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FACULDADE DE BELAS-ARTES
UNIVERSIDADE DE LISBOA
O CORPO HUMANO EM ESCORO
Ceclia Prestrelo de Melo
Mestrado em Anatomia Artstica
2011
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FACULDADE DE BELAS-ARTES
UNIVERSIDADE DE LISBOA
O CORPO HUMANO EM ESCORO
Ceclia Prestrelo de Melo
Mestrado em Anatomia Artstica
Dissertao Orientada pelo Professor Jos Artur Ramos
2011
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4
AGRADECIMENTOS
Gostaria aqui de agradecer a todos aqueles que de alguma forma contriburam para a realizao deste
trabalho. Toda a ajuda, seja ela directa ou indirecta, torna-se fundamental num trabalho desta importncia.
Deste modo, gostaria primeiramente de agradecer ao Professor Auxiliar de Desenho da Faculdade de
Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Artur Ramos, que aceitou ser o meu Orientador na realizao deste
trabalho. O tema do Corpo Humano em Escoro surgiu no contexto de uma conversa com o professor e
algumas colegas numa aula de Desenho, neste sentido, tornou-se fcil a escolha para Orientador desta
Dissertao. A sua orientao tornou possvel a realizao de um trabalho mais rigoroso e especfico, sem a
qual este seria reduzido apenas s suas informaes bsicas.
Agradeo tambm a colaborao de duas pessoas que dispensaram seu tempo para que este trabalho
contasse com a apresentao mais correcta dos textos. A minha amiga e ex-colega de Licenciatura em
Escultura, Ins Valenti, que pacientemente corrigiu grande parte dos textos aqui apresentados. E ao Joo
Barreto, cujo domnio pelo idioma ingls to natural quanto o do Portugus, que aceitou fazer a traduo em
ingls do Resumo desta tese.
Gostaria por ltimo de agradecer todas as pessoas que me so prximas, pelo apoio e incentivo que
deram ao longo do percurso deste trabalho. minha famlia, meu namorado e amigos, fico grata pelos
momentos de nimo que proporcionaram-me na medida em que a frustrao e o cansao foram desanimando
a minha vontade de continuar.
5
RESUMO
O corpo humano, quando estudado no mbito do interesse artstico, surge como uma unidade formal ou
como um conjunto relacionado de formas, que iro interessar aos artistas nas mais diversas maneiras. A
anatomia ir surgir, deste modo, como uma disciplina de interesse no apenas cientfico, mas tambm como
um vasto tema de estudo no campo artstico. Uma vez conhecidas as principais estruturas, formas e volumes
que compem um corpo humano, natural o sentimento de curiosidade por parte do artista, de explorar e
tentar descobrir novas formas a partir deste. Estas novas formas surgem como consequncia de uma
variao de ponto de vista do artista em relao figura (ou apenas de uma de suas partes). Deste modo, a
figura posicionada em diferentes e invulgares pontos de vistas ser considerada em escoro. O escoro
portanto, a representao de uma figura volumtrica vista numa perspectiva forada onde as partes do corpo
se encontram em sobreposio e as suas superfcies se apresentam-se aparentemente distorcidas. uma
representao bidimensional originalmente definida pelo desenho, de uma figura vista em perspectiva
construda a partir de fundamentos geomtricos e matemticos, que conferem o seu aspecto tridimensional.
Assim, o conhecimento das formas bsicas da anatomia pode ser determinante para o reconhecimento da
estrutura do corpo e gerar uma representao sem incorreces. Neste sentido, os fundamentos geomtricos
surgem como uma forma auxiliar essencial para a realizao de um escoro. O artista mede, compara e
separa o que v, com base numa geometria aplicada anatomia, para construir uma figura humana que no
deixar de surpreender o observador pela descoberta de formas agora renovadas.
PALAVRAS CHAVES: Escoro; corpo humano; Desenho; Perspectiva; geometria;
6
SUMMARY
The human body, when studied through the scope of artistic interest, arises as a formal unit, or as a related
ensemble of forms, that will appeal to the artist in the most diverse ways. Anatomy will emerge, in this way, as
a discipline of not only scientific interest, but also as a vast theme of study in the artistic field. Once the main
structures are known; volumes and forms that compose a human body; the feeling of curiosity comes naturally
by the artist, of exploring and trying to find new forms resulting from this. These new forms arise as a
consequence of a shift in the point-of-view of the artist regarding the figure (or just one of its parts). In this
way, the figure positioned in different and odd points of view will be considered in foreshortening.
Foreshortening is thus, the representation of a volumetric figure, seen in a forced perspective where the parts
of the body find themselves overlapping and their surfaces present themselves as apparently distorted. Its a
bidimensional representation originally defined by the portrayal, of a figure seen in perspective, built from
geometrical and mathematical fundaments, that confer its tridimensional aspect. Thus, knowledge of the basic
forms of anatomy can be a deciding factor in the recognition of the structure of the body, with the goal of
generating a representation without inaccuracies. In a sense, the geometrical fundaments appear as an
essential auxiliary tool for the realization of a foreshortening. The artist measures, compares and separates
what he sees, on the basis of geometry applied to anatomy, to build a human figure that wont cease to amaze
the observer through the discovery of forms now renewed.
KEYWORDS: Foreshortening; Human body; Drawing; Perspective; Geometry;
7
NDICE:
- Agradecimentos4
- Resumo5
- Summary.6
- Introduo...9
- 1. O Desenho e o Escoro11
- 2. A Anatomia Humana Perante o Escoro.17
- 2.1. O Esqueleto.19
- 2.2. Msculos, Gordura e Tendes...20
- 2.3. As Estruturas e Composies de um Corpo Humano.22
- 2.3.1. A Cabea23
- 2.3.2. Os Membros Superiores24
- 2.3.3. Tronco..25
- 2.3.4. Zona Plvica..26
- 2.3.5. Os Membro Inferiores..27
- 3. A Forma do Corpo e suas propores..29
- 4. Mtodos e Tcnicas de Desenho40
- 4.1. Mquinas de Desenho.44
- 4.1.1. A Janela ou Cristal46
8
- 4.1.2. Caixa de Anamorfose.48
- 4.1.3. A Portinhola..50
- 4.1.4. O Vu...55
- 4.2. A Perspectiva Visual..61
- 4.2.1. A Figura e o Ponto de Vista65
- 5. A Representao do Escoro69
- 5.1. Os Artistas e o Escoro..71
- 5.1.1. Villafae...74
- 5.1.2. Jean Cousin....76
- 5.2. Tcnicas para a Representao do Corpo em escoro81
- 5.2.1. A Forma Cilndrica..85
- 5.2.2. O Crculo e suas Elipses87
- 5.2.3. O Tringulo Isceles...89
- 5.2.4. Posio do Membro em Relao sua Articulao.90
- 5.2.5. Sistema de Projeco atravs das Linhas Paralelas91
- 5.3. Os Nove Princpios do Escoro (Por Burne Horgarth)94
- Concluso.98
- Bibliografia100
9
INTRODUO
A representao do corpo humano um tema pelo qual nutro grande interesse, em particular quando se
apresentam em posies menos frontais, ou de topo, onde surgem formas surpreendentes nas diferentes
partes do corpo. Este portanto, o principal tema no contexto deste trabalho, tendo em conta estas formas
alteradas que surgem perante o olho quando se apresenta em diferentes posies. A invulgaridade que estas
assumem quando se apresentam em profundidade despertou o interesse de vrios artistas ao longo da
histria. Com o passar do tempo e o desenvolvimento das tcnicas artsticas, maior foi a explorao destas
formas, e cada vez mais a representao da figura humana foi ganhando uma maior diversidade e
originalidade na forma como representada.
Assim, o corpo humano foi, e ainda o , um objecto de estudo por excelncia dos artistas, que deste modo
criaram diversos mtodos e processos para a sua representao. Os Egpcios so conhecidos como os
primeiros a estabelecerem um sistema que define as propores humanas, porm as representaes que
fizeram do homem foram deveras limitadas, onde o movimento era mecnico e suas partes eram
posicionadas de modo a aparecerem na sua totalidade. Progressivamente, a representao do homem foi
ganhando um maior realismo e liberdade (relativamente s posies e aos movimentos). Foi no
Renascimento que a representao da figura humana ganhou uma maior notoriedade, baseando os seus
conhecimentos na herana deixada pela Antiguidade Clssica, pois como estes, o artista exigia fidelidade
natureza e beleza, na obra de arte. Neste perodo, o corpo humano foi largamente estudado, chegando
mesmo a atingir um nvel quase cientfico, na medida em que os artistas desta poca comearam a
interessar-se pelo estudo do corpo dissecado para melhor entender as suas formas. Entre estes estudos
destacam-se os desenhos de Leonardo da Vinci que resultaram num grande e valioso passo na construo
da teoria das propores, assim como Leon Alberti Battista e de Albert Drer surgem tambm como dois
grandes nomes no contexto do estudo das propores humanas.
A representao do corpo humano foi, deste modo, explorada de forma incansvel. Ao desenhar a partir de
um modelo, o artista sente curiosidade pelas diversas formas que o corpo nos apresenta consoante as mais
variadas posies que este possa assumir. Como consequncia, algumas das posies surgem como que de
topo (ou em profundidade), onde alguns dos seus membros se apresentam muito prximos do observador.
Sempre que isto acontece, surge o problema da representao em escoro, que consiste na representao
do corpo humano, visto de um ponto de vista que no seja nem de frente nem de perfil.
Neste sentido sero mencionadas neste trabalho teorias relacionadas, directa ou indirectamente, com o
escoro e como este surgiu na sequncia do desenvolvimento da histria da representao da figura humana.
10
Ser enfatizado a importncia do desenho na medida em que substancialmente nesta disciplina que a
representao do escoro ganha fora e vida. Para alm das principais estruturas e volumes do corpo
humano, sero tambm apresentadas algumas mquinas que auxiliaram neste processo, assim como
mtodos sugeridos pelos mais diversos autores para possibilitar uma representao bem sucedida do corpo
humano visto em escoro.
1- Peter M. Simpson, Representao da
pernas em escoro atravs da rgua e do
compasso
11
1 - O DESENHO E O ESCORO
Por escoro entende-se toda a representao bidimensional que pretenda, atravs da aplicao das leis
de perspectiva, conferir um aspecto tridimensional figura ou objecto representado (no inclui a
representao de espaos ou superfcies arquitectnicas). Neste sentido, este captulo ir tratar da questo
do escoro da figura humana e da sua relao com o desenho.
A representao do escoro foi, e ainda , bastante apreciada pelos artistas, contudo, isto no significa que
os mesmos faam as melhores decises acerca da sua construo.1 Para este tipo de representao, o
artista deve ver para alm do bvio, ou seja, para alm daquilo que se encontra sua frente, e saber avaliar
onde cada elemento se deve situar. Assim, o artista deve ter boas noes de perspectiva e da disposio de
uma forma tridimensional no espao. Deste modo, torna-se relativamente mais fcil representar a
complexidade do corpo humano em profundidade. Contudo, apesar de as noes de perspectiva servirem
como uma valiosa ajuda na representao de um corpo numa vista de topo, deve-se tambm ter em conta
que a perspectiva linear pode conferir tambm alguns problemas na representao de um corpo humano, na
medida que esta se baseia num trabalho a partir de linhas rectas, e a superfcie de um corpo tudo menos
linear, sendo por isto, de utilidade limitada.2
O corpo humano apresenta esta grande variao formal e curvilnea devido a sua complexidade anatmica
que o define e o distingue dos diferentes seres vivos. Porm, o corpo humano quando desenhado deixa de
ser uma estrutura anatmica e passa a figura. , portanto, a figura humana que ao ser representada em
profundidade apresenta-nos a questo do escoro, que bastante distinta em relao representao de
objectos de carcter mais geomtrico e rectilneo. Neste sentido, Antonio Palomino3, descreve o escoro
como sendo uma degradao da longitude, reduzindo-a a mais ou menos breves espaos. O escoro nos
corpos irregulares, globosos ou tuberosos, no constam de linhas rectas, nem superfcies planas, como o
homem, e os demais animais e coisas semelhantes. E assim, ao que se chama escoro nos corpos
rectilneos, nos planos se chama perspectiva. 4
Para a representao do corpo humano o artista necessita, ento, de um correspondente ordenado de
saberes, que se encontra muitas vezes em conflito com os elementos que abordavam a percepo visual e
1 - SIMPSON, Peter M., Pratical Anatomy for Artists, 2010, p. 214
2 - Id, p. 195 Linear perspective, as the name suggests, requires straight lines to be identified in order for it to work.
While aspects of the human body can be perceived as being linear, the surface of a body is not linear at all, so therefore linear perspective is limited in its usefulness. 3 (1653-1726) Pintor Espanho do perodo Barroco
4 - ZUVILLAGA, Javier Navarro de, Imgenes de la Perspectiva, 1996, p. 152
12
todos os conhecimentos e tcnicas que estivessem ligados ao conhecimento emprico, assim como ao ideal
de beleza. Ao desenhar, o artista tem conscincia do que cada elemento determina, o que faz com que se
encontre num processo de escolha constante entre ser fiel quilo que v e o que compreende ou reconhece
de imagens anteriormente retidas de um modelo/objecto semelhante, de modo a adequa-la melhor sua
representao. Este pensamento tem marcado a teoria do desenho nos ltimos sculos.5
Tendo ento em conta que o escoro apenas possvel numa representao bidimensional, no desenho
que este ganha fora e vida.6 O desenho formado por um conjunto de pontos linhas e formas realizadas
sobre uma superfcie, onde o artista, atravs destes elementos, transporta a viso que tem da realidade (ou
de uma ideia que tenha em mente) para a representao desta. Neste sentido, desenhar significa
essencialmente re-presentar, ou seja, tornar presente, visvel, qualquer coisa de que trata o desenho.7 Este
aparece ento, como uma forma de expresso artstica que no apenas configura e representa uma ideia
como tambm nos mostra como cada um capta e v a sua realidade. O poeta Lu-Chi (261-303 d.C.) ao
escrever acerca do desenho afirma que Uma composio nasce como a encarnao de muitos gestos vivos
() Naqueles momentos em que a mente e a matria mantm uma comunho perfeita, viro com fora
irresistvel e se iro. 8
Isto significa que o artista tem, de certa forma, uma viso do desenho que tende a estabelecer uma clara
relao entre o objecto representado e a sua representao, tanto que, num desenho, o observador pode
contemplar ao mesmo tempo a representao, o ponto de vista do observador e o objecto que reproduz.9
O desenho , deste modo, produto da relao entre o artista e o objecto/modelo a ser representado, e as
informaes trocadas entre ambos. O artista transpe para o papel a sua viso das informaes fornecidas
pelo modelo, que pode variar consoante a disposio que o modelo se apresenta. Nessa mesma linha de
pensamento, Piero Della Francesca (1415-1492) define o desenho como perfis e contornos que constam do
objecto, composto por linhas, pontos, ngulos, propores, superfcies e corpos. O pintor italiano chama a
ateno dos diversos aspectos que devemos ter em conta, como a distncia que os objectos se apresentam
em relao ao observador; os diferentes ngulos e dimenses que as formas dos mesmos possam
apresentar consoante a sua posio; a forma como as linhas se apresentam desde a extremidade do
objecto/modelo e terminam no olho; assim como tambm a forma com que os raios do olho descrevem as
5 CFR. MOLINA, Juan Jos Gmez, Las Lecciones del Dibujo, 1995, p. 56
6 O escoro tambm surge na pintura, contudo, esta aparece posterior ao desenho, como um processo de colorao
quilo que j foi anteriormente representado, no sendo, por esta razo uma tcnica considerada como importante para a representao do escoro. 7 MOLINA, Juan Jos Gmez, Las Lecciones del Dibujo, 1995, p. 49
8 Id, p. 23
9 Ibd, 1995, p.149
13
coisas proporcionalmente, e podem a partir destes, deduzir a sua medida.10 Mais tarde Vincent Van Gogh11
ir fazer uma referncia ao desenho como uma luta dura e rdua, em que se torna necessrio ter
conhecimento das leis da proporo, de luz, de sombra e de perspectiva12. Estas questes aparecem como
fundamental na resoluo do problema do escoro.
O desenho aparece-nos, ento, como uma forma fundamental de expresso artstica para a representao
de uma figura vista em profundidade, colocando-nos, deste modo, a questo do escoro. Neste tipo de
desenho, bastante evidente o seu carcter representativo, onde o artista sente necessidade de trazer
presente, atravs da imagem, a ideia que tem do objecto/modelo em questo, ou seja, a reproduo impressa
daquilo que se passa na sua mente. Para alm de representar aquilo a que se refere, o desenho acaba
tambm por determinar a posio de quem o realiza, apreendido atravs dos valores que o compe, como a
linha, a composio, o claro-escuro e a perspectiva.13
O escoro tem, deste modo, um carcter marcadamente representativo, pois trata-se (no caso especfico
deste trabalho) da representao de uma figura humana, cujo corpo, ou alguns dos seus membros
apresentam-se numa vista de topo. Este pode seguir um caminho mais realista, onde o artista tenta ser fiel a
realidade, representando tal como v; ou um caminho mais expressivo, em que o artista traduz o que v na
forma como este o idealiza e/ou sente.
No segmento da ideia de representao realista, surge a expresso de desenho do natural onde a
realidade visvel tida como referncia ou inspirao para a representao.14 Tendo em conta que a
capacidade de representar correctamente uma figura humana conseguida atravs da prtica constante do
desenho feito a partir da observao de um modelo, a representao feita a partir do natural ir ajudar ao
artista a ter uma melhor percepo daquilo que se lhe apresenta frente.
No que diz respeito representao realista, o acto de representar de forma exacta e precisa o que se
encontra nossa frente torna-se num bom treino para os olhos, na medida em que este se baseia numa
observao minuciosa da realidade perceptvel que se encontra nossa volta. Para qualquer artista,
principalmente numa fase inicial, o treino e a constante prtica do desenho feito a partir de um modelo e/ou
paisagem um factor fulcral, tanto para o desenvolvimento das suas capacidades tcnicas, como para a
descoberta da sua prpria linguagem. O acto de copiar torna-se deste modo, numa habilidade extremamente
10
MOLINA, Juan Jos Gmez, Las Lecciones del Dibujo, 1995, p. 564 11
Pintor ps-impressionista neerlands, contribuiu fortemente para o estilo Expressionista (1853-1890) 12
MOLINA, Juan Jos Gmez, Las Lecciones del Dibujo, 1995, p. 589 13
Id, p. 170 14
MAIA, Pedro francisco Fernandes da Silva, Mquinas de Desenho e a Representao da Realidade: O Mundo Visto por uma Janela, 2009, p. 44
14
importante, alis, foi atravs da prtica da cpia mimtica da realidade que provavelmente surgiu a
necessidade de aprofundar os conhecimentos e estudos anatmicos, de propores, cores, claro-escuro e da
perspectiva, concedendo representao uma maior credibilidade.15
A constante prtica da representao a partir do natural pode servir de grande valia ao artista que desejar
representar uma figura em escoro, pois j lhe ter dado uma boa noo e conhecimento das formas que
compem o corpo humano, tornando, deste modo, mais fcil a sua visualizao no espao. Contudo, um
grande conhecimento acerca do que se est a representar pode fazer com que o artista se prenda tanto aos
detalhes de um objecto, que perca a noo da figura geral, o que pode gerar uma desproporo nas formas
do todo.
Foi no perodo do Renascimento que o artista ganhou uma nova atitude, considerada como moderna, que
o obrigava a estar diante de um modelo natural, pois era na natureza que residia a sua guia mais segura. O
ideal de imitao foi bastante valorizado neste perodo, sendo este fundamental para garantir o xito das
obras, pois assim como Leonardo defendia, a Arte a imitao da Natureza.16 Acerca da representao a
partir do natural, o escultor Lorenzo Ghiberti afirmava que Visto que, so questionados sempre os elementos
bsicos e essenciais, necessrio investigar de que maneira se comporta a natureza na arte, como chegam
as imagens ao olho, em que medida actua a faculdade visual e de que modo deveria proceder a teoria da arte
escultrica e da pintura.17
Em defesa da representao realista, Drer18 afirmava que a obra de arte era a representao directa e fiel
de um objecto natural, ao dizer que quanto maior for a exactido com que te aproximes natureza pela via
da imitao, melhor e mais artstica ser a tua obra.19 Neste mesmo sentido, o pensamento renascentista
acreditava que a questo da exactido na representao no muito distinta questo da beleza (sobretudo
da beleza humana). O Renascimento foi, neste sentido, um perodo em que a representao realista marcou
toda conceptualizao artstica. Baseados na estaturia Clssica, onde os gregos se serviram
essencialmente da observao para realizarem as suas obras, os artistas renascentistas despertaram um
interesse pelo mundo material sua volta e voltaram a dar importncia representao realista que se havia
perdido nos perodos anteriores.
Para se conseguir uma representao realista, para alm da observao da natureza, os artistas devem
observar e aprenderam tambm a partir das obras dos grandes mestres. No Renascimento, os artistas
15
MOLINA, Juan Jos Gmez, Las Lecciones del Dibujo, 1995, p. 176 16
CLIMENT, Carlos Plasencia; LANCE, Manuel Martnez, Las Proporciones Humanas y los Cnones Artsticos, 2007, p. 158 17
MOLINA, Juan Jos Gmez, Mquinas y Herramientas de Dibujo, 2002, p 109 18
Albrecht Drer (1471-1528), pintor, gravador e ilustrador, este artista foi um das principais figuras do Renascimento 19
MOLINA, Juan Jos Gmez, Mquinas y Herramientas de Dibujo, 2002, p. 185
15
estudaram as estatuarias Clssicas na medida em que quiseram aprofundar seu conhecimento acerca da
anatomia humana e suas propores, assim como aperfeioar as suas tcnicas de desenho. Neste sentido,
muitos artistas defendiam que se deveria aprender primeiro a partir dos mestres e s depois confirmar com a
natureza. Leonardo da Vinci, entre as folhas soltas de seu Caderno de Notas escreveu que o jovem deveria
aprender primeiro a perspectiva, depois das propores dos objectos. A continuao, copiar a maneira de um
bom mestre, para adquirir o hbito de desenhar bem as partes do corpo humano, e depois desenhar ao
natural para confirmar as lies aprendidas. Ou seja, o aprendiz deveria primeiro aprender as noes de
perspectiva aplicadas na representao de uma figura, depois fazer cpias dos desenhos de mestres
qualificados, fazendo-o segundo a arte do natural e no da memria, e s depois desenhar o relevo, guiando-
se por um desenho dele tomado.20
O artista espanhol, Jusepe Martnez21, tambm defendia esse pensamento ao dizer que que o desenhador
deveria ser dotado de um conhecimento acerca daquilo que pretendia representar antes do processo de
copiar a partir do natural. Este, assim como Leonardo, recomendou que se deveria aprender primeiro com os
grandes mestres, e quando os conhecimentos estivessem suficientemente apurados, poderia partir-se para a
observao da natureza. o desenho o que impe o modelo da realidade que logo se confirma ao
natural.22 Neste sentido, o pintor espanhol afirmava que as melhores propores do desenho encontravam-
se nas figuras antigas, cuja correco e pureza tiveram sempre uma aprovao geral.23 O estudo das figuras
antigas serviu para muitos mestres de renome um valioso material, essencialmente para a representao da
figura humana. Ao desenharem as belssimas formas da estaturia clssica, os artistas puderam explorar o
relevo destas formas, a sua expressividade, o domnio da sombra, e quase to ideal quanto representar a
partir do natural, o conhecimento da anatomia humana.
A cpia a partir dos mestres foi, durante muito tempo, um factor de aprendizagem muito importante,
sobretudo para os estudantes de Arte. A escolha do mestre era, deste modo, crucial na medida em que se
deveria escolher aquele que melhor correspondesse ao seu prprio gosto e estilo, sem necessariamente, ter
de ser um artista do seu prprio tempo (como o estudo da estaturia Clssica).
Este foi mais um mtodo recorrido pelos artistas para poderem fazer uma representao realista e copiar
com o devido conhecimento o mundo visual que o rodeia. Porm, o acto de copiar demonstra a capacidade
de entendimento acerca daquilo que visto, transposto para um modo especfico de representao, enquanto
que este deveria ser considerado como uma habilidade essencial, uma tcnica para melhorar as capacidades
20
MOLINA, Juan Jos Gmez, Las Lecciones del Dibujo, 1995, p. 176 21
Pintor Barroco espanhol, (1600-1682) 22
MOLINA, Juan Jos Gmez, Las Lecciones del Dibujo, 1995, p. 177 23
Id, p. 229
16
artsticas e no como um fim em si mesmo.24 O artista que se queira destacar no mundo das Artes deve
deixar uma marca em suas obras que o distinga dos outros, marcando nas suas representaes, a sua viso
e sentimento que tem em relao s coisas que representa.
A imagem do desenho trata-se do reflexo da experincia do olhar, distinguindo desta forma, o olhar do
artista que o desenha e o olhar de um mero observador que exterior experincia, pois o formato da coisa
representada deve-se apenas a uma questo de aparncia que universalmente reconhecida por qualquer
individuo. na transformao desta que a viso e o toque pessoal do artista confere um carcter mais
expressivo representao. Dito isto, a imagem representada pode ter semelhanas com a realidade, porm
esta no tem necessariamente que ser tomada como um objectivo principal, o que depende unicamente da
vontade e inteno do artista.25
O estilo de cada artista uma variante de diversos factores que se reflectem com uma forte influncia nos
resultados das suas obras. A empatia que o artista tem em relao ao objecto que representa, faz com que o
resultado da obra tenha sempre um cunho pessoal. Se diferentes artistas representarem o mesmo objecto
ser notrio uma grande variedade de traos e expresses. Sendo o corpo humano um objecto mais
complexo e relacionvel com qualquer artista, este dotado de uma grande carga de referncias tanto visuais
como sensoriais, que podem variar consoante a posio do corpo, o ambiente envolvente e a sua
composio, com o estado fsico e psicolgico do modelo e essencialmente o prprio estado de esprito do
artista.
Pode-se ento dizer que o desenho, que teve sempre uma forte vinculao com as principais formas
artsticas, sendo mesmo considerada como o pai das trs artes,26 de preciosa valia, na medida que, para a
representao do escoro necessrio uma prtica constante do desenho a partir de um modelo, com o
auxlio de algumas noes acerca da perspectiva. A representao do escoro baseia-se, ento, em mltiplos
pontos de convergncia ditados por objectos prontos a serem posicionados dentro da cena. Trata-se de uma
representao feita atravs de linhas ou manchas (ou ambas) de um corpo volumoso visto em profundidade,
sem incluir nesta as projeces arquitectnicas, realizado num suporte plano, onde a tridimensionalidade
conseguida ou sugerida, pelos processos do desenho.
24
Copying should be considered an essential skill but not an end in itself. Rather, it should be considered a stepping stone to greater things. SIMPSON, Peter M., Pratical Anatomy for Artists, 2010, P. 189 25
MAIA, Pedro francisco Fernandes da Silva, Mquinas de Desenho e a Representao da Realidade, 2009, p. 44 26
Afirmao de Vasari: dibujo com el padre de las trs artes nuestras: arquitectura, escultura y pintura. - MOLINA, Juan Jos Gmez, Las Lecciones del Dibujo, 1995, p. 180
17
2 A ANATOMIA DO CORPO HUMANO PERANTE O ESCORO
Para alm de ter as capacidades tcnicas evidenciadas para o desenho, a representao da figura humana
exige um determinado conhecimento anatmico, assim como das propores do corpo, sendo igualmente
determinante para a representao de uma figura em escoro. Ao apresentar-se numa posio diferente, e
consideravelmente estranha e incomum em relao ao artista, as formas do corpo alteram-se sua vista.
Um bom conhecimento dessas formas ir ajudar o artista a orientar-se para a realizao de um desenho onde
a composio formal do corpo faa sentido e esteja relativamente articulada. Deste modo, o estudo da
anatomia humana pode servir de auxlio para a representao do escoro, na medida que a memorizao da
sua composio torna mais fcil a sua compreenso, assim como garantem tambm, um maior sucesso nos
resultados finais.
O corpo humano tem sido indubitavelmente, um tema com maior interesse para os artistas. Com excepo
de alguns perodos artsticos, a Histria da Arte apresenta-nos uma riqussima variedade de representao do
corpo humano, mostrando a evoluo do conhecimento que os artistas tinham acerca deste tema, e que
regras e teorias foram surgindo para uma melhor concretizao deste. A anatomia tornou-se, portanto, num
tema essencial de estudo no apenas na rea cientfica mas tambm no campo artstico.
Anatomia, deriva de uma palavra grega que significa cortar para
examinar.27 Esta rea de estudo que nos interessa especificamente
est relacionada com o corpo humano e pode ser dividida em
diferentes seces, como por exemplo, a Patolgica e a Normal ou
Fisiolgica, que podem ser tambm subdivididas em geral e particular
e descritiva, cirrgica ou topogrfica, anatomia aplicada, anatomia
comparada, etc. Mas a que realmente interessa aos artistas, e mais
especificamente para este trabalho, a Anatomia Plstica. A
Anatomia Plstica, ou Anatomia das formas, a disciplina que estuda
as partes proeminentes do corpo, suas inseres, e as propores
das vrias partes em relao ao todo, ou seja, ocupa-se
exclusivamente dos componentes que conferem o formato exterior do
corpo, que ser de nico interesse para o artista.28
27
- LOMBARDINI, A., Manual de Anatomia Plastica, 1903, p.XXI 28
LOMBARDINI, A., Manual de Anatomia Plastica, 1903, Captulo I, p. 2
2- Leonardo Da Vinci, Desenho Anatmico das
Espduas, 1509-1510, Pena e Tinta, 29x20cm
18
A Anatomia estudada pelos mdicos, pouco ou quase nada, interessa aos artistas, a no ser que estas de
alguma forma possam influenciar ou modificar a forma exterior do corpo humano. Porm, no podemos
esquecer que esta precedeu a outras anatomias, e foi a partir desta que os artistas da Antiguidade se
basearam. Esta disciplina foi incansavelmente tratada tanto por mdicos como por artistas. Leonardo da
Vinci, atravs dos seus estudos, por exemplo, deixou-nos um nmero precioso de desenhos com ensaios
anatmicos, executados com um cuidado e preciso ainda hoje impressionantes.
Acerca da representao do corpo, Leonardo da Vinci afirmava que se deve ter primeiro em conta a
configurao do corpo humano, ou seja, a sua anatomia ou estrutura; de seguida a atitude do corpo em
repouso ou em movimento, e dentro do movimento, as simples mudanas de atitude, isto , os movimentos
de translao e os de esforo. Na questo do movimento, o artista no deve ter em conta apenas as
modificaes morfolgicas que sucedem no corpo pelas causas fsicas, mecnicas ou fisiolgicas, mas
tambm o carcter dos movimentos e das formas.29 Estas questes so fundamentais para resolver o
problema da representao em escoro.
Leonardo foi um dos primeiros artistas a aprofundar o estudo da anatomia de modo a poder aplic-la nas
suas obras. Com o tempo tornou-se numa disciplina na rea artstica. Nesse sentido, surge o estudo da
osteologia (estudo dos ossos do corpo) e da miologia (estudo dos msculos e seus anexos), que so os
principais componentes do corpo, cuja composio e articulao das partes configuram o seu formato
exterior, que conhecemos e podemos observar.
29
VINCI, Leonardo da, Tratado de la Pintura, 1947, p. 14 e 15
19
3- Autor Desconhecido, Representao dos eixos rectilneos de uma figura em diversas posies,
2009
2.1.- O ESQUELETO
Os pintores devem conhecer os ossos que sustentam a carne que os recobre e as junturas pelas quais os
membros se retorcem, estendem e dobram.30
O estudo da Osteologia extremamente importante, pois o esqueleto representa o sustentculo do corpo, o
que d a este a forma base da sua estrutura. Da mesma forma que importante deixar as vigas bem
estruturadas para construir um edifcio de forma bem sucedida, tambm importante que se tenha um bom
conhecimento da osteologia para que a representao do corpo seja bem construda. Segundo Emery
David, o esqueleto pelo seu equilbrio, estabelece o equilbrio do corpo, forma os ngulos salientes externos,
estabelece os planos principais, forma as articulaes e sustenta as grandes massas musculares, sobre as
quais se modelam as partes secundrias e os detalhes da pele; o esqueleto por fim, com as suas formas
proporcionais e inflexes naturais o elemento primordial da desenvoltura, da elegncia e do gesto de cada
membro.31
Este pode, tambm, influenciar a configurao do corpo, na medida em que algumas partes aparecem
proeminentes superfcie, cuja forma pode alterar-se consoante a posio em que se encontra. Exemplos
disso so algumas formas sseas no crnio, nos ombros, nas clavculas, na articulao da anca, no joelho,
nos ns dos dedos, etc., podendo as mesmas tambm servir de pontos de referncia no desenho.
Os ossos so tambm responsveis pela visualizao virtual dos eixos rectilneos que definem toda
estrutura de um corpo humano. Estes podem ser utilizados numa primeira fase do desenho, determinando as
propores e posio base de
uma figura. Assim como tambm
as articulaes, como os
cotovelos e joelhos, podem
deixar inicialmente definidos os
ngulos que cada zona ir
assumir de modo inicialmente
simplificado e a partir das
estruturas rectilneas construir as respectivas partes do corpo. Este e foi um mtodo bastante utilizado por
vrios artistas, pois conseguem desta forma deixar j definidas as medidas de cada parte do corpo de modo
30
VINCI, Leonardo da, Tratado de la Pintura, 1947, p. 98 31
- LOMBARDINI, A., Manual de Anatomia Plastica, 1903, Captulo I, p. 5
20
proporcional, assim como torna mais fcil a visualizao da posio que a figura ir assumir, sobretudo
quando algumas das partes se encontram sobrepostas.
Podemos portanto concluir que o esqueleto o princpio anatmico de qualquer artista que tenha como
interesse a representao do corpo humano, e deste modo importante conhecermos as suas estruturas,
propores e movimentos exequveis pelo mesmo. O posicionamento deste feito ao acaso pode influenciar
negativamente o realismo da representao.
2.2.- MSCULOS, GORDURA E TENDES
Para a representao de um corpo em escoro o conhecimento das principais massas e volumes muito
importante, at mesmo fundamental, na medida em que as formas se encontraro alteradas quando
posicionadas em perspectiva. Grande parte dessas massas so formadas pelos msculos e gorduras que
conferem as principais formas do corpo humano que conhecemos exteriormente.
Quando se cria uma representao a partir do esqueleto, o resto apenas adio. Neste sentido, aps a
construo do esqueleto, resta apenas vesti-lo, residindo nesta prxima etapa o estudo da miologia. Existe
uma relao de dar e receber entre o esqueleto e os msculos, relao esta onde nenhuma das partes
responsvel pelo movimento. So os msculos que chamam o esqueleto aco, fazendo com que os ossos
se movam. Por outro lado, os movimentos dos msculos so limitados pelos movimentos permitidos ao
esqueleto fazer.32
nos msculos que encontramos as grandes massas que conferem a maior parte do volume do corpo.
Estes tm sempre um equivalente par e aparecem como matria que recobre as estruturas (ossos) dando-
lhes corpo e forma. O autor Peter M. Simpson, relativamente representao do corpo humano, aconselha a
esquecermos inicialmente a capacidade de flexo e extenso dos msculos, e limitarmo-nos apenas a juntar
32
SIMPSON, Peter M., Pratical Anatomy for Artists, 2010, p. 29
21
os pontos, para deste modo haver apenas uma preocupao com a localizao correcta de cada um
destes.33
Quanto gordura, esta que confere forma um maior ou menor volume, pois esta sobrepe-se aos
msculos, e destaca-se sobretudo nos indivduos de mais peso. Esta salienta-se mais nas zonas das
ndegas, estmago e seios. na quantidade de gordura que reside a maior diferena entre os homens e as
mulheres, pois apesar de ambos serem providos dos mesmos ossos e msculos, a quantidade de gordura
existente no corpo de uma mulher maior do que nos homens (mesmo numa mulher magra, a rea de
gordura ocupa uma extenso sempre relativamente maior que a do homem).
A maior ou menor quantidade de gordura sobre as diferentes partes do corpo pode tambm influenciar a
aparncia dos msculos sobre os quais estas se encontram. Leonardo afirma que quando um indivduo
mais encorpado, a gordura faz com que os locais que possuem vrios msculos aparentem ter apenas um,
assim como num indivduo magro em que nas zonas em que apresenta poucos ou apenas um msculo,
acaba por criar a iluso de possuir vrios.34
Por ltimo, os tendes apresentam-se como faixas delgadas cuja principal funo unir os ossos aos
msculos. Os mais salientes encontram-se no pescoo, no pulso, nas costas das mos, nos calcanhares e na
parte de cima dos dedos dos ps.
33
SIMPSON, Peter M., Pratical Anatomy for Artists, 2010, p. 55 34
VINCI, Leonardo da, Tratado de la Pintura, 1947, p. 98
4- Andreas Vesalius, De Humanis Corporis
Frabrica, Gravura, 1543
22
2.3.- AS ESTRUTURAS E COMPOSIES DE UM CORPO HUMANO
Para ser um bom fazedor de todas as posies e gestos que os membros adoptem nos nus preciso que
o pintor conhea a anatomia dos nervos, dos ossos, dos msculos e dos tendes, para saber de acordo com
os distintos movimentos e esforos, que nervo ou msculo de um movimento a causa e para mostrar em
realce apenas estes e no os restantes, como tantos fazem, e por se darem como grandes desenhistas
traam seus nus lenhosos e sem graa. 35
Para perceber o corpo humano na sua totalidade, a sua forma externa, necessrio conhecer primeiro sua
estrutura e composio interna. Conhecendo as suas partes e a maneira como estas se articulam e se
organizam entre si, torna possvel uma representao credvel do corpo humano. Sabemos que o corpo
composto por 206 ossos e mais de 600 msculos, porm a estrutura ssea tratada de forma generalizada,
dando expresso apenas s formas de interesse para o desenho. Quanto aos msculos, so representados
apenas aqueles que se articulam com o esqueleto, sendo estes a massa muscular mais abundante do corpo.
Estes msculos devido ao facto de estarem ligados ao esqueleto permitem no apenas o movimento, mas a
formao dos contornos da figura humana.
Porm, s nos ir interessar as estruturas anatmicas que conferem um determinado volume de modo a
destacar-se numa vista em escoro do corpo. Para uma compreenso mais simplificada do corpo todo, no
mbito do interesse da sua representao em escoro, podemos dividi-los em 5 partes: a cabea, os
membros superiores, o tronco, a zona plvica e os membros inferiores, e nesta mesma ordem ser aqui
tratado as suas partes.
35
VINCI, Leonardo da, Tratado de la Pintura, 1947, p.
23
5- Andrea del Sarto, Perfil da Cabea de um Homem e
as correspondentes formas geomtricas que definem
o seu formato.
2.3.1.- A CABEA
A cabea humana tida como um importante elemento no contexto da anatomia artstica, pois
geralmente utilizada como principal unidade de medida para a mensurao das propores humanas, tendo
ao longo dos tempos, variando de quantidade para a altura
total do corpo, mas mantendo-se sempre como importante
ponto de referncia.
Relativamente sua parte ssea, a cabea formada por
duas partes principais: o crnio e a face, composto por um
total de vinte ossos (8 no crnio e 12 no rosto). O crnio o
que confere o formato oval da cabea. O rosto , ao nvel
formal mais complexo que o crnio, dividido geralmente por
trs andares sendo que cada um contm os principais elementos do rosto: no primeiro andar encontra-se a
boca, no segundo, o nariz e no terceiro os olhos. A largura do rosto equivalente medida de cinco olhos, e
o tamanho da orelha vai desde a linha da sobrancelha at ponta do nariz.
Quando o rosto se apresenta em escoro, o nariz aquele que sempre visto, independentemente da
inclinao em que este se encontre. A linha das sobrancelhas, no de forma to evidente quanto o nariz,
tambm geralmente vista nas diferentes inclinaes da cabea. Quanto a boca, este j aparece de forma
mais discreta nas representaes em que a cabea vista em perspectiva, e as bochechas tambm
conferem algum volume em determinadas posies.
6- Daniele Barbaro, estudos de uma cabea vista em escoro
24
7- Leonardo da Vinci, Desenhos Anatmicos do
Brao
2.3.2.- OS MEMBROS SUPERIORES
Os membros superiores so constitudos por 3 partes: brao,
antebrao e mo. O brao constitudo por um nico osso, o mero,
que ao encaixar na cavidade glenide da escpula formam a
proeminncia do ombro que acentua-se com a sobreposio do
msculo deltide, formando uma massa que facilmente vista,
mesmo quando o brao se encontra em escoro. O bcepe o
msculo mais evidente da parte de cima do brao quando o mesmo
visto em perspectiva, assim como o trcepe forma o principal volume
da parte de baixo do brao.
O encaixe formado pelo osso do brao com os ossos do antebrao forma o cotovelo. Este, enquanto uma
articulao do membro superior, determina a movimentao do antebrao em relao ao brao, que
posicionado em determinado ngulo, o alto formado pelo encaixe pode tornar-se facilmente visvel numa
posio de escoro.
No antebrao, o seu formato conferido pelo conjunto de 13 msculos, que se alteram consoante a
posio dos ossos que cobrem: o rdio e o cbito (ou ulna). Quando o antebrao est em posio de
supinao, ou seja, com a mo virada para cima, a sua superfcie encontra-se relativamente lisa, sem
grandes relevos, enquanto que na posio de pronao, quando a mo se encontra virada para baixo, devido
a rotao do brao sobre seu prprio eixo, o cruzamento deste com o cbito forma um alto, que se torna
evidente quando o brao est apontado para o observador.
Relativamente mo, o que ser de principal interesse para a sua representao
sero os dedos e, sobretudo, a articulao de suas falanges, que destacam-se de
forma notvel nas mais diferentes posies, assim como definem o posicionamento
das diferentes partes do dedo.
8- Burne Horgart,
Representao da mo
vista em profundidade
25
10- Autor, Ttulo e Data Desconhecidos
9- Louise Gordon, Representao de
um Corpo e de suas estruturas vista
em escoro, 2004
2.3.3.- TRONCO
No tronco, a estrutura que poder conferir as principais formas na vista em
escoro, ser a da coluna vertebral e sua caixa torcica. Na vista de costas, o
conjunto articulado das 33 vrtebras forma uma curvatura proeminente, que
se pode notar numa figura vista de perfil. No escoro, esta curvatura
tambm bastante evidente, geralmente definida pela linha que divide o meio
das costas, que por sua vez formada por dois msculos: o trapzio e o
msculo latssimo do dorso. Na parte da frente do tronco, o volume mais
evidente formado pela caixa torcica, cuja curvatura dos 12 pares de
costelas, confere a esta um formato oval. Este formato torna-se ligeiramente
mais planificado pelos msculos da parte da frente do tronco, como o Grande
Peitoral, e o Grande Recto do Abdmen, cuja diviso de seus msculos
pares, formam a linha mdia da parte frontal do tronco.
A coluna forma a estrutura que faz a conexo com a cabea, a caixa torcica e a plvis que so as trs
maiores massas do corpo humano, conferindo formas salientes, com relevante impacto na representao da
figura humana, pois independentemente da posio em escoro que a figura aparea, uma (ou at mesmo
todas) dessas massas ser salientada.
Na parte mais acima do peito, nota-se as salincias marcadas pelas clavculas e a depresso formada por
estas juntamente com o msculo do pescoo, o esternocleidomastideo, que torna-se mais ou menos
profundo consoante a posio em que o pescoo se encontre. Estes aparecem apenas como marcas que
podem ser vistas em determinadas posies de escoro. Na parte das costas, so as omoplatas que
aparecem enquanto marcas de referncia, que alteram
significativamente a parte de cima das costas, consoante a posio em
que se encontram.
Lateralmente, o tronco definido pelo msculo Grande Oblquo, que
aparece com uma curvatura mais sinuosa nas mulheres
comparativamente do homem. Entre este msculo e o recto do
Abdmen, encontra-se o Grande Dentado, que aparece de forma mais
evidente quando o indivduo estica os braos, ou quando o mesmo est
deitado (sendo esta uma das posies mais comuns quando se
pretende representar um corpo em escoro).
26
2.3.4.- ZONA PLVICA
A plvis, como j foi mencionada, forma a terceira
grande massa da estrutura corporal. Esta zona ssea
mais larga nas mulheres que nos homens, salientando,
deste modo, a representao dos quadris nas figuras
femininas, onde a curvatura que esta faz com a cintura
parece de forma mais evidente em comparao com a
figura masculina.
Numa posio da figura em p, a sua inclinao pode servir como eixo direccional definida pela posio
das pernas. A visualizao deste eixo pode conferir diferentes inclinaes consoante o ponto de vista do
observador em relao modelo.
O formato deste osso salienta-se nas mais diversas inclinaes que que o tronco faa em relao ao
quadril. Na inclinao do tronco para os lados ou para trs, a sua espinha ilaca antero-posterior faz-se notar
de forma evidente, assim como tambm acontece numa figura deitada de barriga para cima. Quando o tronco
inclina-se para frente, as suas projeces fazem-se notar na parte detrs atravs das covas que formam no
acompanhamento da base da coluna vertebral.
A parte de trs da zona plvica substancialmente salientado, como duas grandes massas, devido a
composio de dois msculos: o Grande e Mdio Glteo (sendo o primeiro o mais voluptuoso), e
lateralmente, o Tensor da Fscia Lata que define o seu contorno na vista frontal e de trs de uma figura.
Estes msculos aparecem de forma saliente numa figura posicionada em escoro.
11- Osso plvico
12- Juan Herrera, Desenho de um corpo em escoro, Data desconhecida
27
13- Louise Gordon, Representao de
uma composio ssea da perna, 2004
2.3.5.- OS MEMBROS INFERIORES
Os membros inferiores, assim como os superiores, so tambm constitudos
por 3 partes: a coxa, a canela e o p. A coxa constituda por um nico osso, o
fmur, o maior e mais largo osso do corpo humano. A sua extremidade superior
apresenta uma cabea arredondada que encaixa na cavidade plvica oca. Na
ligao cabea do fmur, encontra-se outra protuberncia, igualmente
arredondada, denominada de Grande Trocnter, formando uma protuberncia
na coxa, ligeiramente abaixo da anca, que marca a parte mais larga da coxa.
Em grande parte das pessoas, forma-se depresso entre o alto formado pelo
Grande Trocnter e a parte mais larga da crista ilaca, (sobretudo quando os
msculos desta rea se contraem), porm, esta depresso s se nota quando a
figura est de p.
Onde a extremidade inferior do fmur (formada pelo epicndilo lateral e
medial) encaixa com o osso principal da canela (tbia), forma-se a articulao do
joelho. Esta articulao, assim como o cotovelo e os ns dos dedos, formam
uma protuberncia que podem servir de valiosas marcas de referncia, assim
como a partir destas que, numa representao em escoro, define o eixo
direccional da parte do membro que se encontra mais avanada.
A canela por sua vez, composta por dois ossos: a Tbia, que, juntamente com o msculo Tibial Anterior,
so os que definem o contorno da parte da frente da canela, sobretudo quando vista de frente, e o alto
formado pelo seu malolo interno da extremidade inferior, d forma ao
tornozelo da parte de dentro da perna; e o Pernio, um osso mais fino,
cujo malolo externo da sua extremidade inferior, do forma ao tornozelo
na parte exterior da perna.
A forma da perna conferida por um conjunto de diversos msculos,
porm apenas alguns se notaro com mais destaque na superfcie,
sobretudo quando visto em escoro. Na parte da frente da coxa, os
principais msculos que se faro notar so o Vasto Externo, o Vasto
Interno e o Recto Anterior, e na parte de trs sero o msculo Bceps
crural da coxa e o semitendinoso, cuja juno formam o V invertido
14- Burne Horgart,
Repesentao dos
membros inferiores em
diferentes posies de
escoro, 1958
28
15- Jean Cousin, Representao
de um p visto de baixo,
Gravura, 1795
ligeiramente acima da dobra formada pela articulao com a parte debaixo da perna.
Na canela, o msculo que melhor se destaca o da parte de trs, o Gastrocnmio, tambm conhecido por
Gmeos, que forma a principal massa da canela, fazendo-se notar lateralmente, mesmo quando visto de
frente. No meio da diviso do msculo Gastrocnmio encontra-se ligado o tendo de Aquiles, que aparece
como uma fina banda que vai desde a parte de cima do tornozelo at abaixo do ligamento dos calcanhares.
O p uma estrutura que semelhana da mo se altera no formato e
dimenso dos elementos que os constituem. O conjunto formado pelos ossos do
Tarso e Metatarso, juntamente com os pequenos e tendes, formam na parte de
cima do p, um alto que aparece de forma evidente mesmo em escoro. Quando
visto de topo, as principais formas que se destacam so as das almofadas
salientes no denominado peito do p ou sola, assim como o alto arredondado
formado pelo calcanhar.
29
16- Juan Valverde de Amusco,
Anatomia do Corpo Humano,
Gravura, 1560
3 A FORMA DO CORPO E SUAS PROPORES
Para alm do conhecimento anatmico e das principais formas e volumes que compem o corpo humano,
o artista deve ter tambm noo das dimenses, e saber relacionar o tamanho das diferentes partes do
corpo, ou seja, da sua proporo. A noo da proporo servir de auxlio quando o artista pretender
desenhar uma figura em escoro, e deste modo, no represent-la de forma desproporcional. O
conhecimento apenas das formas e volumes, pode at servir na representao isolada de um membro,
porm, ao articular com outro membro, ou a representao da figura toda, a desproporcionalidade ir conferir
uma estranheza ainda maior a figura que j no se encontra numa posio comum.
Neste sentido, muitos foram os artistas que se concentraram em evidenciar toda a arquitectura ssea e
estrutura muscular para garantir, no resultado final, um corpo bem construdo, assim como, uma
funcionalidade possvel e realista entre os membros e as suas articulaes. Leonardo, acerca desta questo
afirmava que Nem por isto digo, que se devem criar figuras como se por baixo no existissem ossos,
msculos e articulaes; se no que considere que sobre esta tnica existem quatro tnicas que as cobrem,
que so a ctis, ou cutcula, a pele, a dipe, a grossura, a membrana carnuda, e apontar as partes orgnicas
do corpo humano com aquela moderao e graa total, que o mostra o natural mais perfeito e corrigido,
segundo pede a aco. 36 A captao e conhecimento dos principais componentes e estruturao do corpo,
torna mais fcil a visualizao e compreenso deste quando desenhamos a partir de um modelo. Tendo
essencialmente em conta a disposio das principais massas e volumes que constituem um corpo, o artista
que pretender representar uma figura em escoro, ter uma maior facilidade
em compor as formas mais acertadamente.
O corpo humano uma forma tridimensional, e recordando a frmula da
teoria de Gestalt, trata-se da soma da massa, do volume e da forma. A
massa todo o peso ou densidade do corpo, enquanto o volume se refere
ao tamanho total deste corpo e o espao quantitativo tridimensional que
este ocupa. A forma , de entre os trs factores da frmula, aquela que
mais interessa ao artista, pois trata-se da configurao tridimensional do
corpo que delineia espacialmente os limites deste. Daquilo que os olhos
conseguem observar e analisar perante a forma com que o artista consiga
36
MOLINA, Juan Jos Gmez, Las Lecciones del Dibujo, 1995, p. 183
30
traduzir para o papel (ou qualquer outro suporte). Contudo o desenho nunca nos d a forma na sua
totalidade, pois representa num nico ponto de vista, por mais bem que sejam representadas as sombras e a
profundidade.37 As formas tero sua limitao tambm na medida em que iro aparecer de forma
significativamente alteradas quando representadas em escoro, e quanto mais de topo elas estiverem, mais
distorcidas se encontraro. Deste modo, o elemento que mais interessar ao artista ser o volume, pois estes
sero os que iro conferir as principais formas das respectivas partes do corpo vista em profundidade.
Para alm da forma, quando pensamos na representao do corpo humano tambm devemos ter em conta
as suas prprias propores. A forma do corpo dada pela composio e o modo como os msculos da
superfcie se articulam sobre a estrutura ssea, sendo que a proporo trata dos tamanhos destas e da
relao que estabelecem entre as diferentes partes, e tambm com o todo em geral. Tanto a forma como a
proporo, no que diz respeito a representao podem ser variveis, e dependem de um ponto de vista - um
objecto que tem um determinado formato visto de frente, pode alterar-se quando visto numa posio ou
ngulo diferente. Sendo o corpo humano composto por uma riqussima variedade de formas, possvel que
apaream mltiplas e variadas novas formas consoante a disposio em que o corpo se encontre no espao,
sobretudo quando visto de topo (ou em profundidade).
Por sua vez, entende-se por teoria das propores um sistema que estabelece relaes matemticas entre
as diferentes partes de um corpo, neste caso especfico, o corpo humano. As relaes matemticas
expressam-se pelas divises das partes de um todo, como tambm pela multiplicao de um todo. O termo
proporo vem do latim, proportionem, que significa segundo a parte, ou seja, uma relao enquanto
magnitude, quantidade ou grau de uma coisa em respeito outra ou de uma parte com o todo!38, deste
modo, a proporo trata-se, de uma comparao entre elementos semelhantes, de medidas de partes entre si
e das mesmas com o todo, uma relao que se conhece matematicamente como razo de factores.39
Panofsky descreve a teoria das propores como um sistema de que estabelece relaes matemticas
entre os distintos membros de um ser vivo, em particular dos seres humanos, na medida em que estes seres
se consideram como objecto de uma representao artstica.40 Essas mensuraes matemticas podem,
assim como o formato, sofrer alteraes na medida em que a posio em que o modelo se encontre numa
posio em que distora as mesmas formas e dimenses. Neste sentido, as propores objectivas distorcem
na medida em que seu formato e dimenso das diferentes partes do corpo (ou do seu todo) encontram-se
alterados.
37
WAYNE, Enstice; MELODY, Peters, Drawing: Space, Form and Expression, 1990, p. 120-121 38
CLIMENT, Carlos Plasencia; LANCE, Manuel Martnez, Las Proporciones Humanas y los Cnones Artsticos,2007, p. 17 39
Id., p. 15 40
PANOFSKY, Erwin, El Significado en las Artes Visuales, p. 78
31
Entende-se por propores objectivas todas aquelas cujas medidas surgem na sua dimenso real e
absoluta, passveis de serem mensuradas na sua totalidade. Neste sentido, aparecem tambm as propores
tcnicas, que surgem na medida que as formas, por algum motivo, presenciam as suas dimenses alteradas
(seja pela posio em que as figuras se encontrem, pelo movimento, ou ponto de vista do observador). Estas
propores, definidas por Panofsky, devem ser consideravelmente tidas em conta, na medida que, sendo o
corpo um composto orgnico de formas, cada movimento pode alterar as dimenses dos membros que se
movem, assim como as restantes partes. Deste modo, os artistas que pretenderem representar uma figura em
escoro, devem ter em conta essas propores, quando observa e tenta compreender o corpo que tem a
frente, de modo a represent-lo de maneira a que o observador, ao visualizar a obra, compreenda da mesma
forma a representao de um corpo em escoro, independentemente do quo distantes estejam das
propores objectivamente correctas.41
A figura humana foi sem dvida, o tema mais representado na histria da arte. Desde a pr-histria que o
homem v no corpo humano um interesse de carcter tanto visual, como simblico para atingir a sua forma
de expresso artstica. Nos primrdios, o corpo humano era representado de forma intuitiva e dedutiva (com
excepo da Antiguidade Clssica), elaborado apenas de modo a que o observador reconhecesse uma
figura, sem grande estranheza. Mas a busca pela representao do corpo com uma certa fidelidade em
relao ao natural levou a que os artistas criassem e estabelecessem regras que auxiliassem a aproximao
da realidade, surgindo deste modo o cnone da proporo humana.
O estudo das propores humanas surgiu, deste modo, no segmento do interesse pela norma ou pelo ideal
de beleza, fazendo com que ao longo dos tempos, os artistas procurassem uma tcnica que melhor os
ajudasse a atingir os seus objectivos. A teoria das propores sofreu diversas alteraes ao longo dos
perodos artsticos, assim como Panofsky defendia que a Histria da teoria das propores humanas
percorre como um espelho da histria dos estilos.42 Neste sentido, surge a definio do termo cnone, que
significa regra ou percepto, que se trata de uma norma concreta que estabelece as propores ideais de um
corpo humano para a sua representao artstica43, ou como o escultor Francs Eugene Guillaume descreve
enquanto um sistema de medidas tal que se pode deduzir das dimenses de uma parte, as dimenses do
total, e das dimenses do total, se possa conhecer a da menor de suas partes.44
41
PANOFSKY, Erwin, El Significado en las Artes Visuales, p. 79 42
PANOFSKY, Erwin, Le Codex Huygens: et la Thorie de lArt de Lonard de Vinci, 1996, p. 72 43
CLIMENT, Carlos Plasencia; LANCE, Manuel Martnez, Las Proporciones Humanas y los Cnones Artsticos,2007, p. 18 44
Cit. MOREAUX, Arnould. Anatoma artstica del hombre, 1988, p. 372
32
17- Leonardo Da Vinci, O Homem de
Vitrvio, Pena, tinta e aguarela sobre papel,
34.5 x 24.5cm, 1492
Segundo Vitrvio e Plnio, os gregos foram os primeiros a medir as propores,45 sendo os mesmos
tambm, atravs dos estudos de Policleto, os primeiros a desenvolverem o tema da Antropometria. Para os
artistas Clssicos, a utilizao de uma teoria das propores objectivas s deveria ser levada em conta, se
esta oferecesse a liberdade de fazer as alteraes nas medidas das partes e das suas combinaes
consoante a necessidade de cada caso, ou seja, que permitisse as representaes com um certo dinamismo
e movimento passveis a serem realizados pelo corpo humano. A cultura antropomtrica que deu origem
caracterizao do homem como centro e unidade de medida do universo, remonta ao perodo Clssico.
Protgoras no seu escrito Sobre a Verdade, disse que o homem a medida de todas as coisas, esta
afirmao foi levada cabo em perodos posteriores, voltando a ter um relevante destaque com os estudos
de Le Corbusier. Disto isto, os artistas clssicos iniciaram uma etapa de procura da Beleza e da Verdade
atravs de uma idealizao simblica da representao do corpo humano. Nesse mesmo sentido, Plato,
relativamente s artes em geral (artes plsticas, poesia, msica, dana, etc.), defendia que a beleza no
existe sem medidas.46
Mais tarde, Vitrvio47, que foi o nico deste perodo a deixar-nos
uma documentao acerca dos seus estudos sobre a proporo
humana,48 com dados efectivos e numricos, baseou seus estudos na
comparao entre composio de um corpo humano com um edifcio
arquitectnico. As medidas mais evidentes visveis nos desenhos
criados para estes estudos, so quando Vitrvio d ao homem uma
altura total de oito cabeas e iguala esta medida dos braos abertos
em cruz. O homem posicionado com as pernas juntas e os braos na
horizontal, encaixa-se num quadrado, e quando as pernas esto
abertas e os braos levantados, encontra-se num crculo. Desde a sua
concepo, que esta representao tornou-se emblemtica, vindo a ser
utilizada em grande parte dos textos concebidos acerca da proporo
humana. O homem, que geralmente representado nu, torna-se no
ponto de partida em muitos tratados e teorias artsticas, e as imagens utilizadas para ilustrar determinadas
teorias, chegam mesmo a transformar-se em smbolo de valor universal. No sentido desta afirmao, o pintor
Antnio Lopez escreve que O nu o ser humano oferecido de maneira completa. um tema que ser
45
Esta proporcion, segun Vitrubio, y Plinio, fue primero considerada, y medida por los Griegos, VILLAFAE, Juan de Arphe y, Varia Commensuracion para la Escultura y Arquitectura, Libro segundo, 1763, p. 94 46
MOLINA, Juan Jos Gmez, Las Lecciones del Dibujo, 1995, p. 218 47
Arquitecto e engenheiro romano do sc I a.C., baseou sua obra De Architectura em referncias literrias gregas, onde define o belo como uma harmonia adequada que surge entre as partes da obra e a correspondncia dessas partes com o todo. 48
PANOFSKY, Erwin, El Significado en las Artes Visuales, p. 87
33
eterno, enquanto ao homem lhe interesse os demais homens e necessite da imagem para expressar-se49 O
conhecimento do nu apresentado ao artista na sua presena ento, um dos mais valiosos estudos que
este pode ter, para conseguir a representao de um homem bem figurado.
A arte grega teve em conta o escoro, o movimento orgnico e os ajustes eurtmicos50, contudo, grande
parte das obras Clssicas de que temos conhecimento e so essencialmente estudadas, so esculturas, que
por mais dinmica e variada sejam as posies em que os corpos se encontrem, estes no esto
relacionados com a questo do escoro que, como j foi mencionado, s possvel numa representao
bidimensional.
Por outro lado a arte egpcia deixou-nos vrias representaes bidimensionais da figura humana, contudo,
os artistas deste perodo preocuparam-se nica e exclusivamente com as propores objectivas, ignorando e
evitando representar uma figura cujas partes apaream alteradas pelas propores tcnicas, sendo estas
representadas de frente e de perfil (consoante a posio que se permita ver as suas partes na totalidade). As
figuras so representadas sempre de forma rgida, e at seus movimentos so relativamente mecnicos, de
modo a no terem que alterar as suas medidas objectivas. Os egpcios foram os primeiros a resolver a
questo das propores aplicadas a representao do corpo humano de forma racional e objectiva51,
desenvolvendo um sistema de medies utilizando mdulos52 como unidade de medida, formando as
conhecidas quadrculas egpcias. Porm, apesar de ter tido uma significante contribuio para o
desenvolvimento dos cnones de propores, o sistema egpcio era reduzido uma frmula fixa, onde a
representao do escoro era totalmente rejeitada.
O sistema de propores da arte Medieval, apesar de ter uma significante influncia Clssica, era bastante
semelhante do sistema Egpcio. As figuras representadas apresentavam um aspecto planificado e sem
volume, as dimenses de suas partes eram sempre objectivas, assim como seus movimentos eram tambm
mecnicos, no apresentando, deste modo, nenhuma parte vista em profundidade.
Foi na Itlia, no perodo do Renascimento que estudo da teoria das propores foi levado ao extremo,
tendo por esta uma venerao sem limites, atingindo um prestgio inslito. Considerados os herdeiros da
Antiguidade, os renascentistas viam na teoria das propores um fundamento ideal de Beleza, como um bem
valioso ao seu pensamento artstico, pois estas satisfaziam as vrias exigncias da poca por ser matemtica
e especulativa ao mesmo tempo. Os artistas serviram-se da geometria para desenvolverem esquemas que
49
MOLINA, Juan Jos Gmez, Las Lecciones del Dibujo, 1995, p. 217 50
CLIMENT, Carlos Plasencia; LANCE, Manuel Martnez, Las Proporciones Humanas y los Cnones Artsticos,2007, p.118 51
Id, p. 70 52
Refere-se a uma unidade de medida que se toma para estabelecer as relaes de proporo, Classicamente diz-se que aquela parte que se utiliza como medida das partes. Id, p. 19
34
assegurassem resultados mais precisos, sendo, por isso, aceite como um fundamento de prestgio na
construo de uma cincia da representao.
Deu-se ento com o Renascimento o aparecimento, no apenas de um novo perodo artstico, mas
tambm de um novo pensamento, um renascer de princpios que j haviam sido concretizados na
Antiguidade, mas profundamente estudados, postos em causa e melhorados medida que fossem
importantes para o avano das suas teorias. Neste sentido, muitos artistas e tericos puseram em causa os
dados deixados por Vitrvio, tirando medidas a esttuas clssicas, e medida que o faziam comearam a
sentir necessidade de fazer uma certa distino dentro do cnone ideal. De entre os mais variados artistas
que se destacaram neste perodo, os trs que mais notveis foram, sem dvida, Alberti Battista, Leonardo da
Vinci e o alemo Albrecht Drer.
Alberti e Leonardo foram os primeiros a levarem os estudos de Vitrvio a um nvel mais avanado. Estes
dois artistas tentaram recuperar o princpio antropomtrico e esttico da arte clssica, ao mesmo tempo que
tentaram exaltar a teoria das propores sobre uma nova base cientfica, matemtica e emprica, onde
tentaram identificar o belo com o natural. Insatisfeitos com os dados insuficientes de Vitrvio e seus prprios
antecedentes italianos, menosprezaram a tradio em benefcio de uma experincia baseada na observao
atenta da natureza. Encararam a natureza de forma inovadora e abordaram o corpo humano atravs do
compasso e da rgua, corpos escolhidos entre um variado nmero de modelos, seleccionados a partir da sua
prpria opinio, mas tambm com a ajuda de importantes conselheiros, que aconselhavam aqueles
considerados como os mais belos, pois j Alberti afirmou em seu tratado, De Pictura, que nunca se
encontra num s sujeito todas as perfeies da beleza, seno que esto repartidas em todos.53 Seguindo a
mesma linha de pensamento, Leonardo disse que a coisa mais maravilhosa e louvvel das obras da
natureza consiste em que jamais se parece exactamente uma pessoa a outra.54, A partir da escolha de
diversos modelos, tinham como inteno a descoberta do belo com a finalidade de definir o normal, e ao
invs de se limitarem a sumarizar as dimenses na medida em que eram visveis, decidiram aproximar-se do
ideal de uma antropometria puramente cientfica conferindo s medidas uma exactido extrema dando maior
enfoque estrutura natural do corpo, tanto em altura, como em profundidade e largura.
Porm, estes dois grandes artistas, considerados modernos discordavam em pontos muito importantes.
Alberti Battista tentou alcanar a meta comum entre ambos de modo a aperfeioar o mtodo, enquanto Da
Vinci acrescentou, elaborando o material. Estes dividiram o corpo em unidades menores como em ps e
polegadas, conferindo uma grande vantagem quando pretendida uma medio mais detalhada. Apesar de,
assim como Vitrvio, direccionar seus estudos das propores no sentindo em que esta aquela que produz
53
CLIMENT, Carlos Plasencia; LANCE, Manuel Martnez, Las Proporciones Humanas y los Cnones Artsticos,2007, p. 155 54
ZUVILLAGA, Javier Navarro de, Imgenes de la Perspectiva, 1996, p. 163
35
18- Albretch Drer, Representao de uma cabea humana em
diferentes posies
a beleza sensvel nas artes55, os resultados obtidos por Alberti revelavam-se um pouco pobres, consistindo
numa tabela nica de medidas, que havia sido verificado aps a anlise de um considervel nmero de
pessoas.
J Leonardo levou os seus estudos um nvel mais avanado, pois no considerou o estudo das
propores segundo um rgido esquema tradicional, mas nas variaes que as medidas objectivas adquirem
com os movimentos realizados pelo corpo
humano.56 A partir dos estudos de Da Vinci, a
pesquisa minuciosa da anatomia humana tornou-
se em algo convencional, de tal modo que foram
desenvolvidas maneiras e tcnicas de melhor a
representar. Este, ao invs de apenas apurar o
mtodo de medidas, trabalhou no sentido de
ampliar o campo de observao, trabalhando
sobre as propores humanas. Influenciado pelo
modelo de Vitrvio, recorreu a este com
frequncia, contrastando com os outros tericos
italianos em relao ao mtodo das fraces
comuns, e no rejeita por completo, a diviso
bizantina do corpo em 9 ou 10 cabeas, afirmando
muitas vezes que a distancia xy igual a distncia
vz.57
Drer58 foi ainda mais longe no estudo das
diferentes propores entre os diferentes
indivduos, de forma minuciosa e detalhada, que
exigia uma infinita pacincia. Herdeiro da tradio nrdica, e significativamente influenciado por Leonardo,
Drer partiu de um sistema planimtrico de superfcie (no se compreendendo a princpio, os dados de
Vitrvio). O seu objectivo era determinar a posio, o movimento, os contornos e as propores
simultaneamente. Contudo, seguindo a influncia de Leonardo e Albretch, Drer orientou-se no sentido de
55
CLIMENT, Carlos Plasencia; LANCE, Manuel Martnez, Las Proporciones Humanas y los Cnones Artsticos,2007, p. 156 56
Id, p. 158 57
de x a y smilar a lo spatio che infra v e z, PANOFSKY, Erwin, El Significado en las Artes Visuales, 1983, p. 107 58
Albrecht Drer foi o primeiro terico alemo de origem italiana, com formao nos ateliers tardio-medievais, sendo ainda considerado um grande nome na histria da arte e tambm com grande importncia na contribuio para a evoluo da teoria das propores humanas, tendo escrito quatro livros acerca deste, estudos estes que partiram de um tradio nrdico gtico - MOLINA, Juan Jos Gmez, Mquinas y Herramientas de Dibujo, 2002, p. 108
36
uma cincia puramente antropomtrica, de grande carcter instrutivo, mais do que prtico, utilizando tambm
o mtodo de fraces elaborado pelos mesmos.
Drer superou, deste modo, os seus modelos italianos pela variedade e preciso das suas medies, e
tambm pelos limites autenticamente crticos que soube impor, negando convictamente a existncia de um
nico cnone de beleza ideal. Assim como Leonardo, Drer tencionava mostrar a diversidade dos cnones
possveis, dando-se ao exaustivo trabalho de criar diversos tipos caractersticos que individualmente, cada
um sua maneira, evitavam a pura fealdade, apresentando nos seus livros sobre proporo da figura
humana, um conjunto de 26 sries de propores, incluindo no todo, um estudo de propores infantis,
anormais e grotescos, baseando-se em mtodos estritamente geomtricos pois acreditava que esta no
residia em nenhum indivduo, pois defendia que o tosco e o monstruoso tambm deveria ter um lugar na
arte.59.
Drer tambm tentou enriquecer sua teoria da medio com uma teoria do movimento, e uma teoria da
perspectiva. Assim como fez com as propores, o artista tentou racionalizar os movimentos atravs de um
mtodo geomtrico, assente na utilizao de linhas paralelas e perpendiculares relativamente ao plano de
representao. O outro mtodo utilizado foi a geometrizao da figura, inscrevendo as diferentes partes do
corpo em formas geomtricas, como cubos, paraleleppedos e pirmides (tcnica do block-in). Porm, os
resultados foram algo mecnicos e de pouco proveito, consequncia tambm, da falta de conhecimento
adequado da anatomia e fisiologia humana na altura. De qualquer forma, a sua obra a mais completa e
sistemtica de todas, e os seus livros contm cinco tipos diferentes de figura feminina e masculina, com uma
variao entre sete a dez cabeas.
Assim como a sua obra em geral, a teoria e os estudos de Drer no chegou a estabelecer-se
definitivamente, mas foram levados cabos por muitos artistas posteriormente, influenciando-os de forma
significativa no desenvolvimento das tcnicas de representao do escoro, como o seu contemporneo,
Juan de Arphe y Villafae. Foi deste modo, um artista de grande importncia na Histria da Arte, como
contribuiu de forma marcante para a prtica da representao do escoro.
O interesse pelas propores humanas , portanto, algo to antigo como a prpria arte, contudo a sua
teoria surgiu no limiar da mentalidade renascentista, na medida em que estes procuravam uma soluo para
a questo do posicionamento de uma figura no espao, com base na teoria da perspectiva construtiva. Os
artistas comeam a servir-se de configuraes mtricas que permitem desenhar linhas que regulam
59
CLIMENT, Carlos Plasencia; LANCE, Manuel Martnez, Las Proporciones Humanas y los Cnones Artsticos,2007, p. 192
37
espacialmente suas composies, baseados essencialmente em figuras geomtricas. A geometria tornou-se,
deste modo, no Renascimento, numa disciplina essencial para os artistas, tornando-se, de certa forma na
cincia da arte, tendo em conta que neste perodo a arte era entendida como uma destreza prtica que se
adquiria com a experincia, enquanto a cincia era uma capacidade de explicar um procedimento racional,
neste caso, geomtrico, aplicado a cada obra. A geometria foi ento, aceite como um fundamento de prestgio
na construo de uma cincia da representao.
O modelo de Vitrvio, em que o homem se encontra inserido dentro de duas figuras geomtricas,
representando o homo bene figuratus, foi retomado por Leonardo da Vinci em 1490, onde este relaciona as
propores do corpo humano com as duas figuras principais o quadrado equiltero e a circular, sendo esta
ltima considerada smbolo geomtrico da perfeio. Este , provavelmente, o desenho mais conhecido de
Leonardo, e que at hoje vlido como regra para a representao de uma figura humana proporcional.
Panofsky afirmava que A beleza reside na harmonia das partes entre elas e na relao com o todo.60 Neste
sentido, pode-se com este desenho, confirmar que os artistas deste perodo, comearam tambm a
estabelecer relaes entre as diferentes partes do corpo para determinar a medida de outra parte (como por
exemplo, a altura total do corpo igual a medida do tronco com os braos abertos), assim como tambm
comearam a servir-se de outras unidades de medida, como o p, a mo, os polegares, etc., para a
mensurao das partes do corpo, garantindo deste modo, uma maior preciso nos resultados obtidos.
A representao de uma figura feita a partir da intuio e deduo, baseada na comparao entre os
diferentes elementos constituintes tornou-se consequentemente mais fcil de ser realizada para a concepo
de uma forma bem sucedida. Este mtodo aparece como essencial na representao de uma figura humana
em escoro. Se o artista conhecer suficientemente bem o corpo humano e a sua estrutura, conseguir
representar um corpo humano sem que este se torne desproporcional (ou pelo menos com falhas to
pequenas que no sejam perceptveis a olho nu). Este pensamento foi elaborado no sculo XVIII, porm de
forma contraditria, quando o historiador e terico italiano Francesco Milizia escreve: As propores
consistem nas diferentes dimenses dos objectos paralelos com eles mesmos, ou seja, na relao ou
convenincia das partes entre si e com o todo. As propores das Belas-Artes no so propores
matemticas. Milizia defendia neste sentido que se deveria estabelecer um sistema de propores sem uma
rgida e rigorosa regra matemtica, pois esta ia contra todos os interesses da arte.61 Os resultados que se
obtinha atravs deste processo produzia uma impresso de harmonia linear e de equilbrio na desigualdade.
60
PANOFSKY, Erwin, Le Codex Huygens: et la Thorie de lArt de Lonard de Vinci, 1996, p. 72 61
MOLINA, Juan Jos Gmez, Las Lecciones del Dibujo, 1995, p. 251
38
19- Sistema de propores relativamente
Figura Masculina e Feminina
Tratava-se, deste modo, de um princpio harmonizador que assegura a concordncia matemtica entre as
diferentes formas.62
Mais tarde, no sculo XX, o artista Corbusier retomou a questo da geometria na representao da
proporo humana, que defendia que no seria imaginvel um sistema de propores em que no fosse
compreendida a geometria e a teoria dos nmeros. Porm, o artista no deve ver na matemtica mais do que
um instrumento que nos permite compreender melhor o mundo das formas com racionalidade analtica, que
juntamente com a nossa sensibilidade, nos ajude a entrar em conexo com a prpria natureza. A
sobrevalorizao e utilizao exclusiva do sistema matemtico na criao artstica, pode consequentemente
dar origem resultados mecnicos e estreis.63
O sistema matemtico teve os seus altos e baixos na histria da representao e da proporo. Houve
muitos artistas que se questionaram acerca da utilizao do sistema matemtico na concepo de uma obra
artstica, na medida em que este, de certa forma, pudesse entrar em conflito com a sua prpria sensibilidade
intuitiva. Contudo, sendo a matemtica uma linguagem criada pela inteligncia humana para expressar as
relaes que percebemos, garantindo-nos extraordinrios resultados na histria da cincia, no deve entrar,
necessariamente, em conflito com os sentimentos, e desta forma garantir grandes resultados tambm, na
histria da arte.64 Neste sentido, o sistema matemtico serviu para alguns como leis que faziam com que o
artista alcanasse cada vez mais o conceito de Beleza perfeita. Para outros, estas leis eram simplesmente
inteis, pois para estes a proporo era uma questo subjectiva, algo que dependia apenas da intuio, da
sensibilidade e da capacidade do artista.
Tendo como base a grande variao que o cnone de propores
teve ao longo da histria, actualmente chegou-se concluso do que
os artistas do nosso tempo devem ter em conta na concepo de uma
figura: A altura total do corpo deve ter uma medida de 7 cabeas e
meia; Se dividirmos em 4 partes iguais, o primeiro quarto vai desde a
parte mais alta da cabea at a linha dos mamilos, a segunda vai
desta at a linha da anca, situada ligeiramente acima do tringulo da
pbis (encontrando-se nesse ponto, a linha que divide a metade do
corpo), a terceira vai at linha do joelho, e a ltima at base dos
62
CLIMENT, Carlos Plasencia; LANCE, Manuel Martnez, Las Proporciones Humanas y los Cnones Artsticos,2007, p. 258-259 63
Id, p. 16 64
Ibid., p. 15
39
20- proporo da cabea por Wayne Estince e
Leonardo da Vinci
ps; Se abrirmos os braos e esticarmos os dedos, teremos um tamanho equivalente altura total do corpo.
O umbigo pode ser tomado como o ponto mdio de todo o corpo, pois ao traar sobre este uma linha
horizontal e outra vertical, teremos os corpos divididos sua metade nas duas direces.
Em relao proporo da face, para a representao de um retracto, o artista pode fazer duas divises
diferentes: Diviso em duas partes, onde a linha mdia se encontra na linha dos olhos, se medida desde o
topo do crnio at ao queixo; ou diviso da face em 3 andares
iguais, sendo o primeiro a medida do queixo at a ponta do nariz, o
segundo da ponta do nariz at a linha dos olhos, e o terceiro da linha
dos olhos at o fim da testa no incio da raiz do cabelo (o primeiro
andar pode ainda ser dividido novamente em 3 andares: o primeiro
na zona do queixo, o segundo da linha do queixo at a linha mdia
da boca, e o terceiro da linha mdia da boca ponta do nariz).
Estas regras so apenas uma medida geral que no se aplica de forma exacta a todos os indivduos, servindo
apenas para orientar o artista numa representao credvel da sua figura.
Vimos, portanto, que a proporo um sistema de relaes matemticas estabelecidas atravs da diviso
da totalidade em partes semelhantes, fazendo correspondncia dessas partes entre si e das mesmas com o
todo, a partir da multiplicao de uma unidade bsica, uma parte de valor unitrio, ou um mdulo. Estas
formulaes foram conhecidas ao longo da histria da arte como Cnone de Propores.65 Porm, com
excepo dos que pretenderem realizar uma ilustrao cientfica e objectiva do corpo humano, o
conhecimento e utilizao das regras de proporo no tem de ser rigorosamente levado a cabo numa
representao artstica. O artista deve apenas servir-se destes como uma guia para uma representao mais
realista e fiel natureza, e no caso da representao do escoro, o bom conhecimento das propores ir
ajudar a ter noo de se a composio da figura estar proporcional, e que relao entre as suas partes
faam sentindo.
65
CLIMENT, Carlos Plasencia; LANCE, Manuel Martnez, Las Proporciones Humanas y los Cnones Artsticos,2007, p. 17
40
21- Mtodo de Medio feita com o auxlio de um lpis
e de comparao entre diferentes partes do corpo
4 MTODOS E TCNICAS DE DESENHO
O conhecimento anatmico das formas do corpo humano e da sua proporcionalidade garantem que o
artista consiga uma representao com melhores resultados, na medida em que ajuda a compor a
representao do corpo de forma articulada e coerente. Contudo, esses conhecimentos so capacidades
adquiridas anterior ao momento de representar, sendo apenas noes que ajudam a compreender melhor
aquilo que vemos e transport-las para o que representamos. Existem, porm, mtodos que auxiliam no
momento de representar a partir de um modelo, de modo a tornar mais fcil e eficaz a tcnica de desenhar a
partir do natural, assim como a realizao de um desenho de escoro.
A rgida regra conceptualizada do cnone de propores, tem sido cada vez menos utilizada pelos artistas,
que tm tido como base apenas a observao para criar os ajustamentos que entendem necessrios.
Portanto, o mais certo o artista iniciar a sua aprendizagem no desenho do corpo humano, sendo dever dos
tutores/professores encaminh-los no sentido de desenvolverem
truques que os auxiliem. Por exemplo, utilizar um objecto recto e
estreito (no caso mais comum