceiros38.

35 Importante transcrever o artigo 6º da LRE: “A decretação da falência ou o deferimento do

processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário”. Dando continuidade ao assunto, o artigo 157 aduz que: “O prazo prescricional relativo às obrigações do falido recomeça a correr a partir do dia em que transitar em julgado a sentença de encerramento da falência”.

36 FAZZIO JÚNIOR. Op. cit. 37 COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 3.ed. São

Paulo: Saraiva, 2005, p.310. 38 MANDEL. Op. cit.

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Destaca-se que não são suscetíveis de arrecadação os bens absolutamente impenhoráveis, quais sejam: bens inalienáveis, bem de família, provisões de alimento necessárias à manutenção do devedor e de sua família, anel nupcial, pensões, seguro de vida, entre outros.

Após o pagamento dos credores, o falido terá direito ao que restar dos bens ou valores, acaso haja bens sobressalentes.

5.7 Inabilitação Temporária Para o Exercício da Atividade Empresarial

Um dos efeitos quanto à pessoa do devedor, ou seja, quanto ao empresário individual falido ou aos sócios ilimitadamente responsáveis, é a inabilitação temporária para o exercício de atividade empresarial. É acessória à decretação da falência, decorrendo dela automaticamente. Pode ser efeito da sentença penal condenatória por crime falimentar39.

Com a sentença positiva de falência, o devedor fica inabilitado para exercer qualquer atividade empresarial. Tal vedação permanecerá até a sentença que extinga as suas obrigações.

5.8 Perda da Administração e Disponibilidade de Seus Bens

Antes da falência, o devedor tinha a regência de seu patrimônio, mas após a quebra não poderá mais exercer nenhuma faculdade relativa ao domínio dos bens, perdendo, inclusive, o direito à percepção dos seus frutos e de reaver os bens de quem esteja na posse injustamente.

Cumpre salientar que, mesmo assim, o devedor tem o direito de postular a venda dos bens de fácil perecimento ou de dispendiosa e difícil guarda.

Na opinião de MANDEL:

“Quem perde automaticamente a administração dos bens é a empresa que tem a falência decretada, e não seus sócios ou administradores [...]. De qualquer modo, os falidos podem e devem defender uma boa liquidação dos bens da empresa falida e se defender contra a habilitação de créditos indevidos que possam majorar a dívida da falida.”40

39 MAMEDE. Op. cit. 40 MANDEL. Op. cit., p.204.

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Portanto, o falido não perde o direito de propriedade sobre o patrimônio arrecadado enquanto não for alienado por força da lei, podendo ter legítimo interesse em preservá-lo41.

6 – OS BENEFÍCIOS BUSCADOS PELO NOVO DIPLOMA

Originariamente, o instituto da falência estava voltado para a punição do falido, em razão da pressuposição de sua desonestidade, sendo, desta maneira, dado destaque às normas penais, destinadas à repressão do comerciante fracassado42.

Através da evolução dos tempos, foi possível ao falido livrar-se do estigma que o perseguia, minimizando os efeitos incidentes à sua pessoa, com a possibilidade de conservar sua capacidade jurídica, prosseguindo na administração dos bens não compreendidos na falência43.

Apesar dos avanços que insurgiam, o processo falimentar mantinha a visão de que a liquidação do ativo do falido era a resolução para os problemas apresentados pela crise da empresa. Ocorre que os resultados apresentados ao final dos processos falimentares, em regra, eram decepcionantes.

Em busca da continuidade do crescimento econômico, o governo brasileiro, após uma década de tramitação no Congresso Nacional, editou a Lei n° 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Esta decorreu da necessidade de atualização da lei de 1945, voltando-se para uma maior segurança ao sistema financeiro nacional, bem como uma participação mais ativa dos credores na manutenção do negócio e dos postos de trabalho.

Portanto, exsurge a novatio legis para modificar essa realidade, com a preocupação de preservar a empresa, ainda que haja necessidade de ser explorada por outra pessoa, capaz de assegurar a geração de empregos e riquezas44.

41 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar. 14.ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v.1. 42 A decretação da quebra do comerciante gerava efeitos tão rígidos que o mesmo chegava a ser tido

como se morto fosse (decoctor pro mortuo habetur). 43 Conforme artigos 41 e 42 do Decreto-Lei 7.661/45. 44 O artigo 75 da LF dispõe que: “A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas

atividades, visa a preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa”.

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A principal inovação desta lei foi a instituição da recuperação judicial e extrajudicial, em substituição à concordata. Assim, possibilitou-se a reestruturação das empresas economicamente viáveis que estivessem passando por dificuldades momentâneas.

A nova lei tem como finalidade precípua, além de atualizar o correlato conteúdo do Decreto 7.661/45, a reestruturação das empresas economicamente viáveis que estejam passando por dificuldades financeiras, trazendo alternativas para a solução das crises (econômica, financeira e patrimonial), bem como lutar contra o desemprego e estimular o desenvolvimento econômico através da concessão de crédito. Destarte, proporciona a preservação da empresa, bem como o cumprimento de sua função social e estímulo à atividade econômica.

Inovação que impende ser salientada é a possibilidade de continuidade da atividade provando-se a viabilidade jurídica e a inexistência de restrições às empresas com títulos protestados, diversamente do que acontecia outrora, uma vez que as empresas com os títulos protestados não podiam ser beneficiadas pela concordata. Vale trazer à baila que, hodiernamente, a empresa não é mais obrigada a apresentar um ativo líquido superior a 50% (cinquenta por cento) do passivo quirografário; simplesmente cabe ao devedor demonstrar a viabilidade jurídica da atividade econômica.

Outro aspecto positivo é encontrado no parágrafo único do artigo 75 da lei em debate, que se refere aos princípios da celeridade e da economia processual (apesar de a legislação não estipular prazo para o encerramento do processo falimentar), criando uma categoria de “processo privilegiado”45. In casu, o juiz da falência deverá adotar uma perspectiva instrumentalista da jurisdição, afastando o formalismo exagerado, ficando, dessarte, as providências probatórias subordinadas a um juízo de estrita necessidade, não se admitindo qualquer tipo de medida procrastinatória. Tal dicção destina-se aos sujeitos processuais que deverão ater-se a que o processo tenha uma finalidade a ser objetivamente alcançada, reprimindo-se as condutas que o desviem de seu objetivo.

A novel Lei de Recuperação de Empresas e Falência não fixa prazo máximo para a conclusão da falência, como ocorria com a legislação anterior, que fixava o prazo de 02 (dois) anos para o encerramento dos 45 MARTIN, Antonio; PITOMBO, Sérgio A. de Moraes et al. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas

e Falência. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

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processos falimentares. A modificação trouxe melhorias, pois não faz sentido que uma norma estabeleça um prazo que, em verdade, era corriqueiramente descumprido46.

7 – CONCLUSÃO

Em sede de considerações finais, pode-se constatar, ante a pesquisa realizada, que a Lei nº 11.101/05, disciplinadora da recuperação e falência de empresas, possibilitou a manutenção de empresas viáveis em crise econômico-financeira e, por consequência, minimizou os impactos e as repercussões decorrentes da insolvência empresarial.

A importância do presente estudo verifica-se em razão dos efeitos da sentença decretatória da falência sobre a universalidade de credores e sobre a pessoa do devedor. A sentença é pressuposto inafastável da instauração do processo de execução concursal do devedor empresário.

Após a decisão falimentar, o falido e seus credores são submetidos ao regime jurídico-falimentar, que tem seu caráter constitutivo.

Infere-se, portanto, que a sentença que decreta a falência tem natureza constitutiva. A partir do momento em que for prolatada, gerará efeitos das mais diversas ordens, tais como afastar o devedor de suas atividades e formar as massas falidas objetiva e subjetiva. Ainda, entre as principais implicações imanentes àquela, há, de regra, a suspensão das ações individuais pendentes contra o devedor, e também da fluência de juros. Passam a ser exigíveis, antecipadamente, os demais créditos contra o devedor, suspende-se o prazo prescricional concernente às obrigações do devedor e procede-se à arrecadação dos bens do devedor. Outrossim, fica o devedor temporariamente inabilitado para o exercício da atividade empresarial.

Atualmente, os credores passam a ter melhores expectativas com pertinência à realização de seus haveres, os funcionários das empresas são mantidos nos empregos, os fornecedores mantêm seus clientes e os impactos e as repercussões da insolvência empresarial são minimizados.

O prejuízo social decorrente da quebra é mais amplo que aquele causado ao interesse individual dos credores.

46 FAZZIO JÚNIOR. Op. cit.

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A Lei de Recuperação de Empresas e Falência preocupou-se em preservar a empresa, ainda que a mesma seja explorada por outra pessoa, proporcionando a garantia dos empregos existentes e a geração de riquezas.

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MEIO AMBIENTE DO TRABALHO E DIREITOS FUNDAMENTAIS:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR POR ACIDENTES DO

TRABALHO, DOENÇAS OCUPACIONAIS E DANOS AMBIENTAIS

GUSTAVO FILIPE BARBOSA GARCIA*

1 – INTRODUÇÃO

Os direitos humanos fundamentais podem ser entendidos como prerrogativas essenciais à garantia da dignidade da pessoa humana.

Historicamente, podem ser mencionados, com certa generalização, três momentos de conscientização dos direitos humanos fundamentais. Nesse sentido, é possível distinguirem-se três “dimensões” de direitos humanos fundamentais1, conforme teoria lançada por KAREL VAZAK, “em Conferência proferida no Instituto Internacional de Direitos Humanos no ano de 1979”2.

A “primeira dimensão” corresponde à consagração dos chamados direitos individuais, civis e políticos3. Assim, nas Declarações de Direito do * Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Procurador do

Trabalho do Ministério Público do Trabalho da 2ª Região. Ex-Juiz do Trabalho da 2ª, 8ª e 24ª Regiões. Ex-Auditor Fiscal do Trabalho. Professor Universitário em Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito.

1 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7.ed. São Paulo: Livraria do Advogado, 2007, p.54: “Não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância, de sorte que o uso da expressão ‘gerações’ pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo ‘dimensões’ dos direitos fundamentais”.

2 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.82.

3 Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.116.

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Século XVIII, ganham destaque os direitos de “liberdade”, no sentido de que o Estado deve abster-se de interferir na conduta dos indivíduos.

A “segunda dimensão” corresponde aos direitos econômicos, sociais e culturais, envolvendo uma prestação positiva do Estado4, como o direito ao trabalho, à educação, à saúde, trabalhistas e previdenciários, enfatizados no início do Século XX5. Objetiva-se corrigir as desigualdades sociais e econômicas, procurando solucionar os graves problemas da chamada “questão social”, surgida com a Revolução Industrial. O Estado, assim, passa a intervir no domínio econômico-social6.

A “terceira dimensão” refere-se aos direitos de solidariedade, pertinentes ao desenvolvimento, ao patrimônio comum da humanidade, à autodeterminação dos povos, à paz, à comunicação e à preservação do meio ambiente7.

Cabe registrar a existência de autores que fazem menção a uma “quarta geração” (ou dimensão), referente aos direitos ligados à biogenética e ao patrimônio genético8, ou à participação democrática, à informação e ao pluralismo9.

O fundamento dos direitos fundamentais relaciona-se com o valor jurídico supremo da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, a previsão do art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988.

Como se pode notar, o “meio ambiente” pode ser visto justamente entre os chamados direitos fundamentais de “terceira dimensão”.

Ao mesmo tempo, importantes direitos trabalhistas, diretamente relacionados à segurança e medicina do trabalho, fazem parte dos direitos

4 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 7.ed. São Paulo: Saraiva,

2005, p.49-50. 5 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3.ed. São Paulo: Saraiva,

2004, p.52-54. 6 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 22.ed. São Paulo: Saraiva,

1995, p.249-251. 7 Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, cit.,

p.117-118; REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p.225.

8 Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.6.

9 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7.ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p.525.

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sociais, os quais também figuram como direitos humanos fundamentais, normalmente conhecidos como de “segunda dimensão” ou “família”10.

Assim, observa-se nítida interdependência entre o meio ambiente do trabalho, a segurança e medicina do trabalho, o Direito do Trabalho, os direitos sociais, os direitos fundamentais e o próprio Direito Constitucional11.

Nesse tema, cabe destacar, ainda, o mandamento constitucional de “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, inciso XXII, da CF/1988).

Observa-se, assim, a existência de sistema jurídico de tutela do meio ambiente do trabalho, reconhecido pela Constituição da República, em seu art. 200, inciso VIII, e que integra o próprio meio ambiente em sentido global (art. 225 da CF/1988); a par disso, estão incluídos no importante rol dos direitos humanos fundamentais (art. 5º, § 2º, da CF/1988)12.

2 – MEIO AMBIENTE DO TRABALHO E SUA INSERÇÃO NO MEIO AMBIENTE COMO UM TODO

A proteção ao meio ambiente é questão de grande relevância na atualidade, tendo em vista que a sociedade moderna, apesar dos avanços e desenvolvimentos alcançados, muitas vezes acaba por acarretar a degradação ambiental13.

Justamente em razão disso, a Constituição Federal de 1988, no art. 225, assegura a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, considerado “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”, impondo ao Poder Público e à coletividade “o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

10 Cf. ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2007,

p.104-105. 11 Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Meio ambiente do trabalho: direito, segurança e medicina do

trabalho. 2.ed. São Paulo: Método, 2009. 12 Cf. MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e saúde do trabalhador:

responsabilidades legais, dano material, dano moral, dano estético. São Paulo: LTr, 2004, p.31: “O meio ambiente do trabalho adequado e seguro é um direito fundamental do cidadão trabalhador (lato sensu)”.

13 Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, cit., p.506.

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O meio ambiente é a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais, possibilitando o desenvolvimento equilibrado da vida14.

A Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. De acordo com o seu art. 3º, inciso I, entende-se por meio ambiente: “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.

O Direito Ambiental, assim, estabelece as normas jurídicas que disciplinam a conduta humana em relação ao meio ambiente, com o fim de preservá-lo e protegê-lo.

O meio ambiente pode ser classificado nas seguintes espécies15:

– Meio ambiente natural ou físico: constituído pelo solo, água, ar atmosférico, flora e fauna.

– Meio ambiente cultural: valores históricos, ou seja, o patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e turístico existente em determinado país.

– Meio ambiente artificial: espaço urbano construído pelo ser humano, englobando o conjunto de edificações e espaços urbanos públicos.

– Meio ambiente do trabalho: local de realização da atividade laboral.

As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados (art. 225, § 3º, da CF/1988).

Nesse sentido, adotando a responsabilidade objetiva em matéria de responsabilidade civil por danos ao meio ambiente, de acordo com o art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981, o poluidor é obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade.

Quanto ao meio ambiente cultural, de acordo com o art. 216 da Constituição Federal de 1988, constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em

14 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p.2. 15 Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, cit.,

p. 506; MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador, cit., p.28-29.

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conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

Quanto ao meio ambiente artificial, incide na disciplina da propriedade urbana e rural16.

O meio ambiente do trabalho também conta com previsão constitucional, conforme art. 200, inciso VIII, da Constituição Federal, destacando-se, ainda, o art. 7º, incisos XXII e XXIII, os quais preveem os seguintes direitos: redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei.

O meio ambiente como um todo está inserido no âmbito dos direitos humanos fundamentais17, apresentando-se como um direito difuso ou coletivo, a ser tutelado por meio da ação civil pública18.

Desse modo, o art. 129, inciso III, da Constituição Federal de 1988, estabelece ser função institucional do Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.

A Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, disciplina a ação civil pública, indicando os entes legitimados para o seu ajuizamento (art. 5º).

Destaca-se, ainda, o cabimento da ação popular também com o objetivo de defesa do meio ambiente, conforme prevê o art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal de 1988, no sentido de que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.

O meio ambiente, como um bem jurídico essencial para a vida humana, é objeto de disciplina por diversos ramos do Direito, estando presente, assim, no Direito Constitucional, no Direito Administrativo, no

16 Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, cit.,

p.509. 17 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, cit., p.62; ARAUJO, Luiz

Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, cit., p.117-118; REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar, cit., p.225.

18 Cf. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.148.

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Direito Penal, no Direito Civil, no Direito do Trabalho e no Direito Processual.

3 – PRINCÍPIOS DE DIREITO AMBIENTAL E MEIO AMBIENTE DO TRABALHO

Podem ser destacados os seguintes princípios ambientais, ou seja, pertinentes ao Direito Ambiental19:

– Princípio da prevenção: no sentido de se evitar qualquer perigo de dano ou prejuízo ao meio ambiente.

De acordo com o princípio 15 da “Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento”, aprovada pela Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento, tendo-se reunido no Rio de Janeiro, de 3 a 21 de junho de 1992: “De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.

– Princípio do desenvolvimento sustentável: no sentido de que o desenvolvimento econômico deve levar em conta a necessidade de defesa e preservação do meio ambiente, como prevê o art. 170, inciso VI, da Constituição Federal de 1988.

Dessa forma, de acordo com o art. 4º, inciso I, da Lei 6.938/1981, a Política Nacional do Meio Ambiente visará a tornar compatível “o desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico”.

– Princípio do poluidor-pagador: o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo decorrente da poluição que causou (princípio 16 da “Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento”, Rio de Janeiro, 1992).

Como já mencionado, em matéria ambiental, o mandamento principal é no sentido de prevenir qualquer dano ao meio ambiente. Mesmo assim, caso ocorra algum dano a este bem jurídico, torna-se devida a reparação

19 Cf. MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador, cit., p.48-55.

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integral do dano causado (art. 225, § 3º, da CF/1988, art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981, o qual adota a teoria da responsabilidade civil objetiva).

Nessa linha, conforme o art. 4º, inciso VII, da Lei 6.938/1981, a Política Nacional do Meio Ambiente visará “à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos”.

– Princípio da participação: no sentido de que a defesa e a preservação do meio ambiente são deveres tanto do Poder Público como da coletividade (art. 225, caput, da CF/1988).

Como dispõe o art. 4º, inciso V, da Lei 6.938/1981, a Política Nacional do Meio Ambiente visará “à difusão de tecnologias de manejo do meio ambiente, à divulgação de dados e informações ambientais e à formação de uma consciência pública sobre a necessidade de preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico” (destaquei).

– Princípio da ubiquidade: tendo em vista que toda a sociedade e todos os povos devem se empenhar na preservação e na proteção do meio ambiente.

De acordo com a parte inicial do princípio 7 da “Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” (Rio de Janeiro, 1992): “Os Estados devem cooperar, em um espírito de parceria global, para a conservação, proteção e restauração da saúde e da integridade do ecossistema terrestre”.

4 – RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR E DANOS AMBIENTAIS

Observados os aspectos acima, cabe analisar a temática da responsabilidade civil do empregador quanto a danos causados a seus empregados, com especial destaque para as hipóteses de acidente de trabalho e doenças ocupacionais.

No aspecto processual, merece destaque a atual redação do art. 114, incisos I e VI, da Constituição da República, incluindo-se na competência da Justiça do Trabalho a “ação de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente do trabalho, proposta pelo empregado em face de seu (ex-)empregador”, conforme interpretação do Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao decidir o Conflito de Competência 7.204/MG (j. 29.06.2005, Rel. Min. Carlos Ayres Britto).

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Dano pode ser entendido como o prejuízo causado à pessoa, ou seja, a lesão a bem ou interesse jurídico, podendo ser de ordem material ou moral20.

Pode-se conceituar o dano moral como a lesão a direitos extrapatrimoniais da pessoa, violando a honra, a dignidade, a intimidade, a imagem ou outros direitos da personalidade, ou mesmo direitos fundamentais que preservem a dignidade da pessoa humana.

Parte da doutrina prefere a expressão “dano pessoal”, pois “exprime com mais fidelidade o que é efetivamente lesado pelo dano: os direitos da pessoa humana”21, ou seja, os direitos da personalidade, “em suas diversas integridades psicofísicas, intelectual e moral”22.

Dano material, por sua vez, refere-se à violação de direitos patrimoniais (pecuniários)23.

Por dano moral trabalhista entenda-se aquele ocorrido no âmbito do contrato de trabalho, no seu bojo e em razão da sua existência, envolvendo os dois polos desta relação jurídica (de emprego), ou seja, o empregador e o empregado24. Normalmente, este se apresenta como o lesado e aquele como o sujeito ativo, embora nada impeça que estas posições se invertam. Aliás, ressalte-se que a jurisprudência já se pacificou quanto à possibilidade de a pessoa jurídica sofrer dano moral25. Nesta linha, dispõe o art. 52 do CC/2002 que é aplicável “às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”.

Cabe fazer menção, ainda, ao dano estético, o qual resulta da lesão da integridade física, especialmente quanto ao direito à imagem, o qual é direito da personalidade.

Entende-se que o dano estético é abrangido pelo conceito de dano moral, embora mereça, conforme o entendimento majoritário da jurisprudência (inclusive do STJ), uma indenização diferenciada e separada (a ser cumulada com a indenização pelo dano moral em si), em razão do

20 Cf. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 9.ed. São Paulo:

Saraiva, 1995, v.7, p.48. 21 OLIVEIRA, Paulo Eduardo Vieira de. O dano pessoal no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p.18. 22 Idem, ibidem, p. 35. 23 Cf. BITTAR, Carlos Alberto. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994, v.1, p.

570. 24 Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 3.ed. São Paulo: Método, 2009,

p.167-187. 25 Súmula 227 do STJ: “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.

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direito de personalidade especificamente violado, como quando são verificadas sequelas, mutilações ou deformações físicas26, o que encontra fundamento na parte final do art. 949 do Código Civil de 2002.

A responsabilidade civil, por sua vez, é a obrigação de responder pelas consequências jurídicas decorrentes do ato ilícito praticado, reparando o prejuízo causado.

Essa responsabilidade pode ser contratual ou extracontratual. A primeira decorre do descumprimento de dever contratual. A segunda refere-se à violação de preceito jurídico-legal, sem se reportar a uma norma contratual.

No caso em estudo, defende-se que esses danos estão inseridos no contexto mais amplo da relação jurídica de emprego, de natureza contratual.

Não há como negar que um dos principais deveres do empregador, sempre presente no contrato de trabalho, é a preservação da dignidade da pessoa humana do empregado, bem como de seus direitos da personalidade e seus direitos fundamentais.

Havendo a afronta a tal dever substancial, inerente ao contrato de emprego, surge o dano moral e material, a ser indenizado pelo empregador justamente por ter descumprido o referido dever contratual trabalhista27.

A relevância prática dessa conclusão é evidente, pois “na responsabilidade civil aquiliana a culpa deve ser sempre provada pela vítima, enquanto na responsabilidade contratual ela é, de regra, presumida, invertendo-se o ônus da prova, cabendo à vítima provar, apenas, que a obrigação não foi cumprida, restando ao devedor o onus probandi, por

26 Cf. OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional. 2.ed.

São Paulo: LTr, 2006, p.199: “Mesmo estando o dano estético compreendido no gênero dano moral, a doutrina e a jurisprudência evoluíram para definir indenizações distintas quando esses danos forem passíveis de apuração em separado, com causas inconfundíveis”.

27 Cf. o Enunciado 39, aprovado na “1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho”, ocorrida no TST, em Brasília, em 23.11.2007: “Meio Ambiente de Trabalho. Saúde Mental. Dever do Empregador. É dever do empregador e do tomador dos serviços zelar por um ambiente de trabalho saudável também do ponto de vista da saúde mental, coibindo práticas tendentes ou aptas a gerar danos de natureza moral ou emocional aos seus trabalhadores, passíveis de indenização”.

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exemplo, de que não agiu com culpa ou que ocorreu alguma causa excludente do elo de causalidade”28.

Por isso, tendo em vista a conclusão de que a responsabilidade do empregador por danos morais e materiais (inclusive quando decorrentes de acidente do trabalho e doença ocupacional) é modalidade de responsabilidade contratual, a culpa é presumida, invertendo-se o ônus da prova em favor da vítima (no caso, o trabalhador). Nesse sentido, cabe destacar o Enunciado 41, aprovado na “1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho”, ocorrida no TST, em Brasília, em 23.11.2007:

“Responsabilidade Civil. Acidente do Trabalho. Ônus da Prova. Cabe a inversão do ônus da prova em favor da vítima nas ações indenizatórias por acidente do trabalho.”

No caso de danos morais e materiais decorrentes de acidente do trabalho, que a Lei 8.213/1991 (art. 20) equiparou a doença profissional e a doença do trabalho29, deve-se destacar que a ocorrência, em si, de acidente do trabalho ou doença ocupacional não é propriamente o que gera ao empregado o direito a reparações civis por danos morais contra o empregador, pois estes decorrem, na verdade, de lesões aos direitos da personalidade, aos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana.

Na jurisprudência, há decisão do Tribunal Superior do Trabalho, analisando pretensão de dano moral decorrente de doença profissional, que assim decidiu:

“A existência de Lesão por Esforços Repetitivos (LER), por si só, não gera necessariamente um sofrimento psíquico de modo a autorizar sempre e indistintamente uma condenação por dano moral. Deve-se analisar caso a caso e verificar se, efetivamente, decorreu do dano físico alguma consequência psíquica relevante, a ponto de merecer indenização” (TST, SBDI-I, E-RR 483.206/98.4, Rel. p/o Acórdão Min. Vantuil Abdala, DJ 17.10.2003).

Na realidade, o que não se exige é a demonstração (ou seja, a prova) de eventual sofrimento, aflição ou outro sentimento intimamente padecido pela vítima, pois é do fato da violação do referido direito da personalidade,

28 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade

civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, v.3, p.20. 29 Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Acidentes do trabalho, doenças ocupacionais e nexo técnico

epidemiológico. 2. ed. São Paulo: Método, 2008, p. 18-19.

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ou da lesão a direito fundamental, preservando a dignidade da pessoa humana, que surge, automaticamente, o prejuízo de ordem moral30.

A Constituição Federal, no art. 7º, inciso XXVIII, segunda parte, ao versar sobre o acidente de trabalho, assegura o direito à indenização a que está obrigado o empregador, “quando incorrer em dolo ou culpa”. O benefício previdenciário acidentário, previsto na lei de seguridade social, é que se rege pela responsabilidade objetiva, fundada no risco social (art. 7º, inciso XXVIII, primeira parte, da CF/1988).

Apesar dessa previsão, cabe analisar os casos em que a atividade desenvolvida pelo empregador é prevista em lei como hipótese de responsabilidade objetiva, ou mesmo quando a atividade normalmente desenvolvida pelo empregador implique, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (art. 927, parágrafo único, do CC/2002).

Nessas hipóteses, ocorrendo lesões patrimoniais e/ou morais ao empregado, decorrentes de acidente do trabalho ou doença profissional, é necessário saber se a responsabilidade do empregador é subjetiva ou objetiva.

Nos casos em questão, evoluindo na compreensão da matéria, o correto é entender que prevalece a nova disposição, mais favorável, do Código Civil em vigor, ao prever a responsabilidade objetiva nos casos previstos em lei, ou quando a atividade desenvolvida seja de risco31.

Nessa linha, seria um paradoxo que o terceiro lesado possa obter a reparação civil independentemente de culpa, mas, quanto a danos sofridos pelo empregado, exija-se a sua presença32. Nesse sentido, transcreve-se o seguinte julgado oriundo do Tribunal Superior do Trabalho:

“Recurso de Revista. Dano Moral. Acidente de Trabalho. Responsabilidade Objetiva do Empregador. Art. 927, Parágrafo Único, do

30 Cf. LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: obrigações e responsabilidade civil. 3.ed. São

Paulo: RT, 2004, v.2, p.503: “A responsabilidade de agente causador do dano moral advém da violação, ou seja, trata-se de responsabilidade ex facto, bastando a demonstração dos acontecimentos causadores do dano. A prova do dano moral decorre, destarte, da mera demonstração dos fatos (damnum in re ipsa). [...] A presunção da existência do dano no próprio fato violador é absoluta (presunção iure et de iure), tornando-se prescindível a prova do dano moral”.

31 Cf. OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional, cit., p.103-105.

32 Cf. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Responsabilidade civil nas relações de trabalho e o novo Código Civil brasileiro. Revista de Direito do Trabalho. São Paulo, RT, ano 29, n.111, p. 173, jul.-set. 2003.

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Código Civil. Conceito de Atividade Habitualmente Desenvolvida. Direito do Consumidor. Direito do Trabalho. Princípio Constitucional Solidarista. Incidência. O sistema de responsabilidade civil adotado pelo ordenamento jurídico é um dos reflexos da preocupação do legislador com a tutela dos direitos pertencentes àqueles que não podem negociar, em condições de igualdade, os seus interesses com a outra parte da relação contratual. Nesse passo, o Código Civil, em seu art. 927, parágrafo único, estabelece que será objetiva a responsabilidade daquele que, em face do desenvolvimento normal de sua atividade, puder causar dano a outrem. Atividade, no sentido utilizado pela norma, deve ser entendida como a conduta habitualmente desempenhada, de maneira comercial ou empresarial, para a realização dos fins econômicos visados pelo autor do dano. Entretanto, dado o caráter excepcional de que se reveste a responsabilidade objetiva em nosso ordenamento jurídico (já que a regra é a de que somente haverá a imputação de conduta lesiva a alguém se provada a sua atuação culposa), somente nos casos em que os produtos e serviços fornecidos pelo causador do dano apresentarem perigo anormal e imprevisível ao sujeito que deles se utiliza haverá espaço para a incidência do citado diploma legal. Ressalte-se, ainda, que o Código Civil, por força dos arts. 8º, parágrafo único, da CLT e 7º do CDC, ostenta a condição de norma geral em termos de responsabilidade civil, motivo pelo qual a sua aplicação aos demais ramos do direito depende da inexistência de legislação específica sobre o assunto, assim como de sua compatibilidade com os princípios inerentes à parcela do direito a que se visa a inserção da aludida regra geral. No direito do consumidor, a responsabilidade do fornecedor pelos defeitos dos produtos e serviços despejados no mercado é objetiva, independentemente de a atividade por ele normalmente desenvolvida apresentar risco a direito de outrem. Assim, desnecessária a aplicação da norma civil às relações de consumo, dado o caráter mais benéfico desta. No direito do trabalho, entretanto, o art. 7º, XXVIII, determina, tão somente, que o empregador responderá pelos danos morais e materiais causados aos seus empregados, desde que comprovada a culpa daquele que suporta os riscos da atividade produtiva. A Constituição Federal, como se percebe, não faz menção à possibilidade de se responsabilizar objetivamente o empregador pelos aludidos danos.

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Apesar disso, tendo em vista o disposto no caput do aludido dispositivo constitucional e o princípio da norma mais benéfica, a outra conclusão não se pode chegar, senão a de que não se vedou a criação de um sistema de responsabilidade mais favorável ao empregado, ainda que fora da legislação especificamente destinada a reger as relações laborais, mormente se considerarmos que o trabalhador, premido pela necessidade de auferir meios para a sua sobrevivência, apresenta-se, em relação ao seu empregador, na posição mais desigual entre aquelas que se podem conceber nas interações humanas. Dessa forma, a fim de evitar o paradoxo de se responsabilizar o mesmo indivíduo (ora na condição de empregador, ora na condição de fornecedor) de forma diversa (objetiva ou subjetivamente) em face do mesmo evento danoso, somente pelo fato de as suas consequências terem atingido vítimas em diferentes estágios da atividade produtiva, necessária se faz a aplicação do art. 927, parágrafo único, do Código Civil ao direito do trabalho, desde que, no momento do acidente, o empregado esteja inserido na atividade empresarialmente desenvolvida pelo seu empregador. A adoção de tal entendimento confere plena eficácia ao princípio constitucional solidarista, segundo o qual a reparação da vítima afigura-se mais importante do que a individualização de um culpado pelo evento danoso. Na hipótese dos autos, restam presentes os elementos necessários à incidência do dispositivo civilista, motivo pelo qual merece acolhida a pretensão esposada pelo obreiro em sua petição inicial. Recurso de revista conhecido e provido” (Processo: RR – 946/2006-025-12-00.0 Data de Julgamento: 17.12.2008, Relator Ministro: Walmir Oliveira da Costa, 1ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 20.02.2009).

Entretanto, cabe registrar a existência de decisões do Tribunal Superior do Trabalho em sentido diverso:

“Recurso de Revista. Indenização por Danos Provenientes de Infortúnios do Trabalho. Responsabilidade Subjetiva do Empregador de Que Trata o Artigo 7º, Inciso XXVII, da Constituição em Detrimento da Responsabilidade Objetiva Consagrada no Parágrafo Único do Artigo 927 do Código Civil de 2002. Supremacia da Norma Constitucional. Inaplicabilidade da Regra de Direito Intertemporal do § 1º do Artigo 2º da LICC. I – É sabido que o acidente de trabalho e a moléstia profissional são infortúnios intimamente relacionados ao contrato

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de emprego, e por isso só os empregados é que têm direito aos benefícios acidentários, daí se impondo a conclusão de a indenização prevista no artigo 7º, inciso XXVIII, da Constituição se caracterizar como direito genuinamente trabalhista. II – Essa conclusão não é infirmável pela versão de a indenização prevista na norma constitucional achar-se vinculada à responsabilidade civil do empregador. Isso nem tanto pela evidência de ela reportar-se, na realidade, ao artigo 7º, inciso XXVIII, da Constituição, mas sobretudo pela constatação de a pretensão indenizatória provir não da culpa aquiliana, mas da culpa contratual do empregador, extraída da não observância dos deveres contidos no artigo 157 da CLT. III – Sendo assim, havendo previsão na Constituição da República sobre o direito à indenização por danos material e moral, provenientes de infortúnios do trabalho, na qual se adotou a teoria da responsabilidade subjetiva do empregador, não cabe trazer à colação a responsabilidade objetiva de que trata o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil de 2002. IV – Isso em razão da supremacia da norma constitucional, ainda que oriunda do Poder Constituinte Derivado, sobre a norma infraconstitucional, segundo se constata do artigo 59 da Constituição, pelo que não se pode absolutamente cogitar da revogação do artigo 7º, inciso XXVIII, da Constituição, a partir da superveniência da norma do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil de 2002, não se aplicando, evidentemente, a regra de Direito Intertemporal do § 1º do artigo 2º da LICC. Recurso conhecido e desprovido” (Processo: RR – 1832/2006-026-12-00.4 Data de Julgamento: 15.10.2008, Relator Ministro: Antônio José de Barros Levenhagen, 4ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 24.10.2008).

“I) Agravo de Instrumento. Divergência Jurisprudencial. Caracterização. Demonstrado no agravo de instrumento que a revista oferecia divergência jurisprudencial válida e específica em relação à não aplicação da responsabilidade objetiva para a condenação à indenização por danos morais decorrente de acidente de trabalho, o apelo merece ser provido. Agravo de instrumento provido. II) Recurso de Revista. Indenização por Danos Morais. Inexistência de Culpa ou Dolo da Reclamada. Responsabilidade Objetiva. Impossibilidade. 1. Para a existência do dever de reparar o

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dano causado, alguns pressupostos devem estar presentes, sem os quais o próprio instituto da responsabilidade se torna inaplicável à hipótese, quais sejam o dano experimentado pelo ofendido, a ação ou a omissão do causador, o nexo de causalidade e a culpa ou o dolo do agente. Trata-se do estabelecimento do nexo causal entre lesão e conduta omissiva ou comissiva do empregador, sabendo-se que o direito trabalhista brasileiro alberga tão-somente a teoria da responsabilidade subjetiva, derivada de culpa ou dolo do agente da lesão em matéria trabalhista (CF, art. 7º, XXVIII). 2. In casu, o Regional confirmou a sentença condenatória de pagamento de indenização por danos morais decorrente de acidente de trabalho, sob o fundamento de que, independentemente de culpa da Reclamada, a sua responsabilização seria objetiva, na forma do art. 927, parágrafo único, do CC, na medida em que desempenha atividade empresarial intrinsecamente perigosa (laminação de madeira). 3. Se, por um lado, a norma civil não alcança a esfera trabalhista, iluminada pelo comando constitucional do art. 7º, XXVIII, por outro, nenhuma atividade laboral está infensa a riscos de acidente (no próprio dizer de Guimarães Rosa, em sua epopeia Grande Sertão: Veredas, viver é muito perigoso), mas a CLT somente admite o adicional de periculosidade para as atividades de risco acentuado, ínsito ao manuseio de explosivos, inflamáveis (art. 193) e energia elétrica (Lei 7.369/85, art. 1º), o que descartaria, em tese, a invocação da responsabilidade objetiva por risco em relação ao setor de laminação de madeira, que é a hipótese dos autos. 4. Assim, não há como se atribuir responsabilidade à Empregadora pelos danos morais decorrentes de acidente de trabalho que resultou na amputação parcial do 2º quirodáctilo da mão direita do Reclamante apenas considerando a teoria da responsabilidade objetiva. Recurso de revista provido” (Processo: RR – 995/2007-120-08-40.7 Data de Julgamento: 27.05.2009, Relator Ministro: Ives Gandra Martins Filho, 7ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 29.05.2009).

“Agravo de Instrumento. Ante a provável ofensa ao art. 7º, inc. XXVIII, da Constituição da República, dá-se provimento ao Agravo de Instrumento para determinar o processamento do Recurso de Revista. Recurso de Revista. Indenização por Dano Moral. Acidente de Trabalho. Responsabilidade do Empregador. A Constituição

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da República incluiu entre os direitos do empregado o seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa (art. 7º, inc. XXVIII). Assim, constata-se que a Constituição da República, quanto à indenização por danos material e moral, provenientes de infortúnios do trabalho, adotou a teoria da responsabilidade subjetiva do empregador. Na hipótese dos autos, a responsabilidade objetiva da reclamada pela indenização por danos decorrentes do acidente de trabalho foi declarada pelo Tribunal Regional, ao atestar que nossa linha de reflexão segue a doutrina mais autorizada da objetivação da culpa, em tais hipóteses – (fl. 102). Dessa forma, consoante o quadro expresso pelo Tribunal Regional, não tendo sido demonstrada a ocorrência de culpa da reclamada para o surgimento do dever de indenizar, deve ser afastada a condenação ao pagamento de indenização por danos morais. Recurso de Revista de que se conhece e a que se dá provimento” (Processo: RR – 1376/2005-002-19-40.8 Data de Julgamento: 24.09.2008, Relator Ministro: João Batista Brito Pereira, 5ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 10.10.2008).

Apesar da controvérsia na jurisprudência sobre o tema, tendo em vista a incidência do princípio da norma mais benéfica, decorrente do princípio protetor, inerente ao Direito do Trabalho e de hierarquia constitucional33, o mais coerente é concluir que a aplicação da regra do art. 927, parágrafo único, do Código Civil de 2002, torna possível assegurar aos empregados a incidência de direitos trabalhistas superiores ao patamar legislativo mínimo, com vistas à melhoria de sua condição social (art. 7º, caput, da CF/1988).

Nesse sentido, a regra geral da exigência de culpa para a responsabilização do empregador por danos decorrentes de acidente do trabalho seria apenas um patamar mínimo (art. 7º, inciso XXVIII, parte final, da CF/1988), o qual pode (e deve) ser ampliado e aperfeiçoado em benefício dos trabalhadores e da melhoria de sua condição social (art. 7º, caput, da CF/1988),

33 Cf. DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Inovações na legislação trabalhista. São Paulo: LTr, 2000, p. 55:

“Não é ocioso lembrar que o princípio da norma mais benéfica está estampado no caput do art. 7º da Constituição Federal”.

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por meio de outras disposições, ainda que infraconstitucionais, estabelecendo a incidência da responsabilidade objetiva34.

Em razão da interpretação sistemática (do ordenamento jurídico como um todo) e teleológica dos princípios da proteção e da aplicação da norma mais favorável no âmbito trabalhista, evoluiu-se, aqui, para o entendimento de que a incidência da responsabilidade objetiva também é uma forma legítima e válida de melhoria da condição social do trabalhador. Torna-se viável, desse modo, o efetivo recebimento da devida indenização por danos morais e materiais, mesmo quando decorrente de acidente do trabalho, em plena e total conformidade com o caput do art. 7º da Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido, de acordo com o Enunciado 37, aprovado na “1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho”, ocorrida no TST (Brasília, 23.11.2007):

“Responsabilidade Civil Objetiva no Acidente de Trabalho. Atividade de Risco. Aplica-se o art. 927, parágrafo único, do Código Civil nos acidentes do trabalho. O art. 7º, XXVIII, da Constituição da República não constitui óbice à aplicação desse dispositivo legal, visto que seu caput garante a inclusão de outros direitos que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores.”

Além disso, cabe registrar a hipótese em que as doenças ocupacionais (profissionais e do trabalho) e os acidentes do trabalho se consubstanciem, na realidade, em lesões ao chamado meio ambiente do trabalho, o qual faz parte do meio ambiente como um todo (art. 200, inciso VIII, da CF/88).

Nessa situação especial, as referidas doenças e infortúnios “decorrem, na verdade, dos danos maiores ao meio ambiente do trabalho”. Por isso, assim ocorrendo, defende-se que a responsabilidade civil, nesses casos, também é de natureza objetiva, com fundamento no art. 225, § 3º, da CF/1988 e art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981 (Lei de Política Nacional do Meio Ambiente)35.

34 No caso, por exemplo, o art. 927, parágrafo único, do CC/2002: “Haverá obrigação de reparar o

dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. Cf. ainda o art. 225, § 3º, da CF/1988 e art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981 (Lei de Política Nacional do Meio Ambiente), que preveem a responsabilidade civil objetiva nas lesões ao meio ambiente, o qual inclui o meio ambiente de trabalho (art. 200, inciso VIII, da CF/1988).

35 Cf. MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador, cit., p.278-282.

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Em conformidade com o Enunciado 38, também aprovado na “1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho.”

“Responsabilidade Civil. Doenças Ocupacionais Decorrentes dos Danos ao Meio Ambiente do Trabalho. Nas doenças ocupacionais decorrentes dos danos ao meio ambiente do trabalho, a responsabilidade do empregador é objetiva. Interpretação sistemática dos artigos 7º, XXVIII, 200, VIII, 225, § 3º, da Constituição Federal e do art. 14, § 1º, da Lei 6.938/81”.

Vejamos, ainda, a hipótese em que servidor público, de pessoa jurídica de direito público ou de direito privado prestadora de serviços públicos, regido pela legislação trabalhista (empregado público), sofre acidente do trabalho ou doença profissional.

O art. 37, § 6º, da CF/1988 estabelece a responsabilidade dos referidos entes públicos “pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Como se nota, trata-se de responsabilidade objetiva da Administração Pública (tendo adotado a teoria do risco administrativo)36, que se dirige às reparações civis de danos causados pelos agentes públicos a terceiros. Mesmo assim, de acordo com o Enunciado 40, também aprovado na “1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho”.

“Responsabilidade Civil. Acidente do Trabalho. Empregado Público. A responsabilidade civil nos acidentes do trabalho envolvendo empregados de pessoas jurídicas de Direito Público interno é objetiva. Inteligência do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal e do artigo 43 do Código Civil.”

Se o empregador exerce atividade nuclear, ainda que sob o regime de concessão ou permissão (art. 21, inciso XXIII, da CF/1988), e ocorre acidente do trabalho, de acordo com o art. 21, inciso XXIII, d, da CF (com redação determinada pela Emenda Constitucional 49/2006), a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa, tratando-se de caso

36 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 26.ed. Atualização de Eurico de Andrade

Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2001, p.614.

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específico de responsabilidade objetiva, mais especificamente de “responsabilidade civil por risco exacerbado”37.

Desse modo, a reparação civil decorrente de dano nuclear não exige a culpa. No entanto, registre-se que se o acidente do trabalho ou a doença profissional não decorrerem do fato em questão (dano nuclear), não há como incidir esta disposição constitucional para a reparação civil em favor do empregado. Ainda assim, podem ser aplicadas as previsões do art. 927, parágrafo único, do Código Civil de 2002 c.c. art. 7º, caput, da CF/1988 (por se tratar de atividade de risco), ou mesmo do art. 225, § 3º, da CF/1988 e do art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981 (Lei de Política Nacional do Meio Ambiente), que preveem a responsabilidade civil objetiva nas lesões ao meio ambiente, o qual inclui o meio ambiente de trabalho (art. 200, inciso VIII, da CF/1988).

5 – CONCLUSÃO

O fundamento e a evolução dos direitos humanos fundamentais revelam que os direitos sociais e trabalhistas também estão neles inseridos38.

Da mesma forma, o meio ambiente do trabalho, inserido no meio ambiente como um todo, também apresenta natureza de direito humano fundamental, tendo como essência a garantia da dignidade da pessoa humana.

Tratando-se de responsabilidade civil decorrente de acidente do trabalho, a Constituição Federal de 1988, à primeira vista, pode parecer que se exige a culpa (lato sensu) para a responsabilização do empregador (art. 7º, inciso XXVIII, parte final).

No entanto, após exame mais aprofundado e sistemático da matéria, evoluiu-se no sentido da aplicação da responsabilidade objetiva, prevista no Código Civil de 2002, na hipótese de atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano que implique, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (art. 927, parágrafo único, parte final).

Da mesma forma, em se tratando de acidente do trabalho ou principalmente doença ocupacional decorrente de lesão ao meio ambiente do trabalho (art. 200, inciso VIII, da CF/1988), incidem as regras que impõem a

37 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: obrigações e responsabilidade civil, cit., p.643. 38 Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Direitos fundamentais e relação de emprego: trabalho,

constituição e processo. São Paulo: Método, 2008, p.18-44.

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responsabilidade objetiva, conforme art. 225, § 3º, da CF/1988 e art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981 (Lei de Política Nacional do Meio Ambiente).

6 – BIBLIOGRAFIA

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O CONTRATO ATÍPICO DE PATROCÍNIO: PRINCÍPIOS E POSSIBILIDADES NEGOCIAIS

GUILHERME ATHAYDE PORTO*

Sumário: 1 – A tipicidade e a atipicidade contratual no sistema jurídico brasileiro e o contrato de patrocínio; 1.1 A tipicidade e a atipicidade contratual; 1.2 O contrato de patrocínio: suas características; 2 – A atipicidade dos contratos de patrocínio dentro de seus limites e possibilidades no sistema jurídico brasileiro; 2.1 Os princípios contratuais (boa-fé, equilíbrio econômico e função social) e o contrato de patrocínio; 2.2 Contrato de patrocínio como contrato atípico: seus limites e suas possibilidades.

Resumo: O presente trabalho visa a destacar aspectos dos contratos de patrocínio no sistema jurídico brasileiro, apontando suas características principais e formas de harmonização dos interesses das partes, a partir de sua projeção na sociedade contemporânea. O tema ganha especial atualidade, na medida em que anunciadas a Olimpíada e a Copa do Mundo de Futebol, no Brasil. Não há dúvidas de que, a partir do contrato de patrocínio, centenas de marcas e de pessoas podem ser desenvolvidas.

1 – A TIPICIDADE E A ATIPICIDADE CONTRATUAL NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO E O CONTRATO DE PATROCÍNIO

1.1 A Tipicidade e a Atipicidade Contratual

É tradicional a divisão científica entre os contratos previstos em lei e aqueles idealizados pelas partes para suprir as carências do sistema legislado. Duas categorias distintas são apresentadas: I) a dos contratos que * Advogado no Rio Grande do Sul, sócio do escritório Sérgio Porto, Ustárroz e Dall’Agnol

Advogados Associados.

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se encontram regulados pela atual codificação civil (contratos típicos/nominados) e II) aqueles modelos contratuais que não se encontram acobertados expressamente na legislação, mas que nem por isso deixam de estar presentes no mundo jurídico (denominados atípicos/inominados).

A tipicidade contratual, então, verifica-se pelo modelo disciplinado pela nossa legislação. Não são necessariamente os mais importantes, porém os mais usuais, não existindo dificuldades em identificá-los. A atual codificação civil prevê a existência de 23 tipos diferentes de contratos, sendo eles: compra e venda; troca ou permuta; contrato estimatório; doação; locação de coisas; empréstimo; prestação de serviços; empreitada; depósito; mandato; comissão; agência; distribuição; corretagem; transporte; seguro; constituição de renda; jogo; aposta; fiança; sociedade; transação; compromisso.

Sobre a atipicidade em particular, os ensinamentos de PEDRO PAIS DE VASCONCELOS são esclarecedores: “A atipicidade dos contratos pode ser referida aos tipos contratuais legais ou simplesmente aos tipos contratuais sem restrição aos legais. A diferença é importante. No primeiro caso, são atípicos os contratos que não contêm na lei um modelo regulativo típico; no segundo, são atípicos aqueles que não têm um modelo regulativo típico, nem na lei, nem na prática”1.

O Código Civil italiano, de sua parte, em seu art. 1322, § 2º, também define os contratos atípicos ou inominados como aqueles que não possuem particular disciplina na lei, mas que mereçam a proteção do ordenamento jurídico.

Logo, é possível afirmar que o seu conteúdo se constitui pela vontade e pelo que foi estipulado pelas partes contratantes. Não possuem um conteúdo formal e substancial que se distingam ou que possam ser vistos separadamente. A sua substância é única e singular neste tipo de contrato. No entanto, é possível dizer que podem existir perspectivas diferentes no que diz respeito à formalidade e à substancialidade do negócio jurídico.

Não parece razoável esperar do legislador que preveja e esgote todos os possíveis tipos de contratos que possam a vir ser celebrados e inseri-los em uma codificação, pois, face às constantes alterações e evoluções sociais e econômicas que ocorrem, que vêm sempre buscando inovar as condições negociais e como consequência trazendo novos tipos de contratos. Resta clara e evidente que, diante da abundância de possibilidades e

1 PAIS DE VASCONCELOS, Pedro. Contratos Atípicos. 1.ed. Coimbra: Almedina, 1995, p.207.

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necessidades, não há como prever o que futuramente poderá vir a ser objeto de contrato, razão pela qual ganha importância a figura da atipicidade contratual.

O Professor ALVARO VILLAÇA DE AZEVEDO compartilha este pensamento, salientando que “tantas e tão variadas são essas formas novas, que o legislador, embora as acompanhe em seu desenvolvimento, com o objetivo de regulá-las, fica impossibilitado de regular todas de modo específico, particular, por serem elas a própria vida humana, fervente de condutas, num entrelaçamento que escapa às páginas frias dos Códigos. O ordenamento jurídico positivo de um país não pode tudo prever em seus textos, mas deve, diante de cada instituto que aparecer, dar-lhe o colorido legal, limitando e regulando, mesmo que de modo geral, seus contornos, para que o homem não se sinta livre para escravizar outro homem, mas se sinta livre para viver com seus direitos e deveres, respeitando os dos demais”2. Com efeito, a possibilidade de celebração de negócios jurídicos não regulados pelo nosso ordenamento demonstra que o princípio da autonomia da vontade continua atuante em nosso mundo jurídico. A atipicidade apenas existe porque de alguma forma este modo contratual se afasta dos modelos expressamente regulados, constatando-se que, para serem considerados válidos e exequíveis, apenas não devem contrariar os princípios gerais dos contratos, a lei e os bons costumes.

Mesmo sendo parcialmente verdadeira a afirmação de que o contrato faz lei entre as partes, no caso dos contratos atípicos o problema se agrava, no sentir de que, como não existem moldes a serem seguidos, torna-se muito mais fácil a existência de situações que causem prejuízo ou obrigações demasiadas a uma das partes, em benefício de outra, e aí é que se vê a importância da lei e das cláusulas gerais como limitadoras da autonomia da vontade, exatamente para impedir, se possível a priori, a ocorrência destas determinadas situações. Mas em não sendo possível impedir que sejam estipuladas, ao menos vieram permitir que o Estado, que é o responsável pelo equilíbrio social, venha a intervir nestas ocasiões e coíba a execução destes contratos que tragam um enriquecimento ilícito a uma das partes.

Mesmo que determinado contrato seja feito à conveniência de ambas as partes, ele deve respeitar estes princípios gerais (boa-fé, equilíbrio

2 VILLAÇA AZEVEDO, Alvaro, Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2004,

p.149.

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econômico e função social) para evitar situações de dificuldades posteriores, evitando-se, assim, a revisão ou o desfazimento do negócio celebrado.

Logo, denota-se que este contrato, que não está padronizado no sistema legal e subordina-se a estes princípios gerais do direito contratual, ainda assim pode vir acometido de certos exageros. Nestes particulares, regras específicas para cada caso devem ser aplicadas; no entanto, como não estão positivadas, cabe ao magistrado aplicar o direito consuetudinário ou o que a doutrina apresente como mais adequado.

Devido à inexistência de maiores requisitos para a sua celebração, e como não podem ser a eles aplicadas as normas gerais dos contratos em espécie, pelo menos não em sua totalidade em razão de sua atipicidade, devem os próprios contratantes atentar para não clausular o que possa vir a comprometer a sua existência posteriormente.

Cabe, todavia, ressalvar que, mesmo que advenham da existência da autonomia da vontade estes contratos, ela sofre limitações pelos demais princípios gerais do direito, que visam a impedir que esta seja impositiva e absoluta. E com sabedoria, o Professor ÁLVARO VILLAÇA DE AZEVEDO assevera: “A liberdade há que condicionar-se, emoldurando-se na lei, para ser liberdade condicionada, não ser liberdade escravidão, instrumento dos que atuam de má-fé, em detrimento da própria sociedade”3.

A possibilidade de se criarem novos tipos contratuais está abrangida e positivada em nosso atual Código Civil, em seu art. 425, quando permite a celebração de contratos atípicos, desde que respeitadas as normas gerais fixadas no diploma civil. Desta forma, resta claro, como explicitado até aqui, que é legalmente possível o estabelecimento de negócios jurídicos cuja existência não esteja positivada, desde que respeitadas as mencionadas cláusulas ou princípios gerais estabelecidos.

Este determinado tipo de contrato é aceito e consagrado em nosso meio devido à circunstância de que é necessário acompanhar e permitir o progresso e o desenvolvimento constantemente experimentados pela sociedade. É o reconhecimento de que as necessidades econômicas são quase ilimitadas e que a criatividade do ser humano para novas situações também o é.

Tal percepção se deu pela primeira vez nos idos tempos do grande Império Romano através de Justiniano, que observou não ser possível dar

3 VILLAÇA AZEVEDO, Alvaro. Op. cit., p.148.

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proteção jurídica apenas àqueles negócios que se encontrassem positivados, libertando-se assim daquele formalismo deveras exagerado existente naquele momento, tendo esta conquista relevância tal que perdura, com as devidas adaptações, até os dias atuais.

Permite-se a existência de contratos atípicos por este mencionado reconhecimento de que o formalismo excessivo é prejudicial ao melhor desenvolvimento social, garantindo, no entanto, que estes contratos não firam, em suas diversas fases, os princípios da boa-fé, do equilíbrio econômico (ou onerosidade excessiva como gostam de denominar certos doutrinadores) e da função social. Isso porque tais primados são os que possibilitam a existência de diversos modelos contratuais que ainda hoje não possuem regulamentação específica.

Em que pese a falta de regulamentação, pode-se aduzir que para parcela significativa dos contratos hoje existentes, mesmo que atípicos, é garantida eficácia, pois assim foi possibilitado pela criação destas normas gerais, que, apesar de não lhes retirarem a atipicidade, permitem sua criação e execução.

Dessa forma, é de fundamental importância o uso de tais princípios, pois através deles é que se poderá evitar o uso indevido da autonomia da vontade, que, se isoladamente aplicada, dá ensejo à ocorrência de abusos pelas partes.

Ademais, mister destacar que os contratos atípicos possuem diferentes classificações. Mesmo que ainda não exista unanimidade doutrinária, variando sua nominação, ainda assim é possível, em linhas gerais, destacar que este tipo de contrato divide-se em subcategorias, onde cada qual possui características peculiares.

ORLANDO GOMES, por exemplo, classifica os contratos atípicos em: a) atípicos propriamente ditos e b) mistos. Em sua clássica obra, refere que os contratos mistos são “ordenados a atender a interesses não disciplinados especificamente na lei, os contratos atípicos caracterizam-se pela originalidade, constituindo-se, não raro, pela modificação de elemento característico de contrato típico, sob forma que o desfigura dando lugar a um novo tipo. Outras vezes, pela eliminação de elementos secundários de um contrato típico. Por fim, interesses novos, oriundos da crescente complexidade da vida econômica, reclamam disciplina uniforme que as próprias partes estabelecem livremente, sem terem padrão para observar. Os contratos mistos compõem-se de prestações típicas de outros contratos,

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ou de elementos mais simples, combinados pelas partes. A conexão econômica entre as diversas prestações forma, por subordinação ou coordenação, nova unidade. Os elementos que podem ser combinados são: contratos completos, prestações típicas inteiras, ou elementos mais simples. Nesses arranjos cabem: um contrato completo e um elemento mais simples de outro; um contrato completo e uma prestação típica de outro; prestações típicas de dois ou mais contratos; prestações típicas de contratos diversos e elementos simples de outros. Uma vez que os contratos mistos constituem subdivisão dos contratos atípicos, não se incluem na categoria os que se formam de elementos de outros contratos, mas já se tornam típicos”4.

Já ÁLVARO VILLAÇA DE AZEVEDO acredita que os contratos atípicos se dividem em duas formas. Os contratos atípicos singulares, individualmente considerados, e os mistos, que se subdividiriam em contratos com formas típicas e típicas, com formas atípicas e atípicas e finalmente com formas atípicas e típicas5.

O que pode se verificar de fato é que em várias situações é difícil estabelecer se um contrato é realmente típico ou atípico em função das diversas variações existentes na seara contratual e também a falta de legislação específica em diversos pontos, e mesmo com esta dificuldade percebe-se que o seu número vem crescendo de forma vertiginosa, onde as normas são criadas pelas partes, sem que exista uma determinada regulamentação, restando os limites destes contratos sendo impostos por alguns princípios gerais dos contratos.

Por isso a crítica do Professor VILLAÇA sobre a falta de lei específica regulando os contratos atípicos, que refere ser de extrema importância o papel do legislador ao ditar as regras para a sociedade, para que possam ser aplicadas em caso concreto: “O papel do legislador assemelha-se ao do julgador; ambos devem sentir os reclamos da sociedade, o primeiro para ditar-lhe suas normas de conduta, o segundo para aplicá-las na solução dos casos concretos. Entretanto, quando a lei não regulamenta o contrato, ou o faz inadequadamente, cabe ao juiz a árdua tarefa de buscar o sentido de Justiça para solver a pendência, de tal sorte que sua decisão faça retornar o equilíbrio à relação jurídica lesada”6.

4 GOMES, Orlando. Contratos. 24.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.103-104. 5 VILLAÇA AZEVEDO, Alvaro. Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2004,

p.145. 6 VILLAÇA AZEVEDO, Alvaro. Op. cit., p.151.

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O vácuo legislativo quanto ao contrato objeto do presente estudo motiva a aplicação de princípios contratuais pela jurisprudência, para facilitar o desenvolvimento econômico dos particulares, que lançam mão do contrato de patrocínio para superar dificuldades enfrentadas.

1.2 O Contrato de Patrocínio: Suas Características

Como visto, a partir das características dos contratos atípicos, podemos incluir neste rol os denominados contratos de patrocínio. Contratos estes que não possuem regulação específica em nosso ordenamento, mas que, sem dúvida, ao longo dos últimos anos, multiplicam-se em nossa sociedade, viabilizando diferentes eventos culturais e esportivos, além de impulsionar marcas e carreiras.

É claro e evidente que, como em quase todos os tipos de contrato, existe uma contraprestação esperada, que, no caso em particular, acredita-se ocorrer com a promoção do nome do patrocinador perante um determinado público para que se crie uma boa imagem ao redor de si.

Oportuno, agora, trazer uma definição do que seria patrocínio, pois sendo este o objeto do contrato, imperioso que se tenha claro o que significa. Inicialmente, usaremos a definição dada por WESLEY CARDIA em sua obra: “O patrocínio seria, então, uma relação de troca entre patrocinador e patrocinado, em que o primeiro investe de forma tangível (bens, serviços ou dinheiro) na organização ou celebração de um evento ou indivíduo, e recebe em troca espaços e facilidades para difundir mensagens a um público mais ou menos determinado com a intenção de fazer promoção, criar good will, boa imagem ou vendas”7.

Esta é apenas umas das diversas definições que se pode dar a patrocínio. Pode-se dizer também que é uma forma de comunicação que permite ao patrocinador um impacto publicitário sobre o seu nome, de forma que venha a colocar sua marca em exposição.

Trazendo para uma visão jurídica, podemos dizer que o contrato de patrocínio pelo qual o patrocinador (esponsor), com a finalidade de aumentar o conhecimento a respeito de seus produtos, serviços ou acerca de sua empresa, repassa determinado valor, bens ou serviços, tendo como contraprestação a exposição de sua marca.

7 CARDIA, Wesley. Marketing e Patrocínio Esportivo. Porto Alegre: Bookman, 2004, p.24.

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Pode se considerar o contrato de patrocínio como um verdadeiro fenômeno social e econômico dos últimos anos, visto que cada vez mais as empresas têm usado o patrocínio como forma de publicidade, explorando diretamente eventos esportivos e culturais, para que seu nome seja sempre associado a estes tipos de acontecimentos, buscando transparecer uma imagem para os consumidores de uma empresa socialmente preocupada e consciente, que não visa exclusivamente aos lucros, mas que possui responsabilidades perante a sociedade e que está consciente destas.

A doutrinadora espanhola ELENA VICENTE DOMINGO, neste sentido, ensina que: “Estamos asimismo ante un fenómeno socioeconómico que en la última década está teniendo una gran importancia, la cual es debida a factores diversos, tales como la escasez de recursos públicos así como el interés que para el espónsor represente el que la sociedad reconozca su labor de promotor y patrocinador de determinadas actividades de interés general; reconocimiento que en la esponsorización se mide en publicidad”8.

O contrato de patrocínio não deixa de ser, de certa forma, uma espécie dos contratos de publicidade, mas com uma especificidade maior, com nuanças que, ao final, o diferenciam daquele, visto que no contrato de publicidade não existe a contraprestação exigida da forma como o é no patrocínio. Apenas ocorre a exposição da marca da maneira que se acreditar mais adequada, enquanto que no contrato de patrocínio necessário que exista a contraprestação do patrocinador de colaborar de alguma forma com o patrocinado.

A autora espanhola antes citada neste sentido afirma que: “No cabe la menor duda de que la esponsorización es una modalidad más de la estrategia de marketing de las empresas, que diversifican sus inversiones en publicidad con la finalidad de alcanzar todos los campos y de superar un cierto efecto de saturación de los soportes tradicionales de publicidad”9.

Este contrato visa a expor a marca de uma forma indireta, pois não traz o produto ou o serviço de forma escancarada para o potencial consumidor, mas o introduz de modo suave, de forma que através do evento que está proporcionando fique fixada a imagem da empresa ou do produto como algo que lhe trouxe bons momentos, incitando assim ao consumo, sem contudo “agredir” a percepção dos consumidores, fazendo com que este veja com simpatia determinados produtos. 8 VICENTE DOMINGO, Elena. El Contrato de Esponsorización. 1.ed. Madrid: Civitas, 1998, p.17. 9 VICENTE DOMINGO, Elena. Op. cit., p.23.

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Surgiu, inicialmente, como uma forma de transpor a existência de uma saturação dos meios de exposição tradicionais, sendo um reflexo direto do princípio da autonomia da vontade. Hoje é uma das formas utilizadas pelas indústrias que possuem o direito de merchandising limitado, caso das indústrias tabagistas e de bebidas alcoólicas.

Parece apropriado afirmar que é um contrato legalmente atípico, contudo socialmente típico, visto que se encontra perfeitamente inserido em nossa sociedade, sendo um dos meios mais difundidos e eficientes de publicidade para as empresas.

Sobre o tema ensina ELENA DOMINGO que: “(...) el contrato de esponsorización presenta una fuerte tipicidad social. Lo cual es cierto, por varias razones (...).Como es sabido, cuando se afirma que un determinado contrato tiene tipicidad social, significa que dicho contrato se encuentra identificado, que tiene un nombre que hace referencia a un cierto esquema contractual, nacido de una forma espontánea, pero que carece todavía de una disciplina normativa individualizada”10. Ou seja, possuir um nome jurídico é o primeiro passo para eventualmente ser consagrado expressamente no ordenamento jurídico, deixando de ser legalmente atípico.

Sua origem, por assim dizer, não é bem certa. Alguns dizem que é uma evolução dos antigos mecenas, que apoiavam a cultura de forma gratuita. Outros dizem que é um instituto completamente novo, fruto da industrialização ocorrida e da necessidade de as empresas mudarem a forma de dar conhecimento ao seu nome, produto ou marca.

ELENA DOMINGO também afirma em sua obra que: “Del contrato de esponsorización se ha dicho que es el heredero directo del tradicional mecenazgo y que responde a una evolución y a un cambio de intención de la persona que entrega la ayuda. Evolución que, como describe FRANCESCHELLI, es un lento passaggio que consiste en que la causa de la atribuición patrimonial no es la mera liberalidad sino la entrega a cambio de retorno de publicidad. No obstante, aun siendo ésta la opinión mayoritaria, también hay quien mantiene que estamos ante un fenómeno totalmente nuevo cuyo origen se encuentra en la industrialización y en el afán de las empresas de encontrar formar de darse a conocer diferentes de las tradicionales que las distingan de las de la competencia”11. 10 VICENTE DOMINGO, Elena. Op. cit., p.34-35. 11 VICENTE DOMINGO, Elena. Op. cit., p.41-42.

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O contrato de patrocínio faz com que a empresa deva entregar a sua colaboração para que a atividade, independentemente qual seja o seu cunho, possa se desenvolver, transformando automaticamente este colaborador em patrocinador, enquanto que, por sua vez, quem recebe a importância, seja ela dada da forma que for, passa a ser o patrocinado, responsabilizando-se por tornar público quem está colaborando para o acontecimento do evento; em caso de patrocínio de pessoas, quem está o ajudando a se desenvolver. Daí que surge como um contrato de publicidade indireta, pois através do patrocinado, e não pela própria empresa, que se irá ter conhecimento do produto ou da própria companhia, ele é que irá repassar ao consumidor a imagem de que determinada empresa está tornando possível a realização de determinado evento.

Outra de suas características digna de nota é a possibilidade que este traz de, cada vez mais, serem realizados eventos de grandes proporções, relevância social e cultural indiscutíveis, pois, como vem ocorrendo através dos últimos anos, não são mais realizados grandes eventos financiados por apenas um patrocinador. As parcerias entre poder público e diversas empresas de ramos diferentes para viabilizar a realização de tais acontecimentos é cada vez maior e mais incentivada, como verdadeiras PPPs (parcerias público-privadas)12.

Hoje, praticamente inexistem eventos, seja qual for a sua dimensão, que ocorram sem a existência de patrocinadores; não apenas um, mas diversos. Esta não exclusividade é, sem dúvida, outra de suas características. Claro que existem algumas restrições na maioria destes contratos, pois não serão vistas empresas de um mesmo ramo juntas patrocinando determinado evento, mas com certeza, quando estas atuam em diferentes setores, a parceria no patrocínio ocorre com frequência quase que total.

Sua onerosidade encontra-se situada no momento em que se espera uma contraprestação mútua. Se assim não fosse, estaríamos frente à figura do antigo mecenas, o qual incentivava sem esperar retorno da maneira que fosse, sem nenhuma finalidade comercial, apenas de forma altruística. O patrocinador tem como objetivo principal, quiçá único, fazer com que seu nome seja reconhecido perante um determinado público. O seu objeto é claro: colaborar com determinado acontecimento, da maneira que acredita

12 Sobre o tema, consultar com proveito FERREIRA, Luiz Tarcísio Teixeira. In: Parcerias Público-

Privadas. Aspectos Constitucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2006.

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ser adequada, esperando como retorno a notoriedade de sua marca, pois o objetivo publicitário é evidente.

ELENA DOMINGO evidencia: “A grandes rasgos, ateniendo al aspecto subjetivo, el espónsor es quien financia la actividad de atletas, artistas, organiza exposiciones de arte o programas televisivos, con el fin de hacerse publicidad. Es cada vez más habitual, también, que por medio de la esponsorización se financie la rehabilitación del patrimonio histórico artístico, lo que se conoce como esponsorización cultural. Esta actividad de la empresa se encausa a través del contrato de esponsorización. Por lo tanto, espónsor es la empresa que aporta la ayuda. Nos encontramos, como se ha señalado, ante una, ‘operación comercial y un contrato especial’. Como afirma GOBIN, ‘el espónsor tiene como motivación esencial la de dar a conocer su nombre o su marca comercial’”13.

Logo, o real objetivo do contrato de patrocínio não é o simples aumento de consumo de determinado produto, mas sim a melhoria da imagem do patrocinador, a exposição de seu nome perante o seu público.

Por isso é que se identifica o contrato de patrocínio como um complemento à publicidade tradicional, por trazer de forma indireta o nome de determinado produto ou empresa ao público.

2 – A ATIPICIDADE DOS CONTRATOS DE PATROCÍNIO DENTRO DE SEUS LIMITES E POSSIBILIDADES NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

2.1 Os Princípios Contratuais (Boa-Fé, Equilíbrio Econômico e Função Social) e o Contrato de Patrocínio

A questão principiológica vem regularmente se aperfeiçoando e adquirindo importância cada vez maior para que as relações contratuais tornem-se igualitárias, impedindo a existência de enriquecimentos sem causa, voluntária ou involuntariamente. Estes princípios, da mesma forma, são os responsáveis, corolário lógico, por regular de maneira geral aqueles contratos que não possuem modelagem específica em nosso ordenamento.

Nesse quadro, como já dito, se encontram os contratos de patrocínio, vez que inseridos nos contratos atípicos. Os princípios que irão coordenar as bases do contrato em comento são: a) a boa-fé, b) o equilíbrio econômico e c) a função social.

13 VICENTE DOMINGO, Elena. Op. cit., p.51.

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Cada um deles, dentro de seu âmbito, exerce controle fundamental sobre a autonomia da vontade. Controle no sentido de impedir que uma das partes possa se sobressair de forma excessiva sobre a outra, e não obstar a que estas acordem da maneira que acreditam ser mais adequada para os seus interesses e para melhor execução dos propósitos do pacto.

A boa-fé, por exemplo, a qual é considerada a atitude ética que se espera das partes contratantes, o valor da lealdade e ainda como a antítese ao abuso da liberdade de contratar, vê no excessivo individualismo contratual um obstáculo para a realização da justiça social, a qual é um dos objetivos principais do contrato. Ela se faz essencial para que o contrato de patrocínio possa ser realizado de forma adequada e proporcional.

Para bem compreender a boa-fé como elemento essencial aos contratos, oportuno destacar as considerações de JUDITH MARTINS-COSTA a respeito do tema que ensina: “Já por ‘boa-fé objetiva’ se quer significar – segundo conotação que adveio da interpretação conferida ao § 242 do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subjetivo”14.

Essa ligação com a moral que a boa-fé possui fica clara nos ensinamentos de MENEZES CORDEIRO: “A boa fé objectiva, nas suas aplicações várias, tão pouco deixa abertas à moral. O dever de agir de boa fé projecta nas obrigações e, em geral, nas áreas dominadas por permissões genéricas de actuação, a necessidade de respeitar vectores fundamentais do sistema jurídico, com realce para a tutela da confiança e a materialidade das situações subjacentes, avultando ainda um certo equilíbrio entre a posição das partes”15.

14 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito privado. 1.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000,

p.411. 15 MANUEL DA ROCHA, António; CORDEIRO, Menezes. Da Boa Fé no Direito Civil. 1.ed. Coimbra:

Almedina, 1997, p.1170-1171.

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O poder que o patrocinado possui, por ter em suas mãos a responsabilidade de colocar em evidência perante um público determinado a imagem de uma empresa, é demasiado grande e extraordinariamente perigoso se for efetuado de forma irresponsável ou que venha a infringir a boa-fé que se espera, pois é notório que a imagem é – hoje – o bem mais valioso de uma empresa e é, justamente, o que ela busca ver valorizado ao patrocinar determinado evento ou pessoa.

O patrocinado conta com a colaboração do patrocinador para que a ocorrência do evento ou obra ou ainda outro tipo de situação que pretenda ver executada venha a ser realizada, pois é com o apoio deste que se vê viabilizada a execução do evento esperado, o que se tornaria inviável no caso do descumprimento com o que fora pactuado ou se faça de forma que não permita que se realize da maneira mais apropriada possível. As consequências para o patrocinado, no mesmo sentido, também podem vir a ser demasiado severas, visto que este cria expectativas perante a sociedade ou perante um determinado público de que irá realmente efetivar a realização de um evento ou uma obra que traria benefícios, mas que não foi possível se realizar devido ao não cumprimento por parte do patrocinador.

JUDITH MARTINS-COSTA, mais uma vez, refere que: “Diversamente, ao conceito de boa-fé objetiva estão subjacentes as ideias e os ideais que animaram a boa-fé germânica: a boa-fé como regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses do alter, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado. Aí se insere a consideração para com as expectativas legitimamente geradas, pela própria conduta, nos demais membros da comunidade, especialmente no outro polo da relação obrigacional. A boa-fé objetiva qualifica, pois, uma norma de comportamento leal. É, por isso mesmo, uma norma necessariamente nuançada, a qual, contudo, não se apresenta como um ‘princípio geral’ ou como uma espécie de panaceia de cunho moral incidente da mesma forma a um número indefinido de situações. É norma nuançada – mais propriamente constituiu um modelo jurídico –, na medida em que se reveste de variadas formas, variadas concreções, ‘denotando e conotando, em sua formulação, uma pluridiversidade de elementos entre si interligados numa unidade de sentido lógico’”16.

16 MARTINS-COSTA, Judith. Op. cit., p.412.

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TERESA NEGREIROS neste mesmo sentido também observa: “A fundamentação constitucional do princípio da boa-fé assenta na cláusula geral de tutela da pessoa humana – em que esta se presume parte integrante de uma comunidade, e não um ser isolado, cuja vontade em si mesma fosse absolutamente soberana, embora sujeita a limites externos. Mais especificamente, é possível reconduzir o princípio da boa-fé ao ditame constitucional que determina como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade solidária (...)”17.

A relevância da boa-fé nos contratos, seja ele qual for, é tal que se pode asseverar que, em certa medida, é o princípio primordial da teoria contratual moderna, estando acima inclusive do equilíbrio contratual e da função social.

Efetivamente, como uma relação de mútuo apoio, onde um entra com o aporte da forma que for mais conveniente e o outro faz a exposição da marca, ou do nome da empresa, é imprescindível esta manutenção de boas intenções entre as partes.

Dessa parceria existente entre patrocinado e patrocinador surge uma imagem comercial conjunta, a qual é exposta a terceiros, criando laços de vinculação entre as duas partes, existindo uma associação da imagem do patrocinado com o patrocinador e vice-versa.

Por vivermos em uma sociedade que se denomina solidária, se espera que a boa-fé seja vista atuante nos contratos, ainda mais em um contrato de alto risco, como é o de patrocínio, onde as duas ou mais partes estão expondo suas imagens e credibilidade para o público, correndo o risco de verem seu crédito perante a sociedade abalado caso não seja bem formulado ou bem executado o contrato ou ainda realizado com má-fé.

A boa-fé, portanto, opera em todas as fases do contrato. Desde o seu princípio, nas negociações preliminares até o momento de sua execução. A lealdade e o compromisso para com o que é considerado social e moralmente correto permanecem em todos os momentos da existência do negócio, protegendo em todos os momentos ambos os contratantes de eventual tentativa de vantagem indevida de um sobre o outro.

CLAUDIA LIMA MARQUES neste sentido outorga autoridade à afirmação, quando sustenta: “Esta visão dinâmica e realista do contrato é uma resposta à crise da teoria das fontes dos direitos e obrigações, pois

17 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contrato Novos Paradigmas. 2.ed. São Paulo: Renovar, 2006, p.117.

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permite observar que as relações contratuais durante toda a sua existência (fase de execução), mais ainda no seu momento de elaboração (de tratativas) e no seu momento posterior (de pós-eficácia), fazem nascer direitos e deveres outros que os resultantes da obrigação principal. Em outras palavras, o contrato não envolve só a obrigação de prestar, mas envolve também uma obrigação de conduta!”18

A boa-fé veio para exercer uma tríplice função na esfera contratual e, por óbvio, vê seu reflexo nos contratos de patrocínio para: a) fixar deveres de conduta, deveres estes que antes não existiam, e, como denominados por CLAUDIA LIMA MARQUES, deveres anexos19; b) como limitadora da autonomia contratual, ou como diz a autora supracitada direitos subjetivos20; e c) trazer uma nova forma de se interpretar o contrato, onde a cooperação e o respeito pela outra parte é conduta tida como adequada.

Sobre os deveres anexos, novamente JUDITH MARTINS-COSTA refere: “Esses deveres, assinala MARIO JULIO DE ALMEIDA COSTA, são derivados ou de cláusula contratual, ou de dispositivo de lei ad hoc ou da incidência da boa-fé objetiva. Podem situar-se autonomamente em relação à prestação principal, sendo ditos ‘avoluntarísticos’ nos casos de inidoneidade da regulamentação consensual para exaurir a disciplina da relação obrigacional entre as partes. São ditos, geralmente, ‘deveres de cooperação e proteção dos recíprocos interesses’, e se dirigem a ambos os participantes do vínculo obrigacional, credor e devedor”21.

RUY ROSADO também faz clara exposição sobre a importância dos deveres acessórios: “A boa-fé tem duas funções principais: criar deveres secundários de conduta (anexos ou acessórios) e impor limites ao exercício de direitos. Para exame da primeira dessas funções, de pronto se observa sua presença em todas as fases do desdobramento da relação intersubjetiva: independentemente de qualquer contrato (basta o ‘contrato social’), na preparação dele (tratativas) ou na sua celebração, durante a fase de

18 LIMA MARQUES, Claudia. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5.ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2006, p.218. 19 LIMA MARQUES, Claudia, Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5.ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2006, p.215. 20 LIMA MARQUES, Claudia. Op. cit., p.215. 21 MARTINS-COSTA, Judith. Op. cit., p.438-439.

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execução e mesmo depois de cumpridas as prestações principais de ambas as partes”22.

Assim, fica claro que a boa-fé objetiva traz consigo a expectativa de que ambas as partes vão zelar pelo patrimônio do outro, oferecendo assim uma maior chance de sucesso ao contrato, o que neste tipo contratual se revela essencial.

Este respeito pelo direito da parte contrária é que se vê fundamental no contrato de patrocínio, por se estar lidando com algo tão delicado, volta-se a destacar, como a imagem e a boa aparência diante do público das partes contratantes. Através da imagem é que se irá melhorar o conceito de ambos os contratantes perante a sociedade, fazendo com que tanto o patrocinador como a visão do patrocinado usufruam das benesses de um contrato bem executado nos ditames da boa-fé.

Evidentemente que é mais comum estar se lidando com a imagem do patrocinador, pois é este o que normalmente possui uma imagem a zelar e a alargar, via de regra, mas isto nada obsta a que em determinadas situações o patrocinado também necessite desta ampliação de notoriedade e busque um parceiro para realizar algum evento em que sua imagem ficará exposta e assim necessita de uma fiel colaboração, sem que sejam cometidos abusos ou atitudes que venham a prejudicar a realização do evento pelo patrocinador, situação que não interessa a nenhuma das partes.

Denota-se, então, que a boa-fé traz em sua essência este compromisso quase que “familiar” no sentido de que se deve ter com a parte contratante a mesma fidelidade, a mesma lealdade, que se teria com um membro da própria família. O patrocinador e o patrocinado acabam tendo este vínculo onde os dois devem manter a lealdade para que ambos possam usufruir dos benefícios que são inerentes ao contrato de patrocínio quando bem realizado.

O conteúdo nele previsto, usualmente, é estabelecido pelas duas partes de comum acordo, onde ambos estabelecem formas de proteção em casos de descumprimento do contrato. As obrigações são normalmente detalhadas e descritas em suas cláusulas, assim como as cláusulas de resolução automática, as de distribuição dos riscos e o estabelecimento de

22 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor. 2.ed. Rio de

Janeiro, p.249-250.

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cláusula penal para o eventual descumprimento ou prejuízo que possa advir da má execução ou descumprimento do pactuado.

O patrocinador fica incumbido de uma obrigação de dar ou entregar, uma colaboração ao patrocinado, para que a atividade que este último pretende ver posta em prática fique viabilizada.

A forma de “ajuda” prestada pelo patrocinador normalmente se dá pela colaboração financeira ou in natura. Quando for monetária a colaboração, o patrocinador irá entregar ao patrocinado a quantia contratualmente acertada, constituindo essa a sua obrigação principal do contrato, repassando ao patrocinado as demais. Quando for prestado in natura, o patrocinador se obriga a repassar ao patrocinado uma série de serviços essenciais que possibilitem a realização da atividade esperada.

Colaborando com o exposto, ELENA DOMINGO com clareza leciona: “La atribuición puede ser de dos tipos: en dinero o in natura. No obstante, no es raro que se combinen ambas modalidades. (...) Para llevar a cabo la actividad sometida a patrocínio, se requiere que el espónsor entregue una cantidad de dinero al patrocinado, lo que constituye en la obligación principal. (...) En segundo lugar, y en cuanto a la prestación in natura, el espónsor, en algunos casos, se obliga también a proporcionar a la otra parte una serie de bienes o de servicios necesarios para la realización de su actividad”23.

No que tange às obrigações do patrocinado, este que está diretamente ligado com o conteúdo do contrato de patrocínio, por ser ele o responsável pela exposição do nome do patrocinador, é difícil estabelecer de maneira geral quais são suas obrigações, pois estas irão depender do tipo de patrocínio a parte se obrigou.

Mas se pode afirmar que assume uma obrigação de fazer a promoção da imagem, de forma adequada, responsável e diligente, para que não ocorram prejuízos ao bom nome da empresa ou do produto que está sendo exposto. O patrocinador assume o compromisso de tentar fazer com que a empresa ganhe em retorno publicitário, expandido o seu nome diante da sociedade, para que posteriormente isto se reflita no aumento de vendas de seus produtos.

23 VICENTE DOMINGO, Elena. El Contrato de Esponsorización. 1.ed. Madrid: Civitas, 1998, p.110-111 e

114.

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Sobre o conteúdo do contrato, via de regra, em termos gerais, são duas as cláusulas principais que são incluídas neste contrato. A cláusula que impõe ao patrocinador a colaboração de forma que fique viabilizada a realização do esperado e, de outro lado, a cláusula que obriga o patrocinado a expor publicamente que o patrocinador foi diretamente responsável na colaboração do evento, ou seja, lhe provendo o retorno em publicidade.

Assim ELENA DOMINGO explica: “En la mayoria de los contratos de esponsorización se insertan una serie de cláusulas que podemos llamar típicas por ser las que habitualmente se incluyen, si bien no son cláusulas esenciales, las cuales, como hemos visto, son dos: la ayuda y el retorno en publicidad”24. Ou seja, fica evidenciada a existência de uma legítima expectativa do patrocinado, o qual fica vinculado ao patrocinador e depende deste para a realização do pretendido. Assim como o patrocinador tem uma expectativa de lealdade de parte do patrocinado, confiando que este irá proceder da forma correta na hora de expor a sua marca para o público, aos efeitos de que o retorno seja o melhor possível.

A relação de patrocínio existente entre as partes é um contato, um contrato social, que as une e que as vincula. Por estarem vinculadas, devem ter respeito mútuo para a melhor convivência. Neste ponto, então, é que se encaixa a boa-fé nas relações contratuais, e nos contratos de patrocínio, visando a preservar esta atitude correta dos contratantes. Desobrigar as partes em cumprir com seus encargos extracontratuais seria o mesmo que dizer-lhes que podem cometer quaisquer tipos de abusos e desrespeitos ao direito dos demais contratantes, seria o mesmo que permitir que se agisse com má-fé.

Assim, sendo o contrato de patrocínio um contrato em que a ajuda e o retorno em publicidade são as prestações normalmente esperadas, e que é possível aceitar as mais diversas obrigações, imprescindível que seja mantida a boa-fé neste tipo contratual, para que estas obrigações não se tornem abusivas.

O conteúdo do patrocínio por parte do patrocinado constitui uma obrigação, geralmente, de fazer; de fazer com que a imagem seja exposta de uma forma positiva para o público-alvo, que se não for estabelecida no corpo do próprio contrato deverá ser feita de forma que seja a mais adequada para o tipo de atividade que exerce a empresa patrocinadora.

24 VICENTE DOMINGO, Elena. Op. cit., p.117.

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O princípio da boa-fé é relevância inegável, haja vista que não se pode admitir que a imagem do patrocinador seja exposta a risco maior do que aquele implicitamente ligado ao contrato por uma postura inadequada do patrocinado. O risco neste negócio jurídico é inerente como em qualquer outro contrato, mas aqui, entretanto, como se trata da imagem do patrocinador, a cautela há de ser ainda maior para que, acaso o objetivo do patrocínio não seja atingido, ao menos não venha causar prejuízos à imagem daquele que patrocinou.

Como expõe ELENA DOMINGO: “El contrato, juridicamente hablando, es comutativo, salvo que las partes modifiquen el riesgo; y, desde el punto de vista económico, es arriesgado porque el pago del esponsorizado en más o menos publicidad queda condicionado al éxito o fracaso de este en su actividad. Si esto ocurriera, a la perdida económica habría que sumar la perdida en imagen del espónsor”25.

Através desta explicação, denota-se que o prejuízo para o patrocinador, em caso de má execução do contrato ou no caso de insucesso do investimento, pode adquirir maior importância do que apenas o montante investido no evento, haja vista estar se lidando com extrema subjetividade, como a imagem da empresa patrocinadora, restando, pois, uma dificuldade quase intransponível para se calcular de forma concreta eventual prejuízo.

A boa-fé também impõe não apenas ao contrato de patrocínio, mas aos contratos em geral, uma série de prestações “extracontratuais”, para que o esteja escrito, caso demasiado oneroso, não prevaleça.

TERESA NEGREIROS traz boa explicação a respeito: “... a existência de deveres decorrentes da boa-fé atenua a distinção entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual. De fato, o conteúdo do contrato amplia-se, por força da boa-fé, para além das obrigações estritamente contratuais. Ao lado das obrigações que não existiriam fora do contrato, a boa-fé passou a incluir no contexto contratual o dever geral de não causar dano, em todas as suas múltiplas especificações”26.

Outro princípio que hoje também tem grande relevância para a teoria contratual contemporânea é o princípio do equilíbrio econômico do contrato. Surgiu para prevenir que disparidade de poder econômico 25 VICENTE DOMINGO, Elena. Op. cit., p.139. 26 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos – Novos Paradigmas. 2.ed. São Paulo: Renovar, 2006, p.155-

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existente entre as partes acarrete a possibilidade de existência de desproporção nas prestações estabelecidas.

CLÓVIS DO COUTO E SILVA foi um dos primeiros no Brasil a mencionar a respeito do equilíbrio das partes no contrato: “Como se cuida de regular o risco nos contratos, logo veio a ideia de considerar as modificações das circunstâncias como espécie da impossibilidade, a qual, como ninguém ignora, tem precipuamente essa função. É, aliás, o que sustenta K. LARENZ, ao afimar que o conceito objetivo da base do negócio jurídico se vincula com a finalidade real do contrato e procura responder à questão de saber se a intenção geral dos contratantes pode ainda efetivar-se, em face das modificações econômicas sobrevindas”27.

Essencial este princípio para o caso dos contratos de patrocínio, pois, muitas vezes, o benefício para uma das partes, devido ao seu poder econômico ou à maior possibilidade de negociação que uma parte possui sobre a outra, pode gerar diversas irregularidades.

É corrente a ideia, e não poderia se dar de maneira diversa, que o equilíbrio, a equidade e a proporcionalidade contratual devem caminhar juntos para evitar qualquer tipo de lesão proveniente de eventual onerosidade excessiva advinda do contrato celebrado. Este novo cânon contratual vem por vedar a existência de vantagem exagerada e injustificável para uma das partes. O sinalagma contratual deve ser mantido sob todas as hipóteses, impedindo a existência de enriquecimento injustificado.

Assim ensina PAULO LUIZ NETO LOBO, ao referir que: “Talvez uma das maiores características do contrato, na atualidade, seja o crescimento do principio da equivalência das prestações. Este principio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis”28.

O contrato de patrocínio permite a existência de um intercâmbio entre as partes, pois estas serão expostas para a sociedade, na medida em que estarão juntas realizando determinado evento. Isto se revela como mais uma das particularidades do conteúdo do contrato de patrocínio, pois, apesar do 27 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A teoria da Base do Negócio Jurídico no Direito Brasileiro.

RT, p.9, 1990. 28 NETO LOBO, Paulo Luiz. Contrato e Mudança Social. RT, 722, p.42, 1995.

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objetivo de publicidade maior ser do patrocinador, invariavelmente o patrocinado acaba recebendo visibilidade.

Indubitavelmente, por ser um conceito claramente subjetivo, ainda se debate o que seria uma relação contratual considerada justa, face à notória bilateralidade existente. Ademais, mister se ter claro que tal conceito é mutável com o passar do tempo, bem como de sociedade para sociedade. Mas afora o aspecto retro, o que fica claro é que a busca pela justiça social através de um meio tão corrente em nossa sociedade é cada vez mais explorado.

Sobre o equilíbrio econômico, TERESA NEGREIROS explica que: “O fato é que, em contraste com o que se passava no direito contratual clássico, onde sobressaía a fase de formação e manifestação da vontade de contratar, o princípio do equilíbrio econômico incide sobre o programa contratual, servindo como parâmetro para a avaliação do seu conteúdo e resultado, mediante a comparação das vantagens e encargos atribuídos a cada um dos contratantes”29.

Assim, equilíbrio econômico surge inspirado em outro princípio, só que de ordem constitucional, o princípio da igualdade substancial, consagrado no art. 3º, III, da Constituição Federal, que visa a impedir que aquela igualdade apenas formal faça com que um dos contratantes ganhe exageradamente em cima do outro.

Desta forma, o equilíbrio entre patrocinador e patrocinado é essencial para o desenvolvimento do contratado. É inaceitável que um dos pactuantes, devido a uma situação que lhe é favorável no momento, se aproveite disto para contratar de forma desproporcional.

TERESA NEGREIROS elucida: “De acordo com este princípio, a justiça contratual torna-se um dado relativo não somente ao processo de formação e manifestação da vontade dos declarantes, mas sobretudo relativo ao conteúdo e aos efeitos do contrato, que devem resguardar um patamar mínimo de equilíbrio entre as posições econômicas de ambos os contratantes. Definitivamente, a justiça contratual deixa de ser concebida como uma decorrência inexorável da autonomia da vontade”30.

29 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos – Novos Paradigmas. 2.ed. São Paulo: Renovar, 2006, p.158-

159. 30 NEGREIROS, Teresa. Op. cit., p.159.

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A prestação entre ambos deve ser proporcional em todos os momentos, assim como os benefícios para as partes. O equilíbrio econômico deve ser mantido para que seja facilitada a negociação de um contrato equilibrado, ou, em casos de situações supervenientes, possa fazer as adequações retornarem com o sinalagma contratual, sem que este tenha de ser extinto ou revisado judicialmente.

Não há como dissociar este princípio da busca por um conceito de justiça, visto que, para muitos, o equilíbrio é a justiça em si mesma. Através dele, busca-se uma posição intermediária nas relações entre as partes, e no momento em que se verifica comprometimento, sempre que se verifica alguma pendência para um dos lados, transformando uma relação que deve ser isonômica em uma relação desequilibrada, existe um defeito passível de alteração.

O patrocinador não pode tirar proveito de seu poderio econômico, ou da necessidade que o patrocinado possua, para abusar do seu direito de expor a sua imagem de forma desproporcional, nem pode o patrocinado, de forma irresponsável, expor a marca ou o nome da empresa de um modo qualquer, sem preocupar-se com as repercussões que podem da conduta advir.

TERESA NEGREIROS mais uma vez com sabedoria exemplifica: “Um contrato livremente pactuado pode ser, não obstante, um contrato injusto e, nesta medida, pode ser revisto, modificado judicialmente ou mesmo integralmente rescindido: à ênfase na liberdade sucede a ênfase na paridade. Trata-se, pois, de uma transformação profunda no conceito de justiça contratual”31.

Sobre essa paridade, objetivo primeiro deste princípio, a autora supracitada mais uma vez com clareza expõe que: “... a paridade como base do critério justo de distribuição proporciona avanços não desprezíveis. Em primeiro lugar, evidencia-se o caráter essencialmente social da justiça. Já Aristóteles sustentava a impossibilidade de se praticar uma injustiça contra si próprio, pelo que o suicídio é injusto apenas na medida em que seja prejudicial ao Estado. Com efeito, só mesmo a verve artística, ironicamente crítica, dá sentido à afirmação de que uns são mais iguais do que outros. Assim, da mesma forma que a igualdade é relativa, a justiça também o é:

31 NEGREIROS, Teresa. Op. cit., p.160.

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‘julgar é sempre mais ou menos comparar. E é nisso que toda justiça, mesmo a justiça reflexiva, é social’”32.

Por derradeiro, mas com certeza não menos relevante para a teoria contratual e para os contratos de patrocínio, é a existência do terceiro princípio regulador da concepção contemporânea dos contratos: o princípio da função social.

Salta aos olhos a importância social do contrato de patrocínio e, via de consequência, sua função a cumprir perante a sociedade se faz igualmente importante. Surge junto com os demais princípios para questionar aquela óptica individualista outrora existente no direito brasileiro. Apenas a partir do Código Civil atual é que ele passou a ser positivado de forma infraconstitucional, mais especificamente no art. 421 do Código Civil.

Esse primado faz com que o interesse do contrato transcenda ao das partes diretamente envolvidas, dando um alcance e uma relevância jurídica ainda maior a este instituto. Há, pois, uma verdadeira socialização do contrato!

Como o patrocínio, hoje, é uma das formas mais comuns de permitir que sejam realizados eventos de interesse geral, obras que virão a beneficiar toda a sociedade, ou até mesmo acontecimentos que tenham apenas cunho de entretenimento, mas que são igualmente importantes para a sociedade em que vivemos, a função social que ele tem a cumprir é de relevância singular. Este contrato, em especial, quiçá com mais intensidade que os demais, não pode ficar atrelado apenas às partes. Sua relevância é tamanha que praticamente nenhum evento, nem mesmo os de pequenas proporções, ocorre sem a existência de pelo menos um patrocinador.

A busca por uma sociedade mais solidária entre si fez com que a concepção clássica do contrato acabasse sucumbindo, permitindo então que princípios como o em comento socializassem este instituto. A função social visa exatamente a esta solidarização da sociedade através do contrato, visando a que este seja um meio para que a justiça social seja atingida, não prevalecendo o bem individual sobre o bem coletivo. O contrato, através deste princípio, se transforma em um importante aliado para a concretização dos objetivos estabelecidos pela nossa Constituição, quais sejam uma sociedade livre, solidária e justa.

32 NEGREIROS, Teresa. Op. cit., p.166.

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ARNALDO RIZZARDO, em clara passagem sobre a função do contrato, cita TALAVERA, explicando: “A função social do contrato exprime a necessária harmonização dos interesses privativos dos contraentes como os interesses de toda a coletividade; em outras palavras, a compatibilizarão do princípio da liberdade com igualdade, vez que para o liberal o fim principal é a expansão da personalidade individual e, para o igualitário, o fim principal é o desenvolvimento da comunidade em seu conjunto, mesmo que ao custo de diminuir a esfera de liberdades dos singulares”33.

Os reflexos que geram as relações contratuais de patrocínio, isto é, a influência que possuem sobre terceiros, fazem com que este instituto venha a ter de cumprir com este princípio batizado como função social.

O autor gaúcho LUIS RENATO FERREIRA DA SILVA também ensina: “Os reflexos externos das relações contratuais, ou seja, as relações contratuais enquanto fato que se inserem no mundo de relações econômicas e sociais, com isto integrando-se à cadeia produtiva e afetando a esfera de terceiros, impõem um comportamento solidário, cooperativo, que é atuado pela ideia de função social no exercício da liberdade contratual (regra do artigo 421 do Novo Código)”34.

E segue o mesmo autor, referindo: “Passou-se a considerar que o contrato atende ao interesse dos contratantes, mas extrapola a esses interesses na medida em que atinge toda a cadeia econômica em que se insere. Neste sentido, o contrato, típico da autonomia privada, passa a ter uma faceta pública, no mínimo em relação àqueles que possam estar indiretamente vinculados ao adimplemento ou à quebra de um contrato”35.

Assim, no momento em que existe uma quebra no contrato de patrocínio, não afeta apenas as partes diretamente envolvidas, mas traz reflexos igualmente para a sociedade em geral, podendo estas consequências ter um cunho negativo não apenas para a imagem do patrocinador ou patrocinado, mas também para todos, visto que aquele contrato que não foi cumprido geraria, no mínimo, circulação de riqueza, o que, induvidosamente, sempre possui relevância.

33 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.21. 34 FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. A função Social do Contrato no novo Código Civil e a sua

Conexão com Solidariedade Social. In: WOLFGANG SARLET, Ingo (Org.). O Novo Código Civil e a Constituição. 1.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.133.

35 FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. Op. cit., p.136.

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O contrato de patrocínio é, destarte, um destes meios de circulação de riquezas que, ao propiciarem a possibilidade de geração de eventos ou de obras ou qualquer outra atividade, estão indiretamente fazendo com que novas atividades surjam a partir desta primeira, gerando empregos, permitindo o acesso à cultura, entre outros benefícios.

Esse princípio traz uma soberania do interesse público sobre o privado, faz com que prevaleça uma justiça distributiva36 em vez de uma justiça retributiva, característica existente quando a autonomia da vontade se fazia absoluta.

ARNALDO RIZZARDO traz exatamente esta ideia: “Veio introduzida a função social do contrato, que leva a prevalecer o interesse público sobre o privado, a impor o proveito coletivo em detrimento do meramente individual, e a ter em conta mais uma justiça distributiva que meramente retributiva. Rompe-se com o princípio arrimado no velho brocardo latino suum cuique tribuere – dar a cada um o seu. Rompe-se, ainda, o individualismo que estava muito em voga no Século XIX e até metade do Século XX (...)”37.

Através desse primado social que é dado ao contrato, a preocupação passa a ser com a comutatividade, e não com o simples cumprimento do pactuado. O equilíbrio entre as partes, a justiça importa acima do cego cumprimento da manifestação volitiva inicial.

A função social permite, então, que no momento em que passe a existir uma desproporcionalidade nas prestações exista uma revisão do que fora anteriormente pactuado, com o intuito de que o contrato seja mantido e não rescindido, pois com o advento de algum benefício muito maior para uma das partes em detrimento da(s) outra(s) o inadimplemento é quase que certo, o que não é socialmente justificável.

De outra banda, é possível afirmar que a extinção de um contrato de patrocínio não é socialmente interessante, pois é através dele que algo que seria importante, se não para a sociedade como um todo, para parte dela pelo menos, não mais irá se realizar. Revela-se mais vantajoso que este contrato seja inicialmente revisado e readequado, para que possa cumprir sua função social.

36 Sobre o tema, é esclarecedor o ensaio de PLAUTO FARACO DE AZEVEDO. FARACO DE AZEVEDO,

Plauto. Justiça Distributiva e Aplicação do Direito. 1.ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1983. 37 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.21.

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LUIS RENATO robora ao dizer: “A ideia de revisão (que tem tomado, no Brasil, dimensões bastante significativas do início da década de 1990 em diante) tem como finalidade justamente permitir a manutenção dos contratos, com isso permitindo que não se rompa a corrente econômica da qual ele é um elo”38.

Não possuindo ele um modelo a ser seguido e tendo de se manter o sinalagma contratual sob qualquer hipótese, é fundamental para o sucesso do negócio, sem a existência de qualquer nulidade, que as partes respeitem os três princípios supracitados no momento da elaboração do contrato, pois em sendo ele um reflexo da liberdade de contratar existente entre as partes, necessário que se vejam presentes os novos preceitos reguladores.

A boa-fé, o equilíbrio econômico e a função social, então, permitem que o contrato de patrocínio exista em nosso mundo e cumpra com a sua utilidade de forma adequada, sem que existam prejudicados. Como este contrato visa, muitas vezes, a colaborar para que eventos de interesse público, é importante que os patrocinadores não se sintam inseguros em relação ao que pode vir a ocorrer, pois, em muitas ocasiões, o contrato é assinado com o poder público, o qual possui maior poder negocial, via de regra, do que as partes privadas.

O contrato de patrocínio possui também variadas espécies, sendo que cada tipo específico irá se adequar melhor ao tipo de exposição que o patrocinador espera obter. Os mais presentes em nossa sociedade são os contratos de patrocínio esportivo, cultural e televisivo. Cada um com suas particularidades, seus pormenores, que fazem com que sejam espécies diferentes dentro de um contrato já muito particular como o de patrocínio.

O patrocínio desportivo como ensina ELENA DOMINGO: “Cuando se habla de la esponsorización sin conocer realmente el fenômeno, se identifica con el deporte, con el patrocínio publicitário exclusivamente deportivo, hasta el punto que se utilizan como sinónimos. Sin embargo, la esponsorización deportiva no es toda esponsorización sino que se está haciendo referencia al contrato por el cual se ayuda económicamente a una actividad deportiva con finalidad de notoriedad”39.

38 FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. A função Social do Contrato no Novo Código Civil e a sua

Conexão com Solidariedade Social. In: WOLFGANG SARLET, Ingo (Org.). O Novo Código Civil e a Constituição. 1.ed. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2003, p.145.

39 VICENTE DOMINGO, Elena. El Contrato de Esponsorización. 1.ed. Madrid: Civitas, 1998, p.66-67.

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No que diz respeito ao patrocínio cultural, este não é tão dirigido às massas como o esportivo, tendo, pois, uma expectativa de retorno com prazo mais extenso. Ele visa a colaborar para a elaboração de uma obra ou evento com destacado valor cultural.

Restando claro que o contrato de patrocínio possui grande relevância econômico-social, a ponto de não poder ser ignorado por setor algum, fazendo com que sempre que celebrado tal contrato devam ser tomadas todas as cautelas necessárias para que ele seja elaborado de acordo com todos os princípios aqui destacados, aos efeitos de evitar futuras revisões.

O cuidado com a imagem do patrocinador, em especial, deve ser total, pois caso deixe de ser economicamente interessante para as empresas exporem seus nomes mediante patrocínio - uma forma muito eficiente de se trazerem benefícios à sociedade em geral –, estarão se perdendo benefícios sociais, portanto com consequências que irão afetar não só aqueles que necessitam de suporte financeiro ou de apoio logístico, mas também todo o público que direta e indiretamente usufrui dos benefícios deste tipo contratual.

2.2 Contrato de Patrocínio Como Contrato Atípico: Seus Limites e Suas Possibilidades

O contrato de patrocínio, tendo a sua atipicidade evidenciada, carece de forma legalmente prevista, ficando a cargo das partes a responsabilidade de estabelecer o seu conteúdo de modo integral.

Assim, as possibilidades e os limites são estabelecidos através de critérios subjetivos que vão ao encontro do melhor interesse dos contratantes e da sociedade, cabendo às partes manterem a razoabilidade e a proporcionalidade para que o contrato siga aqueles princípios gerais do direito, sendo estabelecido de forma isonômica, permitindo que ambos os contratantes se beneficiem.

Tanto os limites como as possibilidades são conceitos amplos e que vão sendo estabelecidos com o tempo e de acordo com as reais necessidades econômicas e sociais de maneira geral, bem como pelo que se acredita ser socialmente adequado e moralmente correto.

Os limites e as possibilidades do contrato de patrocínio estão intrinsecamente ligados, visto que se pode dizer que as possibilidades vão existir e ser exploradas sempre dentro de determinados limites, os quais, por sua vez, vão sendo impostos a estes contratos em particular, seja por

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eventual lei que venha a tratar do tema, seja por entendimento jurisprudencial e doutrinário, além daquelas tradicionais imposições feitas pelos princípios gerais da teoria contratual.

Os contratos de patrocínio, por lidarem com um bem que possui delicadeza notória - a imagem do patrocinador –, devem ter muito bem definidos em seu corpo o objeto e a forma de exploração, para que o patrocinado não venha a se exceder em suas atribuições, expondo o nome da empresa ou produto de forma exagerada ou equivocada, ou, ao contrário, vindo a tornar inefetivo o objetivo do pacto por não proporcionar exposição de imagem de maneira suficiente.

Caso não seja executada de maneira adequada a exposição pretendida, o contrato acaba perdendo seu objeto, tendo como consequência natural a sua extinção ou no mínimo a revisão de seus termos iniciais, o que por óbvio, não é o que se espera quando da celebração. Da mesma maneira isto igualmente ocorrerá caso o patrocinador não cumpra com as suas obrigações para com o patrocinado, o qual se verá prejudicado, e assim também possivelmente verá extinto o negócio jurídico.

Assim, é necessário que esta exploração e exposição da imagem e esse apoio ao beneficiário direto (patrocinado) sejam feitos de acordo com os princípios dos contratos, para que não sejam ultrapassados os limites do razoável e que as possibilidades sejam sempre exploradas ao máximo, visando ao maior benefício possível para todos os envolvidos.

Esses limites e possibilidades vão estar sempre e invariavelmente ligados aos princípios gerais dos contratos, visto que estes por si mesmos impõem certas restrições a este modelo contratual. A boa-fé, o equilíbrio econômico e a função social vão delimitar e conferir aos contratantes a ideia de até aonde estes estão legitimados a ir, sem que acabem caindo em irregularidades e ilicitudes que façam com que se proceda a uma revisão ou extinção contratual.

Apresentando-se como um contrato que possui relevância social acima do comum, pois é através deste que se viabilizam diversos eventos de interesse da coletividade, mostra-se ainda mais importante que sejam aplicados com algum rigor os princípios do contrato, para que fiquem estabelecidos limites claros do que é possível ser ou não pactuado neste tipo contratual e de que forma isto pode ser feito, pois os reflexos e efeitos deste transcendem superlativamente os interesses das partes, não restando

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limitado apenas à esfera da relação privada, pois afeta também os demais indivíduos da sociedade.

Então, cumpre questionar: quais, realmente, são os seus limites e possibilidades?

A resposta para tal questionamento é de que suas possibilidades são o mais abrangentes possível, pois, mesmo que aplicados com rigor, os princípios têm por objeto viabilizar que contratos não tipificados possam existir. Já no referente a seus limites, mostra-se que ainda que aplicados com severidade os princípios, estes não são impeditivos à pactuação. Ou seja, irão se verificar quais são os limites e as possibilidades, principalmente através da aplicação dos primados contratuais, além é claro de princípios de ordem constitucional, os quais, aliás, são aplicados a qualquer contrato.

Certamente se verifica mais fácil asseverar que os limites existentes são aqueles que protegem as partes de eventuais abusos, de deslealdades, e que se vinculam diretamente com a boa-fé, ou vedam o enriquecimento sem causa de uma das partes em detrimento da outra, este último requisito estando mais vinculado ao princípio do equilíbrio contratual e à função social. Estes, pode-se afirmar, são os principais limites, os quais acabam por se confundir com o limite de qualquer outro contrato.

Contudo, certas restrições de maior especificidade devem ser ressaltadas, por se tratar de contrato especial que contém suas peculiaridades. Por exemplo, é inadequado, apesar de não ser defeso, que o contrato seja mantido de forma verbal ou informal, pela dificuldade existente em definir não apenas a sua existência no mundo material, mas também de definir quais são as reais obrigações de cada parte, pela inexistência de cláusulas definidoras de direitos e obrigações. A prova a ser feita desta existência se tornará circunstancial, não dando garantia a nenhuma das partes do reconhecimento deste.

Para que não venha a gerar conflitos quanto à sua existência, deve ser celebrado regularmente de forma escrita, para que não existam dúvidas no tocante a este aspecto, assim se denotando que, apesar da possibilidade de ser um contrato informal, não é recomendável tal prática.

Outro aspecto relevante a ser destacado é que o patrocinador não necessariamente é corresponsável por danos causados a terceiros apenas por estar contribuindo para o acontecimento de determinado evento. Quer-se dizer com esta afirmação que ter o nome vinculado a determinado evento, seja ele de que natureza for, não obrigatoriamente o vincula e o

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torna responsável por eventuais indenizações decorrentes de prejuízo a terceiros pelo evento.

Evidentemente, tal circunstância dependerá do tipo de colaboração que foi prestada. Se o patrocinador ficou responsável pela organização do evento e pelo fornecimento, por exemplo, de materiais para que fosse viabilizada a realização, fica claro que incidentes causados pela falta de cuidado lhe imporá o dever de ressarcir quem sofrer danos, mas isto não se faz regra.

A possibilidade da solidariedade existe, também pode ser composta contratualmente, caso não vá de encontro aos princípios da boa-fé e do equilíbrio econômico, ficando, desta forma, todos responsáveis por eventuais danos.

Neste sentido, julgado do TJRS:

“Responsabilidade Civil. Desabamento de Arquibancada. Assistente Que Restou Paraplégico. Culpa Reconhecida ao Agente Público e Empresa Envolvida na Promoção e Organização do Evento. Veículo de Comunicação Que Assumiu Tão Somente o Patrocínio do Evento. 1. Agravo Retido. Intempestividade. Decidida questão incidente quando do início da coleta das provas, descabe a interposição de Agravo Retido apenas quando encerrada a instrução do feito. Matéria preclusa. Recurso intempestivo. 2. Preliminares. 2.1 Nulidade da Sentença. Objeto do Agravo Retido reeditado no recurso de Apelação. Descabimento. 2.2 Ilegitimidade Passiva. Carência de Ação. Tratando-se de responsabilidade aquiliana, a legitimidade passiva ad causam está vinculada ao exame do próprio mérito da demanda. 3. Responsabilidade. Culpa Reconhecida. Dever de Indenizar. 3.1 Pessoa Jurídica de Direito Público. Estabelecida a responsabilidade do agente público ao evento danoso, por omissão, presente o dever de o ente público indenizar. Responsabilidade objetiva. Aplicação da Teoria do Risco Integral, art. 37, § 6º, da CF/88. 3.2 Pessoa Jurídica de Direito Privado. Dever de compensar o dano ante a desatenção ao preceito de não lesar, art. 159 do CCB. Responsabilidade subjetiva. Empresa que visava ao lucro com o evento direto ou indireto, desimportando tenha obtido ganho. Obrigação de zelar pela integridade dos participantes e assistentes da competição que promovia. 3.3 Veículo de Comunicação. Inexiste, quer pela lei, quer pelo contrato trazido aos autos, qualquer parcela de

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responsabilidade deste com o ocorrido, pois ficou-lhe afeta tão somente a publicidade, ou inserção do evento na mídia, o que não lhe impunha o dever de fiscalizar a arquibancada que veio a desabar, vitimando o autor. 3.4 Culpa da Vítima. Inexistência. Ausência de prova de haver a vítima, com sua conduta, concorrido para o infortúnio. Comportamento dentro da expectativa do homem médio. 4. Danos Materiais. 4.1 Pensão. Fixada conforme rendimentos efetivamente comprovados. 4.2 Lucros Cessantes. Estabelecidos na medida dos gastos comprovados e despesas futuras a serem devidamente demonstradas e justificadas. Prejuízos que se protraem no tempo. Pagamento das despesas médicas impostas como consequência do acidente sofrido pelo autor. 5. Dano Moral e Estético. Presunção. Montante Indenizatório. Lesada a pessoa em sua integridade física ou psíquica, presente o dano moral. Existência de sequela determinante de ofensa à harmonia física do ofendido. Paraplegia em vista do acidente. Quantum indenizatório fixado por arbitramento pelo julgador, no cotejo da intensidade da ofensa, necessária compensação à vítima e reprimenda ao ofensor. A gravidade da culpa, no confronto com o dano e com as circunstâncias de fato, são elementos a incidir na fixação do quantum da indenização. Importância estabelecida dentro de uma equivalência com valores apontados em ações que traziam semelhantes circunstâncias de fato e respectivas consequências. 6. Danos Moral e Patrimonial. Cumulação. Possibilidade de serem cumulados os danos moral e patrimonial. Inteligência da Súmula n.º 37 do STJ. 7. Constituição de Capital. A constituição de capital assecuratório ao cumprimento da obrigação, em ilícito civil, é de rigor. Artigo 602 do CPC. Objetivo do instituto é o de assegurar o pleno cumprimento das parcelas alimentícias vincendas. Obrigação que se afasta das pessoas jurídicas de direito público. Tanto a União, os Estados, os Municípios e respectivas autarquias têm como presumida a sua solvibilidade. Circunstância que não se supõe quanto às pessoas jurídicas de direito privado, expostas às vicissitudes das atividades comerciais como um todo. 8. Honorários Advocatícios. Condenação. Ato Ilícito. Havendo condenação em ação indenizatória por ato ilícito, incidem os §§ 3º e 5º do art. 20 do CPC. Percentual que deve atender à justa remuneração do advogado, sem exacerbar o

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encargo principal da condenação. 9. Processual Civil. Pedido de AJG nas Razões de Recurso. Ausência de Preparo. Pedido de assistência judiciária gratuita formulado no curso da ação, art. 6º da Lei 1.060/50, reclama prova da alteração da situação financeira da parte, devendo, ademais, ser formulado em autos apartados. Ausência de preparo do recurso. Deserção que se decreta. Agravo Retido não conhecido, por intempestivo, e preliminares rejeitadas. Provido o primeiro apelo, em parte, declarado deserto o segundo apelo e provido o terceiro apelo. Voto parcialmente vencido.”40

Assim, através deste exemplo, pode-se notar que uma empresa que patrocinou o evento, colaborando para a sua existência de forma mais substancial, foi considerada responsável e condenada a ressarcir os danos causados pela falta de cuidado. No mesmo caso, percebe-se que a outra (patrocinador do evento), que ficou responsável pela vinculação e divulgação do evento na mídia, foi considerada não responsável pelos danos ocasionados, sendo, desta forma, isenta de qualquer tipo de indenização a qualquer dos lesados.

Não se aceita, outrossim, que uma tire proveito de situação superveniente à celebração do contrato e venha a enriquecer de forma ilícita, por ferir, como já exaustivamente mencionado, diretamente os princípios contratuais que visam exatamente a manter a lealdade contratual, que a isonomia entre as partes permaneça em todos os momentos, desde as fases negociais até o seu final.

A aplicação dos princípios inerentes aos contratos contemporâneos nota-se perfeitamente nesta busca pelos limites e possibilidades do contrato de patrocínio. Sua aplicação prática é verificada claramente, pois estes exigem e obrigam que as partes tenham de manter a lealdade para não verem o que foi contratado revisado ou extinto. É perfeitamente aceitável que uma das partes venha a buscar a rescisão do contrato por acreditar que a outra parte contratante não cumpriu com sua obrigação.

Isto pode verificar-se especialmente da parte do patrocinador que vincula sua imagem a uma pessoa ou a um evento. Quando pelas atitudes deste patrocinado ou pela reputação que adquire determinado evento que não por culpa sua passa-se a ter uma imagem negativa do patrocinador,

40 Apelação e Reexame Necessário nº 70003966025, 10ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,

Relator: Jorge Alberto Schreiner Pestana, julgado em 26.06.2003.

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este pode vir a buscar a desvinculação desta relação por estar sentindo-se prejudicado.

Está implícito em um contrato deste tipo que a conduta do patrocinado deve ser imbuída de cautela do mais alto grau para não atingir negativamente o seu colaborador, existindo a possibilidade de, no caso de este não cumprir com esta obrigação, ver-se rompido o contrato e vir a ser imputado ao patrocinado a culpa por tal situação.

Claro que não será qualquer tipo de atitude que irá fazer com que o contrato seja rompido, pois sempre está presente o risco do contrato, mas serão aquelas consideradas inadequadas socialmente quando firam os princípios da boa-fé e do equilíbrio contratual. Tal descumprimento pode, inclusive, gerar o direito de indenização.

ELENA DOMINGO refere sobre o tema que: “Es también frecuente la inclusión de cláusulas penales de efecto generalmente sustitório por virtud de las cuales el que incumple debe una suma de dinero previamente determinada, a cuenta de la indemnización de daños y prejuicios que si exceden de lo pactado pueden exigirse por la via judicial”41.

Cumpre, ainda, registrar o tema referente à multiplicidade de patrocinadores. Com efeito, nada impede e não haveria por que ser diferente, a não ser em casos de existência de cláusula de exclusividade ou no caso de incompatibilidade entre contratos, a existência de mais de um patrocinador para pessoa ou evento. Em verdade, na grande parte dos casos, e para verificar isto basta assistir a qualquer evento, é comum a existência de mais de um patrocinador, pois desta forma estar-se-á minimizando os custos para todos os envolvidos e, por decorrência, facilitando a realização de eventos.

Como paradigma a atestar que não existe impedimento para a existência de mais de um patrocinador, acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo proferido na Apelação Cível nº 295560480042.

Inúmeras vezes, inclusive, é prática comum entre os próprios patrocinadores acordarem entre eles quais as tarefas que estes se comprometerão a efetuar, ou qual a proporção de colaboração financeira que cada um irá prestar para a realização do evento.

41 VICENTE DOMINGO, Elena. El Contrato de Esponsorizacion. 1.ed. Madrid: Civitas, 1998, p.128. 42 Apelação Cível nº 2955604800, 4ª Câmara de Direito Privado, Tribunal de Justiça de São Paulo,

Relator J. G. Jacobina Rabelo, julgado 06.03.2008

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Igualmente, se o patrocinador utilizar-se de forma inadequada à imagem de seu patrocinado, este fará jus à indenização, pois este também não pode ser prejudicado pela má conduta, que pode ser lida, dependendo do caso, como falta de boa-fé, fazendo jus a ressarcimento pelo prejuízo que sofreu em sua imagem.

Denota-se, então, a existência de um limite de onde a partir de determinado momento as atitudes de uma parte ou de outra deixam de ser consideradas aceitáveis, dando ensejo a consequências para a parte que não adimpliu corretamente com suas obrigações, mesmo que obrigações acessórias ao contrato.

Neste sentido, a jurisprudência:

“Agravo de Instrumento - Liquidação de sentença por arbitramento para apuração de danos exclusivamente materiais decorrentes de uso indevido de imagem de atleta profissional. Produção de Prova Pericial. Indenização arbitrada pelo MM. Juiz, que acolheu parcialmente o laudo pericial, na parte em que estimou os danos materiais, corrigindo o valor de um contrato celebrado entre o agravado e a empresa São Paulo Alpargatas, na época dos fatos, utilizado como parâmetro. Inconformismo da agravante em relação à utilização desse parâmetro. Ausência da juntada, neste agravo, de cópia do contrato utilizado como parâmetro. Formação deficiente que não permite exame acurado das razões do recurso. Recurso não conhecido.”43

Por se tratar de contrato atípico, em que não existe um modelo “pronto” de como deve ser elaborado o contrato, a atuação dos princípios no estabelecimento dos limites e possibilidades é fundamental. É através deles que se poderá dizer o que é permitido e razoável neste contrato e o que não o é.

Caso o contrato acabe obrigando uma das partes a sacrificar-se para cumprir o que esta acordado, o princípio do equilíbrio contratual não deverá permitir que isto ocorra. Caso exista qualquer atitude desleal ou que venha a ferir a confiança de um contratante para com o(s) outro(s), o princípio da boa-fé deverá ser aplicado, corrigindo da maneira mais adequada para o caso concreto. E para que se respeite o princípio da função

43 Agravo de Instrumento nº 4726534200, Tribunal de Justiça de São Paulo, Relatora: Viviane

Nicolau.

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social, deve-se sempre pensar no bem coletivo, ponderando-se qual a melhor solução para eventual conflito, sempre buscando uma composição para evitar que o contrato deixe de existir.

Assim, parece estar claro, neste contexto, que as possibilidades do contrato de patrocínio começam e podem ser explorados onde acabam os seus limites. Estando determinado quais são os limites, a partir deste ponto, sempre se pensando no benefício das partes e da sociedade, as possibilidades passam a ser inúmeras, devendo sempre se adaptar e adequar às necessidades que irão se verificar no caso concreto, buscando a melhor solução possível para que o benefício seja geral.

Em realidade, estabelecer todos os limites e possibilidades é tarefa muito complexa e quem sabe impossível, e seria muita pretensão querer identificá-las em um único trabalho doutrinário, face à insuperável riqueza do dia a dia.

Tenta-se, entretanto, apenas trazer em traços mais amplos aqueles limites que se impõem geralmente, assim como as possibilidades que se vislumbram de forma mais aberta, para clarificar – ainda que parcialmente – este modelo contratual que se verifica cada dia mais presente em nosso meio social, mostrando uma relevância cada vez maior e, por decorrência, merecendo, quem sabe, em um momento próximo, que lhe seja dada a devida atenção pelo legislador brasileiro, o positivando e inserindo de forma definitiva na legislação brasileira, deixando assim que este possua além da dita tipicidade social também uma tipicidade legal, estabelecendo, desta forma, de maneira definitiva, quais são seus limites e suas possibilidades, mostrando até onde cada parte pode ir sem ferir princípios básicos do direito, para que a exploração do contrato de patrocínio ocorra de modo mais eficiente e para que ele continue a ter papel relevante na sociedade atual.

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DO CONSÓRCIO ENTRE SOCIEDADES: ARTS. 278 E 279 DA LEI 6.404/76

GUILHERME PUCHALSKI TEIXEIRA*

Resumo: O consórcio só mereceu tratamento unitário com a promulgação da Lei das Sociedades Anônimas, em 15 de dezembro 1976 (Lei nº 6.404/76). Podemos conceituar o consórcio como sendo um agrupamento coordenado de empresas, reunidas por contrato complexo para a execução de empreendimento temporário e determinado, através da conjugação de esforços técnicos e financeiros. Dos dispositivos legais que disciplinam o consórcio, sobressaem as seguintes características: objeto determinado e transitoriedade; ausência de personalidade jurídica; composição societária flexível; não presunção de solidariedade entre consorciadas; possibilidade de participação de empresas estrangeiras. Os diversos incisos elencados pelo art. 279 da Lei 6.404/76 encerram o conteúdo mínimo do contrato consorcial, relacionando as clausulas e disposições indispensáveis à sua formação regular.

Abstract: Consortiums did not see specific regulation until the enactment of the Brazilian Corporate Law in December 15th, 1976 (Law nº 6.404/76). We can describe a consortium as a coordinated grouping of concerns that come under a complex agreement to pursue a transitory and determinate enterprise by means of pooling technical and financial resources and distributing. Among the many statutory principles outlining the legal framework of consortiums, the following are noteworthy: defined purpose and transitoriness; absence of corporate personhood; flexible corporate arrangement; joint liability among concerns subject to affirmative evidence, not presumption; possibility of foreign concerns joining the consortium. The many subsections under article 279 of Law nº 6.404/76 establish the bare essentials of the consortium agreement, describing the terms and provisions that are requisite

* Advogado Comercialista. Especialista em Direito Empresarial pela UFRGS. Mestre e especialista

em Direito Processual Civil pela PUCRS.

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for its regular contractual formation.

Sumário: 1 – Introdução; 2 – O fenômeno concentrista; 2.1 A moderna tendência de aglomeração de capitais e conhecimento; 2.2 A necessidade de instrumentos legais voltados à concentração de capital e conhecimento; 3 – Regime jurídico estrangeiro; 3.1 Direito estrangeiro; 3.1.1 Direito italiano; 3.1.2 Direito francês; 3.1.3 Direito português; 4 – O consórcio entre sociedades no Brasil; 4.1 O consórcio antes do advento da Lei 6.404/76; 4.2 Regime jurídico atual. Regulação pela Lei 6.404/76; 4.3 Conceito; 4.4 Natureza jurídica; 4.4.1 Teoria unitária patrimonial; 4.4.2 Teoria contratual pluralista; 4.5 Espécies de consórcios; 4.5.1 Consórcios homogêneos e heterogêneos; 4.5.2 Consórcio operacional e consórcio instrumental; 4.5.3 Consórcio interno e consórcio externo; 4.5.4 Consórcio entre empresas sob controle comum ou independente; 4.6 Elementos essenciais; 4.6.1 Objeto determinado e transitoriedade; 4.6.2 Ausência de personalidade jurídica; 4.6.3 Composição societária dos consórcios; 4.6.4 Responsabilidade entre as sociedades consorciadas; 4.6.5 Falência da empresa consorciada; 4.6.6 Participação de empresas estrangeiras; 4.6.7 O risco da caracterização de sociedade irregular; 5 – Consórcio e figuras afins no direito brasileiro; 5.1 Consórcio e grupo de sociedades; 5.2 Consórcio e sociedade em conta de participação; 5.3 Consórcio e sociedade de propósito específico (SPE); 5.4 Consórcio voltado à contratação com o Poder Público; 6 – Conteúdo mínimo do contrato consorcial; 6.1 Designação; 6.2 Objeto do consórcio; 6.3 Duração; 6.4 Endereço e foro; 6.5 Definição das responsabilidades entre as consorciadas; 6.6 Administração e representação do consórcio; 6.7 Receitas, despesas e partilha dos resultados; 6.8 Responsabilidade tributária; 6.9 Registro e publicidade; 7 – Conclusão; 8 – Referências bibliográficas.

“O instituto do consórcio responde a um imperativo da vida negocial contemporânea” (TEIXEIRA, Egberto Lacerda. Das Sociedades Anônimas no Direito Brasileiro. José Bushatsky, v.II, p.793).

1 – INTRODUÇÃO A realidade nos mostra que não são muitas as empresas capazes de,

com seus próprios recursos técnicos e/ou financeiros, executar empreendimento de grande vulto e alta complexidade.

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A necessidade de gastos vultosos em matéria de transporte de mercadoria, distribuição, publicidade, pesquisa tecnológica impôs o agigantamento das empresas como condição da sua própria sobrevivência.

Deste contesto surge, grosso modo, o interesse constante da iniciativa privada na busca por instrumentos jurídicos que regulem a aglomeração de capital e conhecimento necessário para o desenvolvimento de empreendimentos de porte, obtendo Estado e iniciativa privada a segurança jurídica desejada. Seguramente, pode-se afirmar que o consórcio entre empresas - objeto de análise neste breve arrazoado - assume esta finalidade.

É natural que o Estado possua o interesse de otimizar as relações jurídicas empresariais, uma vez que o desenvolvimento econômico gera riquezas e contribui para o alcance do bem-estar social. Daí por que afirmar que o aprimoramento dos instrumentos voltados ao desenvolvimento contínuo da atividade empresarial é questão fundamental de Estado e tema de alta relevância jurídica e social.

O consórcio é um instituto jurídico peculiar, ligado ao fenômeno da concentração das empresas. Enquanto a fusão, a incorporação e a constituição de grupos de sociedades atendem a situações em que há uma necessidade permanente de crescimento da escala da empresa, o consórcio ajusta-se a casos nos quais o efeito buscado é um crescimento ou operação temporários da empresa.

Resumidamente, é nesse cenário em que se inserem a relevância e a atualidade do consórcio entre empresas, modalidade contratual em franca expansão, prevista atualmente nos artigos 278 e 279 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76). A correta utilização desta importante ferramenta é motivo de desenvolvimento econômico regional, nacional e supranacional.

2 – O FENÔMENO CONCENTRISTA

2.1 A Moderna Tendência de Aglomeração de Capitais e Conhecimento

O fenômeno concentrista provém da transformação econômica, inicialmente verificada em países europeus, que busca aglutinar forças para o aumento da produção e da produtividade, sobretudo pela conjunção de capital e de novas técnicas (know-how). Não se trata de tendência recente. Remonta à passagem da produção artesanal para a industrial, a partir do

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final do Século XVIII1. Contudo, foi a partir da segunda metade do Século XIX que esta tendência mais se acentuou.

De um modo geral, pode-se também afirmar que o fenômeno crescente de concentração de empresas encontra relação direta com a evolução do capitalismo. Como bem destaca FÁBIO KONDER COMPARATO, a “evolução da economia capitalista nos últimos 40 anos e notadamente a partir da Segunda Guerra Mundial tem sido comandada pelo fenômeno da concentração empresarial”2.

Essa tendência provocou o surgimento e o crescimento exponencial das empresas, que se convencionou chamar de supranacionais ou multinacionais3.

Na atualidade, percebe-se que o movimento concentrista não está mais essencialmente atrelado à dominação de mercado. O que se pretende, na imensa maioria dos casos, é o crescimento da eficiência da empresa, seja pela diminuição dos custos, seja através da melhoria da qualidade.

WALDÍRIO BULGARELLI4 anota que “as concentrações decorrem de uma formulação técnica, não mais no sentido de crescer apenas, mas obedecendo a um planejamento” e arremata “disto resulta que a ‘dimensão ótima’ afasta o mito da empresa necessariamente grande – não obstante seus ardorosos defensores – tanto que se admite como certa a sobrevivência de pequenas e médias empresas”.

1 CELSO DE ALBUQUERQUE BARRETO (Consórcio de empresas. Revista Forense, v.72, n.253, p.133-138,

jan.-mar. 1976) elenca os motivos determinantes para o fenômeno da concentração empresarial: “- baixa do custo unitário com o aumento do volume de produção; - possibilidade de autofinanciamento; - supressão de intermediários; - estocagem de matérias-primas; - diminuição do percentual dos custos administrativos em relação ao faturamento global; - pesquisa de mercado e publicidade em escala nacional e internacional; - programar com antecedência suas atividades futuras”.

2 Aspectos Jurídicos da Macroempresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, v. 3, p.4. 3 WALDÍRIO BULGARELLI define tais empresas como: “O consórcio de várias corporações de diversas

nacionalidades que exercitam atividades em outro ou outros países, unidas por interesses comuns e por sua submissão a uma direção (management) comum, pressupondo os seguintes elementos: a. uma sociedade mãe, que atua em determinado país como promotora e gestora de atividades que se desenvolvem em outro país, por meio de sucursais ou subsidiárias, filiais ou associadas; b. participação de todas numa espécie de fundo comum de recursos; e com a adesão a uma estratégia global”. BULGARELLI, Waldirio. Concentração de Empresas e Direito Antitruste. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1997, p. 24.

4 Concentração de Empresas e Direito Antitruste. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1997, p.24.

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Para melhor ilustrar esse cenário, convém transcrever as palavras de MAURÍCIO DA CUNHA PEIXOTO5:

“O fenômeno concentrista encontra-se presente nos diversos setores da economia moderna. O desenvolvimento tecnológico diminuiu as distâncias e acirrou a concorrência empresarial, que hoje se situa não apenas na clássica conquista de mercados, mas também na busca de novos produtos e novas técnicas.”

Atento à realidade econômica mundial, o governo brasileiro manifestou o seu apoio às concentrações. Exemplificativamente, interveio através de leis que estimulassem operações de concentração, tal como a fusão ou a incorporação6.

Em outro exemplo, deixou ampla a liberdade para ajustes contratuais7 - e aqui se encaixa o consórcio entre empresas, de que tratam os art. 278 e 279 da Lei 6.404/76 –, com a ressalva de que não tivessem por fim práticas combatidas pela legislação antitruste ou objeto ilícito de uma maneira geral.

2.2 A Necessidade de Instrumentos Legais Voltados à Concentração de Capital e Conhecimento

O direito comercial possui como característica marcante o dinamismo de suas normas – regra à qual não foge o direito societário –, seja pelo ritmo acelerado da evolução e da complexidade do processo econômico, seja pela capacidade criativa dos empresários.

As estruturas societárias previstas no ordenamento até pouco tempo atrás nem sempre atendiam de modo suficiente aos interesses ou os modelos pensados pelos empresários para a execução de um empreendimento determinado, especialmente se for de grande vulto e de extrema complexidade.

5 Consórcio de empresas. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos. Belo Horizonte , v.1, n.1,

p.161-184, 1994. 6 Ver: Decreto-Lei 1.182/71; Decreto-Lei 1.115/71; Decreto-Lei 1.186/71; Lei 5.727/71; Decreto-Lei

1.248/72. 7 Nesse sentido, vale ressaltar a redação do Decreto 57.651/66, regulamentando a Lei 4.726/65, que

dispunha sobre o Registro do Comércio: “Art. 48. O Registro do Comércio compreende: [...] II – o arquivamento: [...] § 5º. Dos atos de constituição de consórcio, ou de agrupamento de empresas, suas alterações e dissoluções, de ajustes, acordos ou convenções entre empresas, de qualquer natureza, ou entre pessoas ou grupo de pessoas vinculadas a tais empresas, ou interessadas no objeto da atividade ou exploração econômica”.

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Essa circunstância gerou a busca por instrumentos legais adequados a viabilizar, com a segurança e a flexibilidade desejadas, a comunhão desses interesses convergentes entre diferentes sociedades, para a execução de negócios com objeto determinado e temporário, nos mais diversificados segmentos.

Razões de ordem econômica, estratégica ou tributária, muitas vezes, não recomendam a constituição de uma nova sociedade para a conjunção de interesses de diferentes sociedades, especialmente se o negócio visado tiver prazo de duração determinado (transitoriedade) - seja ele voltado para a pesquisa científica, para a prestação de serviços, à industrialização, etc.

O elemento transitoriedade assumiu relevância econômica e jurídica, porquanto as formas clássicas de concentração empresarial (fusão, incorporação, criação de subsidiárias e/ou aquisição de controle acionário) não se mostram adequadas a viabilizar empreendimentos com prazo mais ou menos determinado.

É que quando se busca a implementação de um negócio certo e determinado, ou seja, não permanente, parece não haver razão para a constituição de uma nova pessoa jurídica, revestida de toda a sua burocracia e inúmeras formalidades. Gastos desnecessários seriam gerados com a constituição e posterior dissolução desta nova sociedade, assim que o negócio temporário estiver concluído. Aí reside a utilidade dos consórcios. Conforme exalta PEDRO PAULO CRISTÓFARO8, o “consórcio responde àqueles casos em que é útil ou mesmo imprescindível um crescimento temporário dessa escala”.

É, também, muito comum que uma única empresa não consiga atender, satisfatoriamente, às exigências de recurso, tecnologia e capacitação que determinado empreendimento exija. Nesses casos, requer-se uma associação temporária de esforços, com a delimitação das obrigações de cada associada, sem abrir mão da autonomia administrativa e jurídica individual de cada sociedade integrante do consórcio.

Ainda antes da promulgação da Lei das S.A., ARNOLDO WALD9

explicita o efeito multiplicador dos consórcios:

8 CRISTÓFARO, Pedro Paulo. Consórcios de sociedades. Validade e eficácia dos atos jurídicos

praticados por seus administradores, nessa qualidade. Titularidade dos direitos e das obrigações deles decorrentes. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, n. 44, p.15-21, out.-dez. 1981.

9 Estudos e pareceres de direito comercial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p.174-175.

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“[...] normalmente, o consórcio é constituído para realizar atividades para as quais os consorciados, um independentemente do outro, não estariam devidamente habilitados. Assim, o consórcio executa tarefas que ultrapassam a sua competência habitual. A razão pela qual cada um dos consorciados se une aos demais nem sempre é a mesma, podendo variar desde a necessidade de entrar num novo mercado até a vontade de aumentar a rentabilidade dos seus investimentos ou de realizar operações a termo que não lhe seriam possível contratar fora do consórcio. O consórcio é, pois, um multiplicador de atividades que assegura uma nova faixa de atuação para o consorciado.”

O consórcio deve durar apenas enquanto durar o empreendimento, e desfazer-se assim que terminado. A concentração, neste caso, será temporária e, por esse mesmo motivo, não irá suprimir a individualidade das sociedades participantes (consorciadas), unidas por uma administração centralizada, escolhida entre uma das sociedades consorciadas.

Não resta dúvida, o reconhecimento jurídico do consórcio atendeu a uma necessidade imposta pela vida negocial contemporânea. Sua estrutura dinâmica dispensa a criação de uma sociedade e permite a conjugação de esforços sem maiores formalidades e ônus excessivos. Conforme já referido, sua utilidade advém de deficiências de ordem técnica e/ou financeira, usualmente ligada à execução de determinado negócio complexo. MAURÍCIO DA CUNHA PEIXOTO10 destaca a importância deste instrumento:

“Seja na conquista de novos mercados, seja na viabilização de empreendimentos complexos, na diminuição de riscos, no intuito de aumento de rentabilidade, seja no investimento em pesquisa e informação tecnológica, a importância do consórcio ressai induvidosa, [...].”

Vários são os empreendimentos nos quais a alta disponibilidade de recursos técnicos e financeiros exigidos coloca-se como condição essencial para a execução do negócio. Nesses casos, a associação entre empresas, através de formatação de um consórcio, apresenta-se como a melhor alternativa possível.

10 PEIXOTO, Maurício da Cunha. Consórcio de empresas. Revista da Faculdade de Direito Milton

Campos. Belo Horizonte, v.1, n. 1, p.161-184, 1994.

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3 – REGIME JURÍDICO ESTRANGEIRO

3.1 Direito Estrangeiro

Não há como negar a influência da doutrina e da legislação estrangeiras sobre o modelo nacional. Ainda que de forma breve, vale conferir o tratamento dispensado pelo Direito Comparado às formas de associação contratual entre empresas.

3.1.1 Direito Italiano

O Código Civil italiano disciplinou o que chama de “contrato de consórcio para a coordenação da produção e das trocas”11 (arts. 2.602 a 2.617).

Em sua redação original, o art. 2.062 do Código Civil de 1942 restringia o contrato de consórcios às empresas com atuação na mesma atividade ou com “atividades econômicas conexas”. Tal limitação recebeu diversas críticas da doutrina, por reduzir demasiadamente a utilidade do instrumento legal.

Em 1976, foi dada nova redação ao referido artigo, e o Direito italiano passou a admitir o consórcio entre sociedades com objetos sociais diversos. Permitiu-se, também, a constituição dos chamados consórcios societários, com a formação de uma nova sociedade, dotada de personalidade jurídica própria, distinta das consorciadas12. À exceção do consórcio societário, o consórcio não possui personalidade jurídica própria na Itália.

Constata-se distinção nítida entre os consórcios com atividade externa e os consórcios sem atividade externa, os primeiros necessariamente dotados de um órgão representativo, encarregado de representar e obrigar-se em nome do consórcio perante terceiros.

Além disto, ainda em relação aos consórcios externos, exige-se o arquivamento dos seus atos constitutivos no Registro do Comércio e a publicação de balanço13.

11 LEÃES, Luiz Gastos Paes de Barros. Sociedades Coligadas e consórcios. Revista de Direito Mercantil,

Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, n.12, p.128-148, 1973. 12 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas: Lei nº 6.404. São Paulo : Saraiva,

1998, v.4, p.364-365. 13 PENTEADO, Mauro Rodrigues. Consórcios de Empresas. São Paulo: Pioneira, 1979, p.23.

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Em relação aos consórcios sem atividade externa, sua administração é confiada a alguma pessoa física, na condição de mandatária dos consorciados14.

Com a propósito de custear a organização e responder pelas dívidas comuns, será obrigatoriamente constituído um fundo consórtil (fondo consortile), patrimônio autônomo em relação ao das sociedades consorciadas, pertencente apenas ao consórcio.

Quanto à responsabilidade pelas obrigações assumidas pelo consórcio, a redação primitiva do art. 2.615 previa a responsabilidade ilimitada e solidária dos consorciados. Contudo, a Lei 377/76 estabeleceu que as obrigações perante terceiros estarão afetadas exclusivamente ao mencionado fundo (fondo consortile)15. É que, através do referido fundo, o consórcio passou a possuir autonomia patrimonial, existindo bens de propriedade do fundo desvinculados do patrimônio individual de cada consorciada16.

3.1.2 Direito francês

O legislador francês criou um instrumento específico de cooperação entre empresas, denominado Groupment d’Intérêt Économique (GIE), regulamentado pela Ordonnance nº 67.821, de 23.09.67, e Decretos 68-109 e 68-930, no intuito de aprimorar a concorrência no mercado europeu. MODESTO CARVALHOSA17 define o referido agrupamento da seguinte forma:

“Trata-se de um tipo de consórcio – instrumento de colaboração entre empresas preexistentes – com duração determinada e de estrutura mais simples que a de uma sociedade e mais complexa que a de uma associação. Pode ser constituído por duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, e adquirirá personalidade jurídica especial no momento em que tenha seus atos constitutivos arquivados no Registro do Comércio.

14 PEIXOTO, Maurício da Cunha. Consórcio de empresas. Revista da Faculdade de Direito Milton

Campos. Belo Horizonte, v.1, n.1, p.161-184, 1994. 15 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito

Tributário. São Paulo: Dialética, n. 64, p.7-26, jan. 2001. 16 LEÃES, Luiz Gastos Paes de Barros. Sociedades Coligadas e consórcios. Revista de Direito Mercantil,

Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, n. 12, p.128-148, 1973. 17 Comentários à lei das sociedades anônimas: Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. São Paulo:

Saraiva, 1998, v.4, p.363.

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Tem o GIE por finalidade o agenciamento de todos os meios aptos a facilitar ou a desenvolver a atividade econômica de seus membros, e melhorar-lhes ou acrescer-lhes os resultados dessa atividade.”

Seu objeto não estará ligado, obrigatoriamente, à obtenção e à distribuição de lucro. O seu escopo principal será propiciar aos participantes um melhor desempenho no mercado. Acaso existentes, os lucros serão tributados diretamente no patrimônio de seus membros, segundo a proporção de cada um.

Quanto à responsabilidade dos participantes, o art. 4º da Ordonnance nº 67.821 determina que as sociedades agrupadas respondem direta e solidariamente pelas obrigações contraídas pelo GIE.

Ressalte-se a possibilidade de que pessoas físicas venham a integrar o agrupamento, que adquire personalidade jurídica com o arquivamento do contrato, público ou particular, no Registro do Comércio18.

O GIE será administrado e representado por, no mínimo, um gerente, com plena capacidade para obrigar-se perante terceiros em nome do grupo.

3.1.3 Direito português

O Decreto-Lei nº 231, de 28.07.1981, disciplinou instituto de idêntico nome ao existente aqui no Brasil (consórcio), prevendo a celebração de um contrato entre empresas, flexível e maleável19, fixando apenas e tão somente os princípios essenciais a serem respeitados pelos consortes.

Permitiu-se ampla autonomia à vontade dos contratantes, desde que respeitadas as seguintes premissas: seu contrato constitutivo deve ter forma escrita (art. 3º); podem ter como participantes pessoas físicas ou jurídicas (art. 1º) – ao inverso do que ocorre no Brasil, onde apenas se admite a participação de pessoas jurídicas; podem ser internos ou externos, sendo que somente os últimos relacionam-se com terceiros (arts. 6º e 7º); nesse último caso, é recomendada a criação de um Conselho de Orientação e Fiscalização e obrigatória a indicação de um representante-chefe do grupo.

18 COMPARATO, Fábio Konder. Novas formas jurídicas de concentração empresarial. Revista de

Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, ano XI, n. 5, p.133-142, 1972.

19 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei das sociedades anônimas: Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. São Paulo: Saraiva, 1998, v.4, p.366.

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Inversamente ao que ocorre no Direito italiano, é expressamente vedada a constituição de um fundo consórtil ou fundo comum, não havendo presunção de solidariedade entre as consorciadas, tal como ocorre no Direito brasileiro.

4 – O CONSÓRCIO ENTRE SOCIEDADES NO BRASIL

4.1 O Consórcio Antes do Advento da Lei 6.404/76

Não obstante o meio empresarial já estivesse, há muito, adotando o contrato consorcial como instrumento hábil à execução de obras ou empreendimentos de caráter provisório, o consórcio só veio a merecer tratamento adequado no direito brasileiro com a promulgação da Lei nº 6.404/76, em 15 de dezembro 1976.

Contudo, mesmo antes do advento Lei nº 6.404/76, o consórcio já vinha sendo, direta ou indiretamente, objeto de legislação esparsa. Ao que tudo indica, a primeira referência direta à palavra consórcio - em sentido semelhante ao referido na Lei 6.404/76 - data de 1934, com a promulgação do chamado Código das Águas20.

Ainda que de forma implícita, a segunda referência aos consórcios se deu no art. 72 da lei reguladora do abuso do poder econômico21 (Lei nº 4.137 de 10.09.1972). O texto fez alusão ao termo “agrupamento de empresas”, gênero do qual o consórcio é espécie, na medida em que representa um agrupamento por coordenação – ou seja, sem subordinação –, como se verá em item próprio.

A Lei nº 4.728/65 – direcionada ao mercado de capitais - regulamentou o consórcio entre instituições financeiras “para o fim especial de colocar títulos no mercado” (art. 15). Em realidade, este foi o antecedente

20 Art. 201. A fim de prover ao exercício, conservação e defesa de seus direitos, podem se reunir em

consórcio todos os que têm interesse comum na derivação e uso da água. 21 Art. 72. A partir da vigência desta lei o departamento nacional de indústria e as juntas comerciais

ou órgãos correspondentes no Estado não poderão arquivar quaisquer atos relativos à constituição, transformação, fusão, incorporação ou agrupamento de empresas, bem como quaisquer alterações, nos respectivos atos constitutivos, sem que dos mesmos conste: a) a declaração precisa e detalhada do seu objeto; b) o capital de cada sócio e a forma e prazo de sua realização; c) o nome por extenso e qualificado de cada um dos sócios acionistas; d) o local da sede e respectivo endereço, inclusive das filiais declaradas; e) os nomes dos diretores por extenso e respectiva qualificação; f) o prazo de duração da sociedade; g) o número, espécie e valor das ações”.

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legislativo que mais se aproximou ao consórcio hoje disciplinado pelos artigos 278 e 279 da Lei nº 6.404/76.

Isso porque o “agrupamento de tais instituições” de que tratou a Lei nº 4.728/65 – tal como ocorre em relação ao consórcio disciplinado pela Lei 6.404/76 - não dava ensejo a uma nova pessoa jurídica e possuía nítida natureza contratual, com registro obrigatório no Registro do Comércio. Tal registro deverá prever e especificar “os limites e coobrigação de cada instituição participante, a designação da instituição líder do consórcio e a outorga, a esta, de poderes de representação das demais participações” (§ 2º). Ademais, à semelhança do consórcio previsto na Lei das Sociedades Anônimas, a responsabilidade de cada consorciada se limitava às obrigações e riscos assumidos no contrato (§ 3º).

Indiferente à falta de uma disciplina geral do instituto, de certa forma preenchendo os espaços em branco do direito positivo, o Decreto 57.651/66, regulamentador da Lei 4.728/65 – que dispunha sobre o Registro do Comércio –, fez referência expressa aos atos próprios do consórcio:

“Art. 48. O Registro do Comércio compreende: (...)

II – O arquivamento: (...)

§ 5º. Dos atos de constituição de consórcio, ou de agrupamento de empresas, suas alterações e dissoluções, de ajustes, acordos ou convenções entre empresas, de qualquer natureza, ou entre pessoas ou grupo de pessoas vinculadas a tais empresas, ou interessadas no objeto da atividade ou exploração econômica.”

Por derradeiro, entre outras referências legislativas isoladas, vale citar o Decreto 73.140/73 – já revogado –, que tratava das licitações e contratos de engenharia no âmbito federal. Em razão da frequente complexidade técnica exigida para empreendimentos na área de engenharia, o Decreto previu (arts. 22 e 23) a possibilidade de as sociedades reunirem-se em consórcio, a fim de ampliar o número de concorrentes e assim melhorar o processo seletivo22.

22 Entre outros aspectos, previa: a) a possibilidade de formação de consórcio entre pessoas físicas

e/ou jurídicas; b) o registro do instrumento de constituição no Cartório de Registro de Títulos e Documentos; c) declaração expressa de responsabilidade solidária de todos os consorciados pelos atos praticados sob o consórcio em relação à licitação; d) compromisso expresso de que o consórcio não se constitui, nem se constituirá em pessoa jurídica distinta de seus membros; e) a designação do representante do consórcio.

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Antecipando a característica peculiar dos consórcios voltados à contratação com o Poder Público, referido Decreto previa a responsabilidade solidária das sociedades consorciadas “pelos atos praticados sob o consórcio em relação à licitação”. Tal particularidade dos consórcios formados para a contratação com o Poder Público se mantém até os dias atuais, seja sob a regência da Lei 8.987/95, art. 19, § 2º (concessão de serviço público), seja sob a regência da Lei 8.666/93, art. 33, V (lei geral de licitações)

Em suma, até o surgimento da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/76), os consórcios careciam de um tratamento jurídico uniforme, de normas que disciplinassem o instituto de forma genérica e abrangente, traçando os elementos essenciais para a sua caracterização.

4.2 Regime Jurídico Atual. Regulação Pela Lei 6.404/76

A disciplina uniforme dos consórcios pela Lei das Sociedades Anônimas veio, em realidade, apenas consolidar uma modelo associativo já amplamente utilizado pelo meio empresarial.

Uma vez mais, a atividade econômica e a criatividade dos empresários impuseram ao Direito a necessidade de regulação posterior, que “nada mais fez do que regular a prática cotidiana do mundo societário”23. Aliás, tal particularidade constou expressa na exposição de motivos da Lei nº 6.404/76:

“Contemplando o quadro das várias formas associativas de sociedade, o projeto nos arts. 279 e 280 regula o consórcio, como modalidade de sociedade não personificada, que tem por objeto a execução de determinado empreendimento. Sem pretensão de inovar, apenas convalida, em termos nítidos, o que já vem ocorrendo na prática, principalmente na execução de obras públicas e de grandes projetos de investimentos.”

Mesmo que a Lei nº 6.404/76 faças as vezes de “lei geral das sociedades”, uma ótima oportunidade de disciplinar os consórcios foi perdida quando da promulgação do chamado Novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002). Isso porque, além de cuidar de todos os tipos societários, o novo Código Civil também cuidou de sociedade em muito similar ao

23 PEIXOTO, Maurício da Cunha. Consórcio de empresas. Revista da Faculdade de Direito Milton

Campos. Belo Horizonte, v.1, n.1, p.161-184, 1994.

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consórcio, a chamada sociedade de propósito específico (CC, art. 981, parágrafo único). No mais, sabe-se que tal matéria (consórcios) pertence ao âmbito de competência do Código Civil, visto que avocou para si a responsabilidade de disciplinar o direito de empresa de uma forma geral (Parte Especial, Livro II).

Já que pretendeu disciplinar a totalidade das espécies de sociedades – excluídas apenas as sociedades anônimas –, por que o novo Código Civil não tratou dos consórcios, conferindo uma sistematicidade una e coerente ao direito de empresa?

De uma forma ou de outra, considerando que o novo Código Civil (Lei nº 10.406/02) não possui hierarquia superior à legislação extravagante; considerando que o novo Código não teceu normas específicas sobre os consórcios; assim como não derrogou expressa ou tacitamente as normas previstas na Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/76), conclui-se que continuam em vigor os arts. 278 e 279 da Lei nº 6.404/76, que tratam de disciplinar, como lei geral, o consórcio entre sociedades no direito brasileiro, do seguinte modo:

“CAPÍTULO XXII – CONSÓRCIO

Art. 278. As companhias e quaisquer outras sociedades sob o mesmo controle, ou não, podem constituir consórcio para executar determinado empreendimento, observado o disposto neste Capítulo.

§ 1º. O consórcio não tem personalidade jurídica e as consorciadas somente se obrigam nas condições previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem presunção de solidariedade.

§ 2º. A falência de uma consorciada não se estende às demais, subsistindo o consórcio com as outras contratantes; os créditos que porventura tiver a falida serão apurados e pagos na forma prevista no contrato de consórcio.

Art. 279. O consórcio será constituído mediante contrato aprovado pelo órgão da sociedade competente para autorizar a alienação de bens do ativo permanente, do qual constarão:

I – a designação do consórcio, se houver;

II – o empreendimento que constitua o objeto do consórcio;

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III – a duração, endereço e foro;

IV – a definição das obrigações e responsabilidade de cada sociedade consorciada, e das prestações específicas;

V – normas sobre recebimento de receitas e partilha de resultados;

VI – normas sobre a administração do consórcio, contabilização, representação das sociedades consorciadas e taxa de administração, se houver;

VII – forma de deliberação sobre assuntos de interesse comum, com número de votos que cabe a cada consorciado;

VIII – contribuição de cada consorciado para as despesas comuns, se houver.

Parágrafo único. O contrato de consórcio e suas alterações serão arquivadas no Registro de Comércio do lugar da sua sede, devendo a certidão do arquivamento ser publicada.”

Vale dizer, o consórcio disciplinado pela Lei das S.A - que se diferencia do consórcio voltado para a contratação com a administração pública, em razão das particularidades das normas contidas nas Leis nºs 8.666/93 e 8.987/95 - revela o espírito privatístico da liberdade das formas, com um regramento mínimo, a permitir ampla flexibilidade na estruturação do contrato.

Como se percebe dos artigos acima transcritos, a lei fixa apenas o conteúdo mínimo do contrato, sem revelar desmedida ingerência sobre o instrumento, tampouco sobre a vida operacional das consorciadas.

Contudo, a flexibilidade da regulação não poderá dar ensejo à desnaturação da forma associativa prevista no tipo, que ocorreria com a exclusão de seus elementos essenciais ou desrespeito ao conteúdo mínimo exigido no contrato. Isto acarretaria o risco da caracterização de sociedade irregular, tratada pelo novo Código Civil como sociedade em comum (arts. 986 e seguintes), na qual os sócios respondem ilimitada e solidariamente (art. 990).

Sob outro enfoque, se do ponto de vista infraconstitucional a formação dos consórcios é estimulada através da disciplina enxuta e flexível dos artigos 278 e 279, do ponto de vista constitucional a sua regulação atende a

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princípios fundamentais da livre iniciativa, da livre concorrência e do desenvolvimento nacional.

4.3 Conceito

Não convém confundir o consórcio entre empresas, regulado pela Lei nº 6.404/76 - de que trata o presente estudo –, com a figura, bastante usual na atualidade, do consórcio para a aquisição de bens, que recebeu novo tratamento pela Lei 11.795/08, regulamentado pelo Banco Central do Brasil através das Circulares nºs 3.432 e 3.433.

Segundo a Lei das Sociedades Anônimas, podemos conceituar o consórcio como sendo um agrupamento coordenado de empresas, reunidas por contrato complexo, para a execução de empreendimento determinado, através da conjugação de esforços técnicos e financeiros, repartindo as receitas e as despesas do negócio, segundo a proporção fixada em contrato. FRAN MARTINS24 define consórcio como sendo:

“[...] o agrupamento de sociedades, feito através de um contrato, com a finalidade de executar determinado empreendimento, obrigando-se cada sociedade, em relação àquele com quem o consórcio vai contratar, de acordo com as condições previstas no contrato e respondendo apenas pelas obrigações por ela assumidas.”

Na lição de MODESTO CARVALHOSA, o consórcio constitui “uma comunhão de interesses e de atividades que atende a específicos objetivos empresariais, que se originam nas sociedades consorciadas e delas se destacam”.

Exaltando a preservação da individualidade de cada consorciada, EGON BOCKMANN MOREIRA25 define consórcio nestes moldes:

“O consórcio é o modo de organização empresarial disciplinado pelos arts. 278 e 279 da Lei 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas). Trata-se de uma integração horizontal entre empresas, a estabelecer uma relação de coordenação de interesses autônomos, visando a um fim específico e comum. Não envolve a

24 Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v.4, p.278. 25 MOREIRA, Egon Bockmann. Os consórcios empresariais e as licitações públicas (considerações em

torno do art. 33 da Lei 8.666/93). Interesse Público. Porto Alegre: Notadez, ano 5, n. 26, p. 64-78, jul.-ago. 2004.

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constituição de uma pessoa jurídica distinta dos consorciados (o consórcio não tem personalidade jurídica). Destina-se a um objetivo certo e dirigido, na busca de benefícios individuais às pessoas que o constituem.”

Para ALBERTO XAVIER26:

“Consórcio é o contrato pelo qual duas ou mais sociedades se obrigam, entre si, de forma coordenada, a executar determinado empreendimento, sem que desse contrato resulte a criação de um novo ente dotado de personalidade jurídica.”

Pode-se dizer que através do contrato consorcial um determinado número de pessoas formaliza uma associação de interesses, estabelecendo obrigações específicas de forma coordenada, do modo a possibilitar atingir determinado objetivo empresarial comum. Não há subordinação entre as consorciadas, ou seja, não se forma uma integração vertical, mas pura cooperação de esforços (integração horizontal).

4.4 Natureza Jurídica

À vista da divergência existente em doutrina, nosso entendimento é de que o consórcio regulado pela Lei 6.404/76 não é uma sociedade – segundo definição do art. 981 do Código Civil. Isso porque as consorciadas não se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de atividade econômica. Há, isso sim, o comprometimento de sociedades para uma ação conjunta e coordenada, com vistas à execução de determinado investimento27.

Trata-se, em realidade, de contrato associativo, no qual duas ou mais sociedades obrigam-se a executar empreendimento ou negócio determinado. Como bem refere ARY AZEVEDO NETO, “dele não nasce necessariamente nova organização produtiva, como ocorre no contrato de sociedade [...], é segmento comum das empresas das sociedades consorciadas”28.

26 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito

Tributário. São Paulo: Dialética, n. 64, p.7-26, jan. 2001. 27 FRANCO NETO, Ary Azevedo. Consórcio. In: LAMY FILHO, ALFREDO; Pedreira, José Luiz Bulhões

(Coords.). Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.2077. 28 FRANCO NETO, Ary Azevedo. Consórcio. In: LAMY FILHO, ALFREDO; Pedreira, José Luiz Bulhões

(Coords.). Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.2078.

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Segundo a exposição de motivos da Lei nº 6.404/76, o consórcio é ente não personificado, ou seja, desprovido de personalidade jurídica. Por tratar-se de ente despersonalizado, não representa a formação de uma pessoa jurídica nova. Aliás, tal característica vem expressa no § 1º do art. 278 da Lei 6.404/76.

4.4.1 Teoria unitária patrimonial

Para parte da doutrina, entre outros PONTES DE MIRANDA29 e MODESTO CARVALHOSA, os consórcios, não obstante destituídos de personalidade jurídica própria (§ 1º do art. 278), teriam capacidade para obrigar-se em nome próprio perante terceiros, tal como ocorre com a massa falida, com o condomínio, entre outros.

Aliado a esta capacidade, o consórcio poderá dispor de autonomia patrimonial, com a formação de um patrimônio comum (fundo consórtil), antes pertencente a cada consorte, e então afetado ao consórcio por vontade destes.

Como refere ALBERTO XAVIER30, no direito italiano os consórcios são dotados de uma quase personalidade e de certa autonomia. Operam, como refere a doutrina italiana, através de uma personalidade jurídica de segundo grau ou de segunda categoria31:

“Desta concepção resultariam, como consequências, a possibilidade de o consórcio contratar com terceiros em nome próprio, ter órgãos próprios, dispor de empregados próprios, auferir lucros imputáveis a essa unidade autônoma, e assim por diante.”

A chamada Teoria Unitária Patrimonial entende que o consórcio deve dispor de patrimônio autônomo, formado pela contribuição em bens de cada consorte e das receitas geradas a partir da atividade do grupo. A visão desta teoria pode ser bem sintetizada a partir das seguintes passagens, retiradas da obra de MODESTO CARVALHOSA32:

29 “Os elementos do fundo consórtil podem consistir em bens com que contribuíram os consorciados

e em créditos contra eles. O consórcio pode dever a terceiros ou aos próprios consorciados”. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1972, p. 253 e ss.

30 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, n.64, p.7-26, jan. 2001.

31 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, n. 64, p.7-26, jan. 2001.

32 Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v.4, p.341.

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“Tem, outrossim, o consórcio autonomia patrimonial, visto que os recursos atribuídos pelas consorciadas à administração do consórcio constituem patrimônio que, funcionalmente, destaca-se do das consorciadas durante todo o período de duração do consórcio (art. 279). Assim, as consorciadas não têm ingerência sobre esse patrimônio afetado pelo consórcio durante a sua existência. Ademais, os credores de cada sociedade consorciada não têm direito sobre o patrimônio afetado por outros negócios que tenham celebrado fora do âmbito do consórcio, ou seja, que não sejam com ele relacionados diretamente.

[...]

Outra característica do consórcio é a sua autonomia administrativa, cuja natureza não é orgânica, mas tipicamente contratual. Há mandato para o consórcio exercer sua capacidade negocial ou judicial junto a terceiros. Há delegação, quando, internamente, a direção consorcial e sobretudo a líder deliberam sobre matéria de administração do consórcio.

[...]

O consórcio constitui uma sociedade de segundo grau. Embora não tenha personalidade jurídica é, não obstante, titular de obrigações e de direitos, tendo capacidade processual, à semelhança das demais sociedades sem personalidade jurídica de que trata nosso Código Comercial (sociedade em conta de participação).

(...)

O representante está investido dos poderes de contratar com terceiros, sem qualquer restrição, fazendo-o em nome do próprio consórcio. Poderão, ademais, os representantes do consórcio contratar mão de obra e estabelecer as relações institucionais daí decorrentes.”

4.4.2 Teoria contratual pluralista

Em oposição à Teoria Unitária Patrimonial, estão aqueles que rechaçam a autonomia patrimonial do consórcio e a aptidão deste para obrigar-se diretamente perante terceiros, como ente autônomo, titular imediato de direitos e obrigações.

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Entre estes, destaca-se ALBERTO XAVIER, em artigo cujas conclusões subscrevemos integralmente - ALBERTO XAVIER33 tece uma crítica contundente à Teoria Unitária, nestes termos:

“Esta construção jurídica é manifestamente inspirada no Direito italiano, não encontrando qualquer suporte no direito positivo brasileiro, pelo menos do consórcio pela Lei nº 6.404/76.

No direito italiano, o art. 2.602 do Código Civil prevê obrigatoriamente nos consórcios com atividade externa a constituição de um fundo consórtil (fundo consortile) destinado a custear a organização comum e qualificado como patrimônio autônomo.”

Como vimos anteriormente, a Lei italiana nº 377 dispôs que, em relação às dividas contraídas pelo consórcio, os terceiros só poderão voltar-se contra o patrimônio afetado ao fondo consortile. Aliás, diga-se de passagem, tal limitação de responsabilidade provocou enorme desinteresse na contratação destes consórcios.

De outro lado, como referido linhas atrás, no Direito português há vedação expressa quanto à constituição de fundos comuns, composto por bens destinados à atividade comum do consórcio. Prossegue XAVIER34 em sua crítica:

“O direito brasileiro coloca-se numa posição neutra, não impondo, nem proibindo a constituição de um patrimônio comum dos consorciados, afeto ao empreendimento. A lei simplesmente não prevê sequer a existência de tal fundo, pelo que ele jamais pode ter o significado de uma limitação de responsabilidade perante terceiros.

(...)

Não existindo atividade comum no consórcio, mas atividades exercidas individualmente, não há qualquer razão para a existência necessária de bens comuns. Os bens com que cada um dos consorciados exerce a sua atividade são próprios e singulares,

33 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito

Tributário. São Paulo: Dialética, n. 64, p.7-26, jan. 2001. 34 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito

Tributário. São Paulo: Dialética, n. 64, p.7-26, jan. 2001.

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salvo se voluntariamente e em caráter excepcional forem colocados sob regime de propriedade comum.”

Deve-se reconhecer, a previsão legal, expressa no art. 279 da Lei 6.404/76, de que o contrato deverá provir de “contribuição de cada consorciado para as despesas comuns”, não implica a necessidade da criação de um fundo comum, quanto menos confere a este qualquer autonomia e tampouco atuará como limitador de responsabilidade a prejudicar o interesse de terceiros.

Direcionando a crítica à cogitada capacidade de o consórcio ser sujeito direto de direitos e obrigações, conclui o Autor - a nosso ver, com inteiro acerto35:

“A tese da autonomia jurídica do consórcio não tem qualquer fundamento no direito brasileiro, que é expresso em formular duas regras, constantes do § 1º do art. 278, que com aquela autonomia são redondamente antagônicas: a inexistência de personalidade jurídica e a responsabilidade de cada um dos consorciados por suas obrigações, sem presunção de solidariedade.”

Entende-se, portanto, que o consórcio não pode assumir obrigações em nome próprio para com terceiros. Parte-se da ideia de que o consórcio age através de suas consorciadas, reunidas coordenadamente através do contrato. Na prática, o que geralmente ocorre é a nomeação de uma empresa líder, para obrigar-se perante terceiros em nome das consorciadas, sendo estas que, individualmente e na medida das obrigações assumidas, obrigam-se perante terceiros.

Então, quem contrata com terceiros são os consorciados, individualmente, representados pela empresa líder, “precisamente porque o contrato com o terceiro não é bilateral, mas necessariamente plurilateral; ele dá origem a uma pluralidade de obrigações entre cada um dos consorciados e o terceiro”36, de acordo com as prestações específicas assumidas de cada participante no contrato (Lei 6.404/76, art. 279, IV).

Daí concluir que o negócio jurídico para com terceiros será sempre ou quase sempre plurilateral, no qual cada consorciada obriga-se em nome próprio, através de empresa líder (mandato). Veja-se que esta representação 35 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito

Tributário. São Paulo: Dialética, n. 64, p.7-26, jan. 2001. 36 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito

Tributário. São Paulo: Dialética, n. 64, p.7-26, jan. 2001.

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conjunta atua em benefício dos próprios terceiros, que podem centralizar suas exigências e reclamações em uma única consorciada, não obstante a individualização interna dos deveres coletivamente assumidos.

Desse modo, a palavra consórcio deve ser entendida como mera abreviação que designa a totalidade das empresas consorciadas, mas jamais como um sujeito distinto, titular de direitos e obrigações autônomas em relação à esfera individual de cada participante.

Na visão de ALBERTO XAVIER – à que aderimos –, isso explica “fenômenos que geram uma aparente personalidade jurídica” aos consórcios, tal como “designação do consórcio, foro do consórcio, administração do consórcio, contabilidade do consórcio a assim por diante”. Explica o referido Autor:

“A explicação, porém, é muito simples e baseia-se na distinção entre titularidade e exercício de direitos.

No consórcio, a titularidade de direitos (e das obrigações) é individual, pois na inexistência da personalidade jurídica do consórcio, os efeitos dos atos imputam-se diretamente na esfera jurídica de cada consorciado, uti singuli.

A ‘denominação do consórcio’ é, pois, a designação coletiva de todos os consorciados, que permite identificá-los de modo abreviado. O ‘endereço do consórcio’ é o local onde os terceiros podem cumprir as suas obrigações e exercer os seus direitos, decorrentes do consórcio, relativamente à totalidade dos consorciados. O ‘foro do consórcio’ é a jurisdição na qual podem ser exigidas ou cumpridas obrigações relativamente à totalidade dos consorciados. A ‘representação do consórcio’ é o mecanismo do mandato à totalidade de os consorciados manifestarem coletivamente a sua vontade perante terceiros. A ‘contabilização do consórcio’ é o registro das operações coletivamente realizadas por todos os consorciados.”37

Vale também referir a doutrina de outros renomados doutrinadores que partilham desse mesmo entendimento:

EGBERTO LACERDA TEIXEIRA e JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO:

37 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito

Tributário. São Paulo: Dialética, n. 64, p.7-26, jan. 2001.

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“Pensamos que o consórcio não é então sujeito de direitos, não podendo, correlatamente, assumir obrigações enquanto tal. Simples fórmula associativa de diversas pessoas jurídicas, desprovido de personalidade e patrimônio e conotação marcadamente contratual, o consórcio age, no mundo jurídico, por intermédio das empresas que o constituem, notadamente, e na prática, através de uma empresa líder escolhida pelas demais. São os consortes, portanto, que assumem obrigações e responsabilidades perante os terceiros, cabendo-lhes igualmente exercer os direitos decorrentes dos atos jurídicos.”38

FÁBIO KONDER COMPARATO:

“[...] o consórcio é mero contrato, não dá ensejo à criação de um novo ente jurídico, e pode existir apenas no âmbito das estruturas internas das empresas consorciadas, ou manifestar-se também exteriormente perante terceiros. Neste último caso, há necessidade de se criar uma representação comum, sendo que as responsabilidades assumidas gravam diretamente o patrimônio dos consorciados, solidariamente.”39

Quanto à representação do consórcio, deve-se dizer que a nomeação de empresa líder não é da essencialidade do instituto, podendo as empresas participantes tratar conjuntamente perante terceiros. Todavia, entendemos que a indicação de um representante comum é medida que simplifica sobremaneira a atuação do consórcio.

Perceba-se que a ausência de personalidade jurídica não desautoriza que os administradores do consórcio detenham o poder de representação deste perante terceiros. Lembre-se que a representação é o instituto que possibilita que a prática de determinado ato jurídico não recaia sobre a esfera de quem o praticou, mas sobre quem está sendo representado.

Como explica PEDRO PAULO CRISTÓFARO40: “Na hipótese de grupos não personificados, os efeitos dos atos jurídicos praticados por seus

38 TEIXEIRA, Egberto Lacerda; GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Das Sociedades Anônimas no Direito

Brasileiro. São Paulo: Bushatsky, 1979, v.2, p.797. 39 COMPARATO, Fábio Konder. Novas formas jurídicas de concentração empresarial. Revista de

Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, ano XI, n. 5, p.133-142, 1972.

40 CRISTÓFARO, Pedro Paulo. Consórcios de sociedades. Validade e eficácia dos atos jurídicos praticados por seus administradores, nessa qualidade. Titularidade dos direitos e das obrigações

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representantes, porque não podem recair sobre uma pessoa jurídica que não existe, incidem imediatamente sobre os patrimônios dos seus integrantes”.

Pelo que se verá ao longo deste breve ensaio, a discussão trazida por estas duas teorias antagônicas assume relevância prática em relação a quase todas as questões referentes ao consórcio disciplinado pela Lei nº 6.404/76. A adesão à teoria contratual pluralista servirá de premissa para a solução de todas as questões e controvérsias referidas nos capítulos restantes deste trabalho.

4.5 Espécies de Consórcios

4.5.1 Consórcios homogêneos e heterogêneos

Na medida em que o empreendimento a ser executado exija capacidades técnicas diferenciadas, é comum - e muitas vezes imprescindível - que o consórcio constitua-se por empresas de áreas de atuação diversas. Nesse caso, ter-se-á um consórcio classificado como heterogêneo.

Outras vezes, o consórcio reúne empresas com objetos similares, ligadas a uma mesma atividade econômica ou área de conhecimento, que se associam para a conjugação de capital, soma de experiências ou para o desenvolvimento de um projeto de pesquisa comum. Tais agrupamentos, desde que constituídos sob a disciplina dos arts. 278 e 279, serão classificados como consórcios homogêneos.

4.5.2 Consórcio operacional e consórcio instrumental

É interessante separar as hipóteses nas quais o empreendimento e seus resultados pertencem às sociedades que integram o consórcio (consórcio operacional) das hipóteses nas quais o empreendimento/objeto será de titularidade de terceiro, servindo o consórcio apenas como um instrumento de execução (consórcio instrumental). Seria o caso do contrato de empreitada, no qual o consórcio é constituído para a sua execução e o terceiro será o dono da obra. Como bem distingue ALBERTO XAVIER41:

deles decorrentes. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, n. 44, p.15-21, out.-dez. 1981.

41 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, n. 64, p.7-26, jan. 2001.

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“Na primeira hipótese, o próprio contrato de consórcio é o contrato principal no que respeita à execução do empreendimento. Na segunda hipótese, ao invés, há que distinguir o contrato principal – celebrado entre os consorciados e o terceiro, relativo à execução do empreendimento – do contrato de consórcio, meramente instrumental em relação ao primeiro, tendo por objeto as obrigações dos consorciados no que respeita à coordenação das suas atividades.”

Nota-se, portanto, no caso dos consórcios instrumentais, a coexistência de dois vínculos obrigacionais: I) as obrigações entre consorciados, previstas no contrato de consórcio levado a registro, e II) o contrato com o terceiro, onde os sociedades reunidas em consórcio obrigar-se-ão conjuntamente para com o terceiro.

4.5.3 Consórcio interno e consórcio externo

Diz-se externo quando o consórcio assume obrigações perante terceiros. Em sentido oposto, será interno quando o contrato apenas disciplinar a coordenação das atividades entre as sociedades consorciadas, não se relacionando conjunta e diretamente perante terceiros. As obrigações perante terceiros, nesse caso, serão tratadas diretamente, uti singuli, por consorciada, sem a representação de uma das sociedades integrantes.

Exemplificativamente, nos consórcios instrumentais externos, a principal fonte de obrigação será o contrato firmado conjuntamente para com o terceiro. O contrato de consórcio regulará a coordenação das tarefas assumidas de cada consorciada internamente.

4.5.4 Consórcio entre empresas sob controle comum ou independentes

O caput do art. 279 refere que “as companhias e quaisquer outras sociedades, sob o mesmo controle ou não, podem constituir consórcio”.

Deixa, portanto, aberta a possibilidade da constituição de consórcios entre empresas independentes, ou seja, sociedades não ligadas por vínculo de subordinação, como também possibilita a constituição de consórcio entre controladas e controladoras, seja o controle exercido diretamente, através de uma holding, ou mediante a constituição do grupo de sociedades de que trata o art. 265 da Lei 6.404/76. Fica permitida, também, a formação de

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consórcio entre empresas coligadas42, ou seja, unidas por vínculo de capital, sem relação de dependência hierárquica.

4.6 Elementos Essenciais

A partir das normas legais que disciplinam o consórcio, extraem-se os seguintes elementos essenciais:

· Objeto determinado e caráter de transitoriedade

· Ausência de personalidade jurídica

· Composição societária flexível

· Ausência de presunção de solidariedade entre as sociedades consorciadas

· Falência de consorciada não dissolve o grupo

· Possibilidade de participação de sociedade(s) estrangeira(s)

Passemos à análise individual de cada um desses elementos.

4.6.1 Objeto determinado e transitoriedade

Elemento essencial do consórcio é a sua finalidade, que deve estar necessariamente atrelada à execução de determinado empreendimento (Lei 6.404/76, art. 278).

Inobstante não inexista uma definição legal do que venha a ser empreendimento, ALBERTO XAVIER43 define o termo como sendo um objetivo econômico perseguido através da industrialização de bens e/ou da prestação de serviços.

A temporariedade do empreendimento no caso dos consórcios advém da expressão empregada pelo legislador brasileiro (Lei 6.404/76). Esta mesma expressão, determinado empreendimento, também revela que o objeto deve limitar-se a uma única atividade (uninegocial).

Daí por que se afirmar a impossibilidade da constituição de um consórcio voltado à execução de mais de um empreendimento e/ou com prazo indeterminado. Para tal finalidade, o legislador reserva a utilização

42 O art. 243, § 1º, da Lei 6.404/76 considera coligadas duas sociedades “quando uma participa, com

10%, ou mais, do capital da outra, sem controlá-la”. 43 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito

Tributário. São Paulo: Dialética, n. 64, p.7-26, jan. 2001.

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da sociedade de propósito específico (SPE) que, diante do silêncio legal (CC, art. 981, parágrafo único), poderá adotar o tipo jurídico de qualquer outra sociedade.

A respeito do elemento temporariedade, invoca-se a lição de FRAN MARTINS44, para quem os consórcios são “aptos a funcionar apenas pelo período de tempo em que o empreendimento deve ser concluído” e arremeta “não permite a lei a que constitua um consórcio, por exemplo, que tenha por objeto a construção de estradas em geral; esse só poderia se constituir para a construção de uma determinada estrada (...)”.

Não obstante as reiteradas críticas a respeito dessa restrição legal, entendemos insuperável a limitação do consórcio a apenas um único empreendimento, com prazo certo e determinado, sob pena da caracterização de uma sociedade de fato, a menos que se altere a legislação ou que a jurisprudência reconheça a possibilidade deste distanciamento ao tipo legal.

Discordamos da conclusão de ATTILA DE SOUZA LEÃO ANDRADE JR., no sentido de que a disciplina dada pelos artigos 278 e 279 da Lei 6.404/76 não impede a constituição de consórcio com prazo indeterminado.

Mesmo que concordemos com a premissa de que o termo determinado empreendimento não se refira, necessariamente, ao seu prazo de duração, julgamos que a ausência de limitação temporal impõe a execução do objeto por uma sociedade propriamente dita, quiçá sob a forma de uma sociedade de propósito específico (CC, art. 981, parágrafo único), a qual poderá revestir-se sob a forma de qualquer tipo societário.

Veja-se que a temporariedade é o principal elemento de distinção dos consórcios em relação às sociedades empresárias. Note-se que a atribuição de personalidade jurídica às sociedades em geral deve-se, também, pela exploração de atividade duradoura.

Ademais, em matéria tributária, há inúmeras decisões administrativas negando natureza consorcial aos agrupamentos que têm como objeto a execução de mais de um empreendimento ou com indeterminação de prazo. Nestes casos, atribui-se-lhes o tratamento de sociedade de fato ou irregular,

44 MARTINS, Fran. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas: Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976.

Vol. 3: artigos 206 a 300. 1.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

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fazendo com que seus participantes respondam de forma solidária e limitada pelas obrigações contraídas em conjunto45.

4.6.2 Ausência de personalidade jurídica

A constituição do consórcio não dá ensejo a um ente jurídico personalizado. Essa é a dicção clara do § 1º do art. 279. Cada um dos consorciados mantém a sua individualidade jurídica, patrimonial e administrativa.

Como vimos, o fato de não possuir personalidade jurídica não significa que o consórcio não possa contratar com terceiros, que se dará através da sua representação externa por uma única sociedade escolhida para tal encargo. Note-se que o art. 279, VI (Lei 6.404/76), impõe a regulação, pelo contrato consorcial, sobre a administração e a representação do consórcio. Assim, cada consorciada se obrigará perante terceiros de forma individual e direta, uti singuli, porém representadas em conjunto pela sociedade líder representante do grupo.

Como referido linhas atrás, a denominação consórcio servirá como designação coletiva de todos os consorciados, permitindo que sejam identificados de modo abreviado.

Reafirmando nossas convicções, nesse ponto em tudo similares à opinião de LACERDA TEIXEIRA e TAVARES GUERREIRO, o consórcio não será, jamais, sujeito de direitos e obrigações, como ente autônomo e independente. Obrigar-se-á sempre por intermédio das sociedades que o constituem, as quais poderão fazer-se representar pela empresa líder.

Como explica PEDRO PAULO CRISTÓFARO, tal como em relação às demais sociedades despersonificadas, “os efeitos dos atos jurídicos praticados por seus representantes, porque não podem recair sobre uma pessoa jurídica que não existe, incidem imediatamente sobre os patrimônios dos seus integrantes”46.

Quanto à capacidade processual dos consórcios para comparecer ativa ou passivamente em juízo, nossa opinião – tal como a de grande parte

45 Nesse sentido, confiram-se os acórdãos da 1ª Câmara do 1º Conselho de Contribuintes nºs 101-86.540 e 101-86541.541, julgados em 18.05.94. 46 CRISTÓFARO, Pedro Paulo. Consórcios de sociedades. Validade e eficácia dos atos jurídicos

praticados por seus administradores, nessa qualidade. Titularidade dos direitos e das obrigações deles decorrentes. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, n.44, p.15-21, out.-dez. 1981.

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da doutrina – é a de o que o consórcio possui capacidade processual, amparado por interpretação extensiva do inciso VII do art. 12 do Código de Processo Civil.

Uma vez arquivados os seus atos constitutivos no registro do comércio do lugar da sua sede, o consórcio está devidamente constituído, “de direito” e regular. Parece não haver razão para negar-lhe tal capacidade e reconhecê-la em relação às demais sociedades despersonalizadas. Até porque ao momento da Promulgação do Código de Processo, em 11.01.73 – e a norma em voga preserva a sua redação primitiva – os consórcios sequer haviam sido disciplinados pela Lei das Sociedades Anônimas, no ano de 1976. Ou seja, o legislador processual não poderia ter sido expresso em relação a um ente jurídico ainda sequer reconhecido juridicamente.

Em juízo, o consórcio será representado pela sociedade (líder) ou pela consorciada indicada no contrato para o exercício da administração. Esta pessoa representará os interesses individuais de todas as consorciadas, nos estreitos limites do ajuste consorcial. Não se trata, portanto, de substituição processual, ou seja, de pleitear em juízo, em nome próprio, direito alheio (art. 6º do CPC)

O precedente aplicável no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que “podem litigar em juízo as ‘pessoas formais’, as sociedades de fato, as sociedades ainda sem personalidade jurídica, ou já sem personalidade jurídica” (STJ-4ª T., REsp 1.551-MG, Rel. Min. Athos Gusmão Carneiro, j. 20.03.90, www.stj.gov.br).

4.6.3 Composição societária dos consórcios

Atualmente, prepondera a orientação de que é dispensável a participação de uma sociedade anônima (companhia) para a constituição regular de um consórcio. É bem verdade, até pouco tempo, havia certa resistência em relação à formação de consórcio sem a participação de uma Sociedade Anônima. Porém, tal restrição não se justifica sob qualquer aspecto.

Note-se que o próprio texto legal refere que poderão constituir consórcio “as companhias e quaisquer outras sociedades” (Lei 6.404/76, art. 278). A partir de uma interpretação literal do caput do art. 278, note-se que a conjunção “e” não tem a função de exigir a presença de uma companhia agrupada com qualquer outra sociedade. Em realidade, a conjunção aditiva

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deixa claro que não apenas companhias poderão reunir-se sob a forma de consórcio, mas quaisquer outras sociedades.

Uma interpretação teleológica nos leva a perceber que o legislador pretendeu atribuir a maior abrangência possível ao instituto, característica marcante do tratamento jurídico dispensado aos consórcios pelo direito brasileiro, de forma a atender à dinamicidade própria do mundo empresarial.

De outro lado, o argumento de que os consórcios estão disciplinados em lei especial – parece também não autorizar uma interpretação restritiva do caput do art. 278. Isto porque - não é novidade - a Lei nº 6.404/76 assume, em vários capítulos e artigos, uma função de Lei Geral das Sociedades, a exemplo das normas que tratam sobre transformação, incorporação, fusão e cisão, aplicáveis a qualquer tipo de sociedade.

Além disso, a experiência no mostra que a cada dia consórcios são constituídos sem a participação de sociedade anônima e não se tendo notícia de que a ausência de uma sociedade anônima tenha impedido o registro de qualquer consórcio no Registro competente.

Nesse sentido, vale transcrever a opinião abalizada de EGBERTO LACERDA e TAVARES GUERREIRO47:

“Inexistem razões ponderáveis para excluir do regime da lei associações comerciais integradas exclusivamente por sociedades por quotas de responsabilidade limitada [...]. Ao contrário, tudo indica que a intenção do legislador não terá sido restritiva, nesse particular; por enquanto parece ser da maior conveniência que ao instituto se dê tratamento unitário, independentemente do tipo societário adotado pelas sociedades consorciadas.”

Além disso, os artigos 278 e 279 atuam, indiscutivelmente, como norma geral de direito societário, assim como várias outras normas espelhadas pela Lei das Sociedades Anônimas o fazem, que permanecem vigentes não obstante a superveniência do novo Código Civil – desde que inaplicável qualquer das hipóteses do art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil. Aliás, tal característica foi ainda reforçada pelo advento do novo Código Civil, quando se omitiu de disciplinar os consórcios.

47 TEIXEIRA, Egberto Lacerda; GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Das Sociedades Anônimas no Direito

Brasileiro. São Paulo: Bushatsky, 1979, v.2, p.802.

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Sob outro aspecto - mesmo admitindo que, em muitos casos, “uma empresa individual48 pode ser tão poderosa quanto uma sociedade comercial”49 – entendemos que a admissão de pessoa física em consórcio, além de colidir com o texto legal, ainda gera o risco de caracterização de sociedade irregular - com todos os inconvenientes daí decorrentes – na medida em que se extrapola o modelo legal previsto para a formação dos consórcios.

Se, por um lado, é permitido ao julgador extrair da norma a melhor interpretação – pois em muitos casos não haverá uma única resposta possível –, nos parece vedada a possibilidade de que venha a interpretar contra legem, o que faria se ignorasse a exigência legal de que os consórcios deverão constituir-se pela reunião exclusiva de sociedades.

Demais disso, o Registro do Comércio, muito provavelmente, não aceitaria o arquivamento desse contrato, obstando, desde aí, a constituição regular do consórcio integrado por pessoa física.

4.6.4 Responsabilidade entre as sociedades consorciadas

Ao contrário do que ocorre no Direito francês – no qual às obrigações contraídas pelo GIE responde o patrimônio de todos os seus participantes –, o Direito brasileiro (Lei 6.404/76, art. 278, § 1º) foi expresso ao prever que “as consorciadas somente se obrigam nas condições previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem presunção de solidariedade”50. Tal orientação, aliás, está em completa consonância com o art. 265 do Código Civil, ao dispor que “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.

Significa dizer que, segundo o regime previsto pela Lei nº 6.404/76, o patrimônio de cada consorciada mantém a sua autonomia e responde, tão somente, pelas obrigações assumidas segundo o contrato. Tal aspecto reafirma o fato de que o consórcio obriga-se imediatamente através de suas consorciadas, não sendo, portanto, sujeito autônomo de direitos e obrigações.

48 Hoje empresário individual, vide arts. 966 e ss. da Lei 10.406/02. 49 MARTINS, Fran. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas: Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976.

Vol. 3: artigos 206 a 300. 1.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p.485. 50 Há solidariedade “quando, na mesma obrigação, concorre mais de um credor, ou mais de um

devedor, cada um com direito, ou obrigação, à dívida toda” (CC, art. 264).

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Desse modo, além da presunção de não solidariedade entre as consorciadas, a responsabilidade de cada uma estará limitada às prestações específicas assumidas no contrato de consórcio (Lei 6.404/76, art. 279, IV).

Todavia, nada impede que o contrato consorcial afaste a presunção legal de não solidariedade e disponha de modo diverso, por exemplo, no sentido de que todas as consorciadas responderão de forma solidária pelo conjunto de obrigações assumidas, ou mesmo que somente as consorciadas A e B responderão de forma solidária em relação às obrigações X e Y, e assim por diante. Imperará, aqui, uma vez mais, a autonomia da vontade.

Sob outro aspecto, não obstante a presunção legal de não solidariedade, nada impedirá que as consorciadas estabeleçam a solidariedade caso a caso no instrumento que formaliza a contratação com terceiros. Aliás, a prática costuma revelar a exigência de terceiros nesse sentido, a fim de melhor acautelar-se quanto ao cumprimento das obrigações assumidas pelo consórcio. Uma vez mais, a solidariedade entre as consorciadas poderá ser absoluta (de todas as consorciadas e em relação a todas as obrigações) ou parcial (restrita a determinadas prestações ou a determinadas consorciadas).

Note-se que esse detalhe não passou despercebido na exposição de motivos da Lei 6.404/76:

“[...] a experiência mostra que o credor, em geral, obtém a proteção de seus direitos pela via contratual, e exigirá solidariedade quando o desejar. Ademais, tal solidariedade, se estabelecida em lei, transformaria as sociedades grupadas em departamentos da mesma sociedade, descaracterizando o grupo, na sua natureza de associação com personalidade e patrimônio distintos.”

Percebe-se, também, que uma previsão legal em sentido contrário (presunção de solidariedade entre consorciadas) representaria significativo desestímulo à formação de consórcios.

De outro modo, toda a vez que o consórcio integrar uma relação de consumo, incidirão as normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), entre elas a imposição de solidariedade entre as empresas reunidas em consórcio (art. 28, § 3º)51.

51 Mesmo sem a melhor técnica legislativa, visto que, em seu caput, o art. 28 tratou de hipóteses de

desconsideração da personalidade jurídica e nos parágrafos disciplinou casos de responsabilidade

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Parece-nos exagerado e desproporcional o rigor com que agiu o CDC em relação aos consórcios. Isto porque às sociedades participantes de um mesmo grupo societário por subordinação, de que trata o art. 265 da Lei nº 6.404/76, bem como em relação às sociedades controladas, atuou com menos rigor, prevendo a responsabilidade subsidiária das empresas envolvidas.

Esse, sem dúvida, representa um revés significativo ao se optar pela reunião de empresas através de consórcio. Por esse motivo, recomenda-se a previsão, no contrato, da forma de compensação e ressarcimento entre as consorciadas, visto que qualquer consorciado poderá arcar, isoladamente, com a totalidade da condenação: I) independente de culpa (responsabilidade objetiva); II) e da sua participação efetiva nos causas determinantes para o dano suportado pelo consumidor.

De outro lado, a Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 8.666/93), quando trata do consórcio para a contratação com o Poder Público, fixa a “responsabilidade solidária dos integrantes pelos atos praticados, tanto na fase de licitação quanto na de execução do contrato” (art. 33, inc. V).

4.6.5 Falência da empresa consorciada

A Lei das Sociedades Anônimas é expressa ao prever que “a falência de uma consorciada não se estende às demais, subsistindo o consórcio com as outras contratantes; os créditos que porventura tiver a falida serão apurados e pagos na forma prevista no contrato de consórcio” (Lei 6.404/76, art. 278, § 2º).

Tal previsão respalda a preservação da autonomia de cada consorciada em relação ao consórcio. Por tratar-se de contrato plurilateral, é lógico que a decretação da falência de qualquer consorciada não implica a desconstituição do consórcio, a não ser que o contrato consorcial assim o preveja. Pertinentes as palavras de MODESTO CARVALHOSA52:

“Embora no consórcio a contribuição de cada uma seja sempre diversa em gênero e quantidade, a existência de um interesse comum é inquestionável. Isto posto, a presente norma estabelece a

entre obrigadas – seja de forma subsidiária ou solidária –, o CDC declarou expressamente que “as sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código”.

52 Comentários à lei das sociedades anônimas: Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. São Paulo: Saraiva, 1998, v.4, p.356.

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exclusão da falida do consórcio que esteja integrando, prosseguindo o mesmo com as demais consorciadas. Esta aí claramente delineada a natureza de contrato plurilateral do consórcio, como típico negócio associativo que é.”

Naturalmente que se o consórcio for integrado por apenas duas empresas, caso não exista a previsão da possibilidade de substituição da empresa falida no contrato, a falência de qualquer partícipe ocasionará a extinção do consórcio, tendo em vista que é da essência do consórcio a pluralidade de partes.

Do que não tratou a lei societária - mesmo porque desnecessária diante da legislação falimentar - foi em relação aos créditos que as demais consorciadas porventura possuírem em relação à partícipe falida. Estes não escaparão à regra, e serão cobrados perante o juízo universal da falência, salvo se ainda ilíquidos os valores (Lei nº 11.101/05, arts. 5º e ss.).

De outro lado, a decretação da falência, com o encerramento das atividades da consorciada falida, implicará a necessidade de alteração contratual, a ser arquivada no Registro competente, sob pena tornar irregular a sua situação no grupo.

4.6.6 Participação de empresas estrangeiras

Uma sociedade é considerada brasileira, independentemente da nacionalidade do seu capital, quando constituída conforme a legislação brasileira e desde que, cumulativamente, tenha sede e administração no País (Código Civil, art. 1.126).

Em relação às sociedades estrangeiras, exige-se a autorização do Poder Executivo para que possam funcionar no País, “ainda que por estabelecimentos subordinados” (Código Civil, art. 1.134). Todavia, ficará sujeita às leis a aos tribunais brasileiros “quanto aos atos ou operações praticadas no Brasil” (art. 1.137 do Código Civil).

Por essa razão, não há qualquer impedimento que uma sociedade estrangeira – devidamente autorizada a funcionar no País e com seus atos devidamente arquivados no Registro do Comércio “do lugar em que se estabelecer” (art. 1.136) - integre um consórcio. Aliás, conforme destaca MAURÍCIO DA CUNHA PEIXOTO53, esta “constitui uma ótima forma para a

53 PEIXOTO, Maurício da Cunha. Consórcio de empresas. Revista da Faculdade de Direito Milton

Campos. Belo Horizonte, v.1, n.1, p.161-184, 1994.

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absorção, por empresas brasileiras, da experiência estrangeira, tanto na área tecnológica quanto na gerencial”.

De outro lado, se o consórcio for constituído para a contratação com o Poder Público - portanto, sob a regência da Lei nº 8.666/93 –, muito embora admitida a sua participação no grupo, está expressamente afastada a possibilidade de que atue como líder do consórcio, visto que “a liderança caberá, obrigatoriamente, à empresa brasileira” (art. 33, § 1º).

Ainda em relação ao exercício da liderança do grupo, quer nos parecer que se o empreendimento for de caráter privado – portanto, sob a regência da Lei 6.404/76 –, incidirá, por analogia, a vedação expressa no art. 265, § 5º, da referida lei, aplicável aos grupos de sociedades por subordinação, ao exigir que a empresa líder seja de nacionalidade brasileira.

4.6.7 O risco da caracterização de sociedade irregular

A disciplina escassa dos consórcios pela Lei nº 6.404/76 e a utilização incipiente do instituto contribuem para o risco de caracterização da chamada sociedade irregular, com a responsabilização direta e solidária de todos os seus participantes.

A formatação de consórcio extrapolando a moldura legal pela ausência de elemento essencial ou de cláusula obrigatória poderá ser decisiva para afastar a presunção de não solidariedade entre as consorciadas, de que trata o § 1º do art. 278.

Exemplo recorrente ocorre na constituição de consórcio para o desenvolvimento de atividade permanente. Seria o caso de um consórcio voltado para a representação comercial, industrialização e/ou comercialização de produtos ao mercado ou para a prestação de serviços em geral.

Isso porque, para receber o tratamento jurídico diferenciado conferido pelos arts. 278 e 279 da Lei nº 6.404/76, o consórcio deverá, necessariamente, estar voltado à execução de um empreendimento determinado. O desenvolvimento de um objeto permanente desqualificará o agrupamento da qualidade de consórcio, relegando-o às disposições aplicáveis à sociedade em comum, de que trata o art. 990 do CC.

Como sociedade irregular será entendida toda associação de pessoas voltada ao exercício profissional de atividade econômica, que não se revestir sob a forma de algum dos moldes legais (tipos) admitidos. Nesse sentido,

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vale referir decisão do 1º Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda:

“Por consórcio se denomina a sociedade não personificada, cujo objeto é a execução de determinado e específico empreendimento. Incorrendo a unicidade do empreendimento, como também constatado que o contrato é por prazo indeterminado, o acordo firmado entre as sociedades não pode ser reconhecido como de natureza consorcial. Trata-se, na essência, de Sociedade de Fato.”54

ALBERTO XAVIER55 refere outras decisões do Conselho nesse sentido (nºs 101-86.540 e 101-86.541, ambas da 1ª Câmara) e idêntico entendimento adotado pela 6ª Região Fiscal da Receita Federal: “Para não ser equiparado a uma pessoa jurídica comum, o consórcio deve ser constituído para a execução de um único empreendimento e de prazo de duração determinado” (Dec. 6ª RF 272/98).

De outro lado, o adequado registro do contrato na Junta Comercial também se revela elemento indispensável para a regularidade do agrupamento, sob pena da caracterização de sociedade irregular.

De acordo com a Lei nº 8.934/94, os atos relativos à constituição do consórcio e suas respectivas alterações deverão ser arquivados no Registro próprio do lugar da sede do consórcio, devendo publicar-se a certidão de arquivamento (Lei 6.404/76, art. 279, parágrafo único).

É condição de regularidade, portanto, o registro do seu ato constitutivo, sendo que a Junta Comercial deverá rejeitar o arquivamento de contrato em desconformidade com os elementos essenciais do tipo legal descrito na Lei das Sociedades Anônimas – conforme art. 7º, I, a, do Decreto nº 1.800/96, que regulamenta a Lei nº 8.934/1994.

A ausência deste requisito de regularidade afastará a presunção de não solidariedade entre as sociedades consorciadas e ensejará a responsabilidade ilimitada dos sócios (CC, art. 990). JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO56 adverte, com razão, para os riscos decorrentes de falta de publicidade do contrato consorcial:

54 DOU de 13.05.96, p. 8.157. 55 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito

Tributário. São Paulo: Dialética, n. 64, p.7-26, jan. 2001. 56 GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Regime jurídico do consórcio. O Código Civil e a Lei das

Sociedades por Ações. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, n.138, p.202-206, abr.-jun. 2005.

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“No sistema do Código Civil, vale o princípio da responsabilidade solidária e ilimitada dos sócios pelas obrigações sociais, com relação às sociedades não personificadas e particularmente com relação àquelas cujos atos constitutivos não tenham sido submetidos ao registro próprio (sociedades em comum, art. 990). É exatamente essa responsabilidade solidária e ilimitada das consorciadas que se elide no consórcio, devidamente constituído e dada a regular publicidade mediante registro (...).”

Desse modo, o registro não conferirá ao consórcio personalidade jurídica, mas será elemento indispensável para a caracterização do agrupamento como um consórcio e para o afastamento da responsabilidade solidária e ilimitada dos sócios.

5 – CONSÓRCIO E FIGURAS AFINS NO DIREITO BRASILEIRO

A dificuldade antes abordada para caracterizar-se a natureza jurídica do consórcio está na estrutura híbrida e peculiar deste instituto, com particularidades próprias e outras semelhantes a diversos tipos societários e figuras afins.

Ressaltar as dessemelhanças do consórcio em relação a essas figuras congêneres possibilitará, sem dúvida, uma melhor caracterização do instituto e uma visão mais aprimorada a respeito de sua utilidade no meio empresarial.

5.1 Consórcio e Grupo de Sociedades

A Lei 6.404/76 disciplinou duas espécies de grupos de sociedades. Os chamados grupos de fato, regulados pelo Capítulo XX, que ocorrem entre sociedades coligadas57 ou entre controladoras e controladas58, onde não há a formalização de instrumento contratual, a ser arquivado perante o Registro Público de Empresas Mercantis. Há também os chamados grupos de direito, previstos nos Capítulos XXI e XXII da referida Lei, subdivididos em grupos por subordinação e grupos por coordenação (consórcio). Em comum, possuem a

57 Segundo o art. 243, § 1º, quando uma sociedade participa com 10%, ou mais, do capital da outra,

sem controlá-la. 58 Uma sociedade é controladora de outra quando diretamente ou através de outras controladas for

“titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores” (art. 243, § 2º).

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característica de serem formalizados através de instrumento escrito, que exige arquivamento no Registro Público de Empresas Mercantis.

Nos grupos por subordinação, segundo o art. 265 da Lei 6.404/76, a sociedade controladora e suas controladas obrigam-se “a combinar recursos ou esforços para a realização dos respectivos objetos, ou a participar de atividades ou empreendimentos comuns”, mediante convenção. Conforme o artigo 266, “as relações entre as sociedades, a estrutura do grupo e a coordenação ou subordinação dos administradores das sociedades filiadas serão estabelecidas na convenção do grupo, ou mediante acordo com os outros sócios ou acionistas”.

Diferentemente, nos grupos por coordenação (consórcio) não se faz necessária a participação, direta ou indireta, de uma sociedade em outra, inocorrente, portanto, relação de controle ou de hierarquia entre as empresas agrupadas. Como se viu nesse estudo, existe, pois, uma relação horizontal, onde as participantes estão em pé de igualdade, dividindo tarefas e obrigações em busca de um objetivo comum, qual seja a execução de empreendimento determinado (art. 278, caput). Nos agrupamentos por subordinação, as empresas reúnem-se em caráter permanente e poderão visar a uma diversidade de objetos. O consórcio, conforme já referido, deverá ater-se a um empreendimento temporário.

MODESTO CARVALHOSA59 realça as características essenciais de cada agrupamento:

“Há uma nítida diferença quanto ao objeto de um e de outro negócio jurídico. Nos grupos convencionais (art. 265), o objeto é permanente, necessariamente duradouro, com o aproveitamento de recursos e de atividades empresariais visando a favorecer o grupo de sociedades como um todo. Já no consórcio, o objetivo não será permanente, e visará sempre a benefícios individuais para as sociedades consorciadas. Estas, por sua vez, mantêm total autonomia quanto à administração de seus negócios, obrigando-se nos estreitos limites previstos no respectivo contrato consorcial. Não estão, portanto, as sociedades consorciadas submetidas a uma direção que se superpõe às administrações de cada uma.”

59 Comentários à lei das sociedades anônimas: Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. São Paulo:

Saraiva, 1998, v.4, p.342.

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5.2 Consórcio e Sociedade em Conta de Participação

Na sociedade em conta de participação (arts. 991 e ss. do Código Civil), o sócio ostensivo exercerá a atividade social em seu nome individual e sob sua própria e exclusiva responsabilidade. Porém, os resultados (lucros ou perdas) serão rateados proporcionalmente conforme a participação de cada sócio.

Em razão de ausência de personalidade jurídica, este tipo societário atuará sob o nome individual (pessoa física) do sócio participante. Não será obrigatória a averbação do contrato e, mesmo que ocorra, não terá o condão de atribuir personalidade jurídica à sociedade (art. 993 do CC). Portanto, esta sociedade jamais será sujeito de direitos, obrigando-se direta e exclusivamente através do seu sócio participante.

ALBERTO XAVIER trata de distinguir os conceitos60:

“A distinção entre o contrato de consórcio e o contrato de conta em participação está em que neste último é da essência da figura a participação de uma da partes (sócio oculto) nos lucros ou perdas da outra (sócio ostensivo), em contrapartida de uma contribuição pecuniária ou atividade exercida pela primeira, enquanto a essência do consórcio está na coordenação das atividades de diversas partes para a execução de um empreendimento, próprio ou alheio.”

Ambos os tipos representam formas associativas menos formais em relação às sociedades personificadas, que acabam por assumir uma personalidade jurídica diferenciada em relação aos seus membros.

A sociedade em conta apresenta grande utilidade prática, permitindo a realização de atividades sociais com enorme flexibilidade61. No âmbito interno, um contrato vai reger as relações entre os seus sócios partícipes, enquanto, perante terceiros, assume responsabilidade, única e exclusivamente, a pessoa física do seu sócio participativo.

Não obstante, em muitos casos, seja utilizada para a execução de negócio específico, é plenamente possível que tenha por objeto o exercício

60 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito

Tributário. São Paulo: Dialética, n. 64, p.7-26, jan. 2001. 61 A tal ponto que RUBENS REQUIÃO chegou a afirmar, em 1995: “Hoje, dadas as condições

econômicas reinantes, as sociedades em conta de participação estão revivendo”. Curso de Direito Comercial. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v.I, p.300.

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de atividade econômica permanente – diversamente ao que ocorre com os consórcios.

5.3 Consórcio e Sociedade de Propósito Específico (SPE)

A sociedade de propósito específico está prevista no parágrafo único do art. 981 do Código Civil e, como é intuitivo, é constituída para a execução de um único empreendimento ou negócio jurídico. É este, aliás, o elemento diferenciador deste tipo societário. Ao que tudo indica, dada a ausência de previsão legal, poderá ser constituída sob a forma de qualquer tipos societário.

A chamada sociedade de propósito específico assume grande utilidade prática voltada à prestação de serviço público. Isso porque, no art. 20 da Lei 8.987/95 - que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos –, está prevista a possibilidade de o Poder Público exigir que o consórcio vencedor constitua uma sociedade ainda antes da celebração do contrato com a administração. Tal sociedade se ajustará plenamente à hipótese do art. 981.

Deve-se ressaltar que a estrutura do consórcio será sempre mais flexível em relação à sociedade de propósito específico - também referida simplesmente como SPE –, visto que esta deverá sujeitar-se às normas preestabelecidas e burocratizadas das sociedade previstas no Código Civil.

5.4 Consórcio Voltado à Contratação com o Poder Público

Se o objeto do consórcio estiver voltado à realização de obra ou serviço público, outra será a sua disciplina e o seu tratamento jurídico. Em razão do alto interesse público envolvido, sofrerá o influxo de princípios e regras de direito público, seja através da Lei nº 8.666/93, que institui normas sobre licitações e contratos administrativos, seja pela incidência da Lei nº 8.987/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão de serviços públicos.

Se no Direito Privado prevalece o princípio da liberdade das formas, também aplicável aos consórcios, no Direito Público, ao contrário, vigora o princípio da legalidade das formas. No entanto, segundo prevê o art. 54 da

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Lei nº 8.66662, serão subsidiariamente aplicáveis as disposições da Lei das Sociedades Anônimas.

Em relação ao regime da Lei nº 8.666/93, a participação de consórcios nos procedimentos licitatórios será limitará à opção do administrador, segundo critério de conveniência e oportunidade63. De outro lado, a vedação à participação de consórcios haverá de ser fundamentada. Na prática, costuma-se vetar a admissão de consórcios quando o serviço ou a obra for de pequeno vulto e complexidade.

A Lei 8.666/93 determina que as empresas que pretendam concorrer em consórcio firmem um termo de compromisso de constituição de consórcio, uma espécie de contrato preliminar no qual se obrigam a constituir um consórcio caso sejam vencedoras do certame licitatório - evento futuro e incerto.

De um modo geral, a participação de empresas através de consórcio, segundo o regime estipulado na Lei nº 8.666/93, está subordinada às seguintes normas:

“Art. 33. Quando permitida na licitação a participação de empresas em consórcio, observar-se-ão as seguintes normas:

I - comprovação do compromisso público ou particular de constituição de consórcio, subscrito pelos consorciados;

II - indicação da empresa responsável pelo consórcio que deverá atender às condições de liderança, obrigatoriamente fixadas no edital;

III - apresentação dos documentos exigidos nos arts. 28 a 31 desta Lei por parte de cada consorciado, admitindo-se, para efeito de qualificação técnica, o somatório dos quantitativos de cada consorciado, e, para efeito de qualificação econômico-financeira, o somatório dos valores de cada consorciado, na proporção de sua respectiva participação, podendo a Administração estabelecer, para o consórcio, um acréscimo de até 30% (trinta por cento) dos valores exigidos para licitante individual, inexigível este acréscimo

62 Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos

preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.

63 Controlável juridicamente, desde que haja ofensa a princípios que informam a atividade administrativa, mais recentemente o da razoabilidade.

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para os consórcios compostos, em sua totalidade, por micro e pequenas empresas assim definidas em lei;

IV – impedimento de participação de empresa consorciada, na mesma licitação, através de mais de um consórcio ou isoladamente;

V – responsabilidade solidária dos integrantes pelos atos praticados em consórcio, tanto na fase de licitação quanto na de execução do contrato.

§ 1º. No consórcio de empresas brasileiras e estrangeiras a liderança caberá, obrigatoriamente, à empresa brasileira, observado o disposto no inciso II deste artigo.

§ 2º. O licitante vencedor fica obrigado a promover, antes da celebração do contrato, a constituição e o registro do consórcio, nos termos do compromisso referido no inciso I deste artigo.”

Das normas acima transcritas, diferenças estruturais em relação aos consórcios voltados para negócios privados, regidos pela Lei 6.404/76, a saber64:

– Quanto à estrutura, segundo a Lei das S.A, o consórcio deverá formalizar-se entre pessoas jurídicas, inadmitida a participação de pessoas físicas ou empresários individuais. De modo diverso, a Lei 8.666/93 parece admitir a reunião de licitantes sob a forma de consórcio; é que, segundo doutrina CARLOS ARI SUNDFELD (Licitação e Contrato Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1994, p.131): “O art. 33 – caput – menciona apenas o consórcio de empresas, que é o caso mais comum. Mas isso não descarta o consórcio de pessoas físicas, quando o objeto o admita, como nos concursos”.

– Quanto ao objeto, a disciplina prevista pela Lei 6.404/76 prevê a utilização do consórcio para a execução de empreendimento determinado, enquanto que a Lei 8.666/93 vincula o seu objeto a obra ou a serviço especificado na licitação.

64 Comparação elaborada com base em artigo escrito por HORÁCIO AUGUSTO MENDES DE SOUZA.

SOUZA, Horácio Augusto Mendes de. Estrutura jurídica do consórcio destinado às contratações com a administração pública. Revista de Direito da Procuradoria Geral. Rio de Janeiro, n. 57, p.179-213, 2003.

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– Quanto à responsabilidade, a Lei 6.404/76 estipula a presunção de não solidariedade entre as consorciadas, enquanto a Lei de Licitações prevê responsabilidade solidária.

– Quanto à insolvência, no consórcio constituído sob a Lei das S.A as consorciadas, individualmente, poderão valer-se do princípio da continuidade da empresa e pleitear o prosseguimento das suas atividades, para, então, prosseguir com a execução do empreendimento assumido pelo consórcio. Pela Lei 8.666/93, a falência de qualquer participante dará ensejo à rescisão do contrato com a administração.

– Quanto à solução de litígios, no regime da Lei 6.404/76, os conflitos entre consorciadas e/ou com terceiros poderão ser resolvidos no foro de eleição específico em contrato ou através de arbitragem, ao passo que os conflitos entre consórcio e administração serão necessariamente solucionados no foro da Administração.

– Quanto à administração e representação, no regime da Lei 6.404/76, não há impeditivo que a empresa líder seja sociedade estrangeira, ao passo que a liderança nos consórcios voltados à contratação com a Administração Pública deverá ser exercida por sociedade brasileira.

Por razões óbvias, percebe-se maior dinâmica e flexibilidade na disciplina conferida pela Lei das Sociedades Anônimas, enquanto que o modelo previsto pela Lei 8.666/93, embora possa socorrer-se, subsidiariamente, das normas da Lei 6.404/76, apresenta estrutura mais rígida.

6 – CONTEÚDO MÍNIMO DO CONTRATO CONSORCIAL

Os diversos incisos elencados pelo art. 279 da Lei 6.404/76 encerram o conteúdo mínimo do contrato de consórcio, relacionando as clausulas e as disposições indispensáveis à sua formação regular.

Ao elencar as normas indispensáveis ao contrato, não está a lei societária afastando a possibilidade de previsão de disposições diversas, para regular questões também relevantes, tais como: o ingresso e a saída de consorciados; as causas de rescisão do consórcio; o direito de retirada e as hipóteses de exclusão de consorciado, entre outras65. Justamente por esse motivo fala-se em conteúdo mínimo do contrato consorcial.

65 Lembre-se que o consórcio é modalidade de contrato plurilateral e aberto.

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Segundo o caput do art. 279, exige-se que o contrato seja aprovado internamente, em cada sociedade consorciada, pelo órgão “competente para autorizar a alienação de bens do ativo permanente”. Regula-se, assim, a esfera de competência interna para a aprovação do contrato.

No caso das Sociedades Anônimas, o estatuto poderá outorgar ao Conselho de Administração o poder de alienar bens do ativo permanente. Mesmo que seja omisso a esse respeito, segundo o art. 142, VIII, da Lei 6.404/76, caberá a este órgão a aprovação, ou não, da participação da companhia no consórcio. No entanto, entendemos que será desejável – pela relevância da decisão - que se transfira tal atribuição à assembleia geral da companhia. De outro modo, nada impedirá que o Estatuto outorgue tal competência à Diretoria.

Nas demais sociedades, a aprovação dos consórcios dar-se-á conforme dispuser o contrato social. No silêncio do contrato, o intérprete deverá socorrer-se das normas legais aplicáveis àquele determinado tipo societário.

Assim que o conteúdo mínimo do contrato consorcial encontra-se todo ele elencado no art. 279 da Lei 6.404/76, a saber:

I – a designação do consórcio, se houver;

II – o empreendimento que constitua o objeto do consórcio;

III – a duração, endereço e foro;

IV – a definição das obrigações e responsabilidade de cada sociedade consorciada, e das prestações específicas;

V – normas sobre recebimento de receitas e partilha de resultados;

VI – normas sobre a administração do consórcio, contabilização, representação das sociedades consorciadas e taxa de administração, se houver:

VII – forma de deliberação sobre assuntos de interesse comum, com número de votos que cabe a cada consorciado;

VIII – contribuição de cada consorciado para as despesas comuns, se houver.

Passemos à análise pormenorizada de cada um.

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6.1 Designação

Ao contrário do que ocorre com os grupos de subordinação (Lei nº 6.404/76, art. 269, I), a designação do consórcio será facultativa. Note-se que a lei refere: “a designação do consórcio, se houver”.

A fim de evitar confusão, até mesmo para não atrair eventual responsabilidade indesejada pela teoria da aparência66, não será aconselhável que o consórcio utilize denominação idêntica ou semelhante à razão social ou nome de fantasia de qualquer das sociedades participantes.

Outras vezes, por razões de marketing e publicidade, poderá ser interessante realizar-se propositadamente tal confusão, não obstante a maior visibilidade de determinada consorciada e os riscos daí decorrentes. Se incidente relação de consumo, esta, certamente, será a consorciada escolhida para ser demandada pelo consumidor.

Não será igualmente conveniente que o consórcio se valha de elementos próprios de outros tipos societários, tais como companhia, ltda., etc.

6.2 Objeto do Consórcio

Trata-se de requisito relacionado à principal característica dos consórcios: execução de empreendimento determinado. O consórcio terá sempre um propósito específico único, o qual deverá ser revelado com precisão no contrato.

LACERDA TEIXEIRA e TAVARES GUERREIRO67 ressaltam que a Lei Antitruste (Lei nº 4.137/62, art. 72) determina que quaisquer atos relativos a agrupamentos de empresas deverão informar, com a necessária precisão, o objeto e as finalidades do empreendimento. Ressaltam, ainda, que nos termos do art. 64, § 1º, do Decreto nº 57.651/66, considera-se declarado com precisão sempre que o objeto indicar o gênero, a espécie e o local da sua exploração.

66 Ocorre quando uma pessoa, aparentemente titular de um direito, embora não o sendo, leva a

efeito um ato jurídico com terceiro de boa-fé. A exigência da preservação da segurança das relações jurídicas e o resguardo da boa-fé de terceiros, manifestada através da confiança depositada na aparência, justificam a teoria da aparência.

67 Das sociedades anônimas no direito brasileiro. São Paulo: Buchatsky, 1979, p.794.

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6.3 Duração

Lembre-se que é da essência e da natureza do consórcio a temporariedade. Quando concluído, o empreendimento único a que se refere seu objeto deverá ser extinto. Sua duração, portanto, deverá ser por prazo suficiente à conclusão do empreendimento, seja em poucos meses ou em mais de um ano. Assim, tem-se que a sua duração será sempre correspondente e coincidente com o término do empreendimento.

Não se admite, portanto, o consórcio por prazo indeterminado, a exigência de norma a respeito de sua duração afasta tal possibilidade. O que poderá ocorrer, em lugar da prefixação de uma data certa, é a estipulação de um termo futuro, correspondente à conclusão do empreendimento.

6.4 Endereço e Foro

O endereço indicado no contrato deverá ser o do local da administração do consórcio, que não necessariamente corresponderá ao do local do empreendimento a ser executado. MODESTO CARVALHOSA68 refere que ao não optar pela palavra sede, o legislador “quis deixar nítida a ausência de personalidade jurídica”.

Em relação ao foro a ser indicado em contrato, este corresponderá à comarca onde, por opção das empresas (foro de eleição), serão dirimidos os litígios entre as consorciadas. Em relação a terceiros, valerá o foro de eleição escolhido em contrato ou, se omisso, serão aplicáveis as normas sobre competência previstas no Código de Processo Civil.

6.5 Definição da Responsabilidade Entre as Consorciadas

Cada consorciada deverá, individualmente, obrigar-se à realização de uma determinada prestação ou atividade específica. Seria indesejável a confusão de tarefas e responsabilidades de cada participante.

De certa forma, a delimitação precisa das obrigações - tornada pública através do registro - vem compensar a presunção de não solidariedade entre as consorciadas, permitindo que terceiros identifiquem até que ponto vai a obrigação de cada consorciada. Isto permitirá que o terceiro, em caso de inadimplência, acione diretamente a sociedade a quem cabia o cumprimento da obrigação inadimplida. 68 Comentários à lei das sociedades anônimas: Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. São Paulo:

Saraiva, 1998, v.4, p.371.

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A obrigação de cada consorciada será, provavelmente, mensurada no percentual a que terá direito na partilha dos resultados.

6.6 Administração e Representação do Consórcio

Em razão do alto grau de flexibilidade do instituto, restringiu-se o legislador a dizer que o contrato deverá especificar as “normas sobre a administração do consórcio”.

A prática revela que, normalmente, há a eleição de uma empresa líder para se obrigar em nome de todos os participantes. É frequente a estipulação de uma taxa remuneratória à sociedade líder, a critério da maioria.

Não haverá relação de hierarquia entre a sociedade líder, representante do grupo, e demais consorciadas - o que confundiria o consórcio com os grupos de subordinação de que trata o art. 265 da Lei 6.404/76.

A figura do líder simplificará o relacionamento entre consorciadas e do consórcio perante terceiros. Como bem destaca ALBERTO XAVIER69, “o líder não é, pois, órgão do consórcio, pois este não é uma entidade dotada de personalidade jurídica à qual possa imputar-se uma vontade única”, e completa: “a vontade única que é apresentada ao terceiro nada mais é que a vontade comum de todos os consorciados, expressa por um representante comum”70.

Ao encontro do que vem sendo afirmando, vale a lição de PEDRO PAULO CRISTÓFARO71:

“[...] o administrador do consórcio, quando age de acordo e dentro dos limites do contrato, representa ex vi legis os consorciados no exercício dos direitos de que eles sejam titulares em comum.

69 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito

Tributário. São Paulo: Dialética, n.64, p.7-26, jan. 2001. 70 XAVIER, Alberto. Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito

Tributário. São Paulo: Dialética, n.64, p.7-26, jan. 2001. 71 CRISTÓFARO, Pedro Paulo. Consórcios de sociedades. Validade e eficácia dos atos jurídicos

praticados por seus administradores, nessa qualidade. Titularidade dos direitos e das obrigações deles decorrentes. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, n. 44, p.15-21, out.-dez. 1981.

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Não fora assim e o consórcio seria uma figura vazia de sentido, oca de significado e despida de real possibilidade de atuação prática. Como executar um empreendimento comum (ao menos um empreendimento comum de vulto) – e este é hoje o propósito legal dos consórcios, na forma do que preceitua o artigo 278 da Lei de S/A – sem uma administração comum, com poderes de representação externa?”

Em relação ao consórcio voltado à contratação com o Poder Público, o art. 33, II, da Lei nº 8.666/93 prevê a necessidade da indicação de empresa responsável, bem como a definição das condições de liderança.

6.7 Receitas, Despesas e Partilha dos Resultados

Despesas e receitas deverão ser partilhadas segundo a proporção estabelecida em contrato, a qual, provavelmente, estará relacionada à relevância e ao grau de comprometimento das prestações específicas atribuídas a cada consorciada.

ROBERTO PAPINI72 aduz que “pode-se estipular que cada consorciada deve suportar integralmente os custos do trabalho a ela atribuído (definidos também no contrato), cabendo-lhe igualmente receber o valor integral dos trabalhos executados, diretamente do proprietário do empreendimento”.

A experiência revela que o consórcio poderá constituir um fundo comum afetado pelas consorciadas ao empreendimento, a fim de fazer frente às despesas ordinárias da execução do empreendimento.

Diversamente ao Direito italiano - onde o art. 2.602 do Código Civil prevê a obrigatoriedade da constituição de um fondo consortile –, o Direito brasileiro nada refere sobre a existência de um patrimônio comum afetado ao consórcio (fundo), nos parecendo, portanto, viável, mas não obrigatória, a sua formação.

Deve-se também esclarecer que o consórcio não aufere lucro diretamente. As receitas geradas a partir da sua atividade serão auferidas direta e individualmente por suas consorciadas, na proporção estabelecida em contrato. Segundo normatizado pela Secretaria da Receita Federal, “[...] os rendimentos decorrentes das atividades (principais e acessórios) desses consórcios deverão ser computados nos resultados das empresas

72 PAPINI, Roberto. Sociedade Anônima e Mercado de Valores Mobiliários. Rio de Janeiro: Forense, 1987,

p. 364.

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consorciadas, proporcionalmente à participação de cada uma no empreendimento” (ADIn nº 21, 08.11.1984).

6.8 Responsabilidade Tributária

Sob o ponto de vista tributário, sabe-se que, em muitos casos, o fisco atribui responsabilidade tributária a entes destituídos de personalidade jurídica, como explica ALBERTO XAVIER73:

“Num sentido ou no outro é inegável o tratamento autônomo pelo Direito Fiscal da noção de personalidade jurídica, técnica instrumental, funcional e relativamente que utiliza à luz das valorações que lhe são próprias: e daí aceitarmos plenamente o conceito de personalidade tributária, como a suscetibilidade de ser sujeito de relação jurídica tributária.”

Em relação ao consórcio, em regra, não é contribuinte do imposto de renda das pessoas jurídicas, pois não é ente equiparado à pessoa jurídica, como, exemplificativamente, ocorre com o empresário individual, com a sociedade em conta de participação, bem como com as filiais, no país, de sociedades com sede no exterior (RIR/99, art. 147, II).

Justamente por não ser contribuinte do imposto de renda é que não lhe poderá ser atribuído lucro, o qual deverá ser tributado diretamente quando da sua aferição pelas consorciadas, segundo a proporção fixada no contrato. Segundo norma da Secretaria da Receita Federal, “[...] os rendimentos decorrentes das atividades (principais e acessórios) desses consórcios deverão ser computados nos resultados das empresas consorciadas, proporcionalmente à participação de cada uma no empreendimento” (ADIn nº 21, 08.11.1984).

Por outro lado, o consórcio será sujeito passivo da obrigação de recolher imposto retido como fonte pagadora. A Instrução Normativa SRF nº 200/2002 (art. 12, § 3º) exige a inscrição dos consórcios no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica – CNPJ e dispõe que sempre que “pagarem rendimentos sujeitos a retenção na fonte” ou “auferirem rendimentos em decorrência de suas atribuições”, estão sujeitos ao regime tributário aplicável às pessoas jurídicas74.

73 Consórcio: natureza jurídica e regime tributário. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo,

n.64, p.7-26, jan. 2001. 74 FRANCO NETO, Ary Azevedo. Consórcio. In: LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões

(Coords.). Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 2081.

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6.9 Registro e Publicidade

O contrato de consórcio e suas alterações posteriores deverão ser obrigatoriamente arquivados no Registro Público de Empresas Mercantis do lugar da sua sede, devendo a certidão de arquivamento ser publicada nos moldes previstos no art. 289 da Lei 6.404/76.

Igualmente, quando dissolvido o consórcio em razão do término do empreendimento a que se destina, deverá o instrumento correspondente ser levado ao Registro de Comércio, para que se possa “dar baixa” no respectivo assentamento.

O regime de arquivamento será exatamente aquele previsto para as sociedades mercantis e tornará eficaz o contrato perante terceiros após a publicação do seu arquivamento. Em relação às consorciadas, pode-se afirmar que o contrato produzirá efeitos desde a data da sua celebração (assinatura), tão logo autorizado pelo órgão competente.

Ao que parece, ao exigir apenas a publicação da certidão do arquivamento, pretende o legislador preservar o sigilo do negócio objeto de execução via consórcio.

Uma das funções principais do registro é afastar a presunção de solidariedade e responsabilidade ilimitada de todas as consorciadas, pela caracterização de sociedade irregular.

7 - CONCLUSÃO

O tratamento jurídico flexível e não burocrático conferido aos consórcios entre sociedades pela Lei 6.404/76 nos parece apto a atender a dinamicidade e à complexidade do mundo empresarial e, com isso, incentivar o fenômeno da concentração de empresas, quando o fim visado seja empreendimento ou negócio específico e determinado.

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