O Elogio da Política: práxis e autonomia no pensamento de Cornelius Castoriadis – Tatiana Rotolo

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    O ELOGIO DA POLTICAPRXIS E AUTONOMIA NO PENSAMENTO DE

    CORNELIUS CASTORIADIS

    atiana Rotolo

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    TATIANA ROTOLO

    O ELOGIO DA POLTICAPRXIS E AUTONOMIA

    NO PENSAMENTO DE

    CORNELIUS CASTORIADIS

    Florianpolis2013

    UFSC

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    R845e Rotolo, Tatiana

    O elogio da poltica : prxis e autonomia no

    pensamento de Cornelius Castoriadis. / Tatiana

    Rotolo. Florianpolis : Em Debate, 2013.

    295 p. : quadros.

    Inclui bibliografa.

    ISBN: 978-85-8328-016-3

    1. Cincia poltica Filosofa. I. Ttulo.

    CDU: 32.001.1

    Copyright 2013 Tatiana Rotolo

    Capa

    Tiago Roberto da Silva

    Foto da capa

    LCR La Gauche

    Editorao eletrnica

    Carmen Garcez, Flvia Torrezan

    Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitriada Universidade Federal de Santa Catarina

    Todos os direitos reservados a

    Editoria Em Debate

    Campus Universitrio da UFSC Trindade

    Centro de Filosofa e Cincias Humanas

    Bloco anexo, sala 301

    Telefone: (48) 3338-8357

    Florianpolis SC

    www.editoriaemdebate.ufsc.brwww.lastro.ufsc.br

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    A minha me Claudia e meu pai Marco, com gratido.

    Aos meus lhos Lusa e Toms, com esperana.

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    agradecimentos

    A meus lhos, Toms e Lusa, pela fora e inspirao para tudoque eu fao.

    A Morris, pelo companheirismo, carinho e amor.

    A Claudia, por toda a fora que sempre me deu, e, em especial narealizao deste trabalho.

    A Marco, por nunca ter duvidado das minhas escolhas.

    A Luana e Caio, irmos e amigos.

    A meu orientador, Paulo Nascimento, pela dedicao e pacincia.A Francisca, meu brao direito (e s vezes, tambm o esquerdo

    e as duas pernas).

    A Ilse e Bob, pela ajuda, material, correes e conversas.

    Aos professores do Instituto de Cincia Poltica da UnB, peloacolhimento. Em especial aos professores Luis Felipe Miguel, FlviaBirolli, Rebecca Abbers e Lcia Avelar, pelos bons cursos. E, um mais

    especial ainda, a Professora Marilde Loiola de Menezes, pelas timascolocaes na minha banca de qualicao.

    Aos colegas do grupo Ruptura e Continuidade, pelo debate sin-cero, estmulo e leituras. Em especial a Graziella Testa e Mateus Fer-nandes, pela amizade, papos, risadas e principalmente, pelos debatesloscos e polticos.

    A Alex Calheiros, amigo querido.

    A Heitor Paladim, amigo do peito, de longa data, pelas leituras,

    incentivo e comentrios.A Silvio Carneiro, pelos galhos quebrados e pela amizade.

    A Pablo Ortellado, por me disponibilizar um material precioso.

    Aos deuses da zitologia (ou a arte de fazer cerveja), que meproporcionaram a distrao necessria e a diverso nos momentosde cansao.

    Ao Decanato de Ps-Graduao da UnB, pelos nanciamentos

    de viagem. Capes, pela bolsa concedida.

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    A imaginao a louca da casa.

    Santa Teresa Dvila

    Se losofar descobrir o sentido primeiro do ser, no possvel losofar abandonando a situao humana: , pelo

    contrrio, preciso assumi-la.

    Merleau-Ponty, O elogio da losoa

    A plis so os homens.

    Tucdides

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    SUMRIO

    Introduo .................................................................................

    Parte I Os anos de formao

    1. Os primrdios da autonomia: a questo russa .................................1.1 Castoriadis e as crticas a Trotsky .............................................

    1.2 O Socialismo ou Barbrie .........................................................1.3 Uma teoria crtica da burocracia ...............................................

    2. A nova onda do socialismo ...............................................................2.1 Um certo luxemburguismo .......................................................

    2.2 O paradigma hngaro................................................................

    2.3 O contedo do socialismo.........................................................

    2.4 A ideologia bolchevique e a questo da organizao ...............

    3. Do marxismo crtico crtica do marxismo ....................................3.1 O negativo do capital ................................................................

    3.2 A pulverizao do marxismo ..................................................

    3.3 Notas sobre a questo da dialtica ..........................................

    Parte II Da poltica filosofiae da filosofia at ns

    4. A descoberta da imaginao ...........................................................4.1 Por uma nova teoria da revoluo ..........................................

    4.2 O domnio do social-histrico ...............................................

    4.3 O legein, o teukheine os magmas .........................................

    4.4 Uma breve histria da imaginao ........................................

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    5. Psicanlise, poltica e autonomia ...................................................5.1 O legado de Freud ...................................................................

    5.2 A mnada-psquica ..................................................................

    5.3 O Projeto da Autonomia .........................................................

    6. A poltica entre os antigos e os modernos ......................................6.1 O retorno Grcia ...................................................................

    6.2 Entre antigos e modernos ........................................................

    6.3 A poltica e a losoa..............................................................

    7. Dilogos intermitentes: as disputas em torno da democracia,revoluo e autonomia ...................................................................7.1 Os dilogos ..............................................................................

    7.2 A poltica entre Arendt e Castoriadis ......................................

    7.3 Habermas e a sociedade instituinte.........................................

    7.4 Honneth e a ontologia para a revoluo.................................

    7.5 O Projeto da Autonomia e o kantismo:Heller e Castoriadis................................................................

    guisa de concluso: A utopia militantee os ecos da autonomia....................................................

    Referncias.................................................................................

    Siglas das obras de Castoriadis citadas...............

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    introduo

    As ideias do lsofo greco-francs Cornelius Castoriadis esto dis-persas num universo vastssimo. Podemos armar que ele possuaum conhecimento enciclopdico. Poucos pensadores contemporneosconseguiram reunir ao longo da sua vida intelectual a quantidade detemas que Castoriadis abarcou, especialmente se considerarmos queele no foi, propriamente, um homem de academia1. E seu domniosobre cada um deles no cou somente num plano raso. Em cada umdos assuntos abordados percebemos um mergulho profundo no con-hecimento de tradies de pensamento, conjunturas e debates polti-cos, em muitos casos aparentemente distantes entre si.

    O universo no qual transitou Castoriadis vai desde um mar-xismo militante, que dialoga com grandes pensadores da tradiomarxista, como Lenin e Trotsky, bem como Marx (de quem ele co-nhecia tanto os textos de juventude quanto os de maturidade), pas-

    sando pela psicanlise de Freud, pelos estudos sobre a antiguidadeclssica (especialmente o legado grego e a losoa antiga, desde ospr-socrticos a Aristteles) passando por Plato e pelos grandes es-critores aedos e trgicos, alm da ontologia, que abarca quase toda ahistria da tradio losca do Ocidente. Castoriadis se ocupou detodas estas atividades. Foi militante poltico, economista, psicanalis-ta, terico da sociedade. Mas foi sobretudo um lsofo. Um lsofoousado e original que encampou, como muito poucos, o difcil tra-

    balho de discorrer acerca das perguntas aparentemente sem resposta,buscando respostas sobre as questes que quase ningum se presta aperguntar. Suas ideias so multifacetadas, ou como destaca HelianaRodrigues, so polimorfas, no se vinculam a nenhuma das tradi-

    1 Apesar de possuir um conhecimento profundo de universos distantes entre si,Castoriadis no traou uma carreira propriamente acadmica. Jamais concluiu uma tesede doutoramento e seu ingresso na vida universitria francesa se deu apenas em 1979,quando ele j contava com 55 anos e uma longa lista de trabalhos publicados. Mesmo

    assim, seu ingresso na Ecole de Hautes Etudes em Science Socialfoi tumultuado eteve que contar com a ajuda de amigos e admiradores (Cf. Vidal-Naquet).

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    es que surgiram nos anos 1960 e 1970 e que ainda esto em voga,como o estruturalismo ou o ps-estruturalismo, ps-marxismo etc.,

    embora faa meno a todas elas. Tambm no se articulam com osdiscursos contemporneos da morte do sujeito e muito menos comqualquer inuncia do pensamento liberal.

    Seu tema, por excelncia, foi a poltica. No apenas a polticareal, isto , aquela que ocorre no cotidiano e que consta nas pginasdos jornais e preenche os espaos dos livros de histria. Desta polticarotineira ele nunca se desligou e tambm teceu alguns comentrios.Podemos ver isto desde a juventude, ligado a crtica incessante das

    experincias do socialismo sovitico, como tambm aps, no dilogopermanente dos grandes fatos e eventos polticos do seu tempo. So-mente por seu trabalho de anlise poltica, Castoriadis j teria sido umgrande intelectual.

    Seu trabalho terico no parou por a. Foi para alm das man-chetes cotidianas e se enlaou tambm como o poltico (grifo nosso).Isto , com a necessidade de se compreender mais profundamentecomo os homens agem, vivem em sociedade, se organizam, criam

    seus modos de viver e de morrer. A poltica para ele sempre esteveentre esses dois lados: o primeiro, a experincia concreta, a forados fatos e dos acontecimentos. E segundo: procurou compreendera lgica intrnseca da ao poltica, qual fora atua por trs dessasaes (se que existem tais razes), o que move a ao poltica e porque ns vivemos em sociedade.

    Disso decorre encontrarmos nas ideias de Castoriadis uma traje-

    tria peculiar. Um homem engajado com as grandes questes de seutempo no apenas no plano da ao poltica corriqueira, mas tambmno que se refere reexo sobre a poltica. De fato, a relao entre ateoria e a ao, no foi algo determinante somente na histria pesso-al de Castoriadis. Esta relao, to essencial ao pensamento poltico,constitui de fato, um dos cernes mais elementares das ideias de Cas-toriadis. Podemos v-la, ainda em potncia, nos anos de militncia

    poltica na juventude desabrochando na desconana do sucesso da

    ao revolucionria, e, na sua plenitude, a partir da retomada do de-senvolvimento de um grande sistema losco que, de algum modo,

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    parece querer elevar a militncia ao status de reexo losca, comopodemos encontrar nos seus textos de maturidade.

    Esta relao entre teoria e prtica foi ao longo da tradio lo-sca ocidental, em geral, compreendida a partir da supremacia do

    pensamento sobre a ao. Tal hierarquia invertida por completopor Castoriadis. Se em geral a losoa compreende a si mesma nu-ma perspectiva em que o pensamento superior a ao, ou ainda,que o pensamento orienta e determina o modo pelo qual agimos,Castoriadis vem nos mostrar o quanto daquilo que pensamos est, narealidade, enraizado no modo como agimos. Em outras palavras, ele

    vem dar a prtica humana um lugar tambm privilegiado na histriado pensamento, lugar que apenas foi concebido por pouqussimoslsofos, tais como Aristteles e Marx para citar apenas os exemplosmais conhecidos.

    Contudo, suas anlises no se satiszeram somente com as con-tribuies de Aristteles e de Marx. No primeiro caso, para Casto-riadis, Aristteles ainda via a poltica e a prxis como subordinadasao pensamento terico. No segundo, para Marx, a prxis se orienta-

    va segundo determinaes constitudas a partir de fora dela. contratais perspectivas, a subordinao da ao humana ao pensamento, e aorientao da ao segundo uma norma determinada alheia a ela mes-ma, que boa parte da reexo de Castoriadis incide.

    Podemos dizer que um dos temas fundamentais que permeiamesta pesquisa justamente a relao entre a teoria e a prxis luz dasideias de Castoriadis. Para tanto, no podemos tomar este ou aquele

    aspecto deste emaranhado de ideias que a sua losoa. Pois estarelao nasce muito cedo nas ideias do nosso autor. Deste modo, alosoa de Castoriadis como um todo que temos como objeto. Desdeseus primrdios na crtica ao trotskismo e da experincia sovitica,

    pensamento construdo desde ns dos anos 40 e que atravessou boaparte dos seus trabalhos no grupo Socialismo ou Barbrieque ele aju-dou a fundar (foi por quase vinte anos um dos seus principais anima-dores), passando pela redenio de um contedo novo para o socia-

    lismo (nos anos 50 e parte dos 60), a ruptura com a tradio marxista(em meados dos 60) e a empreitada na construo de uma losoa

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    poltica sobre bases inteiramente novas. Nesta ltima fase as refern-cias no so mais Marx (embora Castoriadis nunca tenha abandonado

    por completo algumas questes lanadas pelo lsofo alemo), mas apsicanlise, a losoa dos pr-socrticos, a tragdia grega, Aristteles,Kant, Hegel e os dilemas da democracia. So todos esses os aspectos,das ideias de Castoriadis, contemplados neste trabalho.

    Com isto, defendemos a ideia de que a relao entre teoria e pr-xis est na base da losoa de Castoriadis e margeia seus trabalhosdesde os anos de juventude encontrando a plenitude nos textos de ma-turidade. Tal relao d preferncia para aspectos da prxis em funo

    da especulao terica, embora boa parte das ideias de Castoriadisacabe por se inserir numa losoa abstrata altamente especulativa.

    Castoriadis foi um intelectual que se ocupou de diversas ques-tes pautadas sobre inmeras referncias, muitas distantes entre si,e tem por caracterstica geral um fazer losco eminentemente po-ltico. Ou seja, ele vem nos mostrar, em que medida, a prtica, a

    poltica e a vida em sociedade so determinantes para constiturema nossa identidade, como vivemos, como construmos o mundo ao

    nosso redor e, sobretudo, como pensamos. Por m, um autor paraquem a poltica est no centro da reexo losca. Acreditamosoutrossim que as ideias de Castoriadis constituem um elogio da po-ltica, isto , em sua obra a reexo sobre a poltica possui um lugarespecial, quase privilegiado. justamente a poltica que constitui osolo fundamental por onde perpassa a experincia humana. Somos,

    para Castoriadis, animais polticos (Zoon Politikon), tal comoAristteles deniu no sculo IV a. c.

    Assim, podemos dizer que a pergunta fundamental que orientaesta pesquisa : o que a prxis para Castoriadis?. Tal questiona-mento conduz necessariamente ao tema da autonomia, j que, paranosso autor, prxis e autonomia caminham juntas. Em outras palavras,

    para que se possa compreender a noo de prxis em Castoriadis preciso tambm que se tome como parte privilegiada desta concepoo que nosso autor entende por autonomia. Prxis e autonomia, neste

    contexto, no podem estar separadas.Deste modo, um dos aspectos relevantes desta pesquisa est em

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    observar uma tenso no que concerne ao pensamento de Castoriadis,tenso que aparece de maneira crucial na sua trajetria de vida: o

    lugar do fazer poltico e do pensar poltico. No h, para nosso autor,uma hierarquia entre pensamento e ao, bem como no h tambmuma supervalorizao da ao em funo do pensamento. Contudo,na sua vida pessoal, podemos perceber claramente um abandono dasatividades de militncia em funo do trabalho losco, especula-tivo, sem atividades polticas efetivas, embora o prprio Castoriadisnos relate, o retorno a militncia foi algo planejado at o m de suavida (cf. Ortellado, 2004).

    Neste estudo, tal trajetria intelectual, da qual os temas da prxise da autonomia so fundamentais, foi retratada a partir de dois gran-des blocos: o primeiro, que chamamos Anos de Formao, contma anlise dos anos de militncia no marxismo, desde a presena naIV Internacional, a fundao do Socialismo ou Barbrie, a reviso docontedo do socialismo que o levou ao novo exame das teses do mar-xismo e da teoria da histria no prprio Marx. O segundo apresentaa virada losca do autor, construda sobre a recusa do marxismo e

    buscando resgatar os elementos esquecidos pela histria da losoa:a imaginao e a criao radical, conduzindo constituio de umsistema losco prprio. Este segundo momento marcado pela in-uncia das ideias de Freud, pela discusso acerca da ontologia e peloresgate crtico das experincias daplisdemocrtica.

    H, entretanto, um nico elo capaz de unir as ideias de juventudecom as ideias de maturidade: a questo da autonomia. Desde muito ce-do este tema parece crucial a Castoriadis. Num primeiro momento elaemerge da defesa dos conselhos operrios e das experincias revolu-cionrias espontneas. Assim, que as ideias polticas de Castoriadisdialogam com a tradio do marxismo crtico ou libertrio, do qualseus principais expoentes foram Rosa Luxemburgo e Karl Korsh (paracitar apenas os nomes mais conhecidos). Mas sua discusso, e nesteaspecto ele se aproxima muito de Rosa Luxemburgo, esteve centradaem especial numa teoria da prxis com vistas autonomia. Ou seja,tal como a revolucionria polonesa, que defendia com unhas e dentesa ao espontnea das massas frente poltica de gabinete do parti-

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    do, Castoriadis retira da inspirao para sua defesa da autonomia dasmassas. Com Rosa, nosso autor tem muitas anidades, embora ele no

    tivesse percebido ou nem mesmo admitido isso. Ambos viam nos con-selhos de operrios uma sada democrtica e popular para o socialis-mo, apostaram na ao criativa das massas em inventar novas formasrevolucionrias, novos horizontes e uma nova organizao. Em ambosa democracia assume um carter substantivo. Contudo, para Castoria-dis, Rosa Luxemburgo ainda permaneceu presa ao fetiche do econo-micismo tpico do pensamento marxista. Tal acusao, que de fato no injusta, demonstra a crtica de Castoriadis xao do marxismo

    pelas explicaes meramente econmicas, que reduziam em muito aprpria capacidade de interlocuo do marxismo com os acontecimen-tos de seu tempo, bem como a alternativa poltica e terica.

    Imbudo desta perspectiva autonomista ele se dedica a reformu-lao do contedo do socialismo nos anos mais produtivos do Socia-lismo ou Barbrie.Esta alternativa no se coadunava nem com as ex-

    perincias soviticas, nem com as prticas dos partidos comunistas enem com o trotskismo. As crticas ao burocratismo ocupam boa parte

    da reexo de Castoriadis nesses primeiros anos. Ele se torna um crti-co mordaz da URSS sem, contudo, recair no oposto liberal. Junto comClaude Lefort, ele se dedicou a interpretao da URSS no como umestado operrio, ou um estado operrio corrompido, como armavamos trotskistas. Para eles, a forma assumida na URSS acompanhava omovimento do capitalismo internacional, que rumava em direo ao

    burocratismo. Era, desta forma, um capitalismo burocrtico com asmesmas caractersticas dos pases ocidentais, o mesmo tipo de explo-

    rao dos trabalhadores, a mesma produo de mais-valia e as mesmasrelaes hierrquicas. Os burocratas do partido ocupavam o lugar quefora da burguesia e criavam a ideologia de que esta organizao socialrepresentava os interesses dos trabalhadores. A URSS no era degene-rada, como para Trotsky, ao contrrio, era um regime de explorao eideologia to perverso, ou at mesmo pior que o capitalismo.

    As anlises de Castoriadis se destacaram no apenas pelo seucontedo. Os recursos metodolgicos usados pelo jovem autor tam-

    bm eram inovadores. Castoriadis, embora de formao marxista, se

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    valia das anlises de Weber, autor pouco conhecido e utilizado entre osmarxistas da poca. As leituras de Weber que abriram seus olhos para

    o papel da racionalizao e da burocratizao da sociedade moderna,da qual a URSS no passava de mais um exemplo.

    A soluo que propunha contra o crescimento da burocracia era,deste modo, a superao da diviso entre trabalho intelectual e trabalhomanual. Boa parte da atividade terica de nosso autor, que gravitava emtorno de um novo contedo do socialismo, tinha este ponto como umaquesto central. No difcil percebermos, assim, o impacto da eclosoda Revoluo Hngara sobre as teses que Castoriadis vinha defendendo.

    Defendendo o marxismo de conselhos, o m da diviso entredirigentes e executantes no mbito da fbrica, Castoriadis acreditavaque o novo rumo do socialismo sairia no momento em que o movi-mento dos trabalhadores encampasse como bandeira a autogesto dafbrica. Tal como o cinema da Nouvelle Vaguefrancesa buscava en-contrar novos caminhos estticos que fugissem dos padres do cinemacomercial, os membros do Socialismo ou Barbrietambm buscavamnovas sadas para o movimento revolucionrio internacional. Coinci-

    dentemente, ambos os movimentos, o primeiro de cunho artstico e osegundo, poltico, apareceram nos mesmos anos.

    Tal busca, porm, levou nosso autor a reviso crtica do marxis-mo como teoria e como prtica revolucionria. Este esforo o condu-ziu a crticas ao prprio Marx, em especial ao Marx da maturidade,marcado pelo determinismo e pelo economicismo. Castoriadis vairesgatar o Marx de juventude, que se debruava sobre uma teoria da

    revoluo e que possua uma viso mais democrtica e popular da or-ganizao social. Esta reviso crtica, vale ressaltar, no conduz a umaposio reformista ou reacionria. Do rompimento com o marxismo,Castoriadis vai buscar uma teoria da revoluo por outras searas, foradeste referencial terico. A partir desta inexo surge a segunda partedesta pesquisa, chamada Da poltica losoa e da losoa at ns.Este ttulo, uma brincadeira com um dos trabalhos mais importantesde Castoriadis2, tem como objetivo apresentar os novos rumos busca-

    2Valor, igualdade, justia e poltica: De Marx a Aristteles e de Aristteles at ns,In: EL I, p. 331-418.

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    dos pelo autor. Se num primeiro momento a teoria estava em segundoplano em relao prxis, nesta parte a teoria parece tomar um lugar

    cada vez mais privilegiado em relao prtica poltica. Neste momen-to emerge o lsofo da imaginao, o terico da sociedade e o psicana-lista. Se antes a autonomia era tratada tendo como horizonte a fbrica ea gesto operria, neste segundo momento ganha novos matizes.

    A autonomia, neste contexto, est no centro de uma reexolosca que abarca as ligaes ntimas com o desenvolvimento da

    psique humana, a perspectiva controversa de Castoriadis em torn-lauma probabilidade para a humanidade atravs de um projeto da auto-

    nomia e a orientao poltica rumo a uma sociedade instituinte. Estasegunda parte do trabalho procede da guinada losca das ideias doautor, buscando compreender como ele elabora suas concepes sobrea imaginao e criao na poltica, como compreende a sociedade ea inuncia da psicanlise para o desenvolvimento de uma teoria dosujeito. Alm disso, tambm abordada a viso de Castoriadis acercados antigos e do legado grego para a poltica. Como J. P. Vernant, quearmava que a losoa de certa maneira lha da cidade, isto , que

    sem o movimento poltico ateniense, que deu origem a democracia,responsvel por levar de alguma forma o pensamento do cu a ter-ra, possibilitando o prprio surgimento losoa, o tipo de questio-namento novo trazido pela losoa, Castoriadis nos mostra que sema poltica, sem o movimento humano de criar modos de convivnciamtuas, o pensamento especulativo no seria possvel. O pensamento, desta maneira, erguido sobre as fundaes que s a vida coletiva

    pode edicar. A especulao losca seria, segundo essa perspectiva,

    um legado advindo da vida poltica da humanidade. Este tipo de olharsobre a poltica e a losoa tem incio napolis democrtica e reapa-rece novamente na modernidade. neste sentido que Castoriadis ar-ma que ainda somos herdeiros de um processo que visa autonomia.

    Nosso autor, com isto, no padece de nostalgia de tempos imemoriaisdapolis. Seu objetivo contrapor a poltica dos antigos a dos moder-nos, buscando em cada uma dessas experincias distantes os vestgiosda autonomia. A reexo de Castoriadis possui, segundo esta leitura,

    profundas implicaes democrticas.

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    Os pontos mais fundamentais da segunda parte deste trabalhoesto na anlise da teoria da histria como criao, na valorizao

    do imaginrio como produtor de realidade, no desenvolvimento deuma teoria do sujeito capaz de agir reexivamente e de, atravs disso,rumar autonomia. Neste contexto se insere o Projeto da Autonomia

    para nosso autor. No se trata, neste caso, da reminiscncia de um pro-jeto revolucionrio, resgatando antigos elementos do projeto marxista.Trata-se, sobretudo, de uma perspectiva sobre a sociedade, de fortecunho iluminista, que visa a auto reexo e crticas permanentes. Serautnomo para nosso autor, no signica nada alm do que dar a si

    mesmo as prprias leis e regras. Tal questo essencial para Castoria-dis. Para ele, poltica se relaciona com a instituio das leis. Contudo,leis possuem nesse caso, uma acepo alargada: relacionam-se comuma organizao geral da vida, da cultura e dos valores. Instituir as

    prprias leis , sobretudo, produzir sentidos e realidades, dando aber-tura, neste contexto, para a instituio do novo. neste sentido quedevemos compreender a armao de Castoriadis de que abandonoo marxismo, mas no abandono um projeto revolucionrio(Casto-

    riadis, IIS, p. 25). Alm disso, nesse sentido tambm que autonomiapara ele, refere-se eminentemente liberdade.

    Por m, apresentamos tambm alguns dilogos intermitentes.So intermitentes, pois, nunca foram diretos e nem foram acabados.So e permanecem sendo. De um lado, com Hannah Arendt. Com ela,Castoriadis possui inmeros pontos em comum, mas se afasta em umaquesto crucial: para ele, diferentemente do que para a lsofa ale-m, era preciso tambm intervir na ordem social, no mundo do traba-

    lho para se instaurar uma democracia substantiva. J com Habermas,ele se digladia em torno da no instrumentalizao da democracia,

    permitindo que ela seja sempre encarada como um processo aberto,dinmico e em construo. Com ambos, Castoriadis nos coloca umaquesto fundamental para a vida democrtica: no basta apenas denirquem so os atores capazes de sustentar uma democracia substanti-va, mas, sobretudo, preciso tambm apontar o modo pelos quais asdecises so tomadas. Democracia para ele, no se relaciona somen-

    te a quantidade de sujeitos envolvidos no processo decisrio. Apesar

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    da participao coletiva ser tambm um aspecto fundamental para onosso autor, a democracia no se resume a isto. O mais emergencial

    para uma democracia plena o fato de o corpo coletivo poder decidirtambm como as regras do jogo so jogadas. preciso decidir sobreas leis, as instituies, a cultura e os valores institudos, no sentidode poder question-los e, sobretudo, poder tambm instituir novos.Democracia, portanto, no apenas se relaciona a participao popular,mas tambm ao modo como esta participao se d, a como as deci-ses so tomadas e institudas.

    Por m, com Honneth, o debate gira em torno da criao e da on-

    tologia, mostrando que, segundo nosso autor, a criao carrega consi-go tambm uma face malca. No se trata, neste caso, de se criar umaontologia para tentar salvar o projeto revolucionrio, como denunciaHonneth. Mais do que isso, trata-se de defender a criao e a imagina-o radical como fontes geradoras do real, e da qual pode advir ou no,uma revoluo. A revoluo, neste contexto, apenas uma possibilida-de e no uma necessidade. J com Heller, Castoriadis trava um debateacerca da inuncia do kantismo em suas ideias. Ainda que nosso au-

    tor carregue heranas de uma certa posio emancipatria semelhantes ideias defendidas por Kant, como a noo de uma humanidade ca-

    paz de viver sem tutelas, h uma separao crucial quanto a deniode sujeito para cada um. Deste modo, a noo de autonomia em Kant

    permanece associada a uma concepo que estabelece a emergnciado sujeito sobre o poltico. J para Castoriadis, tal relao no ocor-re desta forma. A autonomia, segundo ele, est sempre associada ao

    poltico, sendo o sujeito uma consequncia posterior. por isto que,

    embora utilizem os mesmos termos e um raciocnio comum, as duasconcepes de autonomia se afastam.

    Assim, o que podemos concluir das ideias acerca da relao teo-ria e prxis em Castoriadis que, em primeiro lugar, por mais que ascircunstncias nos mostrem o contrrio, possvel ainda buscar umasada. E, esta sada, segundo nosso autor, tem por base um proces-so democrtico, radical, inclusivo e, principalmente, questionador.Alm do mais, buscar uma revoluo no apenas buscar um novosistema social, poltico e econmico. tambm buscar a autonomia,

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    alcanar um grau de liberdade e independncia capazes de fazer comque possamos decidir acerca deste sistema ou se preferimos rumar

    em direo a novos.H ainda algumas palavras acerca da metodologia usada nesta

    pesquisa, tema to caro cincia poltica. Partimos da ideia de quenum trabalho eminentemente terico como este, o centro metodol-gico se constitui no modo como articulamos as ideias a partir de uma

    problemtica geral levantada previamente. Assim sendo, o principaldesenvolvimento metodolgico utilizado nesta pesquisa ser a reviso

    bibliogrca a partir de fontes primrias, isto , as obras do autor, tam-

    bm de fontes secundrias, comentadores e demais autores que dialo-gam direto ou indiretamente com Castoriadis. No se trata, neste caso,de uma exegese dos textos trabalhados ou de um resumo das ideias doautor. Ainda que num trabalho desta natureza, a leitura de texto rigo-rosa bem como a exegese sejam partes da pesquisa. Trata-se, portanto,de abordar os textos de Castoriadis a partir do olhar que este estabe-leceu para a prxis humana e de como este olhar est profundamenteimbricado com a noo de autonomia. O que buscamos perfazer aqui

    o trabalho de histria da losoa, ou seja, compreender o autor apartir da sua produo terica, tendo como recurso a leitura rigorosae buscando abarcar este trabalho no contexto de um questionamentoacerca de um ou mais pontos de sua obra, mostrando que, como o

    prprio Castoriadis dene, Honrar um pensador no elogi-lo, nemmesmo interpret-lo, mas discutir sua obra, mantendo-o, dessa forma,vivo, e demonstrando, em ato, que ele desaa o tempo e mantm suarelevncia(Castoriadis, Os Destinos do Totalitarismo, OT, p. 7; Cf.

    tambm p. 218 desta pesquisa).Por ltimo, preciso ressaltar que, neste trabalho, preferimos uti-

    lizar as tradues brasileiras ou portuguesas, por facilidade de acessoao pblico do Brasil. Quando isto no foi possvel, os textos foramutilizados no original, contemplados com a traduo norte-americana.Vale lembrar que Castoriadis um autor pouco debatido nos meiosintelectuais no Brasil e que este trabalho se prope a no somente ana-lisar suas ideias, mas tambm possibilitar a apresentao deste autor,que talvez seja um dos mais criativos e originais do nal do sculo XX.

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    Parte I

    os anos de formao

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    os primrdios da autonomia:a questo russa

    1.1 castoriadis e as crticas a trotsky

    Em dezembro de 1945 Cornelius Castoriadis1deixa a Grcia abordo doMataroa, navio de bandeira neozelandesa, famoso por levar Frana uma gerao de intelectuais gregos fugidos pouco antes doincio da guerra civil2. Castoriadis contava com a tenra idade de 23anos, mas j carregava no seu histrico uma carreira de militncia

    poltica que remonta aos primeiros anos da adolescncia. Desde suasada da Grcia ele j dava sinais de uma postura crtica quanto ao so-1 Nascido em Constantinopla (hoje Istambul), Castoriadis mudou-se para Atenasainda criana. Foi na Grcia que o autor recebeu sua primeira formao poltica eacadmica. Aos quinze anos entrou para a juventude comunista, de onde prontamentese afastou, aderindo em seguida a uma organizao trotskista. A militncia polticade esquerda era uma atividade potencialmente perigosa na Grcia das dcadas de 30e 40. Primeiro, durante 1936 a 1941, havia a ditadura Metaxas e, aps este perodo,houve a ocupao nazista. Com a retomada da Grcia pelas tropas aliadas, o pas

    se viu sem governo, e entrou numa sangrenta guerra civil que durou trs anos. OPartido Comunista Grego (KKP) protagonizava uma das foras da guerra, e perseguiaos militantes trotskistas (durante um malfadado golpe de estado em dezembro de1944 o KKP assassinou mais de 600 militantes trotiskistas). Esta experincia doterror patrocinado pelos comunistas gregos marcaria para sempre a trajetria polticade Castoriadis (In: Marcel van der Linden, Socialisme or Barbarie: A FrenchRevolutionary Group, Left History 5 (1999)).2 Neste navio tambm estavam Kostas Axelos e Kostas Papaioannou. O primeirolsofo que obteve destaque por suas anlises acerca da tcnica a partir de leituras deHeidegger e Marx, tendo por base a losoa de Marcuse. O segundo, tambm lsofo

    e historiador da arte, especialista nos textos de Hegel e tradutor de textos alm deHegel, tambm de Marx e Engels.

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    cialismo real e aos partidos comunistas alinhados III Internacional.Alm disso, j questionava alguns pressupostos do regime de Stalin.

    Ainda muito jovem Castoriadis abandonou o PC grego e aderiuao grupo trotskista grego liderado por Spiro Stinas3. Este foi um cami-nho natural a quem no se alinhava com as posies ociais tanto doPC grego, como dos partidos comunistas em geral. Anos depois, numaintroduo escrita por ele para a publicao de seus escritos produzi-dos no grupo Socialismo ou Barbrie, ele escreve:

    O carter reacionrio do partido comunista [grego], da sua

    poltica, dos seus mtodos e do seu regime interno, tal comoo cretinismo, ento como hoje, qualquer discurso ou docu-mento emanado da direo do PC apareciam com prefei-ta clareza. No podia surpreender que nestas condies detempo e lugar, tais constataes conduzissem ao trotskismoe sua faco mais esquerdista, que fazia a crtica intran-sigente do stalinismo e ao mesmo tempo dos trotskistas dedireita (Castoriadis, SBI, introduo geral, p. 11).

    Com isso, podemos perceber de imediato com quais posies ojovem Castoriadis se alinhava: o antisstalinismo ferrenho, uma posi-o crtica ao trotskismo e uma viso libertria do socialismo.

    Desde a chegada na Frana, munido de uma bolsa de doutora-do em losoa, que jamais seria concludo, Castoriadis se engaja nasleiras do PCI (Partido Comunista Internacionalista), seo francesada IV Internacional, fundada por Trotsky em 1938. Ao longo deste

    perodo que dura desde sua adeso ao trotskismo na Grcia at a rup-tura total com essa herana terica, podemos acompanhar o percursointelectual e poltico do jovem militante que culmina na fundao, aolado de Claude Lefort, do grupo Socialismo ou Barbrie.

    Durante o ps-guerra imediato, o trotskismo representava apedra angular de resistncia experincia socialista sob a batuta deStalin. Os movimentos trotskistas se autoimputavam os defensoresde um marxismo autntico frente s mudanas realizadas na URSS

    3Dirigente trotskista grego.

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    de Stalin e nos regimes de inspirao sovitica. Diante desta posio,o trotskismo analisado de perto, tinha como objetivo fundamental, a

    construo de uma posio poltica e terica contra-hegemnica, quevisava combater as mudanas procedidas por Stalin ao regime socia-lista. Esta posio acabou sendo exportada para o mundo e adotadacomo a principal fonte de oposio ao stalinismo.

    Porm, os trotskistas, segundo Castoriadis, se limitavam apenasa defesa e retomada da experincia revolucionria de 1917 a 1923, anoem que Lenin j doente, deixava um vazio no poder. Para Castoriadis,a posio dos trotskistas reetia a incapacidade, j demonstrada antes

    por Trotsky, para interpretar os reveses da revoluo no perodo stali-nista. Segundo nosso autor, Trotsky no alcanou de fato a estruturae funcionamento da sociedade russa stalinista, com isso, boa parte desuas anlises eram superciais e infecundas. Ou seja, embora Trotskyzesse inmeras referncias aos dados econmicos e sociais ao ana-lisar o regime sovitico, ele no conseguia trabalhar estes dados demaneira analtica, apenas descritiva. Isto signicava que, para Cas-toriadis, faltava a Trotsky a crtica sociolgica. Em outras palavras, a

    crtica do regime russo era um tema fundamental. Mas Trotsky, aindaque sua importncia tenha sido de suma importncia como aglutina-dor de uma oposio ferrenha ao stalinismo, no soube proceder suasanlises de maneira profunda, realizando assim, uma crtica tmida.Castoriadis escreve:

    Como qualicar, dum ponto de vista marxista, um tal regi-me? Era claro que, sociologicamente, devia ter a mesma de-

    nio do regime russo. E aqui que a fraqueza e nalmen-te o absurdo da concepo trotskista se tornavam evidentes.Porque a denio que este dava do regime russo no erasociolgica. Era uma denio histrica: a Rssia era umestado operrio degenerado, no se tratando aqui de umaquesto de terminologia. Para o trotskismo um tal regime sera possvel como produto da degenerescncia duma revo-luo proletria (Castoriadis, SBI, p. 13).

    Deste modo, o que Castoriadis pretendia enfatizar na anlise de

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    Trotski que: era preciso considerar mais a srio a estrutura burocrti-ca do estado sovitico sem qualic-la meramente como uma estrutu-

    ra degenerada. A apreciao, ao invs de histrica, deveria ser econ-mica e social. No se tratava, neste caso, de compreender como que arevoluo se perverteu desde os primeiros anos, mas sim, como bommarxista, compreender as bases econmicas e sociais que sustentavamtal situao poltica. Era esta a falta nas anlises de Trotski e este o

    ponto no qual os estudos do jovem Castoriadis vo se concentrar.

    Ou seja, o primeiro erro de Trotsky, segundo Castoriadis, foi noconsiderar a burocracia sovitica como parte fundamental da estrutura

    produtiva sovitica, mas apenas como uma camada parasitria, ouuma formao transitria que chegou ao poder, mas que tendia adesaparecer medida que o processo revolucionrio avanasse.

    Entretanto, para nosso autor, se a crtica de Trotsky apresentavaproblemas estruturais, a posio dos seus seguidores, especialmenteaps sua morte, era ainda mais supercial. O trotskismo, no apenasrepetia as teses de Trotsky como ainda no conseguia apresentar nadade novo que fosse alm das anlises do mestre. Se faltava a Trotski

    uma anlise consistente dos fatos, faltava ao trotskismo a criatividade,tanto analtica como, em especial, poltica, para se opor de maneirasubstancial s experincias do socialismo real.

    Deste modo, o que estava por trs das crticas de Castoriadis erao fato de que: era crucial naquele perodo histrico, que o movimentorevolucionrio internacional se pusesse a desenvolver novos cami-nhos para se pensar a revoluo. Em um texto de agosto de 1946,

    Castoriadis anunciava suas crticas e armava esta necessidade. Em OProblema da URSS a Possibilidade de uma terceira soluo histrica,ele arma: A teoria revolucionria no um dogma revelado de umavez para sempre, mas uma parte integrante da ao revolucionria,evoluindo constantemente com esta ltima (Castoriadis, SBI, p. 63).Isto , para Castoriadis, se as teorias desenvolvidas at o momentono fossem sucientes para explicar uma determinada conjuntura ousituao histrica, era preciso, ao invs de manter delidade a uma

    teoria estril, buscar novos caminhos, mesmo que a expensas da teo-ria ocial. Assim, partindo da lio de Lenin que armava que: no

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    h ao revolucionria sem teoria da revoluo, Castoriadis, naquelemomento, pe-se a pensar uma teoria da revoluo capaz de se apre-

    sentar com uma terceira alternativa para alm das opes do Comin-term e da IV Internacional.

    A principal tese de Trotsky, especialmente desenvolvida em ARevoluo Trada(1936), de que o que ocorreu na Rssia de Stalinfoi uma degenerao. Esta tese tambm endossada por Castoriadis.Mas o que Castoriadis acreditava, e neste ponto discordava de Trotsky, que para o ltimo, esta degenerescncia era um fato episdico, pas-sageiro, uma contradio que seria resolvida pela vitria mundial da

    revoluo. Castoriadis acreditava que a degenerescncia fosse perma-nente e que na URSS isto tenha implicado no aparecimento de umanova classe. Isto quer dizer que, de um lado, Castoriadis apresentavaa necessidade de compreender a degenerao sovitica no a partirdos fatos e eventos histricos que levaram a ela, mas sim sob a apre-ciao sociolgica. Mas, de outro, e neste sentido, tal como para ostrotskistas, tinha importncia fundamental para a luta poltica, afastaro modelo sovitico como modelo de socialismopar excellencepara o

    movimento revolucionrio internacional.Segundo Trotsky, a Revoluo Russa permanecia at o momento

    como uma revoluo incompleta, isto , havia apenas realizado o esta-gio inferior do comunismo e ainda precisa avanar4. Trotski se agarraa tese de Lenin, em O Estado e a Revoluo, que dizia que o Estadoiria desaparecer medida que a revoluo avanasse. Ele defendiaconstantemente que, diante do crescimento da burocracia stalinista ha-veria a necessidade de desaparecimento do Estado pela emergncia deum poder popular a quem de fato deveria pertencer o poder. Ou seja,Trotsky defendia a retomada dos sovietes de 1917, bolchevizados pelo

    partido. Mas no qualquer soviete. No eram propriamente os conse-lhos populares surgidos de maneira espontnea e auto geridos pelostrabalhadores. Mas sim aqueles tais como se estabeleceram aps outu-

    bro de 1917, orientados pelo partido. O regime sovitico, para Trotskideveria ser um regime guiado pelos conselhos populares, mas sob aorientao do partido. Esta era a alternativa poltica de Trotski para

    4 Cf. Trotsky, A Revoluo Trada, p. 36.

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    fazer frente aos reveses do stalinismo. Em outras palavras, no haviaaqui nada de novo alm do marxismo-leninismo tradicional. A prin-

    cipal tese dele em A Revoluo Trada exposta no nal deste texto:

    Pelo fato de ter sido a burocracia, de todas as camadas da so-ciedade sovitica, a que melhor resolveu a sua prpria ques-to social, encontra-se completamente satisfeita com o atualestado de coisas e no necessita de dar qualquer garantiamoral sobre a orientao socialista de sua poltica. Continuaa defender a propriedade estatizada com receio do proleta-riado, receio este salutar que alimentado e sustentado pelo

    partido ilegal dos bolchevistas-leninistas, expresso maisconsciente da corrente socialista contra o esprito de reao

    burguesa do qual est profundamente penetrada a burocra-cia termidoriana. Como fora poltica consciente a burocra-cia traiu a revoluo. Mas a revoluo, felizmente vitoriosa,no s um programa, uma bandeira, um conjunto de insti-tuies polticas, tambm um sistema de relaes sociais.

    No suciente tra-la, necessrio ainda subvert-la. Osatuais dirigentes traram a Revoluo de Outubro, mas aindano subverteram.5

    Ou seja, para Trotski a Revoluo Russa ainda tinha uma soluo.Ora, neste sentido, para Castoriadis a crtica cava relegada ao denun-cismo, e tinha como objetivo principal conscientizar os revolucionriosrussos para o restabelecimento da poltica bolchevique de 1917. Reto-mar as perspectivas perdidas de 1917 seria o caminho para que a revolu-o pudesse retomar seus rumos perdidos, e com isso, fazer desapare-cer o centralismo burocrtico pelo centralismo democrtico do partido.

    A burocracia, para Trotski, uma degenerao, pois se elevouacima de todas as classes desempenhando uma funo reguladora etambm por ser responsvel pela manuteno da hierarquia social.Alm disso, a burocracia exerce a explorao para ns prprios6. Ouseja, a burocracia , portanto, uma deformao do regime sovitico,surgida por um desvio do curso natural da revoluo.5

    Idem, p. 174, grifo meu.6O que segundo Trotski a faz semelhante com os regimes fascistas.

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    Contudo, para se solucionar o avano da burocracia, Trotski pro-pe uma nova revoluo. Esta revoluo, no entanto, seria realizada

    apenas no plano poltico e no no plano social. Isto porque, para ele, arevoluo social j teria sido realizada: a burguesia j havia sido abo-lida, o czarismo j havia terminado e os trabalhadores j estavam no

    poder. O que aconteceu que por uma srie de motivos circunstanciaisa burocracia se instalou no poder, freando a onda revolucionria quevinha crescendo de modo vertiginoso desde 1917.

    Alm disso, outra questo que Castoriadis no concordava comas anlises de Trotski, quanto a nacionalizao e planicao da eco-

    nomia. Para nosso autor, a timidez da crtica de Trotski no permitiaarriscar o questionamento acerca da estrutura social, poltica e princi-

    palmente econmica da URSS como um todo. por isto que a buro-cracia no era tomada como centro de uma crtica sociolgica URSS,mas apenas como uma degenerao passageira.

    justamente a partir da que o jovem Castoriadis parte paradesenvolver sua prpria crtica. Tomando por base as insucinciasda anlise de Trotsky, ele vai propor uma crtica prpria da questo

    russa. Convencido da necessidade de que era preciso encarar de frenteo problema da degenerescncia da revoluo, algo abordado, mas demaneira insuciente no interior da tradio marxista. Este tema passaa se tornar o cerne da questo russa para Castoriadis, no intuito de es-tender o horizonte revolucionrio para alm das alternativas possveis.

    Vale lembrar que, em primeiro lugar, Castoriadis considerava queo trotskismo internacional no havia feito nada de relevante alm de

    repetir as teses do mestre exausto. Compreender a degenerescnciae tentar propor um novo modelo de administrao poltica na URSSera uma agenda de pesquisa importante entre os trotskistas7, mas queem geral, no apresentava novidades.

    7 preciso ressaltar, contudo, as diculdades do trotskismo no curso dos fatos. Haviauma campanha extremamente negativa de Stalin contra Trotski a ponto de haveruma espcie de demonizao deste. Os trotskistas no tinham espaos nos partidos,sofriam perseguies, tanto da direita como tambm da esquerda. Estes fatos devem

    ser levados em conta para que se compreenda o porqu das diculdades tericas eprticas do movimento trotskista.

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    Alm disso, outro aspecto relevante que deve ser consideradonas anlises de Castoriadis o fato de que: nosso autor era um jovem

    militante marxista preocupado com os rumos do movimento operrio.H, nestas anlises, uma boa dose de imaturidade terica, tpica dajuventude, que o leva, muitas vezes, a tomar questes sem compreen-der de fato as inmeras diculdades do contexto histrico. Seu julga-mento de Trotski e do trotskismo, em alguns momentos, exagera nascores e parece no considerar tanto o carter marginal do trotskismo,mas principalmente as diculdades histricas monumentais enfrenta-das por este movimento para sobreviver num universo dominado pelo

    comunismo stalinista e que sofreram por muitos anos cruis persegui-es a seus partidrios. No entanto, preciso tambm considerar que,o mpeto da juventude no diminui ou invalida as teses de Castoriadis.Ao contrrio, vem nos mostrar o quanto que, para um jovem autor,elas estavam imbudas de um engenhoso trabalho terico, o que de-monstra um intelectual criativo e competente.

    Assim, Castoriadis arma categoricamente que era preciso re-conhecer no a degenerao da Revoluo Russa, como armava

    Trotski, mas seu fracasso completo. O problema da revoluo se si-tuava no modo pelo qual a produo russa se organizava, conferindo burocracia um papel central. Em outras palavras, a revoluo noera como um nufrago a deriva precisando de socorro. Ao contrrio,ela j havia submergido, e como tal, era necessria no uma revo-luo dentro da revoluo, mas sim uma nova revoluo socialistaconstruda por bases absolutamente distintas. Alm disso, para Cas-toriadis, a deformao da URSS no tinha tido incio com o stalinis-

    mo, mas sim remonta caminhos tomados por esta ainda durante oano de 1917.

    Para ele, em primeiro lugar, era preciso entender a burocraciano como fato episdico e passageiro, isto , como um desvio do cur-so revolucionrio que criou uma camada parasitria. A burocracia eramais do que isso. Era, sobretudo, um fenmeno de classe, j que, se-gundo ele, ela atuava como uma nova classe dominante. Isto porqueela cumpria todos os quesitos necessrios de uma classe dominante:detinha a posse sobre aparelho produtivo, tinha o monoplio sobre a

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    direo e dava a orientao no processo produtivo. A taxa de explora-o, a mais valia, tambm cava a cargo dos burocratas, que determi-

    navam a durao das jornadas de trabalho. Alm disso, a propriedadeprivada tambm existia na sociedade burocrtica russa, mas somentepara esta burocracia. A posio de classe desta burocracia se apoiavano monoplio do aparelho estatal que o usava para obter privilgios e

    permanecer no poder.

    Dada as caractersticas que a burocracia assumiu na sociedaderussa, Castoriadis insiste na necessidade de no se esquivar diante des-te novo problema terico: uma sociedade socialista que passou a ser

    uma sociedade de classes. Todavia, essa nova classe dominante noera a burguesia, mas a burocracia do partido que se instalou de modo

    parasitrio no poder, substituindo a atuao da burguesia.

    A URSS, deste modo, no poderia jamais ser um estado oper-rio degenerado. Ao contrrio, ela simplesmente era umestado nooperrio. Partindo-se do ponto de partida errado, Castoriadis indicaque, embora Trotsky tivesse acertado quando identicou na burocra-cia as razes dos problemas da URSS, ele no percebeu que esta bu-

    rocracia constitua, de fato, uma nova classe, que desempenhava asmesmas funes da burguesia na sociedade capitalista. O que acon-tecera na Rssia no poderia ser chamado de sociedade socialista eo movimento revolucionrio internacional, na medida em que aindatomava a URSS como inspirao, decaia to rapidamente quanto a

    prpria sociedade russa.

    A inovao de Castoriadis na anlise da questo Russa advm

    do fato de que, para ele, era preciso tratar o problema sob uma outraperspectiva. No se podia subdimensionar a questo da burocracia, talcomo faziam Trotski e seus partidrios, mas entende-la como o atorresponsvel pelo m da revoluo socialista. O tema da burocracia foieleito por Castoriadis como fator chave de sua interpretao sociolgi-ca da URSS. Se o foco de Trotsky estava em tentar salvar as conquis-tas revolucionrias de 1917 a 1923, o foco de Castoriadis estava emmostrar a burocracia no podia coexistir com a revoluo socialista e

    que, justamente nestes anos, houve uma vitria da burocracia sobre aauto-organizao das massas.

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    Contudo, Castoriadis tinha um objetivo poltico muito claro: darum novo flego da luta revolucionria no interior da IV Internacional.

    Para ele era urgente afastar a poltica revolucionria das experinciassoviticas. Seu projeto terico e poltico nos primeiros anos de produ-o terica, ainda como militante da IV Internacional, era estabeleceruma ttica ecaz contra o stalinismo como chave para o desenvolvi-mento revolucionrio8.

    Nos primeiros anos na Frana, Castoriadis conheceu Claude Le-fort nas leiras polticas do PCI9. Ambos compartilhavam inmeras

    posies comuns. Para ambos, as crticas de Trotsky tiveram como

    pano de fundo, uma tentativa de reorganizar o partido no sentido depreparar o terreno para a volta do revolucionrio russo ao cenrio pol-tico, no apenas no campo terico, mas como dirigente do partido, po-sio que ele sempre acreditou ser sua por direito e que desde a mortede Lenin lhe foi tirada por Stalin10. Ou seja, as motivaes de Trotsky,em certo sentido, eram no apenas tericas, mas tambm polticas e

    8Cf. Castoriadis, Sobre a questo da URSS e do stalinismo mundial, SBI, p. 79.9

    Ainda no ano de 1946 Lefort e Castoriadis formaram uma tendncia no III Congressoda IV Internacional. Usando pseudnimos, Pierre Chalieu (Castoriadis) e ClaudeMontal (Lefort), eles lanam a ideia de que o regime russo era uma sociedade declasses baseada na explorao realizada pela burocracia. A tendncia Chalieu-Montal,como cou conhecida no interior da IV Internacional, atuou at 1948, quando rompecom a IV e passa a se chamar grupoSocialismo ou Barbrie, lanando a partir de 1949uma revista homnima. Em entrevista realizada com Lefort em 1975, ele descreve seuencontro com Castoriadis: Eu o conheci pela primeira vez numa conferncia internado partido, destinada preparao do III Congresso (se minha memria no meengana): o assunto era a URSS. Sua anlise me subjugou. Eu talvez tivesse persuadidode todas as suas concluses, mas eu nunca as formulei e jamais teria sido capaz delhes dar o fundamento econmico que ele dava. A argumentao de Castoriadis mepareceu digna do melhor de Marx, embora os trotskistas a considerassem hertica.Este encontro foi o incio da nossa longa e prxima colaborao, cujo primeiroresultado concreto foi a criao do Socialismo ou Barbrie em conjunto com umpequeno nmero de camaradas. (Telos, V. 1, n. 1, p. 174)10Lefort identica antes de Castoriadis as razes do burocratismo na prpria estruturado partido leninista. Desta forma, no podemos pensar uma crtica burocraciasem avaliarmos tambm as posies de Trotsky nos primeiros anos da revoluo,em que ele defendia formas de explorao que, para Lefort, so formas tpicas deuma sociedade de classes (por exemplo, o processo de coletivizao promovido pelo

    Estado). A burocracia, segundo Lefort, jamais poderia ser entendida por Trotsky comoum sistema de explorao movido por regras prprias, j que este defendia, desde

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    at mesmo pessoais. Assim, munidos da inteno de buscar uma al-ternativa de ao IV Internacional, Lefort e Castoriadis fundaram

    um pequeno grupo no interior da organizao com o intuito de tentarlanar o debate sobre os rumos da experincia sovitica e de mostrarque a defesa do estado da URSS no compactuava com uma polticasocialista. Evidentemente, suas posies no foram bem recebidas noPCI, o que os levou primeiro ao isolamento, e posteriormente, a con-sequente ruptura. Desta ruptura surgiu o grupo Socialismo ou Barb-rie, que seria, ao longo da sua atuao, a principal voz do marxismocrtico do ps-guerra (Lwy, 1975, p.2004).

    1.2. o socialismo ou barbrie

    Em maro de 1949, Castoriadis, Lefort e outros intelectuais emilitantes formaram o Socialismo ou Barbrie. Este grupo reuniamilitantes mais a esquerda do PCI, no era de incio um grupo mui-to numeroso, algumas dzias de camaradas (Curtis, 1997, p. 3),segundo Castoriadis. Suas posies polticas e tericas se aproxi-mavam das experincias dos grupos da esquerda marxista ligados asideias libertrias11. Suas ideias eram expressas na revista homnima,que se tornou, ao longo de sua existncia, num dos veculos maiscriativos do debate terico e poltico da esquerda francesa no ps-

    o incio, alguns mecanismos burocrticos para o funcionamento pleno da sociedadesovitica (Cf.La contradiction de Trotsky, 1971, p. 27-29).11 As liaes tericas e polticas do Socialismo ou Barbrie so muitas. Muitas

    das posies do grupo so conuentes com as posies de Rosa Luxemburgoacerca da autonomia das massas, da crtica ao burocratismo partidrio e a defesa daespontaneidade da ao de massas. Mas o Socialismo ou Barbrie no se prendiasomente a inuncia de um nico autor. Os marxistas de conselhos, tais como AntonPannekoek, Karl Korsch e Otto Rhle, dos anos 20 tambm possuem dilogo com asposies do grupo. Alm disso, desde a revoluo de 1917, os anarquistas foram osprimeiros a denunciar os primeiros desvios da Revoluo Russa, que foram compondo,com o tempo, num conjunto crtico das experincias soviticas. As experincias dolevante dos marinheiros de Kronstadt e da revolta Makhnovista na Ucrnia merecemdestaque nesse processo. O Socialismo ou Barbriese vincula a tradio do marxismolibertrio. Portanto, como num primeiro momento parece evidente, a liao do grupo

    a esquerda intelectual francesa dos anos 50, tais como Sartre ou Merleau Ponty (oprimeiro aderiu ao stalinismo e o segundo no teve militncia poltica) errnea.

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    -guerra (Apud Philippe Gottraux, Ortellado, 2004).

    Partindo das insucincias do trotskismo, o grupo anuncia suas

    posies logo nas primeiras linhas da sua carta de apresentao:

    O grupo de que esta revista rgo constituiu-se em 1946no interior da seo francesa da IV Internacional. O seudesenvolvimento poltico e ideolgico afastou-o cada vezmais desta, e levou-o a romper denitivamente no s comas posies atuais dos epgonos de Trotsky, mas tambmcom o que constituiu a verdadeira essncia do trotskismodesde 1923, isto , a atitude reformista (no sentido profun-do do termo) face burocracia stalinista, estranhamentecombinada com a tentativa de manter intacto, no interiorduma realidade em constante evoluo, o fundamento da

    poltica bolchevique do perodo histrico (Apresentaoda Revista Socialismo ou Barbrie, SBI, 1979, p. 115).

    Esta armao j mostra desde incio a inteno de no com-pactuar nem com a poltica da III nem da IV Internacionais. Se o

    trotskismo foi a primeira corrente a tomar conscincia do carter con-trarrevolucionrio do stalinismo, como vimos, o contedo das suasanlises eram, na opinio dos membros do Socialismo ou Barbrie,insucientes. Desta maneira, as primeiras anlises do grupo tinhamcomo tema central o que eles consideravam o problema fundamentalda poca: a burocracia stalinista. Esta burocracia, ao contrrio do queo trotskismo supunha, no era uma excrescncia, mas sim parte daevoluo social e econmica contempornea das sociedades moder-

    nas (Castoriadis, carta de apresentao, SBI, 1979, p. 116).A questo central que animava os debates do Socialismo ou Bar-

    brieera, nos seus primeiros momentos, conforme escrito na cartade apresentao do grupo, compreender como foi que esta evoluoeconmica e social, que segundo o marxismo devia levar a vitriada revoluo, levou a vitria, ainda que passageira, da burocracia?E que acontece neste caso perspectiva da revoluo proletria?.

    As preocupaes do grupo podiam ser entendidas, deste modo,num primeiro momento, a partir de um problema terico muito es-

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    pecco: a questo da revoluo a partir da perspectiva de que elahavia fracassado e que havia cedido espao para a contrarrevolu-

    o representada pela burocracia. Mas, num segundo momento, asquestes reetiam os problemas da prxis revolucionria com a clarainteno de estabelecer uma alternativa. Ou seja, o grupo almejavaa elaborao terica, tomando como ponto de partida preocupaes

    prticas12. Havia de uma parte a inteno de criticar, mas de outro,na contraface, a inteno de propor algo novo. Podemos ler esta po-sio na carta de apresentao do grupo:

    O movimento proletrio distingui-se de todos os movi-mentos polticos anteriores, por mais importantes que estespossam ter sido, porque o primeiro a estar consciente dosseus objetivos e dos seus meios. Neste sentido, a elabora-o terica para ele no s um dos aspectos da atividaderevolucionria, mas mesmo inseparvel dessa atividade.A elaborao terica no precede nem segue a atividaderevolucionria prtica: so simultneas e condicionam-seuma a outra. Separada da prtica, das suas preocupaes e

    do seu controle, a elaborao terica s pode ser v, estrile cada vez mais desprovida de signicado. Inversamen-te, uma atividade prtica que no se apie numa pesquisaconstante s pode vir a dar num empirismo cretinizado.13

    A proposta do grupo era produzir um novo discurso polticohbil capaz de dar conta dos desaos tericos e prticos da con-

    juntura poltica, econmica e social da poca, que dava os primei-

    ros sinais do que iria se tornar a Guerra Fria. Pensar em solues ealternativas fora das amarras da ortodoxia da esquerda tradicional,redimensionando a prxis por outras searas, e procedendo a crticatanto do capitalismo do ps-guerra como tambm das experinciasdo socialismo real, tudo isso tendo por base, a crtica da burocracia.Essas eram as teses principais de Castoriadis e do grupo Socialismoou Barbrieno momento de sua fundao.

    12

    Idem. Ibdem.13Idem. 117

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    1.3 uma teoria crtica da burocracia

    O tema da burocracia, como vimos, era o foco dos debates nogrupo nos seus primeiros anos de existncia, sendo inclusive a ques-to fundamental que levou sua fundao. A tarefa essencial do mo-vimento revolucionrio para o Socialismo ou Barbrie era naquelemomento redenir o contedo do socialismo com vistas a dar um novovigor a prxis revolucionria. Alm disso, boa parte de suas anlisesgravitavam em torno da compreenso da burocracia como uma novaclasse dominante.

    Esta tese, central nos debates do grupo, na opinio de Castoria-dis no deveria estar circunscrita experincia sovitica (Castoriadis,Balanos e perspectivas, EMO p. 81). Segundo ele, a burocracia noera apenas uma forma poltica, e seus limites no estavam restritos sfronteiras da URSS. Para Castoriadis, a questo da burocracia no eraapenas um problema nos pases socialistas. Mais que isso, a burocrati-zao do socialismo acompanhava o mesmo movimento do capitalis-mo moderno durante o ps-guerra. Ela assumia, portanto, a forma de

    um capitalismo burocrtico. A Rssia era uma parte de um processomaior. Toda a evoluo capitalista deste perodo assumiu uma formaburocrtica, desde a organizao interna da empresa at o Estado. Emum texto de 1957, em que Castoriadis faz um balano das atividadesdo grupo at este ano, ele escreve:

    [a burocracia] expressa as tendncias mais profundas daproduo capitalista moderna: concentrao das foras pro-

    dutivas e desaparecimento ou limitao consequentes dapropriedade privada como fundamento do poder da classedominante; aparecimento, no seio das grandes empresas deenormes aparelhos burocrticos de direo; fuso dos mo-noplios do Estado; regulamentao estatal da economia(Castoriadis, Balano e Perspectivas, EMO, p. 81).

    Desta forma, o problema apresentado pela questo russa, para oautor, no se limitava somente compreenso do fenmeno da buro-

    cracia na URSS. Para ele, a burocracia russa no pode ser analisada

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    como fenmeno isolado, mas tambm como parte do desenvolvimen-to macroeconmico do capitalismo mundial. A tese do capitalismo

    burocrticoconsidera que fenmenos como o nazismo, o fascismo,o sovietismo ou at mesmo oNew Dealamericano so manifestaesde um processo nico de burocratizao mundial, capaz de conver-gir todos esses regimes para uma mesma forma de organizao social(Haddad, 1992, p. 130).

    No entanto, esta posio no era propriamente nova. Coube aCastoriadis, e tambm a outros membros do Socialismo ou Barbrie,desenvolv-la com mais profundidade. Ainda em 1938, o terico pol-

    tico italiano Bruno Rizzi, publicouA burocratizao do mundo, textoconsiderado um marco nesta teoria (Cf. Ortellado, 2004). Segundoeste trabalho, ele considerava a hiptese de haver uma convergnciaentre os Estados alemo, italiano e sovitico no sentido de permitir aascenso de uma classe burocrtica encarregada de organizar a pro-duo e planejar a economia. Os motivos dessa burocratizao resi-dem nas transformaes do capitalismo que, ameaado por diversasrevoltas e revolues, exps cada vez mais a gura da burocracia no

    intuito de escamotear a gura do burgus. Em outras palavras, a buro-cratizao emerge para frear os processos revolucionrios em curso,na inteno de administrar melhor a explorao capitalista, em nomeda burguesia. No entanto, na URSS, a burocracia adquiriu feies um

    pouco distintas.

    Para Rizzi, os vinte anos transcorridos pela Revoluo Russa(1917-1938) foram tempo suciente para mostrar que ela havia produ-zido efeitos cristalizados e no apenas uma degenerao. O principalefeito foi a formao de um Estado burocrtico hierarquizado numaeconomia que no era nem capitalista e nem socialista (Haddad, 1992,

    p. 130). A tese do burocratismo sovitico tem origem, segundo Ri-zzi, nos dilemas evolvidos pela realizao de uma revoluo socialistanum pas atrasado. Segundo Haddad, resumindo as ideias de Rizzi:

    o isolamento da revoluo socialista num pas atrasado, de-vido em grande parte ao recuo do movimento revolucion-

    rio internacional (Alemanha 1923), obrigou a liderana a es-

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    colher uma dentre duas opes: ou conduzir a revoluo emcompasso de espera at o despontar da revoluo na EuropaOcidental ou adotar uma poltica de boa vizinhana com omundo capitalista, o que implicava uma mudana radical na

    poltica externa. A segunda opo foi escolhida. A partir da,os funcionrios do Estado e do partido minam o poder dossovietes e monopolizam o poder do Estado; fundam-se comelementos do antigo regime, em primeiro lugar com os tcni-cos, dando incio ao processo de formao de uma nova clas-se social, processo marcado pelo enfrentamento entre esta

    nova classe e a classe operria (Haddad, 1992, p. 130-131).

    Esta tese demonstra que houve de algum modo uma subservi-ncia do socialismo sovitico s demandas do capitalismo mundial.Ou seja, de algum modo, os caminhos do socialismo sovitico, em-

    bora houvesse tido inmeras diculdades domsticas, consentiu e decerta maneira, foi um subproduto do capitalismo internacional. Nesteaspecto, para Rizzi, a mera nacionalizao da economia, apesar deimprimir algumas mudanas estruturais, no poderia ser considerada

    como o elemento fundamental capaz de garantir o Estado socialista.Alm disso, as teses de Rizzi vm nos mostrar que de alguma

    maneira as teses que vinculam o capitalismo internacional ao burocra-tismo sovitico j circulavam em alguns meio intelectuais. As anlisesdo Socialismo ou Barbrie vo tomar esta vinculao como tema cen-tral. Embora seja importante lembrar que no h evidncia direta dainuncia das ideias de Rizzi sobre o grupo, j que o terico italianono foi citado nos textos do Socialismo ou Barbrie14. O que vale

    ressaltar que, tanto Rizzi, como Castoriadis e tambm Claude Lefort,

    14 Segundo Ortellado, no h evidncias diretas que Castoriadis conhecia de fato otexto de Rizzi. H somente indcios de sua leitura. Como escreve Ortellado, Estelivro, clssico pstumo, teve originalmente (Paris, 1939) uma tiragem pequena,de apenas 500 exemplares, a maioria dos quais se perdeu completamente durantea guerra. No entanto, h bons indcios de que ele tenha chegado a Castoriadis e oinuenciado. o que sugere o artigo Les classes sociales et A. Touraine (nota 13)em Socialisme ou Barbarie 27 (1959) e o texto de contra capa da reedio da obra de

    Rizzi pelos situacionistas (veja Gombin, Les origines Du gauchisme, p. 43, e Jappe,Guy Debord, p. 119) (Ortellado, 2004, p. 32).

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    provavelmente por uma mera coincidncia de anlises, relacionavama burocracia sovitica com o processo de burocratizao crescente

    tambm nos pases capitalistas.Porm, ao invs de auir na direo comum de que o burocra-

    tismo sovitico apenas a outra face do capitalismo, os autores doSocialismo ou Barbrie, zeram questo de indicar as origens hist-ricas que diferenciam o sovietismo do capitalismo. Para eles, aindaque faam parte de um mesmo movimento, as razes do burocratismosovitico tambm residiam no prprio desenvolvimento da RevoluoRussa de outubro de 1917, que esmagou os movimentos autnomos

    em funo da primazia do partido.A preocupao inicial tanto de Castoriadis como de todo o grupo

    era, deste modo, tentar compreender o processo de formao e conso-lidao da burocracia como uma nova classe dominante e como o mo-vimento socialista internacional havia sido dragado para dentro destemovimento maior que era o desenvolvimento das foras produtivas docapitalismo do ps-guerra. Em outras palavras, a questo russa era en-tendida pelo autor no como fenmeno isolado surgido no interior da

    sociedade russa por razes muito determinadas. Assim como Rizzi, oburocratismo tambm advinha do desenvolvimento macroeconmicomundial. A originalidade de suas anlises provm, em parte, da tentativade explicar o burocratismo por elementos internos da prpria organiza-o bolchevique com elementos externos do capitalismo internacional.

    Para realizar tal tarefa, Castoriadis e Lefort, os principais te-ricos dos primeiros anos do grupo15, estavam munidos de um forte

    aporte terico que partia de uma releitura das ideias de Marx, mas quetambm ertava com outros autores de uma tradio intelectual forado marxismo, como por exemplo, Max Weber. Vale lembrar, contudo,que nesses primeiros anos, muitas das anlises de Castoriadis estavam

    prximas s questes abordadas por Lefort.

    Segundo os autores era crucial, para a prxis revolucionria domovimento socialista internacional, que se compreendesse como a bu-

    15Os primeiros anos de trabalho do Socialismo ou Barbrie foram marcados pela

    presena signicativa de Castoriadis e de Lefort. Ambos produziram os textos maisinuentes do grupo e as anlises tericas mais fundamentadas.

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    rocracia russa, mesmo sendo parte da conjuntura poltica e econmicado capitalismo do ps guerra, pde alcanar e se instalar no poder.

    Assim, a crtica social e a genealogia da burocracia no poder emsociedades socialistas eram temas fundamentais para a abordagemcrtica das experincias do socialismo real. Neste aspecto, o grupo se

    propunha a entender a gnese da burocracia e as razes de sua conver-so em classe dominante. Esta gnese se localizava, segundo as an-lises dos dois autores, nas razes do movimento operrio, em especialnas organizaes dirigentes: os partidos e os sindicatos.

    Para Castoriadis e Lefort, durante os primeiros anos da Revoluo

    de 1917 houve um processo de crescimento das organizaes operrias.Em muitos momentos, os partidos e os sindicatos ocuparam o lugar eexerciam papis antes destinados ao Estado capitalista. Ou seja, para am-

    bos, a burocracia tem suas razes no processo de ocupao destes espaos.Assim, a Revoluo Russa no foi capaz de criar uma organizao pol-tica inteiramente nova, apenas de certa maneira, e adaptou-se formas

    polticas pr-existentes. As organizaes dos trabalhadores tomaram umespao deixado vazio aps a revoluo e ao invs de abolirem as suas

    funes e de transformarem radicalmente as relaes polticas, se mimeti-zaram ao que j havia, criando neste processo, relaes prprias.

    Parte disso pode ser explicada pelo contexto econmico e polti-co da poca, seja para garantir a vitria da revoluo ou por causa docontexto da guerra civil. O fato que, tanto no plano poltico, comoeconomicamente, os bolcheviques no romperam com a organizaodo Estado russo e nem com uma economia capitalista. As polticas

    adotadas, tais como: a estatizao ou nacionalizao dos meios deproduo e de troca, a planicao da economia e a coordenao in-ternacional da produo, podem ser citadas como exemplos de conti-nuidade entre a Rssia anterior e a Rssia revolucionria. A mudanamais signicativa para a burocratizao foi que a propriedade privadadeixou de ser propriedade da burguesia e passou a ser propriedade doEstado. Advm da o fortalecimento da burocracia. A oposio entre

    proprietrios e no proprietrios, caracterstica bsica das sociedades

    capitalistas deu lugar para a diviso entre dirigentes e executantes doprocesso produtivo. como dirigente do novo processo produtivo ins-

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    titudo que a burocracia encontrou o seu papel. O resultado disso foio surgimento da burocracia como classe dominante. Como podemos

    ler no texto de Castoriadis escrito para o primeiro nmero da revistaSocialismo ou Barbrie:

    o resultado mais claro dum sculo de desenvolvimento daeconomia e do movimento operrio parece ser o seguinte:

    por um lado, as organizaes sindicatos e partidos pol-ticos que a classe operria criava constantemente para asua emancipao, transformavam-se regularmente em ins-trumentos de misticao e segregavam inelutavelmente

    camadas que subjugavam o proletariado para resolver oproblema da sua prpria emancipao, quer integrando-seno regime capitalista, quer preparando e realizando a sua

    prpria ascenso ao poder (Castoriadis, Socialismo ou Bar-brie, SBI, p. 125).

    Desta forma, nas crticas de Castoriadis, a burocracia no somen-te emergiu como uma nova classe a partir do nada. Em realidade, a es-

    trutura burocrtica j existia em germe na prpria estrutura partidria,e no seio do movimento dos trabalhadores atravs da separao entredirigentes e executantes. Quando surgiram as condies polticas, so-ciais e econmicas propcias, esta burocracia tomou corpo e se tornoua classe dirigente da sociedade. O elemento realmente vencedor naRevoluo de Outubro, segundo as anlises de Castoriadis, no foramas massas operrias, mas apenas os seus dirigentes. Ao invs de assu-mir o protagonismo que lhe era de direito, as massas optaram por se

    deixarem ser governadas e geridas pelo partido. Em outras palavras,para Castoriadis, a dominao do partido sobre as massas ocorreu node maneira unilateral, ao contrrio, ocorreu com o aceite das massas,que recusaram, em diversos momentos, seu prprio papel histrico16.

    Porm, as crticas do autor no se limitaram apenas a descrio doprocesso pelo qual a burocracia se instalou no poder. As anlises de Cas-

    16Vale lembrar que este processo no ocorreu de forma pacca. Houve sim resistnciadas massas frente s decises do partido e ao esvaziamento dos sovietes, os exemplos

    mais relevantes de resistncia, conforme j citados acima, foram: as greves dePetrogrado de 1920-1921, a insurreio de Kronstadt, ou o movimento Maknnovista.

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    toriadis continham um renamento sociolgico mais elaborado. Em maiode 1949 Castoriadis publicaAs Relaes de Produo na Rssia, o texto

    terico mais importante dos primeiros anos do Socialismo ou Barbrie.A premissa fundamental contida neste texto a compreenso das

    relaes econmicas e sociais na Rssia a partir de uma perspectivade classe. Esta anlise parece ser a princpio, antagnica. Isto porque,se a revoluo socialista aboliu o carter classista da sociedade, entocomo seria possvel analisar a URSS a partir de uma perspectiva declasse? A anlise crtica de Castoriadis tem como objetivo justamentecompreender o fenmeno da burocracia a partir do entendimento de

    que a burocracia uma classe opressora que substituiu a classe bur-guesa na dominao da classe trabalhadora. Ou seja, apesar da revo-luo, continuou a haver explorao de classe na URSS. A diferena que a dominao burocrtica ocupou o espao deixado pela burguesia,e incrementou ainda mais seu sistema de explorao, tornando a do-minao de classe na URSS, num tipo de dominao mais perversoque a dominao burguesa. Somado a isso, fazia tambm parte de suasanlises compreender a maneira enviesada como a burocracia soviti-

    ca reproduziu as relaes tpicas da dominao capitalista.Os marcos tericos utilizados por Castoriadis para empreender

    sua anlise crtica foram, como qualquer terico marxista, os textos deMarx. Em especial, as questes contidas na Crtica ao Programa de Go-tha. A tese defendida por Marx neste texto sobre a impossibilidade deseparar a produo da riqueza da forma como ela repartida na socieda-de foi relida e incorporada para sustentar as posies do jovem militanterecm chegado Frana. Segundo Marx: O socialismo vulgar (e comele uma parte da democracia) tomou dos economistas burgueses a ideiade considerar e tratar a distribuio como algo independente do modode produo (Marx, Crtica ao Programa de Gotha, p. 35).

    Ora, para Castoriadis a burocracia sovitica havia invertido estatese. Eles pregavam que socialista, na URSS, era a repartio da ri-queza e no a produo. A produo era estatal, logo, se um estado erasocialista a produo tambm era dos trabalhadores. Em suma, para a

    burocracia, ter um aparato estatal nas mos do partido correspondia aofato de o poder estar de fato nas mos dos trabalhadores. De fato, para

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    Castoriadis, tal vinculao entre poder do Estado e os trabalhadores,no somente era uma tese discutvel, como tambm, no caso sovitico,

    era uma farsa declarada.No se podia levar a cabo esta lgica sem consequncias para a

    revoluo. Segundo Marx, a estrutura produtiva o corao da orga-nizao social. A distribuio consequente, e portanto, subordinada produo. Em outras palavras, Castoriadis defendia que era funda-mental alterar a estrutura produtiva da URSS, dando aos trabalhado-res, e no aos tcnicos subordinados burocracia partidria, o podersobre a produo. Tanto a produo, como a distribuio dependente a

    ela, no so para o autor, socialistas na sociedade sovitica17.Porm, para Castoriadis, as relaes sociais na Rssia apresen-

    tavam um desao que no meramente econmico relativo s questessobre a produo de distribuio da riqueza. tambm sociolgico.Como explicar a dominao burocrtica numa sociedade como aURSS? O domnio da burocracia na URSS exercia a mesma explora-o que a burguesia, mas ocupava um lugar e uma funo social dis-tinta desta. O lugar da burocracia est legalmente atrelado ao Estado e

    17 Castoriadis critica Trotsky novamente por este no compreender o vnculoestrutural entre produo e distribuio. Para Trotsky a propriedade estatal dosmeios de produo garantia o carter socialista da produo na URSS. Era precisosomente, segundo este autor, reformar a estrutura e a repartio da riqueza social.Para Castoriadis, o erro de Trotsky reside em justamente no compreender as liesfundamentais de Marx. EmPara a Crtica da Economia PolticaMarx escreve: Oresultado ao qual chegamos no que a produo, a distribuio, a troca, o consumoso idnticos, mas que so todos elementos de um todo, diferenciaes no seio deuma unidade. A produo ultrapassa na sua determinao antittica de si mesma

    tanto o seu prprio quadro como os outros momentos. a partir dela que o processorecomea sem cessar. evidente que troca e consumo no podem ser o que prevalece.O mesmo acontece com a distribuio, enquanto distribuio dos produtos. Masenquanto distribuio dos agentes de produo ela um dos momentos da produo.Uma dada produo determina portanto um consumo, uma distribuio e uma trocadadas, e regula igualmente as relaes recprocas determinadas desses diferentesmomentos. (...) Uma transformao da produo; o caso, por exemplo, dumaconcentrao do capital ou duma diferente distribuio da populao entre a cidadee o campo, etc. Enm, a produo determinada pelas necessidades inerentes aoconsumo; h uma ao recproca entre diferentes momentos. o que acontece

    em relao a qualquer todo orgnico (Marx, Introduo Crtica da EconomiaPoltica, apud. Castoriadis, p. 183)

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    a sua funo dirigir a produo e controlar a distribuio. A burocra-cia, portanto, controlava a produo e conduzia a repartio da riqueza

    segundo seus prprios interesses, tentando separar um processo que,segundo a anlise de Marx, estava intimamente relacionada.

    Uma das caractersticas mais importantes das anlises de Castoria-dis neste perodo a incorporao constante de argumentos tirados dostextos de Marx para a denncia da burocracia sovitica. Tal refernciaera importante para mostrar o quo a burocracia sovitica estava afasta-da das teses de Marx. Dar um novo flego ao movimento revolucionriosignicava tambm, retomar as teses de Marx, no sentido de reencontrar

    ali a orientao geral e o guia para a ao to fundamentais ao movi-mento dos trabalhadores. Ou seja, Castoriadis entendia que as relaesde produo na Rssia deveriam ser debatidas a luz do referencial te-rico dos trabalhos de Marx, no sentido de desvincular a experincia daURSS com o trabalho de Marx e suas principais teses.

    Alm disso, a anlise das relaes de produo na Rssia deveriapartir, para ele, da anlise das relaes de produo no capitalismotradicional. Conforme podemos ler neste trecho:

    o capitalismo burocrtico no signica seno o desenvolvimen-to extremo das leis mais profundas do capitalismo, conduzindo negao interna dessas mesmas leis. , portanto, impossvelalcanar a essncia do capitalismo burocrtico russo sem ligaro exame deste ao das leis que regem o capitalismo em geral(Castoriadis,As relaes de produo na Rssia, SBI, p. 205).

    Assim, segundo o autor, a primeira relao fundamental no ca-pitalismo se d entre o patro e operrio: a posse do capital sociale do poder estatal que faz dos capitalistas a classe dominante da so-ciedade burguesa18. Ora, isto implica em que as relaes de produono capitalismo so relaes de classe, em que h um grupo que mono-

    poliza e dirige a produo e outro grupo que somente executa. Dissodecorre a explorao do trabalho alheio e da mais valia. A teoria deMarx mostrou exaustivamente esta questo.

    18 Idem, p. 206.

  • 7/27/2019 O Elogio da Poltica: prxis e autonomia no pensamento de Cornelius Castoriadis Tatiana Rotolo

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    49o elogio da poltica

    J na sociedade socialista, as relaes de produo no so rela-es de classe, porque cada indivduo se encontra em relao ao con-

    junto da sociedade da qual ele prprio um agente ativo e no umacategoria especca de indivduos ou de grupos sociais providos depoderes econmicos prprios ou dispondo, no todo ou em parte, dosmeios de produo19. Em outras palavras, na sociedade socialista ostrabalhadores participam da determinao das condies do seu pr-

    prio trabalho, dando as regras no apenas com a distribuio da rique-za, mas especialmente com relao esfera da produo. A sociedadesocialista aquela que conseguiu abolir a distino entre dirigentes e

    executantes do trabalho e que tomou para si a tarefa de administrar aproduo. Ou seja, para Castoriadis, a sociedade socialista aquelaem que os trabalhadores so capazes de se auto gerirem20.

    A relao fundamental da economia russa, segundo o exame deCastoriadis, a relao entre o operrio e o Estado. A relao operrioe Estado distinta da relao entre operrio e patro. Isto indica outroelemento para rearmar a necessidade de se empreender uma aprecia-o crtica acerca da burocracia. Contudo, se at aqui os argumentos

    de Castoriadis contra a URSS se baseavam nos textos de Marx, deagora em diante ele vai encontrar limitaes da teoria marxista para acompreenso do fenmeno burocrtico. As ideias de Marx com rela-o a burocracia so, para o caso da URSS, limitadas e no do contados diversos aspectos do fenmeno em questo.

    A primeira considerao de Castoriadis era: o Estado, com o qualo trabalhador se relaciona, uma abstrao. Em a Crtica da losoa dodireito de Hegel, Marx dene a burocracia como a face administrativa do

    poder governamental (a burocracia a corporao do Estado, escreveMarx). neste texto que Marx faz, em poucas pginas, a anlise do fe-nmeno burocrtico no Estado moderno. Segundo o lsofo alemo, a

    burocracia no Estado capitalista existe como corpo administrativo de umEstado que aparentemente universal, mas, que de fato, um Estado de

    19Idem, p. 212.20Na Rssia, no entanto, este processo jamais aconteceu, a no ser como eventos

    isolados e num curto perodo de tempo, e que, ao m e ao cabo, todas essas experinciasforam minadas pelos bolcheviques.

  • 7/27/2019 O Elogio d