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O INACESSVEL CAMPO JURDICO:
BREVE LEITURA DE O PROCESSO, DE KAFKA, A PARTIR DA TEORIA DE
PIERRE BOURDIEU
Fbio Belo
Gabriela Lasmar
Pedro Paulo Rodrigues
RESUMO
O poder simblico aquele decorrente dos nossos instrumentos de comunicao e
conhecimento e que impe como o mundo vai ser visto e compreendido. A partir deste
conceito, formulado por Pierre Bourdieu, analisamos trs passagens da obra O
Processo, de Franz Kafka: (a) a alegoria do porteiro da lei, que mostra como o direito
de difcil acesso aos que dele precisam; (b) o dilogo de K. com o pintor Titorelli, que
mostra como a influncia pessoal contribui para a execuo dos ritos jurdicos; e (c) o
dilogo de K. com seu advogado, que mostra a diviso entre iniciados e profanos e a
conseqente perda de autonomia dos que demandam justia.
PALAVRAS CHAVES
PODER SIMBLICO; KAFKA; BOURDIEU
ABSTRACT
The symbolical power is that follows from our communication and knowledge
instruments and that imposes how the world will be seen and understood. From this
concept, formulated by Pierre Bourdieu, we analyse three passages of the novel The
Trial, by Franz Kafka: (a) the allegory of the Laws doorkeeper which shows how
Professor da disciplina Linguagem e Pesquisa Jurdica, no Mestrado em Direito Empresarial, da Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC). Professor de Sociologia da graduao em Direito da FDMC. Mestre em Teoria Psicanaltica (FAFICH UFMG). Doutorando em Literatura Brasileira (FALE UFMG). Graduada em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC). Mestranda em Direito Empresarial pela Faculdade de direito Milton Campos (FDMC). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC). Mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC).
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difficult is the access to the Law, specially for whom needs it; (b) the dialogue between
K. and Titorelli, the painter, which shows how personal influence contributes for the
juridical procedures execution; and (c) the dialogue between K. and his lawyer, which
shows a division between profane and initiate and the consequent loss of autonomy for
whom demands justice.
KEYWORDS
SYMBOLICAL POWER; KAFKA; BOURDIEU
1. O PODER SIMBLICO
Uma das contribuies fundamentais da sociologia de Pierre Bourdieu foi a
elaborao do conceito de poder simblico. O poder simblico aquele decorrente dos
nossos instrumentos de comunicao e conhecimento. Trata-se de um poder invisvel,
pois exercido ou sofrido de tal forma que o agente ou a vtima no se sabe atingido
por esse poder. Um exemplo: o que denominamos direito? Quem tem direito a qu?
Quem determina o significado e a atribuio do direito? Quais so as condies sociais
de produo de um sujeito (a) que diz ter direito a alguma coisa e (b) que consegue,
efetivamente, fazer cumprir seus direitos? O rico consegue mais facilmente fazer
cumprir seus direitos que o pobre? Por que assim se o direito , a princpio, dito e
comunicado como igual para todos? Bourdieu deixa claro:
As diferentes classes e fraes de classes esto envolvidas numa luta propriamente simblica para imporem a definio do mundo social mais conforme aos seus interesses e imporem o campo das tomadas de posies ideolgicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posies sociais. Elas podem conduzir esta luta quer diretamente, nos conflitos simblicos da vida quotidiana, quer por produo, por meio da luta travada por especialistas da produo simblica (...) e na qual est em jogo o monoplio da violncia simblica legtima (cf. Weber), quer dizer, do poder de impor e mesmo de inculcar instrumentos de conhecimento e de expresso (taxonomias) arbitrrios embora ignorados como tais da realidade social.1
1 Bourdieu, 2006: 12.
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Ou seja, o poder simblico o poder de impor como o mundo vai ser visto e
compreendido. Quanto mais ele consegue ocultar sua origem histrica e arbitrria, mais
forte ele ser. Para voltarmos ao nosso exemplo: quanto mais natural ou racional o
direito parecer, mais forte ele ser. Todas as distores da realidade tero explicaes
lgicas de tal forma que assegura a consistncia aparentemente natural e racional da
estrutura de dominao. Por exemplo: o pobre tem os mesmos direitos que o rico, mas
ele tem menos acesso aos seus direitos porque no pode pagar por bons advogados e
no existem defensores pblicos em nmero suficiente, o grande nmero de recursos
e artifcios disponibilizados pelo direito (que manejados por um bom advogado, quase
sempre contratado por quem pode pagar caro, garantem a impunidade) so garantias do
princpio da ampla defesa, etc.
Os sistemas simblicos so estruturas ao mesmo tempo estruturadas e
estruturantes de comunicao e de conhecimento. O direito, por exemplo, estruturado:
h instituies como escolas, tribunais, secretarias, arquivos, etc., alm das estruturas
simblicas: linguagem especfica, roupas, etc. Mas tambm estruturante, isto , vai
expandindo a sua prpria estrutura. Diversas reas sociais vo sendo tomadas pelo
direito: a moral, o comrcio, a religio. Aos poucos, os indivduos comeam a perceber
o mundo a partir das categorias simblicas do direito: isto legal, aquilo ilegal, por
exemplo. Aos poucos, as atribuies simblicas arbitrrias desse campo comeam a ser
percebidas como naturais, como se sempre tivessem existido e como se no fosse
possvel organizar o mundo sem elas. Este ltimo aspecto parte fundamental para
compreendermos a fora do poder simblico:
O poder simblico como poder de constituir o dado pela enunciao, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a viso do mundo e, deste modo, a ao sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mgico que permite obter o equivalente daquilo que obtido pela fora (fsica ou econmica), graas ao efeito especfico de mobilizao, s se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrrio. (...) O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, a crena na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crena cuja produo no da competncia das palavras.2
Insistimos: a legitimidade da palavra no da competncia da palavra. No se
trata, portanto, de um poder que emana da prpria palavra, mas das relaes sociais que 2 Bourdieu, 2006: 14-5.
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FelipeRealce
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a sustentam e a produzem, que fazem com que ela tenha este ou aquele efeito. E mais:
relaes sociais que criam ou desconhecem palavras a fim de manter estveis as
relaes de poder.
Um dos trabalhos crticos mais rduos exatamente tornar explcito o carter
arbitrrio dessas taxonomias, das atribuies simblicas, do conhecimento, enfim, da
atribuio simblica que cria as formas de ver e entender o mundo social. Pierre
Bourdieu nos fornece importantes ferramentas tericas para faz-lo.
Neste artigo, gostaramos de usar essas ferramentas para examinar o campo
jurdico. Para isso, usaremos tambm o romance O Processo, de Franz Kafka. A escolha
dessa obra se deve ao fato de crermos que ela explicita exatamente o arbitrrio do
direito e algumas das formas pelas quais ele colocado em prtica.
2. O EFEITO SIMBLICO DO DESCONHECIMENTO
fundamental compreender como se constri, atravs do poder simblico
(sendo que o discurso jurdico tem um papel primordial nessa construo), esta distncia
e suposta independncia entre o que ocorre no mundo social e o que discutido no
campo jurdico e como que os indivduos passam a se submeter, cegamente, s
imposies desse mundo inacessvel. Para Bourdieu, essa construo fruto tanto das
relaes de fora que conferem estrutura ao campo jurdico, quanto da lgica interna do
direito, que delimita as solues que sero consideradas includas no campo do direito.
Mas o instrumento mais importante para que o direito surta efeito como
instrumento de dominao, para que no se perceba o seu contedo arbitrrio e para que
seja aceito o que Bourdieu denomina efeito simblico de desconhecimento. Algumas
situaes contribuem para que se chegue a esse efeito buscado. Vejamos.
no campo jurdico que se debatem os profissionais investidos de competncia
social e tcnica para tanto, em busca do monoplio do direito de dizer o direito. A
competncia tcnica para ingresso no campo jurdico implica a capacidade reconhecida
de interpretar os textos jurdicos que consagram a viso justa do mundo social.
do fato de ser somente nesse campo jurdico que se admite o embate destes
tcnicos, interpretando textos pr-existentes e, atravs dessa disputa, fazendo com que a
jurisdio se distancie cada vez mais da concepo comum de equidade, que resulta a
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iluso da sua autonomia absoluta em relao s presses externas. Como resultado
dessas disputas internas entre os profissionais, o que as pessoas concebem como justo,
nem sempre, ou quase nunca, o que se concebe como justo no campo jurdico. Atravs
dessa afirmao, s se pode concluir (diga-se, de maneira equivocada, e esse equvoco
justamente o que se pretende) que o campo jurdico mesmo autnomo em relao s
presses sociais que o cercam.
Outro ponto importante para que se d o efeito simblico do desconhecimento
o fato de que o corpus jurdico, ou seja, o conjunto de regras interpretadas pelos
profissionais do direito, altera-se ao longo do tempo, legitimando conquistas dos
dominados, que so convertidas em saber jurdico. Os dominados se sentem includos,
ao verem suas conquistas elevadas ao status de corpus jurdico, mas no percebem que
suas conquistas so apenas aquelas autorizadas pelos detentores do saber jurdico.
Assim, o reconhecimento dessas conquistas tambm no passa de um mtodo que
contribui para a eficcia simblica do direito, uma vez que torna mais imperceptvel a
questo da dominao.
Por fim, como ltimo ponto ligado efetivao do efeito simblico de
desconhecimento tem-se o fato de que por mais que os juristas possam se opor
interpretao dos textos que formam o corpus jurdico, uma vez que seu sentido nunca
imposto de maneira absoluta, esses debates ocorrem perante instncias hierarquizadas,
s quais conferido o poder de resolver os conflitos de interpretaes.
Sendo a Justia organizada segundo uma hierarquia no s de instncias
judiciais, mas tambm de normas e fontes que conferem autoridade s decises dessas
instncias, de se conceber que as divergncias de interpretao so absolutamente
controladas e somente funcionam dentro de um limite admitido pelos que esto
inseridos em toda a estrutura.
Tamanha a estruturao da hierarquia judicial e das normas que acaba por
conferir uma imensa coeso de conduta aos intrpretes do corpus jurdico. Com isso,
passa a existir uma convico, no s para os operadores do direito, mas tambm para
os que esto fora do campo jurdico, de que o direito tem fundamento nele prprio,
baseando-se numa lei maior (Constituio).
As formas histricas da razo jurdica, baseadas nessa coeso das interpretaes
que pouco variam, tendo em vista a sedimentao ao longo do tempo, na hierarquia das
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normas e na estrutura judicial, acabam por conferir ao direito e viso social produzida
por ele a aparncia de algo superior, existente independentemente do mundo em que
est inserto, transcendental, nas palavras de Bordieu, o que auxilia nesse efeito
simblico de desconhecimento da dominao imposta. A dominao no vista como
tal, mas como ordem natural das coisas.
A teoria formalista do direito um dos momentos da histria do direito que
merece ser destacado como uma das mais claras tentativas de se atribuir este carter
endgeno e transcendental ao valor da norma. Os juristas, adeptos da teoria formalista
do direito, concebem-no como um sistema autnomo, totalmente independente e alheio
s presses e constrangimentos sociais, o qual somente pode ser compreendido atravs
de sua dinmica interna. A teoria pura do direito de Kelsen considerada como o
pice dessa corrente, que tenta construir como que uma lei universal, que existe,
independentemente do ambiente social em que esteja inserta.
A alegoria de Kafka, atravs da parbola O Porteiro da lei, deixa muito clara a
questo do efeito simblico do desconhecimento. Por meio de seu discurso, de sua
postura de homem forte e da narrativa da estrutura da justia (ao mencionar porteiros
ainda mais fortes), o porteiro, sem que sequer seja necessrio um ato seu, coage o
homem do campo a no pretender acessar a porta da lei e a se submeter sua
autoridade, somente acessando-a quando fosse determinado. O mais interessante que o
porteiro, atravs de seu discurso, engana o homem, que se mantm na inteno de
ingressar por anos, quando podia t-lo feito desde o incio. Passemos anlise dessa
parbola.
3. O PORTEIRO DA LEI
Algum certamente havia caluniado Josef K., pois uma manh ele foi detido
sem ter feito mal algum.3. Assim comea o romance O Processo, de Franz Kafka. A
partir dessa primeira frase, se anuncia uma das crticas mais importantes j realizadas ao
campo jurdico. Josef K. processado e no sabe o motivo; no tem acesso ao seu
processo; o tribunal e seus membros, inclusive seu advogado, lhe parecem inacessveis.
A estria de Josef K. mostra como o campo jurdico pode ser transformado numa
3 Kafka, 2005: 7
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instituio cujas regras s so compreendidas por alguns, deixando de fora o prprio
sujeito que convoca ou convocado pelo Direito.
Interpretaremos algumas passagens desse romance a partir da teoria sobre o
Direito, de Pierre Bourdieu. Usaremos como texto fundamental o artigo A fora do
direito: elementos para uma sociologia do campo jurdico, no qual Bourdieu explica
quais so os principais dispositivos simblicos que formam o campo jurdico, definido
assim pelo autor:
O campo jurdico o lugar da concorrncia pelo monoplio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuio (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competncia ao mesmo tempo social e tcnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a viso legtima, justa, do mundo social. com esta condio que se podem dar as razes quer da autonomia relativa do direito, quer do efeito propriamente simblico de desconhecimento, que resulta da iluso da sua autonomia absoluta em relao s presses externas.4
O Processo, de Kafka, pode ser lido como uma alegoria dos efeitos desse
monoplio do direito de dizer o direito. Quem diz o que direito? Quais os
dispositivos econmicos, polticos, lingsticos, etc. que sustentam esse discurso?
Quem pode interpretar a lei? Quais interpretaes so ou no aceitas? O que Bourdieu
coloca em evidncia so exatamente esses aspectos que criam a iluso da autonomia
absoluta do direito, esse efeito simblico de desconhecimento. Como se cria essa
iluso? Bourdieu nos explica:
A concorrncia pelo monoplio do acesso aos meios jurdicos herdados do passado contribui para fundamentar a ciso social entre os profanos e os profissionais, favorecendo um trabalho contnuo de racionalizao prprio para aumentar cada vez mais o desvio entre os veredictos armados do direito e as intuies ingnuas da eqidade e para fazer com que o sistema das normas jurdicas aparea aos que a ele esto sujeitos, como totalmente independente das relaes de fora que ele sanciona e consagra.5
H uma passagem importante no captulo IX de O Processo que nos ajuda a
compreender a observao terica de Bourdieu. Trata-se da parbola Diante da lei est
um porteiro. Ela narrada a Josef K. por um sacerdote. Em resumo, tal parbola, 4 Bourdieu, 2006: 212 5 Bourdieu, 2006: 212
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FelipeRealce
presente nos textos introdutrios lei, narra a estria de um homem do campo que se
dirige ao porteiro e pede para entrar na lei. O porteiro lhe nega a entrada. O campons
pergunta se poderia entrar mais tarde. O porteiro diz que isto possvel. O homem do
campo olha para dentro da porta da lei e advertido pelo porteiro, que lhe diz: Se o
atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibio. Mas vs bem: eu sou poderoso. E sou
apenas o ltimo dos porteiros. De sala para sala, porm, existem porteiros cada um mais
poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a viso do terceiro.6. O homem
do campo no esperava tantas dificuldades para ter acesso lei. Pensava que a lei deve
ser acessvel a todos e a qualquer hora (ibidem). O porteiro lhe d um banquinho, no
qual fica assentado por dias e anos. O homem do campo tenta subornar o porteiro com
tudo que tem. Apesar de aceitar, o porteiro nunca permite que ele entre. J velho, o
homem do campo ainda pergunta ao porteiro: Como se explica que, em tantos anos,
ningum alm de mim pediu para entrar? Seu interlocutor responde: Aqui ningum
mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada s a voc. Agora eu vou
embora e fecho-a.7.
Essa parbola pode ser interpretada como uma alegoria do que Bourdieu chama
a distino entre os profanos e os profissionais. No fcil ter acesso lei. O que
poderia representar esse porteiro? Talvez, a prpria linguagem jurdica: desde os termos
tcnicos at a organizao da linguagem como dizer, em que momento, para quem ,
so como os porteiros que permitem apenas aos iniciados o acesso lei. O porteiro
pode ser visto tambm como uma metfora dessas relaes de fora que o direito
sanciona e consagra atravs do sistema de normas jurdicas. como se Kafka colocasse
em evidncia as relaes de fora que geralmente so obnubiladas pela racionalizao
do discurso jurdico. Diz Bourdieu, claramente:
Na realidade, a instituio de um espao judicial implica a imposio de uma fronteira entre os que esto preparados para entrar no jogo e os que, quando nele se acham lanados, permanecem de fato dele excludos, por no poderem operar a converso de todo o espao mental e, em particular, de toda a postura lingstica que supe a entrada neste espao social.8
6 Kafka, 2005: 214 7 Kafka, 2005: 215. 8 Bourdieu, 2006: 225
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A discusso entre Josef K. e o sacerdote sobre a parbola pode ser lida como
referncia aos jogos de interpretao, aos quais a lei est submetida. Nessa discusso,
fica evidente o que disse Bourdieu: mesmo os que esto dentro do espao jurdico dele
esto excludos se no tiverem acesso postura lingstica que os habilite a
compreender as regras do jogo. A discusso comea com uma interpretao sumria de
Josef K.: O porteiro portanto enganou o homem9. O sacerdote adverte Josef K. a no
ser to precipitado. Diz que, no texto, no h referncia alguma a respeito de engano.
Observemos, de imediato, a referncia ao texto, como se houvesse possibilidade de
uma referncia neutra, sem interpretaes. Josef K. ainda tenta argumentar que o
porteiro s avisa ao homem do campo que aquela porta era apenas para ele quando no
podia mais ajud-lo. O sacerdote lembra que o homem no perguntou antes e ainda diz
que o porteiro cumpriu seu dever. Aps longa argumentao, Josef K. vacila quanto
sua primeira interpretao e pergunta: voc cr, portanto, que o homem no foi
enganado?10. A resposta do sacerdote surpreendente:
No me entenda mal disse o sacerdote. Apenas lhe mostro as opinies que existem a respeito. Voc no precisa dar ateno demasiada s opinies. O texto imutvel, e as opinies so muitas vezes apenas uma expresso de desespero por isso. Neste caso, existe at uma opinio segundo a qual o enganado justamente o porteiro.11
O sacerdote, que acabara de fazer o elogio ao porteiro, mostra como o porteiro
pode ser visto como um ingnuo e, ainda, como algum que est preso ao seu posto
pela funo que desempenha, ao contrrio do homem do campo que um homem
livre. O sacerdote argumenta que o porteiro, na verdade, est subordinado ao homem do
campo, pois est ali apenas para guardar a porta que serve, exclusivamente, para ele. A
segunda interpretao, de acordo com a qual a vtima era o homem do campo, inverte
completamente a primeira. Kafka parece querer mostrar como o texto, de fato,
resultado das interpretaes do texto e no fruto de uma apropriao objetiva do
mesmo.
Diante dessa segunda interpretao, Josef K. argumenta que o porteiro, mesmo
ingnuo, prejudica o homem do campo. O sacerdote, mais uma vez, recusa a
9 Kafka, 2005: 214. 10 Kafka, 2005: 218. 11 Kafka, 2005: 218.
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interpretao de Josef dizendo que o homem do campo apenas chega lei, o porteiro j
est l. Foi incumbido pela lei de realizar um servio; duvidar da sua dignidade seria o
mesmo que duvidar da lei.12. O sacerdote agora apela para o outro texto, o texto da
lei, que no pode ser colocado em questo. Faz pensar, justamente, no que diz
Bourdieu acerca da construo da lei, marcada por trs efeitos: o de apriorizao, o de
neutralizao e o de universalizao.
Quando a lei feita, ela tende a ser escrita com todos os sinais da
impessoalidade e da neutralidade. Esse o efeito de apriorizao. como se a lei
sempre tivesse existido e no pertencesse a ningum, a nenhum grupo social. O efeito
de neutralizao tem sentido prximo: construir os enunciados normativos com sujeito
universal, aparentemente imparcial e normativo. Um exemplo disso est no tipo
ideal to presente no discurso jurdico: homicdio, furto, sem falar nos tipos que
aparecem no campo policial: meliante, bandido. Todos esses universais passam
por cima da particularidade de cada fato: nem todo homicdio igual, nem todo furto
tem a mesma causa. O ltimo efeito, o de universalizao, tambm se obtm atravs da
linguagem: o recurso sistemtico ao indicativo para enunciar normas, o emprego,
prprio da retrica da atestao oficial e do auto, de verbos atestivos na terceira pessoa
do singular do presente (...)13. Em resumo, a lei construda de tal forma que fica
mesmo difcil duvidar dela. Como se ela fosse um a priori, neutro e universal.
justamente essa mentira que Josef K. parece denunciar nos momentos finais de sua
discusso com o sacerdote:
No concordo com essa opinio [a de que duvidar da dignidade do porteiro seria o mesmo que duvidar da lei] disse K., balanando a cabea. Pois se se adere a ela, preciso considerar como verdade tudo o que o porteiro diz. Que isso, porm, no possvel, voc mesmo fundamentou pormenorizadamente. No disse o sacerdote. No preciso considerar tudo como verdade, preciso apenas consider-lo necessrio. Opinio desoladora disse K. A mentira se converte em ordem universal.14
12 Kafka, 2005: 220-1. 13 Bourdieu, 2006: 215-6. 14 Kafka, 2005: 221.
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Entre a verdade e o necessrio, o sacerdote escolhe o segundo. A verdade
apenas um efeito que a lei deve produzir, mas ela no deve, necessariamente, ser real. A
troca da verdade pelo necessrio efeito dessas prticas discursivas que tornam a lei
apriorstica, neutra e universal. O que se escamoteia aqui? Como podemos interpretar a
mxima de Josef K., a mentira se converte em ordem universal? Talvez as
observaes de Bourdieu nos auxiliem a responder:
A prpria forma do corpus jurdico, sobretudo o seu grau de formalizao e de normalizao, depende, sem dvida, muito estritamente da fora relativa dos tericos e dos prticos, dos professores e dos juzes, dos exegetas e dos peritos, nas relaes de fora caractersticas de um estado do campo (em dado momento numa tradio determinada) e da capacidade respectiva de imporem a sua viso do direito e da sua interpretao. (...) De fato, a fora relativa das diferentes espcies de capital jurdico nas diferentes tradies tem, sem dvida, que ser posta em relao com a posio global do campo jurdico no campo do poder que, por meio do peso relativo que cabe ao reino da lei (the rule of law) ou regulamentao burocrtica, determina os seus limites estruturais pela eficcia da ao propriamente jurdica.15
Em outras palavras, a lei no tira o seu poder dela mesma, mas de uma srie de
dispositivos que, alm de garantirem seu poder, do a impresso de que esse poder
emana apenas dela, isto , faz com que ela parea necessria. Quais so estes
dispositivos? Vo desde a linguagem, como vimos nos trs efeitos da escrita da lei, at
as suas prticas interpretativas: professores, juzes, etc. A fora do capital jurdico
depende, e muito, da burocracia que inventa a lei. A parbola do porteiro diante da lei e
a discusso entre Josef K. e o sacerdote mostram que a lei no to neutra como
aparenta ser. Alm disso, esse trecho do romance de Kafka deixa claro que a aparente
universalidade da lei muito mais particular do que se gostaria de imaginar.
Passemos agora anlise de um outro trecho do romance. Trata-se do dilogo
entre Josef K. e o pintor Titorelli, que revela detalhes curiosos sobre a natureza do
processo ao qual K. est submetido.
4. AS TRS POSSIBILIDADES DE ABSOLVIO
15 Bourdieu, 2006: 218-9.
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O livro de Kafka parece nos mostrar que o direito no s exercido atravs do
manejo das leis e instrumento formais proporcionados pela ordem jurdica. H um outro
tipo de atuao no direito, alis, muito comum, que se d atravs do uso de influncia
pessoal. o que fica claro nessa passagem:
Inacessvel apenas s provas que se apresentam perante o tribunal disse o pintor, erguendo o dedo indicador como se K. ainda no tivesse notado uma distino sutil. Mas nesse sentido as coisas mudam quando se procura agir por trs do tribunal pblico, ou seja, nas salas de entrevista, nos corredores ou, por exemplo, tambm aqui no ateli16.
Cada advogado tem uma espcie de arma, que varia desde o conhecimento
tcnico influncia pessoal, como vimos na passagem acima. O conhecimento de cada
um, a sua especializao, as suas influncias pessoais o que ser posto a favor de seu
cliente, na mediao feita para o acesso, sempre indireto, ao campo jurdico. Os
instrumentos dos advogados e demais tcnicos do direito so exercitados na utilizao
das formas e frmulas disponibilizadas pelo aparato jurdico, como armas de um jogo
em um campo que somente a eles acessvel. Quanto aos outros, esto condenados a
suportar a fora da forma, quer dizer, a violncia simblica que conseguem exercer
aqueles que graas sua arte de pr em forma e de pr formas sabem, como se diz,
pr o direito do seu lado e, dado o caso, pr o mais completo rigor formal, a servio dos
fins menos irrepreensveis17.
Titorelli tambm deixa claro um outro elemento no dito que existe no campo
jurdico. Trata-se da fora da herana. O pintor herdou de seu pai suas ligaes com os
juzes. Trata-se de um posto que s se adquire por herana. Por isso, afirma que no so
necessrias novas pessoas. Explica, ainda, que apenas os capacitados podem pintar as
diferentes hierarquias de juzes18. O campo jurdico, em conseqncia do papel
determinante que desempenha na reproduo social, dispe de uma autonomia menor
do que de outros campos19. E a hierarquia, na diviso do trabalho jurdico tal como se
apresenta mediante a hierarquia dos especialistas, varia no decurso do tempo, ainda que
16 Kafka, 2005: 150. 17 Cf. Bourdieu, 2006: 205-6. 18 Kafka, 2005: 151. 19 Bourdieu, 2006, 251.
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em medida muito limitada20. Ou seja, a prpria manuteno das posies sociais,
metaforizadas pela herana, representa como o direito um forte instrumento de
dominao e manuteno dos interesses da classe dominante.
Aps esses dilogos, Titorelli tenta explicar a K as trs possibilidades de
absolvio: a absolvio real, a absolvio aparente e a dilao indefinida. Afirma que a
absolvio real a melhor, apenas que no pode exercer a menor influncia para
conseguir uma absolvio desse tipo. E ainda ressalta que, a seu critrio, no existe
absolutamente ningum que possa conseguir, com sua influncia, coisa semelhante.
Fala-se aqui de duas coisas diversas: daquilo que consta na lei e daquilo que eu experimentei pessoalmente o senhor no pode confundi-las. Na lei de qualquer modo no a li consta, naturalmente, por um lado, que o inocente absolvido, mas por outro ali no consta que os juzes podem ser influenciados. Ora, a minha experincia justamente o contrrio. No sei de nenhuma absolvio real, mas sem dvida de muitas formas de influncia. Claro que possvel que em todos os casos que eu conheci no existisse inocncia. Mas no uma coisa improvvel? Em tantos casos, nenhuma inocncia sequer? J em criana escutava meu pai com ateno, quando ele contava em casa sobre processos; tambm os juzes que iam ao seu ateli falavam do tribunal, nos nossos crculos no se fala de outra coisa; mal conquistei a possibilidade de ir pessoalmente ao tribunal, sempre a utilizei e, at o ponto em que eles so visveis, segui processos incontveis em estgios importantes e tenho de admiti-lo no presenciei uma s absolvio real21.
Essa passagem deixa claro como o direito pode ser algo arbitrrio e, ao mesmo
tempo, nos mostra uma situao que, infelizmente, ocorre na realidade, no sendo
apenas fruto da imaginao de Kafka: a questo do uso da influncia pessoal sobre o
juiz para solucionar um determinado caso de acordo com as convenincias. No entanto,
apesar de o uso da influncia pessoal sobre os magistrados ser algo reprovvel para o
senso comum, ao mesmo tempo se confunde com o prprio Direito. No entendimento
de Bourdieu, o trabalho de racionalizao, ao fazer ceder ao estatuto de veredicto uma
deciso judicial que deve, sem dvida, mais s atitudes ticas dos agentes do que s
normas puras do direito, confere-lhe eficcia simblica exercida por toda ao quando
ignorada no que tem de arbitrrio, reconhecida como legtima22. No se pode olvidar
que os textos jurdicos so elsticos e muitos vezes chegam a ser at
20 Bourdieu,2006: 251. 21 Kafka, 2005: 153. 22 Bourdieu, 2006: 225.
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indeterminados23, dando, assim, oportunidade para que os intrpretes da lei possam
atribuir diferentes significaes para uma mesma norma.
Diante disso, o que se tem que, apesar de existir o corpus legal, que confere
uma determinada orientao ao julgamento de uma questo, h sempre uma parcela
reservada interpretao, ou seja, ao arbtrio dos juzes, que obviamente so
influenciados pelo meio, pela sua experincia de vida e, mesmo, em ltima anlise,
pelas partes envolvidas no julgamento.
o que Bordieu percebe, ao afirmar o seguinte:
Em resumo, o juiz, ao invs de ser sempre um simples executante que deduzisse da lei as concluses diretamente aplicveis ao caso particular, dispe antes de uma parte de autonomia que constitui, sem dvida, a melhor medida da sua posio na estrutura da distribuio do capital especfico de autoridade jurdica; os seus juzos, que se inspiram numa lgica e em valores muito prximos dos que esto nos textos submetidos sua interpretao, tm uma verdadeira funo de inveno. Se a existncia de regras escritas tende, sem qualquer dvida, a reduzir a variabilidade comportamental, no h dvida tambm de que as condutas dos agentes jurdicos podem referir-se e sujeitar-se mais ou menos estritamente s exigncias da lei, ficando sempre uma parte de arbitrrio, imputvel a variveis organizacionais como a composio do grupo de deciso ou os atributos dos que esto sujeitos a uma jurisdio, nas decises judiciais h tambm uma parte de arbitrrio no conjunto de atos que os precedem e os predeterminam, caso das decises da poltica que dizem respeito priso. 24
Voltando interpretao da obra de Kafka, tem-se que, aps explicar a
absolvio real, o pintor explica que a absolvio aparente exige, durante algum tempo,
concentrao de todas as energias, enquanto que a dilao indefinida requer ligeiros
esforos, mas duradouros.
necessrio analisar a questo da mediao proposta por Bourdieu, e
exatamente esse o papel que desempenhado pelo pintor, Titorelli. Essa questo
representa nada mais do que a perda da relao de apropriao direta e imediata de sua
prpria causa25. Ao entregar o caso para uma terceira pessoa, a parte que at ento
estava diretamente envolvida perde a sua autonomia na forma em que as decises sero
tomadas. Apenas passa a aceitar o que o mediador lhe prope, at mesmo porque pelo
fato de desconhecer o campo jurdico, no sabe como opinar ou como interferir. Passa,
23 Bourdieu, 2006:223. 24 Bordieu, 2006: 222-3. 25 Bourdieu, 2006:229.
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ento, a ser um mero expectador dos acontecimentos, mesmo que, em um futuro
prximo, a sentena dada pelo juiz interfira diretamente em sua vida. algo
contraditrio, pois ele no participa da soluo do conflito, mas diretamente envolvido
nas suas conseqncias.
A mediao refora a autonomia do Direito e a separao entre os profissionais
e os profanos. Essa separao, na viso de Bourdieu, intencional, pois aumenta a
necessidade de novos interesses jurdicos entre aqueles que, estando de posse da
competncia especificamente exigida, encontram a um novo mercado de trabalho26.
o que se chama reforo circular, isto , a cada progresso no sentido da jurisdicizao
de uma dimenso da prtica gera novas necessidades jurdicas27. Ou seja, se surgem
novas leis em defesa de uma minoria, tal ato no realizado com o objetivo de
realmente atender s necessidades de uma minoria, mas sim, de ampliar o mercado de
trabalho e, conseqentemente, o ganho de uma pequena parcela privilegiada da
sociedade.
A concluso a que se chega em relao a essa passagem que no h absolvio,
no h meios de se defender e sempre haver a protelao, no s na histria fictcia
como tambm na vida real, pois todos devem seguir as regras, mesmo sem conhec-las.
E, socialmente falando, ningum est fora do campo jurdico. Qualquer indivduo,
mesmo que jamais em sua vida estude o direito, para que possa viver em comunidade,
dever seguir as normas que lhe so impostas.
Passemos agora anlise de um ltimo trecho do romance de Kafka.
5. O DILOGO ATRAVS DO QUAL K. DISPENSA SEU ADVOGADO
Irritado com a inrcia do seu advogado que, inquirido sobre o andamento do seu
processo e sobre as providncias que vinha tomando, sempre reagia com respostas
evasivas, Josef K. resolve dispens-lo, indo, para tanto, sua casa . L, encontra-se com
outro cliente do advogado, envolvido em um processo similar ao seu.
Do dilogo atravs do qual K. comunica ao advogado sua inteno e daquele
subseqente, mantido entre o advogado e seu outro cliente, o comerciante Block, pode-
se extrair interessantes interpretaes relacionadas tese de Bordieu. 26 Bourdieu, 2006: 234. 27 Bourdieu, 2006: 234.
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FelipeRealce
A conversa entre K. e o advogado inicia-se com aquele comunicando a este que
pretende dispens-lo. Faz isso em meio aos importunos causados pela enfermeira do
advogado (que se tornou sua amante), que a todo custo tenta desviar sua ateno. O
advogado aproveita a atitude de sua enfermeira, para tecer longos comentrios sobre a
beleza dos acusados, que a encantavam.
Pode-se perguntar qual a relao entre o que K. foi tratar com o advogado e as
elucubraes deste ltimo acerca do tema acima mencionado. Talvez nenhuma. O que
Kafka pretende demonstrar como o advogado se utiliza do seu instrumento maior de
trabalho, a retrica, para no ser dispensado e, mais do que isso, para no deixar o
cliente perceber que est sendo persuadido a permanecer utilizando-se de seus servios.
Chama-se ateno para o poder da linguagem e do discurso utilizados exclusivamente
para fazer valer os interesses do advogado e manter o seu campo de trabalho, atravs do
chamado efeito simblico do desconhecimento, nas palavras de Bordieu.
No logrando xito nesse seu primeiro artifcio, o advogado prossegue, fazendo
longas explanaes evasivas sobre seu modo de trabalho, seu escritrio e sobre a
dificuldade das causas, sem, em momento algum, mencionar, de fato, o que est
fazendo em benefcio de K. e de sua causa. Com isso, K. se impacienta ainda mais,
mostrando-se irredutvel no seu intento de dispensar o advogado. Mais uma vez,
percebe-se o advogado utilizando-se do instrumento simblico da linguagem a seu
favor.
O advogado chega a dizer que confere a K. muito melhor tratamento que
costuma dispensar aos seus demais clientes e que espera melhor compreenso acerca do
seu trabalho, pelo fato de t-lo deixado mais a par dos trmites judiciais. Vejamos a fala
do advogado a este respeito:
No quis contradiz-lo disse o advogado. Quis acrescentar, porm, que havia esperado do senhor mais discernimento do que dos outros, principalmente porque lhe dei mais viso sobre o tribunal e a minha atividade do que costumo fazer com os demais clientes. E agora preciso reconhecer que, apesar de tudo, no tem suficiente confiana em mim. O senhor no me torna as coisas mais fceis.28
28 Kafka, 2005: 188.
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Como toda a retrica no surte efeito, o advogado decide mostrar a K. como, de
fato, o tratamento a ele dispensado melhor que aquele dispensado aos demais clientes
e, para tanto, chama ao seu quarto o comerciante Block, o outro cliente presente na casa.
Inicialmente, deve-se salientar que o advogado menciona o fato de ter colocado
K. mais a par dos trmites judiciais como um grande privilgio no concedido aos
demais clientes. Nesse trecho, resta demonstrada a inacessibilidade do campo jurdico
aos profanos, que tm o seu grau de insero no campo jurdico regulado pelos
tcnicos do direito. Essa passagem do livro de Kafka exemplifica, ao mesmo tempo, a
manuteno do monoplio do campo jurdico pelos tcnicos do direito e a concesso de
maior ou menor compreenso desse campo ao leigo, de acordo com os interesses
envolvidos.
Quando o comerciante Block entra no dilogo, a situao fica ainda mais
evidente. O advogado o humilha e o rebaixa de todas as maneiras possveis. O
comerciante se submete e se coloca na situao de inferior. Implora por uma informao
que seja a respeito do seu processo. Mas quando K. lhe dirige a palavra de maneira
ofensiva, Block reage com grande violncia, demonstrando possuir dignidade. Ento, o
que o faz aceitar a humilhao vinda do advogado? Por que o considera superior? O
acesso ao campo jurdico, ao mesmo tempo incompreensvel e to impactante para a
vida dos leigos, que lhe confere a superioridade.
A existncia desse campo jurdico, que confere aos tcnicos do direito o poder
de mediar o acesso justia, ou de possuir o monoplio do direito de dizer o direito,
segundo as palavras de Bordieu, a razo dessa dominao que, na alegoria do livro, d
ensejo ao fato de o comerciante se humilhar perante o advogado:
O campo jurdico reduz aqueles que, ao aceitarem entrar nele, renunciam tacitamente a gerir eles prprios o seu conflito (pelo recurso fora ou a um rbitro no oficial ou pela procura direta de uma soluo amigvel), ao estado de clientes dos profissionais; ele constitui os interesses pr-jurdicos dos agentes em causas judiciais e transforma em capital a competncia que garante o domnio dos meios e recursos jurdicos exigidos pela lgica do campo29.
29 Bordieu, 2006: 233
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Portanto, a alegoria de Kafka evidencia a existncia de um campo jurdico
somente acessvel ao advogado, mas que tem muito impacto sobre a vida do cliente que,
por isso, a ele se submete cegamente e se sente inferior, por no possuir os meios, ou
por abrir mo dos meios que possui de, ele prprio, resolver seu litgio. O advogado
passa, ento, a ser imprescindvel, unicamente pela criao do campo jurdico.
Por fim, deve-se atentar para a conduta adotada pelo advogado durante todo o
dilogo, tanto com K. quanto com o comerciante. Toda ela pautada no poder
simblico, quer quando usa da retrica para ludibriar K. e tenta faz-lo seguir como seu
cliente, quer quando humilha o comerciante, como forma de demonstrao de poder, no
intuito de impressionar K.
A leitura dessa passagem permite constatar, mais uma vez, como o poder
exercido pelo Direito est fundamentalmente ancorado no poder simblico.
6. CONSIDERAES FINAIS
O dilogo que propomos entre Kafka e Bourdieu teve como objetivo mostrar que
a constituio do campo jurdico se d pela instaurao de mecanismos ligados a
prticas de desconhecimento e ao poder simblico.
O romance O Processo pode ser lido como uma alegoria dos efeitos da
constituio do campo jurdico, em especial, aquele que diz respeito a tornar o Direito
inacessvel, inclusive e fundamentalmente, para aqueles que dele precisam ou para
aqueles que enfrentam as punies dele advindas.
REFERNCIAS
Bourdieu, Pierre. O poder simblico. 9.ed. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2006.
Kafka, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. So Paulo: Companhia das Letras,
2005.
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