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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOPONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOPONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOPONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
Juliana Costa Ribeiro
O corpo anoréxicoO corpo anoréxicoO corpo anoréxicoO corpo anoréxico
Dos abusos midiáticos às experiências de novos processos comunicativos
São Paulo
2009200920092009
II
Juliana Costa Ribeiro
O corpo anoréxicoO corpo anoréxicoO corpo anoréxicoO corpo anoréxico
Dos abusos midiáticos às experiências de novos processos comunicativos
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em Comunicação e Semiótica,
sob orientação da Profª Doutora Christine
Greiner.
São Paulo
2009
III
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
IV
Dedico essa dissertação à minha irmã Letícia
que durante a adolescência sofreu com transtornos alimentares
e a Juliana Maia (in memoriun)
colega da faculdade vítima de anorexia.
V
Agradecimentos
Aos meus pais, Leonor e Marco Polo, pelo incentivo e por acreditarem;
À Angel Vianna, pela grande mestra e amiga que é;
À Christine Greiner, pela generosidade, cuidado e orientação;
À Helena Katz e Rosane Precisosa, pela leitura e comentários generosos a respeito do
trabalho;
Aos professores Amálio Pinheiro e Jorge Albuquerque pelos ensinamentos;
À todos os professores do Programa de Comunicação e Semiótica;
À todos os colegas e amigos que participaram desse processo;
Em especial à Lilá, Anabel, Analu e Anastácia, pela confiança de dedicação.
VI
Resumo
O aumento dos casos de distúrbio alimentar nas últimas décadas vem atraindo a
atenção de estudiosos do corpo em diversas áreas de conhecimento. Atualmente, a mídia e a moda enfatizam a necessidade de a mulher ter um corpo magro e jovem. Associam a esse padrão estético a felicidade, a riqueza, a saúde e o sucesso. A exigência do corpo magro é mais presente em grupos sociais que vivem conectados às informações que circulam em larga escala pelo mundo. O medo da rejeição é normalmente apontado como causa imediata para essa ação radical. Nesta pesquisa, o objetivo principal é analisar como se dão os processos de comunicação do corpo anoréxico com o seu ambiente e as possíveis modificações, ao vivenciar práticas corporais como a técnica Vianna. Trabalharemos com a hipótese de que pessoas com anorexia vivem sob o paradigma da dualidade mente/corpo, levando às últimas consequências o controle da primeira sobre o segundo. Para entender o sintoma da distorção dos mapas corporais no cérebro, analisamos os estudos do neurocientista António Damásio (1995) e o conceito de mente entranhada dos americanos Lakoff e Johnson (1999). Apresentamos, em seguida, dados históricos acerca de um surto de anorexia ocorrido na Idade Média, hoje conhecido por anorexia santa, e a anorexia nervosa da atualidade, a fim de discorrer sobre a dualidade mente/corpo espírito/matéria presente nos dois casos. Para tanto, discutiremos também o fenômeno dos abusos midiáticos em anúncios publicitários, jornais, livros, televisão e internet, ao qual é atribuída uma relação de causalidade com a anorexia nervosa contemporânea. Como fundamentação teórica, estudamos as pesquisas de Katz e Greiner (2005) sobre o corpomídia, que propõe o corpo como mídia primária da comunicação; a de Gail Weiss (1999), acerca da formulação de imagens corporais; a de Paul Churchland (2004), que mapeou as diversas modalidades de dualismos cartesianos; e as pesquisas teóricas das brasileiras Letícia Teixeira (2008) e Neide Neves (2008) sobre a técnica Vianna, que ajudou a esclarecer a proposição de que uma abordagem a partir do corpo pode ajudar uma anoréxica a dissolver essa dicotomia mente/corpo. Para o corpus da pesquisa, selecionamos dois grupos de pessoas para observação. O primeiro é composto por pessoas que já tiveram anorexia e conseguiram reverter o quadro e o segundo, por pessoas que estão anoréxicas atualmente e que, além do acompanhamento médico, praticam a técnica Vianna. O trabalho de campo vem sendo realizado desde setembro de 2007. Como resultado, esta pesquisa propõe desviar o foco da discussão a respeito da anorexia, normalmente voltado para as pressões culturais ou para análises psicanalíticas, uma vez que analisa essa doença como resultado da radicalização da dualidade mente/corpo. Tal separação questiona a natureza do corpo como um corpomídia e, uma vez salientada de maneira abusiva pela mídia impressa e televisa, camufla o distúrbio como um fenômeno comunicacional de massa, dificultando ainda mais a compreensão e o tratamento de cada caso particular.
Palavras-chave: Anorexia, Corpomídia, Dualidade mente/corpo, técnica Vianna.
VII
Abstract
The increasing number of eating disorders in the last decades calls the attention of
researchers concerned with body studies in several fields of knowledge. The media and the fashion world emphasize the need of a woman’s slim and young body, associated with happiness, wealth, health and success. There is more demand of a slim body among social groups connected with worldwide information. The fear of rejection is usually considered the immediate cause of such radical action. The main objective of this research work is to analyze how the communication processes between the anorectic body and the environment occur, and the possible changes after performing body practices, such as the Vianna’s technique. Our hypothesis is that anorectic people live under the mind/body duality paradigm, taking the control of the mind over the body to the last consequences. To understand the symptom of body maps distortion in the brain, we analyzed the works by the neuroscientist Damásio (1995), and the concept of embodied mind concept by Lakoff & Johnson (1999). Then we present historical data on an anorexia outbreak in the Middle Ages, known today as holy anorexia, and the current anorexia nervosa, so as to discuss the mind/body spirit/matter duality in both cases. So we will also discuss the phenomenon of media abuse in advertisements, newspapers, books, TV and Internet, considered to cause the contemporary anorexia nervosa. The theory adopted here is the research works by Katz & Greiner (2005) on the mediabody, which considers the body the primary communication media; by Gail Weiss (1999), on the formulation of body images; by Paul Churchland (2004), who mapped the several types of Cartesian dualisms; and the theoretical work by the Brazilian researchers Letícia Teixeira (2008) and Neide Neves (2008) on Vianna’s technique, who helped clarify the idea that an approach based on the body can help an anorectic person to undo the mind/body dichotomy. For the research corpus, we observed two groups of people. The first one is formed by people who had anorexia and recovered from it; the second, by anorectic people under medical treatment who perform Vianna’s technique. Field work is being carried out since September 2007. As an outcome, this work proposes changing the discussion focus on anorexia, usually concerned with cultural pressures on psychoanalytical analyses, once it considers this disease as result of a radicalization of the mind/body duality. This separation inquires body’s nature as a mediabody and, once abusively highlighted by press, it disguises the disorder as a communicational mass phenomenon, rendering the understanding and treatment in each particular case more complicating.
Key words: Anorexia, mediabody, mind/body duality, Vianna’s technique.
VIII
SUMÁRIO
Introdução............................................................................................ 1
Distorções das imagens do corpo........................................................ 7
Da Idade Média à atualidade .............................................................. 26
Entranhando informações – técnica Vianna........................................ 52
Considerações finais............................................................................ 73
Referências.......................................................................................... 77
1
Introdução
O aumento dos casos de distúrbio alimentar nas últimas décadas vem atraindo a
atenção de estudiosos do corpo em diversas áreas de conhecimento. Nesta pesquisa, temos
interesse em entender como se dão os processos de comunicação do corpo anoréxico com o
seu ambiente e as possíveis modificações dessas relações ao vivenciar práticas corporais.
Trabalharemos com a hipótese de que pessoas com anorexia vivem sob o paradigma da
dualidade mente/corpo, levando às últimas consequências o controle da primeira sobre o
segundo.
Houve um surto de anorexia em outro momento histórico e cultural: no fim da Idade
Média, as freiras adoeciam por praticarem jejuns prolongados, mas naquele contexto essa
ação era vista como virtude e essas mulheres eram canonizadas, justamente por esse feito.
Será estudado como a anorexia vem sendo tratada em diversas mídias, tais como anúncios
publicitários, livros, televisão e internet, como se dão os abusos midiáticos e as
consequências disso no modo como a doença é vista: os mitos que surgem a respeito dela,
as verdades e equívocos. Por fim, analisaremos como a técnica Vianna1 pode dar subsídios
para a pessoa experimentar diferentes estados corporais, criar diversas imagens do corpo,
favorecendo a produção de conhecimentos e construções simbólicas, trazendo assim
informações novas que podem reorganizar de maneira mais estável o corpo anoréxico.
Levaremos em consideração a complexidade e singularidade dos corpos, uma vez
que o risco da pesquisa é cair na armadilha de uma tentativa de “normalização”. Admitimos
1 Técnica desenvolvida pelos brasileiros Klauss e Angel Vianna desde a década de 60.
2
que os corpos estão a todo instante se conectando e reconectando a informações de maneira
singular. Tal processo dinâmico sofre interferência de diversos fatores, como o ambiente
externo e a própria estrutura genética do corpo. Submetê-lo a uma nova informação pode
significar dar a ele uma possibilidade de conexão – ou seja, ao entrar em contato com algo
novo, é criada a possibilidade de desestabilizar padrões, gerando uma crise e uma tentativa
de nova organização. Há uma negociação entre as informações estáveis e as novas. Essa
conexão singular, uma vez ocorrida, terá graus de coesão. Quanto maior a coesão, mais
entranhada a informação estará na pessoa – ou seja, ela em algum nível vai alterar o modo
de pensar, sentir e agir no mundo, assim como a sua própria constituição quanto à
concentração de hormônios, tensões musculares e da pele, funcionamento dos órgãos, etc.
As fronteiras entre saúde e doença, no caso da anorexia, não são tão bem definidas.
Trata-se de uma patologia que tem como critérios diagnósticos a perda de peso e
manutenção abaixo do normal, por evitar alimentos que engordam e por vômitos
autoinduzidos, purgação autoinduzida, exercícios excessivos, uso de diuréticos; medo de
engordar; distorção da imagem corporal e amenorréia. Mas onde está o limite da dieta e
exercícios saudáveis e a dieta e exercícios doentios?
A definição de doença (do latim dolentia, padecimento) é o estado resultante da
consciência da perda da homeostasia de um organismo vivo, total ou parcial. Desse modo,
toda doença seria uma desordem momentânea ou permanente do organismo. O objetivo,
para a manutenção da vida, seria a volta a um estado “normal” ou “equilibrado”
homeostaticamente. Neste trabalho não utilizaremos esse pensamento sobre doença, pois
assim formulado cria uma dualidade saúde/doença, tornando-se conflitante com a hipótese
do trabalho. Além disso, a noção de tempo adotada aqui é a da irreversibilidade, ou seja,
3
não é possível voltar a um estado anterior uma vez eliminada a doença. Esta pesquisa
pontua que a doença é um processo adaptativo do indivíduo e está constantemente sendo
atualizada. Não se atribui ao momento de tomada de consciência da perda do equilíbrio
interno a separação entre saúde e doença.
Atualmente, a mídia e a moda enfatizam a necessidade de a mulher ter um corpo
magro e jovem. Associam a esse padrão estético a felicidade, riqueza, bem-estar, saúde,
sucesso – ou seja, valor. No Brasil, cresce assustadoramente o número de pessoas que se
submetem a cirurgias para atingir tal padrão, buscando ser valorizadas quase
instantaneamente. Vende-se um sem-número de revistas semanais que exibem em suas
capas manchetes de dietas milagrosas (possibilidade de perder vários quilos em pouco
tempo) e fotos de mulheres jovens e magras. Tais dietas sequer levam em consideração a
massa corporal da pessoa que se submeterá a ela. Relacionam o número de quilos
emagrecidos exclusivamente à quantidade de alimentos ingeridos. Na verdade, o que está se
vendendo é a possibilidade rápida de ganhar valor, uma vez que atualmente jovialidade e
magreza são o padrão ideal de beleza e, como já foi dito, este está associado à felicidade e
ao sucesso.
Em 2006, num evento de moda em Madrid, na Espanha, modelos foram impedidas
de desfilar por estarem muito abaixo do peso. A organização do evento tinha como objetivo
chamar a atenção para o problema da anorexia. É claro que havia uma estratégia de
marketing na ação, mas a discussão ficou circulando na mídia, merecendo capas de revistas,
manchetes de jornal e reportagens de televisão. Pouco tempo depois, a modelo brasileira
Ana Carolina Reston Macan faleceu de anorexia, fato que aqueceu ainda mais as
discussões.
4
Em fevereiro de 2007, foi a vez da Semana de Moda de Nova York se submeter às
regras de combate à anorexia, tentando forçar a indústria da moda a ter nova postura diante
da questão da magreza exigida das modelos. Proibiram que desfilassem modelos com uma
massa corporal inferior a 18, o que para uma modelo de 1,75 m de altura corresponde a 57
quilos. Atualmente, as modelos com essa altura pesam em média apenas 52 quilos.
Infelizmente, a maior potência da moda no mundo, Paris, não aderiu às regras,
enfraquecendo o movimento. O presidente da Federação Francesa de Estilistas, Didier
Grumbach, declarou-se contra a imposição de exigir o índice de massa corporal mínima de
18. Agindo assim, os organizadores de eventos internacionais de moda reafirmam o seu
poder e o direito dos estilistas de alta costura à criação das suas coleções conforme sua
vontade, com quem e para quem eles definirem.
Emagrecer até o limite da vida é o que muitas modelos fazem para se manterem no
mercado de trabalho. Corpos cada vez mais magros servem de “cabide” para as invenções
dos estilistas de alta costura. No mundo da moda, a competição entre manequins, e mesmo
modelos de fotografia e publicidade, é esmagadora. Para conseguir lugar em cada desfile,
em cada campanha publicitária, é preciso trabalhar incansavelmente, fazendo o porta-em-
porta dos castings. A regra é válida para todas, estrelas ou não. É isso que leva a maioria
das profissionais a dietas rigorosíssimas, principalmente pouco tempo antes de um desfile.
Mas não é só na moda que isso acontece. Bailarinas clássicas, por exemplo, também
são exigidas nesse sentido. Submetem-se a dietas rigorosas e mantêm-se abaixo do peso por
longos anos. Isso além de uma rotina de exercícios diários extenuantes. É possível
encontrar sintomas de anorexia em meninas de 8 e 9 anos nas escolas mais exigentes de
balé.
5
Apesar de esses serem grupos de risco para tal doença, não é raro encontrar pessoas
que decidem reduzir sua alimentação ao máximo, desenvolvendo a anorexia, e que não
sofrem nenhuma pressão profissional para essa decisão. O medo da rejeição de seu grupo
social é normalmente uma das causas imediatas para essa ação radical. Evitam cada vez
mais dietas calóricas sem nenhuma preocupação com a nutrição do corpo. O único objetivo
é manter-se magra. Foi-se o tempo em que reis e rainhas, sentados em seus tronos, exibiam
seus corpos gordos, adornados por belas vestes e jóias. Nesse tempo, corpos gordos eram
sinônimo de riqueza, fartura e saúde. Ainda hoje há pessoas que associam gordura à saúde e
magreza à doença. A exigência do corpo magro é mais presente em grupos sociais que
vivem conectados às informações que circulam em larga escala pelo mundo.
Para esta pesquisa, selecionamos dois grupos de pessoas para observação. O
primeiro é composto por pessoas que já tiveram anorexia e conseguiram reverter o quadro;
e o segundo, por pessoas que estão anoréxicas atualmente e que, além do acompanhamento
médico, realizam um trabalho corporal, especificamente, a Técnica Vianna.
Formulamos as seguintes perguntas para nortear a pesquisa: pessoas com anorexia
vivem sob o paradigma da dualidade mente/corpo, levando às últimas consequências o
controle da primeira sobre o segundo? A anorexia pode ser entendida como uma metáfora
da separação mente/corpo? Vivenciar práticas corporais que estimulam a criação de novos
mapas corporais pode ajudar a mudar esse paradigma e reconectar essa separação fictícia
entre a mente e o corpo? Isso ajudará uma pessoa com anorexia a reverter o quadro?
O primeiro capítulo desta dissertação trata da distorção das imagens corporal que é
experimentada pelas anoréxicas. Estudaremos como é formada a imagem do corpo no
cérebro, como o fluxo de imagens se dá na mente, qual a diferença entre sentimento e
6
emoção e como se dá uma doença somática, com relação aos mapas cerebrais do corpo.
Para isso, utilizamos os estudos do neurocientista português Antônio Damásio (1996) e o
conceito de metáfora e mente entranhada, dos americanos Lakoff e Johnson (1999).
O segundo capítulo apresenta dados históricos sobre a anorexia santa da Idade
Média e da anorexia nervosa dos dias atuais. Vamos analisar as semelhanças e diferenças
dessa patologia nas duas épocas. Trabalharemos com a hipótese de que na Idade Média as
freiras tentavam dominar a matéria pelo espírito, e hoje as pessoas tentam dominar o corpo
pela mente. Trataremos também dos casos das fraudes de fotos veiculadas na internet de
modelos anoréxicas, da atual moda nos EUA com relação à prática e comercialização do
jejum pela família Bragg, da campanha publicitária de Oliviero Toscani e da instalação
“Eres Lo Que Lees” de Guillermo Vargas Habacuc. Para tais análises, dialogaremos com a
pesquisa de Katz e Greiner (2005) sobre o corpomídia, que propõe o corpo como mídia
primária da comunicação, e a dos filósofos Gail Weiss (1999) e Paul Churchland (2004),
cujas pesquisas criam interlocuções o tempo todo com a neurociência e os estudos das
relações mente/corpo.
O terceiro capítulo discute como uma abordagem a partir do corpo pode ajudar uma
anoréxica a dissolver essa dicotomia mente/corpo. Falaremos como os trabalhos que visam
à experimentação de diferentes estados corporais e ao estímulo da atualização das imagens
do corpo podem ser uma saída eficiente no caso de doenças somáticas. Discorreremos sobre
a técnica Vianna e suas contribuições nos casos de pessoas com anorexia, partindo da
experiência prática e da pesquisa teórica das brasileiras Letícia Teixeira (2008) e Neide
Neves (2008), para falar sobre essa técnica.
7
Distorções das imagens do corpo
Anorexia é uma patologia psicossomática que ocorre, na maioria das vezes, em
mulheres entre 10 e 30 anos. As pessoas passam a se submeter a dietas cada vez mais
rigorosas, têm medo de engordar e distorcem sua imagem corporal. Muitas vezes provocam
vômitos, tomam remédios como diuréticos e laxantes e fazem exercícios excessivos.
Pessoas com anorexia recusam-se a procurar um médico, pois, além de não se julgarem
doentes, neste caso “tratar-se” significa obrigatoriamente ganhar peso.
Outra doença que muitas vezes acompanha a anorexia é a bulimia. Pessoas
bulímicas comem compulsivamente enormes quantidades de alimento e, em seguida,
provocam vômitos até eliminar tudo o que tinha sido ingerido. Há uma discussão entre os
médicos se esta é realmente outra patologia ou se pode ser entendida como um
desdobramento da anorexia. O fato é que existem muitas bulímicas que nunca desenvolvem
anorexia, mas a grande maioria das anoréxicas passa por processos bulímicos, pois após
longo tempo com dietas muito restritas é praticamente inevitável sofrer eventos
compulsivos.
É possível comparar o comportamento de uma anoréxica com o de uma pessoa com
grave fobia, nesse caso, fobia ao alimento. Já o comportamento bulímico assemelha-se ao
de um vício, um desejo compulsivo. Pessoas com bulimia tendem a sentirem-se
envergonhados e completamente fora do controle, afastando-se das pessoas, inclusive as
mais próximas e se relacionando cada vez mais intensamente com a doença.
Há uma diferença marcante nos dois casos: a bulímica sabe que está doente, o que
nem sempre acontece com a anoréxica, principalmente no início do processo. O ato de
8
vomitar todas as vezes que come é muito violento. O suco gástrico corrói o esôfago e a
faringe, destrói o esmalte dos dentes, e a força feita para expulsar o alimento pode até
estourar vasos sanguíneos dos olhos. A sensação de alívio após a purgação vem geralmente
acompanhada de um sentimento de culpa.
A anoréxica vai reduzindo a sua alimentação, acostumando-se com a fome e o seu
corpo vai emagrecendo como o desejado. No início, muitas pessoas elogiam a perda de
peso, o que incentiva ainda mais a redução das calorias diárias. O medo de engordar,
porém, faz com que a pessoa se torne obsessiva pela gordura e comece a se ver e se sentir
gorda devido à distorção dos mapas corporais que ela cria no cérebro. A pessoa passa a
instituir metas de emagrecimento incompatíveis com a vida. O corpo vai primeiro
queimando a gordura para gerar energia, depois as proteínas (musculatura) e por fim os
órgãos, levando-a à morte. Há uma dolorosa tentativa de regulação do corpo durante todo o
processo, como aparecimento de pelos finos por todo o corpo para a manutenção da
temperatura corporal, pressão baixa e supressão da menstruação.
Um sintoma importante da anorexia é a distorção da imagem do corpo. A pessoa, ao
olhar-se, não consegue enxergar sua magreza. Ao contrário, o que é visto por ela é um
corpo acima do peso, com muita gordura acumulada. Tanto ao olhar para o espelho quanto
ao se tocar, essa distorção é vivenciada. Por esse motivo, ao serem alertadas para sua falta
de peso discordam taxativamente. A imagem do seu corpo no cérebro está alterada
impossibilitando-a de entrar em contato com o que está se passando: corpo abaixo do peso
devido a pouca quantidade de gordura e massa muscular. Nesse processo há falha na
fidelidade do que é captado e o que surge na mente.
9
http://duard.com.br/blog/fotos-anorexia-nervosa/anorexia-foto-capa/
Os estudos do neurocientista português Antônio Damásio (1995) ajudam a
compreender o funcionamento cerebral para a formação das imagens do corpo e dá pistas
de como pode ocorrer tal distorção. Essa experiência da anoréxica se ver e se sentir gorda é
o resultado da criação de mapas falsos. O medo exacerbado de engordar faz com que ela
distorça a imagem do próprio corpo no cérebro, que passa a oferecer a imagem de um corpo
gordo. Esse assunto será desenvolvido adiante.
O sistema nervoso é uma solução evolutiva que em nossa espécie atingiu alto grau
de especialização: está presente em todos os membros, tronco e na cabeça concentrou sua
maior parte. Regula o funcionamento dos outros sistemas, elabora informações do próprio
corpo e do ambiente em que está inserido. Esse gerenciamento do sistema nervoso dá
condições à espécie humana de criar estratégias de adaptação mais adequadas à
sobrevivência.
10
Organismos complexos como os nossos fazem mais do que interagir,
fazem mais do que gerar respostas externas espontâneas ou reativas que
no seu conjunto são conhecidas como comportamento. Eles geram
também respostas internas, algumas das quais constituem imagens
(visuais, auditivas, somatossensoriais) que postulei como sendo a base
para a mente (DAMÁSIO, 1999, p. 114).
É com esse diferencial da espécie humana (a mente) que se tornou possível criar
imagens (visuais, sonoras, olfativas, entre outras) e manipulá-las no que conhecemos como
raciocínio, que altera o comportamento devido à capacidade de prever e planejar o futuro.
Portanto, nosso sistema nervoso é dotado da capacidade de manter muitos sistemas
funcionando coordenadamente, garantindo a sobrevivência (para isso está incluída não só a
manutenção interna do organismo, mas também a exploração do ambiente) e manipular
várias informações vindas dessa relação do corpo com o ambiente. Isso sem perder de vista
que esse sistema gerenciador é uma solução adaptativa e foi se especializando em co-
evolução tanto com o ambiente quanto com os outros sistemas que formam o corpo
humano.
Não existe nenhuma faculdade da razão completamente autônoma,
separada e independente de capacidades corporais tais como percepção e
movimento. A evidência mostra, ao contrário, uma visão evolutiva, na
qual a razão se utiliza e se desenvolve a partir dessas capacidades [...] a
razão é fundamentalmente entranhada. (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p.
17).2
2 “There is no such fully autonomous faculty of reason separate from and independent of bodily capacities such as perception and movement. The evidence supports, instead, an evolutionary view, in which reason uses and grows out of such bodily capacities […] reason is fundamentally embodied” (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 17).
11
As consequências dessa nova forma de entender a razão são drásticas. O que Lakoff
e Johnson estão afirmando é que toda a construção subjetiva da mente é também a
construção do corpo. Tudo o que se passa na mente é físico e o que se passa no corpo é
pensamento. Não é que o corpo expressa o que se passa na mente – ele é composto pelas
informações mentais. Não é possível uma mente sem corpo e nem um corpo como o da
espécie humana sem mente. Interagimos no mundo de determinada forma porque temos
esse aparato biológico que nos permite decodificar a realidade à nossa maneira. Os
alicerces da mente estão na estrutura do corpo e essa relação imbricada constantemente
modifica o que se passa em ambos. Num depoimento durante uma aula de Técnica Vianna,
a aluna falou rapidamente sobre um aspecto importante do trabalho, que é justamente
trabalhar conscientemente o pensamento e o corpo sem separações.
Acho que nesse trabalho a gente lida com o pensamento junto com o
movimento. Na verdade é uma coisa só. Não há como separar o meu
corpo daquilo que sou e penso de mim e do mundo. Depois desse tempo
aqui acredito que é assim que forma um indivíduo que se move, que
pensa, que questiona. (Depoimento de Anabel3, 2008).
O modo como percebemos está intimamente ligado às imagens cerebrais. Uma
distorção nesse processo tem consequências nos sentimentos, pensamentos e ações. As
anoréxicas deformam as imagens que são construídas no cérebro a respeito do próprio
corpo. Há alterações principalmente quanto à forma e ao volume. Acaba prevalecendo o
mapa cerebral distorcido sobre o que de fato está se passando no corpo. O que impede essas
pessoas de entrar e contato com o próprio corpo? Por que aquilo que se passa na mente
3 Serão usados nomes fictícios para preservar a identidade das três pessoas estudadas: Anabel, Analu e Anastácia.
12
prevalece, se um dos papéis do sistema nervoso é justamente informar o que se passa com a
pessoa, para que ela possa criar estratégias para sobreviver?
Vamos então entender como são criados os mapas que na anoréxica geram as
imagens distorcidas do corpo. Continuamos utilizando os estudos de Damásio para
compreender esse fenômeno. Primeiramente, vamos estudar como se forma a imagem de
um objeto que esteja no ambiente.
Ao ver um objeto, tem-se uma informação externa captada pela luz que entra nos
olhos, a mudança do corpo no momento do contato e o estado corporal da relação entre a
informação externa e a interna. O cérebro constrói simultaneamente um mapa para cada
situação e, de saída, são três: um trata da alteração do corpo para entrar em relação, outro é
sobre o contato com o objeto e o terceiro refere-se às mudanças do estado do corpo nesse
contato. Esses mapas constroem um padrão neural que é imagético. Esse processo é
ininterrupto no cérebro. Os mapas organizados em padrões neurais formam um relato sobre
tudo o que está acontecendo e como está sendo processado pelo organismo. Ao mesmo
tempo, cria-se um relato não-verbal que é um fluxo de imagens incontrolável, inconsciente
e incessante, e ocorre simultaneamente com os relatos dos objetos externos e as
experimentações do mundo.
À medida que o cérebro forma imagens de um objeto [...] e à medida que
as imagens do objeto afetam o estado do organismo, um outro nível de
estrutura cerebral cria um rápido relato não-verbal dos eventos que estão
ocorrendo nas diversas regiões cerebrais ativadas em decorrência da
interação entre objeto e organismo (DAMÁSIO, 1999, p. 220).
13
Vemos assim que todo o processo é mediado e que não temos como capturar a
realidade, nem mesmo do nosso próprio corpo, de forma direta. A transformação da
mensagem captada pelos órgãos do sentido em fluxo de imagens e o relato não-verbal
oferecido pela mente afastam a possibilidade de apreensão direta do real. Não existe
onisciência nesse processo. Somos o próprio processo nos seus aspectos conscientes e
inconscientes. É importante ressaltar que, para Damásio, Lakoff e Johnson, assim como
outros neurocientistas, o inconsciente é cognitivo. É possível aprender com o relato
inconsciente, assim como acontece com a parte consciente, porém esse aprendizado pode
afetar os sentimentos, pensamentos e ações do indivíduo sem que ele tenha saiba disso.
As conexões na mente são feitas entre as novas experiências e esse fluxo imagético.
Isso significa que ao mesmo tempo em que vemos o objeto o imaginamos. “As imagens
que constituem essa narrativa são incorporadas ao fluxo de pensamentos. As imagens na
narrativa da consciência fluem como sombras, juntamente com as imagens do objeto para o
qual estão fornecendo um comentário não intencional, não solicitado” (DAMÁSIO, 1999,
p. 221). Aqui está uma chave para o fenômeno da distorção da imagem do corpo. Nas
anoréxicas, o que está sendo imaginado do próprio corpo prevalece e altera radicalmente
aquilo que está sendo captado pela visão. O corpo esquelético torna-se obeso por conta do
relato inconsciente que existe no processo da formação das imagens no cérebro. Isso ajuda
a explicar por que elas não têm acesso ao que de fato se passa no próprio corpo e, ao serem
alertadas da necessidade de engordar, não aceitam a recomendação.
A percepção do ambiente não é feita de maneira direta, como o senso comum pode
supor. Todo o organismo se altera ativamente para captar o que mais lhe for conveniente.
Há uma ação no ato de perceber.
14
O organismo atua conscientemente sobre o meio ambiente (no princípio
foram as ações), de modo a poder propiciar as interações necessárias à
sobrevivência. Mas, para evitar o perigo e procurar de forma eficiente
alimento, sexo e abrigo, é necessário sentir o meio ambiente (cheirar,
saborear, tocar, ouvir, ver) para que se possam formular respostas
adequadas ao que foi sentido. A percepção é tanto atuar sobre o meio
ambiente como dele receber sinais. (DAMÁSIO, 1996, p. 256).
Outra chave importante é o fato de a percepção do ambiente não ser direta, e sim
haver um poder de decisão daquilo que será captado. Vemos o que queremos ver. O que
está sendo percebido pela anoréxica ao se ver? Todas elas apresentam uma preocupação
exacerbada com a quantidade de gordura corporal e passam a enxergar gordura onde não
existe. Outra aluna relatou que o trabalho da Técnica Vianna “te abre a percepção. Eu acho
que a gente fica um pouco mais perceptivo ao outro através da fala do outro, como aquele
corpo se relaciona. Eu acho que você ganha muito na observação dos seus parceiros, dos
seus próximos” (depoimento de Analu, 2008). Posteriormente, aprofundaremos a questão
da percepção..
É importante também levarmos em consideração outro fator: o corpo pode ser
observado como um objeto exterior (quando olhamos num espelho, por exemplo), ou por
meio da propriocepção (capacidade reconhecimento da posição próprio corpo no espaço e
de cada parte em relação às demais, tônus e movimentação, tudo sem o auxílio visual).
Essas informações vêm das fibras musculares (tendões e ligamentos), periósteo (membrana
que envolve o osso), pele e sistema vestibular (localizado no interior do ouvido) que nos
possibilita saber da posição do corpo e dá o equilíbrio.
15
Todos nós temos uma noção do próprio corpo e da posição na qual ele se encontra
mas essa noção é parcial. Raramente nos preocupamos com a postura que assumimos,
exceto em momentos em que somos alertados para isso. Em sua pesquisa, Letícia Teixeira
(2008) explica que os exercícios propostos para levar a atenção ao corpo são de fácil
entendimento racional, mas de difícil assimilação efetiva. Isso é facilmente verificável
quando são propostos exercícios com a finalidade de pesquisar o tônus empregado para
executar algum movimento, o retorno de força do apoio utilizado por determinada parte do
corpo com uma superfície ou ainda a relação das partes do corpo, ou sua totalidade, com o
espaço. Trata-se de uma pesquisa de aprofundamento da propriocepção para adquirir essa
íntima relação do próprio corpo com o ambiente. Mesmo sem utilizar o nome
propriocepção no trabalho, a técnica Vianna desenvolve esse sentido para que a pessoa
tome consciência do próprio corpo. Esse assunto será desenvolvido mais detalhadamente no
terceiro capítulo.
Nas observações feitas com as anoréxicas, percebemos uma verdadeira adoração por
espelhos. Elas vigiam o próprio corpo a todo instante. Esse fato nos chamou a atenção não
por ser exclusivo desse grupo (a maioria das mulheres tem esse comportamento), mas
porque foram encontradas grandes dificuldades e rejeições dos exercícios propostos para
entrar em contato com o corpo por via proprioceptiva. A resistência inicial é observada em
outros grupos, mas nesta pesquisa as alunas eram muito agitadas (um dos sintomas da
doença) e não conseguiam manter a concentração, nem mesmo os olhos fechados quando
era solicitado. Isso nos fez pensar que talvez a forma como elas percebam o corpo seja
muito mais visual (como um objeto exterior que é captado pela visão da imagem refletida
no espelho) do que proprioceptiva (via tendões, ligamentos, periósteo). As anoréxicas
16
estariam se afastando do próprio corpo, considerando-o exteriormente a elas e não como
algo realmente entranhado, vivido, experimentado? Outros relatos de aula dados após a
superação da dificuldade abordada acima foram que “se sentir é uma coisa que dá uma
âncora, um chão muito sólido”. (depoimento de Anabel, 2008). “É um privilégio a gente
poder se ouvir, se sentir, se perceber, se entender e isso eu acho que vai pela vida a fora, a
gente vai se descobrindo” (depoimento de Analu, 2008).
O fato é que a imagem do corpo da anoréxica é distorcida. Ao olhar-se, tocar-se e
perceber-se, as informações produzidas na mente não são fiéis ao que de fato se passa no
corpo e isso acontece de forma inconsciente. A anoréxica de fato não sabe que está pele e
osso. Mesmo sendo constantemente alertada sobre sua magreza, ela não consegue perceber
esse fato.
A pessoa com anorexia distorce tanto a imagem evocada do corpo quanto a imagem
criada no momento presente. Ao lembrar do próprio corpo, surgem imagens de uma pessoa
obesa. Há distorção principalmente no volume, peso e contorno de seu corpo. Essas
distorções são maiores quando essa pessoa faz algo que acredita atrapalhar seu intento de
emagrecer, como fazer menos exercícios por um dia, ingerir algum alimento que
consideram calórico; em casos muito graves, até beber água pode ser motivo para vivenciar
grandes alterações nas imagens corporais. “Água pesa muito! Cada copo pesa 200 a 300
gramas!”, revelou uma entrevistada numa primeira conversa. “Além disso, o estômago
estufa muito” (depoimento de Anastácia, 2008), continuou.
Ao lembrarmos de uma imagem qualquer, nosso cérebro trabalha tentando replicar a
experiência vivida no passado, tentando reproduzir padrões já experimentados. Não
conseguimos fazê-lo exatamente como a experiência e a reprodução da imagem evocada
17
será muito ou pouco fiel, dependendo de como a imagem foi assimilada e como está sendo
lembrada.
É importante dizer que o cérebro não trabalha captando todos os aspectos da
imagem como um bloco indissociável. Há subsistemas responsáveis por aspectos
diferentes, tais como cor, volume, distância, forma, entre tantos outros. A sincronicidade
dos processamentos é que dá a sensação de unidade da imagem criada pela mente. Assim,
podemos alterar o volume, por exemplo, sem alterar a cor ou a distância.
Fatores emocionais podem provocar distorções. Não há como dissociar o que está
sendo visto das emoções produzidas nessa ação. Por exemplo, se um carro vem em alta
velocidade em nossa direção, há uma série de ajustes da retina para manter o foco do carro,
o sistema vestibular é ajustado para dar mais precisão à posição do próprio corpo, tudo ao
mesmo tempo da emoção de medo e a consequente reação do coração, intestino e pele,
entre outras vísceras, e do sistema músculo esquelético, que ativa o corpo para o
movimento. Isso tudo acontece antes de formulações da mente. Muito antes de termos uma
mente, nosso aparato biológico já nos dava subsídios para enfrentar situações de perigo.
Como explica Damásio:
Não há percepção pura de um objeto em um canal sensorial, por exemplo
a visão. As mudanças simultâneas [...] não são um acompanhamento
opcional. Para perceber um objeto, visualmente ou de algum outro modo,
o organismo requer tanto os sinais sensoriais especializados como os
sinais provenientes do ajustamento do corpo, que são necessários para a
ocorrência da percepção. (DAMÁSIO, 2000, p. 193).
Os processos regulatórios do organismo são comandados pelo cérebro e
independem da nossa vontade. Tais processos foram surgindo na evolução das espécies,
18
muito antes de o organismo ter uma mente. As necessidades do organismo são detectadas e
os mecanismos de regulação acionados inconscientemente. Há um alto grau de estabilidade
e automatismo nesse processo, facilitando assim a sobrevivência.
Todas essas ações básicas para manter o equilíbrio interno do corpo criam mapas e
constroem padrões neurais que ocorrem em vários níveis no cérebro, em estruturas
responsáveis pela regulação do estado do corpo. Não temos consciência dele e não
conseguimos alterá-lo por uma decisão. Isso não significa que ele seja estático, que não se
altere. Apesar da alta estabilidade, ele é atualizado a todo momento.
Dependendo do grau do medo gerado na aproximação do carro, por exemplo, a
possibilidade de distorções nas imagens mentais é grande. Isso pode fazer a pessoa ficar
paralisada diante do perigo ou despertar habilidades desconhecidas para se livrar dele.
Damásio finaliza dizendo que “não há como você evitar que seu organismo seja afetado,
sobretudo nos aspectos motor e emocional, pois isso está incluído em ter uma mente”
(DAMÁSIO, 2000, p. 193).
Um dos principais motivos de as anoréxicas não quererem ajuda médica e não se
considerarem doentes decorre do fato de vivenciarem as deformações de sua imagem
cotidianamente. Isso não é algo que se restringe à mente e ao cérebro: todo o corpo está
envolvido no processo. Elas realmente experimentam seus corpos inflando de um momento
para o outro. É despropositado ficar debatendo se isso realmente aconteceu ou não, porque
elas de fato vivenciam as deformações. Por isso é tão ineficiente alertá-las sobre sua
condição física, pois o que é vivido desmente tal fala. Há uma falha no processo entre o que
se passa na mente e o seu corpo. O fato é que essas distorções são imaginadas, mas têm
19
existência corpórea. Não se trata de um pensamento vago sobre as mudanças do corpo. Elas
se sentem gordas e colocam a vida em risco para eliminar esse excesso.
Há uma diferença entre emoção e sentimento para Damásio. As emoções ocorrem
no teatro do corpo e os sentimentos ocorrem no teatro da mente. Nunca são dois teatros, é
um teatro só. Ou seja, as emoções são referentes às mudanças perceptíveis no corpo, e o
sentimento é um mapa neural referente à emoção. Essa divisão serve para detalhar melhor o
que ocorre, mas não pretende criar dualidades. Como Damásio diz, não são dois teatros. A
mente e o corpo emergem de uma só substância biológica.
A emoção é a paisagem do corpo e se faz presente a partir de uma ação que pode ser
visível ou invisível, mas mensurável por meio de aparelhos. Toda emoção visa direta ou
indiretamente à regulação da vida.
Damásio divide as emoções em três categorias: as de fundo, as primárias e as
sociais. A emoção de fundo é um estado corporal das regulações mais básicas do
organismo. É o que determina nosso bem-estar ou mal-estar. As emoções primárias são as
que geralmente vêm à cabeça quando pensamos no assunto: alegria, tristeza, surpresa,
raiva, entre outras. Estão presentes em todas as culturas e até em outras espécies. As
emoções sociais são mais complexas, pois envolvem um aprendizado e adequação a regras
do ambiente. São elas, entre outras, culpa, vergonha, indignação, inveja. Elas também não
são exclusividade dos seres humanos.
As emoções são, portanto, regulações inatas, sendo que algumas dependem em
algum grau de exposição ao ambiente. O medo, por exemplo, é uma emoção inata: nosso
aparato biológico responde a ameaças com essa emoção. No grupo estudado, o medo de
engordar é a emoção mais presente e evidente. A relação com a gordura, atribuindo a ela
20
valor altamente negativo, é aprendida socialmente. Engordar está associado a desleixo,
descontrole, preguiça. Todas as entrevistadas (que estão atualmente com anorexia)
comentaram que parentes próximos (geralmente a própria mãe) tinham preocupações
exageradas com a alimentação com relação às calorias. A grande maioria foi educada
evitando comidas que pudessem engordar, preferindo sempre alimentos light. Houve
também relatos de algumas famílias que se preocupavam com alimentos saudáveis, como
verduras, legumes e poucas frituras, o que é muito saudável. Porém, na maior parte das
casas não havia distinção entre alimentos industrializados ou naturais. A escolha por comer
saladas, por exemplo, tinha relação exclusivamente com o baixo teor energético. As
escolhas sempre seguiam esse critério. Entre beber refrigerante com baixa caloria e tomar
um suco de fruta natural, a escolha sempre era pelo refrigerante (menos calórico). Os
critérios alimentares eram associados ao poder que o alimento tem de engordar, e não na
sua capacidade de nutrir. Expostas a esse ambiente social, essas pessoas foram
radicalizando a relação alimento/medo de engordar a ponto de passar a rejeitar a comida.
Não queremos aqui dizer que esse é o único ou principal fator que desencadeie o
processo de anorexia. Uma entrevistada, por exemplo, desenvolveu um rápido processo de
anorexia após o nascimento do primeiro filho. Na vontade de voltar ao corpo anterior à
gravidez, essa pessoa passou a restringir sua alimentação a níveis preocupantes. Sua rotina
era anotar tudo o que tinha ingerido durante o dia para que no seguinte ela diminuísse a
quantidade. Ela relatou que mesmo com o peso de quando tinha 12 anos de idade, ainda se
julgava gorda. Só se deu conta de que algo estava errado quando, numa festa infantil,
recusou brigadeiro com verdadeiro pavor. A partir desse momento foi voltando a aumentar
paulatinamente a sua alimentação.
21
As emoções cujo desencadeamento é aparentemente misterioso não se
confinam às emoções sociais inatas. Existe uma outra classe de reações
cuja origem não é consciente, mas é formada pela aprendizagem durante o
desenvolvimento individual. Estou me referindo àquilo de que
aprendemos a gostar ou que passamos a detestar, distintamente, durante
uma longa experiência de percepção e emoção em relação a pessoas,
grupos, objetos, atividades e lugares. (DAMÁSIO, 2003, p. 57).
A emoção é, portanto, o conjunto das respostas químicas e neurais produzidas
quando o cérebro detecta um objeto ou acontecimento que pode ser real, lembrado ou
imaginado. Já há um repertório de respostas evolutivamente programadas e há outros que
vão sendo criados pela experiência individual com o ambiente. O resultado imediato é a
alteração temporária do estado do corpo e do estado das estruturas cerebrais que o
mapeiam.
Outra emoção muito citada nas entrevistas é a alegria de emagrecer. Para o nosso
grupo da pesquisa de campo, esse é o objetivo da vida. Não importa o quanto já se esteja
magra, o importante é perder peso, ilimitadamente. “Alguns dos objetos são
emocionalmente competentes por razões evolucionárias. Mas outros transformam-se em
estímulos emocionais competentes no curso da nossa experiência individual” (DAMÁSIO,
2003, p. 63).
Há, como já foi dito na introdução deste trabalho, uma supervalorização do corpo
magro na nossa cultura. Isso vai desde os núcleos familiares até a moda. É comum ouvir
crianças manifestarem o desejo de emagrecer. Nas últimas décadas, a indústria alimentícia
tem investido muito no mercado dos produtos com baixa caloria. Muitas propagandas são
22
veiculadas em diversas mídias, incentivando o consumo desse tipo de alimento, sempre
com mulheres magras, sensuais, bem-sucedidas e felizes.
O sentimento é o mapa neural e em termos evolutivos só se tornou possível quando
os organismos começaram a organizar mapas cerebrais capazes de representar os estados do
corpo. Assim, os sentimentos dependem não apenas da presença de corpo e de um cérebro
capaz de representá-lo, mas também de existência prévia de dispositivos de regulação da
vida, que incluem os mecanismos de emoção. Não há sentimento sem emoção.
Para Damásio, o sentimento é mais do que uma representação de um estado
particular do corpo – ou seja, uma constatação consciente das mudanças fisiológicas
(alteração hormonal, cardíaca, etc.). “Um sentimento é uma percepção de um certo estado
do corpo, acompanhado pela percepção de pensamentos com certos temas e pela percepção
de um certo modo de pensar” (DAMÁSIO, 2003, p. 92).
Esse novo entendimento sobre o sentimento auxilia a compreensão da complexidade
do processo. Não se trata mais de fazer uma relação direta entre “uma coleção de
pensamentos, com certos temas ligados a um certo rótulo emocional” (DAMÁSIO, 2003, p.
92). Aquilo que desencadeia o sentimento (a emoção) está no corpo e não fora dele. Mas,
além disso, há uma ligação entre o sentimento e o objeto que deu origem à emoção e, por
consequência, ao sentimento. O processo espalha-se lateralmente, envolvendo todo o
conhecimento disponível daquele objeto e a situação em que está inserido, as emoções
passadas que tenham referência direta ou indiretamente a ele e as consequências de tudo
isso.
No depoimento de uma anoréxica relatando o que se passou após se alimentar,
percebemos exatamente esse processo:
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Eu me olho no espelho e vejo uma gordura na barriga, aqui no estômago,
ou na bunda. Isso me dá um nó no estômago. Meu coração dispara e fico
com muita raiva e nojo de mim. Para piorar, minha digestão é muitíssimo
rápida, porque em minutos a gordura vai aumentando, aumentando... Fico
com ódio de mim mesma; me sentindo suja. Sou uma fraca! (depoimento
de Anastácia, 2008).
Esse é um processo de retroalimentação: quanto mais aumentam a raiva e o nojo,
maior a distorção, que provoca mais raiva e nojo. “O objeto imediato do sentimento e o
mapa desse objeto podem influenciar-se mutuamente numa espécie de processo
reverberativo que não é possível encontrar na percepção de um objeto exterior ao corpo”
(DAMÁSIO, 2003, p. 99). Numa pessoa que não tenha a propensão a distorcer os mapas do
corpo, esse acesso de fúria até pode ocorrer ao perceber que engordou, mas a alteração
drástica do volume do corpo não será vivenciada. O sentimento não é, portanto, apenas uma
idéia do conjunto de alterações do corpo que chamamos de emoção. É um processo
dinâmico detonado pela emoção e pelo objeto exterior que iniciou o processo. “Aquilo de
que nos damos conta é uma série de transformações e, em alguns casos, uma luta aberta
entre as alterações do corpo iniciadas pela emoção e a resistência que o corpo oferece a
essas alterações” (DAMÁSIO, 2003, p. 92).
No funcionamento cerebral esperado, com o fluxo de imagens corporais, há uma
instabilidade adaptativa inerente que possibilita a vida. Como o corpo muda sua própria
constituição a cada respiração, alimentação, excreção, emoção, pensamento etc., o cérebro
opera nessa multiplicidade de imagens que chega até ele. Assim, a pessoa pode se adaptar a
diferentes situações, aumentando a possibilidade de sobrevivência.
24
É esperado que o mapa cerebral produzido seja bastante próximo daquilo que ocorre
no corpo. Porém observamos que ele, em maior ou menor grau, sempre perde a fidelidade.
Isso acontece porque a atividade das regiões que executam o mapeamento modifica os
sinais que vêm do corpo, e assim o mapeamento do corpo e o estado do corpo deixam de
coincidir. Quando a transmissão de sinais perde muito a fidelidade, o mapa que é
desenhado no cérebro não relata o que está se passando no corpo. É o que Damásio chama
de mapas falsos, e que estão presentes nas doenças somáticas.
As distorções radicais do corpo ocorrem devido a essa falta de coincidência entre o
que ocorre no corpo e o que está sendo mapeado nas regiões somatossensitivas do cérebro.
Esse mapeamento ocorre a todo momento e relata todas as partes do corpo. Contudo, a
“nitidez” pode ser perdida por interferências de outras regiões cerebrais na transmissão dos
sinais do corpo para essas regiões somatossensitivas, ou com uma interferência direta na
atividade dessas regiões.
Em termos evolutivos, é possível que inicialmente o cérebro só produzisse mapas
verídicos do estado do corpo. Posteriormente, apareceram novas possibilidades. Mapas
falsos, por exemplo, que eliminem a dor, podem ser bastante úteis para a fuga de um ser
atacado por um predador. A criação de um mapa falso do corpo e, consequentemente, de
um sentimento que não reflete a emoção correspondente é extremamente rápida, o que não
aconteceria se o investimento fosse em modificar o estado do corpo. É a velocidade da
ordem de milissegundos ou menos contra alguns segundos, o que pode custar a vida do ser.
Porém, variações patológicas podem corromper esse valor e, ao que parece, é o caso das
doenças somáticas.
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Nesse tipo de doença, o paciente vivencia sintomas que exames clínicos não
conseguem detectar as causas. Cegueira, dores, desmaios, vertigens, mudez, entre outros,
são exemplos de sintomas que podem ser somáticos. O problema, no caso da anorexia, é a
falta de relação entre o que se passa no corpo de fato e o que a pessoa sente e vê. As
mudanças repentinas no volume do corpo são um sintoma cuja causa os exames clínicos
não detectam, como uma má formação cerebral ou incapacidade de criar mapas próximos à
sua realidade corpórea. Todavia, as distorções acontecem mesmo assim.
A decisão de restringir ao máximo a alimentação coloca em risco a sobrevivência da
pessoa, e isso é sinalizado pelo corpo. A palavra anorexia significa (an) falta de (orex)
apetite e não reflete a realidade vivida por essas pessoas. Elas se recusam a se alimentar e
sentem muita fome por causa da dieta rigorosa. Diz uma anoréxica em sua biografia:
Eu não sabia que a fome por comida, e os poderes revigorantes que ela
tem pudesse se tornar seu próprio oposto quando contrariada e se tornar
um tipo diferente de fome: uma fome pela própria fome, uma fome pelos
poderes debilitantes que a fome tem (HORNBACHER, 2006, p. 114).
As anoréxicas têm algumas características comuns de personalidade. São em geral
mulheres, perfeccionistas, exigentes consigo e com os outros, boas alunas e boas filhas,
agitadas e ansiosas. A decisão de parar de se alimentar é íntima e na maior parte das vezes
não é comunicada a ninguém. Passam a encarar o alimento como algo maléfico e o jejum
como maneira de manter o bem-estar.
Somente em 1980 a anorexia foi oficialmente reconhecida como uma patologia,
recebendo uma definição diagnóstica. Mas anteriormente já eram notificados casos de
jejuns prolongados, levando principalmente mulheres à morte. Assim como na atualidade,
26
na fase final da Idade Média foi detectado um surto de anorexia entre freiras. Essas
mulheres, para alcançar a purificação e a santidade, restringiam ao máximo a própria
alimentação. O que hoje é encarado como um transtorno alimentar, na Idade Média era
visto como virtude. Esse assunto será abordado no próximo capítulo.
27
Da Idade Média à atualidade
Historicamente, os jejuns autoimpostos estão presentes em diversas religiões, não
significando necessariamente um transtorno alimentar. No Egito antigo, por exemplo,
praticavam-se jejuns curtos (alguns dias) como procedimento de preparação do corpo para
receber visões sagradas. A abstinência alimentar era uma forma de purificação e devoção.
Nas filosofias e religiões orientais, o jejum prolongado era prática comum. Existiam
filosofias baseadas na busca do domínio das paixões para o alcance da perfeição divina,
como é o caso do Jainismo.
O objetivo do Jainismo é libertar a alma de seu aprisionamento corporal
por meio de extremo auto-controle e austeridade, em imitação a
Vardhhamana, seu fundador, que viveu na Índia no século VI a.C.
(WEINBERG, 2006, p. 22).
Essas filosofias e religiões orientais começaram a se difundir no Império Romano a
partir do século I d.C. e, junto com a criação de escolas filosóficas helenísticas baseadas
nos pensamentos de Pitágoras e Platão, criaram o ambiente em que surgiram as concepções
gnósticas. “O gnosticismo é a primeira tentativa de uma filosofia cristã: tentativa conduzida
sem rigor sistemático, com a mistura de elementos cristãos, místicos, neoplatônicos e
orientais” (WEINBERG, 2006, p. 22).
As diferentes escolas gnósticas têm como grandes temas a miséria do homem,
prisioneiro do seu corpo; a dualidade cósmica, mundo material ruim em contraposição a
um deus bom; apocalipse gnóstico, quando o mundo material sucumbiria e reinaria o
mundo divino. Assim é postulado que o corpo seja habitado por uma alma ou espírito,
28
criando a dicotomia espírito e matéria. As formulações de que há algo que sobrevive à
matéria e a criação de um mundo divino servem para amenizar das angústias humanas a
respeito da morte, sendo bastante eficientes até os dias atuais.
É do pensamento gnóstico que surgiu alguns dos princípios fundamentais da religião
católica. Santo Agostinho (354-430) criou sua filosofia a serviço da teologia. Apesar de
muito influenciado por Platão, divergiu a respeito da tese platônica de que a alma foi
exilada de sua habitação verdadeira ao ocupar um corpo humano, postulando que Deus
criou todas as almas quando criou o ser humano. Para Platão, o corpo era um obstáculo para
a sua natureza racional e a realização da natureza humana não consistia em uma disciplina
racional da sensibilidade, mas na sua final supressão, na separação da alma do corpo, na
morte. Somente livrando-se do corpo porção racional, poderia viver em sua plenitude. Já
para Agostinho, o corpo era um instrumento para a expressão da alma. “O homem é, até
onde podemos ver, uma alma racional fazendo uso de um corpo mortal e material”
(AGOSTINHO apud COLLINSON, 2004, p. 53). A alma se utilizaria do corpo e do mundo
material para se desenvolver.
Para ele, havia duas formas de conhecer: o conhecimento sensorial (a mente
utilizando os sentidos corporais para obter conhecimento) e o conhecimento da mente por
ela mesma (uma espécie de iluminação, um conhecimento que se dá instantaneamente). “A
razão é a visão da mente, pela qual ela percebe a verdade em sim mesma, sem a
intermediação do corpo” (AGOSTINHO apud COLLINSON, 2004, p. 53). Tanto para
Platão como para Agostinho, a mente, na sua atividade mais elevada, tem acesso a um
conhecimento divino, potencialmente disponível a todas as mentes humanas.
29
Este filósofo (Agostinho) distingue entre a natureza de entidades não
racionais, que simplesmente satisfazem suas propensões naturais, e – ao
lado destas – os seres racionais, para os quais a natureza tem uma
dualidade, dado que podem não somente alcançar as propensões naturais
como também possuem habilidade para escolher umas e reprimir outras.
(COLLINSON, 2004, p. 54).
Atribui-se à característica de ter mente e à capacidade de elaboração racional o lado
divino do ser humano, aquilo que o diferencia de todo o resto da natureza. Assim, postula-
se que o homem é um ser à imagem e semelhança de Deus, o seu criador, dando à nossa
espécie uma superioridade em relação às demais. Foram necessários 15 séculos para que
Darwin propusesse a Teoria da Evolução, derrubando essa hierarquia.
É criada uma ordem inicial, quando todos os seres planeta viviam em perfeita
comunhão, um paraíso que o homem, com sua ignorância, destruiu. A ordem posterior ao
paraíso é cheia de complexidade e morte. Os seres humanos seriam em princípio algo ruim,
deturpado, feio, destorcido e que participaria dessa desorganização. Assim foram criadas as
diversas religiões cuja tendência era que sempre se olhasse para um anterior original.
Os alicerces da religião católica são construídos nessa separação entre o divino,
belo, perfeito, justo, iluminado e o material, impuro, injusto, mau, das trevas. Ela foi
estruturada no Concílio de Nicéia, em 325 d.C., quando, por motivações políticas, é
postulado que Jesus foi um ser divino (da mesma “substância” de Deus) e não um mortal
como todos os outros humanos. Essa decisão tem por finalidade criar a figura de Cristo (do
grego Christós), que significa ungido. Assim foram conferidos a Jesus um prestígio e uma
autoridade cuja grandeza recaía sobre a própria Igreja Católica e assegurava seu poder, pois
30
o Ser Divino, que veio à Terra para salvar a humanidade das mazelas mundanas, passa a ser
considerado o fundador dessa religião.
Esse Concílio foi organizado pelo Imperador Romano Constantino, que
estrategicamente fez do Cristianismo a religião oficial do Império. Na época havia muitas
religiões pagãs e, ao adotar uma religião monoteísta, criando o corpo de Cristo, o
Imperador tratou de organizar a instituição da igreja de forma hierárquica e patriarcal, de
modo que tivesse relação direta com a organização política do Império.
Tomando os cristãos sob sua proteção, ficou delimitado com clareza o campo
adversário. Criou-se uma separação entre o mundo do Império Romano ordenado e temente
a Deus e o mundo externo, o mundo dos erros, dos equívocos. Aquele que estivesse mais
próximo desse centro estaria mais imune aos pecados e deformações da periferia. A criação
desse centro de poder, a Igreja Católica, apaziguou essa idéia da destruição, do
envelhecimento, da morte e de todas as separações constituintes da vida da espécie humana,
que na sua enorme complexidade sempre conviveu com a consciência da perda. Todo poder
totalitário cria a ilusão de permanência.
O Imperador tratou de dar unidade a essa religião, visando a fortalecer seu governo.
No Concílio, composto por mais de 300 bispos, as decisões foram muito influenciadas por
Constantino, que perseguiu e exilou os que foram contrários a suas propostas. Com a
subida da Igreja ao poder, discussões doutrinárias passaram a ser tratadas como questões de
Estado. Essa ideologia cristã associada a um poder totalitário vigorou durante toda a Idade
Média, com a figura do senhor feudal.
Nos séculos XII e XIII foram feitas novas traduções adicionais da obra de Platão
que passaram a ser secretamente estudadas pelo clero. No século XV, como reação à
31
Escolástica e a Aristóteles, um novo movimento neoplatônico ganhou força, especialmente
na Itália. Justamente nessa época de retomada dos estudos de Platão, no século XII,
começam a surgir casos de freiras jejuadoras que levaram seu intento até a morte. Muitas
delas foram canonizadas santas, pois, segundo a Igreja Católica, conseguiram libertar o
espírito da matéria. É o caso de Santa Clara de Assis (1193-1253), Santa Catarina de Siena
(1347-1380), Santa Maria Madalena de Pazzi (1566-1607), Santa Rosa de Lima (1586-
1617), Santa Verônica Giuliani (1660-1727), entre tantas outras. Para essas mulheres, “o
corpo é ao mesmo tempo o maior obstáculo, o maior inimigo e o meio de acompanhar o
Redentor: o corpo que é preciso vencer, o corpo vetor de um procedimento sacrificial”
(GÉLIS, 2008, p. 55).
A Igreja Católica, ao longo dos séculos, vem elegendo pessoas que após a morte são
canonizadas santas. Essa ação serve para diminuir a distância entre as pessoas comuns e o
divino, uma vez que o santo é sempre alguém que teve durante a vida uma conduta
exemplar e por mérito atingiu a perfeição. Na prática, o santo serve tanto como modelo de
comportamento e moral quanto como uma espécie de mensageiro de pedidos: ao invés de
endereçar a súplica diretamente a Deus, usa-se o santo como um intermediário nessa
relação. É o posto máximo que um ser humano pode atingir na hierarquia postulada pela
Igreja Católica.
O grande problema da época era distinguir entre as mulheres que realmente eram
santas das impostoras. Equipes médicas eram frequentemente solicitadas para dar seus
pareceres sobre cada caso. Era surpreendente e inexplicável o fato de as freiras passarem
tanto tempo sem dormir, ingerir alimentos, nem evacuar e ainda manter a disposição para o
trabalho, boa aparência ao invés de caírem prostradas ou doentes. Por esse milagre eram
32
canonizadas. A maioria delas tinha grande poder político dentro da Igreja, apesar da
hierarquia patriarcal vigente.
Há documentos de freiras agindo dessa forma até o fim do século XV, quando a
Igreja começa a desestimular essa prática, devido ao grande número de freiras jejuadoras.
São criadas regras mais rígidas para a canonização e os jejuns autoimpostos começam a ser
considerados possessão do demônio e/ou bruxaria. É preciso ressaltar que o ascetismo das
freiras medievais é apenas um aspecto do modo de expressar seus ideais religiosos. O jejum
medieval é um símbolo dos valores coletivos, da elevação espiritual, da correção de caráter
perante Deus. Seus corpos materializavam o ideal de perfeição espiritual da época.
Com o Renascimento, novos pensamentos sobre a prática dos jejuns começaram a
surgir. As “doenças da alma” eram estudadas a partir de uma visão científica. A medicina
passou a pesquisar e a buscar explicações para a sobrevivência em condições de inanição.
Não havia mais a preocupação com o lado religioso dos jejuns, e o foco foi desviado para
os mecanismos do corpo, para manter-se funcionando com pouco alimento. Surgiram nessa
época os artistas da fome e os jejuns autoimpostos foram espetacularizados.
Kafka, em seu conto “Um artista da fome” (1922), fala sobre a vida de uma dessas
pessoas. Descreve as glórias de seus espetáculos, do grande interesse das multidões em sua
prática. Esse personagem despreza a conduta da sua assistência, que insiste em crer que é
um grande esforço se submeter àquela privação e se diverte com os que tentam achar algum
alimento escondido. Mas, com o passar do tempo, os espetáculos da fome foram perdendo
o interesse e esse artista resolve ir para um circo e realizar o maior jejum jamais feito. O
ponto alto do conto é o momento de sua morte, quando é encontrado encoberto pela palha,
numa jaula que todos consideravam vazia. O autor coloca na boca de seu personagem, o
33
jejuador, a seguinte explicação para ter rejeitado a comida por toda a vida: “Eu não pude
encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria
feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo” (KAFKA, 2004, p. 35).
Recentemente, tivemos um caso de espetacularização da fome. O artista Guillermo
Vargas Habacuc, em maio de 2007, pegou um cachorro nas ruas de Nicarágua, amarrou-o
com uma corda e prendeu-o numa parede de uma galeria de arte na Bienal Costariquenha
de Artes Visuais (Bienarte). O título da obra era Eres Lo Que Lees e era a frase escrita com
ração para cães na parede onde o cachorro estava preso. A indicação do artista para que
ninguém alimentasse o animal fez com que ele falecesse de inanição dias depois.
http://guillermohabacucvargas.blogspot.com/
Seis trabalhos dessa bienal foram premiados seguindo os critérios de grande
qualidade e coerência entre a idéia e a execução. Entre os seis estava o de Guillermo, que
foi convidado a repetir o feito na Bienal Centroamericana Honduras 2008. Houve protestos
34
e abaixo-assinados em todo o mundo contra a repetição do feito. Assim, o convite foi
revogado.
Surgiram duas discussões em torno da ação: uma questiona se a tortura de um cão
pode ser considerada arte; a outra defende o próprio cão, que teve seu direito à vida
violado. O artista, em entrevistas, contra-atacou, denunciando que todos os visitantes da
galeria observaram passivamente a agonia do cachorro sem libertá-lo, ou chamar alguma
autoridade para fazê-lo. Isso faz refletir sobre o grau de envolvimento de numa galeria de
arte, local destinado a observação de obras e performances. O acolhimento do sofrimento
do cão certamente seria diferente se ele estivesse num outro ambiente, como uma praça ou
via pública. Seu trabalho foi inspirado no caso de Natividad Canda, que em novembro de
2005 foi atacada durante 54 minutos por dois rottweillers ao entrar numa propriedade
privada para roubar. O dono da casa e o vigia presenciaram tudo sem socorrer Natividad,
que morreu no local.
Os casos das freiras jejuadoras são conhecidos hoje como anorexia santa. A prática
que foi motivo de santificação séculos atrás hoje em dia é considerada doença. Nas
biografias dessas freiras, é comum perceber o início do distúrbio alimentar como uma
tentativa de impor sua vontade frente a pressões da família (casamento indesejável ou
proibição de ingresso na vida religiosa).
Na Idade Média, havia uma divisão em classes que tinha relação direta com a
divisão da Igreja: o senhor feudal, o alto clero e a nobreza eram relacionados com o Céu; já
os camponeses e o baixo clero, com o Inferno. Essas posições eram bem definidas e não
havia mobilidade entre as classes sociais. O papel da mulher nesse ambiente era de se
tornar esposa daquele que o pai determinou ou ingressar na vida religiosa. A Igreja tinha o
35
dever social de acolher as mulheres que não conseguiram se casar ou tornaram-se viúvas.
Jejuar rigorosamente e cortar os cabelos eram formas de poder. O texto do Processo de
Canonização de Santa Clara de Assis reúne depoimentos de pessoas que conviveram com
essa freira em casa e no mosteiro. Lá ficam claros os hábitos alimentares da freira:
Durante muito tempo, ficou três dias da semana sem comer coisa alguma,
nas segundas, quartas e sextas. Nos outros dias fazia tanta abstinência que
caiu em certa enfermidade, pelo que São Francisco, de acordo com o
Bispo de Assis, mandou-lhe que naqueles três dias comesse pelo menos
meio pãozinho por dia (Processo de Canonização, apud WEINBERG, p.
38).
Mas, como já foi dito, essas freiras jejuadoras eram vistas com desconfiança.
Catarina de Siena, aos 26 anos de idade, teve que dar explicações perante um religioso de
Florença sobre seus hábitos alimentares. Estavam suspeitando de simulação ou de
possessão do demônio. Em sua carta, Catarina tenta convencer as autoridades que sua
conduta é inspirada por Deus e mostra-se bastante submissa e resignada.
Aconselhando que eu peça especialmente a Deus que me faça comer mais;
e eu lhe respondo, meu Pai, e o asseguro em nome de Deus, que de todas
as formas possíveis eu tento fazê-lo e que me obrigo a ingerir algum
alimento [...]. Depois de haver feito todos os esforços que estão ao meu
alcance e examinando com cuidado esta imperfeição, pensei que Deus, em
sua bondade, me dava-a para corrigir-me do vício da gula. Agora não sei
que dieta devo tomar e lhe peço que ore à eterna Verdade e implore sua
graça, sempre e quando ela não vá contra sua hora e contra a salvação de
minha alma, para que me deixe comer algum alimento, se lhe agrada.
(Carta CCCXIII a um homem religioso de Florença, apud WEINBERG,
p. 44).
36
Fingir submissão e cooperação é uma estratégia para driblar as imposições, tanto do
poder das autoridades eclesiásticas quanto os médicos atualmente. Há muitas semelhanças
de sintomas e comportamentos entre as freiras e as anoréxicas atuais, tais como: passar dias
em jejum, provocar vômitos quando forçadas a comer ou quando comiam demais, não se
veem como doentes, além de hiperatividade, desejo de reclusão, intransigência e
perfeccionismo.
A abstinência parcial ou total, episódica ou permanente, dá ao místico o
extraordinário sentimento de ser enfim senhor de seu corpo: o espírito
domina finalmente a carne. Há precisamente um “modo anoréxico de ser
no mundo”, com a esperança de escapar a este mundo. Uma sensação de
leveza e vivacidade invade todo o corpo: um estado de beatitude, um
sentimento de liberdade que os anoréxicos conhecem muito bem. (GÉLIS,
2008, p. 58).
As reações a respeito de jejuns tão prolongados e sacrificantes provocadas por
Catarina de Siena são comparáveis às que ocorrem hoje: admiração, reverência, receio,
desconfiança, raiva e invariavelmente a vontade de fazê-la se submeter à comida.
Entre todas as jovens que tentaram dar um sentido às suas vidas
dominando suas sensações (dor, cansaço, fome, desejo sexual) requer-se
toda a tenacidade, a vontade, a paixão e o carisma que Catarina aplicava
para conseguir o que buscava. Requer-se, sobretudo, e talvez seja essa a
vantagem de Catarina, que o corpo seja atravessado por um ideal.
(RAIMBAULT apud WEINBERG, p. 44).
É na fissura criada entre o que é real e busca incessante de um ideal que o distúrbio
se desenvolve. Se para as freiras o corpo era apenas um instrumento de purgação dos
pecados, algo que precisava ser depurado para alcançar um lugar perto de Deus após a
37
morte; hoje o corpo é também um instrumento a ser modelado, de acordo com os desejos
estéticos das anoréxicas. Antes o ideal buscado era o da perfeição ética e moral; hoje, o da
perfeição estética.
O novo surto de anorexia é chamado de anorexia nervosa. Certamente, o cenário
cultural atual é bem diferente daquele da Idade Média, o que nos convida a desviar o foco
da discussão das pressões da mídia que exigem um corpo feminino magro ou das
exigências de algumas profissões como modelos e bailarinas. Não estamos assim afirmando
que esses fatores não são importantes atualmente para o desenvolvimento da doença.
Optamos por esse desvio de foco para tentarmos entender o que há de comum entre essas
duas épocas na tentativa de iluminar outros aspectos.
Nossa hipótese é que o desenvolvimento da anorexia pode ser entendido como uma
radicalização da tentativa de alcançar uma identidade que corporifique a dualidade
mente/corpo, espírito/matéria. Essas pessoas tratam não só o próprio corpo, mas todo
alimento (no caso das freiras abrange toda forma de matéria) como algo vil e impuro que
deve ser dominado pela mente ou pelo espírito.
Numa autobiografia de uma anoréxica e bulímica, ela nos diz que “essas
contradições começam a dividir a pessoa em duas. Corpo e mente se separam, e é nesta
fissura que um transtorno alimentar pode florescer” (HONBACHER, 2006, p. 13). As
santas buscavam elevar o seu espírito e se desvencilhar de todos os desejos do corpo, assim
como atualmente as anoréxicas têm como meta o domínio total do corpo pela mente. Esse
comportamento de controle do corpo está presente na nossa sociedade atual de outras
formas: cirurgias plásticas, remédios, cosméticos entre outros. A anorexia nesse contexto
social é apenas mais uma forma de domínio, talvez a mais radical.
38
A busca de uma identidade (Santas para as freiras e “Anas” – denominação usada
entre as anoréxicas atuais) reduz a variedade de corpos a um único possível, e elas são esse
único possível. Aí reside seu poder. Poucas pessoas conseguem tamanho domínio do corpo
tanto entre as freiras da Idade Média como entre as anoréxicas atualmente. Na verdade,
muitos médicos defendem que não é possível escolher adquirir essa doença. Quem a
desenvolve, além de estar num ambiente propício a isso, provavelmente tem fatores
genéticos favoráveis ao aparecimento do distúrbio.
A anoréxica organiza o próprio pensamento a partir da dicotomia corpo x mente, e a
escolha é dominada por um modo de pensar que a impede de superar esse dualismo. Só
existem duas possibilidades: a de ter essa identidade ou não. Cria-se um pensamento
oposicional em que a opção por um dos dois elementos obrigatoriamente exclui o outro. Há
uma tendência à homogeneização das idéias e das possibilidades. Ela acredita nessa
redução e não analisa a variedade. A única possibilidade é não se alimentar. Não é
permitido viver num corpo gordo. Até porque a gordura se deposita nas partes do corpo de
forma descontrolada, imprevisível, e a anoréxica tem que estar no controle. A gordura
invade o corpo e se deposita onde ela quer, quase que por vontade própria. Não é possível
desejar engordar uma parte específica do corpo e não outra. A gordura segue uma lógica
inaceitável.
Há uma dificuldade nessas pessoas de lidar com a diversidade que afrouxa as
tendências de dominação. A palavra identidade tende mais ao poder. A complexidade supõe
a desarmonia ou crise. A anoréxica vai tentando eliminar as variações buscando o plano,
achatado e asséptico, que está presente tanto no seu físico quanto em suas idéias. A
identidade e oposição não são diferentes, pois quem se opõe ferrenhamente a uma
39
identidade e se mantém na oposição cria outra identidade. Há casos de pessoas que eram
obesas antes de desenvolverem anorexia. É a oposição do mesmo problema: compulsão por
alimento e compulsão pela falta dele.
O transtorno é, no nível mais básico, uma porção de contradições mortais:
um desejo de poder que lhe tira todo o poder. Um gesto de força que lhe
despe de toda a força. Um desejo de provar que você não precisa de nada,
que você não tem fomes humanas, que se vira contra o próprio desejo e se
torna uma necessidade intensa pela fome em si. É uma tentativa de
encontrar uma identidade, mas acaba por lhe deixar sem qualquer senso
de si próprio. (HORNBACHER, 2006, p. 12).
A pesquisadora americana Gail Weiss afirma que “em vez de ver o anoréxico como
um sujeito incoerente ou contraditório, digo que ele é demasiado coerente,
psicologicamente e corporalmente dominado [...] pelo temor de engordar”4 (WEISS, 1999,
p. 54).
Levar ao extremo o controle da mente ou do espírito sobre o corpo, reduzindo-o a
algo homogêneo e plano, é caminhar para a morte. Não é possível atingir tal objetivo, pois
o corpo é sistêmico e complexo, e para sobreviver explora um ambiente também complexo.
Há desestabilizações necessárias para lidar com a diversidade do ambiente e garantir a
sobrevivência.
É preciso ressaltar que os momentos históricos estudados (atualidade e fim da Idade
Média) são períodos em que paradigmas foram e estão sendo quebrados. A transição da
estruturada Idade Média para o Renascimento trouxe um novo modo de entendimento do
4 “…rather than view the anorexic as an incoherent or contradictory subject, I am claming that she is too coherent, psychically and corporeally dominated (…) by “dread of getting fat”.
40
mundo, assim como atualmente toda a ordem da Modernidade está sendo problematizada.
Os transtornos alimentares (anorexia e bulimia) são formas radicais de controle do corpo e
se desenvolvem em períodos de crise, quando a pessoa não está conseguindo lidar com as
mudanças e perdas.
Paul Churchland explica que existem algumas abordagens dualistas da mente “mas
todas elas concordam em que a natureza essencial da inteligência consciente está em algo
que é não-físico” (CHURCHLAND, 1998, p. 25-26). Assim sendo, a inteligência não
poderia ser explicada por processos neurofisiológicos, químicos, físicos etc.
Há duas correntes que trabalham com a concepção dualista: o dualismo de
substância e o de propriedade. O primeiro tem como hipótese que existem duas substâncias
distintas possíveis: uma seria a matéria, que tem como principal característica ocupar
espaço; já a segunda não teria dimensões ou localização espacial. Essa substância não-física
seria o que compõe a mente. De alguma forma, as duas substâncias interagiriam – ou seja, a
mente se conectaria e manipularia o corpo. Nessa concepção a pessoa seria, na realidade,
sua mente e não o seu corpo; na mente estariam a personalidade, o caráter, a inteligência e
sua interação com o corpo daria à pessoa a possibilidade de viver materialmente.
É a partir desses pressupostos que as grandes religiões que vigoram no planeta
ergueram suas concepções de transcendência. É bastante conveniente que, para diminuir a
agonia de ter consciência da morte, as pessoas se filiem a essa corrente teórica, pois se há
uma mente que não é matéria, há esperança de sobrevivência fora do corpo. Há uma clara
separação, inclusive hierárquica, entre as funções da mente e da matéria. Mas, para além
disso, na experiência individual do funcionamento da mente, o que se apreende são
pensamentos, desejos, raciocínios, sentimentos... Na introspecção não é revelado
41
claramente o funcionamento do sistema nervoso com suas variações eletroquímicas. Isso
reforçaria a crença nessa teoria, de que a mente seria de outra natureza, não física.
No dualismo de propriedade não se cogita a existência de outra substância, mas
acredita-se que o cérebro possui um conjunto de propriedades único que geram a
inteligência consciente. É um modo de organização complexo onde emergem propriedades
com características singulares próprias daquele sistema. Estas só poderiam ser explicadas
com a criação de uma ciência diferente das ciências físicas habituais.
Nenhuma dessas teorias é muito aceita no meio científico atualmente. Isso porque
não há evidências da existência de uma outra substância que não seja física, com
propriedades diferentes das já conhecidas. Os argumentos não se sustentam. Além disso,
com o avanço das pesquisas sobre o cérebro, a mente vem, cada vez mais, sendo
desvendada a partir do próprio cérebro. Vem sendo constatado que a mente emerge em
tecido biológico, os neurônios. Porém, no senso comum e principalmente no seio das
religiões, a separação entre o espírito e a matéria é a hipótese que vigora.
Atualmente, o incentivo às práticas dos jejuns autoimpostos ganha configurações
condizentes com o momento atual. Nos Estados Unidos, um grande número de pessoas
passou a jejuar depois de ter contato com as propostas da Família Bragg. Os Bragg já
lançaram cerca de dez livros, todos recordes de vendas, sobre técnicas e benefícios de
jejuar. Essa família americana já conquistou o interesse de milhares de pessoas em várias
partes do mundo.
Os livros trazem uma metodologia desenvolvida para que a pessoa possa jejuar cada
vez por mais tempo. As estratégias de convencimento vão desde a importância de uma
reeducação alimentar (já que a maioria da população americana tem uma dieta rica em
42
gorduras e proteínas) até argumentos espirituais, inclusive citando líderes religiosos que
faziam jejuns autoimpostos, tais como Jesus, o apóstolo Pedro, Elijah, Ezia, Esther, Job,
David, Hannah, Isaiah, Zachariash. Ressaltam a importância de alimentos orgânicos e
afirmam que jejuns prolongados ajudam a expelir os venenos acumulados no corpo devido
à ingestão de agrotóxicos. É notório o mal que pesticidas trazem à saúde. Há realmente
muitas pesquisas desenvolvidas em todo o mundo a esse respeito. Utilizando esse filão, os
Bragg afirmam que livre dessas impurezas (adquiridas nos alimentos, ar, água), é possível
viver 120 anos ou mais. As fotos sorridentes espalhadas por todo o livro tentam convencer
os mais afoitos por perder peso que os jejuns propostos são realmente eficazes e saudáveis.
O livro Water, the shocking truth (2004) é inteiramente dedicado à importância de
ingerir água destilada, prometendo mudanças significativas no funcionamento do coração,
circulação, digestão, metabolismo, absorção, evacuação, glândulas, músculos, sexo e
energia. Segundo a autora, Patrícia Bragg, é extremamente prejudicial o consumo de água
fluoretada. São indicados vários sites com matérias publicadas sobre o assunto, a maioria
escrita por eles mesmos. É proposto que a população se manifeste escrevendo para o
presidente, governadores, senadores etc., para protestar e pedir o fim da fluoretação da
água. Os e-mails devem ser mandados aos governantes com cópia para o Bragg Water
Book. É claro que eles são expostos no site dos Bragg como uma forma de legitimar e
fortalecer a crença de que é mais saudável ingerir água destilada.
É facilmente identificável a tentativa de manipulação para a venda de produtos
Bragg, livres de agentes tóxicos. No livro The Miracle of Fasting, é explicada a maneira
correta de entrar e sair dos jejuns e, obviamente, é necessário ingerir produtos Bragg. Há
inclusive uma pirâmide nutricional que tem no seu topo complexos vitamínicos Bragg.
43
Sempre no final dos livros há todas as indicações de como adquirir os produtos, inclusive
com os preços e as formas de pagamento.
Nesse mesmo livro, há um capítulo dedicado à mente humana. Logo abaixo do
título, há o desenho de um cérebro dividido frenologicamente, com as indicações de
algumas possíveis regiões responsáveis pela visão, audição, área motora das pernas, tronco,
braço, pescoço, face. O capítulo inicia dizendo que assim como no cristianismo Deus é
representado pela trindade – Pai, Filho e Espírito Santo –, o homem é dividido em corpo,
mente e espírito. Para os Bragg, a mente deve controlar o corpo e a si mesma, para eliminar
maus pensamentos e sentimentos:
O viciado em drogas é o exemplo mais radical de um corpo que subjuga a
mente! Por isso o mundo é tão cheio de viciados. O intenso desejo
corporal pela droga leva a mente a comandar o corpo a cometer crimes
violentos por dinheiro, para que o corpo sacie seu desejo por drogas. Por
isso o mundo está repleto de viciados. (BRAGG, s/d, p. 205).
Seguindo essa lógica, é urgente que o corpo seja dominado, pois é por causa dele
que a violência cresce no mundo! Levando em consideração teorias não-dualistas que
acreditam que não existe outra coisa que não seja corpo, a dominação do corpo é a própria
dominação do indivíduo. Os Bragg incentivam a permanente vigilância do corpo pela
mente e afirmam que a prática do jejum tem efeitos milagrosos para o bem-estar físico,
mental e espiritual.
Vemos aqui que os jejuns autoimpostos atualmente estão sendo comercializados.
Abriu-se um novo formato de incentivo a essa prática de forma bastante condizente com a
organização sócio-político-econômica atual. Assim como a Igreja, na Idade Média, aceitava
44
e enaltecia o hábito de jejuar rigorosamente das freiras, caracterizando-as como santas –
pois esse procedimento conferia poder individual a elas, o que glorificava a própria Igreja –
hoje as regras e valores fazem com que a prática seja incentivada para gerar lucros.
Não há consenso entre os médicos de que qualquer pessoa possa adquirir anorexia.
Há os que afirmam que há fatores genéticos envolvidos nessa questão. De qualquer forma,
as idéias da família Bragg prestam um desserviço à sociedade, veiculando informações
falsas e perigosas à saúde, ao estimular a prática de jejuns.
Na internet também há veiculação de informações falsas sobre o assunto. Sites
publicam fotos alteradas digitalmente de modelos, fazendo com que os corpos fiquem
muitíssimo mais magros. Forma-se uma imagem errônea de que as anoréxicas exibem
corpos muito distantes dos que convivemos cotidianamente.
É notório que modelos fazem parte do grupo de risco para o desenvolvimento da
doença. Há pressões de mercado para que mantenham seu corpo magro. A grande maioria
adota uma dieta hipocalórica que perdura ao longo da carreira. Nenhuma delas apresenta
aspecto doentio ou magreza cadavérica como é amplamente divulgado nas fotos que
circulam pela internet sobre anoréxicas.
Encontramos exemplos de distorções em fotos de modelos famosas no site
http://www.e-farsas.com/artigo.php?id=10 (acesso em 20/09/08).
Fotos alteradas digitalmente
45
Fotos sem alteração
No primeiro grupo de fotos, as alteradas digitalmente são chocantes. Exibem corpos
deformados a tal ponto que já não são sinônimos de beleza, como é esperado de modelos.
Agora, observando-se atentamente os corpos das fotos sem alterações, estes também são
extremamente magros, bem abaixo do peso. Há uma idéia errônea que as anoréxicas são
necessariamente o extremo da magreza, exibindo corpos deformados. Isso não é verdade. A
grande maioria está sim muito magra, mas não distante do corpo das modelos dessas fotos
46
sem alteração digital. Claro que, em momentos de crise aguda, antes de internações,
geralmente o corpo está muito debilitado e magro, mas muitas anoréxicas passam
despercebidas de seu distúrbio, sendo classificadas pelos amigos e desavisados apenas
como magrinhas.
Observando o ensaio fotográfico da modelo brasileira Ana Carolina Reston Macan,
que faleceu de anorexia, em novembro de 2006, aos 21 anos, ratificamos o que foi dito
acima. As fotos a seguir foram tiradas uma semana antes de Carolina ser internada com
complicações devido à doença. Seu corpo, magro, parece saudável, não seguindo o
estereótipo do corpo anoréxico amplamente divulgado. A modelo foi internada em outubro
daquele ano com infecção urinária, o quadro progrediu para insuficiência renal e, por fim,
infecção generalizada. Além da bactéria que provocou a infecção inicial, havia fungos no
pulmão. Como seu sistema imunológico estava enfraquecido, nada fez efeito para combater
a bactéria.
http://www.caras.com.br/edicoes/681/textos/3971/ (acesso em: 15/08/08).
47
Em 2007, o publicitário Oliviero Toscani, famoso por suas campanhas publicitárias
polêmicas, lançou um novo trabalho para a grife de moda No-l-ita, contra a anorexia.
Responsável, nos anos 90, pelas campanhas da United Colors of Benetton, Toscani
promoveu uma ruptura na fórmula tradicional de publicidade, que une o produto a
romantismo, sensualidade, sucesso e felicidade. Ao contrário, esse publicitário criou
imagens que questionaram e promoveram discussões sobre grandes temas como raça, vida,
morte, homossexualismo, sexo, religião, entre outros. A postura da empresa Benetton em
relação a esse novo tipo de publicidade também foi deslocada: ela deixou de ser uma
empresa querendo vender seu produto e passou a ocupar o lugar de grande patrocinadora
das discussões propostas nas campanhas. A marca da empresa passou a ser associada às
causas e não a seus produtos.
Na nova campanha publicitária de Oliviero Toscani, o mesmo artifício foi utilizado:
a associação da marca de roupa No-l-ita à campanha contra a anorexia. A polêmica gira
justamente na promiscuidade do interesse privado em uma causa pública. É indiscutível a
importância da ampla discussão sobre a anorexia, mas quando isso é associado a fins
lucrativos, passa a ser questionável.
48
http://www2.nolita.it/noanorexia/indexEng.htm
A repercussão foi grande em torno da veiculação das fotos da modelo francesa
Isabelle Caro, em 24/09/07, em jornais e ruas italianas no momento em que acontecia a
Semana de Moda de Milão, dividindo opiniões.
“A campanha de Toscani com a menina anoréxica é uma verdadeira
violência visual e a mercantilização de um problema social”, declarou
Alberto Contri, presidente da associação Publicidade Progresso.
“Instrumentalizar um problema sério como a anorexia para vender
roupas? Não sei como isso pode ser aceito ou, pior, como pode ser
apoiado”, acrescenta Contri a respeito da campanha que recebeu o aval do
Ministério da Saúde italiano. Mario Boselli, presidente da Câmara de
49
Moda Italiana, também critica a escolha de Toscani: “Não me entusiasma
o uso da desgraça alheia para fins publicitários”, afirmou Boselli. Por sua
vez, a ministra Emma Bonino, responsável por assuntos de comércio
exterior, apoiou a iniciativa: “Parabéns, Toscani, sua campanha é muito
eficaz”, afirmou a ministra.
(http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u331540.shtml, acesso
em: 20/09/08).
Em declaração à mídia local, Toscani disse:
Há anos me ocupo do problema da anorexia. Quem são os responsáveis?
No geral, os meios de comunicação, a televisão, a moda. Parece muito
interessante que uma marca de moda entenda o fenômeno, tome
consciência de seu papel e patrocine a campanha. Como sempre, faço um
trabalho de repórter, testemunho o tempo em que
vivo.(http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u330969.shtml,
acesso em: 20/09/08).
Quatro dias depois do início da campanha, a prefeita de Milão, Letizia Moratti, deu
ordens para retirar dos espaços outdoors de responsabilidade da prefeitura as fotos de
Toscani. Em seguida o IAP, órgão privado que regula o setor de publicidade na Itália,
decidiu proibir a veiculação da campanha. Afinal, aquele corpo exposto ataca diretamente
os interesses comerciais da alta costura. Não é economicamente interessante que o assunto
seja discutido justamente quando desfiles estão acontecendo e negócios sendo fechados.
Os tratamentos da anorexia estão normalmente baseados na compreensão de uma
doença que se inscreve num corpo, com causas biológicas e/ou psicológicas, não
conseguindo superar essa dualidade mente/corpo. Há uma inabilidade dos médicos em
ensinar às pacientes como superar essa dicotomia. É que a medicina também trabalha
50
promovendo o domínio do corpo, não pelo espírito ou pela mente, mas por remédios,
mostrando-se assim tão ineficiente diante dessa doença. Mais uma vez, a necessidade do
mercado em que o consumo de remédios movimente a indústria farmacêutica prevalece.
A legislação portuguesa define medicamento como
Toda a substância ou associação de substâncias apresentada como
possuindo propriedades curativas ou preventivas de doenças em seres
humanos ou dos seus sintomas ou que possa ser utilizada ou administrada
no ser humano com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou,
exercendo uma ação farmacológica, imunológica ou metabólica, a
restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas. (http://como-
emagrecer.com/)
É facilmente identificável o pensamento de correção e eliminação de um mal
presente na definição. O corpo é tratado como se não tivesse competência para agir e suprir
suas necessidades. Há uma cultura da anestesia e da imobilidade: se a criança corre todo o
tempo há remédio para aquietá-la; se o adolescente dorme demais deve tomar estimulantes;
para tristeza, antidepressivos; para fome, inibidores de apetite...
Não há mais estímulo à experimentação o corpo. Nos grandes centros, os espaços
físicos mais utilizados cotidianamente, como os próprios apartamentos, são reduzidos e
objetos como controles remotos, carros, elevadores vão diminuindo o leque de movimentos
cotidianos. A relação entre corpo vigoroso e sobrevivência está totalmente abalada pelas
tecnologias atuais, que tendem a diminuir a importância dos movimentos e a supervalorizar
o trabalho mental. Assim é possível que, por exemplo, uma pessoa passe oito horas por dia
sentada digitando sem ter a menor lembrança de como está se comportando durante esse
tempo. Voltaremos a esse assunto no terceiro capítulo.
51
A respeito da anorexia, não se trata apenas de fazer um corpo voltar a ganhar peso,
ou que a pessoa entenda que a gordura é necessária, tampouco eliminar uma doença
instalada num corpo, fazendo-o voltar à ordem. Não é possível tratar o corpo como uma
tábula rasa onde uma doença se inscreve. Não há uma ordem anterior para onde voltar.
Após a “cura” tudo está modificado.
Essa ideia de volta a um estado perfeito anterior foi herdada da religião católica, que
se baseia no pecado original. Trata o ser humano como alguém que rompeu essa ordem e
que precisa viver num constante estado de autopunição e de medo. É nessa lógica de
pensamento que se explicam os males, as doenças, as pestes, o sofrimento, etc. O ser
humano seria sempre alguém que destruiu esse período paradisíaco e precisa sofrer por
isso.
Para tal enfermidade, é necessário trabalhar as conexões entre o corpo e a mente,
para que a doente se depare com a diversidade existente em si, promovendo assim a
integração dessa pessoa que se encontra achatada. “Eu me sentia vazia. Eu me sentia
bidimensional, frente e verso” (HORNBACHER, 2006, p. 238). É preciso dar condições
para que o corpo experimente novas possibilidades, novas significações. No caminho para a
vida a anoréxica, não deve abandonar (nem seria possível) o que já foi experimentado, nem
tentar retroceder a doença e atingir um estágio anterior a ela.
É a educação da sensibilidade que faz com que se torne possível
desenvolver potencialidades para além da doença, desejos e necessidades
da própria pessoa. Esse material que a gente pode aproveitar e fecundar.
Aquela limitação, aquela dificuldade, o que a gente pode fazer emergir
dali. Que aquela pessoa procure se superar, que ela consiga ver e sentir
que é possível. É possível esse eterno conhecimento do corpo, é possível
52
mesmo, apesar de toda dificuldade, criar essa cumplicidade para que
juntos a gente descobre novos caminhos. (depoimento de Lilá, em 2008).
Esta dificuldade de superar o dualismo é observada na maneira como a pessoa age.
Compreende-se mentalmente que a divisão é inútil, mas não se consegue praticar. Essa
informação está entranhada na pessoa. Isso porque ela acreditou que a mente pode e deve
dominar o corpo o que acaba virando um emparedamento.
Um terrível paradoxo estava comandando a minha vida: o meu modo de
auto-regulação era a autodestruição. Para abrir mão de um transtorno
alimentar muito antigo, que se desenvolveu precisamente no mesmo ritmo
da sua personalidade, o seu intelecto, o seu corpo, a sua própria
identidade, [...] você precisa abrir mão de alguns comportamentos tão
velhos que já são quase instintos primitivos. Eu tive que abrir mão do
único modo consagrado de lidar com o mundo que eu conhecia, voltando-
me, em vez disso, para coisas que não haviam sido testadas nem provadas,
coisas incertas. (HORNBACHER, 2006, p. 226).
Gaill Weiss propõe que um tratamento mais eficiente deva começar pelo corpo,
fazendo com que as anoréxicas vivenciem novos estados corporais e criem múltiplos mapas
do próprio corpo.
Para se chegar num “entendimento entranhado” da anorexia [...] é
necessário começar pelas dimensões vividas, corpóreas deles, em vez de
começar pelos diagnósticos médicos, cognitivos ou mesmo culturais. Isso
envolve focarmos menos nas contradições culturais e corpóreas que
aparecem nessa doença em particular, contradições que são bem aparentes
não apenas para os que veem de fora, mas para a própria anoréxica,
embora com a necessidade de responder corporalmente a essas
53
contradições através da criação de imagens corporais múltiplas. (WEISS,
1999, p. 55-56)5.
Esse novo surto de anorexia iniciou-se nas classes mais ricas das sociedades
européias, onde a criação de identidades serviu de alicerce para o modo de vida durante
toda a modernidade. Com o passar dos anos, a anorexia foi se disseminando pelo resto no
mundo, atualmente atingindo inclusive classes pobres. Cybelle Weinberg, citando uma
pesquisa de Morande, nos diz:
estas enfermidades seguem um canal epistemológico tal qual a moda;
iniciam-se nos países ricos, “centros da moda”, e se estendem entre as
classes sociais altas, para logo, em dez anos, alcançar e afetar a população
como um todo (MORANDE apud WEINBERG 2006, p. 102).
5 “To arrive at an “embodied understanding” of anorexia […] requires beginning with their lived, bodily dimensions rather than with a medical, cognitive, or even cultural diagnosis dimensions rather than with a medical, cognitive, or even cultural and of them. And, I am arguing, this involves focusing less on the cultural and bodily contradictions that appear in this particular disease, contradictions that are all too apparent not only to outside but often to the anorexic herself, but on the need to respond corporeally to these contradictions through the creation of multiple body image […]”.
54
Entranhando informações –técnica Vianna
Seguindo a proposta de Gail Weiss (1999), de que deve ser mais eficaz para a
anorexia uma abordagem a partir do corpo, levantamos a hipótese de que práticas de
movimento que estimulam a criação de novas imagens do corpo podem ajudar a aproximar
a realidade corpórea da anoréxica do seu fluxo de imagens, diminuindo as distorções
imagéticas que a pessoa produz.
Não estamos dizendo que todo e qualquer exercício físico é benéfico nesse caso. As
anoréxicas costumam praticar atividades físicas durante horas para perderem peso, mas
trabalham o corpo sem afetar consistentemente sua imagem corporal. Sua preocupação está
em gastar calorias e não em provocar alterações no modo de perceber e lidar com o próprio
corpo. Por isso, descartamos de imediato todos os exercícios que utilizem o sistema
nervoso meramente para comandar as ações dos membros, tronco e cabeça, sem nenhuma
preocupação a respeito das transformações ocorridas ao realizar esses movimentos.
No século passado, alguns pesquisadores corporais se interessaram pelas
possibilidades de reabilitação e melhoria da qualidade de vida por meio do movimento
corporal. Diferentemente da abordagem da fisioterapia, que propõe uma execução
meramente mecânica dos exercícios, esses profissionais, além de estudarem o
funcionamento do corpo segundo a anatomia, fisiologia e cinesiologia, perceberam que ao
levar a atenção para a execução do movimento há uma alteração no modo como
percebemos o próprio corpo e como fazemos uso dele. Essas pessoas criaram técnicas
55
especificamente para essa finalidade. Entre elas estão a eutonia6, técnica de Feldenkrais7,
técnica de Alexander8, pilates9, GDS10, Bartenieff11. Esses criadores foram normalmente
pessoas ligadas à dança que tiveram algum problema de saúde durante a vida, minimizado
por meio de exercícios desenvolvidos pelos próprios. Assim, dedicaram-se à pesquisa e
sistematização de suas técnicas terapêuticas para beneficiar àqueles que se submetessem a
ela.
Foi escolhido para esta pesquisa o trabalho do casal brasileiro Angel e Klauss
Vianna, que, diferentemente dos citados acima, não foi criado com uma finalidade
terapêutica ou de reabilitação, e sim com uma finalidade artística. No entanto, após anos de
experiências, os desdobramentos dessa prática de trabalho atingiram outras áreas de
conhecimento, como a da saúde e da educação e, no caso específico da anorexia, têm-se
mostrado bastante eficientes.
6 Criada pela alemã Gerda Alexander (1908-1998), a eutonia é uma prática corporal que visa ao equilíbrio do tônus muscular (capacidade das fibras musculares modificarem sua elasticidade), aprendendo a movimentar-se dosando o gasto de energia segundo a necessidade do momento. 7 Técnica criada por Morse Feldenkrais (1904-1984) para flexibilização dos hábitos de postura, de movimento e de percepção. Criou inúmeras sequências que desenvolvem uma forma de pensamento cinestésico, aguça as capacidades de percepção e controle dos movimentos. A atenção consciente é levada ao pano de fundo proprioceptivo das ações utilizando a imaginação, o movimento, a orientação espacial, as sensações de esforço, de forma e de volume (http://www.incorporando.net/feldenkrais.htm). 8 Frederick Matthias Alexander (1869-1955) criou esta técnica que pretende, através de movimentos que estimulam a auto-observação, melhorar nosso desempenho diário pela redução da tensão, da rigidez e da energia gasta desnecessariamente na execução de atividades cotidianas (http://www.ceta.com.br/tecnica.htm). 9 Método criado por Joseph Pilates (1880-1967), também conhecido por contrologia, é um sistema de exercícios que visa a trabalhar o corpo uniformemente, corrigir a postura, desenvolver a vitalidade física, aprimorar a conexão mente-corpo. 10 Método criado por Godeliève Denys-Struyf, que trabalhou com o conceito de “cadeias musculares”, integrando o funcionamento do corpo e suas conexões com o comportamento psicológico. É um método de leitura da postura, dos gestos e formas do corpo, que utiliza o movimento como princípio para a reeducação dos mesmos. 11 Irmgard Bartenieff (1900-1981), discípula de Rudolf Laban, criou, a partir do Sistema Laban, os Bartenieff Fundamentals, sequência de exercícios com finalidade terapêutica.
56
Angel e Klauss Vianna começaram a dançar balé na escola de Carlos Leite, no fim
dos anos 40, em Belo Horizonte. Na década de 50, iniciam uma pesquisa de movimentos
corporais. A princípio a finalidade era entender a estrutura do corpo para melhorar o
desempenho deles próprios e seus alunos na dança.
A busca de Angel pelo conhecimento formal do corpo, em um primeiro
momento, não veio pela via intelectual e nem acadêmica, ou seja, pelo
ambiente das áreas [...] que abrangem o conhecimento categorizado para a
compreensão do corpo. A via curiosa que a levou à necessidade de
entendê-lo, apreendê-lo e trazê-lo para seu mundo foi a artística, tanto da
dança quanto da escultura. (TEIXEIRA, 2008, p. 10).
No período de 1955 até 1962, abriram uma escola de dança, a Escola Klauss
Vianna, onde puderam ampliar a pesquisa. O casal, que tinha formação em balé, passou a
estudar anatomia, fisiologia e cinesiologia, o que era uma grande novidade para a época. O
interesse por essa abordagem de corpo (da área da saúde) serviu como parâmetro, mas
nunca foi encarada como representação universal. A importância de vivenciar tudo o que
era aprendido no próprio corpo sempre foi o principal aspecto do trabalho. Isso possibilitou
reconhecer a singularidade de cada corpo dentro dessa representação universal do atlas
anatômico.
Nessa época, foi criado o Ballet Klauss Vianna e as coreografias desse grupo eram
inovadoras, sendo na época chamado pela crítica de dança de vanguarda, hoje categorizada
como dança moderna. Em 1963 e 1964, os Vianna moraram em Salvador, onde trabalharam
na UFBA dando aulas de balé e estudaram dança moderna e o sistema Laban, com Rolf
Gelewski. Nos anos seguintes, no Rio de Janeiro, a pesquisa corporal foi levada também
para o teatro, no trabalho com atores. Foi um marco definitivo, pois o casal amplia a
57
pesquisa e passa a trabalhar com todo o tipo de pessoas, das mais diversas profissões, com
ou sem pretensões artísticas. Em 1975 abriram a escola Centro de Pesquisa Corporal Arte e
Educação. Nos anos 80, Klauss se mudou para São Paulo e Angel Vianna, no Rio de
Janeiro, fundou a Escola Angel Vianna, e em 2001, a Faculdade Angel Vianna.
Paralelamente, desde a década de 50, Angel foi solicitada para trabalhar com
pessoas portadoras de deficiência. Na época não existiam profissionais das áreas de
fisioterapia. Com sua filosofia de vida inclusiva, desde essa época até a atualidade, é
comum, em suas salas de aula, ter algumas pessoas deficientes ou com lesões trabalhando
junto com as outras pessoas.
Foi em 1992, com a criação do curso técnico em Recuperação Motora e Terapia
através da Dança, que Angel começou a formar pessoas especializadas no trabalho
terapêutico. Elas passaram a atuar em diversos locais, tais como Hospital Sarah Kubitschek,
Funlar, Hospital Nise da Silveira, Hospital Pedro II, entre outros. Recentemente, em 2007,
a Faculdade Angel Vianna criou a Pós-graduação Lato Sensu em Terapia através do
Movimento. Corpo e Subjetivação, dando prosseguimento a essa formação.
A pesquisa dos Vianna, que passou por vários momentos históricos, tanto no teatro
quanto na dança, assumiu diferentes nomes em sua trajetória. Há quase duas décadas existe
em São Paulo um movimento para nomear esse trabalho como “técnica Klauss Vianna”. No
Rio de Janeiro, os discípulos de Angel Vianna preferem chamá-lo de “conscientização do
movimento e jogos corporais”, que é o nome adotado pela própria. Sem nos aprofundarmos
nessa questão, adotamos aqui o nome de técnica Vianna, entendendo que se trata de uma
pesquisa elaborada pelo casal Vianna. Nomeando dessa forma, pretendemos dar crédito a
Klauss e Angel pelo trabalho que foi elaborado, desenvolvido e executado em conjunto,
58
sem privilegiar nenhuma das partes. Levantamos a hipótese de que a técnica Vianna, assim
como outras abordagens corporais que priorizam a pesquisa da percepção do movimento no
corpo, pode ser eficiente para a transformação do corpo anoréxico, ajudando a diminuir a
distorção das imagens do corpo no cérebro, aproximando a realidade corpórea.
A pesquisa de campo iniciou-se em setembro de 2007. O grupo era composto de três
jovens com diagnóstico de anorexia: Analu, Anabel e Anastácia. As aulas tinham a duração
de uma hora, duas vezes na semana, e foram ministradas por Lila Santos. Ficamos com a
função de assistente. Todas as alunas estavam em tratamento psiquiátrico, psicológico e
nutricional. Nessa aplicação prática não buscamos uma mostra quantitativa, nem temos a
pretensão de obter resultados como fim da doença ou permanência dela. O intuito dessa
ação foi observar as modificações de cada aluna na relação com o seu próprio corpo e nas
suas relações sociais. Como não é possível ter acesso direto aos mapas cerebrais, buscamos
indícios, pelo relato, para identificar o que está ou não se modificando na imagem que as
alunas estão formando de si mesmas.
Os três primeiro meses foram os de maior resistência ao trabalho, com muitas faltas
e reclamações. As propostas não eram bem aceitas e executadas displicentemente. Ao
encerrarmos as atividades por causa das festas de fim de ano, não sabíamos se haveria
interesse, por parte das alunas, em dar continuidade às aulas no ano seguinte. Retomamos
após a semana do carnaval, em meados de fevereiro. Anastácia estava, naquele momento,
internada num hospital. Analu e Anabel voltaram, mas sem muito entusiasmo. Duas
semanas após o reinício das aulas, a aluna teve alta do hospital e, obrigada pelos pais,
voltou a nossa sala de aula.
59
Eu ficava toda doída. Não podia deitar no chão que eu sentia o meu osso e
tudo doía. Aí quando eu ia fazer eu pensava “Vou esquecer que esse osso
existe”. Vou deitar aqui um pouquinho, não quero sentir nada, não quero
ter tato. Porque é uma coisa louca ficar aqui sentindo aquele osso o tempo
inteiro. Que sofrimento. (depoimento de Anastácia, 2008).
Foi no começo de abril que de fato o trabalho começou a ser executado com alguma
qualidade pelas meninas. Para a professora, “o desafio foi acrescentar informação na
riqueza daqueles corpos – que tinha muita riqueza mesmo – alguma coisa de informação
nova. Até porque ninguém informava alguma novidade com relação ao corpo” (depoimento
de Lila, 2008). Até então, apenas o desconforto de sentir o próprio corpo era percebido e
relatado. Havia muita inibição para realizar exercícios que propusessem alguma interação
entre elas, e as improvisações do fim da aula eram constantemente rejeitadas.
Analu começou a aceitar e entregar o apoio dos ossos no chão. Superar esse
primeiro momento foi um start para que as outras alunas, ouvindo relatos do prazer das
novas descobertas, acalmassem e começassem suas próprias pesquisas. “Era muito estranha
aquela informação. Então eu acho que esse é o lugar do se pertencer, do encarnar. Eu acho
que aqui nos aproximamos disso que é ser o que você é. Você espreguiça, você move”
(depoimento de Analu, 2008). Foi nesse momento que Analu levou sua atenção ao próprio
corpo, constituído por ossos, músculos, vísceras, etc. Foi quando ela mudou seu ponto de
vista, que sempre havia sido mais exterior (pele, cabelo, maquiagem, roupas, acessórios,
desejos, fantasias) para começar a explorar o que se passava da pele para dentro.
É difícil termos consciência da existência física, estarmos presentes:
vivemos muito em relação ao passado, ou nos sonhos em relação ao
60
futuro, mas somos incapazes de viver o momento presente a nível físico
(VIANNA, 2005, p. 136).
É primordial que a atenção do aluno seja direcionada ao próprio corpo. Somente
assim é possível romper os automatismos (executar os movimentos sempre da mesma
maneira) e iniciar uma pesquisa de novas possibilidades. Outro fator importante para um
bom resultado dos exercícios é encontrar o prazer de se mover. Assim, as informações
novas são bem-vindas e podem ser assimiladas ao repertório daquele corpo com maior
facilidade.
A atenção focada e a habilidade de produzir conscientemente a intenção
de estar presente resultam no estado de presença, prontidão e
disponibilidade... [...]. O desenvolvimento da disponibilidade do corpo e
da atenção ao desenrolar do movimento, através de instruções específicas,
o predispõe para “ler” os impulsos internos e externos e o aparecimento
da novidade. (NEVES, 2005, p. 95).
A técnica Vianna propõe uma pesquisa do caminho percorrido no interior do corpo
para o desempenho de movimentos simples, executados cotidianamente, mas que
normalmente são feitos de forma apenas funcional (para atingir um objetivo externo) e
nunca com consciência de todo o percurso até o movimento ser visível às outras pessoas.
“Não decore passos, aprenda um caminho” é uma frase muito conhecida de Klauss Vianna.
“Não se pensa o movimento pela sua forma espacial, ou melhor, o desenho espacial é
consequência do caminho que esse movimento traça internamente, no corpo” (NEVES,
2008, p. 58). A criatividade é fundamental no processo.
61
Durante esse ano de aulas (setembro de 2007 a setembro de 2008), as alunas foram
aprendendo primeiramente a se perceber enquanto uma complexa organização de sistemas
interligados, aproximando-se do que é mais físico e palpável de sua existência: os ossos,
músculos, articulações, vísceras, pele.
Eu não sabia que tinha osso, não sabia que tinha articulação, não sabia que
eu tinha músculo. Saber a gente sabe porque a gente estuda biologia, mas
eu não sabia como era essa engrenagem. Nunca tinha parado para
perceber e viver essa engrenagem (depoimento de Analu, 2008).
Ao vivenciar a técnica, as alunas foram reconhecendo em si a própria história de
vida inscrita nos seus corpos por meio das tensões, imobilidades, elasticidade, diferenças
entre os lados direito e esquerdo, etc. Aceitar limites, destensionar, redirecionar os ossos é
um trabalho que leva tempo, atenção e paciência. “A primeira aula que eu peguei no meu
pé e eu comecei a ver que o pé não respondia, que ele estava ali travado, que ele não ia. Eu
chorava. Como estava o meu corpo impregnado por tudo o que eu tinha vivido!”
(depoimento de Anastácia, 2008). Deparar-se com a imobilidade das articulações do pé
devido a tensões causadas por sapatos de salto fez com que Anastácia começasse a prestar
mais atenção nas consequências das suas ações cotidianas. A grande tensão da musculatura
naquela região prejudicava o apoio total dos pés no chão, o que gerava uma instabilidade
em todo o corpo. Esse fato nunca tinha sido percebido por ela. A lordose lombar também
estava acentuada por causa dos sapatos. Uma vez percebidas as consequências de sua ação,
coube à aluna decidir sobre uma mudança ou não no seu modo de calçar.
A partir do momento em que as meninas entenderam que o corpo tem memória, que
ele carrega tudo o que foi vivido, elas começaram modestamente a estabelecer uma nova
62
relação com elas mesmas. A própria nutricionista comentou, em agosto de 2008, que as três
estavam mais atentas e curiosas a respeito do que cada alimento podia contribuir para a
nutrição do corpo. Perguntas sobre a importância das vitaminas, da proteína e até da
gordura começaram a surgir. Tornaram-se menos frequentes os questionamentos sobre o
valor calórico dos alimentos.
A investigação do corpo levou o casal Vianna a perceber que essa conscientização
tinha reverberações profundas na maneira de a pessoa perceber e agir consigo própria, com
o outro e em seu ambiente. Entender a própria estrutura óssea, o volume que ocupa no
espaço, a pele que liga a pessoa ao ambiente faz com que sejam exploradas novas
possibilidades de ser e estar no mundo. “Eu sentia, quando começava a falar do osso, da
articulação e tal e eu ia pesquisando no meu corpo e tendo novas percepções dele, era como
se eu começasse... Como se eu estivesse descendo uns degraus e aterrissando em mim.”
(depoimento de Analu, 2008).
A sala de aula se transformou num grande laboratório. Um local onde havia a
autorização de se pesquisar novas sensações, expressar novas emoções e sentimentos,
arriscar novos movimentos e novas relações interpessoais. A improvisação tornou-se o
momento da aula utilizado para criar, organizar as novas informações adquiridas durante a
aula e, também, um momento de experimentação estética.
A noção que construímos do nosso próprio corpo é de funcionalidade. Não somos
educados a entender primeiramente a estrutura; a função acaba imperando. Ao pensarmos
“mão” imediatamente, ligamos a tudo o que sabemos que ela pode realizar. Ao
pesquisarmos a estrutura óssea da mão, suas articulações e a pele, não evidenciamos
primeiramente sua função. Sua estrutura deriva posteriormente sua função. Isso abre a
63
possibilidade de inventarmos novas utilidades para essa estrutura que denominamos “mão”.
Essa é a lógica de organização da técnica Vianna, que deixa para um segundo momento a
função, estudando profundamente primeiro a estrutura. Esse pensamento está presente
também na Teoria da Evolução das Espécies, de Darwin: não é possível pensar como é que
vai nascer uma mão num animal. A estrutura existente é que derivará a função, mas tudo
em coevolução com o ambiente em que a estrutura está inserida.
Tocar o próprio corpo, sentir o próprio peso, aprofundar a percepção das suas
particularidades, identificar tensões e impedimentos de movimentos devido a sua própria
história de vida é uma experiência particular, que independe de comparações ou
explicações. Cada uma em seu tempo, as alunas foram entendendo que elas eram o próprio
corpo e que havia uma grande riqueza de sensações, emoções, pensamentos, formas de
viver a própria vida que poderiam ser exploradas. Ficou entendido que, mesmo passando
por um mesmo problema, a anorexia, cada uma era singular. Os rótulos e generalizações
perderam força e cada uma pode experimentar a liberdade de se recriar, reinventar-se.
Esse contato, essa possibilidade de chegar de me tocar, essa cumplicidade,
esse lado humano que a gente desenvolve muito aqui, de ver a pessoa e
não a doença, mas o que a pessoa que está ali escondida pode trazer.
Porque todo mundo pode viajar junto mesmo. Poder se surpreender com o
que de repente a gente nem esperava. Valorizar os pequenos ganhos e
através dessa valorização dos pequenos ganhos a gente vai acreditando
que é possível (depoimento de Analu, 2008).
Os estudos das ciências cognitivas ajudam a entender por que esse tipo de trabalho
corporal é uma experiência radical para construções simbólicas. Como vimos no primeiro
capítulo, a consciência opera por um relato de imagens formadas das informações mais
64
estáveis vindas de experiências corporais. Já no inconsciente – que, segundo as pesquisas
dos neurocientistas que embasam este trabalho, é cognitivo – estão as imagens que não
ganharam estabilidade. A formulação de pensamentos se dá transferindo informações de
um domínio para outro de cérebro e no trânsito com todos os sistemas e terminações
nervosas e sensitivas do corpo. “A instigação é o tempo todo o que você vai fazer de você.
De você, com você, para você” (depoimento de Lila, 2008). A prática corporal trabalha
justamente com o movimento do corpo para a produção de múltiplas imagens, promovendo
a experimentação de diversos estados corporais.
O que eu mais aprendi foi aprender a lidar com a minha diferença, a
respeitar a minha diferença e ver que cada um tinha a sua diferença. Ver
que é possível, apesar dessa diferença. Aqui eu tenho esse espaço para
continuar, para ir e para me sentir de alguma forma respeitada e
aprendendo a lidar comigo. Eu acho que o trabalho de consciência tem um
papel fundamental nisso. Estou aprendendo a lidar com essa dificuldade
de certa forma e com o meu próprio corpo. Acho que foi o que me ajudou
a romper barreiras, a lidar com essas minhas dificuldades todas internas e
de ver que eu tinha uma vontade muito grande de me expressar
(depoimento de Anabel, 2008).
Por tratar um mesmo corpo de formas absolutamente distintas, promove drásticas
alterações desses estados corporais durante seu fazer, cria ignições diferentes e o indivíduo
passa a gerar novas conexões, atingindo nos níveis conscientes e inconscientes. “O mental
se tornou muito no cérebro e acho que esse trabalho mostra sim, como a Juliana falou uma
vez, que o mental está no corpo todo” (depoimento de Anastácia, 2008). Assim, é possível
dissertar sobre a experiência vivenciada por um corpo em alguns aspectos, justamente por
ela criar conceitos, mas as informações menos estáveis que vão para o inconsciente ganham
65
visualidade física, mas não há como ser verbalizado. Daí a importância da improvisação, no
trabalho, quando as meninas se movimentam, dando expressão ao que sentem, mas não
conseguem verbalizar.
É o exercício de pensar, de criar. Então você vai se inventando, se sente
apto a isso. É difícil, não é fácil. Se permitir pensar, questionar, criar. O
principal do trabalho é a possibilidade de gerar pensamento,
questionamento, através do movimento (depoimento de Analu, 2008).
Das vivências no mundo e dos relatos imagéticos inconscientes, poucos resíduos
ganham estabilidade, são categorizados e conectados à memória. Ela funciona em rede e
não de forma cumulativa. Para ir para a memória, a informação tem que ter estabilidade
suficiente para ser categorizada. Ao entrar na rede da memória, a nova informação
desestabiliza as conexões existentes para criar novas. Quanto maior o número de novas
conexões, maior a estabilidade. É um processo dinâmico e ininterrupto.
Para Damásio:
As imagens que constituem a base da “corrente mental” são imagens de
acontecimentos corporais, seja de acontecimentos que têm lugar na
profundidade do corpo ou numa sonda especializada, próxima da
superfície do corpo. O fundamento dessas imagens é uma série de mapas
cerebrais, ou seja, uma coleção de padrões de atividades ou inatividade
neural em certas regiões sensitivas. Esses mapas neurais representam, da
forma mais abrangente possível, a estrutura e o estado do nosso corpo em
todo e qualquer momento [...]. Parte daquilo que acaba sendo mapeado
nas regiões sensitivas do nosso cérebro e que emerge na nossa mente sob
forma de uma idéia tem a sua origem em estruturas do corpo que se
encontram num determinado estado e em determinadas circunstâncias.
(DAMÁSIO, 2003, p. 208-209).
66
A técnica Vianna dá subsídios para que se criem ignições diferentes, gerando novas
conexões, atingindo níveis conscientes e inconscientes. Um corpo traz em si as conexões
feitas durante a vida até aquele momento. Elas determinam não só os pensamentos, mas os
sentimentos, sua fisicalidade e o modo de agir. “Nós somos seres inteligentes como um
todo. Nosso corpo também reage de uma forma inteligente” (depoimento Anabel, 2008).
Não há como separar o corpo de todas as experiências cotidianas. Mover-se não pode ser
encarado como um evento isolado. O corpo traz consigo seu passado e explicita suas
construções simbólicas do mundo e toda sua história.
Acho que só quando a gente tem a possibilidade de tocar a gente mesmo,
de perceber as limitações da gente, de perceber o que é o nosso corpo, a
história que ele carrega: o pé que é duro, o corpo que não responde muitas
coisas que a gente quer (depoimento de Anastácia, 2008).
Essa prática aumenta a rede de conexões entre o corpo, em constante modificação, e
as imagens do corpo, uma vez que mapeia e inter-relaciona os diversos sistemas e órgãos
corporais, aumentando seu repertório de ações, emoções e possibilidades de existir no
mundo.
Um corpo inteligente é um corpo que consegue adaptar-se aos mais
diversos estímulos e necessidades, ao mesmo tempo em que não se prende
a nenhuma receita ou fórmula preestabelecida, orientando-se pelas mais
diferentes emoções e pela percepção consciente dessas sensações.
(VIANNA, 2005, p. 126).
Filosoficamente, esse trabalho opera sem promover dualidades, visando à integração
desde estruturas mínimas do corpo com todos os órgão e sistemas, criando inter-relações.
As referências anatômicas e fisiológicas são bem-vindas, mas tratadas apenas como
67
referências e não como modelos absolutos. Essa reconstrução e remapeamento, um
constante reinventar-se, está no fluxo da vida e, ao vivenciar tais experiências, é inevitável
que o indivíduo perceba que cada pessoa é singular. Nas propostas de movimento, a pessoa
é convidada a levar sua atenção aos acionamentos internos necessários ao movimento.
Antes do ato de mover-se (que é perceptível aos olhos), vários acionamentos internos
ocorrem.
Não é alguém que chega e fala “Faça assim”. Eu sou responsável pelo
meu movimento. Você tem uma ideia, uma orientação. Eu mesma vou
tendo um pouco mais de autoconsciência, de percepção própria. Eu me
responsabilizo pelo seu corpo, por como estou percebendo, de como estou
naquele dia (depoimento de Analu, 2008).
A técnica Vianna, como é ensinada no Rio de Janeiro por Angel Vianna, tem como
foco três elementos básicos: ossos, articulações e pele. Os exercícios são sempre
direcionados de modo a evidenciar um ou mais desses elementos.
Entendendo que os ossos são a parte mais sólida do corpo e que nos dão forma e
estrutura, Angel Vianna investiga-os através do campo visual e tátil. Primeiramente, ela
pede para o aluno tocar o corpo na região onde está o osso a ser trabalhado, reconhecendo
seu formato e função. Em seguida, é oferecido um osso humano para que os alunos o
toquem, sentindo sua forma, peso, volume e textura. São propostos exercícios de
sensibilização e movimento relacionados ao osso estudado. É comum nesse momento a
utilização de materiais como bambus, bolas de espuma, bola de tênis entre outros, para
facilitar o trabalho. “É a relação estabelecida pelo contato do osso com um objeto, seja ele
consistente ou maleável, que a pele do osso (periósteo) é estimulada, tanto pela ativação do
apoio ósseo quanto pelo próprio atrito provocado pelo contato” (TEIXEIRA, 2008, p. 25).
68
O apoio no objeto provoca uma readaptação dos tendões, ligamentos e da musculatura
tônica (pequenos músculos responsáveis pela estabilidade óssea), causando um pequeno
estiramento dos mesmos. É importante ressaltar que os materiais são sempre colocados
próximos a uma articulação (conexão de dois ou mais ossos). Ao retirar o objeto, é
conquistado um espaço articular mais amplo, aumentando a amplitude de movimentos e
possibilitando a reorganização do corpo a partir daquela articulação.
Os exercícios que propiciam a conscientização da estrutura óssea são
particularmente importantes no processo. Por serem a parte mais consistente do corpo, os
ossos, com seu volume, forma e peso, quando conscientizados dão ao indivíduo noção de
estrutura e sustentação. Na pesquisa de campo, foi essencial a conscientização da estrutura
óssea. Em muitos momentos foi relatada a falta de percepção do peso do próprio corpo,
apesar de haver muitas reclamações de sentir incômodo do contato de alguns ossos com o
chão.
O reconhecimento da constituição física indica para cada um a existência
própria de algumas particularidades, potencialidades, facilidades e
dificuldades. Processa-se na descoberta do que cada um tem de peculiar,
como: traços (fino, grosso, leve, marcado etc.); dimensões (estrutura larga
ou pequena, membros superiores e inferiores desproporcionais ao
tronco/quadril etc.); tipos (biótipos relacionado com a cultura, raça e
gênero) e outros detalhes corporais diferenciados. (TEIXEIRA, 2008, p.
12).
É a partir da articulação que a função de todo o sistema músculo-esquelético é
evidenciada. As articulações orientam as direções ósseas. São trabalhadas como dobradiças
que ligam as diversas partes do corpo. É a partir do trabalho das articulações que
69
pesquisamos o movimento, e não como ênfase na musculatura. Procedendo assim,
conseguimos aliviar as tensões desnecessárias dos músculos em cada movimento e, com o
aprofundamento da pesquisa, é possível ativar musculaturas auxiliares e profundas,
distribuindo a força exercida anteriormente apenas pelos grandes músculos. Segundo Angel
Vianna:
Trata-se de adquirir a sensação de que são os ossos que se movem no
espaço. Os músculos não devem encarcerar os ossos, mas serem seus
servidores. O domínio das articulações dá sempre uma impressão de
extremo desafogo. (O Estado, 23/02/87).
Há ênfase também na estimulação da pele. Trata-se de um órgão vital que reveste
todo o corpo, que possui função protetora e de trocar informações. É por meio dela que
fazemos as trocas de informação entre o meio interno e externo. Ela ainda é reguladora de
tensões: ao relaxar as várias camadas da pele que envolve os músculos, vísceras e ossos,
abre-se espaço para destensionar os mesmos. Neste trabalho, todo o tecido conjuntivo é
considerado pele, tais como as fáscias e o periósteo. Ele aumenta a consciência da pele e do
músculo por meio da expansão dos ossos. Mover-se passa a ser vivenciar a ação das
articulações e fazer a pele espreguiçar pela direção do osso.
O toque da pele no chão, roupa, objetos ou outra pessoa é estimulado para que
aflorem sensações, desejos, inquietações etc. Assim, o aprendizado de si pela sensibilização
da pele ocorre na relação entre o interno e o externo. É na experiência e exploração de
possibilidades do corpo que são rompidos os automatismos (tendência a repetição dos
mesmos caminhos para execução do movimento). Certamente, criar novos modos de
perceber-se e mover-se cria novas redes neuronais . “Eu gosto muito nesse trabalho é dessa
70
coisa da realidade do corpo: a pele, o volume, que já te dá uma noção de extensão, o osso,
essa coisa concreta que a gente tem” (depoimento de Lila, 2008).
A aula é dividida em três momentos: chegada, pesquisa no espaço e criação. A
chegada é a tomada de consciência do seu estado corporal atual através de caminhadas,
sentir o peso do próprio corpo no chão, espreguiçar, entre outros. Logo após, propõe-se
uma “lubrificação” articular: mover o corpo levando a atenção às articulações que se
dobram, liberando assim o líquido sinovial. Essa ação provoca um aquecimento de todo o
sistema motor. A palavra “aquecimento” aqui é usada mais como uma alteração de tônus,
deixando o corpo mais disponível à ação, do que simplesmente a sensação de calor. Em
seguida, é proposto exercício para a ampliação consciente dos espaços internos, como
descrito anteriormente.
Sempre atentas às sensações internas conquistadas e que vão sempre transformando,
cada pessoa é convidada a se relacionar com o espaço. Nos próximos exercícios, a
consciência interna e externa são plenamente trabalhadas. Se no primeiro momento da aula
a pessoa explora principalmente seu interior, percebendo que vive um processo singular, na
pesquisa no espaço prioriza-se a relação com o ambiente social, sem perder de vista seu
processo singular e respeitando o processo das outras pessoas. Justamente por perceber suas
facilidades e dificuldades, por entender que elas existem devido a toda sua história pessoal
e à história de seus antepassados, há no aluno uma compreensão e um respeito pelo tempo e
o processo de seus colegas.
No fim da aula, propõe-se que a pessoa se mova com alta qualidade motora e
perceptiva. É o momento de criação e exploração de possibilidades corporais. Pela ação,
pelo movimento é que se organiza um corpo munido da percepção em seus três níveis
71
conhecidos: interocepção, propriocepção e exterocepção.12 A partir dessas experiências em
sala de aula, a pessoa integra sua realidade pessoal coma realidade social. Segundo Jorge
Vieira:
Normalmente os sistemas psicossociais têm sido encarados segundo
parâmetros de natureza social. Mas acreditamos ser inescapável analisá-lo
tanto do ponto de vista do indivíduo e de sua psique, assim como a partir
da base biológica e genética do mesmo. Ou seja, entendemos que deva
haver uma conexão entre a genética, o psiquismo e as condições
“externas” sociais. (VIEIRA, 2007, p. 107-108).
O mapeamento e a pesquisa das particularidades do próprio corpo – como tamanho,
volume, diferenças entre os lados direito/esquerdo, posicionamentos ósseos, tensões,
potencialidades, facilidades, dificuldades – vão criando fortes conexões com estruturas
corporais que muitas vezes a pessoa só conhecia por desenhos nos atlas anatômicos, ou
talvez desconhecesse completamente. Como nos explica Letícia Teixeira:
A introdução dos dados anatômicos possibilita a assimilação da
informação refletida, debatida, sentida e memorizada simultaneamente.
[...] No momento da pesquisa do movimento, o corpo assimilará as
respostas vindas do foco de atenção para outras partes que, a princípio,
não estavam sendo associadas, informando que o corpo não é separado e
nem dissociado entre si. Este é o grande diferencial para o estudo da
representação do corpo. A singularidade não é universal; por isso é
preciso sinalizá-la enquanto estudada, sentida, manipulada e vivida
(TEIXEIRA, 2008, p. 12).
12 Interocepção – é bastante interna, visceral. Só temos consciência dela quando sentimos dor em algum órgão, como dores de cabeça, cólicas etc. Propriocepção – está no nível ósseo, muscular e articular e nos informa a postura do corpo e seus movimentos, mesmo de olhos fechados. Exterocepção – são os órgãos do sentido (visão, audição, olfato, paladar e o sentido tátil) que nos colocam em contato direto com o mundo e nos informam das modificações que ocorrem no ambiente (ALMEIDA, 2004, p. 24-26).
72
Muitos exercícios são executados com a pessoa deitada para que o apoio do chão
evidencie a ação gravitacional, e de olhos fechados, aumentando a concentração e
possibilitando a percepção dos encaixes ósseos, dos acionamentos musculares, de
sensações, de tensões e das mudanças de estados corporais. Ao experimentar o movimento,
não há como dissociar corpo e mente, emoção e razão, corpo e ambiente.
Comecei a duvidar um pouco mais de algumas coisas, brincar um pouco
mais, ficar um pouco mais flexível com algumas coisas. E ao mesmo
tempo em que isso acontecia comecei a ter uma dimensão maior das
coisas. Isso foi me acalmando de certa forma (depoimento de Anabel,
2008).
A investigação de si mesmo não retira a pessoa de seu lugar na sociedade. Os papéis
sociais continuam existindo e sendo cumpridos cotidianamente. No entanto, permitir-se
experimentar outros movimentos e paulatinamente ir compreendendo a riqueza de
possibilidades do corpo inaugura na pessoa o desejo e a curiosidade de explorar o novo.
Assim, os mesmos papéis sociais são ressignificados, deixando de ser uma identidade
monolítica: a mãe, a filha, a estudante, a profissional, etc.
[...] mas vejo muito esse aspecto de como eu pude me fortalecer. Você vai
percebendo suas características, vai percebendo que todas as pessoas são
especiais, que todas as pessoas são diferentes e precisam ser diferentes.
Não são diferentes porque tem alguma coisa errada... (depoimento de
Anabel, 2008).
Durante o processo foi criada a possibilidade de ampliar as discussões a respeito do
corpo. Não se conversava durante as aulas sobre perda ou ganho de peso, nem a respeito da
eficiência do tratamento. Os exercícios, como já foi explicado, focavam os elementos
73
básicos (ossos, articulações e pele) e as discussões passavam pelas sensações, descobertas,
emoções, prazeres, desconfortos das atividades. “Porque aqui eu fui vista como pessoa e
não como uma doença. Não só a parte. Não é só tomar remédio e engordar” (depoimento de
Anastácia).
A anorexia é uma doença que pode reaparecer a qualquer momento da vida de quem
já viveu esse processo. As aulas de técnica Vianna serviram como um despertar de
possibilidades para a vida das alunas: “É uma linha que te leva para uma bifurcação que
acontecem milhões de coisas e você sente que esse lugar é um lugar que te atravessa, te
leva para o que é você” (depoimento de Analu, 2008). “Como se esse trabalho fosse me
apresentando a mim mesma através desse contato paulatino que eu fui tendo comigo, com
essas sensações, com o meu corpo” (depoimento de Anabel, 2008).
Os trabalhos corporais ajudaram a um começo de desvio de foco das suas
preocupações com relação à comida e promoveram um despertar de novos interesses pela
própria vida. É uma pesquisa que coloca o praticante muito próximo do que temos de mais
concreto no corpo. Isso provoca inevitavelmente a pessoa a pensar no que ela é, o que
pretende fazer com isso que ela é, o que realmente interessa na própria vida. Por isso
acreditamos na integração mente/corpo, pois, como é dito nos depoimentos, o trabalho
corporal teve implicações no modo como a pessoa passou a se relacionar consigo e com o
mundo.
Voltando à hipótese de que pessoas com anorexia vivem sob o paradigma da
dualidade mente/corpo, levando às últimas consequências o controle da primeira sobre o
segundo, percebemos, durante os trabalhos práticos, que o aumento da propriocepção das
alunas colocou em xeque a forma como elas estavam lidando com o próprio corpo, gerando
74
uma crise. O primeiro movimento foi de fuga, de tentar livrar-se do trabalho, seja faltando,
negando-se a perceber, dormindo durante a aula, reclamando. Com o passar do tempo, as
primeiras resistências foram sendo superadas e os exercícios começaram a fazer sentido
para o grupo. Esse foi o momento em que a atenção se voltou para o próprio corpo. O
momento em que a mente se preocupou inteiramente do que se passava em partes
específicas do corpo. Quanto mais elas “aterrissavam” mais era compreendido que o corpo
e a mente são partes da mesma unidade: a própria pessoa.
Segundo Lakoff e Johnson, os conceitos que criamos são moldados pelo nosso
aparato biológico que transforma as mensagens vindas do exterior. Dão o exemplo das
cores, que são variações das ondas eletromagnéticas, que não existem na realidade
enquanto cores, mas são assim traduzidas em nosso corpo. O mesmo vale para as noções de
espaço, que só são possíveis devido a nossa simetria, se levarmos em consideração a direita
e esquerda do nosso corpo, e a assimetria com relação a outros pontos de referência (acima
do umbigo e abaixo dele, por exemplo). Assim construímos os conceitos de alto, baixo,
perto longe, atrás, à frente. Criamos, a partir do nosso aparato biológico, referenciais
espaciais que determinam nossa orientação com relação a nós mesmos e com relação a um
objeto exterior.
Nosso aprendizado cognitivo do que é real começa e depende
primordialmente do nosso aparato sensório-motor, que nos habilita a
perceber, mover e manipular e das estruturas do nosso cérebro, que vem
sendo moldadas tanto pela evolução quanto pela experiência13. (LAKOFF;
JOHNSON, 1999, p. 17).
13 “Our sense of what is real begins with and depends crucially upon our bodies, especially our sensorimotor apparatus, which enables us to perceive, move, and manipulate, and the detailed structures of our brains, which have been shaped by both evolution and experience” (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 17).
75
Nosso corpo não é apenas um coadjuvante no processo do conhecimento. É nele e
por ele que é criada toda nossa conceituação do mundo. Quando as alunas foram
convidadas a levar sua atenção aos próprios ossos, articulações e pele, aprimorando sua
propriocepção, alguns conceitos foram desestabilizados. É justamente no momento em que
a pessoa sai de uma metaestabilidade para entrar numa crise que é possível mudar padrões
de comportamento.
A proposta de fazer um trabalho corporal com finalidades terapêuticas no caso da
anorexia serviu para que as meninas questionassem a forma como estavam levando as
próprias vidas. As questões levantadas durante o ano de pesquisa prática não foram
relacionadas exatamente à anorexia, mas com a vida de maneira mais geral. Acreditamos
ser esse um passo importante para o fim do processo anoréxico.
76
Considerações finais
É curioso como essa busca por identidade pode fazer sentido a pessoas emersas em
culturas que se organizaram a partir de outras estruturas, como na América Latina, local
onde as misturas se deram em alto grau, criando complexidades e variedades de
possibilidades. Nesse local não faz sentido tentar localizar as origens identitárias, sendo
mais interessante observar como cada conjunto se intercomunica, criando diversidade. Por
fatores históricos, essa região forçou a inter-relação de pessoas de toda parte do mundo
num curto período. Colonizadores, colonizados, invasores e nativos tiveram que conviver
com a superabundância de informações. As relações, na maioria das vezes, não eram
amistosas, e sim de dominação, mas para que pudesse sobreviver, começaram a se inter-
relacionar.
É realmente necessário ter falta de apetite pela vida para conseguir manter valores
que buscam uma unidade em países onde não há identidade possível. Não se trata apenas de
emagrecer o corpo, padronizando-o; há uma ideologia nesse ato, uma tendência à
homogeneização das ideias. Se acreditarmos na necessidade de uma atribuição ontológica
européia de um ser, com as noções de unidade, identidade e essência, o resto é o não-ser
(matéria, existência e diversidade). Seguindo esse pensamento, na América Latina, onde
tudo veio de outro lugar, seríamos uma cópia piorada ou secundária de algo que foi feito
melhor no local de origem. A única opção que restaria era a busca da exclusão da
multiplicidade que nós somos. É difícil pensar a América Latina, mais especificamente o
Brasil, nesses termos.
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A anoréxica não consegue ter um pensamento múltiplo, que seria um pensar
democrático. Ao contrário, ela é dominada por um modo de pensar que a impede de superar
esse dualismo. Não se trata apenas de admitir a diferença. O importante é a inclusão dessa
diversidade no corpo, na sociedade, na conduta e nos objetos, de tal maneira que você não
consegue mais distinguir como diversa aquela coisa que é outra, e não consegue também
ver naquilo algo uno, separado. Não é nem o heterogêneo, nem o uno, é híbrido.
O corpo como uma expressão dos desejos de libertação da matéria em busca da
pureza, do etéreo, inserido num país como o Brasil, cheio de cheiros, cores, curvas e
sabores, torna-se uma escolha absolutamente restritiva. É preciso resistir à culinária tão
sofisticada, fechar os olhos para o gingado exuberante das mulatas, recusar-se a passar o
fim de semana conversando diante de uma mesa repleta de guloseimas, ou a ir a um
churrasco no quintal do vizinho. Caso decida ir à igreja, a anoréxica terá que ignorar os
anjos e santos barrocos, todos gordos e corados, que deixam de lado o ar etéreo esperado de
seres em contato com o divino. As anoréxicas brasileiras devem inclusive ter problemas em
pronunciar palavras como “bunda” ou “bochecha”, por terem uma sonoridade e forma de
pronunciar que revelam seu volume e tamanho.
Falta, para a saúde dessas meninas, mudar o paradigma da dualidade mente/corpo
no qual alicerçaram suas vidas. É preciso digerir antropofagicamente tal dualidade, como
diriam Oswald de Andrade e Haroldo de Campos, transformando o sistema de conceitos.
Em seu artigo “Da razão antropofágica: a Europa sob o signo da devoração”, Haroldo fala
sobre a razão antropofágica, que é uma razão de assimilar o outro. Digerir
antropofagicamente a dualidade é a ação de cruzar as informações do divido com o
profano, da mente com o corpo, do etéreo com o material. Os brasileiros são peritos nessa
78
tradução, devido à superabundância de informações vindas de todos os lugares do mundo.
Sabem mastigar o que vem de fora e cuspir algo novo. É uma tarefa de grande
complexidade. Criou-se a capacidade de sempre agregar algo a mais e não de desprezar,
eliminar. A mescla dissipa a superioridade de cada parte isolada.
A mistura está já de partida nos corpos brasileiros: nas articulações, no modo de
andar, requebrar, gesticular, nas expressões faciais. Assumir essa mestiçagem e toda sua
complexidade de relações destrói qualquer tentativa de dualidade. O brasileiro tornou-se
um “tradutor/devorador: descentrado, excêntrico” (CAMPOS, 1981, p. 18).
A razão antropofágica é uma metáfora do canibalismo antropofágico dos índios, que
literalmente comiam os guerreiros das outras tribos, para incorporar sua valentia. Essa
metáfora acabou servindo para muitos autores e críticos, ensaístas latinos, para perceber
que esse era um elemento constitutivo de nossa cultura. Ainda que de alguma maneira esse
inimigo, opositor, fosse exterminado, ele não era eliminado totalmente, mas passava por
esse processo de incorporação. Não se recusa o que é de fora; pelo contrário, aceita-se e
assimila-se. Para culturas que cultivam as dualidades, é dificilmente suportável uma
combinação de pluralidades, porque acaba com qualquer possibilidade de apontar o
idêntico.
Nessa relação entre matéria e espírito, corpo e mente o concreto, material, baixo é
considerado pior do que é alto, mental e espiritual. Então, para a anoréxica, corporificar
elementos concretos e materiais torna-se uma dificuldade, uma deturpação que deve ser
eliminada, abortada, vomitada para atingir a plenitude do etéreo. A todo momento, ela
incorpora elementos fictícios ao próprio corpo; vive uma alucinação, um corpo que tenta
existir apenas em sua mente e isso rege todo seu modo de estar no mundo.
79
Faz-se necessário que essa pessoa entre em contato com o próprio corpo, mapeando-
o através de experiências físicas, sensoriais, mentais e criativas, reinventando-se e diluindo
essa dicotomia entranhada.“No final, o que aprendi foi que cada um tem a sua dança
própria, tem a sua expressão própria. Isso que mudou o meu olhar e acho que vai mudar
para sempre. É uma semente que não tem mais como perder” (depoimento de Anabel,
2008).
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