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DISSERTAÇÃO APRESENTADA À FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM ARQUITETURA E URBANISMO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: PROJETO DE ARQUITETURA em 2009Autora: TATIANA DE OLIVEIRA ONOZATO
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O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 1
TATIANA DE OLIVEIRA ONOZATO
O espao da criana na Aldeia de Carapicuba
So Paulo 2009
2 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 3
TATIANA DE OLIVEIRA ONOZATO
O espao da criana na Aldeia de Carapicuba
DISSERTAO APRESENTADA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO PARA OBTENO
DO TTULO DE MESTRE EM ARQUITETURA E URBANISMO REA DE CONCENTRAO: PROJETO DE ARQUITETURA
ORIENTADOR: PROF DR SYLVIO BARROS SAWAYA
So Paulo 2009
4 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE. E-MAIL:[email protected]
Onozato, Tatiana de Oliveira O58e O espao da criana na Aldeia de Carapicuba / Tatiana de Oliveira Onozato. --So Paulo, 2009. 307 p. : il. Dissertao (Mestrado - rea de Concentrao: Projeto de Arquitetura) - FAUUSP. Orientador: Sylvio Barros Sawaya 1. Arquitetura 2.Espaos culturais 3.Brincadeiras 4.Aldeia de Carapicuba (SP) I.Ttulo CDU 72
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 5
s crianas da OCA e
Aos meus sobrinhos Sofia e Lucas
6 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
AGRADECIMENTOS
Infinita gratido a Deus que colocou em meu caminho todas as pessoas com
as quais compartilhei e compartilho minha vida.
Ao meu melhor amigo e eterno amor, Maurcio, pelo carinho, apoio,
compreenso e pacincia. Pelo incentivo, no dia-a-dia, a acreditar em meus
sonhos e comungar a esperana de mundo melhor.
Ao Prof. Dr. Sylvio Barros Sawaya, mestre e amigo de grande corao e
sensibilidade; por ter enxergado uma fora em mim que eu nem imaginava
que existia.
As professoras da banca de qualificao: Prof. Dr Anlia Amorim e Prof Dr
Clice Sanjar Mazzilli pelas sbias colocaes que nortearam a finalizao
desta dissertao.
Aos professores: Prof. Dr Eduardo de Jesus Rodrigues, Prof. Dr Maria Jos
Feitosa e Prof. Dr Miguel Pereira, pelas conversas esclarecedoras e pelo apoio.
Ao Prof. Dr. Alexandre Delijaicov por conduzir sabiamente a minha primeira
experincia didtica e por ampliar o meu conceito de arquitetura e
compreenso do verdadeiro papel do arquiteto.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 7
Aos funcionrios da FAU Maranho e FAU Cidade Universitria, sem a energia
de vocs nada funcionaria. Em especial, Isa, Estelita e Maria Jos.
Eliane Katibian, pela fora e disposio em ajudar desde o incio.
Prefeitura Municipal de Carapicuba, em especial Secretaria de
Planejamento e Secretaria da Cultura.
Ao IPHAN, pelo apoio tcnico do acervo, em especial Rose por sua gentil
prontido.
Ao Teatro Brincante, aos professores: Rosane Almeida, Lucilene Silva,
Cristiane Velasco, Adelson Murta (Adelsin), Maria Amlia Pereira (Peo), Eugnia
Nbrega, Lydia Hortlio, Cristina Cruz e Maria do Carmo Lima (Mary), e amigos
- em especial, Al, Jnior e Synthia - do curso de Educador Brincante, por
revelar caminhos to prazerosos da cultura popular brasileira.
s crianas da OCA, pela recepo calorosa, pelo carinho e por todos os
ensinamentos ao longo desses anos.
Cris Cruz por ter me recebido de braos abertos na OCA.
equipe maravilhosa da OCA Adh, Aliane, Aninha, Cris Cruz, Ju, Peo, Rose
e Dona Violeta; aos queridos professores Lu, Vera, Mary e Fofo; aos
monitores: Adriano, Bibia, Keila, Nenm, Nina, Mayara, Paulo e Pingo. E a
todos os voluntrios e colaboradores.
Ao Mox, antigo professor da OCA, que trilha novo caminho com as crianas
da Aldeia.
comunidade da Aldeia de Carapicuba.
8 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
Aos professores e s crianas da Casa Redonda Centro de Estudos.
Maria Amlia Pereira - a Peo por ter me acolhido carinhosamente, pela
dedicao, e por ter me mostrado o que o verdadeiro brincar.
A minha famlia, porto seguro sempre. Aos meus avs maternos, Pedro e
Isabel (in memorian), migrantes do serto nordestino, pelo amor, coragem,
cuidado e f. Aos meus avs paternos, Yoshiro (in memorian) e Sumie,
imigrantes japoneses pela luta e esperana.
Aos meus pais, Paulo e Sebastiana, pelo amor, pelo esforo e pela dedicao
incondicional. tia Toninha pelo carinho e cuidado com nossa famlia.
As minhas irms e amigas Adriana, Luciana e Liliana, por conseguir extrair de
mim o que tenho de melhor - em especial Liliana, pela dedicao e
pacincia ao revisar o trabalho.
Aos meus cunhados, Adriano, Fbio e Luis, por fazerem parte da famlia - e
em especial ao Fbio pelo abstract.
Aos meus sobrinhos amados Sofia e Lucas, por iluminar a nossa famlia com a
pureza do que ser criana.
A Jacira, minha sogra, pelo carinho e por elevar sempre meu nvel espiritual
Ao Fbio Pagani, outro cunhado, por me acolher em So Paulo de corao
aberto.
As minhas eternas amigas-irms: Lisa, Manu, N, Gi e V, pela amizade fiel,
verdadeira e muito divertida.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 9
amiga Marcele Silveira, por ter me aberto tantos caminhos, pela amizade e
pela prontido na ajuda de tantas dvidas. Que, ainda, junto ao amigo Luciano
Ferreti iniciamos a caminhada na Fau.
Aos amigos da ps-graduao: Alessandra Navarro, Cristiane Larsen, Pablo
Padin e Thais Bortolato, Pier Paolo Pizzolato.
amiga Lucia Hashizume pelo carinho, pela amizade e por ter aberto um novo
caminho para mim.
amiga Cristina Xavier, por acreditar em mim, pelo apoio e por ter me
ensinado como pensar a arquitetura.
amiga Cris Pasquini, por ter me acolhido no mercado de trabalho quando
recm-formada; por ter sempre me incentivado a fazer mestrado e a acreditar
em mim.
Aos amigos Antonio Faria e Rosana Mohacsi, pela amizade verdadeira e
apoio.
Arlete e Anglica, pessoas maravilhosas, peas principais no incio do meu
processo de tomada de conscincia.
10 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 11
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce FERNANDO PESSOA
12 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 13
RESUMO
Ttulo: O espao da criana na Aldeia de Carapicuba
Prope uma reflexo sobre a Aldeia de Carapicuba como elemento essencial na formao do territrio no Brasil. Esse espao surgido como aldeamento pela ao dos jesutas, indica que se tem, desde ento, uma relao bsica com viso comunitria fundamentada em famlias, seus filhos e suas crianas. Isso se mantm no decorrer do tempo atravs de sucessivas transformaes, inclusive, havendo uma insistncia em permanecer no espao mesmo quando se props sua destruio. Contemporaneamente, retomando essa tradio, instalou-se ali a OCA Associao da Aldeia de Carapicuba cujas atividades so voltadas para as crianas com nfase especial no brincar enquanto exerccio fundamental da formao do ser humano. O presente trabalho busca compreender a perenidade dessa vocao do espao da aldeia revivida por meio das atividades ldicas. Palavras-chave: Arquitetura - Espaos Culturais - Brincadeiras Aldeia de Carapicuba
14 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
ABSTRACT
Title: The space of children at Carapicubas village Proposes a reflection about village of Carapicuba (named Aldeia de Carapicuba) as an essential element in formation of Brazilian territory. That place, aroused as a resort by the action of Jesuits, points that, there is a basic relation with communitarian vision based in families their sons and kids since then. This fact keeps happening through years by successive transformations, its occupation included, even when its destruction was proposed. Contemporaneously, reacting this tradition was installed there, the OCA Associao da Aldeia de Carapicuba which activities are for children with a special emphasize in playing situations as a primordial exercise in human being formation. This paper objectives comprehend perennial vocation of space from the village revived through playful activities. Key words: Architecture, cultural spaces, plays, Carapicubas village
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 15
SUMRIO 15
INTRODUO 19
1. O ESPAO DA CRIANA HOJE 31
1.1. Educao do amanh o despertar da conscincia 33
1.2. O Brincar e a Cultura da Infncia 39
1.2.1. O Ldico 42
1.2.2. O Brincar 48
1.2.3. A Cultura Infantil e o Brincar 53
1.2.4. O Folclore Infantil e a Cultura Infantil 57
1.2.5. Educao da Sensibilidade 60
1.3. A Criana e o Ambiente Urbano 72
1.3.1. CEU Centro Educacional Integrado 80
16 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
2. A IDENTIDADE DA ALDEIA DE CARAPICUBA 89
2.1. O Processo de colonizao no Planalto Paulistano e os
Aldeamentos Paulistas 91
2.1.1. Os Aldeamentos Paulistas 97
2.2. Histrico da Aldeia de Carapicuba 113
2.2.1. Localizao 113
2.2.2. Caracterizao 116
2.3. A Aldeia como Patrimnio e suas manifestaes 121
2.3.1. O Patrimnio 122
2.3.2. Manifestaes da Aldeia 137
3. A ALDEIA DE CARAPICUBA CONTEMPORNEA 143
3.1. O entorno da Aldeia de Carapicuba 148
3.1.1. Implantao do Trecho Oeste do Rodoanel e conseqncias 161
3.2. Parque Cultural e Ecolgico da Aldeia de Carapicuba 167
3.3. O Terreiro da Aldeia hoje: uso e ocupao atual 174
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 17
4. OCA ESPAO DE MANIFESTAO DA CULTURA INFANTIL 185
4.1. O conhecimento da atuao da OCA: histria, significado e identidade 187
4.1.1. Histria e Identidade 188
4.1.2. O incio 192
4.2. Uma Escola Cultural e suas atividades 197
4.2.1. As Brincadeiras 201
4.2.2. Os Folguedos Populares 204
4.3. O espao da criana na OCA 219
4.3.1. Os espaos ocupados 221
4.3.2. O espao construdo para as crianas 244
CONSIDERAES FINAIS 259
A Oca na Aldeia, a Aldeia na Oca: relaes e contribuies 261
BIBLIOGRAFIA 269
ANEXOS 279
18 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 19
INTRODUO
20 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
INTRODUO
A pesquisa volta-se para a reflexo sobre a Aldeia de Carapicuba, nico aldeamento jesutico
remanescente, levando em considerao as relaes entre a evoluo da sua ocupao, os
agentes histricos e a vinculao do seu espao com a criana contempornea, em um
processo que valida sua atualizao.
Procura compreender a formao da Aldeia e seu entorno - hoje Parque Cultural da Aldeia -,
sua ocupao e evoluo, destacando os principais aspectos que interferiram na produo
deste espao, considerado um elemento do nascimento do Brasil.
O estudo aborda o entendimento da paisagem, sua histria, sua identidade e significado,
conflitos de interesse, alm das manifestaes populares tradicionais.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 21
Para compreender a atualizao e perenidade da Aldeia, examina-se o percurso e a atuao
da OCA - Associao da Aldeia de Carapicuba - numa dinmica existente na apropriao do
espao pensado para as crianas e sua comunidade. Defende que a atuao da OCA
acontece por meio do ptio, que se estende para o Parque e este por diversas maneiras
chega Aldeia, introduzindo, ento, um novo conceito: o de Aldeia Parque, que a prpria
atualizao da Aldeia de Carapicuba.
O objetivo do estudo compreender a relao da Aldeia de Carapicuba com a OCA, esta
como possvel retomada do desgnio da Aldeia, uma atualidade da referncia da cultura
brasileira. Um exerccio que procura entender e considerar a complexidade da natureza do
que atual OCA e Aldeia Parque - num processo de entendimento da Aldeia como espao
social em contnua transformao e evoluo, ainda assim, arraigado na tradio.
A formao da OCA parte da necessidade de se ter espaos para atividades das crianas na
Aldeia de Carapicuba direcionados para a socializao, a criao de laos de solidariedade,
22 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
a promoo da auto-estima, a elaborao de uma sensibilidade voltada para criao,
principalmente no campo da arte e cultura.
As atividades realizadas a partir da utilizao do prprio corpo individualmente, e em
conjunto consubstanciado em brincadeiras, jogos, danas, msicas, desenhos, pinturas,
estendem-se para a alimentao, a criao de hbitos saudveis, o reforo na formao
escolar e a reciclagem, pessoal e profissional.
Originou-se um processo orgnico que foi se constituindo numa presena constante,
dinmica, delineando formas prprias. Foram sucessivos os espaos ocupados e assumidos
por essa comunidade; a saber: o ptio da Aldeia, a Casa de Cultura, uma edificao nos
arredores da Aldeia, e um galpo no entorno. Essa ocupao consecutiva dos espaos diz
respeito construo de um espao prprio, em uma rea em comodato, dentro do Parque
Cultural da Aldeia de Carapicuba, realizado com o apoio de diversas empresas, associados
colaboradores e tambm a prpria comunidade.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 23
O presente trabalho selecionou esse evento no perodo de 12 anos para estudar a relao
entre a vida e a atividade infantil, dos seus aspectos formativos e os espaos necessrios
decorrentes.
A realizao do estudo implicou na consulta a referncias secundrias voltadas para a
definio do que a Aldeia; tanto o locus geogrfico e histrico. Procura ressaltar seus
significados maiores e permanentes, inserindo sempre o olhar da criana como fio condutor.
Realiza-se concomitantemente um trabalho de campo voltado para o reconhecimento da
atividade realizada desde o seu nascimento at os dias de hoje, buscando traar as
perspectivas do desenvolvimento futuro.
A produo do trabalho de campo surgiu da necessidade direta e pessoal nas atividades
envolvidas para compreender no seu cerne dinmico vital, e, a partir disso, com o
distanciamento necessrio, formular uma viso analtica e crtica do processo realizado e
desenvolvido.
24 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
A considerao do ltimo espao ocupado, de sua realizao parcial e a compreenso de
suas proposies iniciais e da realidade efetiva de sua ocupao, passou a ser o ponto focal
para compreenso da relao espao, espao comunitrio e desenvolvimento infantil.
Verificou-se a partir desse reconhecimento, que a atividade inicial agregou novos aspectos e
outras faixas etrias formando um conjunto coeso, tanto no que diz respeito da atividade em
si, quanto no que se refere apropriao do espao.
A reflexo sobre esses resultados obtidos passou a se constituir em um todo rico e
ilustrativo do tema colocado, e das perspectivas de sua realizao e evoluo.
Os espaos considerados em sua sequncia constituem-se em objeto de anlise para a
compreenso da evoluo e crescimento das atividades desenvolvidas.
O objetivo como linha diretriz da elaborao feita, que a relao criana-espao, ao mesmo
tempo em que assumiu outros contornos especficos como, por exemplo, a ligao da
atividade implantada e a continuidade da Aldeia de Carapicuba, entre outros - tambm
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 25
extrapola o contexto prprio da universalidade dessa relao e da sua perenidade no
processo de sucesso das geraes.
A concluso dessa reflexo procura ressaltar tais elementos e investigar sobre os seus
possveis desdobramentos no que concerne indagao a ser continuada e ampliada, como
nas atividades que possam vir a agregar nesse ncleo, alm da reprodutibilidade do que a
Aldeia se encontra e se realiza.
Atualmente, a territorialidade da Aldeia de Carapicuba mantm-se pela relao com a
implantao e vida urbana que se desenvolveu em seu entorno, e posteriores intervenes
que objetivaram tanto a preservao da Aldeia quanto a sua manuteno enquanto espao
vivo. Dentre essas atividades, vale ressaltar os trabalhos do arquiteto Luis Saia e do IPHAN
que atuaram definitivamente para a obteno de uma feio permanente, e pela eliminao
dos elementos agressores.
26 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
Merece destaque, tambm, a concretizao importante dessas diretrizes por meio do Parque
Cultural criado pela Prefeitura Municipal de Carapicuba nos arredores da Aldeia e do
respectivo anel virio de contorno. Essa iniciativa, alm de valorizar e preservar o patrimnio
bsico e fundamental, possui um enorme significado pela extensa e efetiva utilizao da
populao implantada no seu entorno e regio, atualizando sua designao como Aldeia
Parque.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 27
A dissertao est estruturada em quatro captulos:
O Primeiro Captulo discorre sobre as questes contemporneas que permeiam as crianas,
no que concerne sua formao.
No se pretende abordar profundamente teorias da pedagogia e nem da psicologia. As
temticas sobre a educao, o brincar, e o ambiente urbano, so tratadas para mostrar um
panorama geral contemporneo, e, ao mesmo tempo, expor, a importncia do brincar na
formao da criana, e tambm da necessidade urgente da educao superar os rgidos e
arcaicos conceitos pedaggicos pr-estabelecidos.
O Segundo Captulo abrange o processo histrico da formao e organizao do espao do
Planalto Paulistano destacando a origem dos aldeamentos, evoluo e funo colonizadora.
Compreende os diversos perodos histricos e a formao do nico remanescente dos doze
aldeamentos jesuticos paulista. Destaca sua relevncia enquanto patrimnio histrico e
humano, por meio da sua implantao e manifestaes populares tradicionais existentes at
os dias de hoje.
28 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
J o Terceiro Captulo contextualiza o territrio da Aldeia de Carapicuba. Procura caracterizar
o entorno, compreender a ocupao da referida rea, e as conseqncias.
Aborda o processo de formao do Parque Cultural da Aldeia de Carapicuba, e mostra o uso
e ocupao atual das casas do quadriltero histrico.
O Quarto Captulo examina a formao, o percurso, e a atuao da OCA Associao da
Aldeia de Carapicuba - em um processo vinculado ocupao da prpria Aldeia e a relao
do seu espao com a criana contempornea. Aborda suas atividades e os sucessivos
locais ocupados ao longo dos seus 12 anos.
Ao final da presente dissertao, so apresentadas as consideraes finais com reflexo que
procura investigar os possveis desdobramentos enquanto atividades que possam vir a
agregar no ncleo, e enquanto reprodutibilidade do que a Aldeia se encontra e se realiza.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 29
30 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
1. O ESPAO DA CRIANA HOJE
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 31
32 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
1. O ESPAO DA CRIANA HOJE
A maturidade de conscincia alcanada por um ser humano depende de como ele vive como criana.
Humberto Maturana e Gerda Verden-Zller
1.1 Educao do Amanh - o despertar da conscincia
[...] uma das vocaes essenciais da educao do futuro ser o exame e o estudo da complexidade humana. Conduziria tomada de conhecimento, por conseguinte, de conscincia, da condio comum a todos os humanos e da muito rica e necessria diversidade dos indivduos, dos povos, das culturas, sobre nosso enraizamento como cidados da Terra... (Morin 2007, p.61)
H dcadas, o mundo passa por um processo excessivo de racionalizao e fragmentao
do ser humano, apoiado numa busca desenfreada pelo poder e desenvolvimento tcnico-
econmico. Fato este que traz conseqncias, no mnimo desastrosas, tanto para a prpria
humanidade quanto para o planeta e suas relaes.
Diante disso, percebe-se que, apesar de todo o desenvolvimento da tecnologia e de diversas
reas do conhecimento, o sistema educacional revela-se falho e pouco eficaz, necessitando
de uma reforma radical para enfrentar os problemas de sobrevivncia humana que afloram
agora no sculo XXI.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 33
Portanto, o grande desafio da educao enfrentar as emergncias planetrias e superar as
crises da mente, da percepo, e dos valores que acometem os homens.
Assim, a pesquisa sobre a educao tem como objetivo ampliar seu conceito, ultrapassar
limites pedaggicos, buscando superar o reducionismo cientificista do sculo XIX ao qual a
pedagogia vigente se v ainda atrelada comprometendo o prprio objeto de uma
investigao. Edgar Morin1 (2007, p.69-70), o filsofo que reflete sobre o educar do futuro,
afirma que necessria uma noo mais rica e complexa do desenvolvimento, que seja no
somente material, mas tambm intelectual, afetiva, moral....
E, como j sabida a ineficincia do atual sistema educacional, foi mais oportuno abordar e
vislumbrar o amanh, j que o arquiteto, como idealizador de projeto, desenha o futuro,
lanando-se sempre para frente.
[...] Bem sabemos que a palavra desenho tem originalmente um compromisso com a palavra desgnio. Ambas se identificavam. Na medida em que restabelecermos, efetivamente, os vnculos entre as duas palavras estaremos tambm recuperando a capacidade de influir no nosso viver. Assim o desenho se aproximar da noo de projeto (pr-jet), de uma espcie de lanar-se para frente [...] (ARTIGAS, 1967)
1 Edgar Morin socilogo e filsofo Frances, um dos principais pensadores do sculo XXI. Em 1999, a pedido da UNESCO, fez uma reflexo sobre os saberes fundamentais que a educao do futuro deveria tratar, publicada sob o ttulo Os Sete Saberes necessrios Educao do Futuro.
34 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
A partir de uma publicao da UNESCO2, em 1998, foram introduzidos novos eixos
norteadores da poltica educacional; o Relatrio Delors, que estabelece quatro pilares da
educao contempornea: aprender a ser, a fazer, a viver juntos e a conhecer. Hoje, a
educao s pode ser vivel se for uma educao integral do ser humano. Uma educao
que se dirige totalidade aberta do ser humano e no apenas a um de seus componentes.
O currculo atual ensina mais sobre a individualidade e direitos e pouco sobre cidadania e
responsabilidade; cria uma lacuna entre o homem e o meio ambiente; utiliza uma pedagogia
cristalizada e, assim, leva ao conhecimento isolado da realidade e das reais necessidades,
sendo estas de esprito e no de matria. Estimulando todos os sentidos e no s o intelecto.
Na realidade, a educao atual, como transmissora de conhecimento, desconhece a
verdadeira essncia e real tendncia aos erros e iluses do prprio conhecimento. Segundo
Morin (2007, p.20)
2 Ttulo: Educao: Um tesouro a descobrir. Relatrio da Comisso Internacional sobre a Educao para o Sculo XXI, 1998 sob coordenao de Jacques Delors.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 35
[...] O conhecimento no um espelho das coisas ou do mundo externo. Todas as percepes so, ao mesmo tempo, tradues e reconstrues cerebrais com base em estmulos ou sinais captados e codificados pelos sentidos.
Assim, a educao, acima de tudo, tem o dever principal de gerar lucidez na humanidade.
O conhecimento deve ser capaz de contextualizar seu objeto no complexo planetrio para
que adquira sentido (inteligncia geral). Deve tambm quebrar a supremacia do
conhecimento fragmentado, separado em disciplinas3 que no criam vnculos entre as partes
e o todo, pois a realidade (era planetria) est cada vez mais global e multidisciplinar.
Morin defende que o uso da inteligncia geral solicita o exerccio da curiosidade, ao mais
expandida e mais viva na infncia e adolescncia, que com freqncia a instruo extingue
e que, ao contrrio, se trata de estimular ou, caso esteja adormecida, de despertar.
E ainda nos alerta que o enfraquecimento da percepo global leva ao amortecimento da
responsabilidade e da solidariedade, em que cada um tende a ser responsvel somente por
sua tarefa e tambm no sente mais os vnculos com seus concidados.
3 [...] o recorte das disciplinas impossibilita apreender o que est tecido junto, ou seja, segundo o sentido original do termo, o complexo. (Morin, 2007, p.41).
36 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
[...] A inteligncia parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva e reducionista rompe o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas, separa o que est unido, torna unidimensional o multidimensional. uma inteligncia mope que acaba por ser normalmente cega. Destri no embrio as possibilidades de compreenso e de reflexo, reduz as possibilidades de julgamento corretivo ou da viso a longo prazo. Por isso, quanto mais os problemas se tornam multidimensionais, maior a incapacidade de pensar sua multidimensionalidade; quanto mais a crise progride, mais progride a incapacidade de pensar a crise; mais os problemas se tornam planetrios, mais eles se tornam impensveis. Incapaz de considerar o contexto e o complexo planetrio, a inteligncia cega torna-se inconsciente e irresponsvel. (Morin, 2007 p.43)
Ento, declara que o sculo XX, mesmo com elevadssimos avanos na rea de
conhecimento cientfico e tecnolgico, foi dominado pela pseudoracionalidade, atrofiando a
compreenso, a reflexo e a viso em longo prazo. Tornou-se cego diante dos problemas
fundamentais, globais e complexos, o que levou aos incontveis erros e iluses.
E ainda sustenta que a educao do amanh tem a obrigao de ser universal e centrada na
condio humana, ou seja, nos situar no universo, questionando a nossa posio no mundo.
Deve restaurar a unidade complexa da natureza humana para que cada um, onde quer que
esteja, tome conscincia e conhecimento, de sua identidade complexa e de sua identidade
comum a todos os outros humanos. Tambm tem o dever de buscar contribuies nas
cincias humanas, no somente a filosofia e a histria, mas tambm a literatura, a poesia,
as artes....
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 37
Apesar dos avanos nas telecomunicaes, com o rpido acesso a informaes por meio
dos telefones, celulares e da internet, a incompreenso permanece geral e deteriora as
relaes entre os homens. Morin (2007, p. 97) constata que a incompreenso de si fonte
muito importante da incompreenso de outro. Mascaram-se as prprias carncias e
fraquezas, o que nos torna implacveis com as carncias e fraquezas dos outros.
Assim a educao do futuro teria como misso espiritual ensinar a compreenso entre as
pessoas como condio e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade
(MORIN, 2007 p. 93).
38 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
1.2 O Brincar e a Cultura da Infncia
O Homem s inteiro quando brinca; e somente quando brinca que ele existe
na completa acepo da palavra: Homem.
Friedrich Schiller
Hoje, grande parte da educao infantil ainda apresenta posturas autoritrias e desconexas
com a realidade da criana; no respeita sua natureza e no a reconhece como sujeito
social. Tem dificuldade de considerar a criana como um ser capaz e competente,
afastando-a do mundo em que vive e da cultura em que est inserida.
Acabam por simplificar os contedos e a desconsiderar aquilo que a criana j sabe,
imaginando que ela um recipiente vazio. Tambm no consideram que existe uma Cultura
da Infncia e que a criana tem uma maneira ldica de interagir com o mundo, ignorando a
linguagem infantil universal - o brincar, que o seu processo de conhecimento.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 39
O brincar a prpria fora da sociedade e da civilizao, um colapso nesta capacidade de
brincar se refletir num colapso da sociedade.
Um dos maiores desafios da educao que se compromete com a formao integral do ser
humano a conscincia do brincar como uma linguagem de conhecimento. A escola, surge
como espao de encontro e de expresso dessa teia de relaes vinculadoras que
acontecem atravs das brincadeiras. importante ampliar o espectro da abordagem
educacional que at ento se constituiu unicamente com a funo de transmitir o
conhecimento.
Na verdade, essa mudana radical trata de um novo olhar que opera em um tempo marcado
pela complexidade e pela crise do modelo de cincia que dominou os ltimos sculos.
A busca de novos caminhos vem provocando o surgimento de novos paradigmas
(holomnicos, holistas, de complexidade) que, no entanto, s podem, neste momento, ser
configurados por via especulativa, pois esto em constituio. (SOUZA SANTOS, 1988)
40 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
So paradigmas que pressupe uma comunicao elaborao transdisciplinar entre
diferentes reas do conhecimento, oposta ao isolamento disciplinar caracterstico do
paradigma clssico.
Trata-se da composio de outra lgica que procura ler o complexo real sob a aparncia
simples dos fenmenos tais como se nos apresentam.
No dever mais existir um corte separando o sujeito do objeto, o imaginrio da razo, o
sagrado do profano. No porque um dos temas desse dualismo ancestral se reduziria ao
outro, mas porque so ambos significantes de um mesmo significado tertum datum que
estrutura os dois. (DURAND, 1995, p.20)
Assim, para fornecer um panorama sobre a criana e educao, a pesquisa busca
fundamentao na importncia do brincar e no reconhecimento da existncia da Cultura da
Infncia. Apesar de no pretender uma abordagem profunda, foram observados estudos de
vrios autores das diversas reas: pedagogia, antropologia, psicologia do desenvolvimento
infantil, percepo ambiental, filosofia e sociologia como referencial terico.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 41
1.2.1. O Ldico
Ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae. (O brincar necessrio para a vida humana)
Tratado sobre o brincar - Toms de Aquino
Permeando por entre abordagens filosficas, a pesquisa referncia sobre o ldico a do
filsofo alemo Johan Huizinga que, em seu livro de 1938 - Homo Ludens procura integrar o
conceito de jogo no de cultura, afirma que no jogo e pelo jogo que a civilizao surge e se
desenvolve.
De certa forma o autor se distancia da esfera biolgica e cientfica, aborda o ldico como
fenmeno cultural, inserido numa perspectiva histrica. Declara que (2001, p.3)
[...] o jogo mais do que um fenmeno fisiolgico ou um reflexo psicolgico. Ultrapassa os limites da atividade puramente fsica ou biolgica. uma funo significante, isto , encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa em jogo que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido ao. Todo jogo significa alguma coisa... O simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presena de um elemento no material em sua prpria essncia [...]
42 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
Assim, Huizinga defende que o ldico possui uma realidade autnoma, que ultrapassa a
esfera da vida humana, que no est ligado a nenhum grau de civilizao ou qualquer
concepo do universo.
Analisa o jogo como funo social, uma atividade voluntria presente nas mais diversas
manifestaes sociais: na linguagem, nos rituais, na msica, na dana, na poesia, no saber
e at nas regras de guerra. Outra caracterstica ressaltada define o jogo como uma fuga da
vida real - o fazer de conta. E afirma ainda que pertence dimenso do sagrado4, sendo
uma atividade temporria, que tem uma finalidade autnoma e se realiza tendo em vista
uma satisfao que consiste nesta prpria realizao.
Alm disso, o autor (2001, p.13) acentua que o jogo cria ordem e ordem
concomitantemente; introduz na confuso da vida e na imperfeio do mundo uma
perfeio temporria e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta e, por isso, est
4 A representao sagrada mais do que a simples realizao de uma aparncia, at mais do que uma realizao simblica: uma realizao mstica. Algo de invisvel e inefvel adquire nela uma forma bela, real e sagrada. Os participantes do ritual esto certos de que o ato concretiza e efetua uma certa beatificao, faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela que habitualmente vivem (Huizinga, 2001, p17).
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 43
intimamente ligado ao domnio da esttica, por possuir tambm ritmo e harmonia, alm de
outras caractersticas singulares descrio dos efeitos da beleza: tenso, equilbrio,
compensao, contraste, variao, soluo, unio e desunio.
Define como funo do jogo a luta por algo ou a representao (como exibio) de alguma
coisa. Huizinga (2001, p.17) complementa que
A criana representa alguma coisa diferente, ou mais bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente ... Fica literalmente transportada de prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase chega a acreditar que realmente esta ou aquela coisa, sem contudo perder inteiramente o sentido da realidade habitual. Mais do que uma realidade falsa, sua representao a realizao de uma aparncia imaginao, no sentido mais original do termo.
Assim, Huizinga (2001, p.33) nos d a noo de jogo como sendo
[...] uma atividade ou ocupao voluntria, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espao, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatrias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tenso e de alegria e de uma conscincia de ser diferente da vida quotidiana.
44 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
Diga-lhe Que pelos sonhos da sua juventude
Ele deve ter considerao, quando for homem.
Friedrich Schiller
Outra abordagem filosfica ocorreu, tambm, nas primeiras dcadas do sculo XX: o filsofo
alemo Walter Benjamin5 refletiu sobre a educao - uma das suas grandes inquietaes.
Seus ensaios falam sobre a criana, a juventude, jogos e brinquedos no contexto da
educao do cidado.
Delimita, ainda, a existncia de uma cultura da criana6 e defende a idia de garantir s
crianas a plenitude da infncia, pois todas as manifestaes na vida infantil no
pretendem outra coisa seno conservar em si os sentimentos essenciais (2002, p.49). O
autor mostra que as crianas fazem parte do povo e da classe a qual pertencem, no
constituindo uma comunidade isolada.
5 Textos escritos entre 1913 e 1932, reunidos no livro: Reflexes sobre a criana, o brinquedo e a educao, traduo de Marcus Vinicius Mazzari, 2002. 6 as crianas no constituem nenhuma comunidade isolada, mas antes fazem parte do povo e da classe a que pertencem. Da mesma forma, os seus brinquedos no do testemunho de uma vida autnoma e segregada, mas so um mudo dilogo se sinais entre a criana e o povo. (Benjamin, 2002, p.94)
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 45
Deixa claro que a experincia ldica proporciona o nascimento da auto-reflexo. E que a
essncia do brincar no um fazer como se e sim um fazer sempre de novo, que a
transformao da experincia mais comovente em hbito (2002, p.102).
Para Benjamin, pensador sensvel ao universo da criana, o brincar e o brinquedo formam
um par dialtico que traduz o relacionamento entre o adulto e a criana. Declara que (2002,
p.93)
[...] Hoje talvez se possa esperar uma superao efetiva daquele equvoco bsico que acreditava ser a brincadeira da criana determinada pelo contedo imaginrio do brinquedo, quando, na verdade, d-se o contrrio. A criana quer puxar alguma coisa e torna-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-se bandido ou guarda. Conhecemos muito bem alguns instrumentos de brincar arcaicos, que desprezam toda mscara imaginria (possivelmente vinculados na poca a rituais): bola, arco, roda de penas, pipa autnticos brinquedos, tanto mais autnticos quanto menos o parecem ao adulto. Pois quanto mais atraentes, no sentido corrente, so os brinquedos, mais se distanciam dos instrumentos de brincar; quanto mais ilimitadamente a imitao se manifesta neles, tanto mais se desviam da brincadeira viva. [...] os seus brinquedos no do testemunho de uma vida autnoma e segregada, mas so um mudo dilogo de sinais entre a criana e o povo. (2002, p.94)
E critica que o brincar tem sido visto sob a tica do adulto, sob o ponto de vista da imitao.
46 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
Todo o pensamento humano representao, isto , passa por articulaes simblicas
encontrando-se, pois subjacente com os modos de pensar, sentir e agir dos indivduos, das
culturas, das sociedades.
A representao que o brincar carrega no pode ser entendida como uma simples
reproduo e traduo de uma realidade exterior, uma vez que engloba o domnio da fantasia
ultrapassando a simples representao intelectual.
Sendo o universo simblico das brincadeiras possuidor de um carter eminentemente
imaginrio, o brincar representa uma rede na qual o sentido dado pela relao
constituindo-se no dinamismo organizador das vivncias que a criana vai estabelecendo
consigo prpria, com o mundo e com o outro.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 47
1.2.2. O Brincar
Brincar a mais elevada forma de pesquisa. Albert Einstein
Segundo Joseph Chilton Pearce (1992), cientista e pesquisador da inteligncia humana, o
brincar est presente na base da inteligncia criativa, mas necessita ser desenvolvida. a
tarefa principal da primeira infncia e cria a base da capacidade simblico-metafrica7 tanto
do pensamento concreto quanto do pensamento operacional,
[...] A linguagem simblico-metafrico capaz de sugerir estados sutis que, em si mesmos, no podem ser articulados. por isso que a poesia um grande instrumento para elevar a mente, tirar-lhes as razes da matria. Ela pode evocar, ou trazer de volta, sentimentos, anseios e aspiraes indisponveis ao pensamento, lgica ou descrio discursiva.
A contao de histrias uma das bases do brincar, a criana ouve atentamente e fica
imvel enquanto sua viso transportada para o lugar onde ocorre a ao da histria
(estmulo de imagens internas correspondentes) e em seu crebro ocorrem aes de novos
campos neurais e novas conexes entre si. Pearce (1992, p.159) afirma que
7 Toda e qualquer forma de brincar um exerccio de pensamento simblico-metafrico, a base da erudio e de todos os estudos mais avanados. (Pearce, 1992, p.163)
48 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
[...] quanto mais forte e permanente se torna a capacidade de interao verbo-visual, mais fortes se tornam a conceitualizao, a imaginao e a ateno, enquanto o escopo e a flexibilidade das capacidades neurais em geral aumentam.
Porm, com o advento da televiso, a narrao de histrias perdeu espao nas vivncias das
crianas, alm de ter diminudo drasticamente o dilogo entre a famlia. As relaes entre
pais e filhos foram prejudicadas e as brincadeiras tambm foram perdendo espaos nos
lares.
[...] A televiso inunda de imagens o crebro do beb e da criana justamente no momento em que esse crebro deve aprender a formar imagens interiores. A narrao de histrias propicia um estmulo que provoca uma reao de formao de imagens que envolve cada aspecto do nosso sistema tri-uno. A televiso propicia ao crebro do beb e da criana no s o estmulo, mas tambm a reao, como um efeito emparelhado e nico, e a est o perigo. A televiso enche o crebro com uma reao falsificada, que imita aquela que ele deve aprender a mostrar diante dos estmulos das palavras e ou da msica. Em decorrncia disso, elimina-se boa parte do acoplamento estrutural entre a mente e o ambiente, desenvolvem-se poucas imagens metafricas e poucas ou quase nada estruturas simblicas [...]
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 49
Assim, o no-desenvolvimento de imagens traduzido na falta de imaginao8, significando
dificuldade no aprendizado. Seu crebro colocado para dormir, impedindo o
desenvolvimento neural, visto que no precisa de quase nenhuma energia para processar o
que est se passando na TV. Alm disso, aprisiona o corpo da criana, que necessita do
movimento para desenvolver uma vida saudvel, j que a aprendizagem nessa fase
basicamente sensrio-motora.
J Maturana e Verden-Zller (2004) afirmam em seus estudos que o brincar, junto com o
amar, so fundamentos esquecidos do humano9. Eles referem-se a fundamentos da
condio humana que permeiam o ldico.
8 Um recente estudo mostrou que as crianas que tm pouca imaginao so muito mais propensas violncia que as crianas imaginativas, pois no conseguem imaginar uma alternativa quando a informao sensorial imediata ameaadora, ofensiva, desagradvel ou pouco compensadora. Elas atacam tudo que desagradvel com a atitude defensiva, ao passo que as crianas dotadas de imaginao podem pensar numa alternativa, isto , criar imagens que, no estando presentes ao sistema sensorial, lhes forneam uma sada. (Pearce, 1992, p.170) 9 O curso da histria humana se desenrola gerao aps gerao. essa mesma trajetria que segue o emocionar adquirido pelas crianas no crescimento em relao com seus pais, outros adultos, outras crianas e com o mundo no-humano circundante. Nessas, circunstncias, para compreender as mudanas culturais, devemos entender as alteraes histricas do emocionar humano em sua relao com o crescimento das crianas. (Maturana e Verden-Zller, 2004, p.12)
50 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
Em uma das pesquisas, Verden-Zller (p.141) conclui que a conscincia individual e social
da criana surge por meio das suas interaes corporais com as mes, numa dinmica de
total aceitao mtua na intimidade do brincar. Ainda diz que
[...] O Eu uma dimenso social humana que se realiza por meio de uma dada corporeidade e surge como um entrecruzamento especfico das diferentes conversaes que constituem e definem a comunidade social em que esse Eu vive com outros Eus em mtua aceitao. Portanto, toda criana deve adquirir seu Eu ou identidade individual social como uma forma particular de ser em sua corporeidade, mediante o viver numa comunidade especfica de mtua aceitao. Isso ocorre naturalmente, medida que a criana cresce na estreita intimidade do encontro corporal, em confiana e total aceitao de sua me, bem como na de todas as crianas e adultos com as quais convive [...]
Para a autora,, o brincar na vida diria qualquer atividade vivida no presente de sua
realizao, de maneira emocional e sem nenhum objetivo. atentar para o presente.
Maturana (2004, p. 231) completa que O brincar no tem nada a ver com o futuro. Brincar
no uma preparao para nada, fazer o que se faz em total aceitao, sem
consideraes que neguem sua legibilidade.
Ao brincar, as crianas constroem suas relaes espaciais, seus domnios de aes e as
configuraes sensrio-motoras. E enquanto vivenciam as experincias recorrentes de
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 51
movimento, tocando, balanando e fazendo ritmos, elas constituem e desenvolvem
gradualmente o conhecimento operacional de seus corpos.
Defendem que o brincar importante para desenvolver na criana a sua autoconscincia,
conscincia social e de mundo, alm de desenvolver seu auto-respeito e auto-aceitao.
E Maturana (2004, p. 232) diz que
Perdemos nossa conscincia social individual medida que deixamos de brincar. E assim, transformamos nossas vidas numa contnua justificao de nossas aes em funo de suas conseqncias, num processo que nos torna insensveis em relao a ns mesmos e aos demais.
Verden-Zller (2004, p.187) declara que essas brincadeiras ditas como espontneas no
so arbitrrias e sim dinmicas corporais ligadas a territrios ancestrais de comportamento;
provm da histria evolutiva da espcie humana.
Assim, Maturana e Verden-Zller (2004, p.245) concluem que a cultura contempornea
ocidental
[...] Nega o brincar como aspecto central da vida humana, mediante sua nfase na competio, no sucesso e na instrumentalizao de todos os atos e relaes. Acreditamos que para recuperar um mundo de bem-estar social e individual no qual o crime, o abuso, o fanatismo e a opresso mtua no sejam modos institucionalizados de viver, e sim erros ocasionais de coexistncia devemos devolver ao brincar o seu papel central na vida humana. Tambm cremos que para que isso acontea devemos de novo aprender a viver nessa atmosfera.
52 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
1.2.3. A Cultura Infantil e o Brincar
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa Graves como convm a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela Deix-la cair no cho.
Fernando Pessoa
Para Lydia Hortlio10, educadora e etnomusicloga baiana, a Cultura Infantil o fazer
espontneo das crianas entre elas mesmas na busca de si e dos outros, em interao com
o mundo. A Cultura da Criana se faz brincando. o acervo dessas experincias que
desabrocha em inteireza e liberdade.
Segundo ela, este acervo cria um corpo de conhecimento, na realidade, conhecimento com
o corpo que comunicado de gerao em gerao, sem quaisquer fronteiras e nos chega
por meio dos brinquedos de criana. Defende que o brinquedo um gesto da evoluo, um
impulso de vida como forma de realizao e crescimento; e por meio dele podemos
10 Lydia Hortlio, baiana, com formao em Msica: piano, educao musical e etnomusicologia. Estudou no Brasil, Alemanha, Portugal e Sua. pesquisadora da Msica da Cultura Brasileira e da Cultura Infantil. Lanou em 2003 o CD Abre a roda tindolel e Bela Alice em 2004.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 53
compreender a ndole e a natureza do Ser Humano e tambm conhecer a Cultura de um
Povo.
Lydia declara que a Natureza o verdadeiro espao das crianas; somente vivenciando no
seu genuno habitat que ela consegue espontaneamente compreender com o corpo e
desenvolver uma inteligncia sensvel, ou seja, existir em inteireza, manifestar suas
carncias infinitas de movimento.
A inteireza vive do completo assentimento, e a inspirao, o impulso interno que a move,
corporifica-se no brinquedo que se quer, que se precisa: este e no aquele. E a est a
oportunidade de libertao. No fenmeno ldico fecha-se o crculo mgico da vida: eu, o
outro, o mundo, o Universo que se do as mos num Brinquedo de Criana.
E nesse contexto, busca-se uma compreenso da Msica da Cultura infantil, na qual define
como,
[...] Uma msica com movimento, aliada representao e a uma geometria no tempo. uma msica no corpo, prxima ao outro, com o outro, movida pura e simplesmente pela livre vontade de brincar. a cidadania plena, por ndole e direito, sensvel e inteligente. Sua prtica proporciona o exerccio espontneo da msica em todas as suas dimenses, mesmo que de forma elementar, e se constitui, por si mesma, a base de uma educao do sensvel e pressuposto fundamental da identidade cultural.
54 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
Desde muito cedo as crianas convivem com msica, desde os acalantos no colo da me
quando beb, pelas parlendas e cantilenas11, depois, nos brinquedos cantados e mais tarde
nas rodas de versos, considerados verdadeiros ritos de passagem, em que o contedo
potico, a atmosfera prpria e a movimentao, mesmo guardando dimenses da infncia,
apontam, cada vez mais, a expressividade da nova etapa a ser vivida.
Sendo ento importante o seu resgate, pois a Msica Tradicional Infantil representa em
todas as culturas a expresso mais sensvel da alma de um povo a alma ancestral, os
arqutipos da nossa cultura.
Lydia acredita que devemos refletir sobre o sentido da nossa origem e o valor da nossa
cultura para, assim, despertar uma conscincia de Brasil, uma busca pela construo de
uma identidade brasileira. E atravs da prtica da Msica da Cultura Infantil,
[...] restabelecer o lao efetivo com a lngua a lngua me, aquela que os poetas populares ainda conhecem, e com a lngua me musical a cano popular, comeando pelos Brinquedos Cantados, to carregados do encanto e dos mistrios da Infncia da raa, dos mltiplos arqutipos de nossa Cultura. (Hortlio,1998 apud CRUZ, 2005, p.78)12
11 Parlendas so versinhos com temtica infantil recitados em brincadeiras de crianas. Possuem rima fcil e, por isso, so populares entre as crianas. J cantilenas so pequenas cantigas suaves, ladainha, lengalenga.
12 10 HORTELIO, Lydia. Anlise e Sugestes Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil, Salvador, 1998.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 55
Desse modo, sustenta que a transformao vir por meio de uma educao consciente de
uma compreenso da criana, por meio da Cultura da Criana, inspirada na cultura do povo
brasileiro. Lydia afirma que
[...] Ela carrega em seus fundamentos, os arqutipos, invenes, os gestos, os sentimentos especficos de cada uma de suas vertentes formadoras e as transposies nascidas de uma miscigenao espontnea e infinita. importante afirmar a cultura infantil da criana brasileira porque ela traz em seu nascedouro, o manancial extraordinrio de uma cultura mestia, o projeto prprio de desenvolvimento da raa a ser transcendido pela fora da Alma do Brasil. (Hortlio,1998 apud CRUZ, 2005, p.79)
56 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
1.2.4. O Folclore Infantil e a Cultura Infantil
O socilogo Florestan Fernandes, ainda estudante da Faculdade de Filosofia, Cincias e
Letras iniciou, em 1941, seus primeiros levantamentos sobre o folclore paulistano nos
bairros de imigrantes e populares da cidade de So Paulo. Posteriormente, foram recolhidos
os vrios ensaios feitos daquele ano at 1959 para a publicao do livro Folclore e mudana
social na cidade de So Paulo, em 1961.
O autor preocupou-se com as influncias socializadoras do folclore, principalmente o folclore
infantil. Chamava a sua ateno os conhecimentos de significao social, que as crianas
podiam adquirir atravs da participao das trocinhas13 ou dos grupos infantis
(FERNANDES, 2004, p.14). Comprovou que o folclore infantil tinha influncia na formao da
personalidade da criana e que esses grupos iniciam a criana na vida social.
13 Trocinhas um termo usado pelas prprias crianas da poca da pesquisa (dcada de 40) para designar os grupos infantis, principalmente os formados nas ruas.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 57
Descobriu que, por meio dos folguedos, as crianas tm oportunidade de manter contatos
pessoais no seu prprio meio, ou seja, com pessoas que possuem a mesma idade, os
mesmos centros de interesse, a mesma concepo do mundo e o mesmo prestgio social,
muito diferente das relaes com os adultos.
Elas alargam, assim, sua rea de contatos humanos, aprendem de modo mais acessvel as vantagens e o significado das atividades organizadas grupalmente, experimentam os diferentes papis associados s relaes de subordinao e de dominao entre pessoas da mesma posio social e se identificam com interesses ou com valores cujas polarizaes de lealdade transcendem ao mbito da famlia. (FERNANDES, 2004, p.16)
Fernandes (2004) defende tambm a existncia de uma Cultura Infantil que constituda por
elementos quase exclusivos das crianas e de natureza ldica. Tambm detecta que esses
elementos vm da cultura do adulto que passam por um processo de aceitao por parte
das crianas incorporando sua maneira, alm de conjuntamente elaborarem os elementos
de sua prpria natureza. Fernandes (2004, p.219) nos chama a ateno sobre o
Aspecto de socializao elaborado no seio dos prprios grupos infantis, ou seja: educao da criana, entre as crianas e pelas crianas. A criana modelada, formada, tambm, atravs dos elementos da cultura infantil, pois estes elementos pem-na em contato direto com os valores da sociedade.
58 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
Ou seja, nas prprias palavras do socilogo a verdadeira aprendizagem, em que o mestre
da criana a prpria criana (2004, p.18).
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 59
1.2.5. Educao da Sensibilidade
Amanh, para que a espcie sobreviva, Vamos ter que implodir os prdios
Para construir jardins da infncia.
Maria Amlia Pereira - Peo
Foi por meio das conversas e convivncia com a pedagoga Maria Amlia Pereira14, que a
pesquisa sobre o brincar tomou corpo, alis, ganhou alma nesta dissertao.
Maria Amlia fundadora e orientadora da Casa Redonda Centro de Estudos15, um espao
de educao infantil, nascido no incio dos anos 80 em uma chcara na cidade de
Carapicuba, regio metropolitana de So Paulo. Pode-se dizer que a Casa Redonda o
tero gerador da OCA Associao da Aldeia de Carapicuba.
14Maria Amlia Pereira mais conhecida como Peo, nasceu em Salvador, Bahia. pedagoga com especializao em Cinesiologia. Orientadora da escola Vera Cruz, em So Paulo, de (1963 1076) e de 1982 a 1986), Assessora Pedaggica da unidade de Tratamento de paralisia cerebral do SARAH Instituto Nacional de Medicina do Aparelho Locomotor (1977-1978)Coordenadora do Programa do Ncleo Experimental de Atividades Scio-Culturais da Prefeitura do Municpio de Salvador(1979 a 1982). Membro do Vconseho International do IPA- International Playing Association for the Child Right to Play( 1990-1999). Vice- Presidente do Instituto Brincante (2002 a 2009) Fundadora e Orientadora do Centro de Estudos Casa Redonda (1983 a 2009).
15 Para mais informaes sobre o trabalho da Casa Redonda, consultar : CRUZ, Maria Cristina Meirelles Toledo. Para uma educao da sensibilidade: a experincia da Casa Redonda Centro de Estudos. Dissertao de Mestrado, ECA/USP, So Paulo, 2005.
60 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
pertinente uma breve apresentao de sua vivncia para contextualizar o percurso como
educadora e, assim, ter melhor compreenso dos conceitos por ela defendidos.
Maria Amlia vem inicialmente de uma formao de magistrio em Salvador. Desde cedo
optou por trabalhar diretamente com as crianas: dos 12 aos 17 anos se uniu a um grupo de
estudantes para participar de atividades em uma favela vizinha do bairro onde morava. Em
seguida, criou um espao de brincar que reunia as crianas no quintal da sua casa.
Vivenciou como estagiria a experincia da Escola Parque de Salvador16, projeto educacional
da rea pblica idealizado pela equipe de professores liderada pelo Prof. Ansio Teixeira17.
Esta foi o embrio das demais experincias de educao publica com tempo integral que
aconteceram no Brasil, como: Escolas Vocacionais, CIEPS, CEUs etc...
Conviveu com o filsofo portugus Agostinho da Silva, com o qual pode comungar e refletir
sobre a essncia das crianas e a identidade do brasileiro, ideais que guiam at hoje a sua
16 Consultar : DUARTE, Hlio de Queiroz. Escola-classe escola-parque. So Paulo: FAUUSP, 1973. 17 Ansio Spnola Teixeira, nascido em 1900 em Caetit, Bahia. Formou-se em direito, foi intelectual, educador e escritor. Personagem principal na histria da educao do Brasil.Foi discpulo e divulgador da filosofia do educador John Dewey. Difundiu os ideais da Escola Nova entre as dcadas de 20 e 30, que tinha como princpio a nfase no desenvolvimento do intelecto e na capacidade de julgamento, em detrimento da memorizao. Fundou a Universidade do Distrito Federal em 1935 que depois foi transformada em Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Reformulou o sistema educacional da Bahia com a criao da Escola Parque em Salvador. Morreu em 1971 no Rio de Janeiro em circunstncias obscuras, pode ter sido vtima da represso do governo Mdici.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 61
prtica em educao. Tambm teve contato com o mtodo de alfabetizao do professor
Paulo Freire, experincia que proporcionou olhar o papel da educao tambm no plano
poltico-pedaggico.
Em 1963, mudou-se para So Paulo onde integrou um curso de formao de professores
sobre o mtodo Montessori-Lubienska. Logo em seguida convidada a fazer parte da
formao da Escola Experimental Vera Cruz, que tinha uma nova viso de educao; onde o
educador era considerado agente crtico e reflexivo de sua prtica educativa (CRUZ, 2005,
p.23-24). Sua experincia, ao longo de 16 anos, passou de estagiria a scio-fundadora.
Neste perodo, paralelamente a atuao na Escola Experimental, iniciou o curso de pedagogia
na PUC-SP, fato este que comprovou o quanto a teoria universitria se afastava da real
prtica educacional brasileira.
Nos anos 70 ocorreu uma reforma no ensino cuja proposio era a unio das metodologias
do primrio com o ginsio, fato que revela, no sistema de educao, uma burocratizao e
um endurecimento, distanciando cada vez mais o discurso terico da prtica efetiva.
62 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
Assim, em 1975, Maria Amlia decide afastar-se da atuao na escola e segue para Braslia.
L atuava como voluntria na Comunidade Teraputica do Hospital Sarah Kubitschek com
atividades ldicas para crianas com deficincia fsica. Neste perodo, longe da escola, pode
refletir sobre o professor e sua prtica. Iniciou uma pesquisa do repertrio gestual das
brincadeiras espontneas das crianas que se encontravam fora das escolas... O que
possibilitou a compreenso da existncia de uma Cultura Infantil. (CRUZ, 2005, p.30).
Este contato que retomou com as crianas de periferia foi um descortinar sobre o qu a
incomodava dentro da escola: o massacre dos valores cognitivos e a viso estruturalista
sobre a espontaneidade, a alegria, o entusiasmo das crianas.
Aps dois anos em Braslia, volta para Salvador onde participa, junto com Lydia Hortlio, da
criao de um espao pblico de educao em um parque18, fundamentado nas reflexes de
Ansio Teixeira.
No incio dos anos 80 retorna So Paulo e se dedica-se criao de um curso de
formao de educadores na Escola Vera Cruz. Propunha a reformulao do currculo apoiado
18 Sobre essa experincia, consultar HORTLIO, Lydia. Histria de uma manh. So Paulo:Massao Ohno, 1987.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 63
em uma educao que valorizasse a Cultura Infantil de mos dadas com a Cultura Brasileira.
O projeto foi reconhecido, mas exigia uma reorganizao curricular considerada avanada
pela Escola e pelo Conselho Estadual de Educao da poca.
Assim, volta sua pesquisa e vivncia das brincadeiras de rua, mas agora na periferia de
Carapicuba, na Vila Ariston. Registrou o processo das brincadeiras de pio, bola de gude e
pipa, esta ltima mais detalhada que, posteriormente, foi apresentada em um Encontro
Internacional na Argentina e Washington.
O mdico e psicoterapeuta hngaro Peth Sndor, que desenvolveu a Calatonia no Brasil -
uma tcnica de integrao fisio-psiquica a partir de uma abordagem corporal por meio de
toques sutis - marca uma forte influncia em Maria Amlia, que declara:
a relao psicossomtica, presente na atuao das crianas enquanto brincam, abriu a porta para minha indagao sobre o ato de brincar como um processo espontneo de auto-regulao do desenvolvimento da criana, referendando a sabedoria do corpo, em busca dos gestos que lhe conduzem a uma maturao fsio-psquica. (CRUZ, 2005, p.31)
64 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
Tambm integrou o conselho de uma Organizao Internacional sobre o Direito de Brincar,
IPA Internacional Playing Association - entre 1985 e 1990. Apresentou vrios trabalhos
sobre suas pesquisas das brincadeiras espontneas de rua, viajando por diversos pases.
Nesse intervalo de 20 anos dedicou-se, tambm, a treinamentos de professores de creches,
a pedido das Secretarias de Educao de vrios estados brasileiros, para introduzi-los a uma
nova compreenso do processo de desenvolvimento da criana sob o reconhecimento do
Brincar como uma linguagem de conhecimento, e que define uma cultura prpria da Infncia.
Em meados de 1994, Maria Amlia, junto com Antonio Nbrega e sua esposa Rosane
Almeida, criaram um curso para formao de educadores no Teatro Escola Brincante19,
baseado naquele projeto elaborado para a Escola Vera Cruz nos anos 80.
O curso em sua estrutura permite o contato direto com a cultura popular brasileira e difunde
a importncia desta na formao das crianas e adolescentes. Oferece o estudo e a prtica
19 Ver anexo: breve relato do curso Educador Brincante feito em 2007 como parte da pesquisa sobre a cultura popular brasileira e o brincar.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 65
de cantos, danas, toques instrumentais, histrias, brinquedos e brincadeiras, ou seja,
aspectos que alimentam a cultura popular e possibilita a reflexo sobre o Brasil.
Em 1996, Maria Amlia une-se psicloga Maria Cristina Meirelles Toledo Cruz20 e a outros
profissionais, principalmente por pais dos alunos da Casa Redonda, e inicia um trabalho com
as crianas da Aldeia de Carapicuba. Cria-se uma Escola Cultural, a OCA Associao da
Aldeia de Carapicuba, um espao onde as crianas tm acesso cultura brasileira por meio
dos cantos, das danas, artes, mitos, histrias e brincadeiras.
[...] Acreditando que uma vez inserido no corpo dessas crianas esse repertrio criativo, elas podero descobrir a si prprias como seres vivos, com uma identidade que lhes permita se integrar na comunidade e ocupar o seu lugar. (CRUZ, 2005, p.32)
20 Maria Cristina M. Toledo Cruz educadora da Casa Redonda Centro de Estudos, com formao em psicologia e especializao em Arte Educao, hoje diretora executiva da OCA e autora da dissertao de mestrado Para uma Educao da Sensibilidade: a experincia da Casa Redonda Centro de Estudos, defendida na Escola de Comunicao e Artes ECA/USP em 2005.
66 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
A brincadeira pertence dimenso do sagrado. O sagrado enquanto segredo, enquanto mistrio da vida
presente em cada ser humano que se inicia neste planeta. O brincar sagra a vida porque d sentido ao que est sendo vivido.
a expresso livre, espontnea e imprevisvel do humano. o exerccio de sua liberdade e, por isso, a seriedade do ato de brincar.
Maria Amlia Pereira - Peo
Maria Amlia defende o brincar como linguagem universal da Cultura da Infncia e o espao
da natureza como o seu habitat. Mas, alerta que h total ignorncia sobre quem a criana
brasileira; grande parte dos educadores no reconhece a existncia de uma cultura da
criana.
Chama a ateno para o fato de que a sociedade atual est abalando a alma da criana e,
com sua viso racionalista, materialista e fragmentada de si prpria e do mundo, acaba por
priorizar o TER no lugar do SER. Assim, a criana vista como algo a ser estimulado pelo
adulto atravs de uma educao cognitivista que rapidamente deve inseri-la no sistema de
produo e mercado, e, desta forma, a Cultura da Infncia se torna invisvel e, evidente,
que o brincar acaba sendo excludo da vivncia das crianas.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 67
A criana que se encontra nos nossos currculos pedaggicos um ser sem corpo e sem alma, classificada por ordem cronolgica, colocada sobre um cho sem terra, aculturada, debaixo de um autoritarismo disfarado em teoria do conhecimento, que determina o que deve ser ensinado e como deve ser ensinado, desconectado de qualquer relao significativa para a vida real das crianas. (Maria Amlia Pereira, Apostila curso Educador Brincante, 2006, p.70)
Diz que as escolas enfatizam mais as reas cognitivas e se esquecem das reas de
expresso da criana, com uma grande ansiedade pedaggica de concluir conceitos e
estruturar o conhecimento. Aconselha que o ideal seja confiar mais no fato de que o ser
humano tem dentro dele, como caracterstica bsica, a necessidade de aprender, e ao
aprender, automaticamente o conhecimento se estrutura. (COUTINHO, 1996, p.7). Alm
disso, relata que se faz necessria a conscincia de que o processo de conhecimento est
sempre presente na brincadeira que est acontecendo. A criana um aprendiz nato.
Alm disso, Maria Amlia acredita que o espao da natureza deve estar presente no
processo de educao das crianas como o seu cho natural. At o 10 anos de idade, o
espao fsico importantssimo para a realizao de uma aprendizagem mais harmoniosa
das crianas.
68 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
Certamente, o contato direto com a natureza o melhor lugar para as crianas articularem
seus movimentos de pernas e braos com equilbrio, fortalecendo, ento, a musculatura para
a estrutura ssea que se alonga a cada dia, uma vez que seu corpo encontra-se em
processo de crescimento.
Confirma que, na realidade, a criana quer do adulto apenas uma escuta e um olhar mais
sensvel para poder se afirmar em sua essncia brincante consigo mesma, com as outras
crianas e com o mundo.
Maria Amlia afirma que a educao entende o ldico de forma equivocada, pois a essncia
do brincar a espontaneidade e liberdade. O brincar no tem objetivo pedaggico, tcnico
ou conceitual, ele tem um fim em si mesmo, liberdade. Brincar um ato voluntrio, eu me
dirijo brincadeira por um ato de deciso interna (COUTINHO, 1996, p.8). E, se o brincar
for colocado para aprender alguma coisa, imediatamente ele deixa de ser brincar, ele perde
sua caracterstica de possuir uma finalidade em si mesmo.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 69
Maria Amlia explica que quando a criana brinca transcende a realidade para, assim, recriar
o cotidiano e nesta esfera que prepara a fonte de criatividade do adulto.
No brincar, o indivduo, o espao e possveis objetos da brincadeira saem da esfera exclusivamente utilitria, e esta situao inclui diferentes graus de subjetividade. O mundo interno das crianas emprega parmetros de uma realidade percebida que no coincidem necessariamente com as leis que governam a materialidade no objeto externo. Os efeitos externos so atenuados, e o objeto revela uma vitalidade mais profunda por seu valor subjetivo, pela interao imaginativa e corporal entre a criana e o objeto. Nesse justo momento h um relaxamento das defesas conscientes e se do passos para experincias subjetivas que se encontram em nveis mais profundos, dissolvendo as divises entre o que est dentro e o que est fora, comunicando a experincia do ser. O brincar opera nesta unidade subjetiva. O brincar, entendido como atitude do corpo e da mente, determina uma conduta pensante. (Maria Amlia Pereira, Apostila curso Educador Brincante, 2006, p.71)
Na ao do brincar, declara Maria Amlia, h uma capacidade de interiorizao sem esforo
que sinaliza a verdadeira concentrao. Neste momento o mundo ao redor est em total
sintonia com a pessoa, h um inteiro (COUTINHO, 1996, p 29). A criana est numa
concentrao to intensa que um canal aberto entre ela e o mundo, e assim ela est
vivendo o grande exerccio de ligao, de estabelecimento do elo, entre ela e o seu fazer. A
criana est inteira, sem fragmentao, una. a dimenso subjetiva operando.
70 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
A criana que no tem espao nem tempo para brincar est sendo privada da criao de
vnculos significativos em relao vida, porque somente aquilo que experimentado passa
realmente a ser incorporado como conhecimento.
Maria Amlia afirma que,
o brincar nasce no corpo, e o corpo a natureza. A criana, antes do intelecto, instinto, sensao. Conhecer a si prprio, nesta faixa de idade, conviver com um espao fsico que lhe permita experienciar no corpo os movimentos de rolar, subir, descer, correr, trepar, pular, caminhar... (Apostila curso Educador Brincante, 2006, p.72-73)
E conclui que o grande desafio da educao hoje compreender, de fato, a lngua da criana
o brincar, que na sua essncia sinaliza a linguagem humana em sua verdade. enxergar
novamente o ser humano, voltar s razes. Juntar dentro de ns esses dois plos, o
cognitivo e o sensvel. E a natureza , na verdade, o cho que re-une os dois hemisfrios
cerebrais, o racional e o sensvel, o lado direito e o lado esquerdo, a cabea e o corao
(COUTINHO, 1996, p 44).
Maria Amlia luta por uma educao que possibilite criana manifestar-se em sua inteireza,
pois s assim ser capaz de perceber a si prpria e perceber o outro.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 71
1.3. A Criana e o Ambiente Urbano
Quando as regras dos adultos obrigam a criana a ficar passivamente olhando o seu meio ambiente,
proibindo-a de arranjar sua sala de aula ou playground, ela provavelmente no ter
um papel ativo na soluo dos problemas.
Robert Sommer
Com a crescente e desordenada urbanizao das grandes cidades, a infncia foi perdendo
espao onde ocorriam brincadeiras entre crianas de diversas idades que utilizavam rua
como se fossem extenses dos quintais das suas casas. Assim, a eliminao deste modo
de vida comunitrio das crianas nas ruas, nos quintais, nos parques e nos espaos da
natureza dentro dos recreios das escolas, altera radicalmente a vida das crianas,
comprometendo sua sade fsica, emocional e mental.
Segundo Verden-Zller (2004, p.194-195) o homem moderno acabou criando um mundo no
qual distorce progressivamente e de maneira extrema as condies normais para o
72 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
desenvolvimento da conscincia humana na criana. O espao da vida humana tornou-se
deformado e de certa maneira destrutivo para ns, pois configura valores que negam o
humano e acabam no proporcionando criana o espao de paz e liberdade que ela
precisa para um desenvolvimento saudvel.
Verden-Zller alerta (2004, p.195-196) que
Num mundo assim, sem uma relao bsica com a natureza, sem liberdade de movimentos e de escolha de companheiros para brincar, no possvel desenvolver adequadamente uma conscincia corporal, uma autoconscincia, uma conscincia social e uma conscincia de mundo. Num mundo estranho, elas vivem alienadas de si mesmas e crescem como seres manipulveis e socialmente alienados. Assim, desprotegidas, num ambiente que no lhes proporciona confiana nem aceitao, elas jamais alcanam um desenvolvimento total de suas possibilidades humanas naturais de auto-orientao, auto-respeito, responsabilidade pessoal e social, liberdade e amor.
J Mayumi Lima (1989), ao observar a organizao dos espaos sociais das crianas em
seu livro A cidade e a criana, confirma a teoria de Sommer (1973) a qual revela que uma
tirania do desenho sobre o usurio, e complementa que este usurio sempre representado
quando h o coletivo, ou seja, o povo - o trabalhador annimo das cidades e dos campos
(1989, p.9). Suas necessidades, suas expectativas e desejos no so ouvidos, e alerta que
isso acaba sendo um processo de reduo cultural, de reas, de material... que gera
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 73
espaos empobrecidos, descompromissados com a qualidade e principalmente utilizados
como instrumentos de dominao.
A organizao e a distribuio dos espaos, a limitao dos movimentos, a nebulosidade das informaes visuais e at mesmo a falta de conforto ambiental estavam e esto voltadas para a produo de adultos domesticados, obedientes e disciplinados se possvel limpos destitudos de vontade prpria e temerosos de indagaes. (LIMA.1989, p.10)
Mayumi nos lembra que no espao fsico onde a criana experimenta as primeiras
sensaes. onde ela encontra os nutrientes necessrios para seu desenvolvimento e
estabelece a relao com as pessoas e com o mundo.
O espao material , pois, um pano de fundo, a moldura, sobre o qual as sensaes se revelam e produzem marcas profundas que permanecem, mesmo quando as pessoas deixam de ser crianas. atravs dessa qualificao que o espao fsico adquire nova condio: a de ambiente. O ambiente significa a fuso da atmosfera, e se define na relao que os homens estabelecem entre si, ou do homem consigo mesmo, com o espao construdo ou organizado. (LIMA.1989, p.13-14)
Ento, defende que o espao construdo pode ser um excelente material pedaggico para as
crianas. Mayumi assegura que o espao sempre educativo, pode promover ou mesmo
74 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
inibir o desenvolvimento do potencial criativo, dependendo da maneira que projetado e
utilizado.
Constata que, infelizmente, o espao escolar ainda frio, desinteressante, padronizado e
padronizador na forma e na organizao das salas, fechando as crianas para o mundo,
policiando-as, disciplinando-as (1989, p.38). E que as escolas ainda apresentam
comportamento autoritrio e repressivo na maneira de utilizar e organizar seus espaos;
ignoram o brincar na atividade diria da criana e isso acaba por estabelecer um domnio
sobre o movimento do corpo e at controle do pensamento da criana.
H apenas dois tipos de aprendizado: um o verdadeiro aprendizado e o outro condicionamento. Condicionamento uma resposta repleta de medo do primitivo ou o que chamamos de crebro posterior ou crebro reptiliano. Este o crebro dos reflexos, da sobrevivncia, que responde como se estivesse sendo ameaado. Aqui acontece uma forma de aprendizado, mas um aprendizado condicionado e intimamente relacionado com estados emocionais de hostilidade, raiva e ansiedade. Se voc deseja um verdadeiro aprendizado que envolva os lobos frontais superiores, o crebro intelectual e criativo, ento, mais uma vez, o ambiente emocional precisa ser positivo e de apoio. (Joseph Chilton Pearce, 1999)21
21 Extrado da entrevista com Joseph Chilton Pearce, Revista Journal of Family Life, vol.5, 1999 - por Chris Mercogliano e Kim Debus. Traduo Sonia Gentil, 2003.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 75
O ideal seria que a criana se apropriasse do espao da escola, deixasse suas marcas ou
alterasse esse espao sua maneira, isso serviria de estmulos para manifestar sua
capacidade de desenvolvimento e transformao do seu mundo. A escola se tornaria, ento,
um espao agradvel e convidativo para as crianas.
preciso pois, deixar o espao suficientemente pensado para estimular a curiosidade e a imaginao da criana, mas incompleto o bastante para que ela se aproprie e transforme esse espao atravs de sua prpria ao. (LIMA.1989, p.72)
Outra pontuao diz respeito escola que no contextualiza a criana dentro de sua
comunidade, alm de no permitir que ela se aproprie do espao da sua cidade. A cidade
um espao muito rico, com grande potencial educativo; um espao de cultura pouqussimo
explorado pelas escolas e sem nenhuma interao com as atividades curriculares.
Para reconstruir a unidade das relaes afetivas, psquicas e cognitivas que lhe assegure simultaneamente a individualidade e a socializao, a crianas tero de encontrar nas novas condies urbanas aqueles espaos permeveis onde seja possvel o jogo e a brincadeira que envolvam os companheiros da mesma idade e observar o mundo dos adultos. (LIMA.1989, p.92)
Apesar desse quadro, Mayumi (1989, p 101-102) defende que a escola acaba sendo o
nico espao real e possvel para recuperao dos espaos pblicos e populares, mas que
76 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
requer a transformao na maneira de pensar o espao/ servio educativo como local de
propriedade coletiva e pblica, alm do rompimento da escola/priso/ fortaleza e sua
transformao na escola/ praa/ parque.
Vemos que o afunilamento do espao urbano ocorre porque h um total desconhecimento
da cultura da infncia, ningum sabe o que a criana. Na realidade, com o entendimento da
existncia da cultura da infncia passamos a reconhecer a criana como agente
transformador do espao urbano. Ao observar as crianas, conseguiremos enxergar sua
capacidade inerente de construo do seu prprio espao, que edificado de acordo com
suas necessidades, nos seus limites e nas suas funes.
Paulo Freire (1993 apud GADOTTI, 2006 p.96-97) sempre defendeu a cidade como espao
educador:
H um modo espontneo, quase como se as Cidades gesticulassem ou andassem ou se movessem ou dissessem de si, falando quase como se as Cidades proclamassem feitos e fatos vividos nelas por mulheres e homens que por elas passaram, mas ficaram, um modo espontneo, dizia eu, de as Cidades educarem.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 77
No incio dos anos 90, no primeiro Congresso Internacional das Cidades Educadoras, em
Barcelona, foi criado o conceito da Cidade Educadora que define os princpios bsicos de
uma cidade que educa. Segundo Gadotti (2006), a cidade tida como espao de cultura e
acaba por educar a prpria escola e, esta, numa troca de conhecimentos e saberes, tambm
educa a cidade. Afirma que o viver na cidade j uma aprendizagem espontnea e
permanente num grande espao cultural.
Gadotti diz que uma cidade educadora exerce alm de suas funes tradicionais
econmica, social, poltica e de prestao de servios - ela alimenta a formao para e pela
cidadania. Promove a participao de todos, crianas, jovens, adultos e idosos - na busca
de um novo direito, o direito cidade educadora (2006, p.97).
78 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
O Manifesto das Cidades Educadoras, aprovado em Barcelona, em 1990, e revisado em
Bolonha, em 1994, (apud GADOTTI, 2006 p.97-98) descreve que
A satisfao das necessidades das crianas e dos jovens, no mbito das competncias do municpio, pressupe uma oferta de espaos, equipamentos e servios adequados ao desenvolvimento social, moral e cultural, a serem partilhados com outras geraes. O municpio, no processo de tomada de decises, dever levar em conta o impacto das mesmas. A cidade oferecer aos pais uma formao que lhes permita ajudar os seus filhos a crescer e utilizar a cidade num esprito de respeito mtuo. Todos os habitantes da cidade tm o direito de refletir e participar na criao de programas educativos e culturais, e a dispor dos instrumentos necessrios que lhes permitam descobrir um projeto educativo, na estrutura e na gesto da sua cidade, nos valores que esta fomenta, na qualidade de vida que oferece, nas festas que organiza, nas campanhas que prepara, no interesse que manifeste por eles e na forma de os escutar.
Isso quer dizer que a escola reconquistada pela comunidade, ganha nova vida se
integrando na cidade, e recuperada como novo espao cultural se transformando num
novo territrio de construo da cidadania.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 79
1.3.3. CEU Centro Educacional Unificado
A cidade de So Paulo mostrou interesse em participar do movimento das Cidades
Educadoras desde meados de 2003, com a implantao dos Centros Educacionais
Unificados CEUs22. Construdos a partir de 2002, hoje a cidade conta com 45 unidades em
funcionamento nas periferias de So Paulo.
22 Ver artigo ANELLI, Renato. Centros Educacionais Unificados: arquitetura e educao em So Paulo. Arquitextos, n 55.02. So Paulo, Portal Vitruvius, dez. 2004. Consultar tambm a revista Casabella, n 727, Milo, novembro 2004. E a revista ArchPlus, n190, Dezembro 2008 onde Marcos L. Rosa entrevista um dos autores Alexandre Delijaicov.
Figura 1 CEU Rosa da China bairro de Sapopemba. Foto: David Rego Jr.
80 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
O projeto possui uma viso que ultrapassa a sala de aula e o espao escolar, estendendo
para toda a cidade, com programao inclusive nos finais de semana; funciona como um
equipamento urbano agregador da comunidade de periferia.
Projeto elaborado pela equipe de arquitetos da EDIF - Departamento de Edificaes da
Secretaria Municipal de Infra-estrutura Urbana e Obras da Prefeitura de So Paulo
Alexandre Delijaicov, Andr Takya e Wanderley Ariza, tambm chamado de verso
contempornea da Escola Parque23. Esta ltima, idealizado pelo educador Ansio Teixeira no
final dos anos 40 na cidade de Salvador, e projeto arquitetnico de Digenes Rebouas e
23Consultar: DUARTE, Hlio de Queiroz. Escola-classe escola-parque. So Paulo: FAUUSP, 1973.
Figura 2 e 3 CEU Rosa da China bairro de Sapopemba. Fotos: Nelson Kon.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 81
Helio Duarte. Assim, tambm so herdeiros do Convnio Escolar24, comisso dirigida por
Helio Duarte, entre 1948 e 1952, para projetar e construir escolas-parque na cidade de So
Paulo. Portanto, a histria dos CEUs mais anterior do que se imagina; remete s razes dos
ideais da Escola Nova na dcada de 20.
24 O Convnio Escolar (1948-1952) foi uma ao poltica entre os governos do Municpio e do Estado de So Paulo para a construo em massa de escolas para atender o dficit monstruoso de vagas escolares. O diretor de Planejamento da Comisso Executiva do Convnio Escolar foi o arquiteto Helio Duarte, que utilizou a experincia obtida com implantao da Escola Parque em Salvador.
Figura 4 Escola-parque ou Centro Educacional Carneiro Ribeiro (em duas etapas: 1947 e 1956), em Salvador, de Digenes Rebouas. Fonte: Revista AU. n 178, jan. 2009.
82 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
Alm disso, na ocasio da formao da EDIF, o educador Paulo Freire era secretrio
municipal de educao25, e, a partir desse momento, inicia-se a idia de utilizar o edifcio
pblico como elemento estruturador da cidade, ou seja, comea a se pensar nos Centros
Educacionais Unificados implantados nas periferias de So Paulo.
Os complexos educacionais possuem creche, Escola de Educao Infantil, Escola de Ensino
Fundamental, playground, centro comunitrio, teatro, cinema, biblioteca, quadras esportivas,
atelis, parque aqutico, estdios para oficinas de vdeo, TV, rdio e fotografia, telecentro e
pista de skate, permeados por grandes reas verdes.
25 No perodo de 01 de janeiro de 1989 a 27 maio de 1991, na gesto da prefeita Luiza Erundina.
Figura 5 e 6 CEU Butant Fotos: David Rego Jr. e Nelson Kon.
O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 83
Alm da implantao dos prprios equipamentos, o entorno tambm contemplado com a
reestruturao viria e saneamento bsico para prover a periferia paulistana de um novo
desenho urbano.
[...] O projeto... Agrupa o programa em trs conjuntos volumtricos de formas simples e despojadas. O maior em forma de grelha ortogonal rene as salas de aula, refeitrios, biblioteca, programa de incluso digital, padaria-escola, reas para exposies e para convivncia. O menor, em forma de disco elevado do solo abriga a creche. O terceiro rene em um paraleleppedo de cinco andares, teatro, ginsio esportivo e sala de ensaios musicais. (ANELLI, 2004, p.2)26
26 Trecho extrado do artigo ANELLI, Renato. Centros Educacionais Unificados: arquitetura e educao em So Paulo. Arquitextos, n 55.02. So Paulo, Portal Vitruvius, dez. 2004.
Figura 7 CEU Butant. Foto: Nelson Kon Figura 8 Croqui CEU Rosa da China.
84 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA
Foi desenvolvido um projeto bsico padro em sistemas pr-moldados para adaptar-se a
variados tipos de terreno e ainda dialogar com diversos contextos. Os espaos livres
disponveis na cidade para a implantao das Praas de Equipamentos - como os autores
preferem chamar os CEUs geralmente so reas s margens de rios, vrzeas ou de
nascentes, protegidas pela legislao ambiental. Para solucionar essa problemtica, os
arquitetos incorporaram o leito fluvial ao desenho urbano das periferias, transformando as
antigas reas degradadas em belssimos parques fluviais.27
27 Vale a pena conferir a dissertao de mestrado: DELIJAICOV, Alexandre. Os rios e o desenho urbano da cidade. Proposta de p