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UNIVERSIDADE TIRADENTES
DIRETORIA DE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
MESTRADO EM DIREITOS HUMANOS
O DIREITO PENAL DO INIMIGO: UMA ANÁLISE
CRÍTICA DO EXPANSIONISMO PENAL NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA
JÚLIO CÉSAR DO NASCIMENTO RABÊLO
ARACAJU
FEVEREIRO- 2016
2
UNIVERSIDADE TIRADENTES
DIRETORIA DE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
MESTRADO EM DIREITOS HUMANOS
O DIREITO PENAL DO INIMIGO: UMA ANÁLISE
CRÍTICA DO EXPANSIONISMO PENAL NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA
Dissertação final submetida
examinadora para a obtenção do título de
Mestre em Direito, na área de
concentração em Direitos Humanos.
Autor: Júlio César do Nascimento Rabêlo
Orientador: Prof. Pós-Doutor Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho
ARACAJU
FEVEREIRO – 2016
3
O DIREITO PENAL DO INIMIGO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO
EXPANSIONISMO PENAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
JÚLIO CÉSAR DO NASCIMENTO RABÊLO
DISSERTAÇÃO SUBMETIDA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
DIREITO DA UNIVERSIDADE TIRADENTES COMO PARTE DOS REQUISITOS
NECESSÁRIOS PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM DIREITOS
HUMANOS.
Aprovada em: ____/____/____
_______________________________________________________________
Prof. PhD. Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho (Orientador)
________________________________________________________________
Profª. Drª. Veronica Teixeira Marques (Membro Interno da Banca)
________________________________________________________________
Profª. Drª. Karyna Batista Sposato (Membro Externo da Banca)
________________________________________________________________
Profª. PhD. Liziane Paixão Silva Oliveira (Membro Suplente)
4
SUMÁRIO
1- INTRODUÇÃO.............................................................................................. .........12
2- A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E O DIREITO PENAL............................15
2.1 – A Sociedade Contemporânea................................................................................15
2.2 - A Sociedade Economicamente Globalizada e seus efeitos penais..........................17
2.3 - A relação entre a invisibilidade e a exclusão social com o aumento da
criminalidade................................................................................................................ 20
2.4 - A banalização das diferenças e o encarceramento como paradigma da
simplicidade....................................................................................... ..........................25
2.5 - A seletividade do sistema penal............................................. ...............................28
3 - AS POLÍTICAS CRIMINAIS NA ATUALIDADE: CARACTERÍSTICAS DE
EXPANSÃO E RECRUDESCIMENTO DO DIREITO PENAL...............................31
3.1 – O Expansionismo Penal....................................................... .................................31
3.2 – Políticas de enfrentamento do crime.....................................................................33
3.2.1 - Das teorias de Conflito......................................................................................34
3.2.1.1 - Da Teoria do Etiquetamento ou Labelling Approach.......................................34
3.2.1.2 - Da Teoria crítica ou radical.................................... .........................................35
3.2.1.3 - Do Neorretribucionismo......................................... .........................................36
5
3.2.1.3.1 - Movimento Lei e Ordem, Política de tolerância zero, Teoria das janelas
quebradas e a Teoria das três faltas e está fora..................................................... .........36
3.3 – A criminalidade real, a cifra negra e a cifra dourada............................................40
3.4 - A expansão do direito penal em Jesús-Maria Silva Sanches..................................41
3.4.1 - As Velocidades do Direito Penal........................................... .............................44
3.5 – O Direito Penal Mínimo e o Direito Penal Máximo..............................................45
3.5.1 – Direito Penal Mínimo........................................................................................47
3.5.2 – Direito Penal Máximo.......................................................................................50
4 – O DIREITO PENAL DO INIMIGO.....................................................................52
4.1 – Considerações Preliminares................................................... ...............................52
4.2 – Análise da teoria do Direito Penal do Inimigo de Günther
Jakobs....................................................................................................... ....................54
4.2.1 – Suporte Filosófico........................................................................... ..................55
4.2.2 – O Inimigo em Jakobs............................................................ .............................56
4.2.3 - Características do Direito Penal do Inimigo........................ ..............................59
4.2.4 - O Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico brasileiro........................61
4.2.4.1 – A edição da Lei nº 12.654/12 e o surgimento de um novo processo de escolha
inimigos no Brasil................................................ .........................................................63
4.2.4.2 – A Lei nº 12.850/13 e a Ofensa a Garantias Constitucionais............................72
4.3 – O Direito Penal do Inimigo diante do Estado de Direito................................ .......78
4.3.1 – O Estado Democrático de Direito como garantidor dos direitos
humanos................................................................................. ......................................79
4.3.2 – A (In) compatibilidade do Direito Penal do Inimigo de Jakobs com o Estado
Democrático de Direito.................................................................................... .............81
6
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................85
REFERÊNCIAS............................................................................................... ...........94
7
Ficha catalográfica: Rosangela Soares de Jesus CRB/5 1701
Rabelo, Julio Cesar do Nascimento
R114d O direito penal do inimigo: uma análise crítica do expansionismo
penal na sociedade contemporânea. / Julio Cesar do Nascimento Rabelo ;
orientação [de] Prof. Dr. Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho –
Aracaju: UNIT, 2016.
95 p. il.: 30cm
Inclui bibliografia.
Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos)
1.Direito penal. 2. Teoria de Günther Jakobs. 3. Direito penal do inimigo. 4.
Argumentos contrários à sua legitimidade. 5. Estado democrático de direito.
I. Carvalho, Luís Gustavo Grandinetti Castanho de. II. Universidade
Tiradentes. III. Título.
CDU: 343.2
8
Dedico este trabalho à minha esposa Simone, que durante
todo esse percurso me deu o apoio necessário em todos os
aspectos, grande exemplo de mulher, linda e guerreira, a
você um sonoro “Te amo”.
Dedico também aos presentes mais lindos que o bom Deus
me deu, meus dois filhos Anna Júlia e Lucca Gabriel,
papai ama muito vocês.
9
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu pai Ildon e a minha mãe Ana Maria, que ao longo da minha vida
além do amor e carinho que sempre dispensaram, fizeram de mim um homem honrado e
humilde; e aos meus irmãos, em especial Ildon Júnior, por estar sempre ao meu lado nessa
grande batalha diária que é a vida.
Agradeço ao meu professor e orientador Luís Gustavo Grandinetti, por ter me tirado
da superfície e me mostrado como é profundo o tema deste trabalho, foi, sem dúvida alguma,
a experiência mais enriquecedora da minha vida acadêmica e profissional.
Aos professores do programa de pós-graduação da Universidade Tiradentes, meu
muito obrigado pelos ensinamentos, em especial Professora Liziane, agradeço a paciência e o
cuidado dispensados ao longo desse árduo período.
Agradeço também aos grandes amigos que me acompanharam durante esse
mestrado, Paulo Pacheco e Luciana, vocês, sem sombra de dúvidas, tornaram mais leve essa
caminhada, bem como aos novos amigos que o curso me trouxe, entre os quais Vilobaldo e
Martha.
Por derradeiro, além de dedicar este trabalho, tenho que agradecer à minha esposa e
filhos por terem aturado e respeitado a minha ausência quando se fez necessária, bem como
por serem fonte primária e imediata de todos os meus sonhos.
10
RESUMO
A sociedade moderna vem sofrendo profunda influência da globalização econômica, em
especial no que concerne ao direito penal, vez que, com o surgimento de novas condutas
ilícitas, dá-se a criação de novos tipos penais e, ao lado disso, tipos penais já existentes
acabam recebendo um incremento com o recrudescimento das penas. Essa situação provocou
um aumento na utilização do direito penal, abandonando-se a característica de ultima ratio,
fenômeno que ficou conhecido como expansionismo penal. Como consequência, surgiu uma
vertente mais radical, representativa do direito penal máximo, tendo como principal expoente
o alemão Günther Jakobs que idealizou a Teoria do Direito Penal do Inimigo. Denominado de
Direito Penal de Terceira Velocidade, apresenta como principais características a antecipação
da tutela punitiva (caráter prospectivo), mitigação de garantias e endurecimento das penas.
Essa teoria será abordada no presente trabalho, apontando-se os principais argumentos
contrários à sua legitimidade, bem como se procurou discutir sua compatibilidade com o
Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Sociedade Moderna. Expansionismo Penal. Direito Penal do Inimigo. Estado
Democrático de Direito.
11
ABSTRACT
Modern society has undergone profound influence of economic globalization, in particular
with regard to criminal law, since, with the emergence of new illegal conduct, it gives the
creation of new criminal offenses and, next to that, existing criminal types they end up getting
an increase with the intensification of penalties. This situation led to an increase in the use of
criminal law, abandoning the characteristic of ultima ratio, a phenomenon that became known
as criminal expansionism. As a result, there was a more radical side, representing the
maximum criminal law, the main exponent of the German Günther Jakobs who conceived the
Theory of Criminal Law of the Enemy. Called Third Criminal Speed Law, presents the main
characteristics of anticipation of punitive protection (prospective character), mitigation and
guarantees of tougher penalties. This theory will be addressed in this paper, pointing up the
main arguments against the legitimacy, and we intend to discuss its compatibility with the
democratic rule of law.
Keywords: Modern Society. Criminal expansionism. Criminal Law of the Enemy. Democratic
state.
12
1. INTRODUÇÃO
O foco principal do presente estudo é a teoria de Günther Jakobs, o Direito Penal
do Inimigo, que foi analisada sob uma ótica crítica, confrontando sua legitimidade frente
ao Estado Democrático de Direito.
Desde o século passado o mundo vem passando por transformações, em especial
no mundo jurídico, onde visualizamos a expansão da utilização do direito penal,
situação esta que resulta de uma série de fatores, entre os quais a influência da mídia, a
sensação constante de insegurança e principalmente os efeitos oriundos do fenômeno
denominado globalização econômica.
Poderá ser observado que a globalização ao passo em que proporciona vantagens,
acaba também produzindo malefícios, mormente quando se fala em criação de novos
tipos penais até então impensados.
Como consequência dessa expansão do direito penal, surgiu uma ala mais radical,
aquela que Jesus-Maria Silva Sanchez denominou de Direito Penal de Terceira
Velocidade, representada pela teoria do direito penal do inimigo de Günther Jakobs, que
se caracteriza como verdadeiro direito penal do autor.
Construída sobre clara base contratualista, a teoria de Jakobs faz uma distinção
entre pessoa e inimigo, ressaltando que é necessária a existência de duas espécies de
direito penal, uma destinada ao delinquente comum – Direito Penal do Cidadão – e outra
destinada àquele que se coloca contrário ao Pacto Social firmado – Direito Penal do
Inimigo.
Enquanto na primeira espécie as garantias constitucionais e processuais são
obedecidas, na segunda essas garantias desaparecem, dando lugar a penas desumanas.
O ordenamento jurídico de vários países está recheado de normas com
características de um direito penal do inimigo, em especial o Brasil, como se verá
adiante, como citamos a título de exemplo as Leis nºs. 12.654/12 e 12.850/13, a primeira
13
que regula a utilização de dados genéticos no âmbito do processo penal, e a segunda que
regula o delito cometido por organizações criminosas.
A situação nos leva a concluir que a ideia de direito penal como ultima ratio foi
abandonada, estando hoje, o Estado, utilizando-se deste ramo do direito, em algumas
situações, como substituto de políticas públicas, dando um verdadeiro caráter simbólico
a esse ramo.
O objetivo principal deste trabalho é esmiuçar a teoria do direito penal do
inimigo, expondo seus fundamentos filosóficos, suas características e, principalmente,
verificar se há a compatibilidade desse instrumento com um Estado de Direito.
Demonstrou-se também, através de uma digressão histórica, os fatores que
conduziram a essa nefasta ascensão do direito penal, fazendo-o emergir como principal
remédio para solução dos problemas sociais, bem como de que modo normas com essas
características idealizadas por Jakobs se apresentam dentro da legislação.
Esta pesquisa é de natureza exploratória, pois como se vê, procurou-se levantar
informações a respeito da teoria de Jakobs, possibilitando a formação de convicções
acerca do assunto.
Para atingir esses objetivos foram utilizadas obras de filosofia, sociologia,
criminologia, bem como diversas obras de renomados penalistas pátrios e estrangeiros,
tudo no afã de promover uma análise crítica da teoria do direito penal do inimigo.
Na busca de dar uma maior profundidade ao trabalho, optou-se pela utilização de
pesquisas bibliográfica, documental, eletrônica, dando-se ênfase à doutrina,
jurisprudência, à própria legislação pátria, bem como artigos científicos.
Dito isto, o trabalho foi dividido em 03 (três) capítulos, a saber:
O capítulo inicial abordou as modificações introduzidas na sociedade
contemporânea, em especial no âmbito do direito penal, seja no que diz respeito aos
chamados delitos econômicos, categorizados como macrocriminalidade, seja no que
concerne ao aumento dos crimes praticados contra o patrimônio, ou seja, a
microcriminalidade.
Salientou-se também ainda no capítulo inicial, a questão atinente à seletividade
do direito penal, em que a produção das normas acaba tendo destinatários previamente
conhecidos, quais sejam, as classes menos favorecidas.
14
No capítulo subsequente, foram trazidas à baila as políticas criminais surgidas
após a Segunda Guerra, quando houve um incremento dos chamados movimentos lei e
ordem, acentuando o papel do direito penal, dando um protagonismo cada vez maior a
esse ramo do direito.
Dentro desse contexto, surgiram três vertentes de políticas criminais. A primeira,
denominada abolicionista, que prega a não utilização do direito penal como instrumento
de controle social, procurando atribuir às partes envolvidas na situação, capacidade de
resolver os problemas consensualmente.
A segunda, com um viés menos radical, a corrente denominada de minimalista,
pregadora de um direito penal mínimo e mais equilibrado, ou seja, diminui -se a
interferência estatal, garantindo-se assim uma maior liberdade aos cidadãos, tendo como
principal expoente o italiano Luigi Ferrajoli.
Do outro lado temos os defensores de um direito penal máximo, com acentuada
característica de prima ratio, reveladora de um direito penal do autor, que tem na teoria
de Jakobs, o direito penal do inimigo, sua face mais sombria.
No capítulo que segue foi analisada a teoria de Jakobs, fazendo exsurgir sua base
filosófica, expondo as principais características de sua teoria, demonstrando também que
em países que se autoproclamam Estados Democráticos de Direito como o Brasil,
encontramos normas com essa característica.
Finalizando o trabalho, adentrou-se na principal problematização do tema
abordado, traremos à lume as críticas dirigidas a esse direito penal do inimigo, bem
como se observará que se trata de uma teoria com clara base totalitária que não se
coaduna com Estado de Direito.
15
2 – A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E O DIREITO PENAL
2.1 – A Sociedade Contemporânea
Antes de iniciar a análise das principais características que circundam o direito
penal na atualidade, é necessário trazer à tona elementos da sociedade moderna que
direta ou indiretamente acabaram por influenciar esse ramo do direito.
A contemporaneidade, em especial o período pós-industrial, tem trazido para o
âmbito do direito penal novas demandas em razão do surgimento da preocupação com
novos bens jurídicos como o meio ambiente, bem como de novas espécies de condutas
delituosas, entre as quais podemos citar a criminalidade dita organizada, o terrorismo,
entre outros.
Esse fato tem gerado mudanças que acabam por vezes por influenciar a produção
de normas com características que desprezam princípios liberais, flexibilizando
garantias típicas de um direito penal pertencente a um Estado de Direito.
Nesse contexto de sociedade moderna, a globalização econômica, caracterizada
como fenômeno que influenciou não só o aspecto econômico, como também a política e
o direito, revela-se como fator preponderante para a discussão dos novos rumos do
direito penal.
Consoante se viu, a globalização produziu diretamente o aumento da
criminalidade, em especial os delitos econômicos e aqueles crimes praticados contra o
patrimônio.
A situação oriunda do aparecimento de novos riscos derivados dessa expansão de
mercados, avanços tecnológicos e consequente exclusão social, culminando com o
16
aumento da criminalidade, como se verá, revelam, especialmente em países
subdesenvolvidos, a falência do Estado Social.1
O que se afigura patente também é que esse declínio do Estado Social em alguns
países, a exemplo do Brasil, paulatinamente, foi dando lugar ao que hoje se denomina
Estado Penal2, onde o ente público opta por priorizar investimentos em medidas de
caráter penal, deixando em segundo plano setores como a educação, saúde, etc.
Observa-se dentro dessa análise preliminar que a sociedade está em constante
evolução, fazendo-se necessário também que o direito evolua para atender às novas
demandas sociais que surgem, mormente àquelas que não podem, ou pelo menos não se
pretende, que sejam resolvidas por outro ramo do direito que não o penal.
Hodiernamente, observamos corriqueiramente que limites passam a ser
desrespeitados, medidas excepcionais como a ofensa a direitos fundamentais passam a
ser regra, caracterizando aquilo que Agamben (2004, p. 11-12) denominou de estado de
exceção3, ou seja, aquilo que se apresenta como a forma legal daquilo que não pode ter
forma legal.
Exemplo dessa suspensão da ordem jurídica nesta sociedade, podemos observar,
como ressalta o mesmo autor, na “military order”, promulgada pelo presidente dos
Estados Unidos no dia 13 de novembro de 2001, e que autorizou a “indefinite detention”
e o processo perante as “military commissions” dos não cidadãos suspeitos de
envolvimento em atividades terroristas. (AGAMBEN, 2004, p. 16).
1Estado Social é um tipo de organização política e econômica que coloca o Estado como agente da promoção
social e organizador da economia. Nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda a vida e saúde
social, política e econômica do país em parceria com sindicatos e empresas privadas, em níveis diferentes de
acordo com o país em questão. Cabe, ao Estado do bem-estar social, garantir serviços públicos e proteção à
população. Schumpeter (1989, 213-232) 2 O conceito de Estado penal foi cunhado por Loïc Wacquant, sociólogo francês radicado nos EUA, que estuda a
segregação racial, a pobreza, a violência urbana, a desproteção social e a criminalização na França e nos Estados
Unidos da América no contexto do neoliberalismo. Autor de obras como Do Estado Providência ao Estado
Penal (1998), As prisões da miséria (1999), As duas faces do gueto (2008), Punir os pobres: o governo
neoliberal de Insegurança Social (2009), Wacquant questiona as estratégias de esvaziamento das ações de
proteção social estatal no contexto neoliberal e a emergência do Estado penal. (BRISOLA, Elisa. In Estado
penal, criminalização da pobreza e Serviço Social /Penal State, criminalization of poverty and social work. Pags.
129/130.) 3Para Agamben (2004, p. 14) o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de
governo dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de medida provisória e excepcional para uma
técnica de governo ameaça transformar radicalmente a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os
diversos tipos de Constituição. Apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre
democracia e absolutismo.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Políticahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Economiahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Estadohttps://pt.wikipedia.org/wiki/Sindicatohttps://pt.wikipedia.org/wiki/Empresa_privadahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Serviço_público
17
Outro aspecto importante na sociedade moderna é a existência de uma mídia
extremamente sensacionalista, despreocupada com a verdade, que acaba gerando uma
“espetacularização” do terror, bem como influencia diretamente o Legislativo a produzir
normas meramente simbólicas.
Nota-se, nesse toar, uma crescente utilização do direito penal, ferindo de morte
sua característica de intervenção mínima.
2.2 - A Sociedade Economicamente Globalizada e seus efeitos penais
O fim do século XX e o século XXI foram marcados por um fenômeno de
expansão do capitalismo e de uma pretensa derrubada de barreiras que acentuou um
processo denominado de globalização.
A globalização longe de ser um fator eminentemente econômico, como dito,
afetou diversos aspectos do cotidiano mundial, como os universos político e jurídico.
Segundo Zaffaroni (2000, p. 14-15), a globalização apresenta como
características principais a revolução tecnológica e comunicacional; redução do poder
regulador econômico, sob o argumento de favorecimento de um mercado mundial;
aceleração da concentração de capital; redução de custos por corte de pessoal;
competição entre os poderes políticos para atrair investimento; crescente desemprego e
deterioração salarial; perda da capacidade dos Estados de mediação entre capital e
trabalho; especulação financeira que adota formas que dificultam os limites entre lícito
e ilícito; institucionalização de refúgios fiscais para capitais de origem ilícita; redução
de preocupações fiscais para atrair capitais, etc.
Como salienta Bauman (1999, p. 7), a globalização é o destino irremediável do
mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na
mesma medida e da mesma maneira.
O consumo, diante do estreitamento dos mercados a nível nacional e
internacional, tomou proporções antes inimagináveis, o acesso a bens de toda natureza é
18
facilitado, permitindo àqueles que possuem capital toda uma gama de vantagens em
detrimento dos menos favorecidos.
Foi observado dentro desses contornos de expansão dos mercados e avanço do
capitalismo que, aliado ao fato de derrubar barreiras com relação ao estreitamento de
laços entre os mercados consumidores, acabam por outro lado erigindo obstáculos para
aqueles que não têm acesso aos bens pela falta de poder aquisitivo.
Essa atual conjuntura gera um processo cada vez mais presente de exclusão, ou
seja, de um lado temos aqueles que, com poder aquisitivo podem compor esse mercado
consumidor e se beneficiar de tudo que lhe é oferecido e, de outro, temos os que, em
virtude da falta de condições econômico-financeiras se veem à margem das benesses
oriundas desse fenômeno.
Esse período que ficou conhecido como da sociedade pós-industrial, foi marcado
pelo alto desenvolvimento de tecnologias, comunicação entre os povos e expansão dos
mercados.
A globalização, que consiste na integração dos países principalmente sob o
aspecto dos mercados econômico e consumidor, revela-se assim, um fenômeno que visa
a atender anseios do sistema capitalista.
Esse processo que caracteriza a atual sociedade, de fato derrubou as barreiras
antes existentes entre os mercados consumidores, ou seja, para quem reúne condições,
não há mais limites para satisfação de suas necessidades, a velocidade com que se faz
circular bens de consumo em escala mundial é absurda.
Ocorre, entretanto, que outras barreiras foram erigidas, ou seja, o acesso
facilitado ao consumo proporcionado pela globalização só se dá em relação àqueles que
possuem capacidade financeira para se valer dos seus benefícios, contudo, para quem
não reúne essas condições, além de se verem incapazes de ter acesso aos mais variados
bens de consumo, sofrem um verdadeiro processo de exclusão.
Nas palavras de Bauman (1999, p. 8), “a globalização tanto divide como une;
divide enquanto une - e as causas dessa divisão são idênticas às que promovem a
uniformidade do globo”.
Assinalando o pensamento de que a ideia de universalização não coincide com a
de globalização, Bauman (1999, p. 67) assim esclarece:
19
Assim como os conceitos de “civilização, “desenvolvimento”,
“convergência”, “consenso” e muitos outros termos chaves do
pensamento moderno inicial e clássico, a ideia de “universalização”
transmitia a esperança, a intenção e a determinação de se produzir a
ordem; além do que os outros termos afins assinalavam, ela indicava
uma ordem universal - a produção da ordem numa escala universal,
verdadeiramente global. Como os outros conceitos, a ideia de
universalização foi cunhada com a maré montante dos recursos das
potências modernas e as ambições intelectuais modernas. Toda a família
de conceitos anunciava em uníssono a vontade de tornar o mundo
diferente e melhor do que fora e de expandir a mudança e a melhoria em
escala global, à dimensão da espécie. Além disso, declarava a intenção
de tornar semelhantes a condições de vida para todos, em toda parte, e,
portanto, as oportunidades de vida para todo mundo; talvez mesmo
torná-las iguais. Nada disso restou no significado de globalização, tal
como formulado no discurso atual.
Observa-se assim, que a globalização longe de homogeneizar, operou uma
banalização da desigualdade, ferindo de morte direitos consagrados, em especial o da
igualdade tão festejada e consagrada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, e
à qual se reporta Bobbio (1992, p.29), ao afirmar que a ideia de igualdade, mesmo
abandonada na hipótese do estado de natureza, ela faz eco na mencionada Declaração
quando diz que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, o que
seria uma maneira diferente de dizer que todos são livres e iguais por natureza.
Vê-se, portanto, que são nefastos os efeitos da globalização, seja promovendo
desigualdades e, via de consequência, exclusões, seja fomentando outros tipos de ações
igualmente desprezíveis, como bem nos fala Moraes (2011, p. 47):
A incessante busca do lucro faz com que o mercado premie ofertas a
preços especialmente baixos e, consequentemente, incite especuladores
a buscarem fronteiras do permitido e a arriscarem transgressões que se
podem esconder. Impossível coibir essas ações, sobretudo porque não
se dispõe, e dificilmente se disporá, de uma carta política global ou, ao
menos, de um sistema jurídico universal que, de alguma forma, obste o
crescimento econômico com base em uma pauta ética minimamente
necessária.
Chega-se, portanto, à conclusão, que a globalização produziu novas ameaças para
a sociedade e para o Estado, configurando-se como inimigo aquele que não pode compor
esse sistema capitalista e que acaba, assim, sendo invisibilizado.
20
2.3 - A relação entre a invisibilidade e a exclusão social com o aumento da
criminalidade
A Sociedade pós-industrial, com a difusão da globalização e a derrubada de
barreiras mercadológicas e o estímulo crescente ao consumismo, fez surgir um contexto
de exclusão e imensamente dicotômico, onde de um lado temos aqueles que, com poder
aquisitivo podem compor esse mercado consumidor e se beneficiar de tudo que lhes é
oferecido e, de outro, temos os que, em virtude da falta de condições econômico-
financeiras, se veem à margem das benesses oriundas desse fenômeno.
Temos evidenciado assim, como assevera Beck (2011, p. 24), que o processo de
modernização se torna “reflexivo”, convertendo a si mesmo em tema e problema. Ainda
segundo o referido autor, a distribuição e os conflitos distributivos em torno da riqueza
socialmente produzida ocuparão o primeiro plano enquanto em países e sociedades o
pensamento e a ação das pessoas forem dominados pela evidência da carência material.
A modernidade revelou seus próprios estranhos, aqueles que não podem fazer
parte desse sistema e que, por isso, sofrem um processo excludente, ou seja, não são
reconhecidos, são “estranhos”, são invisíveis.
O que existe na atual sociedade é o desprezo e o não reconhecimento da condição
humana, como bem assevera Dussel (1987, p. 19).
Frente a frente, pessoa a pessoa, é a relação de proximidade, de
vizinhança, como pessoas. A experiência da proximidade entre pessoas
como pessoas é que constitui o outro como “próximo” (próximo,
vizinho, alguém), como outro; e não como coisa, instrumento,
mediação.
Para Young (2002, p. 41), a palavra marginalização está ligada às pessoas que a
modernidade deixou para trás, são os bolsões de pobreza e de privação. A exclusão
21
social abrange uma expulsão mais dinâmica da sociedade, um declínio na motivação de
integrar os pobres nesse contexto.
Ainda para Jock Young (2002, p. 31), os processos de desintegração tanto da
esfera da comunidade, pelo aumento do individualismo, como da esfera do trabalho, em
razão das drásticas rupturas empreendidas pelo mercado globalizado, articulam uma
“dialética da exclusão”, caracterizada, segundo o autor, por [...] uma amplificação do
desvio que acentua progressivamente a marginalidade, num processo pírrico que envolve
tanto a sociedade mais ampla como, crucialmente, seu próprios atores, os quais, na
melhor hipótese, se metem na armadilha de uma série de empregos sem nenhuma
perspectiva, ou, na pior, de uma subclasse de ociosidade e desespero.
A modernidade trouxe também a ideia de beleza, limpeza e ordem, para fixar um
lugar de destaque para aqueles que se enquadrem nesses quesitos, como bem salientou
Freud (1997, p. 47) ao dizer que esses atributos ocupam uma posição especial entre as
exigências da civilização.
Freud (1997, p.46) afirma que não tem como separar a beleza e a ordem, pois,
assim como a limpeza, ela só se aplica às obras do homem. Contudo, ao passo que não
se espera encontrar asseio na natureza, na ordem, pelo contrário, foi imitada a partir
dela.
Dentro dessa linha, Bauman (1998, p. 24) afirma que a sociedade moderna só
reconhece aquele indivíduo para ela considerado “puro”, e o critério de pureza traduz -se
pela aptidão de participar do jogo consumista, os deixados fora como um “problema”,
como a “sujeira” que precisa ser removida, são consumidores falhos – pessoas incapazes
de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam os recursos
requeridos, pessoas incapazes de ser “indivíduos livres”, conforme o senso de
“liberdade” definido em função do poder de escolha do consumidor, são “impuros”,
“objetos fora do lugar”.
Ainda segundo Bauman (1998, p. 24), aqueles que a expansão da liberdade do
consumidor privou das habilidades e poderes do consumidor precisam ser detidos e
mantidos em xeque ao menor custo possível, ou seja, é mais barato excluir e encarcerar
os consumidores falhos, do que reestabelecer seu status de consumidor.
É nessa sociedade que a cada dia mais se despreza o outro e se banaliza o não
reconhecimento do próximo. O ser humano tem dificuldade de conviver com
22
adversidades e tendem a eliminar o outro quando as mesmas surgem.
Para Salo de Carvalho (2004, p. 192/193), o surgimento de novas formas
derivadas da exclusão é caracterizado pelo fato de que esses invisibilizados perdem o
status de cidadão.
Nas palavras de Carvalho (2014, p. 66), o outro indivíduo é aquele cujos desejos
se opõem aos meus, cujos interesses se chocam com os meus, cujas ambições se erguem
contra as minhas, cujos projetos contrariam os meus, cuja liberdade ameaça a minha,
cujos direitos usurpam os meus, sendo assim, a chegada do “outro” é perigosa para mim.
Observa-se isso, por exemplo, ao se enxergar o excluído da relação de consumo
como uma ameaça, tem-se que a tendência natural é tentar eliminá-lo, expurgá-lo da
convivência, não reconhecê-lo, invisibilizá-lo, criando-se uma tendência de se
incriminar esses problemas.
Um dos grandes problemas dessa seleção pelo sistema penal nas palavras de
Foucault (1977, p. 22), é que quando se toma a criminalidade, como se fosse
manifestação dos “portadores de uma essência maligna” que devem ser eliminados,
corre-se o risco de repetir essa história, em que a punição ganha poder não mais só sobre
as infrações, mas também sobre os indivíduos.
Os excluídos sob o ponto de vista econômico, acabam sendo também dentro de
outras esferas, ou seja, do ponto de vista social, cultural, e acerca desse fato assevera
Young (2002, p. 30):
A insatisfação face à situação social, a frustração de aspirações e o
desejo podem dar lugar a uma variedade de respostas políticas,
religiosas e culturais capazes de abrir possibilidades para os
imediatamente concernidos, mas também podem, frequentemente de
propósito, fechar e restringir as possibilidades de outros. Também
podem criar respostas criminais, e estas encerram muito frequentemente
a característica de restringir terceiros.
Como se verifica, a tendência de outrora quando da concepção do Estado de
Bem-estar Social de reabilitar os temporariamente inaptos, como bem acentua Bauman
(1998, p. 51) e estimular os que estavam aptos a se empenharem mais com a utilização
de dispositivos de previdência, já não se vê mais, a própria população que auxiliava
nessa hipótese, hoje procurar excluir.
23
Enxergamos dentro desse contexto que a única forma de ser reconhecido, de
voltar a ser visível, é compondo novamente ou passando a compor esse mercado
consumidor.
Ao se ver diante dessa situação, ou seja, de que para ser feliz, para se ter uma
vida digna, é necessário consumir, surge para o indivíduo um objetivo, que é o de
adquirir tudo aquilo que lhe proporcionará “felicidade” e, para isso, a saída para a
maioria se tornar um consumidor será delinquindo, praticando crimes para se obter
meios que lhe proporcionem compor esse mercado consumidor.
Observa-se assim, que na atual conjuntura, conforme menciona Carvalho (2014,
p. 81), a justificação moral da “barbárie civilizada” torna-se a pedra de toque para
pacificar as consciências, ou seja, quem não é sujeito moral não é humano.
A globalização e a intensificação do consumismo, como explica Sanchez (2013,
p.127), como fenômeno econômico, não se limita, efetivamente, a produzir ou facilitar a
atuação da macrocriminalidade. Também incide sobre a microcriminalidade enquanto
criminalidade de massas, e assim prossegue afirmando que os movimentos de capital e
de mão de obra, que derivam da globalização da economia, determinam a aparição no
ocidente de camadas de subproletariado, das quais pode proceder um incremento da
delinquência patrimonial de pequena e média gravidade.
Corroborando esse pensamento, Rúbio (2014, p.74) menciona que do ponto de
vista ético, a modernidade capitalista em seu atual estágio de desenvolvimento, fez sair
seus demônios predadores, os vínculos morais, o respeito mútuo e a solidariedade para
com os semelhantes se fragilizam.
Como explicitado por Dussel (1995, p. 78), o capitalismo reforça a criação de
inimigos para constituir a dominação, o excluído surge de uma espécie de nada para
criar uma nova fase na história, irrompe então, não apenas como o excluído da
argumentação, atingido sem ser parte, mas também excluído da vida, da produção e do
consumo, na miséria, na pobreza, na fome.
Constata-se assim, que os estranhos da sociedade moderna não são compostos
apenas por terroristas, traficantes de drogas ou integrantes de organizações criminosas,
mas também por aqueles que o fenômeno globalizador, impulsionado pelo capitalismo
famigerado criou, provocando graves consequências na esfera penal, dando ensejo à
24
elaboração de novos tipos penais diante das demandas que surgem e que o ordenamento
jurídico não prevê.
Acaba sendo uma decorrência natural diante desse novo panorama, enxergar o
excluído da relação de consumo como uma ameaça, e, como todo problema, tem-se a
ideia de que é preciso eliminá-lo, expurgá-lo da convivência.
Verifica-se, portanto, que a invisibilidade como bem explicitada e compreendida
nas palavras de Carvalho (2014, p. 167) como sendo o fenômeno político e psicossocial
do “desaparecimento intersubjetivo de um homem no meio dos outros homens”,
expressão que assume caráter crônico nas sociedades capitalistas, causadora de
humilhação social e reificação4, apresenta como consequência clara e inevitável o
aumento da criminalidade.
Esse fenômeno é verificado mais claramente nos países denominados de “terceiro
mundo” onde o nível de desigualdades atinge patamares absurdos, promovendo, via de
consequência, altas taxas de criminalidade ligadas a esse processo, ocasionado pelo
famigerado capitalismo que assola este século.
Vemos então, que nesse contexto atual, fenômenos como o terrorismo e a
exclusão social, assumem caráter crônico.
Com isso, aquela política-criminal cunhada em princípios liberais, fruto de uma
conquista amealhada durante vários séculos, vem dando lugar rapidamente a um direito
penal simbólico, preocupado somente, de forma imediata, em barrar o aumento dos
crimes, tentando incutir na sociedade uma pretensa sensação de segurança.
Abandona-se, assim, a ideia de Estado de direito como pensada pela
modernidade, uma vez que, como salienta Rebouças (2012, p.122), o Estado de direito
como formação típica da modernidade, contém um valor intrínseco, qual seja, “a
eliminação da arbitrariedade no âmbito da atividade estatal que afeta os cidadãos”,
nunca tendo, porém, se afastado totalmente do arbítrio.
4A reificação como conceitua Fernando Braga da Costa em sua obra “Homens Invisíveis”, configura-se como o
processo pela qual, nas sociedades industriais, o valor (do que quer que seja: pessoas, relações inter-humanas,
objetos, instituições) vem apresentar-se à consciência dos homens como valor sobretudo econômico, valor de
troca: tudo passa a contar, primariamente, como mercadoria. (...) O trabalho reificado não aparece por suas
qualidades, trabalho concreto, mas como trabalho abstrato, trabalho para ser vendido. A sociedade que vive à
custa desse mecanismo produz e reproduz, perpetua e apresenta relações sociais como relações entre coisas. O
homem fica apagado, é mantido à sombra. Todo o tempo, fica prejudicada a consciência de que a relação entre
mercadorias (e a relação entre cargos) é, antes de tudo, uma relação que prevalece sobre a relação entre pessoas”
25
Essa situação, como afirma Souza (2008, p. 80), tem se refletido no
desenvolvimento de um Estado Neoliberal Penal que combate a criminalidade, sem,
contudo, atacar suas causas.
O cárcere surge então como principal meio a ser utilizado pelo Estado,
pressionado pela sociedade privilegiada, para resolver os problemas sociais.
O encarceramento, como se observa, é o remédio utilizado pelo Estado para
conter essa crescente criminalidade na atualidade, não é à toa, como afirma Bauman
(1998, p. 49) que durante os últimos vinte e cinco anos, a população de encarcerados e
de todos os que obtêm a sua subsistência da indústria carcerária – polícia, advogados,
fornecedores de equipamento carcerário – têm crescido constantemente. O mesmo tendo
ocorrido com a população de ociosos – exonerados, abandonados, excluídos da vida
econômica e social.
Como se observa, a sociedade moderna produziu seus estranhos, indivíduos que
se tornaram o alvo da ânsia criminalizadora do Estado.
Decorrência natural de tudo isso foi esse fenômeno que provocou um
expansionismo penal, uma vez que o Estado apenas enxerga o direito penal como única
forma de combater esse avanço da criminalidade.
Verifica-se, assim, que as causas que delineiam os estranhos da atualidade são
bem notórias, como o é o fato de que o Estado não se preocupa em expurgá-las,
preocupa-se, tão somente, em frear o avanço da criminalidade com a utilização o direito
penal, transformando-o em único instrumento capaz de conter esse problema social.
2.4 - A banalização das diferenças e o encarceramento como paradigma da
simplicidade5
5Para David Sanchez Rubio (2014, p. 76), citando o sociólogo francês Edgard Morin, o paradigma da
simplicidade nada mais é que uma metodologia, uma forma característica da cultura ocidental e um modo de
construir, interpretar, organizar e hierarquizar a realidade para levar a cabo seus propósitos, uma vez que todo ser
humano faz simplificações e significa parcial e limitadamente o real, no momento em que absolutiza este
paradigma, ignora o que simplifica, acabando por amputar tudo e sacrificando muitas vidas. Porque quanto mais
mutilador é um pensamento, mais mutila seres humanos e suas vidas.
26
Essa invisibilidade social, como já afirmado, mais presente em sociedades mais
periféricas, como nos fala Carvalho (2014, p. 176-177), citando as ideias de Jessé Souza,
implica a existência de redes invisíveis e objetivas, as quais desqualificam os indivíduos
e grupos sociais precarizados como subprodutores e subcidadãos, sob a forma de uma
evidência social insofismável, tanto para os privilegiados quanto para as próprias
vítimas da precariedade, é um fenômeno de massa, permitindo a percepção de que a
marca diferencial desses tipos de sociedade é a produção social de uma “ralé estrutural”.
Esse fato, como afirma Carvalho (2014, p. 179), na sociedade atual introduziu
uma perversa dinâmica de invisibilidade pública e humilhação social, à medida que
naturaliza posições de desigualdade, prevalência e privilégios, indiferenças cortantes em
relações a inúmeros sujeitos e grupos sociais, estigmatizações e desumanizações
permanentes, desfigurando tanto o sentido quanto a eficácia da noção de dignidade
humana, especialmente nas ideologias e estratégias de controle penal.
O Estado, longe de expurgar as causas que conduzem os indivíduos excluídos à
criminalidade, utiliza tão somente o direito penal através do cárcere como política
pública, recheando esse ramo do direito de uma característica cada vez mais simbólica, e
com caráter punitivo cada vez mais acentuado, como, aliás, afirma Alberto Silva Franco
(1994, p.10):
A função nitidamente instrumental do Direito Penal ingressa numa fase
crepuscular cedendo passo, na atualidade, à consideração de que o
controle penal desempenha uma função nitidamente simbólica. A
intervenção penal não objetiva mais tutelar, com eficácia, os bens
jurídicos considerados essenciais para a convivencialidade, mas apenas
produzir um impacto tranquilizador sobre o cidadão e sobre a opinião
pública, acalmando os sentimentos individual ou coletivo, de
insegurança.
Souza (2008, p.79) afirma que violência e criminalidade não são causas dos
problemas de segurança pública, são consequências. Prossegue salientando que a ideia
equivocada desvia a discussão do seu principal foco – não a violência das pessoas, mas a
violência institucional, revelada pela miséria, desemprego, falta de investimento em
educação e saúde, pela desigualdade, em síntese, pela exclusão social.
27
Todos esses fatos denotam que a sociedade globalizada, marcada por um nefasto
processo dicotômico – onde de um lado se encontram aqueles que com seu poder
aquisitivo podem se valer de todas as vantagens do capitalismo e do consumismo, e de
outro, aqueles seres não reconhecidos, invisibilizados, estranhos – longe de unir, afasta;
longe de homogeneizar, produz diferenças; ao contrário de humanizar, desumaniza; e o
Estado, incapaz ou mesmo indolente diante dessa situação, despreza suas causas e busca,
somente através da penalização e do encarceramento, remediar essa doença crônica que
assola a humanidade.
O cárcere nos moldes como é conhecido, longe de resolver a situação da intensa
criminalidade, acaba servindo como motor propulsor para o seu avanço, onde os
detentos acabam aprendendo novas técnicas para o cometimento de crimes, como já
salientava Foucault (1984, p. 131) ao dizer que desde 1820 se constata que a prisão,
longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos
criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade.
Essa situação acaba se revelando um grave problema social, e algo que se
apresenta como um ciclo vicioso, uma vez que o Estado encarcera o indivíduo no afã de
punir e prevenir novos crimes, mas a consequência disso acaba sendo justamente um
aumento da criminalidade, não só pelas razões antes enunciadas, mas porque a
ressocialização do indivíduo é algo utópico, vez que após sair da prisão, ele acaba
levando consigo um peso que se revela impossível de carregar, qual seja, o da
estigmatização.
A própria sociedade promove a marginalização desse indivíduo egresso do
cárcere, impondo as mais severas restrições, impedindo-o de retomar sua vida por meios
lícitos, fato que acaba fazendo com que ele retome a vida criminosa, e assim nos fala
Foucault (1984, p. 132) que a partir do momento em que alguém entrava na prisão se
acionava um mecanismo que o tornava infame, e quando saia, não podia fazer nada
senão voltar a ser delinquente.
Como consequência de tudo isso, notamos que a saída utilizada pelo Estado ante
esse aumento da criminalidade acaba sendo mesmo o direito penal, como bem diz
Hassemer (1999, p. 86):
28
El destinatário de todas estas exigências de la opinión pública que se
siente amenazada por la violência es, sobre todo, el derecho penal,
incluyendo tambiénel derecho procesal penal .
Desfecho de todas essas circunstâncias também não é outro senão a
implementação de uma legislação penal e processual penal de emergência que acabam
por legitimar o incremento da violência institucional e de algumas práticas distorcidas e
autoritárias de segurança. (SOUZA, 2008, p. 84).
2.5 - A seletividade do sistema penal
Como acentua Souza (2008, p. 79), a evolução que transita do Estado liberal ao
Estado neoliberal6 somente agrava o problema da exclusão social. Para o mesmo autor, o
capitalismo desenfreado, a despeito de anunciar uma situação de paz, de segurança,
propicia o aprofundamento da miséria, da exclusão e da própria guerra.
Ainda para Souza (2008, p. 85), a onda de violência e criminalidade faz eclodir a
crise e marca uma tendência de endurecimento das respostas penais e de segurança
pública, em consonância com os anseios de alguns segmentos da sociedade.
Pois bem, as consequências do aumento da interferência estatal através do direito
penal acabam, na maioria das vezes, tendo destinatários certos, ou seja, aqueles que
vivem à margem da sociedade.
6O neoliberalismo representa um movimento político filosófico que surgiu, após 1945, mediante as críticas ao
Estado de Bem-Estar Social apresentadas pelas ideias de economistas como Milton Fridman, Friedrich Hayeck e
Robert Nozick, cujas características gerais é o retorno ao individualismo centrado na postura contra o Estado
coercitivo e centralizador de direitos sociais e coletivos. Esta posição teve como principal influência as ideias de
filósofos como John Stuart Mill, James Stuart Mill e Jeramy Bentham considerados próceres do pensamento
liberal contemporâneo. Porém, o marco teórico-conceitual cerne do pensamento liberal atual centra-se nas ideias
de igualdade, liberdade e equidade do filósofo John Rawls (2002).
29
A produção exacerbada de normas penais, nos moldes como são editadas, leva-
nos a crer que elas acabam tendo endereço certo, ou seja, nota-se, em análise sumária,
que elas se dirigem àquelas camadas menos favorecidas.
Esse fato acaba nos levando à conclusão de que o direito penal reforça a
desigualdade social, sendo um instrumento de manutenção de interesses das classes mais
favorecidas, como preleciona Juarez Cirino dos Santos (1985, p. 26):
Através das definições legais de crimes e penas o legislador protege,
especialmente, os interesses e as necessidades (valores) das classes
dominantes, incriminando, rigorosamente, as condutas lesivas dos
fundamentos das relações de produção, concentradas na área da
criminalidade patrimonial: constrói tipos de condutas proibidas sobre
uma seleção de bens jurídicos próprios das classes dominantes,
garantindo seus interesses de classe e as condições necessárias à sua
dominação e reprodução como classe.
Esse fato é bem notório, como, aliás, já foi bem delineado anteriormente, uma
vez que em se tratando de microcriminalização, ou seja, aqueles delitos praticados, via
de regra, contra o patrimônio, são justamente cometidos pelos consumidores falhos,
aqueles seres privados do consumo que a globalização marginalizou, e aí, para
conseguirem se inserir nesse contexto, praticam as condutas tipificadas nas normas
penais que tutelam interesses de determinada classe.
Coadunando esse pensamento, Maria Lucia Karam (1993, p. 75) nos explica que
a definição e seleção de bens jurídicos se dá de maneira classista, ou seja, se faz
fundamentalmente em defesa de interesses daqueles que detêm riqueza e poder, as
classes dominantes.
Ainda segundo Karam (1993, p. 206):
A seleção dos que vão desempenhar o papel de criminoso, de mau, de
inimigo – os bodes expiatórios – naturalmente, também obedece à regra
básica da sociedade capitalista, ou seja, a desigualdade na distribuição
de bens. Como se trata aqui da distribuição de um atributo negativo, os
escolhidos para receber toda a carga de estigma, de injustiça e de
violência, direta ou indiretamente provocada pelo sistema penal, são
preferencial e necessariamente os membros das classes subalternas, fato
facilmente constatável, no Brasil, bastando olhar para quem está preso
ou para quem é vítima de grupos de extermínio.
30
Como salienta Wacquant (2007, p. 16), o encarceramento serve para neutralizar e
estocar fisicamente as frações excedentes da classe operária, notadamente os membros
despossuídos dos grupos estigmatizados que insistem em se manter em “rebelião aberta
contra seu ambiente social”.
Ressalta ainda Loic Wacquant acerca da famigerada punição dos pobres, o
seguinte:
Enfim, e sobretudo, para a classe superior e a sociedade em seu
conjunto, o ativismo incessante e sem freios da instituição penal cumpre
a missão simbólica de reafirmar a autoridade do Estado e a vontade
reencontrada das elites políticas de enfatizar e impor a fronteira sagrada
entre os cidadãos de bem e as categorias desviantes, os pobres
“merecedores” e os “não-merecedores”, aqueles que merecem ser alvos
e “inseridos” (mediante uma mistura de sanções e incentivos) no
circuito do trabalho assalariado instável e aqueles que, doravante,
devem ser postos no índex e banidos, de forma duradoura.
(WACQUANT, 2007, p. 17).
Vemos diante dessa conjuntura que a questão relativa à desigualdade social
atinge setores onde em verdade não poderia haver distorções, ou seja, até nas prisões há
uma seleção de determinadas categorias.
Para Dornelles (2003, p.54):
[...] o mito do Estado Mínimo é sublinhado, debilitando o Estado
Social e glorificando o ‘Estado Penal’. É a constituição de um
novo sentido comum penal que aponta para a criminalização da
miséria como um mecanismo perverso de controle social para,
através deste caminho, conseguir regular o trabalho assalariado
precário em sociedades capitalistas neoliberais.
Notamos que o Estado, além não procurar atender às expectativas sociais das
classes menos favorecidas, acaba por substituir políticas públicas por políticas de
encarceramento.
E o que é pior, na sociedade moderna a criminalização assume contornos raciais
e étnicos, na medida em que jovens pobres e negros e a população de rua são tidos como
perigosos para a sociedade, considerados ameaça para a sociedade dita privilegiada.
31
3 - AS POLÍTICAS CRIMINAIS NA ATUALIDADE: CARACTERÍSTICA DE
EXPANSÃO E RECRUDESCIMENTO DO DIREITO PENAL
3.1 – O Expansionismo Penal
O aumento absurdo da criminalidade na atualidade e a deficiência estatal em
conter esse avanço da violência, vem dando margem a uma mudança paradigmática no
âmbito do direito penal.
Apesar de existirem hodiernamente muitas vozes favoráveis ao que se denomina
direito penal mínimo, em que há a ideia de que o Estado só deve incriminar problemas
sociais onde se revele realmente necessária a tutela por esse ramo do direito, zelando
pela liberdade do indivíduo, há uma vertente diametralmente oposta que, por diversos
motivos, como se verá, desprezando muitas vezes a técnica e os princípios do direito
penal, acaba incitando a produção de tipos penais ou o aumento das penas que já
existem.
O momento, como afirma Cancio Meliá (2007, p. 55), é de uma política criminal
com características de “expansão” do direito penal.
Vemos hoje um abandono do direito penal fundado em ideais liberais, e que a
cada dia mais vem passando por mudanças, tornando-se bastante seletivo, como assevera
Andrade (2003, p. 187):
A eficácia invertida do sistema penal é consistente no fato de que a
função latente e real deste é construção seletiva da criminalidade e,
neste processo, a reprodução material e ideológica, das desigualdades e
diferenças sociais (de classe, gênero, raça) e não o combate da
criminalidade, com a proteção de bens jurídicos universais e geração de
segurança pública e jurídica.
32
Aliado a esse fator, a proliferação de leis penais também é algo bastante
preocupante. O Legislativo, utilizando-se do sistema penal sob uma ótica eminentemente
política7, acaba elaborando normas penais como forma a dar uma resposta à sociedade,
pensando não somente em proporcionar uma tranquilidade que na verdade não existe,
como também fazer política com a produção de leis, criminalizando condutas que, por
certo, acaso se respeitasse o direito penal como ultima ratio8, não teriam a tutela deste
ramo do direito.
Acentua Cancio Meliá que quando se usa em sentido crítico o conceito de Direito
penal simbólico, quer-se, então, fazer referência a que determinados agentes políticos
tão-só perseguem o objetivo de dar a impressão tranquilizadora de um legislador atento
e decidido, isto é, que predomina uma visão latente sobre a manifesta.
Sobre essa situação, Munoz Conde (2012, p. 21) acentua que os problemas
político-criminais tinham se convertido em problemas fundamentais desse moderno
direito penal não só para os políticos encarregados pela elaboração de leis penais e
obrigados a responder perante seus eleitores e a opinião pública pela eficácia de sua
gestão, como também para teóricos, professores e assessores parlamentares nestas
questões.
A mídia também tem papel preponderante nessa fase de mudança na política
criminal, uma vez que, com sua atuação cada vez mais sensacionalista e exploradora da
cultura do terror, acaba por potencializar a ânsia da população por leis cada vez mais
duras.
7André Luís Callegari, quando se refere à politização do Direito Penal, assim se pronuncia: “A politização do
Direito Penal por meio da utilização política da noção de segurança, resulta de um empobrecimento ou
simplificação do discurso político-criminal, que passa a ser orientado tão somente por campanhas eleitorais que
oscilam ao sabor das demandas conjunturais midiáticas e populistas, em detrimento de programas efetivamente
emancipatórios”. (Callegari; Wermuth, 2010, p. 22) 8O Direito Penal é o ramo mais invasivo da esfera privada do cidadão, sua utilização deve se dar com cautela,
deve ele se manter subsidiário e fragmentário, não se justificado seu uso do Direito Penal em casos que poderiam
ser resolvidos por outros ramos do Direito. Mir Puig esclarece o motivo do caráter subsidiário do direito penal
com as seguintes palavras: “O Direito Penal deixa de ser necessário para proteger a sociedade quando isso
puder ser obtido por outros meios, que serão preferíveis enquanto sejam menos lesivos aos direitos individuais.
Trata-se de uma exigência de economia social coerente com a lógica do estado social, que deve buscar o maior
benefício possível com o menor custo social. O princípio da ‘máxima utilidade possível’ para as eventuais
vítimas deve ser combinado com o ‘mínimo sofrimento necessário’ para os criminosos. Isso conduz a uma
fundamentação utilitarista do Direito Penal que não tende à maior prevenção possível, mas ao mínimo de
prevenção imprescindível. Entra em jogo, assim, o ‘princípio da subsidiariedade’, segundo o qual o Direito Penal deve ser a ultima ratio, o último recurso a ser utilizado, à falta de outros meios menos lesivos” (Santiago,
2007, p. 93 e 94).
33
Aliado a isso, o papel que a mídia de massa cumpre na produção e difusão do
medo, tende a aumentar e consolidar um elevado grau de sensibilidade de risco, criando,
por vezes, monstros onde não há.
E não é só, é por demais sabido que principalmente a televisão exerce grande
influência social, ora trazendo benefícios, ora malefícios, como verificamos quando
exploram determinados fatos de forma distorcida, acabando, por vezes, por persuadir a
população ao cometimento de barbáries.
Como bem explicitado por Newton e Walter Fernandes (1995, p. 409), uma
notícia sensacionalista sobre um crime, não raro, deflagra o cometimento de outros da
mesma natureza.
A doutrina, por sua vez, preocupada em fazer cumprir seu papel na tentativa de
contribuir para conter o avanço da criminalidade, vem criando teorias que, em
determinadas situações se revelam, a priori, incompatíveis com o papel do Estado
Democrático de Direito, como se mostra a polêmica Teoria do Direito Penal do Inimigo.
Essa crescente expansão já preocupava a comunidade jurídica como assevera
Munoz Conde (2012, p. 21), quando afirma que desde o início dos anos 1980, a chamada
Escola de Frankfurt, com Hassemer, Naucke Y Luderssen como expoentes, já havia
advertido sobre os perigos que, uma política criminal, demasiadamente pragmática e
disposta a resolver a qualquer preço, por meio do Direito Penal, problemas que não lhe
eram próprios, poderia ocasionar.
Resta-nos acreditar na utilização do ordenamento jurídico através do direito penal
como instrumento de preservação de poder, e assim nos fala Quinney (1980, p. 236)
quando afirma que o direito criminal é usado pelo Estado e pela classe dominante para
assegurar a sobrevivência do sistema capitalista.
3.2 – Políticas de enfrentamento do crime
34
3.2.1 - Das teorias de Conflito9
3.2.1.1 - Da Teoria do Etiquetamento ou Labelling Approach
Segundo Penteado Filho (2015, p.73), a Teoria do Etiquetamento, interacionismo
simbólico, rotulação ou reação social, seria uma das mais importantes teorias de
conflito, surgida nos anos 1960 nos Estados Unidos, tendo como seus principais
expoentes Erving Goffman e Howard Becker.
Para o referido autor, a criminalidade não é uma qualidade da conduta humana,
mas a consequência de um processo em que se atribui tal qualidade (estigmatização), e
ainda afirma:
O criminoso apenas se diferencia do homem comum em razão do
estigma que sofre e do rótulo que recebe. Por isso, o tema central desse
enfoque é o processo de interação em que o indivíduo é chamado de
criminoso. (PENTEADO FILHO, 2015, p. 73).
Para Baratta (2002, p. 86), não se pode compreender a criminalidade se não se
estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas
abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições penitenciárias que
as aplicam), e que, por isso, o status social do delinquente pressupõe, necessariamente, o
efeito das atividades das instâncias oficiais de controle social da delinquência . Enquanto
não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento
punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias, não sendo, portanto,
considerado e tratado pela sociedade como um delinquente.
9 Teorias de conflito, nos dizeres de Nestor Sampaio Penteado Filho (2015, p. 65) argumentam que a harmonia
social decorre da força e da coerção, em que há uma relação entre dominantes e dominados, não existindo
voluntariedade entre os personagens para a pacificação social, sendo esta decorrente da imposição ou da coerção.
35
Nota-se claramente, que cabe à sociedade, com a anuência do Estado, rotular
aquelas atividades que consideram como conduta desviante, rotulando-as de perigosas,
impondo sanções a quem age dessa forma.
E mais, ainda para Baratta (2002, p. 93), o comportamento transgressor da norma
seria um comportamento já qualificado de modo valorativo e considerado como tendo
uma qualidade própria, quase como se fosse já dada, de que o processo do labelling não
fosse senão a simples confirmação.
No que diz respeito aos efeitos do etiquetamento, assinala Anyiar de Castro: “o
principal efeito da rotulação seria o de induzir a novos atos desviantes e/ou delitivos,
apesar da sua grande referência à reação social, esta teoria continua fortemente
vinculada à criminologia do Passar à Ação” (CASTRO, 1983. p. 101).
Fala-se em induzir a novos atos desviantes porque a criminalização primária seria
produtora propriamente do rótulo, que teria como consequência a reincidência que se
apresentaria como uma criminalização secundária, ou seja, ao se encontrar rotulado ou
etiquetado, o indivíduo carrega um estigma que o leva a ser colocado à margem pela
própria sociedade, tendo como consequência clara o cometimento de novos crimes.
A teoria do etiquetamento ou labelling approach se revela não só mantenedora
de interesses de determinada classe, como também um abuso do poder estatal, como bem
esclarece Cirino dos Santos (2006, p. 24):
A teoria da sociologia do desajuste é politicamente limitada e
historicamente confusa: não compreende a estrutura das classes e da
sociedade, não identifica as relações de poder político e de exploração
econômica (e sua interdependência) do modo de produção capitalista e,
definitivamente, não toma posição nas lutas fundamentais da sociedade
moderna.
3.2.1.2 - Da Teoria crítica ou radical
36
A teoria crítica se verifica como mais uma teoria de conflito e teve origem no
início do século XX, com o trabalho do holandês Bonger, com clara inspiração do
Marxismo, afirma ser o capitalismo a base da criminalidade na medida em que promove
o egoísmo, levando os homens, via de consequência, a delinquir. (PENTEADO FILHO,
2012, p. 75)
Os adeptos desta teoria asseveram que a classe trabalhadora, estigmatizada, é o
principal alvo do sistema punitivo, e assim sendo, mantém-se a estabilidade da produção
e da ordem social.
Os autores Newton e Walter Fernandes, em sua obra Criminologia Integrada,
resumem bem a ideia da teoria crítica quando assim nos fala:
A criminologia dialética ou crítica é um movimento radical,
caracterizado pelo questionamento da ordem social que gera o
fenômeno delinquencial e pelo compromisso com uma prática
social transformadora, tudo com vistas às condições estruturais da
desigualdade material e da marginalização econômica nas
sociedades sedimentadas na divisão e exploração de classes. [...]
proclama que o crime e a criminalidade não serão equacionados e
resolvidos sem alterações profundas e radicais na base estrutural
da sociedade capitalista. (FERNANDES e FERNANDES, 1995, p.
473).
3.2.1.3 - Do Neorretribucionismo
3.2.1.3.1 - Movimento Lei e Ordem, Política de tolerância zero, Teoria das janelas
quebradas e a Teoria das três faltas e está fora
37
Com o término da Segunda Guerra Mundial, países do ocidente, impregnados de
ideais socialistas, buscaram implementar uma política de bem-estar social, a qual se
denominou de “welfarestate”, o Estado Providência.
Acontece que, motivado por diversos fatores, entre os quais o enfraquecimento
dos ideais socialistas, surge um Estado neoliberal de mercado, afastando-se da sociedade
no que diz respeito ao seu papel prestacionista, gerando uma insegurança geral.
Como não poderia ser diferente, ocorre um aumento quase imediato da
criminalidade de massa, o que acaba por exigir uma interferência do Estado para coibir
seu avanço.
O denominado movimento lei e ordem teve seu nascedouro nos Estados Unidos
da América na década de 70, e surge como resposta estatal ao avanço crescente da
criminalidade, enxergando o crime e o criminoso como um mal que deve ser eliminado
da sociedade a qualquer preço.
Essa política criminal ganhou impulso com o movimento denominado
“Tolerância Zero”, implantado na cidade de Nova York pelo então prefeito Rudolph
Giuliani, que buscava criminalizar condutas de pequena ofensividade, tentando legitimar
um intervencionismo estatal exagerado como forma de garantir uma pseudotranquilidade
no seio da sociedade, baseada na cultura do medo.
Segundo Penteado Filho (2012, p. 76-77), essa vertente radical parte da premissa
de que os pequenos delitos devem ser rechaçados, o que acabaria inibindo os delitos
mais graves, fulminado o mal no nascedouro, atuando como prevenção geral.
Ainda segundo o autor, para essa teoria, haveria uma relação de causalidade entre
a desordem e a criminalidade.
Dentro desses contornos, vemos que essa política acaba sendo direcionada para
determinadas camadas sociais, e nesse sentido expõe Eduardo Galeano (2004, p. 19-20):
Para os que mandam, não há “tolerância zero”. A exitosa receita de
Rudolph Giuliani, nascida para limpar as ruas de Nova Iorque dos
delinquentes e vendida no mundo inteiro, não se equivoca nunca. Aplica
sempre para baixo, jamais para cima a mão dura e o castigo preventivo,
que vem a ser algo assim como a versão policial da guerra preventiva.
Converte a pobreza em delito e atribuiu uma “conduta protocriminal” a
todos os pobres de origem africana ou latino-americana, que são
culpados enquanto não provem sua inocência. [...] Em muitos países,
38
pode-se ser preso pela cor da pele. Nos Estados Unidos, por exemplo.
Dentro das prisões, há quatro negros por cada dez presos. Fora das
prisões, há um negro para cada dez habitantes.
Frise-se que o movimento de lei e ordem com essa ideia de repressão à
criminalidade de forma implacável, contou com o apoio da sociedade, uma vez que a
insegurança acaba por gerar nas pessoas essa ânsia por algo que venha a coibir os
crimes.
Essa política criminal é uma clara expressão do que Ferrajoli (2014, p. 1010)
denomina de direito penal máximo10
, uma vez que segundo ele, esse sistema é próprio
do Estado absoluto ou totalitário, entendendo-se por tais expressões qualquer
ordenamento em que os poderes públicos sejam legibus ou “totais”, ou seja, não
disciplinados pela lei e, portanto, carentes de limites e condições.
Ainda na linha dessa política criminal cunhada na cultura do medo, surgiu
também nos EUA a chamada Teoria da “Janela Quebrada” (broken-windowstheory)11
,
criada por Wilson e Kelling em um artigo publicado em 1992, a qual se utilizava da
metáfora das janelas quebradas para afirmar a ideia de que, punindo antecipadamente
pequenos delitos, prevenia-se, futuramente, males maiores.
No mencionado artigo, os autores usaram a imagem de janelas quebradas para
explicar como a desordem e a criminalidade poderiam, aos poucos, infiltrar -se numa
comunidade, causando a sua decadência e a consequente queda da qualidade de vida.
Sustentava-se que se uma janela de um imóvel fosse quebrada e não
imediatamente consertada, as pessoas que por ali passassem concluiriam que ninguém se
importava com o local e que naquela região não havia autoridade responsável pela
manutenção da ordem. Em pouco tempo, algumas pessoas começariam a atirar pedras
para quebrar as demais janelas ainda intactas. Tão logo, todas as janelas estariam
quebradas.
Iniciava-se, assim, a decadência daquela rua e da própria comunidade. Apenas os
desocupados e pessoas com tendências criminosas, sentir-se-iam à vontade para ter
10Segundo Luigi Ferrajoli (2014, p. 102), direito penal máximo é aquele incondicionado e ilimitado, é o que se
caracteriza, além de sua excessiva severidade, pela incerteza e imprevisibilidade das condenações e das penas e
que, consequentemente, configura-se como um sistema de poder não controlável racionalmente em face da
ausência de parâmetros certos e racionais de convalidação e anulação. 11
http://www.manhattan-institute.org/pdf/_atlantic_monthly-broken_windows.pdf
39
algum negócio ou mesmo morar na rua cuja decadência era evidente. O passo seguinte
seria o abandono daquela localidade pelas “pessoas de bem”, deixando o bairro à mercê
dos “desordeiros”. Pequenas desordens levariam às grandes e, mais tarde, ao crime. Em
razão da imagem das janelas quebradas que seria a origem de todo o “caos”, o estudo
ficou conhecido como Broken Windows Theory.
Implementada por meio da operação tolerância zero (zero tolerance), é necessário
esclarecer que essa política acabou por diminuir sensivelmente o número de crimes em
Nova York.
Acontece, entretanto, como bem salienta Penteado Filho (2015, p. 78), que essa
teoria sofreu críticas em virtude do fato de que, com essa política implantada, houve o
encarceramento em massa da população menos favorecida, contudo, para o mesmo
autor, essas críticas não procedem, uma vez que o que se analisava não era a situação
pessoal do criminoso, mas sua conduta.
Também nessa mesma esteira surgiu a Teoria do “Three strikes and you’re out”
que faz referência a uma regra do jogo de beisebol que determina a expulsão do jogador
no cometimento da terceira falta, e, semelhantemente, impõe ela a “expulsão” daquele
que reitera pela terceira vez uma conduta criminosa.
Essa teoria nasceu no Estado norte-americano de Ilinois e posteriormente foi
adotada por vários Estados daquele país. A lei, orientada por esta teoria, estabelece uma
gradação das penas que varia de Estado para Estado, podendo imputar ao indivíduo que
delinque pela terceira vez a prisão perpétua.
Depreende-se claramente a ideia de recrudescimento da pena, uma vez que, como
dito, pode-se chegar à situação de impor o cárcere perpétuo ao delinquente que se revele
reincidente.
Diante do atual panorama, com a criminalidade cada vez mais acentuada e com
movimentos dessa espécie, observa-se uma ofensa frontal ao princípio da
proporcionalidade com o recrudescimento das penas e um desprezo ao princípio da
intervenção mínima, ou seja, utilizou-se o direito penal como fonte primeira (prima
ratio) para solução de problemas de pequena ou quase nenhuma relevância, fragilizando
direitos conquistados ao longo de vários séculos.
40
3.3 - A criminalidade real12
, a cifra negra13
e a cifra dourada14
Note-se que, inobstante tudo o que foi anteriormente relatado acerca da
criminalidade crescente e da utilização demasiada do direito penal, hiperinflacionando o
sistema com leis penais, vê-se ainda que a situação é muito mais grave do que aparenta.
Ora, é por demais claro que para que haja uma correta elaboração de leis penais,
para evitar o uso do direito penal em excesso ou mesmo mais restritivamente, é
necessário que se saiba o número real de crimes que são praticados. Contudo, vemos que
grande parte dos crimes deixa de fazer parte das estatísticas por razões diversas, fato que
se denominou de cifra negra.
Como razões que levam à existência dessa cifra negra, podemos citar a omissão
da própria vítima em comunicar a ofensa contra ela praticada; a desconfiança ou mesmo
incredulidade nas autoridades públicas; o medo; entre outros tantos aspectos que
conduzem à falta de comunicação dos delitos, o que acaba gerando uma falsidade nos
dados oficiais.
Observa-se assim, que por duas razões bastante plausíveis, não se pode ter por
legítimos os dados oficiais acerca da criminalidade, uma vez que não só os crimes mais
comuns praticados pela parcela da população marginalizada deixam de ser comunicados,
como também aqueles que são cometidos por quem detém os poderes econômicos e
políticos (cifra dourada).
Essa mácula nas estatísticas apresentadas conduz a uma série de ponderações,
haja vista que não sabemos de fato o índice real de criminalidade que assola a sociedade
12Criminalidade revelada, é para Penteado Filho (2015, p. 57) é a quantidade efetiva de crimes perpetrados pelos
delinquentes. 13
Nos dizeres de Penteado Filho (2015, p. 59), cifra negra seria o número de delitos que por alguma razão não
são levados ao conhecimento das autoridades, contribuindo para uma estatística divorciada da realidade
fenomênica. 14
Para Penteado Filho (2015, p. 59), entende-se por cifra dourada a criminalidade de “colarinho branco”, definida
como práticas antissociais impunes do poder político e econômico, seja a nível nacional ou internacional, em
prejuízo da coletividade e dos cidadãos e em proveito das oligarquias econômico-financeiras.
41
contemporânea, bem como vemos que mesmo sem se ter noção do número efetivo de
crimes cometidos, o direito penal já é utilizado de forma banalizada, quiçá se tivessem
os parlamentares esse conhecimento.
As cifras negra e dourada acabam acusando a deficiência do Estado quanto ao
quesito segurança. A hiperinflação legislativa fomentadora do direito penal simbólico é
baseada em números irreais, e o que se revela ainda mais preocupante é que o
conhecimento das infrações que de fato chegam ao conhecimento das autoridades, são
aquelas cometidas pela parcela da população já estigmatizada, tais como os pobres e os
negros.
As estatísticas que são reveladas pelas autoridades, apresentam-se seletivas, ou
seja, só acabamos tendo conhecimento das infrações denominadas de
microcriminalidade, consubstanciada esta principalmente pelo cometimento de crimes
contra o patrimônio.
Percebe-se assim que o equívoco das estatísticas acaba prejudicando a
implementação de uma política criminal baseada na real carência da sociedade, porque
vemos de um lado o cômputo maior de crimes cometidos por uma classe social excluída,
e por outro lado, pouca ou quase nenhuma comunicação de crimes que compõem a
chamada cifra dourada que é, como vimos, aqueles cometidos por quem detém o poder
econômico e político.
3.4 - A expansão do direito penal em Jesús-Maria Silva Sanches – As três
velocidades do direito penal
O Professor Catedrático de Direito Penal da Universidade de Pompeu Fabra, na
Espanha, Jesús-Maria Silva Sanchez, expõe em sua obra “A expansão do direito penal”
de forma brilhante quais seriam as possíveis causas do agigantamento desse ramo do
direito na sociedade moderna, bem como revela aquilo que denomina de “velocidades do
direito”.
42
“Ali onde chovem leis penais continuadamente, onde por qualquer
motivo surge entre o público um clamor geral de que as coisas se
resolvam com novas leis penais ou agravando as existentes, aí não se
vivem os melhores tempos para a liberdade – pois toda lei penal é uma
sensível intromissão na liberdade, cujas consequências serão
perceptíveis também para os que a exigiram da forma mais ruidosa -, ali
se pode pensar na frase de Tácito: péssima respublica, plurimae leges”
(SANCHEZ, 2013, pag. 25)
O que se observa é que já no início de sua obra, o mencionado autor ressalta o
papel incisivo do Estado para esse fenômeno de expansão do direito penal, quando
afirma que frequentemente a referida expansão se revela como fruto de uma
perversidade estatal que buscaria no permanente recurso à legislação penal uma aparente
solução fácil aos problemas sociais, deslocando ao plano simbólico, o que deveria se
resolver no plano da instrumentalidade. (SANCHEZ, 2013, p. 29).
Ao realçar as possíveis causas do expansionismo penal, Sanchez (2013, p.33)
inicia elencando o surgimento de novos bens jurídicos que necessitariam da proteção do
direito penal, que seriam provenientes daquilo que se denominou de novas realidades.
Outra causa seria o efetivo aparecimento de novos riscos, fazendo menção ao que
Ulrich Beck chamou de “sociedade de risco”. Para Sanchez (2013, p. 35) a sociedade
atual aparece caracterizada, basicamente, por um âmbito econômico rapidamente
variante e pelo aparecimento de avanços tecnológicos sem paralelo em toda a história da
humanidade, e tudo isso acabou tendo impacto direto no bem-estar das pessoas.
Sanchez (2013, p. 40) caracteriza a sociedade atual como sociedade da
“insegurança sentida” ou sociedade do medo, uma vez que segundo ele a sensação de
insegurança permeia entre os cidadãos.
O autor atribui também parcela de culpa dessa insegurança geral aos meios de
comunicação, afirmando que há correlação, uma vez que a mídia ocuparia posição de
privilégio nessa sociedade da informação e no seio de uma concepção do mundo como
aldeia global transmitem a imagem da realidade, o que ocasionaria, contudo, em
determinadas ocasiões, percepções inexatas. (SANCHEZ, 2013, p.47),
Dentro desses contornos, para Sanchez (2013, p. 50/51) a segurança se converte
em uma pretensão social à qual se supõe que o Estado e, em particular, o Direito Penal
43
devem oferecer a resposta, e vai além afirmando que atualmente a solução para a
insegurança não se busca em seu lugar natural que seria o “direito de polícia”, mas sim
no direito penal.
Outro ponto delicado que assola o atual modelo social segundo Sanchez (2013, p.
59), é a existência de um protótipo de vítima que não assume a possibilidade de que o
fato que sofreu derive de culpa sua ou que simplesmente corresponda ao azar. Para o
autor, parte-se do axioma de que haverá sempre um terceiro responsável a quem imputar
o fato e suas consequências patrimoniais e/ou penais, e a isso se denomina
Zurechnungsexpansion15
.
O descrédito de outras instâncias de proteção é algo que para Sanchez acaba se
somando às causas de expansão do direito penal, ou seja, vários fatores dão a conotação
de que só esse ramo do direito é capaz de resolver os problemas sociais, situação essa
que chega a um resultado que para o autor é desalentador, uma vez que vemos
abandonada a ideia do Direito Penal como ultima ratio, senão vejamos:
Por um lado, por a visão do Direito Penal como único instrumento
eficaz de pedagogia político-social, como mecanismo de socialização,
de civilização, supõe uma verdadeira expansão ad absurdum da outra
ultima ratio. Mas, principalmente, porque tal expansão é em boa parte
inútil, à medida que transfere ao Direito Penal um fardo que ele não
pode carregar. (SANCHEZ, 2013, p. 79).
Como já delineado, o corrente século foi veementemente marcado por um
fenômeno que modificou toda a estrutura da sociedade moderna, a g