O ESPÍRITO LIVRE EM NIETZSCHE

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CAMILA PESSOA LOPES

O ESPRITO LIVRE EM NIETZSCHE

Fortaleza 2007

CAMILA PESSOA LOPES

O ESPRITO LIVRE EM NIETZSCHE

Dissertao apresentada, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre, ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal do Cear. rea de concentrao: Conhecimento e linguagem Orientador: Custdio Lus Silva de Almeida

FORTALEZA 2007

Dissertao apresentada, como requisito para a obteno do ttulo de Mestre, ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal do Cear. rea de concentrao: Conhecimento e linguagem

Fortaleza, 17 de julho de 2007. Banca Examinadora: Prof. Dr. Custdio Lus Silva de Almeida Prof. Dr. Jos Maria Arruda de Souza Prof. Dr. Dilmar Santos de Miranda

AGRADECIMENTOS

Agradeo Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) por ter possibilitado a minha dedicao a este trabalho, e a todas s manhs, s tardes e s noites que vivenciei nesse percurso.

SUMRIO INTRODUO, 11 Captulo I - O PESSIMISMO E O ESPRITO LIVRE 1. Pessimismo romntico e pessimismo trgico, 15 2. A filosofia pessimista e a crtica ao sentido histrico, 19 3. A ruptura com o pessimismo de Schopenhauer, 24 4. Pessimismo dionisaco e o esprito livre, 32 Captulo II - O PROBLEMA DA CINCIA E DA CONSCINCIA 1. A conscincia intelectual, 39 2. A histria natural do esprito livre, 47 3. Pequena razo e grande razo, 60 4. O problema das convices, 78 Captulo III - O CULTIVO DO ESPRITO LIVRE 1. A hierarquia dos valores, 84 2. O perspectivismo, 106 3. O valor da vida e o esprito livre, 111 CONCLUSO, 123 BIBLIOGRAFIA, 128

As coisas tm peso. Massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posio, textura, durao, densidade, cheiro, valor, consistncia, profundidade, contorno, temperatura, funo, aparncia, preo, destino, idade, sentido. As coisas no tm paz. Arnaldo Antunes Apenas no final do conhecimento de todas as coisas o homem ter conhecido a si mesmo. Pois as coisas so apenas as fronteiras do homem. Friedrich Nietzsche

(Autgrafo de Nietzsche)

(Capa manuscrita de Aurora)

Lista de abreviaturas utilizadas: NT O Nascimento da Tragdia HDH Humano, Demasiado Humano Vol. 1. A Aurora: Pensamentos sobre os Preconceitos Morais GC - A Gaia Cincia. Za Assim Falou Zaratustra BM Para Alm do Bem e do Mal. Preldio a uma Filosofia do Futuro. GM Genealogia da Moral. Um Escrito Polmico. EH Ecce Homo: como Algum se Torna o que CI Crepsculo dos dolos, ou como Filosofar com o Martelo. OBS: 1) Quanto aos fragmentos pstumos: Os fragmentos pstumos utilizados nessa dissertao so retirados do livro Sabedoria para depois de amanh (Seleo de Heinz Frierich, 2005, So Paulo: Martins Fontes) com algumas excees. 2) Quanto a edio Os Pensadores: A citao de textos de Nietzsche que esto reunidos na coleo Os Pensadores feita conforme a ordem: autor, nome do texto e pgina. Os textos dessa coleo usados na dissertao so: Verdade e mentira no sentido extramoral; Da utilidade e da desvantagem da histria para a vida; e O eterno retorno, que no uma obra original de Nietzsche mas textos deste autor sobre esse tema reunidos por Gerard Lebrun.

RESUMO Palavras-chave: esprito livre, cultivo de si, perspectivismo, conscincia intelectual O presente trabalho tem por objetivo explorar o que Nietzsche conceitua como esprito livre. Para a compreenso desse conceito, em primeiro lugar procuraremos compreender a distino feita por Nietzsche entre pessimismo romntico e pessimismo dionisaco e, por conseguinte, a descrio de Nietzsche sobre os dois tipos de pessimistas na humanidade, aqueles que sofrem de empobrecimento e aqueles que sofrem de abundncia de vida. Rompendo com a filosofia de Schopenhauer, Nietzsche inventa os espritos livres e a eles dedica sua filosofia. Nietzsche os chama de filsofos do futuro, aqueles que tero o pendor para compreender o que perspectivista em cada valorao, como tambm, para apreender a injustia necessria de todo pr e contra. Eles devem olhar o problema da hierarquia, ou seja, aquilo que durante a histria aprendemos a sentir como valor. O cultivo de si, portanto, implica o florescimento do esprito livre. Para tanto as condies da cultura so mescladas a aspectos da singularidade da vida instintiva que acabam por modelar, por formar o esprito. A histria natural do esprito livre um lacnico fragmento que enseja o comentrio sobre a moralidade dos costumes e a histria dos sentimentos morais. Certos dessa inveno, apreende-se que a filosofia de Nietzsche pe constantemente o contraste entre o individual e o poltico, revelando-se assim a necessidade de afirm-la de forma contundente, como uma alternativa qualquer situao que desconsidera as possibilidades de crescimento individual ou que enfraquea a natureza do indivduo, ambas situaes constatadas e constatveis com o niilismo das idias modernas. Com o esprito livre espera-se um passo avante no conhecimento e a superao da moral.

ABSTRACT Key Words: free spirit, self cultivation, perpectivism, intellectual conscience The objective of the present work is to explore Nietzsches concept of free spirit. To comprehend that concept we will first atempt to understand the distinction Nietzsche establishes between romantic pessimism end dionisiac pessimism and, therefor, Nietzsches description of the two types of pessimists in humanity, those suffering an impoverishment of life and those suffering an abundance of life. Breaking from the philosophy of Schopenhauer, Nietzsche invents the free spirits to whom he dedicates his philosophy. Nietzsche calls them the philosophers of the future, those who will have the inclination to comprehend what is perspectivism in each evaluation, as well as to apprehend the necessary injustice of all pros and cons. They must take into account the problem of hierarchy, in others words, that which throughout history we learned to feel as worth. Self cultivation, therefor, implicates the flowering of the free spirit. To achieve this, cultural conditions are mixed with aspects of instinctive life singularities that result in the modeling, the formation of the spirit. Free spirits natural history is a laconic fragment that gives us the opportunity to issue a commentary about the morality of customs and the history of moral feelings. Convinced of this invention, it is apprehend that Nietzsches philosophy constantly imposes the contrast between the individual and the politic, thus revealing the necessity to affirm it vehemently as an alternative to any situation that does not consider the possibilities of individual growth, or that weakens individual nature, both situations verified and proved with the nihilism of modern ideas. With the free spirit one hopes to take a step forward into the knowledge and the overcoming of moral.

INTRODUOAs rvores sempre foram para mim os oradores mais convincentes. Eu as venero entre suas famlias e povos, as florestas e os bosques, mas, ainda mais as adoro quando esto a ss. Ento so como os seres solitrios, mas no como eremitas que por causa de alguma fraqueza se isolaram, mas como os grandes homens solitrios: como Beethoven e Nietzsche. (Herman Hesse, Caminhada, p.59) chamado de esprito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedncia, seu meio, sua posio e funo, ou com base nas opinies que predominam em seu tempo. Ele a exceo, os espritos cativos so a regra; (...). (Nietzsche, Humano demasiado humano, 225, p. 157)

Este trabalho explora o conceito de esprito livre e tem no prlogo do livro Humano demasiado humano um livro para espritos livres, do filsofo Wilhelm Friedrich Nietzsche, a inspirao do tema acerca do esprito livre, um conceito por ele inventado. para os espritos livres que ele dedica sua filosofia. Um tema abrangente e que no se restringe a obra supracitada, como se pode dizer de todos os temas que encontramos em Nietzsche: um aforismo apenas lido no de todo compreendido. Para os que comeam a ler, ou que no esto acostumados, no caso, com um escritor como Nietzsche, percebemos que no exerccio da leitura de um texto na forma de aforismo, no encontramos um tema esgotado nele, pois se espraia em vrios outros e, em apenas um, acham-se digresses de vrios outros temas, escritos em diferentes pocas, acompanhando em seu rastro sutis mudanas de concepo nesse tempo, em variados estilos de escrita. O estilo de Nietzsche profuso. E , como ele mesmo queria, a expresso de um carter nobre. Essa dissertao est composta por trs captulos. Nesse conjunto procurei usar como recurso metodolgico a periodizao mais habitual das obras de Nietzsche em trs fases; no entanto, sem aprisionamento a essa diviso, pois os conceitos em Nietzsche no se encontram definidos de modo monoltico. Na primeira parte, denominada Pessimismo e o Esprito livre, desenvolvi os aspectos da filosofia do primeiro perodo, que culmina com o livro O nascimento da Tragdia, dando nfase a ruptura na relao de Nietzsche com o pessimismo de Schopenhauer. Essa ruptura marca a passagem para o segundo perodo, iniciado com a obra Humano demasiado humano, dando relevo crtica ao romantismo e crtica ao sentido histrico, procurando mostrar como contra-face s crticas citadas, a criao do pessimismo dionisaco, que integra a constituio do esprito livre.

No segundo captulo, chamado O problema da cincia e da conscincia, o livro A Gaia Cincia forneceu importantes esclarecimentos para o tema aqui visado. Acerca desses problemas toma destaque o desenvolvimento do conceito de conscincia intelectual projetado por Nietzsche no segundo perodo, com o qual ele questiona a importncia do intelecto para a espcie humana. Nesse segundo captulo, h tambm um outro ponto especial, um desafio para o desenvolvimento do tema: o desdobramento de um fragmento pstumo que soa como um ttulo, escrito assim: A histria natural do esprito livre. Ali esto entremeados temas como a original preocupao de Nietzsche acerca dos sentimentos morais, passando pela moralidade dos costumes e pela cultura, pensada como um problema. Ali tambm ficou registrada a distino entre a pequena e a grande razo com o intuito de esclarecer a dissoluo requerida por Nietzsche da dicotomia corpo/esprito. No terceiro captulo, denominado O cultivo do esprito livre, enfatizei o prlogo de Humano demasiado humano, cujo teor integralmente dedicado aos espritos que se tornam livres, e que data do terceiro perodo. Nesse sentido, a pesquisa esteve sempre recorrendo s obras da fase em que o prlogo foi escrito, como as obras Alm do bem e do mal e Genealogia da Moral, nas quais o pensamento de Nietzsche se condensa naquilo que vai ficando mais claro para ele mesmo como a teoria sobre o valor dos valores. Nesse perodo, a teoria perspectivista consolidada e o auxlio da fisiologia no estudo acerca da criao dos conceitos morais delineiam a filosofia nietzschiana. o perodo de maturidade no qual esto as obras escritas aps o Zaratustra. Tratando de devolver filosofia seu estandarte como nos tempos antigos, como no tempo dos pr-socrticos e em favor da crtica, em Nietzsche preciso ficar claro que no so os resultados da cincia que so refutados por ele, mas, sim, o fato da cincia, baseada na moral, apresentar-se como a nica interpretao vlida dos fenmenos. A cincia, todavia, deve ser posicionada no como a nica autoridade para a conscincia (Gewissen), ela ganha na interpretao de Nietzsche um elogio relativo: por um lado auxilia o esprito a tornar-se livre atravs da manuteno do questionamento; e, por outro, desmascarada a objetividade do pesquisador que observa a regularidade dos fenmenos, buscando compreender causas e efeitos, que para Nietzsche so apenas descries e no conhecimento da natureza. Desse modo, ser colocada a pergunta pelo valor da verdade. Para Nietzsche dedicado tarefa na qual explora o problema da cincia e da conscincia e, nesse sentido, tambm dedicado dissipar a superstio do eu a conscincia (Bewusstsein) perde seu privilgio diante do corpo e considerada como mais um rgo, um rgo de direo. O pensador conjectura que o tornar-se consciente somente a parte mais superficial do pensamento, a parte que se transpe em palavras, em signos de comunicao. Para Nietzsche, so os instintos

que se ocupam da formao dos conceitos. Isso o leva refletir acerca do uso da linguagem pelo conhecimento, e sustenta que as palavras so meios na busca da verdade, elas no so a verdade. Na viso de Nietzsche, a filosofia como a arte, quer dar vida e ao o maior significado possvel; e a cincia procura conhecimento, nada mais1. O esprito livre trilha um caminho prprio. Nesse caminho para a autenticidade pessoal, olha, sim, para trs, olha para a histria, para o deserto do passado e v, as culturas passadas: aonde a humanidade futura no pode ou no deve retornar. E olha para frente: desejando ver o n do futuro, sua prpria vida, sua existncia adquire o valor de instrumento e meio para o crescimento. Com o conceito de esprito livre, o filsofo quer confirmar ao indivduo que est em suas mos tornar-se aquilo que , que ao se afirmar ele pode se doar e participar, mesmo sem o saber, da cultura em geral. O esprito livre reconhece a fora do desconhecimento, do seu limite e, por isso, pode criar seus valores segundo sua medida de valor. Reconhece, portanto, que um intelecto no pode determinar nem seu xito nem seu fracasso; em funo desse reconhecimento, percebe a injustia de todo julgamento, e olha para os seres humanos como mensuradores de todo grau. O empenho do esprito livre devolver o mais pleno sentido para a inocncia, para o vir-aser. A concepo do esprito livre est enlaada noo de cultivo de si. Somente aquele que tem a possibilidade de dispor de si livremente, que tem tempo para si, que v em si uma fonte de experincias, pode ascender ao conhecimento. O esprito que se torna livre reconhece sua capacidade de dispensar convices, e de se afastar dos falsos padres, mais precisamente da tecnocracia da cultura moderna. Sobretudo uma virtude lhe indispensvel: a probidade intelectual. O esprito que se torna livre re-traduzido sua natureza, pois somente pode melhor averiguar sua prpria fora, descobrir seu poder, a partir de sua natureza, de seu corpo, de seus instintos. Nietzsche, nesse ponto, nos faz repensar como tudo o que est ligado ao corpo, sensualidade, s paixes foi considerado mal, utilizando as cincias da histria e da psicologia como auxlio. Contrrio a esse entendimento e desmentindo todo tipo de injria que a instncia corpo sofreu, Nietzsche, atravs da psicologia, da histria e da fisiologia que permeiam sua filosofia, nos conduz a compreender que todo vcio vem a se degenerar em virtude quando a fora da vontade a dominada por um impulso diretivo que domina os outros mil impulsos, quando um estilo d unidade. Nietzsche, em A gaia cincia, exprime que a f sempre mais desejada quando falta a

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HDH, 6, p. 19.

vontade2. Mas, ateno, falar sobre a vontade falar sobre algo complexo, um emaranhado em que no se distingue muito bem o que sentir, pensar ou querer. Pela sua filosofia seguimos ento colhendo os frutos do pensamento que entende que onde h vontade h beleza 3! A beleza atua como uma fora transfiguradora, na sensualidade: mas com a transfigurao no colocamos perfeio nas coisas?4 E aqui a idealizao um evento decisivo5. O jogo divino, entre Dioniso, o movimento, o xtase, a dana e Apolo, a harmonia, a serenidade, a viso incessante. O que belo tem o selo da vitria sobre a fora. Contra os preconceitos morais, ele defende a distino de que, o que virtuoso para mim, pode ser um tormento para voc e vice-versa. A frmula que sentencia que a virtude a sade da alma modificada e passa a ter essa forma: Sua virtude a sade de sua alma 6. Pois no existe uma sade em si. Em sntese, apenas aqueles que tenham a possibilidade de dispor de si livremente, que tm amor a si, podem entregar-se ao trabalho de cultivar a si mesmo, apenas estes, podem experimentar em si as mais diversas situaes e prosseguir descobrindo o que, cada vez mais pode estimular-lhes, o que pode entorpecer-lhes. Para os que sofrem de fobia nietzschiana, importante no l-lo de forma apressada. Pois uma vez na histria j fora mal interpretado, tendo seus textos sido apropriados de forma prfida, tosca e seletiva, um estardalhao e abuso feito sem razo e com insdia. E ainda, por causa da indolncia, da decadncia da vida contemplativa, da pressa dos tempos modernos e uma maneira de escrever que no favorece um saber imediato, alguns aspectos de sua filosofia acabam por se obscurecer. Sua leitura exige tempo e arte na leitura, uma exigncia desse autor que na leitura de seus escritos seja mantida uma certa tenso que distinga o esprito do leitor. Recomendo ainda uma dose de lentido, um passeio, pacincia e que respire fundo e usufrua, h muitssimo de edificante para cada um nesse grande solitrio. sua maneira de ver, Nietzsche considera o futuro, como aquilo que salvo do presente, pois desse modo salvo o que nele vida. Quanto a essa dissertao espero t-la deixado clara, vibrante e legvel, pelo que contm de seriedade e cuidado na informao e propagao desse autor, no que diz respeito matria filosfica, mesmo talvez com as parcas especulaes presente nela. Contudo, espero despertar o interesse para a filosofia, torcendo para que no se fossilize. Por

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GC 347, p. 241. Cf. Za, Do imaculado conhecimento, p. 154. 4 Num fragmento Nietzsche escreve dessa forma: imagens da vida elevada e vitoriosa e sua fora transfiguradora: de modo que uma certa perfeio seja colocada nas coisas.(Frag. pstumo 9 [6], vero de 1887, p. 236). 5 Cf. CI 8, Incurses de um extemporneo, p. 79. 6 GC 120, p. 144.

fim, em se tratando de hbitos, a filosofia no apenas uma leitura interessante, mas parte vital de qualquer cultura.

Captulo I O PESSIMISMO E O ESPRITO LIVRE

1. Pessimismo romntico e pessimismo dionisaco Em Nietzsche determinante a pujana da afirmao que diz que somente a arte justifica a vida. A arte, desta maneira, apresenta-se como uma soluo, qui um mtodo, mas precisamente como uma soluo, a soluo esttica para o problema da existncia, para o pessimismo. importante antes de tudo lembrar que a tese de um pessimismo foi inaugurada na filosofia por Schopenhauer, o filsofo que encantou Nietzsche. Nesse contexto, esse estudo pretende mapear o que vem a ser o esprito livre e sua relao com o pessimismo. Para isso, parece importante esmiuar, nesse primeiro ponto do trabalho, um aforismo do livro V da A gaia cincia, livro posteriormente acrescentado a esta obra em 1886. O ttulo do aforismo O que romantismo?, cuja leitura nos conduzir pelo pensamento nietzschiano e servir tambm para percebermos uma diferena basilar no interior da filosofia de Nietzsche. Nesse aforismo, encontram-se preciosas indicaes acerca da ligao de Nietzsche com a filosofia. Mas, principalmente veremos que um fato marcante toma mais ateno: a distino entre duas formas de pessimismo. Atravs dessa distino, Nietzsche relata sobre uma transformao que lhe ocorreu, com muito custo, a partir da qual ele se sente num amplo sentido, liberto, liberto de sua atualidade. Romper com o romantismo o primeiro passo do esprito que se torna livre. Esse primeiro passo significa compreender o problema da existncia, no mais de forma romntica, com solues consoladoras extra-mundanas ou com a negao do mundo. O esprito se liberta do idealismo, do sentimento elevado, vislumbrado pelo romntico como sua forma de iluso artstica. Assim, em torno do tema aqui refletido, a concepo da formao do esprito livre h dois aspectos que confirmam essa ruptura: primeiro, uma mudana de sentido da noo de pessimismo, que se torna afirmativo diante das intempries do devir, ser ento o pessimismo dionisaco atravs do qual a vida ainda sofrimento, mas nem por isso ela vale menos; e segundo, uma exigncia principal: o esclarecimento sobre o que perspectivista em cada valorao. O ataque de Nietzsche ao idealismo no nada parcimonioso. Ao idealismo Nietzsche vai opor o trgico. O sentido de trgico em Nietzsche extrapola o campo exclusivamente esttico das tragdias gregas e se torna uma perspectiva de interpretao da vida. Isto significa

considerar que em primeiro plano esto as vivncias, a ambigidade de sentido das aes e a tenso dos acontecimentos, que consubstanciam o aspecto de conflito na conscincia do indivduo. Vale ressaltar, o sentimento do trgico no antigo homem grego se apresentou num contexto histrico delimitado, no qual o direito comeava a se opor como concepo racional s formas de pensamento religiosas, presente nos mitos e ritos do mundo antigo grego. Explica Jean Pierre Vernant que nesse tempo, o domnio da tragdia, e aqui a referncia feita aos textos trgicos, se situa numa zona fronteiria onde os atos humanos vm articular-se s potncias divinas7. Nietzsche constata em tempo, cujo privilgio o de situar-se num limite entre o passado com a religio, a arte e a metafsica e o futuro, com o conhecimento cientfico8, a decadncia, ou a queda, a mudana, a substituio dos valores considerados superiores que em um momento servem como orientao para os indivduos, valores que vigoram em determinados perodos na histria e se transformam. Para ele, a decadncia, a queda de valores, manifesta-se vrias vezes na histria, uma delas ocorreu com a filosofia de Scrates, que segundo ele marcada pelo declnio e por um empobrecimento de vida. Nietzsche acusa a filosofia socrtica de instaurar o que ele chama de instinto de conhecimento. Como nos ensina Roberto Machado, em Nietzsche esse instinto geralmente utilizado com a conotao de signo de baixeza, de declnio, de decadncia9. A decadncia sinal de que a vida perde foras em detrimento do conhecimento. A crtica de Nietzsche que pesa sobre a filosofia socrtica que ela procura racionalizar a arte inserindo o pensamento e o conceito, e levando em considerao o contexto das tragdias, procura ento dar sentido arte. Desse modo, porm, observa Nietzsche, termina por desvalorizar a arte. No Nascimento da Tragdia nosso autor discorre sobre o impulso artstico e natural dionisaco como sendo a reconciliao do homem com a natureza, que desmesura, e com os outros homens. dessa forma que o princpio da individuao e os valores apolneos de medida so rompidos. Nessa nova estratgia artstica, a verdade do saber de Sileno, o absurdo de toda existncia integrado a arte. precisamente essa incorporao que Nietzsche considera como o momento mais elevado da civilizao grega o elemento dionisaco, destruidor, selvagem e brutal, que pode aniquilar a vida por um estratagema incorporado arte a experincia dionisaca se transforma em fenmeno esttico e ento aliviado o seu poder destruidor. A arte trgica nasce, portanto, da unio, da reconciliao entre Apolo e Dioniso, entre a aparncia e a essncia. No obstante, essa unio se caracterize por um conflito: essa a7 8

VERNANT, p. 4. MONTINARI, p. 1 . 9 MACHADO, p. 36.

marca interpretativa propriamente de Nietzsche acerca da Tragdia grega: Reconheo em Apolo e Dioniso os representantes vivos e evidentes de dois mundos artsticos diferentes (...). Vejo Apolo diante de mim como o gnio transfigurador do principium individuationis, nico princpio pelo qual se pode alcanar de verdade a redeno da aparncia, ao passo que, sob o jbilo de Dioniso, rompido o feitio da individuao10. Desse conflito Dioniso sai sempre vitorioso, isso significa a derrota do saber apolneo, dos valores apolneos: a individualidade em face da perenidade do Uno originrio, ou seja, da vontade no sentido schopenhaueriano. A metafsica de artista consiste em entender o dionisaco como representao do Uno originrio, ou seja, o desencadeamento da vontade. Assim, o conceito de trgico, que um meio de Nietzsche para retornar a culturas passadas, traduz a vontade dos helenos na tragdia. Porm, a partir da observao psicolgica que auxiliar o filsofo Nietzsche, a metafsica de artista preciso ser superada porque identificada com o romantismo na filosofia e na msica. Portanto, a superao da diviso essncia/aparncia dos romnticos que constitui a arte trgica redirecionada ou renascida como diz Nietzsche em seus escritos durante seu tempo. O esprito trgico est mais na msica popular da aventura cigana de Bizet11, do que na elaborada msica de Wagner. Representando a luta e a vitria de Dioniso, o sentimento que a tragdia proporciona o de que o limite da individualidade ser abolido e a unidade originria com a natureza restaurada. Quer dizer: enquanto a arte apolnea afirma a eternidade da aparncia, do fenmeno, da iluso; a tragdia nega o indivduo justamente por ser fenmeno e em contrapartida afirma a eternidade da vontade. E, assim, a arte dionisaca quer principalmente nos convencer do eterno prazer da existncia. A viso romntica em geral se caracteriza pelo ideal, pelo sonho. Interessante notar que o romantismo representa o sonho como ideal e, para Nietzsche, o ideal mendaz diante da necessidade, seria, portanto, como a mscara apolnea que encobre o trgico. Mas a filosofia de Nietzsche vista a partir de Humano demasiado humano nos leva a entender o sonho como iluso necessria, como desejo de aparncia, como mscara dionisaca. H dois tipos de iluso em Nietzsche: a iluso metafsica e a iluso artstica, esta ltima necessria, essencial. Essa iluso aniquilada com a filosofia cientfico-racional de Scrates. Roberto Machado observa que a perspectiva extra-moral, ou perspectiva fisiolgica de Nietzsche aquela que criticando o instinto de conhecimento e verdade, afirma a necessidade da iluso. Continua o professor:A perspectiva extramoral critica o desejo de verdade como sendo um esquecimento de que o homem uma artista, um criador, isto , um criador de10 11

NT, 16, p. 96. Trecho do nome do artigo de Alfredo Naffah Neto.

aparncia, situando o antagonismo entre arte e cincia no prprio campo da iluso. No fundo, dois tipos de iluso: a iluso socrtica, iluso metafsica, que considera a verdade superior aparncia; e a iluso artstica, consciente do valor da iluso, que sabe que tudo iluso, figurao, transfigurao, criao12.

Na arte trgica, o sonho representa a pulso apolnea, e a embriaguez, a pulso dionisaca, a unio entre essas duas pulses caracteriza para Nietzsche a natureza artstica.O que o romantismo? Toda arte, toda filosofia pode ser vista como remdio e socorro, a servio da vida que cresce e que luta: elas pressupem sempre sofrimento e sofredores. Mas existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de abundncia de vida, que querem uma arte dionisaca e tambm uma viso e compreenso trgica da vida e depois os que sofrem, de empobrecimento de vida, que buscam silncio, quietude, mar liso, redeno de si mediante a arte e o conhecimento, ou a embriaguez, o entorpecimento, a convulso, a loucura 13.

No entanto, falar sobre o romantismo em Nietzsche cria uma complicao, porque esse assunto que agora tratamos com distncia, era seu momento, quer dizer, ao mesmo tempo em que o critica, o romantismo est entremeado ao seu contexto de vida, alm de influenci-lo sobremaneira. Essa influncia e a relao/ruptura com o romantismo permeiam a obra de Nietzsche. Somente em seus ltimos escritos O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner o filsofo ir tratar mais estritamente desse problema acerca do processo psicofisiolgico do criador, aqui considerados como dois tipos de criadores; neles, Nietzsche conceitua o que entende por fisiologia da arte. Nessa dissertao vamos analisar apenas o texto de A gaia cincia. Para dar incio alternativa de Nietzsche, mister escutar quem o deus e homem dionisaco:O mais rico em plenitude de vida, o deus e o homem dionisaco, pode permitir-se no s a viso do terrvel e discutvel, mas mesmo o ato terrvel e todo luxo de destruio, decomposio, negao; nele o mau, sem sentido e feio parece como que permitido, em virtude de um excedente de foras geradoras, fertilizadoras, capaz de transformar todo deserto em exuberante pomar.14

A superabundncia de vida permite observar o terrvel, e sua caracterstica no se intimidar com ele, mas transform-lo em um benefcio. No ressente com um ato, no tem m conscincia. Superabundncia excesso de foras transfiguradoras, marca de instintos geradores, a intensidade de dizer sim, unida ao sentimento dionisaco como impulso artstico. Mas, durante a histria os instintos foram transformados pelos juzos morais e adquiriram uma12 13

MACHADO, p. 39/40. GC, 370, p. 272 e ss. 14 GC, 370, p. 272.

segunda natureza. Com a moral crist, os instintos passam a ser acompanhados de boa ou m conscincia: Em si, como todo instinto, ele no possui isto [boa ou m conscincia] nem um carter e denominao moral, nem mesmo uma determinada sensao de prazer e desprazer: adquire tudo isso como sua segunda natureza15, que lhe imputamos. No que, no caso dos gregos, Nietzsche no reconhea que um povo de instintos inflamados no precisasse arrefeclos, para isso funcionou a filosofia de Plato. Mas na modernidade, essa transformao dos juzos morais age como domesticao, como domao, como aniquilamento das foras: o homem, um animal de rapina transformado em um cordeiro. Os instintos, para Nietzsche, so fundamentais e se ocupam, desse modo, das formaes de valores. Poderamos dizer que Nietzsche instaura uma reflexo sobre dois tipos de pessimistas e desse modo, tudo se resume em o insatisfeito frgil negar o sofrimento (o fraco, o idealista, o romntico esse quer o sofrimento) e o insatisfeito forte afirm-lo (o artista dionisaco e o impulso exttico destruidor e criador); por fim, negar o sofrimento equivale a negar o mundo.

2. A filosofia pessimista e a crtica ao sentido histrico O pessimismo dito de maneira crua entendimento da vida como sofrimento, como a dor provocada pelo contraste entre o comeo e o fim da vida. Pessimismo entender que vida sofrimento somente, e isso significa perceber a partir da viso de Schopenhauer, uma espcie de positivao da dor e da infelicidade. Deriva, portanto de Schopenhauer, a bagagem pessimista na filosofia de Nietzsche, que ser abandonada e substituda. Para Nietzsche a existncia mesmo conflituosa, terrvel, tal sua nfase no aforismo supracitado, e justamente referente a essa nfase ao problema da existncia que as posies interpretativas de Schopenhauer e Nietzsche iro se distanciar. Certamente, para Nietzsche, Schopenhauer foi o primeiro filsofo a colocar a questo do problema da existncia na filosofia. E a esse problema que Schopenhauer responde com o pessimismo. Nietzsche responde com o dionisaco: um excedente de foras capazes de transformar todo deserto em exuberante pomar. Com isso se pretende superar o pessimismo. A filosofia de Schopenhauer, para notar suas circunstncias, embora no figure entre as filosofias do idealismo alemo , contudo, uma filosofia ps-kantiana, e com influncias do pensamento de Kant. Todavia, as apreciaes de ambas bifurcam-se em caminhos diferentes: se15

A 38, p. 37. Grifo meu.

as filosofias que se mantm na tradio privilegiam o intelecto, com Schopenhauer o intelecto perde o privilgio como princpio do mundo, em face do querer, da vontade. Nesse contexto, o que vislumbramos na discusso filosfica a oposio do pessimismo schopenhaueriano versus o otimismo do idealismo alemo. Considerando que a filosofia otimista desde Anaxgoras at Leibniz16, o substrato desse embate que teoria do melhor dos mundos possveis de Leibniz, Schopenhauer ops a teoria do pior dos mundos possveis. O confronto figura basicamente em torno do que o otimismo postula: o otimismo pressupe uma viso ordenada do mundo, para tanto se postula um criador, e conclui-se um mundo criado por Deus. Em suma, o otimismo justifica o tesmo, ou melhor, o monotesmo, o deus da Bblia, o criador do melhor dos mundos. Schopenhauer no concebe a idia de criao como o otimismo. Grosso modo, enquanto a filosofia desdobra uma ontologia do ser, Schopenhauer trata de construir uma cosmologia, a partir da qual se verifica o mundo como vontade e como representao dessa vontade e atravs de uma compreenso analgica estende a vontade humana a todos os outros corpos at ao mundo. Assim, ser o pessimismo de Schopenhauer estabelecido como uma metafsica da vontade: a vontade entendida como uma coisa em si mesma, diferente do fenmeno que submetido razo. A vontade em Schopenhauer significa um mpeto cego, um querer viver, uma fome de vida incessante, na qual o desejo satisfeito um erro conhecido e o novo, um erro ainda desconhecido17. A existncia comparada roda de xion, que no cessa de girar, anloga vontade. Nesse perodo de ligao com Schopenhauer, o perodo do jovem Nietzsche, Nietzsche permanece entendendo a vontade como Schopenhauer a v: como uma coisa em si mesma, como o Uno originrio, embora se possa afirmar que desde seus primeiros textos o filsofo subverte a metafsica schopenhauriana: a ontologia dos piores dos mundos possveis ser substituda por uma viso da superabundncia de vida. Contudo, o otimismo atacado a princpio por Schopenhauer e posteriormente por Nietzsche. O principal alvo mirado por ambos a crena atravs da qual parte todo otimismo: em uma pressuposio, uma crena no ser como substncia, ou como conceito, ou ainda como fato histrico. Esse ataque crena no ser ir repercutir tanto como uma crtica ao sentido histrico, concepo da filosofia do idealismo, cujo apoio se sustenta sob a idia de progresso, que para Nietzsche no passa de uma fantasia romntica18: a crena no progresso; quanto uma crtica lgica19, que segundo Nietzsche procede com inteno teolgica.16 17

O mundo ... 59, suplemento 46, p. 1.344. In Compreender Schopenhauer, p. 32. BARBOZA, p. 36. 18 Cf. HDH 24, p. 33. 19 Cf. nessa dissertao p. 97.

Para Nietzsche, a histria pensada como cincia seria uma espcie de encerramento da vida para a humanidade. A questo em que medida a vida precisa em geral do servio da histria: essa uma das questes e cuidados mais altos no tocante sade da humanidade. Diz Nietzsche: A histria, na medida em que est a servio da vida, est a servio de uma potncia a-histrica e por isso nunca, nessa subordinao, poder e dever tornar-se cincia pura, como, digamos, a matemtica20. J: A cultura histrica, pelo contrrio, s algo salutar e que promete futuro em decorrncia de um poderoso e novo fluxo de vida, por exemplo, de uma civilizao vindo a ser (...).21 A histria se rege sob a potncia incessante e sobretudo, inocente do vir-a-ser, o fluxo dos acontecimentos, que arbitrariamente recortamos um pedao e que especificamos e singularizamos como um momento, negligenciando todas as diferenas daquele acontecimento, e o tornamos um monumento do passado. A acusao que pesa sobre a cultura moderna que ela: No de modo algum uma cultura efetiva, mas apenas uma espcie de saber em torno da cultura; fica no pensamento-decultura, no sentimento-de-cultura, dela no resulta nenhuma deciso-de-cultura. 22 A sua utilidade ensinar no mais repetir os erros do passado e, tambm, que a grandeza que foi possvel uma vez, pode ser que seja possvel mais vez. A histria, nesse sentido, no cumpre uma progresso dialtica. Em sua perspectiva, os opostos e a contradio que movem todo processo histrico so complementares, e se contrastam de uma maneira assimtrica, cuja sntese no absoluta, mas precria. Isso quer dizer que as partes contrapostas, uma fraca e outra forte, uma que comanda e outra que obedece, mantm sua autonomia. A causalidade (dos fatos) que de uma maneira geral a filosofia e a cincia procuram desvendar j seria em todo caso efeito. Na metafsica, a origem ou est fora do tempo ou oculta e indescritvel. Nesse sentido, notamos com Nietzsche o tratamento historicizante que o cristianismo emprestou a histria. E, ainda, observamos como a metafsica se estende interpretao filosfica dos fatos. Por isso, Nietzsche vai denunciar muitas vezes que a filosofia tem sido mais uma teologia, enquanto que seus estudos iro desembocar numa genealogia, termo que nos remete idia de uma filiao, de uma relao de parentesco na apreenso da origem. Por fim, a histria para ele se confunde com um processo de dominao. O sentido histrico e a lgica, sob o ponto de vista do otimismo filosfico, partem de uma crena em algo pr-determinado, fixo, imvel. E, para Nietzsche, ns somos tiranizados pela lgica, somos tiranizados pelo otimismo. Isso gerou o fanatismo relativo razo e, desse modo, a cincia ganhou grande importncia como fonte de conhecimento para a vida. A questo20 21

NIETZSCHE, Da utilidade e desvantagem da histria para a vida, 1, p. 275. Idem, 1, p. 275. 22 Idem, 4, p. 278.

que Nietzsche traz tona a tese segundo a qual toda lgica parte de uma crena 23, e ainda, que os melhores lgicos sabem disso. Oportuno notar agora a noo de ser, comentada por Nietzsche no texto o pr-socrtico Parmnides24; nesse texto ele esclarece, para desassossego dos otimistas, que a palavra ser indica apenas a relao mais geral que liga todas as coisas, assim como a palavra no-ser. Isso redundante num momento posterior a esses textos sobre os pr-socrticos, e obtm maior alcance epistemolgico, em Humano demasiado humano. Logo, no primeiro captulo Das coisas primeiras e ltimas Nietzsche afirma que o homem pensou ter no conhecimento da linguagem o conhecimento do mundo. A afirmao tem ampla pertinncia principalmente no tocante ao contemporneo estudo da linguagem relativo questo da validade do conhecimento. Logo, a crtica do sentido histrico uma crtica causalidade e substncia, em vista de procedermos apenas com uma imagem de uma natureza ordenada, pois, enfim, ns impomos leis a ela tanto a histria quanto a natureza so, do ponto de vista nietzschiano, imorais, quer dizer, no so na verdade atingidas pelas apreciaes, juzos e conceitos humanos: (...) essas leis da natureza, de que vocs, fsicos, falam to orgulhosamente, (...) no so uma realidade de fato, um texto, mas apenas uma arrumao e distoro de sentido ingenuamente humanitria.25 Viva a lei natural no verdade? Mas, como disse, isso interpretao, no texto (...). A propsito, a substncia e a liberdade do querer so considerados por Nietzsche como os erros fundamentais da humanidade: o intelecto humano fez aparecer o fenmeno26. Diz ainda: Na medida em que toda metafsica se ocupou principalmente da substncia e da liberdade do querer, podemos design-la como a cincia que trata dos erros fundamentais do homem como se fossem verdades fundamentais27. E ainda: natureza = mundo como representao, isto , como erro28. Em Alm do bem e do mal, a interpretao de Nietzsche sobre a natureza que ela imposio de reivindicaes de poder29. No transcorrer da histria, no entanto, temos para o conceito de natureza algumas interpretaes: vejamos que num primeiro momento da histria narrada a impotncia humana diviniza a natureza e assim pretende domin-la, como a tarefa do feiticeiro, que se mistura natureza para poder domin-la; posteriormente a considera como o prprio Deus e qualquer investigao que resulte divergente aos preceitos dos conclios da23 24

HDH 18, p. 28. Pr-socrticos. Crtica moderna sobre Parmnides, p. 127. 25 BM 22, p. 28. 26 HDH 16, p. 26. 27 HDH. 18, p. 29. 28 HDH 19, p. 30. 29 BM 22, p. 28.

Igreja, heresia e blasfmia; mais tarde com o iluminismo a f substituda por antropomorfismos. Porm, com A gaia cincia30, uma nova cincia, aprendemos que a natureza no tocada por nossas metforas, com ela Nietzsche quer propagar que a espcie tudo, o indivduo nada, que somos indivduos e fazemos parte de uma espcie que procura se conservar; esclarece tambm que tudo o que dizemos acerca da natureza produo moral; todavia, a gaia cincia a cincia que ama os erros, os erros do intelecto que, para ele, s produz erros. Em Alm do bem e do mal, Nietzsche chama ateno para como a cincia, no caso a fsica moderna, interpreta a natureza cedendo aos instintos da alma moderna: como se a cincia justificasse sua arrumao da natureza, seus sistemas, atravs das idias modernas, ele considera que a idia de igualdade, a idia de liberdade, que para ele so como as sombras de Deus, depois de morto, apenas substituram o lugar ocupado antes por uma viso teocntrica. Em uma viso otimista, o mundo tem um curso necessrio e calculvel, mas uma reflexo pessimista esclarece: mas no porque nele vigoram leis, e sim porque faltam absolutamente as leis31. Mas que espcie de pessimismo encontra-se em Nietzsche? No o pessimismo de Schopenhauer, o pessimismo da compaixo, mas, sim, o pessimismo da fora. O pessimismo como tese metafsica schopenhauriana precisa ser superado. Nietzsche se afasta de Schopenhauer, pois para filosofar sem metafsica preciso extinguir a diferena entre a coisa em si mesma e o fenmeno. Para ele, o que Schopenhauer fez foi substituir o intelecto como princpio ordenador do mundo, com o qual surgem os sistemas filosficos, pela vontade, como o em si do mundo, o Uno originrio desse mundo que destarte em si sofrimento, insatisfao. Para Schopenhauer a vida um sonho, como testemunha o pensamento hindu que o influenciou sobremaneira. A efetividade encoberta pelo vu de maya, pela iluso. Segundo sua perspectiva do mundo como representao da vontade, o mundo da representao, o mundo efetivo precisa ser renunciado, pois a vida como um dispndio que no vale o custo investido e, assim, eis criada uma viso pessimista. preciso notar, sobretudo, que com Kant, admirado e ao mesmo tempo renegado por Schopenhauer, instaura-se uma crise na filosofia: a crtica de Kant razo tem como conseqncia o fim da crena humana em Deus. dessa crise que a questo sobre o valor e o sentido da existncia verdadeiramente colocado, assim como j mencionado por Nietzsche que declara Schopenhauer como o primeiro a expor esse problema. Contudo, para Nietzsche, apesar de todo o sofrimento, o mundo no vale menos. A filosofia de Dioniso a incorporao de toda dor para livrar-se dela no arrebatamento do xtase, na30

Fao referncia a expresso gaia cincia no ao ttulo da obra. Com a expresso gaia cincia Nietzsche nos remete noo de provenal de gaya scienza: aquela unidade de trovador, cavaleiro e esprito livre com que a maravilhosa cultura dos provenais se distingue de todas as culturas equvocas. (EH, A gaia cincia, p. 81). A gaia cincia a arte dos trovadores provenais. 31 BM 22, p. 28.

inveno da alegria. Trata-se de uma filosofia que afirma que preciso amar o necessrio e no abolir o sofrimento, pelo contrrio ele parte da vida e por isso, conhecimento. Desse modo a filosofia de Nietzsche joga com a confluncia integradora entre sabedoria e vida.

3. A ruptura com o pessimismo de Schopenhauer No aforismo 370 de A gaia cincia, que continuamos a tratar, Nietzsche admite a influncia e a sua m compreenso acerca da filosofia pessimista, que ele identificou com o pensamento de Schopenhauer, como tambm com a msica de Wagner, que era para ele o reflexo dessa filosofia na arte. Nietzsche, desse modo, nos mostra a expresso do romantismo tanto na filosofia quanto na arte. Para ele, a filosofia pessimista o mesmo que pessimismo romntico. Isso permite afirmar que a filosofia pessimista, mais propriamente o pessimismo schopenhauriano chamado por ele de pessimismo romntico. O que caracteriza essa analogia que aproxima romantismo e pessimismo a separao entre a coisa em si e o fenmeno. Do reconhecimento dessa analogia se destaca a oposio e superao de Nietzsche filosofia pessimista, que ir apresentar outro tipo de pessimismo. A discusso proposta nesse texto trazer superfcie a diferena entre as duas espcies de pessimismo, pessimismo romntico e pessimismo dionisaco, que trata Nietzsche diferena que ele mesmo nos chama ateno. E o ponto de partida para a percepo dessa diferena a superao e ruptura, que caracterizam a libertao do discpulo Nietzsche e o surgimento do filsofo Nietzsche o inventor do esprito livre32. Em se tratando do homem moderno, a distino de dois tipos de pessimistas se prolonga concepo de dois tipos humanos: os que sofrem de empobrecimento de vida, pois a negam e os que sofrem de abundncia, que de forma exuberante dizem sim. O pessimismo romntico identificado com o pessimismo moderno, no qual segundo nosso autor, exprime-se o niilismo do mundo moderno, que o fracasso histrico dos valores superiores sustentados no ocidente em face do desenvolvimento cientfico e tecnolgico, sejam esses valores morais, estticos ou religiosos. No entanto, a gravidade dessa constatao restrita: O pessimismo moderno uma expresso da inutilidade do mundo moderno no do

32

Cf. Prlogo de HDH, p.7.

mundo e da existncia33. Esse pessimismo, Nietzsche o identifica como um niilismo passivo. O pessimismo dionisaco, por sua vez, expressa um niilismo ativo. Assim, h dois tipos de posturas nas quais o pessimismo se expressa, quer dizer a maneira de expressar-se sobre a vida caracteriza o tipo de pessimista e niilista. Nietzsche faz seu ataque ao pessimismo romntico no homem, propriamente no homem moderno, para o qual Deus est morto, mas que restaram suas sombras ou devemos entender que restaram as idias modernas: humanidade, progresso, cincia e sociedade livre, igualdade. Esse homem empobrecido de vida e de vontade, porque sem vontade prpria; a ocasio para esse empobrecimento pode ser a opresso pela civilizao, pode ser a represso de sua natureza, que o torna por fim desprovido de si. ainda, sem perder de vista, descrente nos valores nos quais se acreditava: (...) O homem moderno tenta acreditar logo neste, logo naquele outro valor e depois o deixa de lado e: o crculo dos valores que sobreviveram e que foram postos de lado torna-se cada vez mais cheio; o vazio e a pobreza de valores faz-se sentir cada vez mais; (...)34. Contudo, , ainda, indivduo soberano. Importa notar, nesse sentido, que o aspecto da ruptura est vinculado ao aprendizado da perspectiva dos valores e hierarquia dos valores. Quero cuidar aqui para esse gap: o que interessa em todo caso para Nietzsche e, principalmente, para o segundo Nietzsche a pergunta pelo valor da moral35. O esprito livre faz a pergunta pelas condies de criao dos valores e averigua o poder de cunhar valores com a pesquisa genealgica. Da que a pesquisa recai na constatao de que uma tica aristocrtica, na qual atuam nobres e escravos, foi substituda pela moral altrusta, na qual comanda o preceito de todos somos iguais. O que impele a pesquisa de Nietzsche confirmar que com o declnio da tica aristocrtica se eleva a moral altrusta. Contra a moral do altrusmo, ele se pe como crtico da moral e se defronta com a percepo de que ela tem sido considerada de maneira ahistrica, como tendo uma origem oculta. contra, portanto, a origem em si da moral, contra o carter do em si das coisas, que o filsofo se posta. O aspecto percebido por Nietzsche que com o declnio dos juzos de valor aristocrticos decai o pathos da distncia, que distingue a perspectiva dos criadores de valores, que so os nobres: O direito dos senhores de dar nomes vai to longe, que nos permitiramos conceber a prpria origem da linguagem como expresso do poder dos senhores: eles dizem isto isto36. Assim, comea a investigao de como so criados os valores, de como so feitas as avaliaes morais, a partir do estudo do juzo de valor bom: Devido a essa providncia, j33 34

Fragmento Pstumo 1[194] outono de 1885-primavera de 1886, p.218. Frag. Pstumo, 11 [119], p. 265. 35 A, Prlogo, 5, p.11. 36 GM I, 2. p 19.

em princpio a palavra bom no ligada necessariamente s aes no egostas, como quer a superstio daqueles genealogistas da moral. somente com um declnio dos juzos de valor aristocrticos que essa oposio egosta e no egosta se impe mais e mais conscincia humana , para utilizar minha linguagem, o instinto de rebanho, que com ela toma finalmente a palavra (e as palavras)37. Mas tudo isso ocorreu de modo lento, uma pesquisa. No prlogo de Aurora, o pensador um ser subterrneo que escava lentamente, avanando nas profundezas, quando comea a investigar uma velha confiana: eu me pus a solapar nossa confiana na moral38. O poder de cunhar valores a expresso do poder mesmo. Em Nietzsche vida, valor e moral esto imbricados. No entanto, o que mais nos interessa deixar claro que romper com o romantismo romper com a decadncia na arte e na filosofia. Isso para Nietzsche significa defrontar-se com Schopenhauer:No fundo interessava-me algo bem mais importante que revolver hipteses, minhas ou alheias, acerca da origem da moral (...). Para mim, tratava-se do valor da moral e nisso eu tinha de me defrontar sobretudo com meu grande mestre Schopenhauer, ao qual aquele livro [O Nascimento da Tragdia], a paixo e a secreta oposio daquele livro se dirigem, como a um contemporneo.(...). Tratava-se em especial, do valor do no-egosmo, dos instintos de compaixo, abnegao, sacrifcio, que precisamente Schopenhauer havia dourado, divinizado, idealizado, por to longo tempo que afinal eles ficaram como valores em si, com base nos quais ele disse no vidas e a si mesmo. Mas precisamente contra esses instintos manifestava-se em mim uma desconfiana cada vez mais radical , um ceticismo cada vez mais profundo! Precisamente nisso enxerguei o grande perigo para a humanidade, sua mais sublime seduo e tentao a qu? ao nada? precisamente nisso enxerguei o comeo do fim, o ponto morto, o cansao que olha para trs, a vontade que se volta contra a vida, a ltima doena anunciando-se terna e melanclica: eu compreendi a moral da compaixo (...)39.

O empobrecimento de vida caracteriza a moral de escravos. oportuno, ento, falar dos dois tipos bsicos de morais que Nietzsche descobre: a moral dos nobres e a moral de escravos. A propsito:H uma moral dos nobres e uma moral de escravos; (...) at mesmo num homem, no interior de uma s alma. (...) No primeiro caso, quando os dominantes determinam o conceito de bom, so os estados de alma elevados e orgulhosos que so considerados distintivos e determinantes da hierarquia. (...) O homem de espcie nobre se sente como aquele que determina valores, ele no tem necessidade de ser abonado, ele julga: o que me prejudicial prejudicial em si. (...) O que faz uma moral dos dominantes parecer mais estranha e penosa para o gosto atual, no entanto o rigor do seu princpio bsico de que apenas frente aos iguais existem deveres; (...) diferente como o segundo tipo de moral, a moral de37 38

GM I, 2, p. 19. A, Prlogo, 1, p. 10. 39 GM, Prlogo, 5.

escravos. Supondo que os violentados, oprimidos, prisioneiros, sofredores, inseguros e cansados de si moralizem: o que tero em comum suas valoraes morais? Provavelmente a suspeita pessimista face a toda a situao do homem achar tambm expresso, talvez uma condenao do homem e de sua situao.40

A atitude do pessimista de negar o mundo, pois o mundo fonte de sofrimento, resulta o homem moderno, vtima do cansao que precisa de um sentido e uma compreensibilidade conceitual da existncia, pois s assim tem confiana; em suma, esse pessimista precisa de consolo, precisa do ideal. O compromisso de Nietzsche parece ser o de reverter esse quadro do ideal, evocando a afirmao da vida a todos capazes da mais dura viso, recomendando a afirmar o que h de necessrio nas ocasies, a amar o destino: Quero cada vez mais aprender a ver como belo o que necessrio nas coisas. Amor fati: seja este, doravante, o meu amor!41 Dessa forma, no h mais pessimismo, h o dizer sim vida. Aqui o impulso dionisaco, reprimido pela cincia outrora, revive para expandir, afirmar a vida, com seu quantum de aparncia, de iluso, de transfigurao, necessrios para suportar a vida; pois enfim, a arte que estimula o prazer para com a existncia. Supondo que a arte pressupe sempre sofrimento e sofredores 42 Nietzsche detecta que h dois tipos de pessimistas na humanidade, dois tipos de postura nas quais o pessimismo se expressa. Desse modo, como psiclogo, atravs de uma inferncia regressiva, distinguir, portanto, qual o anseio que se faz criador, qual o anseio do artista. Vale notar, desse modo, as invocaes para um jovial, feliz e dinmico saber, um novo saber, no tocante ao anseio do criador, que partem de Nietzsche em favor da arte. Nietzsche faz, portanto, uma inferncia regressiva: a inferncia que vai da obra ao autor, do ato ao agente, do ideal quele que dele necessita, de todo modo de pensar e valorar necessidade que por trs dele [do modo de pensar e valorar] comanda43. Dessa maneira de inferir, ocorre uma ruptura com a tradio, e com sua diviso de mundos: um mundo aparente e um mundo essencial. Conclui-se da, que o ideal investigado a partir da necessidade que o engendra. Isso caracteriza o retorno do saber vida. nesse sentido que Nietzsche faz a pergunta sobre a causa da criao: Pergunto, em cada caso, foi a fome ou a abundncia que a se fez criadora?44, ou seja, qual a necessidade que a se fez criadora? A avidez por algo idealizado, com sentido fixo e por isso consolador ou a expanso de vida, que inclui a destruio, a mudana, que afirma sua alegria e sofrimento, e ainda diz sim?40 41

BM 260, p. 172 e ss. GC 276, p. 187. 42 GC 370, p. 272. 43 GC 370, p. 272. 44 GC 370, p. 273.

A iluso romntica e a iluso dionisaca partem de vontades distintas: para o romntico a vida insuportvel, para o artista trgico a vida enganadora e cheia de incertezas. O romntico cria com demasiada melancolia suas obras, ele ignorante acerca de sua dor, ele precisa de consolo. O estado molesto seu ser, seu remdio a vontade de fixar, de eternizar, de ser45. Os adoradores do profundo se contrastam aos adoradores das formas dos tons e das palavras, da superfcie; estes tm vontade de transbordamento, por um excesso de energia, desejam mudana, devir. Os primeiros amam o ideal e, os segundos, o experimento, as vivncias. Talvez, acerca do idealismo, Nietzsche deseja esclarecer que as idias so sedutoras piores que os sentidos46. Em A gaia cincia, podemos ver Nietzsche explicitar seu rompimento com a filosofia de Schopenhauer que, segundo ele, marcada pelo gosto pela superficialidade, e desse modo, oposta a viso do romantismo, marcado pela profundidade no ideal, algo externo. Para ele, a crena fundamental dos metafsicos a crena na oposio de valores. Algo externo e interno foi uma maneira para mostrar qual profundidade refere Nietzsche a respeito dos dois pessimismos aqui tratados. Portanto, no faz sentido para Nietzsche falar-se em um mundo interno e outro externo, um mundo essencial e um mundo aparente. H s o mundo, este que nos aparente e que um mundo de erros. A superficialidade vigora como valorizao da aparncia, da vontade de engano. Talvez isso explique um pouco a paixo de Nietzsche pelos gregos, o povo artista por excelncia: (...) Oh, esse gregos! Eles entendiam do viver! Para isto necessrio permanecer valentemente na superfcie, na dobra, na pele, adorar a aparncia, acreditar em formas, tons e palavras, em todo o Olimpo da aparncia! Esses gregos eram superficiais por profundidade! (...)47. Aqui se trata de outra qualidade de profundidade, uma profundidade instintiva, algo interno. Para os gregos, segundo Nietzsche, a vida amada em sua aparncia: eles no se iludem, mas deliberadamente cercam e embelezam a vida com mentiras48. A vontade de verdade uma expresso muito cara nos estudos da filosofia nietzschiana para denotar o conhecimento como inveno, mais propriamente, e que tambm faz referncia ao instinto da crena humana49 na verdade. A vontade de verdade todo esforo para o alcance do conhecimento, caracterizada como uma vontade de no enganar e principalmente no se enganar. Desse modo, Nietzsche vai se opor verdade postulada pela metafsica como valor superior. Ento, fundamental perceber que a verdade, no caso como ele a v, no seria uma busca por algo fixo e determinado, mas uma determinao ativa, um processo determinao. Em um fragmento pstumo: Assim, a verdade45 46

GC 370, p. 273. GC 372, p. 275. 47 GC, Prlogo, 4, p. 15. 48 HDH 154, p. 119. 49 Cf. MACHADO, p. 36.

no alguma coisa que existiria para ser encontrada e descoberta mas alguma coisas que deve ser criada e que d nome a um processo, mas ainda, a uma vontade de ultrapassar que no tem fim: introduzir verdade como processus infinintum, determinao ativa e no como devir consciente de algo que seria em si firme e determinado. Nome prprio da vontade 50. Em outro fragmento: Nosso mundo como aparncia, como erro mas como a aparncia e o erro so possveis? (a verdade no designa uma oposio ao erro, mas a posio de certos erros em relao a outros [...])51. Em Alm do bem e do mal, o autor no deixa de advertir que essa questo o que mais pode soar estranho em sua filosofia, mas a questo levantada por ele acerca da verdade ou da falsidade dos juzos : em que medida os juzos promovem ou conservam a vida. Da inferir que: Os juzos mais falsos (entre os quais os juzos sintticos a priori) nos so os mais indispensveis, e que sem permitir a vigncia das fices lgicas, sem medir a realidade com o mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo, o homem no poderia viver. Tambm em Alm do bem e do mal Nietzsche diz que estes juzos so ticas-de-perspectivas da vida: Juzos sintticos a priori no deveriam absolutamente ser possveis: no temos direito a eles, em nossa boca so somente juzos falsos. Mas claro que temos de crer em sua verdade, uma crena de fachada e evidncia que pertence tica-de-perspectivas da vida.52 Julgamentos sintticos so, a priori, bastante possveis, porm so falsos53. Voltaremos agora ao assunto desse subttulo, sobre os dois tipos de sofredores. H, portanto, segundo o filsofo, dois tipos de pessimistas na humanidade: os que sofrem de embriaguez idealista, espritos atados vontade de verdade; e os que sofrem de embriaguez dionisaca, um sentimento orgistico de liberdade54. Portanto, h dois tipos de embriaguez. interessante perceber que os dois tipos de anseios podem revelar-se ambguos. No pessimista dionisaco pode se revelar tanto o anseio de destruio, mudana, devir, que destri para gerar novos valores; quanto o dio do malogrado, que destri porque toda a existncia, todo o ser o irrita55. O pessimismo dos romnticos tambm se mostra ambguo: A vontade de eternizar ou pode vir da gratido e do amor, para cujo exemplo Nietzsche cita Goethe, mas pode ser a tirnica vontade de um grave sofredor que gostaria de dar ao que tem de mais

50 51

Frag. Pstumo, 9 [91], outono de 1887. Retirado do livro Nietzsche e a Verdade, p. 104. Frag. Pstumo, 34 [247] , p. 205. 52 BM 11, p. 18. 53 Frag. Pstumo 34 [71], p. 204. 54 NT, 21, p. 123. 55 GC 370, p. 273.

pessoal, autntica idiossincrasia de seu sofrer, a imagem da sua tortura56, que para Nietzsche o caso de Schopenhauer. O pessimismo, no caso em que conjugado com o romantismo, atacado porque o ideal despreza a imanncia, isso se voltar contra a vida e contra o mundo. O esprito se torna livre porque est vivo e, por isso, rompe com o romantismo. O pathos do esprito livre rompe, dessa maneira, com a decadncia:[...] quem como eu, impelido por um af misterioso, se esforou em pensar o pessimismo at o fundo, e libert-lo da estreiteza e singeleza meio crist, meio alem, com que ele afinal se apresentou neste sculo, na forma da filosofia schopenhauriana; (...) talvez esse algum, sem que o quisesse realmente, tenha aberto os olhos para o ideal contrrio: o ideal do homem mais exuberante, mais vivo e mais afirmador do mundo, que no s aprendeu a se resignar e suportar tudo o que existiu e , mas deseja t-lo novamente, tal como existiu e , por a eternidade, gritando incessantemente da capo [do incio]57.

Avesso a toda atitude extramundo, Nietzsche cria uma filosofia experimental58, que procura fazer revelar ao indivduo a afirmao de si, o cultivo de si: o pathos da distncia deve ser entendido como a posio na qual o indivduo tece avaliaes a partir de si, e no a partir de fora. Esse indivduo enfrenta o desafio de se firmar inteiro diante da mar que se chama maioria, de procurar seu centro, sua vida instintiva, essa filosofia a voluntria procura tambm dos lados execrados, e infames da existncia59, a estes tambm diz sim: o grande exerccio proposto por Nietzsche afastar a m conscincia e a culpa, e impregnar o pensamento e a atividade do indivduo de sentimento dionisaco, ou seja, um dizer sim vida. Assim vale constar a mensagem do eterno retorno, pela qual o mundo se move em um processo ou curso circular, e dessa forma se defronta com a idia de uma finalidade do mundo ou do ser. A felicidade algo particular e, tudo o que existiu e , parte de um processo que deve ser querido novamente, no com um sentido a um fim, mas porque se repete, e assim na verdade, quer sua vontade, assim quer seu destino. No um foi assim, mas um assim eu quis, diz toda vontade criadora, como ensina Zaratustra60. Por isso, vejamos que a fuso da viso dionisaca com o eterno retorno, traz a possibilidade da correo dos hbitos e das convices, da seleo de opinies. Sobre a vontade que um tema privilegiado nas filosofias de Schopenhaeur e de Nietzsche: ela no mais entendida por Nietzsche como eterna, uno

56 57

GC 370, p. 273. BM 56, p. 59. 58 NIETZSCHE. O Eterno Retorno, 1041, p. 444-5. 59 Idem. 60 Za, Da redeno, p. 172.

originrio, como coisa em si. Ela uma fora organizatria e o esprito livre experimenta uma liberdade da vontade que se despede de toda crena61 em algo pr-estabelecido. Mas ateno: a filosofia de Nietzsche se mostra, sim, como um niilismo; mas ele est no pessimismo da fora, que constata e pode superar o sem sentido. Por isso, o sem sentido do sentimento niilista que nega a vida totalmente refutado. O niilismo radical de Nietzsche tambm exclui o sentido, todavia nele afirma-se a repetio:Para a vtima do cansao, a repetio o niilismo mais selvagem. Encurrala o escravo, suscita o seu querer de autodestruio. Pensamento indigesto, paralisador. a repetio que deve ser oposta moral: os seus efeitos so contrrios aos dos valores conservativos. Fazer a moral extinguir-se: sem ela, desaparecero os doentes. Produzir, pois, o pensamento mais temvel: substituir as interpretaes que promovem a identidade por uma s a que suscita as diferenas62.

Abrindo espao para a entrada do movimento na filosofia, o pessimismo que expressa Nietzsche , portanto, ativo, e isso quer dizer que afirmador, por isso criador: Filosofia esse impulso tirnico (...), de criao do mundo63. Por fim, criar comunicar: Toda criao comunicao. Aquele que conhece, que cria, que ama um s64. A concepo de pessimismo de Nietzsche um caminho para o dizer sim, para a experincia dionisaca. Esse dizer sim significa tomar uma postura artstica, criadora, afirmativa da vida, da eterna vida. Mas esse caminho para o sim tambm uma busca voluntria dos lados terrveis e questionveis da existncia:Quanto de verdade suporta e ousa um esprito? Questo de sua fora. Tal pessimismo poderia desembocar nessa forma dionisaca de dizer sim ao mundo, tal como ela : at o desejo de seu absoluto retorno e de sua absoluta eternidade. Com isso, seria possvel um novo ideal de filosofia e sensibilidade. 65

A fora do dizer sim e o ensinamento do eterno retorno so complementares:[cont.] Conceber os lados negados da existncia at agora no apenas como necessrios, mas tambm como desejveis; e no apenas como desejveis em vista aos lados afirmados at agora (como seu complemento e sua condio prvia), mas por si mesmos, como os lados mais poderosos, frutferos e verdadeiros da existncia, nos quais sua vontade se pronuncia com mais clareza.66

61 62

GC 347, p. 241. KOSSOVITCH, p. 136-7. 63 BM 9, p. 15. 64 Frag, Pstumo, 4 [23], p. 130. 65 Frag. Pstumo, 10[3] (138), p. 250. 66 Idem.

4. Pessimismo dionisaco e o esprito livre O caro conceito de trgico, considerando sua presena nessa trilha que distingue as expresses pessimistas, parece estar ausente naquele que precisa da verdade de modo fixada e imutvel como alvio e anteparo do medo. Veremos que atravs da inverso dos valores, covardia e medo foram transformados na virtude que modela a avaliao tpica da moral de escravos. A conotao do sentido do trgico faz referncia a um estado de conscincia dilacerada, dividida, geralmente entre o transbordamento dos instintos e a lei. Em O Nascimento da Tragdia, Nietzsche comunica uma importante idia: a vida s se justifica enquanto fenmeno esttico. Na tentativa de autocrtica de 1886 que prefacia O Nascimento da Tragdia, o filsofo que tornou seu esprito livre pronuncia-se num tom de admoestao, justamente sobre como a incidncia do pensamento schopenhaueriano estragou a sua interpretao do problema grego, mais propriamente a interpretao sobre o trgico naquela obra; e, assim, chama ateno para no ser interpretado como um romntico, mesmo se durante certo perodo esteve envolvido com tal arte e pensamento uma questo mesmo de autocrtica:O vosso livro [Nietzsche pergunta a ele mesmo] pessimista no ele mesmo uma pea de anti-helenismo e romantismo, ele prprio algo to inebriante quanto obnubilante, em todo caso um narctico (...)? Mas ele adverte: No seria necessrio que o homem trgico dessa cultura, em sua auto-educao para o srio e para o horror, devesse desejar uma e nova arte, a arte do consolo metafsico (...). No seria necessrio? ... No trs vezes no, jovens romnticos! No seria necessrio! Mas muito provvel que isso finde assim, que vs assim findeis, quer dizer consolados, como est escrito. Apesar de toda a auto-educao para o srio e para o horror, metafisicamente consolados, em suma, como findam os romnticos cristmente... No! Vs devereis aprender primeiro a arte do consolo deste lado de c vs devereis aprender a rir, meus jovens amigos, se todavia quereis continuar sendo completamente pessimistas; talvez, em conseqncia disso, como ridentes mandeis ao diabo toda a consoladoria metafsica e metafsica em primeiro lugar!67

Para o pessimista romntico a vida figura como um negcio que no valesse a pena os custos nela gastos: A vida, o mundo, para ele, no proporcionam satisfao e no so dignos de nosso apego68. Enquanto que para o mais rico em plenitude de vida, o deus e homem dionisaco, vale repetir: Lhe permitido no s a viso do terrvel e discutvel, mas mesmo o ato terrvel e discutvel e todo o luxo de destruio(...), nele o mau, sem sentido e feio parece que permitido, em virtude de um excedente de foras69.67 68

NT, Tentativa de autocrtica, 7, p.21. Grifo meu. Cf. NT, Tentativa de autocrtica, 6, p.20. 69 GC 370, 273.

A viso do pessimismo dionisaco como requer o filsofo: uma intuio que pertence a mim, inseparavelmente minha.70 Considerando que o desejo da intelectualidade alem nesse perodo era o de restabelecer o classicismo, e mesmo que Nietzsche tenha seu maior apreo voltado para a cultura grega antiga o seu pessimismo dionisaco que faz oposio ao romntico, e no o neoclassicismo, que por sua vez sofre recorrentes crticas de Nietzsche. Se, por um lado, fica claro que Nietzsche no pretende abolir o sofrimento da vida arrefecendo as tenses e os afetos atravs de consoladorias sistmicas, por outro lado, o aspecto monstruoso do dionisaco descarregado na criao, canalizado e transformado em arte. Se em Nietzsche vemos um incentivo ao pessimismo, propriamente a um pessimismo ativo, aquele que destri porque quer futuro, pleno de foras plsticas regeneradoras que criam valores, e no um pessimismo passivo, daquele que sofre de esperana, o eterno insatisfeito, o abnegado. O sentimento do dionisaco, onde o mltiplo se torna um, se transforma em fenmeno esttico. Na verdade, ele se tornou um fenmeno esttico com os gregos, pois em se tratando desse sentimento sua expresso se dava com o culto ao deus Dioniso, o deus da fertilidade, que por sua vez tinha razes orientais, portanto, antes do fenmeno tratava-se do dionisaco brbaro. H tanto para compreendermos com a proposio de Nietzsche de que a vida s se justifica enquanto fenmeno esttico, embora especial aqui, atentar para o tratamento de Nietsche sobre o renascimento71 da tragdia. O que devemos entender com esta proposio? Primeiro, Nietzsche entende que o efeito do trgico nos espetculos da tragdia de outra maneira, diferente de como tem sido entendido com a interpretao presente na Potica de Aristteles, ou seja, diferente da filosofia cientfico grega, para a qual: O efeito esttico resulta em defluir unicamente das fontes morais. Porm, o contedo do mito trgico, a superao pelo heri, da sabedoria de Sileno, ou expresso em termos estticos, a superao do feio e do desarmnico consiste em resultar da, dessa superao, um prazer esttico superior; desse modo estamos falando da metafsica de artista do primeiro Nietzsche72. Quando situa o pensamento de Nietzsche em perodos, Alfredo Naffah Neto denomina de primeiro Nietzsche, aquele momento dos grandes elogios a Wagner, envolvido com a metafsica de artista e de segundo Nietzsche o das grandes crticas. Assim, no primeiro Nietzsche compreendemos que o mito pertence a arte, e a arte a transfigurao da feia realidade fenomenal; desse modo, considero o pensamento de Nietzsche como est disposto do Nascimento da Tragdia, entrelaado metafsica de artista, que segue a distino shopenhauriana da vontade em si e do70 71

GC 370, 273. NT 22, p. 133. 72 Cf. nota 3 de Alfredo Naffah Neto, Nietzsche interpreta Wagner: das brumas do Santo Graal rumo alegria cigana de Bizet, p. 91.

fenmeno. Portanto, para que confirmemos essa posio, vejamos o seguinte trecho: (...) o fato de que na vida as coisas se passem realmente de maneira to trgica seria o que menos explicaria a gnese de uma forma artstica, se, ao invs, a arte no for apenas imitao da realidade natural, mas precisamente um suplemento metafsico dessa realidade natural73. A anlise encerrada por Nietzsche a, considera possvel a arte deflagrar sentimentos morais, mas no unicamente. Da ele infere:[...] para aclarar o mito trgico, o primeiro reclamo justamente o de procurar o prazer a ele peculiar na esfera esteticamente pura, sem qualquer intruso no terreno da compaixo, do medo, do moralmente sublime. Como que o feio e o desarmnico, isto , o contedo do mito trgico, podem suscitar um prazer esttico? Aqui se faz agora necessrio, com uma audaz arremetida, saltar para dentro de uma metafsica da arte, retomando a minha proposio anterior, de que a existncia e o mundo aparecem justificados somente como fenmeno esttico: nesse sentido precisamente o mito trgico nos deve convencer de que mesmo o feio e o desarmnico so um jogo artstico que a vontade, na perene plenitude de seu prazer, joga consigo prpria.74

Sobre a apreenso do que seja o efeito trgico, Nietzsche nos faz ouvir que s h uma maneira de torn-lo inteligvel: atravs da msica, da dissonncia musical. Entender o mundo como justificao esttica tambm apreender que:[...] o prazer que o mito trgico gera tem uma ptria idntica sensao prazerosa da dissonncia na msica. O dionisaco, com o seu prazer primordial percebido inclusive na dor, a matriz comum da msica e do mito trgico 75.

Assim, as consideraes sobre a arte de Nietzsche em O Nascimento a Tragdia nos mostram um problema que ser sempre mencionado por ele: o problema da cultura. Nesse livro, ele tambm esclarece que atravs do movimento da cultura vemos o mundo tragicamente e ansiamos ouvir o mundo para alm do trgico76. E deixando um comentrio a esse problema, que bem serve aos nossos ouvidos contemporneos, sobre a cultura moderna ele diz: A gente se pergunta se a febril e to sinistra agitao dessa cultura algo mais do que o agarrar do esfomeado, cata de comida e quem desejaria dar ainda alguma coisa a semelhante cultura, que no consegue saciar-se com tudo quanto engole e a cujo contato o mais vigoroso e saudvel alimento costuma transforma-se em Histria e Crtica?77

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NT, 24, p. 139. NT 24, p. 139 75 NT 24, p. 139. 76 Cf. NT 23 e 24, p. 134 e ss. 77 NT 23, p. 135.

Sobre a deciso de Nietzsche em comandar seu pensamento em direo ao dionisaco estejamos certo que figura como uma flecha contra o cristianismo. Voltar os olhos ao saltitante, alegre, s vezes feroz, aniquilador, devotado sentimento dionisaco sua marca principal, que faz de sua filosofia uma filosofia da mudana, da aceitao do vir-a-ser. E que ao contrrio de uma predileo ao aspecto eminentemente racional da espcie humana, procura incorporar as foras da vida prpria vida, sem perder de vista a sucumbncia, a dor como parte da vida, assim tambm como parte do conhecimento. Nesse sentido, a questo sobre o que conserva a vida muda de foco: a busca pela durabilidade e pelo virtuosismo que so pilares preconizados pelos juzos morais, que aborda a altitude de uma s moral, a moral crist, ope-se, segundo a crtica de Nietzsche, s mltiplas manifestaes do esprito, existncia variada de tipos de sujeito. , ento, sobretudo sob o aspecto do dionisaco, o impulso arte, que a filosofia ganha novamente vida, diga-se: valor interpretativo do mundo, lado a lado com a cincia, tornando possvel a percepo da enorme tarefa do mundo posta diante de si. E os capazes dessa percepo so os espritos livres, que Nietzsche chama de os filsofos do futuro, os novos filsofos, estes, algo diferente de moralistas, idealistas, como a filosofia tem sido preenchida :Como admirar que ns, espritos livres, no sejamos exatamente os espritos mais comunicativos? Que no desejamos revelar, em todo aspecto, do que um esprito pode se liberar, e para onde ele talvez impelido? E no que diz respeito perigosa frmula alm do bem e do mal, com que ao menos evitamos ser confundidos com outros: somos algo diverso de libres penseaurs, liberi pensatori, Freidenker [livres pensadores], ou como quer se chamem esses bravos defensores das idias modernas 78.

Seu pensamento decididamente anti-socrtico, pois, volta-se contra a filosofia cientfico-racional que surge com Scrates, isto , contra qualquer forma de dessensualizao do mundo. Nietzsche considera que Plato cristo antes mesmo do cristianismo. Em O Crepsculo dos dolos um de seus ltimos escritos ele diz: Por fim, minha desconfiana junto Plato vai at o fundo: eu o considero to desviado de todos os instintos fundamentais dos helenos, to moralizado, to preexistentemente cristo ele j tinha o conceito bom como conceito supremo , que gostaria de utilizar em relao a todo fenmeno Plato a dura expresso, (...), [Plato,] o mais alto Idealismo. Assim, o ataque de Nietzsche dirigido contra o platonismo definido como a doutrina dos dois mundos: um mundo sensvel e mutante, que o mundo da aparncia, e o mundo supra-sensvel, eterno e imutvel, que o mundo verdadeiro. Por causa dessa doutrina, que habita na moral crist, Nietzsche desfere seu ataque: a moral crist tem como smile a moral escrava. Diante dessa dureza bom lembrar e ficar claro a78

BM 44, p. 49.

particularidade do problema da moral para Nietzsche, pois ele o tomou como seu problema, diante do qual no encontrou ningum, nem mesmo em livros, que tomasse uma posio pessoal ante a moral79. A relao entre o sentimento dionisaco e a noo de pessimismo ressalta na arte trgica, segundo o entendimento de Nietzsche, a afirmao da vida. Nesse sentido, a formao do esprito livre e o pessimismo dionisaco so correlatos na medida em que o esprito livre incorpora e afirma o sentimento trgico: a experincia dionisaca, cuja embriaguez do sofrimento destri o belo sonho80, a experincia do caos originrio como que imprime uma direo para a transformao, para a plasticidade, para a modelao de si. Essas caractersticas se tornam expressas quando movem em sua filosofia seu rompimento com a filosofia de Schopenhauer e a msica de Wagner. Portanto, uma considerao sobre a arte trgica da maneira como foi investigada e percebida por Nietzsche, como unio do impulso apolneo e do impulso dionisaco, necessria aqui: relativo ao dionisaco est o apolneo, nunca concebidos isoladamente e, ainda, representam reinos estticos separados: a imagem e a msica. O impulso apolneo caracterizado pela fora da imagem, do conceito, do ensinamento tico, da simpatia. O impulso dionisaco por sua vez arrasta o homem no caos orgistico: o sem fundo de onde se produzem todas as formas, que traduz um pathos alegre, porm, sem abolir a dor, por isso terrvel, temerrio e fatal; o sofrimento no qual se auto-aniquila, aniquila o ego e se funde a natureza e aos outros homens em xtase com o som, se me lcito dizer sem harmonia. Reside, portanto, na arte a unio desses dois aspectos. Por fim, a arte trgica a unio do aspecto da iluso apolnea transfigurativa com o som embriagante do dionisaco. Atravs do drama, portanto, que melhor apreendemos esse jogo. A respeito do drama, ora o dionisaco se mostra a servio do apolneo, ora o terrvel dionisaco prepondera mostrando o engano apolneo, da beleza, da medida, da perfeio rasgando o vu que envolve o efeito dionisaco, to poderoso que leva o drama apolneo a submeter sua imagem (a palavra) sabedoria dionisaca ( msica). Para melhor ponderarmos o assunto, Alfredo Naffah Neto, em seu artigo: Nietzsche interpreta Wagner: das brumas do Santo Graal rumo alegria cigana de Bizet 81, nos auxilia a entender sobre a relao de Nietzsche com a msica. Essa relao nos esclarece, segundo ele, que atravs dela possvel perceber o redirecionamento da arte trgica proposto por Nietzsche no mundo contemporneo. Esse redirecionamento muito importante a partir do ponto de vista79 80

GC 345, p. 237. MACHADO, p. 22. 81 NAFFAH NETO, p. 89.

do presente trabalho, porque marca, cria a postura, a posio do esprito livre. No momento, importa notar que o conceito de trgico na msica e obra de Wagner no satisfaz a reflexo de Nietzsche sobre esse conceito. Depois de seu rompimento com Wagner, Nietzsche v as caractersticas da arte trgica, o esprito trgico, presente muito mais na msica de Bizet do que em Wagner. A mais grave acusao de Nietzsche contra Wagner sobre a falta de unidade de estilo em sua obra, que esteve sempre longe de uma produo artstica homognea e unidirecionada82, demonstrando-a, por variadas facetas: trgica, crist, nacionalista, anti-semita etc. Desse modo, a mudana de avaliao de Nietzsche sobre a msica de Wagner que caracteriza sua segunda fase, autodenominado esprito livre, comentada por Naffah Neto:[...] poucos se lembraram de que, para Nietzsche, o trgico sempre carregara, de fato, o carter do leve, do alegre, ao mesmo tempo em que exprimia o mais doloroso sofrimento (ele chegara mesmo a comentar que os gregos deviam dar boas gargalhadas dos enganos contnuos dos heris). Tambm no perceberam que a leveza, a alegria e a flexibilidade da msica popular, presentes na Carmen, tornavam-na mais prxima do esprito trgico nietzschiano do que toda a msica wagneriana, pouco importando que esta pudesse ser infinitas vezes mais refinada, inovadora e revolucionria do que a [msica popular] de Bizet. A revoluo aspirada por Nietzsche era de outra ndole; no bastava ser revoluo esttica, tinha, fundamentalmente, que servir vida, sua expanso, ao seu enriquecimento83.

Por fim, importantssimo perceber a nuance esttica da filosofia de Nietzsche. E, por conseguinte, entender a arte como realizao existencial no quer dizer que sua filosofia seja uma filosofia da existncia. A filosofia de Nietzsche supervaloriza a arte como modelo alternativo para a cincia e a moral, e ela um estimulante para a vida. Ela deseja incutir, criar uma superabundncia de foras e o sentimento de prazer para com a existncia, e se assim o faz porque traduz uma aceitao total da vida. Como esclarece Roberto Machado: Se a arte se ope cincia possuindo mais valor do que ela e tem profundo parentesco com a vida porque valoriza a vida integralmente, porque um sim triunfante ao que nela existe de terrvel, problemtico e pavoroso84.

82 83

Idem, p. 89. Idem, p. 96. 84 MACHADO, p. 107/108.

Captulo II O PROBLEMA DA CINCIA E DA CONSCINCIA

1. A conscincia intelectual Logo no incio de A gaia cincia, uma denominao para uma feliz cincia, lemos que essa futura cincia ensinar o riso para as conscincias do futuro, com a apreenso de que podemos rir do existir. Rir do problema do existir. Rir a partir da verdade inteira, quer dizer, o senso de verdade para a necessidade de transfigurao da realidade, para a necessidade da aparncia, do falso. A gaia cincia, assim rene a sabedoria trgica com o riso dionisaco. Seu engenho coloca, desse modo, o problema da totalidade da existncia afastando o sentido de finalidade da existncia. Com ela a vontade de verdade (que a crena na verdade, considerada como valor superior, e, sustentada pela cincia e pela moral como objetividade e desinteresse) desmascarada, e em contrapartida nos ensina a dar ouvidos a conscincia: a conscincia no como rgo para a verdade mas como rgo de direo; para o esprito se tornar livre preciso que ele tenha conscincia do orgulho que se criou em torno do intelecto, e tambm do carter errneo85 de todas as coisas. O problema da existncia se caracteriza quando a questo de saber quem eu sou, que mundo esse, que sentido tem tudo isso se apresenta e se tateia respostas. Sobre o problema da existncia Nietzsche se pronuncia: preciso conceder a todos a seguinte pergunta: ser que minha existncia, calculada em relao minha no-existncia, algo que possa ser justificado?86. Acerca de como sanar esse problema com o riso que se d um passo adiante em todo modo de pensar que despreza a existncia. Do ponto de vista psicolgico e no moral, Nietzsche procura clarear o modo como toda frmula, toda prescrio conceitual, todo tu deves investido contra o sujeito de modo que essas medidas nos fazem acreditar numa finalidade moral (moral que simultaneamente causa e efeito, veneno e blsamo, mscara e inibio, sintoma e medicamento87) da existncia; e como nos habituamos a seu poder de orientao de dar sentido e de julgar todo tipo de expresso: mas que voc oua este ou aquele juzo como voz da conscincia, isto , que sinta algo como certo, pode ser devido a que voc nunca tenha meditado sobre si e tenha cegamente85 86

BM 34, p. 40. Frag. post. 25 [487], p. 180. 87 GM, Prlogo, 6, p. 12.

acolhido o que desde a infncia lhe foi designado como certo. Dessa forma, Nietzsche deseja refletir que a crena na finalidade moral da existncia torna o sujeito esquecido de que ele mesmo todo necessidade. Todavia, necessidade, no pensamento de Nietzsche, deve ser entendida tambm como o que normativo, regra, inscrita no processo psicofisiolgico e determinada por um quantum de fora, de impulso. No entanto, necessidade aqui no deve ser confundida com determinismo. No a mesma avistada pelo mecanicismo - materialista ou positivista, seu sentido contrrio a um determinismo universal, regular e calculvel do ente, ao invs apreciado a volio incessante, enquanto nsia de imposio de poder. Mais precisamente em vista do presente assunto, interessa perceber, que o necessrio est imantado gerao da perspectiva dos valores, e esta est fundida num corpo de modo singular em via de crescimento, e no de conservao. Desse modo, tocamos na problemtica do complexo conceito de vontade de poder. Nesse sentido, contamos com a interpretao de Mller-Lauter, a propsito da vontade de poder, destacando esse dito: Nietzsche remete todas nossas atividades intelectuais e anmicas a avaliaes (Wertschtzugen) que correspondem aos nossos impulsos e suas condies de existncia88. Esse conceito muito importante na filosofia de Nietzsche, um conceito centralizador. Nesse instante, a meno a ele feita quer referir a relao intrnseca entre o intelecto, a vontade de verdade e nossas apreciaes de valor, ou seja, a est inscrita a relao entre o poder da natureza e o poder sobre a natureza, melhor dizendo, a interao/conscincia e a presuno humana relativos a ela. Para o comeo de nossa reflexo, tomemos que para o filsofo, o intelecto se desenvolveu como rgo para sobrevivncia, ele no tem o privilgio de comando. Para a apreenso do que o necessrio que fala Nietzsche, a dois fragmentos pstumos remetonos:O intelecto a ferramenta do nosso instinto e nada mais, ele nunca se torna livre. Ele se agua na luta dos diferentes instintos e, com isso, refina a atividade de cada instinto particular. Na nossa maior justia e probidade encontra-se a vontade de poder e de infalibilidade da nossa pessoa: ceticismo apenas com vistas a toda autoridade, no queremos ser enganados, tampouco por nossos instintos! Mas o que realmente no quer nesse caso? Certamente um instinto89.

88 89

MLLER-LAUTER, Wolfgang. 1997, p. 56. Frag. post. 6 [130], p. 98.

O conhecimento como um instinto precisamente a referncia que faz Nietzsche a um impulso verdade90, a uma convico de posse da verdade. Ele no includo entre os instintos bsicos. O conhecimento como sugere Nietzsche no texto Sobre verdade e mentira no sentido extramoral uma inveno de animais inteligentes91. O intelecto um meio de conservao do indivduo em meio a vida social. No h uma inclinao natural ao conhecimento, o conhecimento serve como meio de sobrevivncia e conservao de um indivduo entre outros indivduos. O conhecimento uma inveno. No queremos ser enganados nem pela nosso prpria natureza, queremos o conhecimento. Porm, o conhecimento um disfarce, ademais, o que a filosofia de Nietzsche pretende deixar claro que o intelecto s produziu erros. Ela insiste em dizer que no existe a verdade de que h coisas iguais, ou mesmo, coisas, matria a no ser como uma conveno que torna possvel a esse animal mais infeliz, delicado e perecvel sobreviver. Da, Nietzsche afirmar que seu efeito (do conhecimento) mais geral o engano: nos enganamos, mas no queremos ser enganados, no queremos reconhecer o artifcio do intelecto, com o qual somos os seres mais altivos diante de todos os outros. O outro fragmento:Nossas apreciaes determinam quais as coisas aceitamos em geral e como as aceitamos. No entanto, essas apreciaes so inspiradas e reguladas por nossa vontade de poder92.

Com Nietzsche apreendemos que o mundo uma soma de perspectivas. Nossas apreciaes derivam dos sentidos, e vemos o mundo: que tudo o que para cada um seu mundo externo, que ver verde, azul, vermelho, duro, mole so apreciaes legadas e seus distintivos93; e nossos impulsos so sintomas dessas apreciaes. O mundo, o conjunto, perspectivo. Uma soma de perspectivas, de mundos perspectivos que se organizam uns contra os outros. Como nos ensina Mller-Lauter sobre um fragmento pstumo de Nietzsche Todo centrum de fora tem sua perspectiva para o inteiro resto, das foras com as quais se relaciona, isto , sua bem determinada valorao, sua espcie de ao, sua espcie de reao. Assim, falar em um mundo , como instrui o comentador, para Nietzsche, falar de quantidade limitada de fora. E, ao inserir o conceito de fora, Nietzsche vai atribuir mais um elemento: um mundo interno que eu designo de vontade de poder94. Nesse sentido, MllerLauter nos auxilia a entender que para Nietzsche a unidade s possvel enquanto multiplicidade organizada.90

O texto Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, traz a questo de como pde aparecer entre os homens um impulso verdade. 91 NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, 2, p. 53. (Col. Os Pensadores) 92 Frag. post. 26 [414], p. 192. 93 Frag. Pst. 34 [247], p. 205. Cf. texto inteiro na p. 25. 94 Frag. pstumo 36[31] p. 210.

Quando dizemos eu quero queremos dizer na verdade eu preciso acerca do acontecimento. Mas esse eu quero significa sempre se eu puder e tiver foras bastante. Ento resta, s dizer eu quero, quando sentimos que um motivo estimado e elogiado age em ns, e esse eu quero equivaleria ento a eu me ordeno. Assim, aspira-se o domnio sobre os impulsos. Isso vai sugerir a inferncia de um processo interno e sua confluncia com as condies do ambiente e da cultura na formao de conceitos. Temos dentro de ns uma pluralidade de instintos, que diante de uma anarquia a conscincia um rgo de direo. Sobre nossos prs e contras Nietzsche extrai de suas investigaes que inclinao e averso so sintomas da unidade (conceitos) formada pelo processo interno, que um complexo de impulsos. E ainda, prazer e desprazer se apresentam para ns inconcebveis, porque sob o prisma esttico (do belo) ou moral (do bom), so efeitos de complicadas apreciaes reguladas por instintos95, quer dizer, so irracionais. Vale repetir, nesse sentido, guisa de Mller-Lauter: toda avaliao est ligada aos impulsos e a suas condies de existncia. Dessa forma, somos levados a entender que no existe impulso sem uma avaliao. Estar impelido a algo efeito, sintoma de avaliaes. Em Humano demasiado humano um trecho merece toda nossa ateno, diz o pensador:{...} toda averso est ligada a uma avaliao, e igualmente toda inclinao. Um impulso em direo ou para longe de algo, sem o sentimento de querer o que proveitoso ou se esquivar do que nocivo, um impulso sem uma espcie de avaliao cognitiva sobre o valor do objetivo, no existe no homem96.

Porm, por trs de um impulso existe a avaliao. Se sentimos um impulso em direo a algo porque fazemos uma avaliao daquilo para ns como algo proveitoso. Se sentimos um impulso para longe de algo porque fazemos uma avaliao daquilo como algo prejudicial para ns. Todavia, os valores so adquiridos, legados ou prprios: o valor do proveitoso, da vantagem, da certeza ou o valor do nocivo, do prejuzo, do engano. Essa observao de Nietzsche toma um carter maior em Aurora onde assevera que os sentimentos derivam de preconceitos, vejamos o que parece o incio dos estudos para uma genealogia:Confie no seu sentimento! Mas sentimentos no so nada de ltimo , nada de original: por trs deles esto juzos e valoraes, que nos so legados na forma de sentimento [inclinaes e averses]. A inspirao nascida do sentimento neta de um juzo freqentemente errado! e, de todo modo, no de seu prprio juzo! Confiar no sentimento isso significa obedecer mais ao av e av e aos avs deles do que aos deuses que se acham em ns: nossa razo e nossa experincia 97.95 96

Frag. pstumo 26 [94], p. 184. HDH 32, p. 38. 97 A 35, p.35.

Com Nietzsche poderamos talvez supor acerca das avaliaes a todo instante estabelecidas, como camadas permeveis partindo do centro superfcie, camadas do sentir, do querer, do avaliar, e do julgar. De nenhum modo