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 Por Rodrigo Gomes da P aixão, estudante do sexto período de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Cidade: Goiânia, Goiás. Telefone: (62) 3291-1620 O crime choca e a falta de ética, muito mais Na quarta-feira, 15 de setembro, uma catadora de papel foi internada no Hospital de Urgências de Goiânia após ter tórax, rosto e braços queimados por resistir a uma tentativa de estupro. Os três agressores fugiram e até agora não foram identificados pela polícia. Sem dúvida, se trata de mais um caso lamentável de agressão contra a mulher. Estes se propagam como vírus pelas grandes cidades do país. Apesar dos avanços na legislação, com a introdução da Lei Maria da Penha, casos como este evidenciam que a sociedade não muda via decreto. Entretanto, penso que o mais lamentável de tudo foi a postura dos principais veículos de comunicação local, que divulgaram não só o nome como o local onde a mulher atacada se encontra internada, pondo sua vida novamente em risco. A agredida, que não possui família em Goiânia e mora nas ruas da cidade, foi atacada no bairro onde costumava recolher material reciclável para vender. Será que se a agredida possuísse um status social mais elevado seu nome ainda seria divulgado? A ética jornalística parece ser interessante apenas quando não gera processo judicial que prejudique os bolsos do patrão. É vergonhoso a que ponto o sensacionalismo na imprensa local chegou: colocam vítimas de abuso sexual em risco a fim de vender jornal. Esse filão jornalístico, pretensamente “popular”, começou a ser explorado na cena local há cerca de três anos, como o lançamento, por um grande grupo empresarial, de um tablóide que custa 50 centavos (que divulgou o caso com matéria de capa na sexta-feira, 17), que se tornou uma das publicações diárias de maior tiragem do país, sendo agora exportado para outros Estados como “modelo” a ser seguido pelas grandes organizações de mídia privada para que estas possam se salvar da crise que aflige os grandes grupos de comunicação nacional. No início do ano, realizei extensa pesquisa para identificar a atuação da imprensa brasileira conforme o Código de Ética da FENAJ e os Códigos de Ética de outros quatorze países. A partir do resultado, produzi artigo analisando a relação destes com a divulgação do nome do menor (agora maior) de idade acusado de participação no assassinato do menino João Hélio no Rio de Janeiro. Não questiono o crime, bárbaro, mas sim o fato de que a imprensa, conforme fala do próprio juiz da Vara da Infância e da Juventude, Marcius da Costa Ferreira, coloca a vida do rapaz em risco toda vez que relembra o caso. A imprensa impede seu direito constitucional de se reintegrar à sociedade. Durante a pesquisa, descobri que todos os Códigos de Ética são uníssonos na condenação de práticas que invadam a vida alheia de forma arbitrária. O português é o mais explícito em casos como os descritos acima, determinando que “o jornalista não deve identificar, direta ou indiretamente, as vítimas de crimes sexuais e os delinqüentes menores de idade, assim como deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor. Já o espanhol diz que “mencionar o nome de vítimas de crime, assim como a publicação de material que pode contribuir para a identificação da vítima, devem ser evitados”. O americano recomenda precaução ao noticiar crimes de natureza sexual. As cartas deontológicas citadas acima nasceram da bonita luta da categoria pelo direito à liberdade de expressão. Nesse processo histórico, ficou entendido que o direito à livre divulgação de idéias tem como pressuposto deveres a serem seguidos pela categoria. Entretanto, um jornalista que pensa mais no lucro da empresa para a qual trabalha do que no

O crime choca, a falta de ética muito mais

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Matéria escrita para o site Observatório da Imprensa

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5/16/2018 O crime choca, a falta de ética muito mais - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-crime-choca-a-falta-de-etica-muito-mais 1/3

 

Por Rodrigo Gomes da Paixão, estudante do sexto período de Jornalismo da PontifíciaUniversidade Católica de Goiás. Cidade: Goiânia, Goiás. Telefone: (62) 3291-1620

O crime choca e a falta de ética, muito mais

Na quarta-feira, 15 de setembro, uma catadora de papel foi internada no Hospital deUrgências de Goiânia após ter tórax, rosto e braços queimados por resistir a uma tentativa deestupro. Os três agressores fugiram e até agora não foram identificados pela polícia. Semdúvida, se trata de mais um caso lamentável de agressão contra a mulher. Estes se propagamcomo vírus pelas grandes cidades do país. Apesar dos avanços na legislação, com a introduçãoda Lei Maria da Penha, casos como este evidenciam que a sociedade não muda via decreto.

Entretanto, penso que o mais lamentável de tudo foi a postura dos principais veículos decomunicação local, que divulgaram não só o nome como o local onde a mulher atacada seencontra internada, pondo sua vida novamente em risco. A agredida, que não possui família

em Goiânia e mora nas ruas da cidade, foi atacada no bairro onde costumava recolher materialreciclável para vender. Será que se a agredida possuísse um status social mais elevado seunome ainda seria divulgado? A ética jornalística parece ser interessante apenas quando nãogera processo judicial que prejudique os bolsos do patrão.

É vergonhoso a que ponto o sensacionalismo na imprensa local chegou: colocam vítimas deabuso sexual em risco a fim de vender jornal. Esse filão jornalístico, pretensamente “popular”,

começou a ser explorado na cena local há cerca de três anos, como o lançamento, por umgrande grupo empresarial, de um tablóide que custa 50 centavos (que divulgou o caso commatéria de capa na sexta-feira, 17), que se tornou uma das publicações diárias de maiortiragem do país, sendo agora exportado para outros Estados como “modelo” a ser seguido

pelas grandes organizações de mídia privada para que estas possam se salvar da crise queaflige os grandes grupos de comunicação nacional.

No início do ano, realizei extensa pesquisa para identificar a atuação da imprensa brasileiraconforme o Código de Ética da FENAJ e os Códigos de Ética de outros quatorze países. A partirdo resultado, produzi artigo analisando a relação destes com a divulgação do nome do menor(agora maior) de idade acusado de participação no assassinato do menino João Hélio no Rio deJaneiro. Não questiono o crime, bárbaro, mas sim o fato de que a imprensa, conforme fala dopróprio juiz da Vara da Infância e da Juventude, Marcius da Costa Ferreira, coloca a vida dorapaz em risco toda vez que relembra o caso. A imprensa impede seu direito constitucional dese reintegrar à sociedade.

Durante a pesquisa, descobri que todos os Códigos de Ética são uníssonos na condenação depráticas que invadam a vida alheia de forma arbitrária. O português é o mais explícito emcasos como os descritos acima, determinando que “o jornalista não deve identificar, direta ouindiretamente, as vítimas de crimes sexuais e os delinqüentes menores de idade, assim comodeve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor”. Já o espanhol diz que“mencionar o nome de vítimas de crime, assim como a publicação de material que pode

contribuir para a identificação da vítima, devem ser evitados”. O americano recomendaprecaução ao noticiar crimes de natureza sexual.

As cartas deontológicas citadas acima nasceram da bonita luta da categoria pelo direito à

liberdade de expressão. Nesse processo histórico, ficou entendido que o direito à livredivulgação de idéias tem como pressuposto deveres a serem seguidos pela categoria.Entretanto, um jornalista que pensa mais no lucro da empresa para a qual trabalha do que no

5/16/2018 O crime choca, a falta de ética muito mais - slidepdf.com

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bem-estar dos personagens que retrata, joga toda essa luta na lata de lixo. Isso sem falar quedão munição para ações arbitrárias como a do governo venezuelano de fechar um jornal poralto nível de sensacionalismo. Uma imprensa que não cumpre seu papel social de zelar pelosdireitos humanos, não tem credibilidade para se defender de arbitrariedades – e muito menosdenunciá-las. Nesse cenário, fica cada dia mais difícil defender a necessidade de uma categoria

unida e forte. Qual a necessidade de assistir aulas de Ética na faculdade para se tornar jornalista? Nada daquilo parece importar no momento de produção das matérias mesmo.

Não me admira que as empresas jornalísticas tenham reagido como se a proposta do GovernoFederal, contida no Programa Nacional de Direitos Humanos III, de criar ranking dos veículosde acordo com violações aos direitos básicos dos cidadãos brasileiros fosse “censura”. Aliás,

esta vem sendo a posição da mídia privada em relação a qualquer tentativa de tentar fazê-losrespeitar os direitos básicos dos cidadãos brasileiros. Sempre que possível, ressuscitam ofantasma da censura imposta pelo regime de exceção que eles mesmos apoiaram.

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