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O CONVIVIUM RELIGIOSUM DE ERASMO, NUMA EDIÇÃO COIMBRÃ DOS COLÓQUIOS Jean Delumeau, ao abrir de La Civilisation de la Renaissance, escreve que a nossa compreensão do período que vai de Filipe o Belo a Henrique IV — digamos, do séc. XIV a finais do XVI — seria imensa- mente facilitada se conseguíssemos abolir dos livros de história duas designações: «Idade Média» e «Renascimento». Por isso, deixemos discussões sobre o que se há-de entender por este «renascer» ou por «humanismo», termo que tão intimamente acompanha aquele. Fixemo-nos numa figura que marcou, indelevelmente, a vida intelectual e religiosa europeia, cuja influência se estendeu ao longo de cerca de três centúrias, paralelamente às vicissitudes da história religiosa; uma figura que, defendendo uma interioridade da vida reli- giosa fundada numa «ciência» vastamente erudita, foi esquecida pelo século da exploração da interioridade, e do romantismo. Visto como espécie de precursor de Voltaire, só mais recentemente a erudição tem tentado voltar a dar a Desidério Erasmo de Roterdão, pois dele se trata, o significado intelectual e cultural que, graças a uma investigação mais apurada do Renascimento e do Humanismo, parece legítimo encontrar na sua obra. Tende, assim, a desaparecer a figura de Erasmo como livre pensador, irónico raciocinador perante o dogmatismo religioso da instituição romana, conhecido quase só pelas obras mais 'fáceis' e didácticas (1). Nota prévia: A edição dos Colloquia Erasmi ad me/iorem mentem reitocata feita em Coimbra pelo sevilhano Juan Fernandez está numerada na parte do texto dos colóquios: o Convivium religiosum estende-se da fl. 70 até à fl. 97 r. As refe- rências ao texto erasmiano fazem-se pela edição Opera Omnia, por Jean le Clerc, em Leiden, T. I, 672 C-689 E. (1) Um exemplo pode estar na utilidade moral que se encontrava no Matri- moniam Christianum. A edição parisiense de 1725, Le Mariage Chrétien ou Traité

O DE ERASMO, NUMA EDIÇÃO COIMBRÃ DOS … · de 1400 por Pier Paolo Vergerio no De ingenuis moribus. Perante o sucesso editorial, Erasmo foi aumentando a obra, acentuando-lhe cada

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O CONVIVIUM RELIGIOSUM DE ERASMO,

NUMA EDIÇÃO COIMBRÃ DOS COLÓQUIOS

Jean Delumeau, ao abrir de La Civilisation de la Renaissance, escreve que a nossa compreensão do período que vai de Filipe o Belo a Henrique IV — digamos, do séc. XIV a finais do XVI — seria imensa­mente facilitada se conseguíssemos abolir dos livros de história duas designações: «Idade Média» e «Renascimento».

Por isso, deixemos discussões sobre o que se há-de entender por este «renascer» ou por «humanismo», termo que tão intimamente acompanha aquele. Fixemo-nos numa figura que marcou, indelevelmente, a vida intelectual e religiosa europeia, cuja influência se estendeu ao longo de cerca de três centúrias, paralelamente às vicissitudes da história religiosa; uma figura que, defendendo uma interioridade da vida reli­giosa fundada numa «ciência» vastamente erudita, foi esquecida pelo século da exploração da interioridade, e do romantismo. Visto como espécie de precursor de Voltaire, só mais recentemente a erudição tem tentado voltar a dar a Desidério Erasmo de Roterdão, pois dele se trata, o significado intelectual e cultural que, graças a uma investigação mais apurada do Renascimento e do Humanismo, parece legítimo encontrar na sua obra.

Tende, assim, a desaparecer a figura de Erasmo como livre pensador, irónico raciocinador perante o dogmatismo religioso da instituição romana, conhecido quase só pelas obras mais 'fáceis' e didácticas (1).

Nota prévia: A edição dos Colloquia Erasmi ad me/iorem mentem reitocata feita em Coimbra pelo sevilhano Juan Fernandez está numerada na parte do texto dos colóquios: o Convivium religiosum estende-se da fl. 70 até à fl. 97 r. As refe­rências ao texto erasmiano fazem-se pela edição Opera Omnia, por Jean le Clerc, em Leiden, T. I, 672 C-689 E.

(1) Um exemplo pode estar na utilidade moral que se encontrava no Matri­moniam Christianum. — A edição parisiense de 1725, Le Mariage Chrétien ou Traité

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O grande historiador da mentalidade c religiosidade quinhentistas marcadas pela doutrinação de Erasmo que é Marcel Bataillon (2), no "Colloquium ErasmianunV que de 26 a 29 de Outubro de 1967 se realizou em Mons para celebrar o V centenário do nascimento do humanista, acentuando a importância do «descobrimento moderno» do autor do Enchiridion Miliíis Christiani (as edições do casal Allen, de Garrod. a edição crítica que se decidiu fazer em 1961 em Roterdão, a obra de Renaudet) frisava que Erasmo já não é o satírico precursor de Voltaire (3), mas o homem da Paraciesis ad Christianae Philo-sophiae Studium, o homem de um século «qui voulait croire», como dizia Lucien Febvre. Esta a «mensagem» de Erasmo, que o mesmo Bataillon, em 1968, voltaria a referir em «Erasmo europeo?» (4), à luz de uma interpretação que se baseia, necessariamente, na leitura dos textos.

Cremos poder aproveitar esta perspectiva para tratarmos de um dos escritos mais famosos de Erasmo, os Colloquia, a propósito de uma edição aparecida em Coimbra em meados do século XVI e que não passou desapercebida aos investigadores desta época portuguesa desde

dans lequel on apprend à ceux qui y sont déjà engagez; les règles qu'ils doivent suivre pour s'y comporter d'une manière Chrétienne, é precedida de um «avertissement» onde se justifica o recurso à obra de Erasmo para acorrer às desordens morais do tempo presente, como, cm relação às do seu, fizera o holandês. Mas é de anotar que os tradutores, para não «ennuer le lecteur», cortaram e matizaram aqui e acolá certas irreverências do latim erasmiano. Entre nós, na segunda metade do see. XVIII, é curioso o que se dá com o texto de O Reino da Estupidez: numa versão manuscrita, mais longa do que a da primeira edição (Paris, 1819), em que o autor se coloca «sob a protecção de Erasmo e de Pope», os versos que aludem a esses dois escritores estão assinalados com umas cruzes a lápis e desapareceram das edições. Vid. OFéLIA

MILHEIRO CALDAS MONTEIRO, Almeida Garrett, Experiência e Criação, Coimbra 1971, vol. 1, p. 46, n. 74. Para a história de uma ideia, o «erasmismo», vid. a mais de um título sugestivo o livro de H. R. TREVOR-ROPER, De la Reforme aux Lumières, trad, francesa. Paris, (1972), no cap. «Erasme», pp. 17 ss.

(2) MARCEL BATAILLON — «La situation présente du message érasmien», Colloquium Erasnùanum. Actes du Colloque International réuni à Mons du 26 au 29 Octobre 1967 à l'occasion do Ve Centenaire de la naissance d'Érasme. Mons, 1968, p. 3-16. Cf. Manuel Antunes, Grandes Contemporâneos, (Lisboa 1973), «Em demanda do verdadeiro Erasmo», p. 21 ss.

(3) CHARLES BéNé, Érasme et Saint Augustin ou Influence de Saint Augustin sur l'Humanisme d'Érasme. Travaux d'Humanisme et Renaissance — O H . Gene­bra, 1969, p. 170.

(4) In Revista de Ocidente, Madrid (1968), N.° 58, p. 1-19.

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Teófilo Braga (5) e Sousa Viterbo (6). Mas foi Marcel Bataillon (7) quem mais chamou atenção para ela.

O cditor-adaptador destes Colloquia Erasmi, que se ofereciam ao leitor «ad meliorem mentem reuocata», foi João Fernandes, um mestre de Retórica com certa notoriedade em Coimbra de meados do séc. XVI (8). O interesse da edição reside, como já observou Bataillon, em dois aspectos: por um lado abrange quase todos os «colóquios» que Erasmo acabou por incluir na edição definitiva de 1533(9), mantendo João Fernandes a mesma ordenação; por outro lado contém as modifi­cações que o editor coimbrão achou por bem introduzir-lhe. Não importa, porém, agora tratar da data do aparecimento desta edição conimbricense (10); como também fica de fora a questão da divulgação provável desta obra, depois das proibições de que vinha sendo objecto

(5) História da Universidade de Coimbra nas suas Relações com a Instrução Pública Portugueza. Lisboa, t. I, 1892, p. 583.

(6) «A Literatura Espanhola cm Portugal», Historia e Memorias da Academia das Sciencias, Nova Série, 2.* Classe, Tomo XV, Parte 11. Lisboa 1918, p. 270-271.

(7) «L'Édition Scolaire Coimbroise des ''Colloques"», in Études sur le Portugal au temps de E Humanisme, Coimbra, 1952, p. 219-256. Do mesmo, Erasmo y Espana. Estúdios sobre la historia espiritual del siglo XVI, trad, esp., Mexico-Buenos Aires (1966), p. 717. Mais recentemente referiu-se a ela J. S. SILVA DIAS, Correntes de Sentimento Religioso em Portugal (Séculos XVI a XVIH), Coimbra 1966 c A Política Cultural da Época de D. João III, Coimbra, vol. 1 1969.

(8) O sevilhano Juan Hernandez viera para Coimbra, onde se encontrava já em 1536. Participou diversas vezes na vida académica, pronunciando orationes: uma talvez cm 1538, no Colégio de Santa Cruz, c outra cm 1548, na Universidade, quando o Infante D. Luís a visitou. L proferiu ainda uma terceira, quando do falecimento do Infante D. Duarte, em 1543. Alem dos estudos já indicados de Bataillon e Silva Dias, vid. JORGE ALVES OSóRIO, A Oração sobre a Fama da Universidade (1548), Coimbra, 1967. Por fim foi chamado para a Casa de Bragança, como Diogo Sigeu e depois Fernando Soares (cf. S. Dias, A Politica, cit., p. 732), dando-se com ele o que sucedeu com muitos outros humanistas: depois de terem alcançado certa notoriedade na Universidade, são chamados a tomar conta da educação dos filhos da grande nobreza, numa tradição que está na génese do próprio Humanismo. E para esses homens já cansados isso constituiria, em muitos casos, uma «reforma».

(9) Cfr. Bibliotheea Erasmiana. Réportoire des Oeuvres d'Érasme. I.** Série: Liste Sommaire des Diverses Éditions de ses Oeuvres. Nieuvvkoop. B. De Graaf MCMLXI, p. 36.

(10) Marcel Bataillon pensou no ano de 1545 para a publicação destes Coló­quios; S. Dias, Correntes, cit., p. 499-500, e mais tarde A Politica, I, cit., defendeu como data mais provável o ano de 1552. Recordemos que já Sousa Viterbo, cit., atribuirá à edição a data de 1550. Cfr. J. A. Osório, cit., p. 19.

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desde 1550(11). A nossa atenção vai incidir sobre um importante diálogo, o Convivium Religiosum.

O Familiarum Colloquiorum Opus da edição de 1533 teve uma his­tória interessante (12). Só em 1522, com o título Libellus Colloquiorum e dedicado a Erasmius Frobenius, filho do célebre impressor e amigo, Erasmo reconheceu a paternidade deste manual de boa linguagem c boas maneiras, na Unha de uma muito velha tradição no ensino do latim (13) e dentro das preocupações já «humanistas» manifestadas pouco depois de 1400 por Pier Paolo Vergerio no De ingenuis moribus. Perante o sucesso editorial, Erasmo foi aumentando a obra, acentuando-lhe cada vez mais o pendor doutrinário cristão e ético, com o acrescento de «conversas» dramatizadas e de discussão dialéctica, ele que foi um grande argumentador dialéctico, apesar do desprezo que sempre dedicou a essa ciência tal como a praticou a escolástica.

Assim, logo a seguir aos diálogos em forma de exercícios, que foram, portanto, o núcleo inicial da obra, mas que já tocam em assuntos c temas queridos a Erasmo, surge um grupo de colóquios constituído pelo Convivium Religiosum, pelo De incomparabile heroe Johanne Reuchlino in divorum numerum relato c pelos colóquios matrimoniais: Proci et Puella, Virgo Misogamos, Virgo Poenitens, Uxor Mempsigamos sive Conjugiu/n.

(11) I. S. RFVAII. La Censure Inquisitorial? Portugaise au XVIe Siècle,

Lisboa I960, p. 97.

(12) Para a génese dos Colóquios, entre outra bibliografia vasta, vid. F R A N Z BIERI.AIRE, «Un manuel scolaire: Les Familiarium Colloquiorum Formulae d'Érasme», Les Études Classiques, (1968), t. XXXVI, n.° 2, e «La première édition reconnue des Colloques d'Érasme», ibidem, (1969), t. XXXVII, n." 1. Cf. GIULIO VALLESE, Erasmo e Reuchlin, Nápoles 1964, cap. I; JEAN CLAUDE MARGOLIN, «Pour une biblio­graphie universelle d'Érasme», Arquivos do Centro Cultural Português, Paris, 1971, vol. I l l , p. 217, n. 42, onde é indicado o estado actual da questão. Cf. também Manuel Antunes, cit..

(13) L. MASSEBIEAU, Les Colloques Scolaires du Seizième Siècle et leurs

Auteurs (1480-1570), Paris 1878; reimpressão 1968. Muitos destes colóquios, de autores de talento bem inferior ao de Erasmo, revelam uma grande observação dos costumes e fornecem frases para várias circunstâncias sociais; desta forma se tentava fazer do latim uma língua viva no séc. XVI. Já no séc. XIII Jean de Garlande pre­parara um pequeno manual com frases latinas mais usadas, para pôr os seus alunos em estado de sustentarem uma conversa em latim; cf. Edmond Faral, Les Arts Poli­

tiques du XIIe et du XIIIa Siècle. Recherches et Documents sur la technique Littéraire

du Moyen Age, reimpressão de Paris, 1971, cap. V.

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Esta disposição tem, necessariamente, o seu significado c corresponde à explicação que no De utilitaíe Colloquiorum, ad Led orem Erasmo dava, depois de aludir ao modo como apareceram a público os primeiros exercícios da obra: «Itidem mihi visum est, hoc genus illecebris inescare teneram aetatem, quae jucundis facilius ducitur, quam seriis aut exactis. Itaque quod editum erat repurgavi; deindc adjeci quae moribus etiam formandis conducerent, velut irrepens in ânimos adolescentium, quos recte scripsit Aristóteles inidoneos auditores Ethicae Philosophiae, dumtaxat ejus seriis quae praeceptis traditur». Ou seja, na edição de 1533 Erasmo depressa conduz o leitor para a exemplificação da philosophia Christi que propusera aos cristãos do seu tempo no Enchiridion Militis Christian! (14). E realmente que aspecto do viver cristão mais «prático» do que a problemática relacionada com o seu estar no mundo, entre os outros homens? Há o nítido intuito de, após os pequenos exercícios de latim relacionados com a vida dos adolescentes escolares, entrar de frente no grande assunto que é o da vida activa e da vida con­templativa, para depois tratar da questão do casamento ou do celibato, isto é, ainda da maneira de o cristão estar no mundo.

Parece-nos, pois, que de certo modo estes colóquios iniciais constituem um corpo doutrinário que se pode ter por uma espécie de núcleo ideológico da obra em si, na medida em que se articulam com as obras mais importantes de Erasmo no campo da definição religiosa do cristão.

João Fernandes dedicou a sua edição ao príncipe D. João, o que era correspondente de Sá de Miranda, a quem pedia o envio de versos, se assim se pode interpretar um soneto de resposta do poeta do Neiva. Mas fez anteceder a obra de uma carta endereçada ao cardeal D. Hen­rique, homem que se rodeara de alguns dos nomes mais importantes do humanismo latino português. Nela, depois de falar da impor­tância da eloquência e da sua relação com a ciência e a sabedoria, atribui a Erasmo um objectivo: o de usar a eloquência, a ars recte dicendi, ao serviço da piedade: «Ut primas igitur tenet pietas, ita secundas habet eloquentia, si pietati seruiat». E afirmava que Erasmo, pondo de parte certos exageros a que chega na luta contra

(14) Louis BOUYER, Autour d'Érasme. Études sur le christianisme des huma­nistes catholiques. Paris, 1955. No abrir da cap. XI11 sublinha que, se queremos agarrar o cerne da religião erasmiana, necessitamos de deixar os tratados científicos e abordar o livrinho dos Colóquios.

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a superstição — «Attigisset hoc maxime colloquiorum opere, si dum euellendae superstitioni dat operam minus, quod arbitror ex animo factum, pietatem offendissct» —, fora um homem de vida exemplar e doutrina religiosa católica, como o revelavam obras contra Lutero. A meio do séc. XVI isto era reduzir, talvez, em demasia o problema deli­cado da posição de Erasmo no âmbito da igreja romana. Mas não há dúvida de que uma corrente, de simpatias de certo modo acentuadas para com o conciliarismo, existiu no seio da igreja interessada em alguns aspectos da doutrina erasmiana. A um cardeal humanista não seriam insensíveis os trabalhos eruditos do holandês nem as repetidas afirma­ções de não querer fazer ruir o edifício da tradição religiosa. O próprio Erasmo, ao tomar conhecimento de certas tentativas de entendimento de alguns altos membros do clero romano com elementos «protestantes», em que participava, como espécie de agente de ligação, o nosso Damião de Góis, escrevera a este aconselhando-o a ter cautela em não se apro­ximar demasiado das águas luteranas (15). No entanto, se no Concílio Tridentino se puderam ouvir vozes severas, como a de D. Frei Bartolo­meu dos Mártires (16), contra os abusos e desmandos de grande parte do clero, a verdade é que a religiosidade que sai fortalecida dessa assem­bleia valoriza, na vida religiosa do fiel, aspectos que não haviam merecido tanta veneração da parte de Erasmo, homem que tinha mais em mente o mundo culto do que a massa anónima dos crentes. Por isso, se era certa a oposição erasmiana às posições de Lutero, também não deixava de ser certo que as incidências do holandês se centravam sobre aspectos da vida religiosa que não coincidiam facilmente com as defendidas pelas autoridades romanas.

No âmbito cronológico do Concílio de Trento, 1545-1562, João Fernandes dirige-se ao Cardeal D. Henrique afirmando que, embora se possam unir a eloquência e a sabedoria, preferível era separá-las para que a primeira fique mais livremente ao serviço da piedade. O que é, de certa maneira, retomar uma velha desconfiança perante a ciência humana e a sua contribuição para a fé do cristão. E no entanto talvez possamos suspeitar que seria esta a plataforma que pe.mitia a aceitação da figura de Erasmo, a cerca de quinze anos da sua morte, no grupo

(15) ALBIN EDUARD BEAU — Ag Relações Germânicas do Humanismo de Damião de Góis, Coimbra, 1941. Trata-se da Ep. 2963, de 25 de Agosto de 1534.

(16) J. S. SILVA DIAS — Correntes de Sentimento Religioso, cit., cap. Ill, em

particular as pp. 78-87 do vol. I, t. 1.

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de humanistas do círculo do Cardeal, onde brilhavam admiradores do holandês, desde André de Resende, que chorara a sua morte numa sentida ode de 1536, a Jorge Coelho, tido por bom poeta e prosador em latim (17).

É muito possível que os movimentos espiritualistas que o Erasmo do Enchidirion Militis Christiani e da Puraclesis alimentara em Castela uns anos antes fossem suspeitos aos olhos destes homens, que rodeavam a figura responsável pela orientação doutrinária do Santo Ofício. Mas é também muito possível que João Fernandes preparasse a edição melhorada dos Colóquios em função de dois factores: uma «leitura» de Erasmo nos meios erasmizantes castelhanos de pouco antes de 1530, e a leitura «possível» num meio humanista da alta nobreza e do clero culto pottugueses, formado na tradição do bom latim que remontava ao tempo do preceptorado de Nicolau Clenardo, mestre do mesmo D. Hen­rique. E, se bem que mais não possamos adiantar que suposições, que nunca passam de suposições, esta edição dos Colóquios pode ter sido preparada em Coimbra, onde João Fernandes conheceu o ambiente de civilidade cristã na instituição gouveiana, destinada à preparação duma nobreza educada na aliança da piedade com o estudo e destinada à oligarquia administrativa (18).

A Península da década de vinte, em especial os anos de 1525 em diante, foi uma leitora muito especial da obra (ou de certa obra) de Erasmo. Este atingiu um vasto público interessado e preocupado com certos aspectos da religiosidade, num movimento complexo que

(17) J. S. SILVA DIAS — A Politica Cultural, cit., cm especial os cap. Ill e IV. É claro que não se pode pôr no mesmo plano de receptividade a afirmação de Maria Cazalla sobre a possibilidade de leitura de obras erasmianas, visto que se refere a um momento e a um condicionalismo muito diferentes dos destes anos tridentinos. O que não invalida a hipótese de que Fernandes pudesse estar «tocado» por certa experiência crasmista que lhe ficara dos tempos de juventude cm Castela. Cf. Batail­lon, Erasmo y Espano, p. 472.

(18) S. DIAS, A Política, cit., 1, p. 55H: cf. li or RICO CHABOD, «Y a-t-il un État de la Renaissance?», Actes du Colloque sur la Renaissance, de 30 de Junho a I de Julho de 1956, Paris, 1958, acerca da formação de um funcionalismo administrativo nos estados renascentistas. A perspectiva de formação cultural que de inicio foi apresentada à instituição joanina pode vislumbrar-sc na De Liberalium Artium Studiis Oratio de Arnaldo Fabrício, proferida na inauguração a 21 de Fevereiro de 1548; ou ainda nas afirmações de Mestre João da Costa, in MáRIO BRANDãO, O Processo na inquisição de Mestre João da Costa, vol. I, Coimbra 1944. Cf. também S. DIAS,

A Politica, cap. VI.

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Marcel Bataillon magistralmente estudou (19) e que Eugénio Asensio relacionou com fundas correntes de espiritualidade provindas dos séculos anteriores (20). Uma «Hispânia» de cujo humanismo o próprio Erasmo desconfiava, mas que também desconfiava dos «fortasse» e da (apa­rente) hesitação do holandês em aclarar certos pontos litigiosos da doutrina cristã.

Mas estamos nos anos do concílio tridentino, quando a situação tende a modificar-se. não porque o concílio representasse a anulação de muitos dos aspectos da problemática espiritual e religiosa anterior» mas porque esta foi canalizada e explorada por forças que, no campo da instituição romana e no âmbito da Europa da segunda metade do século, se iam afirmando (21). Erasmo, entretanto, tornara-se um autor difícil, suspeito de um espirito demasiado lucianesco e aderente à cultura clássica pagã (ele que bem marcara, deixados os anos da juventude, a distância entre ela e a cristã) e até tido como perigoso, na medida em que incitava à leitura dos autores patrísticos relacionados com os tempos primitivos do Cristianismo que, se foram tempos de pureza ideal que se pretendia de algum modo recuperar para inserir no mundo em meados do séc. XVI, foram também, por isso mesmo, tempos de florescimento de heresias, situação esta última que a Igreja de Roma nunca podia desejar nem tolerar.

Na Península, porém, desde o início dos anos trinta o nome de Erasmo passa a andar relacionado com as acusações de luteranismo lançadas contra algumas figuras da vida religiosa castelhana (22). Alguns dos processos inquisitoriais revelam-nos como certas obras erasmianas. e em particular as traduzidas para castelhano, foram ao encontro de necessidades espirituais e anseios de renovação da vida religiosa de

(19) Erasmo y Espana, cit. (20) «El Erasmismo y las Corrientes Espirituales Afines», Revista de Filologia

Espanola, 1952, XXXVI, p. 31-99. (21) PAOLO PRODI, «Riforma Cattolica e Controriforma», in Nuove Question!

(li Storia Moderna. Marzorati Editore—Milão (1964) I, p. 357-418. Cf. Bataillon. Erasmo y Espana, cit, cap. X.

(22) Cf. BATAILLON, Erasmo y Espana, cit., p. 474-475, onde fala da fermen­tação espiritual que o iluminismo quietista de algumas figuras prolonga, a qual se aproxima de Erasmo para buscar um pietismo impregnado de razão, para, depois de alguns anos de quase completa liberdade, se tornar de repente suspeito de luteranismo, sem que o pensamento de Erasmo tenha sido oficialmente condenado. O que, de certa maneira, pode revelar o pouco que se sabia das posições de Lutero.

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muitos sectores da sociedade peninsular, a ponto de a figura central de um desses processos, a «ai um brada» Maria Cazalla, poder afirmar que muitas vezes lera obras de Erasmo, como «el Enchiridion y los Coló­quios» porque as teve e terá como boas «hasta que Io contrario no esté determinado por la Iglesia» (23). E mesmo quanto a Lutero, Cazalla informa, na sua defesa, que ouvira dizer que «ai principio que era muy religioso y muy bueno», sublinhando que se, por acaso, algum dia ela afirmara ter ele razão, «será en vista de vicios y desordenes de los pre­lados y clérigos que le daban ocasión para decir mal». Ideias semelhan­tes se podem encontrar no processo, castelhano também, de Juan de Vergara, que Bataillon estudou (24). E tudo isto nos anos de 1530 e imediatos, quando João Fernandes andava por Alcalá e Salamanca, relacionado com alguns meios erasmizantes espanhóis. Convém, pois, anotar que certos assuntos como o dos frades e sua ignorância, das cerimónias exteriores, como o da oração vocal e mental, o das indul­gências e promessas, que aparentemente aproximavam Erasmo de Lutero, pelo menos aos olhos dos defensores legais da tradição religiosa, serviam de pedra de toque no avaliar da heterodoxia das afirmações e obras por arte da Inquisição.

Simpatizar com ideias expostas por Erasmo (25) ou ter livros dele passou a ser motivo de desconfiança e agravante segundo a perspectiva inquisitorial, fácil argumento para uma acusação de simpatia por «luteranismo» (26). E de pouco valia alvitrar, como Juan de Vergara,

(23) BATAILLON, Erasmo y Espana, cit., p. 472. (24) Ibid., p. 439-470. (25) Um Erasmo que Noel Bcda, na Apologia adversus clandestinos Lullw-

ranos, 1529. entendia como um luterano disfarçado. Cf. D. P. WALKER, «Origène en France au début du XVIs Siècle», in Courants Religieux et Humanisme à la fin du XVe et au début du XVIe siècle, Colloque de Strasbourg, 9-11 mai 1957, Paris, 1959, p. 110.

(26) «Luteranismo» era palavra cujo significado pouco tinha a ver com a dou­trina de Lutero. Na perspectiva do velho doutor Diogo de Gouveia, qualquer um inclinado aos gostos por uma teologia mais evangélica do que disputativa «cheirava à farinha de Lutero». As acusações de «luteranismo» assim entendido andavam cm torno de temas que não eram, de forma alguma, apanágio das ideias expostas pelo agostiniano ou mesmo por Erasmo: a questão da observância dos preceitos eclesiásticos, das indulgências, da acção dos sacramentos (cf. BATAILLON, Erasmo y Espana, p. 466; cfr. ainda SILVA DIAS, Correntes, cit., p. 197, p. 516). Na perspectiva dos inquisidores, porém, o nome de Erasmo devia accionar receios de que a incidência por ele exercida sobre a interioridade da vida religiosa viesse a conduzir a um desprezo

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que Erasmo era católico porque escreveu contra Lutero e porque se correspondeu com muitos príncipes católicos. (27)

No caso português o fenómeno parece ser um pouco mais tardio (28). Só lá para os anos quarenta se começa a tomar consciência do perigo luterano, em parte como resultado dos avisos constantes que de Paris vai lançando Diogo de Gouveia, o Velho, a D. João III (29). Isso não impede, no entanto, que em 1548 se inaugure o Colégio das Artes com professores não de todo insuspeitos de simpatias eramistas ou aparen­tadas, longinquamente, com as luteranistas, nem impede que no círculo cultural D. Henrique floresça o humanista André de Resende, que lamentara a morte do sábio de Roterdão numa ode latina de 1536. E não impediu mesmo que noutros círculos, como naquele em que será forçoso incluir António Pereira Marramaque e Francisco Sá de Miranda, com quem se corresponde o próprio infante D. João, circulassem ideias facilmente encontráveis em Erasmo. Meios cultos agrupados em volta de algumas das grandes famílias da nobreza, como a dos Meneses, ligados tão intimamente à introdução do Humanismo em Portugal e ao magis­tério latino de Cataldo Sículo (30), ligados também à vida universitária

pelas cerimónias, o que podia ir desembocar em pontos coincidentes com o vário movimento conglobado no Protesto de Worms, em 1529 (cf. E. Beau, cit., p. 17), Cf. ainda TREVOR-ROPER, De la Réforme aux Lumières, cit., cap. sobre a sobrevivência da doutrina de Erasmo e sua utilização por «católicos» e por «protestantes».

(27) Erasmo y Espana, p. 456. O que faz lembrar a opinião de um simples franciscano espanhol, autor do Tratado llamado excelências de la fe. Bur­gos, 1537, onde, depois de aludir aos «bocados de la secta luterana» que muitos come­ram envolvidos «con la salsa peregil dei lindo dezir en romance y latin de los libros nuevos», passa a falar do «autor que hizo los colóquios», informando que os fez «para algún passatiempo de los grandes trabajos de sus estúdios e para entre sus amigos y doctos: y no para tiernas edades ni para andar en romance entre populares» — argumento que sai também da pena de Aires Barbosa na dedicatória de Antimo-ria—; e admite que o autor tenha sido «tan gran christiano en su persona como dizen que fué», sendo muito provável que «esté en gloria en compania de los ángeles e de los sanctos doctores, por su sancta intención y trabajosos estúdios». Cit. por E. ASKNSIO, «El Erasmismo...», p. 37-38.

(28) Cfr. S. DIAS, Correntes de Sentimento Religioso, cit., I, p. 196-197, e ainda A Politica Cultural, 1, p. 790 e p. 867.

(29) Vid. MARIO BRANDãO, O Processo na Inquisição de Mestre João da Costa. onde se encontram publicadas algumas das cartas de Diogo de Gouveia Senior.

(30) Sobre Cataldo Sículo, entre outros estudos, vid. os trabalhos de Américo da Costa Ramalho, em especial os incluídos em Estudos sobre a Época do Renasci­mento, Coimbra, 1969. E ainda no presente volume de Humanitas os artigos «TJm

O CONVIVIUM RELIGIOSUM DE ERASMO 247

portuguesa, cora os quais se relacionou João Fernandes, ele mesmo agora, à volta de 1550 provavelmente, chamado a preceptor de um infante numa das casas mais importantes da aristocracia portuguesa. Parece-me ser legítimo sublinhar este horizonte como enquadramento muito pos­sível da edição fernandina dos Colloquia Erasmi, propositadamente «ad meliorem mentem reuocata» e destinados à prática da eloquência de uma alta figura da nobreza.

A primeira observação a fazer é que João Fernandes manteve a ordenação dos colóquios considerada definitiva na edição de 1533. Desta maneira, após os exercícios latinos, alguns dos quais já incluem aspectos doutrinários, como o Pietas puerilis ou um De Votis temere susceptis, surge-nos o grupo atrás referido, formado por um conjunto de colóquios que abordam o assunto do modo do cristão estar no mundo. E na edição coimbrã permanece não só esta sequência, como só o Virgo poenitens é remodelado num curto Virgo constans.

Tomemos em mãos o Convivium Re/igioswn. Fr. Alonso de Virués, que o editou com outros em 1529 com o título de Combite religioso, tendia a ver nele a obra mestra de Erasmo. Por várias razões este colóquio agradaria aos homens do Renascimento, como observa Batail­lon (31), não só pelo cenário em que decorre, como principalmente pelo tom e teor das discussões que entre os convivas se travam. O seu assunto pode, nuclearmente, resumir-se ao problema que tanto preocupou Erasmo ao longo da vida: o da situação do cristão num mundo onde tudo são sinais da obra de Deus e, concomitantemente, o do valor e utilidade da cultura profana (anterior ao Cristianismo) para a formação cultural e religiosa do cristão. Toda esta problemática que, como evidenciou Charles Béné, se filia largamente no De Doctrina Christiana agostiniano, ia de encontro às preocupações da religiosidade da Europa renascentista e em especial da Península, a ponto de Bataillon poder chamar a atenção para o facto de os Colóquios terem sido postos mais divulgadamente

elogio em latim, contemporâneo de Miguel Corte Real» (pp. 2-16) e «Mestre Anrique da 'Farsa dos Físicos' de Gil Vicente» (pp. 91-113). Ver também Catalão Parish Sículo — Martinho, Verdadeiro Salomão, Prólogo, tradução e notas de Dulce da Cruz Vieira. Introdução e revisão de Américo da Costa Ramalho. Coimbra, 1974, 164 pp.; e Catalão Parisio Sículo — Duas Orações. Prólogo, tradução e notas de Maria Margarida Brandão Gomes da Silva. Introdução e revisão de Américo da Costa Ramalho. Coimbra, 1974, 152 pp.

(31) Erasmo y Espana, p. 303.

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à disposição dos leitores em Espanha do que em qualquer outro país católico (32).

Com o título de Conviviam Religiosum se sublinha a importância do encontro dos homens doutos, à imitação de Sócrates que, mesmo preferindo a cidade ao campo, não a buscava pelas mesmas razões que esses sacerdotes e monges «qui fere quaestus gratia malunt in urbibus, iisque frcquentissimis, versari» (672 C). É longe dos incultos, dos «caeci», que convivem os que a si mesmos se chamam filósofos («nos philosophi sumus»); mas sublinha-sc que este afastamento para o campo só tem utilidade se aí for possível o diálogo, ou seja a conversa (33). Erasmo podia estar recordado do que escreve no cap. X do De Conîempîu mundi (34), onde alude à tranquilidade exterior e interior de que gozam os solitários. Mas no colóquio em causa atribui ao campo duas qua­lidades: a de permitir uma conversa entre homens doutos, longe dos interesses em que se inovem os que não se desligam das coisas corpo­rais; e a de colocar o homem directamente em frente da grande obra de Deus.

O cenário da casa de campo onde a conversa se vai desenrolar integra-se na linha tradicional dos enquadramentos paisagísticos dos diálogos filosóficos, mas no caso de Erasmo recorda a utilização já no Antibarbarorum líber, cujas personagens nada deviam às da Academia (o modelo vem de Platão e de Cícero), se bem que um dos interlocutores já então observara que Platão fora mais perfeito, porque não se esque­cera de incluir raparigas e ninfas para animarem a conversa (35).

Isto não deve, no entanto, fazer esquecer que o intuito primeiro de Erasmo é criar um encontro de homens animados de sentimentos e pensamentos religiosos, e não um encontro profano; figuras como Sócrates, que aí aparecem, só importam na medida em que são exemplos

(32) Ibid., p. 309. (33) A literatura de «banquete» ou «convivium» é abundante no humanismo

do Renascimento; o local ameno onde se trava a conversa entre homens doutos é um dos elementos que entram na composição de ideais de felicidade aberta ou subterranea­mente marcados pelas doutrinas platónicas. No pensamento de Erasmo o retiro no campo deixa como pano de fundo a cidade, que é o local das discussões, discórdias e interesses materiais do homem, do que se podem ver exemplos ainda na Querela Pacis, entre outros locais do humanista holandês. Para não se referir toda uma literatura e uma doutrina da solidão e da convivência social.

(34) Cfr. C. BéNé, Érasme et Saint Augustin, cit. p. 53. (35) Cfr. ibidem, p. 69.

O CONVIVIUM RELIGIOSUM DE ERASMO 249

propedêuticos para os cristãos (36). Muito simbolicamente o porteiro da casa de Eusébio, ao que parece a casa dos Froben nos arredores de Basileia, para onde os interlocutores são convidados, é uma figura que enuncia uma frase sentenciosa nas três línguas bíblicas, o latim, o grego e o hebraico. Mas não esqueçamos também que João Fernandes estava em Espanha nos três anos que precederam a morte de Erasmo, quando se deu uma alteração funda na maneira de aceitar a leitura das obras do holandês (37). A Inquisição, através da sua rede de investiga­ções, pôde, com mais ou menos êxito e com uma lentidão suficiente­mente propositada para se impor às pressões protectoras de altas per­sonagens a favor de alguns dos seus presos, como Fray Alonso de Vimes por exemplo, fazer retrairem-se os grupos religiosos que se haviam inspirado ou entusiasmado com a doutrinação evangélica de Erasmo. E no entanto, como exemplifica o caso de Maldonado (38), certas obras erasmianas cedo levantaram reservas sobre o seu conteúdo doutrinário ou sobre os exemplos de atitudes que podiam fornecer ao leitor acerca de certos aspectos da vida religiosa da tradição romana. Os Colóquios estão neste caso, c em mais de uma testemunha nos processos inquisi-toriais estudados por Bataillon são-lhes feitas reservas, admitindo-se

(36) Cf. C. BENE, cit., p. 70 c passim. Este autor anota que as informações de tírasmo sobre esta figura são tiradas de Cícero c pergunta, com razão, se os conhe­cimentos filosóficos de Erasmo não são em grande parte extraídos dos diálogos filosóficos de Cícero. A figura de Sócrates teve largo uso no humanismo renas­centista quer para sublinhar a vida moralmente virtuosa, de que é um exemplo o apro-veitamenle feito por Luísa Sigeia, no Duarum Virginutn Colloquium, «Tertius dies, de beata vita, qualis sit et qualitei sequenda», Dialogue des Jeunes Filles sur la vie de cour et la vie de retrait (1552), ed. por Odette Sauvage, Paris 1970, p. 187, quer como amostra de que a fealdade exterior pode esconder uma grande pureza e beleza interio­res, como é o tratamento erasmiano nos Sileni Alcibiadis e surge no Diálogo da Viciosa Vergonha do nosso João de Barros (ed. Lisboa, 1971, P- 192), quer como ideal de filósofo, cidadão e pai de família no Quattrocento italiano (vid. EUGFMO GARIN,

L'Umanesimo italiano, Bari, 1970, p. 50), quer como atitude exemplar perante a morte, seja numa perspectiva cívica — apontada por Spcron Speroni quando diz que a sabe­doria socrática consistiu em aceitar a morte por reconhecer a validade e o papel da lei civil; vid. in E. GARIN, Moyen Age et Renaissance, trad, franc, Paris, (1969)—, seja numa perspectiva cristã (vid. ALBERTO TENENTI, ÎI Senso delia Morte e t'Amare delia Vita nel Rinascimento, Turim, 1957, p. 257).

(37) BATAILLON, Erasmo y Espana, cit., p. 493. (38) Ibidem, p. 488; é certo que Maldonado diz preferir o cardeal Cayetano

a Erasmo por ser menos venenoso contra os frades (vid. nota 16).

250 JORGE ALVES OSÓRIO

que a sua leitura se fizesse só depois de expurgados devidamente, acei-tando-se porém que eram obra útil pelo estilo latino.

O facto de surgirem à entrada da casa as três frases acima referidas tem valor alegórico. Com isto Erasmo acentua um dos aspectos mais importantes da sua doutrinação: o de que as línguas são necessárias para a interpretação da Escritura. Ideia que se encontra muito mais desenvolvida na Ratio Verae Theologiac, mas que, como mostrou Béné, deriva directamente, como outros aspectos erasmianos no que respeita à cultura e formação do teólogo, do De Doctrina Christiana de Sto. Agos­tinho. Basta 1er a catta a Gervasius Servais para vermos como Erasmo assumiu, pessoalmente, este programa cristão humanista: a necessidade e o desejo do homem de alcançar a ciência de Deus através do enten­dimento, e portanto da interpretação, da palavra divina, mediante o estudo da Escritura sagrada.

Ora o refundidor João Fernandes, que logo no princípio do coló­quio havia omitido o curto passo acerca dos frades amantes da vida citadina para darem largas à sua paixão pela vida material, praticamente não altera toda esta parte inicial; pelo menos não introduz modifica­ções de vulto (39). O que nos aponta já para um modo de aceitar o mais possível o corpo doutrinário erasmiano, em particular a defesa dos estu­dos literários para a formação religiosa do cristão, o que implica a aceita­ção de que para o entendimento da Bíblia não basta o único recurso à fé.

É na visita ao jardim e ao horto do hospedeiro que aos convivas são propostas as três frases sentenciosas (40). Intencionalmente Erasmo

(39) Em raros casos há uma modificação que revela cuidados moralistas da parte de João Fernandes; por exemplo na folha 72v.u, quando corta uma alusão a Priapo.

(40) A frase latina é tirado de Mateus, cap. 19: «Si vis ad vitam ingredi serva mandata»; a grega equivale a «Arrependei-vos e convertei-vos», extraída dos Actos, cap. 3; a frase hebraica pertence ao livro de Habacuc, 2 (cf. Paulo, ad Galai, 3) e signi­fica que o «justo é o que vive segundo a sua própria fé». A interpretação destas três sentenças é dada de seguida: com elas o porteiro adverte quem entra que devemos evitar os vicios, «et converlamus nos ad sludium pietatis»; além disso a vida não se alcança com a lei judaica, «sed per fidem Evangelicam»; e por fim que o caminho para a vida imortal está na obediência aos preceitos evangélicos. Esta sequência do sludium, sacerdotium e regnum (cf. MANUEL ANTUNES, cit., p. 26), ou seja, a necessidade do estudo das letras para entendimento do texto bíblico para um modo de viver cristão, é o ponto central da doutrina erasmiana. O que João Fernandes não alterou. Trilingue também é a frase que acompanha a figura de Cristo no altar, acentuando o papel dele na salvação do cristão.

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sublinha que o cristão deve evitar a sedução pagã do gozo da paisa­gem (41) em compensação deve buscar a religião (não a superstitio) que só se encontra nos textos evangélicos. Mas para os abordar, e é isto que sublinham as três frases, é necessária a pureza moral, além do conhe­cimento das três línguas. E João Fernandes deixa-se ir ao longo do texto em que Erasmo descreve todo o jardim leito só de aparências exteriores, pois que o verdadeiro valor não está no material de que são feitas as colunas e ornamentações, mas no que representam as pinturas e no evangelismo das frases e provérbios espalhados pelas paredes. E todo aquele jardim se transforma em mundo simbólico, no estilo dos Alcibiadis Sileni, com os seus animais e plantas de significado alegó­rico (42).

Ora é a propósito de um dos animais deste museu pintado que ocorre uma alteração curiosa por parte do sevilhano editor. Em dada altura, falando dos basiliscos (43), indicara o anfitrião que possuíam eles venenos «nocentissimis» e que um provérbio lhes era atribuído: «Oderint, [,..], dum metuant» (675-D). E logo comentara um dos con­vivas, Timóteo: «Plane regia vox»; ao que respondera Eusébio: «Imo nihil minus regium, sed tyrannica vox est». Ora João Fernandes corta este comentário, esquecendo-se de indicar que a continuação da fala lhe pertence, de tal modo que as palavras seguintes passam a ficar atri­buídas a Timóteo, que logo abaixo surge com outra intervenção. Isto é, duas falas seguidas são atribuídas à mesma personagem, pelo facto de haver desaparecido uma alusão ao ódio tirânico dos reis. Só mais adiante o assunto é retomado, mas já noutro contexto, como veremos.

Terminada a visita ao jardim, o criado chama os convivas para a refeição. Seguindo o exemplo do próprio Cristo, recita o anfitrião um hino de Crisóstomo. Sentam-se, distribuídos os lugares de acordo

(41) Propositadamente, a casa não possui essas figuras pagãs com que era costume ornamentar as entradas: «Hunc ego maio janitorem, quam Mercurios, Centauros, aliaque portenta, quae quidem pingunt in foribus suis». A estas pala­vras do anfitrião observa um dos convivas: «Isthuc homine Christiano dignius est».

(42) «Sed interim hora mouet, ut uisamus hunc cultiorem hortum, quem in quadrum cingunt muri regiae meae...»; Opera, 1, 674 A ss.

(43) Erasmo joga com os dois sentidos da palavra hasitiscus: «reizinho» e «rép­til». O simbolismo era evidenciado na frase cortada por João Fernandes. Diferen­temente procedeu Fray Alonso de Virués, que aproveitou o passo para um excurso sobre a hipocrisia dos reis; cf. na ed. Austral, p. 99-IOOe BATAILLON, Erasmo y Espana, cit., p. 304.

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com os nomes de cada um. E inicia-se o repasto. Mas, evidentemente, se até aí Erasmo opusera sempre o mundo material ao espiritual, fazendo a passagem dum para outro pela alegoria, com mais razão isso acon­tecerá agora. E logo de começo se marca a distância que vai deste banquete para aqueles em que a alegria provém «obscoenis cantiun-culis».

O ponto de partida da conversa é dado pelo «puer», que recita um provérbio (44) por ordem do amo. Aqui toca Erasmo num dos aspectos mais importantes da sua doutrina e teorização humanística: do valor da cultura profana para a formação e vida do cristão. Refe­rindo a opinião de Plínio de que os «Officia Ciceronis nunquam de manibus deponenda» (677 B) e que convêm particularmente a quem se destine à administração das coisas públicas, acentua que, quanto ao presente e cm relação aos cristãos (nunc e nobis), é de maior merecimento o livrinho dos Provérbio, que, como depois se vai mostrar, são susceptí­veis de interpretação alegórica. A juntar às Epistolas de Paulo que hão-dc surgir mais adiante como um livro de ouro do cristão, e muito à semelhança do que faz noutros escritos seus, Erasmo vai apontando todo um programa de leituras, distinguindo entre as obras profanas destinadas a fornecerem os exempla e as sententiae para a conduta terrena e civil do homem, das obras destinadas à formação e vida espiritual do cristão. Esta divisão é muito importante, e só ela nos permite avaliar a extensão do «Sancte Socrates ora pro nobis» que mais à frente aparece.

Só depois de indicar o conteúdo das leituras é que Erasmo aborda o segundo ponto : o da exegese dos textos. Pela boca de Eusébio lamenta a falta, naquele banquete, de um teólogo (677 C) que, além de intérprete, fosse sabedor, passo que o tradutor castelhano, Alonso de Virués, aproveita para se alargar em considerações acerca dos teólogos, mas que João Fernandes deixa no estado original (45). Respeita-se, assim, o pensamento erasmiano de que o cristão pode tratar de assuntos como estes, desde que não caia na temeridade que caracteriza os marinheiros, tendo presente a promessa de Cristo de assistir e inspirar dois homens

(44) «Sicut diuisiones aquarum, íta cor Regis in manu Domini: quoeumque uoluerit, inclinabit illud. Omnis via viri recta sibi uidetur, appendil autem corda Dominus. Facere misericordiam ct judicium, magis placet Domino, quam uictimae». Opera, I, 677 B; ex Salomonis Prouerbiis, cap. 21, vers. 1.2.3.

(45) Vid. BATAILLON, cit., cap. X.

O CONV1VIUM RELIGIOSUM DE ERASMO 253

que em qualquer parte se juntem para falar dele. Anote-se que o editor de Coimbra não altera este acentuar da possibilidade (não herética) de os cristãos, independentemente da formação teológica, tratarem, como membros do corpo místico de Cristo, das coisas religiosas. É com esta confiança que se entra propriamente no banquete religioso.

Propõe-se, então, fazer consistir a parte espiritual do banquete na interpretação de três sentenças entre os nove presentes. O anfitrião explica o sentido moral deste provérbio, que será a primeira sentença. E fica assim interpretado, no domínio da ética: enquanto os restantes mortais podem ser conduzidos (flecti) (677 D) com a ajuda de leis, admoestações e ameaças, só os reis, que a ninguém temem, possuem um ânino irascível que se irrita contra quem se lhes opuser. O remédio para este mal, como depois se afirma, estará na formação moral do príncipe.

Toda esta parte se mantém inalterada em Fernandes, que não modi­fica este passo inicial sobre os reis, embora pudesse estar lembrado da invectiva contra a hiprocrisia régia com que Virués alargou a sua versão castelhana neste momento do texto (46).

Esta primeira sentença, portanto, relaciona-se com a maneira de actuar sobre o ânimo do rei; uma espécie de De principe (677 F), que abrange também a função do ministro conselheiro junto do monarca. É todo o problema da tirania para que o príncipe pode enveredar ou tem tendência a enveredar, se se deixar guiar pelas suas paixões e ímpetos e se não for educado desde criança nos conceitos humanos da sabe­doria cristã.

Assim se passa para a segunda sentença: «Rex intelligi potest vir perfectus, qui domilis carnis aflectibus solo diuini spiritus impetu ducitur» (678 B). Com ela Erasmo acentua a necessidade da pureza moral para o desempenho da função do rei. É uma preocupação constante do humanista de Roterdão, que considera, segundo a lição agostiniana, a pureza dos costumes como uma das condições para o ingresso no estudo dos textos sagrados e da ciência divina; neste mesmo colóquio os convivas haviam lavado as mãos antes de se senta-

(46) João Eernandcs eliminara atrás um pequeno passo sobre a tirania dos reis, num jogo de sentidos da palavra hasiliscus; mas agora tem de manter a alusão ã arrogância dos tiranos, porque se trata de mostrar o príncipe cristão em contraste com o que ele não deve ser. Erasmo versa o assunto em mais lugares; por exemplo no célebre adágio Dulce Bel/um Inexpertis (Opera Omnia. II, 956 F).

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rem à mesa, portanto antes de iniciarem o banquete religioso. A mesma ideia nos aparece nos colóquios matrimoniais, onde, como no Proci et Puella, há todo um conjunto de considerações sobre a pureza dos cos­tumes exigida para que o casamento resulte bem.

Oia esta segunda sentença é como que o cerne da Institutio Prin­cipes Christiam; é portanto um ponto importante da doutrina eras-miana, e mais interessante nos parece ser, por isso mesmo, a modificação para «melhor» que João Fernandes introduziu. Eiasmo sublinhava a independência do exterior em relação ao interior e que esse «uir--perfectus» (47) não se havia de avaliar pelas «humanis legibus», «sed suo domino, cuius spiritu agitur, rclinqucndus est, nee judicandus est ex hisce rebus, quibus imbecillitas imperlectorum utcunque provehitur ad veram pictatem» (678 B). Era dar prevalência à liberdade evangélica, ao mesmo tempo que se punha em causa o valor das obras praticadas pelo cristão na vida terrena, em relação com a salvação posterior; e era ainda ironizar sobre a variedade exterior das ordens religiosas, em confronto com o «sumat síbi quisque quod gratum est animo», que surge adiante.

João Fernandes não podia deixar este passo sem intervir, muito possivelmente mais sugestionado pelas proibições da Sorbone contra a obra erasmiana e em particular contra os Colóquios, do que por certos aspectos que acabaram por eonglobar-se em volta do Concílio de Trento. Repare-se em primeiro lugar que Erasmo não condenava um «humanis legibus in ordinem ire», mas tão só o «in ordinem cogère», defendendo a liberdade do arbítrio pessoal. João Fernandes parece-nos tê-lo compreendido, ao dizer que «quemadmodum in coenobiis Ana-choriae olim suo ipsorum arbítrio permittebantur» c que hoje nos mos­teiros «illis quorum pietas iam satis spectata est, quorumque virtutes habentur illustres, his de rebus externis constitutiones prudentur rela­xants». E precisa que nos mosteiros e conventos ninguém é tão perfeito que não cause pequenas ofensas aos restantes; por isso o pró­prio S. Paulo, para não dar ocasião de juízo temerário, resolve não comer carne para sempre. Aconselha que os prefeitos avaliem as graças do espírito, e terão assim levado um piedoso a não desprezar os afectos espirituais, desde que hajam examinado que eles não são simu-

(47) ALBERTO TENENTI, // Senso delia Morte e VAmore delia Vita nel Rinaaci-mento, cit., p. 256.

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lados e que, até onde puder ser, permitam cada um dedicar-se ao seu próprio santo. Neste ponto, o texto de Coimbra retoma o original, aproveitando a citação de Paulo, ad Rom, 14 e ad Corinth. 2 (678 B-C), passos em que se incide sobre a importância da liberdade espiritual do homem (48). Mas, como se vê, da parte do editor refundidor coimbrão há como que um pragmatismo maior do que o idealismo erasmiano, que esfriara já anteriormente o ânimo de Inácio de Loiola, que se afastara dos escritos do holandês por não encontrar neles o calor religioso que procurava.

Se na primeira sentença se apontava, como consequência de o prín­cipe atender mais ao mundo do que ao divino, a tirania, ou seja, o abuso injusto do poder, na segunda trata-se da cedência do cristão perante os sentidos. Como observa Alberto Tenenti, o humanismo nunca pôde abandonar a influência da desconfiança cristã pelo mundo terreno. E Erasmo, muito mais do que outros humanistas, não podia deixar dc colocar o cristão no mundo sujeito aos «desvios» provocados pela solicitação do terreno, ou pelo corporal, se quisermos utilizar a sua terminologia, que no-lo mostra fundamente mais ligado a linhas de força da religiosidade medieval do que a certos aspectos mais inovadores do humanismo. Os próprios «remédios» adiantados por Erasmo parecem apontar para a mesma filiação, se tivermos de aceitar a lição a tirar das suas leituras agostinianas. Ora uma das soluções indicadas para evitar que o príncipe, assim como todo o cristão, se prenda imode­radamente ao mundo terreno é a amável companhia, a convivência de um grupo restrito de homens piedosos, sem que isto se possa confundir com a solidão; basta que nos recordemos do início deste diálogo para vermos a distância que Erasmo estabelecia entre ela e o retiro no campo de homens mais preocupados com as coisas do espírito do que com os assuntos materiais, o que é, no fim de contas, o pensamento desenvol­vido em parte do adágio 3001, o célebre Dulce bel/um inexpert is (49).

(48) «Nee his contenta Natura, sermonis et rationis usum uni tribuit, quae quidem res ad parandam et alcndam benevolentiam in primis valet, ne quid omnino per vim inter homines geretur. lnsevit odium solitudinis, amorem sodalitatis. Indidil penitus benevolentiae semina. Quid enim amico jucundis? At rursum, quid aeque necessarium?» (Opera, 11, 952 E).

(49) É claro que Erasmo não ataca a instituição da vida monástica, na medida cm que ela seja «vida religiosa», votada à espiritualidade; mas o certo é que não apre­senta a hipótese de que tal género de vida reformado pudesse ser regenerado. A cari-

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Mas a outra solução, mais tipicamente humanista, é a da sabedoria enca­minhada para a piedade, ou seja, o estudo das letras ao serviço da leitura dos textos sagrados. E nisto é que está o humanismo erasmiano, donde a sua crítica à escolástica como ciência fria, que não atendia à pieías. Tudo pontos que Erasmo em textos como a Querela Pacis transfere para o campo da sua visão da cidade cristã do tempo, portanto caminhos por onde se insinua a sua apreciação da sociedade.

A tirania e a lascívia são, desta feita, os dois perigos maiores que corre o homem inculto e supersticioso, seja de que categoria social for. E com isto se relaciona a importância que Erasmo dá à formação edu­cativa do príncipe cristão. É neste contexto que deve entender-sc este banquete: não destinado à satisfação dos sentidos, mas um banquete onde se come agradavelmente, onde se fala eruditamente das coisas divinas, não sendo teólogos os participantes, onde se mostra a prática da caridade piedosa, no que se faz distinguir a lei judaica da lei cristã, quando o anfitrião manda entregar parte da refeição a uma pobre mulher abandonada do marido.

A terceira sentença é dita pelo conviva Teófilo, que apresenta para comentário interpretativo um passo do profeta Oseu, cap. 6, «Miseri-cordiam uolui, et non saerifícium, et scientiam Dei plus quam holo-causta» (679 B), indicando logo a interpretação de Cristo em Mateus, cap. 9. Atentemos nesta sequência das três sentenças: depois da pri­meira, que tratava do príncipe ou de como reger o mundo dos homens, depois da segunda, que versava o assunto das paixões ou de como se homem se reger no mundo, esta terceira põe-nos perante o problema da fé do cristão ou de como se reger o homem para com Deus.

Este núcleo central, digamos assim, do colóquio não foi alterado por João Fernandes, embora proceda a uma ou outra modificação do texto original. Ele devia ter sentido que, uns quinze anos depois da morte do grande humanista holandês — é certo que quando o seu nome já tanta polémica levantara e tão grandes incómodos acarretara a quem era acusado de seu sequaz — na medida cm que ele não chega a pôr seriamente em causa a tradição da Igreja (para o que se poderia invocar a adnotatio 42 da Epistola Pauli ad Corinthios, f, cap. VII, entre outros

catura é tal que mais conduz à conclusão de desprezo e de total condenação, com o consequente pretexto para a controvérsia entre cristãos, sob a capa da necessidade de combater as heresias. Ora estas combatem-se com o exemplo de vida cristã. É uma das lições, a principal talvez, da Duke belliim (Opera, II, 960 F-961 D).

O CONVIVIUM REUGIOSUM DE ERASMO 257

textos), a doutrina ou os ensinamentos doutrinários dos Colóquios, para além do seu latim, serviam, com alguns melhoramentos, as neces­sidades religiosas e espirituais de uma juventude da alta nobreza, que conhecia Erasmo já pelo que dele, polemicamente, se dizia, mas que ainda não assistira à proibição total e absoluta da sua obra, como viria a fazer o Index de 1559.

Não será este o lugar de analisar em pormenor o pensamento eras-miano exposta a partir deste momento. Parece de maior importância indicar os pontos temáticos por onde Erasmo faz passar o seu raciocínio para depois vermos onde interveio João Fernandes.

A sequência que nasce desta terceira sentença ordena-se da seguinte maneira: a característica e a novidade do cristianismo residem na cari­dade; é ela que faz a distinção entre a lei de Cristo e a lei judaica, caracte­rizada pela obediência ao rito, aos sacrifícios, às «caerimonias corpo-raies», a ponto de poder afirmar que «(íudei) nesciebant enim, quod ista propter hominem essent instituta, non homo proter illa» (680 A). Mas a caridade, até na medida em que interfere com as obras do cristão no mundo terreno e o seu valor espiritual, acarreta consigo a proble­mática relativa ao corpo, dito «colega» da alma humana. Neste segui­mento Erasmo trata do papel condicionador da necessidade na obediên­cia do cristão aos preceitos, o que lhe permite frisar que a verdadeira pieías é a espiritual. E a partir de S. Paulo, na epístola aos Coríntios, cap. 6, «Omnia mihi licent, sed non omnia expediunt» (680 E), vai abor­dar a «liberdade evangélica», insistindo na mão interferência do terreno no espiritual, sem, no entanto, afirmar que o homem deve cortar com esse mundo onde foi colocado. Caso contrário não se compreenderia a razão de ser de escritos como a Institutio Principia Christian! ou do Enchiridion Militis Christiani; a própria referência, que neste momento do colóquio surge sobre os pratos de que constava o banquete, nos revela a impor­tância atribuída por Erasmo ao mundo terreno; só que o cristão devia servir-se dele «modice». Ora interpretando o passo acima referido de Paulo como aplicado às comidas, é-lhe possível chegar a esta afir­mação: «Tametsi nonnunquam abstineam a cibis immolatitiis, aut lege Mosaica vetitis, ut consulam saluit proximi ac profectui Euangelico, tamen animus meus liber est, qui scit sibi licere vesci quibuslibet pro necessitate corpusculi» (681 D). Daqui rapidamente se chega a esta outra afirmação, um pouco mais adiante: «Imo profanum dici non debet, quicquid pium est, et ad bonos mores conducens» (681 E). Ficamos defronte do problema da utilidade das letras profanas para a formação

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cultura! do cristão e para o entendimento das letras sagradas, ou seja da validade dos ensinamentos morais dos autores pagãos. Mas antes de avançarmos, notemos que Erasmo está a falar do «corpo» e não da «alma», ou seja do comportamento terreno, social e ético do homem, e não da divindade da sua alma. É nesta perspectiva que se deve enten­der a expressão do interlocutor Eusébio, de que se c fora de dúvida que a primeira autoridade pertence à Escritura, «sed tamen ego nonnun-quam offendo quaedam uel dicta a ueteribus, ucl scripta ab ethnicis, etiam poetis, tam caste, tam sancte, tam díuinitus» (681 F), que é levado a persuadir-se de que algum «numen bonum» os inspirou. Passa-se à questão da salvação das grandes almas da antiguidade, culminando no «Sancte Socrates, ora pro nobis». Isto permite a Erasmo desenvolver o seu pensamento sobre a importância propedêutica dos pagãos para o cristão, surgindo, por isso, uma apreciação do modo «actual» do viver da sociedade cristã, que toca em pontos divulgados noutros coló­quios e obras como o Encomium Moriae e a Querela Pads. E o Con-vivium Religiosum encerra com a indicação de um modelo de vida entre homens cristãos de fé mas não de superstição, visível na distribuição final das lembranças e na evocação de uma maneira verdadeiramente cristã de morrer, a propósito de saída do dono da casa para assistir a um amigo piedoso que se encontrava nesse tanse.

Como se vê, o Convivium Religiosum é uma espécie de pequeno manual do cristão, que se desenvolve numa linha de argumentação que se vai afirmando, em Erasmo, particularmente a partir do Antibarba-rorum Liber, ou seja, a partir do contacto cada vez mais íntimo com o De Doctrina Christiana agostiniano.

Das seis mais incisivas alterações introduzidas pelo mestre de Coimbra no texto original, cinco pertencem exactamente a esta segunda parte do diálogo. A primeira, já atrás referida, destinara-se a matizar o excessivo peso da independência interior face aos preceitos exteriores. Ora as restantes modificações situam-se nesta mesma linha. Vejamos em pormenor.

Quando Erasmo distingue a lei judaica da cristã, acentua a impor­tância dada por aquela às «ceremónias corporais» e frisa a preocupação da obediência ao rito mais do que à fé. João Fernandes corta uma alusão directa ao Judaísmo («et aliquid habet affine cum ludaismo»), elimina, na sequência de exemplos dessas ceremónias, a expressão «sacri-ficium, preces veluti pensum absolutae» e o aviso erasmtano sobre o perigo que é para o cristão o excesso de assiduidade a essas coisas.

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Para isso, depois de dizer que a prática de certos preceitos era algo «quae Christiana Deo offerimus, quasi nos ipsi sacrificemus», escreve: «Hae omnia non sunt Christiano negligenda, quando et tempori seruien-dum est, et maiorum institutis». Assim fica ressalvado o valor dos preceitos da tradição cristã e desaparece o «Hae enim ut pro tempore non sunt omnino negligenda. ita Deo fiunt ingrata» do texto primitivo.

A intervenção seguinte de João Fernandes tem por fim atenuar o aparente exagero do elogio de Erasmo aos autores antigos, em des­prestígio dos mais recentes, que são, no pensamento do holandês, os escolásticos, ou sejam os «bárbaros hos philosophos (...) sórdidos, rudes, incultos» segundo a expressão de Giovanni Pico delia Mirandola. Erasmo, mostrando a sua preferência pelos autores pagãos cujos escritos atingiam pontos altos da reflexão moral e cujas vidas eram, em muitos aspectos, exemplares, manifestava o seu desprezo para com «hos quosdam recentiores» (50) que lhe pareciam «frios» na maneira de defenderem as ideias. Chegava mesmo ao ponto de afirmar que «ego citius patiar perire totum Scotum, cum aliquot sui similibus, quam libros unius Ciceronis, aut Plutarchi», não porque condenasse aqueles, mas porque da leitura destes «sentiam me reddi meliorem». Ora a táctica de João Fernandes foi aproveitar ao máximo o texto e o pensa­mento originais. Depois de acrescentar à afirmação inicial erasmiana de que muitos destes homens grandes da antiguidade «sunt in consortio sanctorum, qui non sunt apud nos in catalogo» o aviso de que «De tiIis loquor nunc qui ante lucem euangelij floruerunt. quique cum legem non faciebant tamen quae essent legis», aceita as razões do desprezo humanista para com os escolásticos, mas tenta de certo modo justificar a frieza dos seus escritos com o escrúpulo na defesa da verdade teológica: «de moribus disputant sane acrius, et scupulosius, sed mouent frigidius». Dentro deste ponto de vista, com a frase de sabor agostiniano «Nulla enim veritas est, non quae a ueritatis spiritu emanarit» João Fernandes

(50) No discurso em honra de S. Tomás que pronunciou em 1457, Lorenzo Valla frisa que os teólogos antigos, embora conhecessem melhor o latim e o grego do que os mais recentes, não fundavam a sua teologia sobre a filosofia contra a qual S. Paulo se erguera; c além disso, aqueles teólogos mais antigos, os primitivos padres, não usavam a terminologia técnica cm que os mais recentes se perdiam. O pensa­mento de Valia é que a filosofia não podia ser o fundamento da teologia. Vid. PAUL OSCAR KRISTELLER, Le Thomise et la Pensée Italienne de la Renaissance. Montréal-Paris, 1967, p. 76-78.

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esclarece o leitor apressado, que poderia supor que Erasmo defendia a igual validade da verdade antiga e da verdade cristã. E parece-nos da mesma sugestão agostiniana a substituição da referência original a Plutarco pela alusão a Platão: «Cicero vero, et Plato, et docent, et afficiunt».

Entre intervenção do editor coimbrão e a seguinte há um pequeno passo onde a expressão «talia essent colloquia monachorum omnia» surge «melhorada» para «talia essent inuicem quorundam Christia-norum colloquia». Aparece depois um corte grande no texto original. Estamos frente ao célebre passo em que Nefálio, personagem secundária neste banquete, exclama : «Sanctc Socrates, ora pro nobis». Fray Alonso de Virués omitira esta expressão que, isolada, ressoava, evidentemente, como herética. João Fernandes mantém-na, mas para logo acrescentar: «certe, si ueteres illi idola non coluissent (esses grandes espíritos da antiguidade), et gloriam incorruptibilis Dei, imagine corruptibilis homi-nis, volucrum quadrupedum, ac serpentum non mutassent; sique ut de Socratis sententia ita de eaeterorum in extrema rerum omium linea constarei, et Maronis et Flacci animae bene ominaret». Com razão anotará Le Clerc que Erasmo estava esquecido dos versos torpes de Horácio e Virgílio, caso contrário «néscio quis non crit Sanctus...» (683 n. 1). Observemos, entretanto, que Erasmo se está a referir aos exemplos de vida e sentenças morais de alguns pagãos e que ele mesmo não os apreciou sempre da mesma maneira. Sirva o caso de Séneca. Erasmo havia elogiado, talvez sob a influência de S. Jerónimo, este autor latino; mas no prefácio da sua segunda edição das obras de Séneca, em 1529, o holandês afirma nitidamente que ele nunca foi um cristão, que até à morte falou de deuses c de deusas, e que duvidou da ressurrei­ção e da imortalidade. Em terceiro lugar, anotemos que estes calorosos elogios de certos autores antigos têm por intuito apresentá-los como estímulos para os cristãos, num modo de argumentar que é frequentís­simo em Erasmo.

É então que João Fernandes procede ao corte acima referido, omi­tindo as considerações que Crisogloto faz a partir da verificação do modo de enfrentar a morte entre os Cristãos em comparação com os pagãos («At ego quot vidi Christianos, quam frigide morientes»). (623 E). Erasmo indica directamente «quosdam vel ímprobos uel supers-titiosos, uel, ut mollissime dicam, simplices et indoctos» que ensinam o povo a crer nas cerimónias, «praetermissis his quae nos uere reddunt christianos». Tendo em vista evidentemente os frades, atribui-lhes

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o triste espectáculo da sociedade cristã — «Si uulgus Christianorum spectes»—, preocupada mais com o cumprimento do rito do que com 0 significado dos sacramentos. E na parte final do passo dizia que, admitindo que sejam de acolher como devem ser coisas como as indul­gências e bulas, sobretudo de acordo com o que nos recomenda a «Eccle-siastica consuetudo», mesmo assim permanecem razões mais recônditas para que o cristão não tema a morte: «ut cum alacritate spiritus, ut cum Christiana fiducia migremus nine» (684 C).

Como se vê, o passo tocava em praticamente todos os pontos por onde, nos processos inquisitoriais, passava a acusação de luteranismo. Prudentemente o editor de Coimbra expurgou o texto, respeitando, é certo, a acusação erasmiana contra o modo supersticioso como os cristãos se comportavam cm relação aos momentos mais importantes da sua vida, como sejam o baptismo e a morte.

idêntico critério presidiu à omissão de um longo trecho de uma fala do dono da casa. Como apontámos atrás, o Convivium Religiosum acaba por transformar-se numa espécie de pequeno manual exemplar do comportamento ideal do cristão, o que equivalia, no pensamento de Erasmo e no seu modo de apreciar o viver social dos contemporâneos, a indicar como que uma «utopia» capaz de remediar os males da socie­dade. Ora, já próximo do final do banquete, Eusébio, na qualidade de anfitrião, manda dar a uma pobre mulher abandonada pelo marido parte da comida, isto acarreta toda uma explicação sobre o modo de dar c, portanto, sobre os conceitos de riqueza e pobreza em relação aos termos em que se devia definir a caridade cristã. Naturalmente, e explorando um tema de viva actualidade, suTge a critica às riquezas materiais dos templos e mosteiros (685 A), visíveis nos «sumptibus immo-dicis» com que alguns se ornamentavam, em consequência das ofertas votivas de muitas pessoas. «Sed ego si sacerdos aut episcopus essem, hortarei crassos illos aulicos, aut negotiatores, ut, si uellent sua peccata redimere apud Deum, ista clanculum effunderent in subsidium corum, qui uere pauperes sunt» (685 C). Terá aqui actuado a mesma prudência já verificada no passo anterior, desviando-se, desta maneira, a atenção para certos aspectos da vida eclesiástica que, nos anos do arcebispado de Frei Bartolomeu dos Mártires e das discussões do Concílio de Trento, continuavam sem solução ou remédio satisfatório (51).

(51) O problema da reforma conventual, campo particular da reforma da Igreja, vinha-se arrastando desde há muitos anos. Neste momento, princípios da

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O banquete religioso continua; e depois de demonstrar «ratione mathematica» (686 A), por A e B, o sentido do passo de Mateus, 6: «Nemo potest duobus dominis seruire», depois de sublinhar, apoiado em S. Paulo, que o homem não deve desprezar o mundo, pois Cristo não proibiu a actividade nele, mas tão só a solicitude ou seja o vulgar afecto daqueles homens que nada mais anseiam do que os bens mate­riais, Erasmo faz dizer à personagem principal que os homens usem deste mundo «tamquam non utamur, totam curam ac studium nostrum tran-feramus in amorem rerum coeJestium», com total rejeição de Satanás. De novo se salienta o carácter espiritual deste banquete quando se frisa a menor importância c atenção que o cristão deve atribuir às coisas terrenas, como o corpo, numa atitude que contrasta, pelo menos exteriormente, com outros pontos de vista mais «modernos» se nos lembrarmos do humanismo italiano; ou, talvez com mais rigor, florentino (52).

Só assim se compreende o significado das lembranças oferecidas no final do banquete: «Sunt libelli quattuor, horologia duo, lucerna.

segunda metade do séc. XVI, várias linhas de pensamento religioso coincidem neste ponto. Uma delas é a erasmiana, na sua crítica ao modo de viver não cristão de muitos membros das congregações religiosas; a ponto que há que buscar a igreja primitiva fora das ordens religiosas. Daí a voga de textos como o Banquete religioso. Mas não é a única, pois dentro da tradição romana e da parte do próprio poder polí­tico não faltaram sugestões e medidas tendentes a remediar os «males». Foi este entendimento que, de certo modo, permiliu o desejo de encontro de certos sectores da hierarquia católica com sectores de movimentos protestantes reformistas. Certos pontos do programa de Fr. Bartolomeu dos Mártires soam, à primeira vista, como erasmistas, sem que o Arcebispo houvesse necessidade de partir das obras do huma­nista holandês para os enunciar.

(52) P. O. Kristeller, aliás um pouco como E. Garin e até como A. Tenenti, tem visto o humanismo italiano do Renascimento como um movimento cultural e ético eminentemente laico. Mas relaciona-o com as preocupações filosóficas e reli­giosas da primeira metade do séc. XV, e acentura a importância dos meios cultos italianos, em que participam activamente elementos laicos e elementos religiosos na discussão em volta de problemas de natureza filosófica e religiosa. Um dos pontos fundamentais, para onde facilmente resvalavam as preocupações desses grupos, estava no interesse pelas fontes originais da religião e do pensamento cristãos; para esse campo se transferem as aquisições recentes da filologia e história obtidas graças ao estudo dos autores antigos, que depressa foram aplicadas ao estudo da Bíblia; é o caso de Valia e de Manetti, entre muitos outros, como será o de Erasmo, editor das Adno-tationes de Valia. Cf. KRISTELLER, Studies in Renaissance Thought and Letters, reimpressão de Roma 1969, p. 362, p. 367; cf. também Le Thomisme, cit., p. 65.

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et theca cum calamis» (687 E) (53). Isto é, oferendas que apontam, claramente, para a verdadeira actividade do cristão humanista: o estudo das letras humanas para entendimento das divinas e a produção de obras úteis à vida religiosa do cristão; ou seja, uma maneira do huma­nista actuar dentro da cidade cristã. No fim de contas, o que o próprio Desidério Erasmo procurou ser, sob a influência das leituras de Sto. Agos­tinho, a aceitarmos as conclusões a que chega, convincentemente. Charles Béné, já mais de uma vez aqui utilizado. O Ecclesiastes, publi­cado sem os últimos retoques um ano antes da morte, revela a preocupa­ção que de certo modo perseguiu Erasmo de, para além de tratados sobre a exegese dos textos, escrever uma ob/a sobre a pregação cristã, ou seja, a maneira de ensinar a «philosophia Christi». Os aparelhos de escrita que Eusébio oferece no fim, a par dos livros, parecem apontar para essa função do humanista, mas que o próprio Erasmo só foi capaz de abordar nos últimos anos da vida e ainda assim de forma incompleta.

Pois toda esta parte final permanece inalterada na edição do mestre de retórica de Coimbra; o que bem pode indicar afinidades humanistas com a doutrina erasmiana e ainda sugerir a possibilidade da aceitação das linhas mestras da «philosophia Christi» no círculo erudito a que, provavelmente, se destinavam os «Colloquia erasmi ad meliorem men­tem reuocata» (54).

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(53) Os quatro livros são os Provérbios de Salomão, o Evangelho segundo S. Mateus, as Epístolas de S. Paulo e «aliquot Plutarchi libellos de moribus, sed selectos...».

(54) Acerca desta utilização do latim de Erasmo em anos que já são, peda­gogicamente, jesuítas e, no campo da doutrina religiosa, tridentinos, vid H. R. TREVOR-ROPER, De la Reforme Lumières, cit., na parte final do cap. sobre Erasmo, em particular pp. 39-40.