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Carolina Martins Marta Andrade Martim Villa-Nova Sílvia Carneiro O ESTADO DE POLÍCIA NAS VÉSPERAS DO SÉCULO XVIII EM PORTUGAL Prof. Doutora Cristina Nogueira da Silva História do Estado

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Carolina Martins Marta Andrade

Martim Villa-NovaSílvia Carneiro

O ESTADO DE POLÍCIA NAS VÉSPERAS DOSÉCULO XVIII EM PORTUGAL

Prof. Doutora Cristina Nogueira da Silva

História do Estado

novembro de 2016

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Índice

Introdução....................................................................................................................................3

1. O “Estado” como Estado Polícia...........................................................................................5

2. A disciplina dos corpos, das almas e dos bens..........................................................................8

3.Doutrinas sobre o Estado de Polícia em Portugal......................................................................9

4. O Governo de Polícia..............................................................................................................11

4.1. Gestão da aflição e da perturbação.................................................................................11

4.2. A Intendência Geral da Polícia, uma polícia para tudo....................................................12

4.3. Uma polícia para cada coisa............................................................................................14

4.4. Uma polícia para a vida e para a morte...........................................................................15

Conclusão...................................................................................................................................17

Bibliografia.................................................................................................................................18

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Introdução

Em finais do Século XVII, Portugal vivia sob a esfera de um modelo de governação corporativo, caracterizado por um pluralismo político e uma administração passiva. O poder político em Portugal, em vez de monopolizado por um centro único, aparecia disperso por uma constelação de pólos relativamente autónomos.

Como foi dito por António Hespanha a “imagem inspiradora da compreensão do regime político era a do corpo, com a sua natureza compósita e diferenciada, em que cada parte se autorregulava diferenciadamente, cooperando, à sua maneira e segundo o seu próprio modo de atuar, num bem como que não era a imposição do bem de nenhum dos órgãos – nem sequer da cabeça – mas a composição harmónica de todos os interesses, pelo respeito escrupuloso das esferas de autonomia (jurisdicional) de cada parte”.

Os teóricos do corporativismo defendiam a pluralidade e autonomia das jurisdições e, evidentemente, a legitimidade da autorregulação dos conflitos. O domínio da doutrina do ius commune (direito comum) favorecia este enquadramento do poder e do uso do mesmo, tanto pelos que ocupavam o campo do poder dominante como os que faziam parte do campo do poder dominado.

Neste modelo de organização política, governar era, sobretudo, garantir e preservar a autonomia particular das jurisdições pelo que o paradigma de governação assentava no modelo de decisão típico da justiça. Por outro lado, a lei como vontade do príncipe era um direito ao lado de tantos outros como o direito canónico, as posturas municipais, as tradições e os costumes das comunidades, as obrigações religiosas, as consciências do dever e da obediência. E, como também demonstrou António Hespanha, em “Da “iustitia” à “disciplina”, textos, poder e política no Antigo Regime”, nem sequer a lei do rei era aplicada de forma sistemática e controlada.

Nos primórdios do século XVIII, o modelo de governação corporativo parecia ter chegado ao fim. Estavam em voga na Europa as obras que estabeleciam os estados policiais, formas de organização política nas quais os principais poderes eram os de fiscalização da ordem pública baseada no conhecimento científico - o "Traité de la Police" de Nicolas Delamare (1707) é o exemplo paradigmático desta corrente. Seria, porém, nos territórios de língua alemã regidos por príncipes absolutos que surgiriam, nas pessoas de Justi (1770) e Sonnenfels (1817), os mais destacados teóricos da “Ciência da Polícia” (“Polizeiwissenschaft”).

Em Portugal, a corrente é abastecida pelas obras de Pascoal José de Melo Franco, como "O Novo Código do Direito Público de Portugal", e José Pinheiro de Freitas Soares, cujo "Tractado de polícia medica”, no qual se compreendem todas as matérias que podem servir para organizar um regimento de polícia de saúde, para o interior do reino de Portugal, é responsável por separar os ramos da higiene pública e da polícia médica.

Como observa o autor, considerando-se a relativa prosperidade do reinado de D.João V (1706-1750) e a clara vinculação entre as necessidades financeiras do Absolutismo e o desenvolvimento das técnicas “policiais” de estímulo à atividade económica interna, não seria difícil de explicar o relativo atraso com que surgiram, em Portugal- a causa disso advém das necessidades conjunturais: o grande terremoto de Lisboa de 1755 e a

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subsequente ausência de capacidade do regime para lidar com a situação, que levaram ao preenchimento da esfera política pelo estado de polícia calçado no conhecimento técnico. A disciplinação da vida, transformada num objeto político instrumentalizável pela tecnologia disponível, foi o traço central da fundação do Estado moderno em Portugal, diferentemente de outras formas de organização política do período nas quais imperou o Estado coletivo.

Partindo da análise deste artigo, o texto visa, de forma clara e objetiva, contribuir para o aumento do conhecimento, em matéria doutrinária e de funcionamento do Governo de Polícia em meados do Século XVIII, antes de as mãos invisíveis da liberdade, igualdade e fraternidade, conduzirem os povos à invenção do Estado liberal e à mobilização de uma nova utopia da felicidade.

Para a obtenção deste desiderato, a metodologia utilizada na investigação respeita o seguinte protocolo: 1) quanto aos objectivos, descritiva; 2) quanto aos procedimentos, documental e bibliográfica; e 3) quanto à abordagem do problema, qualitativa. A principal fonte consultada foi o artigo “O Direito de Polícia nas Vésperas do Estado Liberal em Portugal”, José Subtil, além de outros arquivos históricos, legislação, revistas científicas, manuais e revistas profissionais.

Para além da secção inicial introdutória, o texto está estruturado em mais quatro. A segunda secção, expõe a teoria do “Estado” como Estado Polícia, introduzindo o papel preponderante que o príncipe deve ter na regulamentação da vida em sociedade, inaugurando uma nova ordem disciplinar capaz de promover a riqueza dos povos e garantir o “bem comum” da sociedade. Apresentar as principais doutrinas relativas a este novo paradigma político-administrativo em Portugal, nos inícios do Século XVIII, é objetivo da terceira secção. É baseado nestas ideologias que o Estado reorganiza o aparelho político-administrativo, por forma a produzir novas instâncias de decisão e administração, bem como reprodução de novas elites politicas, sociais e burocráticas, alterações desenvolvidas na quarta secção. O texto termina com a sistematização das conclusões e recomendações essenciais do trabalho.

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1. O “Estado” como Estado Polícia

Após a publicação “As Vésperas do Leviathan” (1986), muito do que se tem acreditado sobre o sistema político do Antigo Regime em Portugal, foi confirmado a existência de uma “monarquia corporativa” caracterizada por um pluralismo politico e uma administração passiva que se limitava a “fazer justiça, preservando os direitos adquiridos”.

Porém, devido às práticas administrativas vincadamente interventivas, este sistema político colapsa na segunda metade do séc. XVIII. Daí que seja necessário designar o novo sistema politico imposto como facilmente identificável com a visão anunciada do Estado. Uma melhor caracterização deste novo sistema passa pelos mecanismos disciplinadores do Estado de Policia na medida em que o direito de polícia interferiu em todos os aspetos da vida dos cidadãos, criando normas, procedimentos e orientações através da via administrativa sem recurso aos tribunais.

O facto mais marcante desta nova forma de governar foi a importância estrutural que passou a ser dada aos recursos humanos (como a preservação e prevenção da saúde dos corpos de forma com objetivo de tornar a população mais forte para o seu desenvolvimento).

De um ponto de vista político e institucional, o governo de polícia baseou o seu sistema de poder no superior “interesse público” do Estado, fundando as raízes deste poder no saber cientifico e na acumulação de informações que determinavam as orientações dos seus programas e as decisões consideradas adequadas naquele momento (os juristas, o direito e os procedimentos jurídicos foram eliminados destes propósitos, dando esse papel aos cientistas e investigadores).

Com isto, descobre-se que a saúde pública passaria a ser uma das áreas mais importantes do governo polícia pois esta é que garante uma população saudável e ativa.

A soma de tecnologias e saberes sobre como ajudar, manter e evoluir uma população só podia pertencer ao Estado de Polícia, pois só o poder disciplinador da polícia podia conceber e orientar a sua governação. Governar sobre o principio de polícia era governar de modo a que o Estado se pudesse tornar rico tanto quanto pudesse para proteger os seus súbditos.

As ambições ilimitadas e circulares deste projeto, ao abrir uma rutura com o passado, diluíram também a família no interior da população, tornando-a suscetível de ser instrumentalizada através de técnicas e campanhas, como o estimulo ao casamento e à procriação, uma nova divisão do trabalho entre o homem e a mulher, entre outros.

Se estes instrumentos de ação e intervenção política são novos, o modelo de governo não o era pois este estava enraizado na longa tradição da pastoral cristã. Este tipo de governo significava a determinação e vontade de dirigir os governados num

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determinado rumo (debaixo de saudáveis regimes de saúde pública, bem-estar, tranquilidade espiritual e segurança).

Governar era cuidar tantos das populações como dos indivíduos e do território, tal como o pastor cuida das suas ovelhas, sendo por isso este poder do governante associado ao poder pastoral cristão que dirigia as ovelhas da Igreja.

Porém, apesar dos cuidados especiais dados ao bem-estar da população, o discurso político neste “rebanho” seguia o discurso teológico que estabelecia desigualdades naturais na ordem social que coube a Adão na Criação, a começar pela criança que, como ‘ser’ incapaz de se conduzir a si próprio e próximo dos animais, mas com estatuto de se tornar homem, ganhou um estatuto de proteção privilegiada.

Outros humanos, desprovidos de inteligência, razão e prudência para se poderem dirigir, foram agrupados na categoria de “menores” como loucos, falidos, viúvas, pobres e doentes. A desgraça destes era assistida pelos que eram movidos pelas virtudes e caridade cristã.

A esta assistência devida, passiva e virtuosa, sobrepõe-se a intervenção social do Estado de Polícia que juntou parte destas categorias de diminuídos no grupo de “vagabundos” e estigmatizou-os como parasitas da sociedade por viverem sem trabalhar, à custa dos outros.

A assistência ficou agora reduzida somente aos que não podiam de, de facto, trabalhar devido a incapacidade física. Para os outros, a assistência piedosa foi substituída pela intervenção politica e social regeneradora através de casa pias e outras instituições capazes de os habilitar à dignidade do trabalho.

Para tudo o que foi dito, o “Traité de la Police” de Nicolas Delarme, é significativo na medida em que as atividades da polícia se repartem por três direções: a economia e o comércio (como a produção de bens e a circulação de mercadorias); a ordem e a segurança (como por exemplo a vigilância dos indivíduos perigosos e a educação); e a saúde e a higiene pública (a proteção da infância, conhecimento da morte, entre outros).

A saída para o modelo de governo de polícia viria a servir de motivo para o desenvolvimento de uma nova “ciência” administrativa, ou seja, o poder que o príncipe passava a ter em relação aos homens e às suas riquezas passa a ser um poder onde cuida do bem-estar dos seus súbditos e aumenta as suas riquezas.

Esta administração policial também engendraria uma nova pluralidade de micro poderes e uma conflitualidade aberta com justiça devido às regras destinadas a impor, dispor e regular a disciplina social. Mais precisamente, esta pulsão por governar tudo e todos, criou as suas próprias limitações, a começar por alguns juristas que irão opor as leis fundamentais e o direito à razão de Estado, e ainda por outros que, criticando as práticas de polícia, por serem monstruosas e exorbitantes, amputá-las-ão de legitimidade sempre que precisarem da justiça e dos tribunais para redimirem pleitos e contendas.

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Depois, pela regulação sistémica dos diversos poderes policiais que emergiam quando as tendências de uns não coincidiam com a de outros ou quando eram mesmo contrastantes, quer pela resistência à perda de competências, quer pela “arrogância” dos usurpadores policiais.

Uma terceira limitação é devida à medição do êxito ou fracasso dos resultados da administração intendencial que, em última instância, definirá a utilidade dos novos órgãos o que, sem duvida, sujeitava a atividade de polícia a um mecanismo permanente de auto-avaliação. Desde que deixou de ser crucial saber se as práticas de polícia eram “constitucionais” ou não, os efeitos produzidos pelas mesmas passaram a determinar, em exclusivo, as suas avaliações políticas o que, se lhes emprestou um substancial pragmatismo, também as constrangeu.

E estas validações refletiam, agora, o peso do saber cientifico que se constituía como algo diferente dos limites jurídicos. Esta foi a quarta limitação do governo de polícia que opôs administrativos a cientistas, poderes a saberes, e estabeleceu um novo “regime de verdade”, um conjunto de proposições aceites pela ciência que envolveram a política com enunciados científicos e oferecerem outras soluções “verdadeiras” para problemas sociais.

Esta nova elite fazia cada vez mais depender o bom governo, do governo sábio, a ponto de a coroa vir a abolir a censura dos livros.

A polícia teve também, como um dos seus principais objetivos a prevenção. Esta implicava, entre outras coisas, a vigilância e esta dependia da qualidade da informação, adequada a cada circunstância, lugar e tempo, para orientar a mudança de práticas.

Esta preocupação pela mudança, para prevenir, é essencial para se perceber que o que estava afecto à ação governativa era a criação de condições que permitissem melhorar a produção de bens e qualidades de vida dos vassalos.

Prevenir era, também, preservar e conservar as boas condições existentes, fazer com que estas não se deteriorassem.

O direito de polícia à “portuguesa” deste “governo inteiramente administrativo” foi, fundamentalmente, influenciado pelo tratado de Delamare como se pode ver através de três repositórios: que diz respeito às fundamentações da legislação sobre a polícia; pela escolha dos campos de intervenção; e finalmente, a produção teórica segue de perto o mesmo tratado como sejam as memórias da Academia Real das Ciência sobre a agricultura, as artes e manufaturas.

O terramoto de 1755 foi um acontecimento que proporcionou uma sucessão de inovações administrativas que, com o decorrer dos anos, cimentou um programa de polícia com transparência “ideológica”, consistência racional, técnica e científica, vindo a dar origem à criação da Intendência Geral da Polícia (1760)

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Era um direito de polícia que abrangia toda a população. Que se envolveu na educação, ensino, moral, segurança, saúde, etc. Inspecionou lugares de perigo e contágio e vigiava os circuitos de difusão de ideias, contrabando e doenças. A jurisdição da intendência seria, inclusive, alargada a reedificação da cidade.

O peso e o resultado desta atividade originaram, com o tempo, outras “polícias” especializadas. Os comissários e organismos que assumiram este programa foram vários e fora da alçada dos tribunais e dos conselhos régios. Esta atividade espelha o “irrequietismo” reformista pombalino e mariano-joanino onde emergem inspeções gerais, intendências, superintendências, juntas, mesas, colégios, entre outras.

2. A disciplina dos corpos, das almas e dos bens

Devido à variedade temática da regulação social e política do ius policiae, foram-se autonomizando, áreas especificas de governo que vieram a tornar-se praticamente indisponíveis da justiça e do direito, uma vez que associaram aos seus campos de poder um conjunto de saberes só manipuláveis pelos agentes detentores desses capitais que, na proposta de Nicolas Delamarne, se referiam, em primeiro lugar aos bens do corpo – conceito de higiene pública no final do séc. XVIII, sobretudo a partir do tratado de policia médica (1786-1792) onde é dado um destaque especial às questões da assistência sanitária. Pela mesma altura, a introdução do conceito de vacinação pelo médico britânico Edward Jenner (1796) viria a proporcionar novos instrumentos científicos no combate à mortalidade. A saúde publica transformava-se num objetivo central dos governos, envolvendo políticos, administradores, médicos, veterinários, arquitetos, entre outros.

O que distingue esta mudança é a relação entre o modo de produção de bens e os recursos humanos que deslocaria para a esfera da “população” uma atenção completamente diferente da que tinha sido confinada à família como célula da sociedade corporativa. Agora sobre a população impunham-se duas medidas indispensáveis: a preservação da vida e a prevenção da morte.

Justamente, por isso, o primeiro grande “Traité de la Police” de Nicolas Delamare (1703) ganhou uma dimensão politica indiscutível em toda a Europa. Este primeiro tratado era um tratado de várias polícias que se vieram a autonomizar ao longo do séc. XVIII.

Agora tratava-se também, para além de aplicar um arsenal legislativo e uma doutrina de direito, de saber qual era a melhor forma de atuar sobre os fenómenos sociais para se obterem mos melhores resultados. O fundamento jurídico deixou de ocupar a centralidade da situação, dando lugar ao conhecimento cientifico. O governo à policiae fundamentava-se na avaliação do saber cientifico.

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No prefácio da sua obra, Nicolas Delamare distingue duas espécies de funções de governo: as que diziam repeito aos negócios e interesses entre particulares e as que tinham por objectivo o bem público.

3.Doutrinas sobre o Estado de Polícia em Portugal

Em Portugal, o novo conceito de polícia não tinha sido aceite, nem praticado, até à primeira metade do século XVIII. No final desse mesmo século ficou patente a regulação do luxo e a moderação da ociosidade, como são o caso da advertência à excessividade dos trajes e a outros diversos abusos, necessitados de reforma. Fulcral foram, de facto, os anos que se seguiram ao terramoto de 1755, nos quais viriam a surgir os primeiros textos doutrinários e, mais tarde, com o fim do Antigo Regime, a publicação das memórias da Academia Real das Ciências. Deste modo, a doutrina de polícia expandia-se, sendo ditada não só por magistrados, mas agora, também, por médicos.

Os principais textos doutrinários difundidos em Portugal foram os de Pascoal José de Melo Freire, de Francisco Coelho de Sousa Sampaio, de António Nunes Ribeiro Sanches, de José Pinheiro de Freitas Soares e os de João Rosado de Villalobos.

Pascoal José de Melo Freire declara o novo conceito de Polícia como proveniente do príncipe e da tradição jurídica portuguesa, e não da nova economia política europeia, de modo que engrandece o "pai de família", seu príncipe, e salienta que o Intendente Geral da Polícia é um Alto magistrado, sem nomear diretamente a "população".

Nas Instituições de Direito Civil Português, Pascoal de Melo Freire admite que a polícia não mais está encarregue do que de vigiar o cumprimento das leis sobre o luxo, a saúde, a alimentação, criminalidade, construção de edifícios, comunicações, educação, boas maneiras, vadios e colégios. Isto porque quem pratica estas leis, propriamente ditas, são os Almotaçés e outras autoridades tradicionais competentes.

O autor propõe a regularização de diversas atividades de saúde, a continuação da administração dos hospitais públicos pelo provedor, a prevenção de atos ilícitos e perigosos, a regulação da atividade económica e a preocupação pela higiene e na alimentação. Em relação ao luxo, propõe a sua moderação, de modo que "se harmonizem as despesas, os rendimentos e os gastos" e diferencia as precedências sociais.

Reconhecendo os conflitos de jurisdição, advoga a criação dum tribunal nomeado "Senado e Junta da Polícia", presidido pelo Intendente Geral da polícia, formado por 2 corregedores do crime, 2 vereadores, um engenheiro, um deputado da Junta do Comércio, um doutor, um médico, um matemático, um secretário e oficiais. Cada um destes, estaria encarregue dum departamento, desde a área da Segurança Pública, à Saúde e à atividade económica.

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Segundo Francisco Coelho de Sousa Sampaio, em Preleções do Direito Pátrio, Público e Particular (1794), o Direito de Polícia tem como instrumentos as academias públicas, o aumento e a saúde da população e a atividade comercial, advertendo ao luxo e ao ócio, como Pascoal José de Melo Freire já havia feito. Foi neste programa que o pombalismo e o Estado Polícia do reinado de D. Maria I se basearam.

António Nunes Ribeiro equacionou o problema da saúde como sendo um problema político, no Tratado da Conservação da Saúde dos Povos (1756) e no Método para aprender e estudar a Medicina (1763), os quais se apoiavam no conhecimento científico vindo, mais tarde, influenciar a criação de disciplinas de prevenção e conservação da saúde, ao invés do simples tratamento da doença.

José Pinheiro de Freitas Soares influenciou o primeiro Liberalismo e o modelo organizativo e funcional do Conselho de Saúde Pública, que separou o ramo da Higiene da Polícia Médica, no Tractado de policia medica, no qual se comprehendem todas as matérias que podem servir para organisar um regimento de policia de saúde, para o interior do reino de Portugal (1818). Propôs um regimento de polícia de saúde, acreditando que a riqueza nacional provinha duma população saudável , traduzindo-se em vantagens de concorrência comercial internacional. Previu ainda a criação dum Código Penal como instrumento de repressão.

Para o autor, a segurança da Saúde Pública dividia-se em duas: nos portos do mar e na Polícia Médica para o interior do reino. A nível organizacional, propôs a divisão do reino em quarenta e três contas, tantas quantas as comarcas e corregedores. Em cada comarca deveria haver um provedor-mor da saúde; em cada Câmara, um provedor-menor da saúde; em cada freguesia, um juíz da saúde. Os juízes da Saúde estavam encarregues de compilar e produzir informação acerca dos habitantes, como indicações estatísticas sobre a população.

Foram apresentados novos métodos para a desinfestação e purificação dos mortos, bem como o ensino sobre a peste.

É declarada a importância da organização dos espaços hospitalares, da produção, armazenamento e venda dos alimentos de modo higiénico. Promove-se o tratamento das águas e o combate aos incêndios. Regula-se o luxo e repugnam-se os celibatários por não procriarem, já que não promovem o aumento da população e da sua riqueza geral.

João Rosado de Villalobos, como tradutor duma obra francesa sobre a polícia geral dum Estado, afirma que "a polícia é a alma da fortuna, e abundância, da tranquilidade pública, e de todas as commodidades geraes". O autor do Tratado admite que as leis devem ser estabelecidas através do uso da razão e que o Governo deve ser composto por Leis Constitucionais, Civis e de Polícia, devendo ser jurisdicionalmente superiores o Soberano e o Tribunal Régio, em relação aos magistrados e tribunais menores. São objetos do governo: a religião, a saúde, a edificação e ordenamento do território, a segurança, a educação, nomeadamente, das artes liberais e ciências e a eliminação da pobreza.

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4. O Governo de Polícia

4.1. Gestão da aflição e da perturbação

Desde há muitos anos que o direito de polícia estava inscrito no quadro legislativo português dando como exemplo a capacidade jurisdicional de que os magistrados usufruíam para intervir em algumas áreas de governo como a criminalidade, mendicidade, vagabundagem, limpeza de ruas e caminhos. No entanto, em meados do sec XVIII, este direito transformou-se numa modalidade de governo que se afirmou no plano administrativo em áreas completamente novas e que disciplinou diversos campos sociais, que confundiu o direito e a justiça e que gerou políticas de regulação ma base de que o “Bem Comum se deve preferir a tudo”. Ou seja, dá-se uma transição de um estado passivo para um Estado que passa a intervir diretamente na vida das pessoas.

Este estado interventivo surgiu na sequência do terramoto de 1755 e não foi determinado por qualquer dinâmica resultante de um processo político. O regime de então, relativamente à sua função organizativa, com o conjunto de magistrados e tribunais e com o direito disponível, revelava falta de recursos para lidar com o terramoto de 1755 e, por isso, viu-se forçado a recorrer a conhecimentos estrangeiros, aplicando-os tendo em conta o ritmo das necessidades do país, mesmo que provocando graves conflitos com a esfera jurisdicional.

Desde logo, os princípios da polícia aplicados ao poder central do Reino foram os que melhor se ajustaram à solução dos problemas do país, sendo exemplos destes princípios as intervenções de limpeza, o abastecimento de víveres, segurança pública e combate ao crime.

No entanto, como já disse, esta dinâmica reformista vem desenvolver grandes conflitos provocados pela resistência na perda de jurisdições, pela arrogância política de novos comissários que se transformavam em especialistas na utilização dos recursos naturais e humanos, agindo de forma concertada e obedecendo a planos e programas como foi o exemplo dos censos (nascimentos, casamentos e óbitos), registos (mortalidade endémica e sanitária), inquéritos geográficos e agrícolas, dados sobre as atividades comerciais e industriais, etc.

É ainda importante reforçar que, desde o tempo de D João V se tinha tentado implementar este tipo de estado, mas que foi então, depois do terramoto, na década de sessenta que começou a ser organizado, planeado e orquestrado por dirigentes pombalinos.

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4.2. A Intendência Geral da Polícia, uma polícia para tudo

Neste momento do trabalho, achamos por bem destacar, numa breve cronologia, as datas mais importantes na construção e organização da Intendência Geral da Polícia na época pombalina:

25 de Junho de 1760 , como o dia da criação do cargo de Intende Geral da Polícia tendo o mesmo “ampla e ilimitada jurisdição na matéria da mesma polícia sobre todos os Ministros Criminais e Civis”, gozando do privilégio de desembargador do Paço com competências para, sobre todos os delitos, preparar os processos e deferir sobre os mesmos, com o argumento de que a “justiça contenciosa” (ou seja, a justiça processual – relativa aos tribunais) e a “polícia”, dando como exemplo as reformas europeias (?). Deste modo os processos apenas seriam revistos pela Casa da Suplicação em casos excecionais, podendo inclusive a polícia instaurar simples processos verbais, “sem limitação de tempo e sem testemunhas” até se apurar a verdade de facto.

07 de Julho de 1760 , dia em que Inácio Ferreira Souto foi promovido ao cargo de desembargador, através de uma circular de Sebastião José de Carvalho e Melo, secretário de Estado dos Negócios do Reino.

22 de Dezembro de 1776 , substituição interina do Intendente Geral da Polícia, Doutor Manuel Gonçalves de Miranda, executada pelo Chanceler da Casa da Suplicação (cargo que acabou por ser ocupado pelo Doutor José Pinto de Morais Bacelar).

15 de Janeiro de 1780 , o intendente passava a ter o título do “Meu Conselho”, e a responder diretamente ao secretário de Estado dos Negócios do Reino.

18 de Novembro de 1801, foi criada a secretaria da Intendência Federal da Polícia e o Corpo de Guarda Real da Polícia de Lisboa de acordo com o plano do ministro Rodrigo de Sousa Coutinho que ficaria, doravante, a superintender nos negócios de polícia. Estas condições vêm romper com um sistema anterior que colocava a polícia dependente do exército que nem sempre estava disponível para corresponder às exigências da mesma.

20 de Maio de 1780 , Diogo Pina Manique toma posse no cargo de Intendente Geral da Polícia, sendo a sua jurisdição alargada a reedificação da cidade, cuja legislação urbanista tinha afirmado o “interesse público” para a expropriação e/ou venda forçada de terrenos, melhorando a higiene, segurança das construções e limitação dos recursos de apelo e agravo.

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- Através da divulgação de editais, o intendente intervinha sobre a distribuição dos bens necessários das populações, marcando uma presença central no quotidiano das mesmas

- Definia e divulgava programas de mobilidade de famílias de umas zonas para outras;

- Ocupava-se com questões relativas à saúde pública, nomeadamente vigiava as mortes para “aprofundar os conhecimentos das causas das doenças e evitar a morte” e exercia autoridade sobre os médicos, etc.

- Preocupava-se com a prática dos bons costumes e com a conduta da população, nomeadamente, uma carta enviada ao Conde de Vila Nova de Cerveira sobre a atuação desordeira de uma família de Alfama.

- Ocupava-se das diferenças sociais, nomeadamente entre os pobres considerados como “inválidos” e outros merecedores de trabalhar;

- Intervinha relativamente à proteção das crianças, procurando, por exemplo, evitar a morte de crianças abandonas, com medidas como o reforço das redes de proteção em todas as sedes de concelho;

- Desenvolvia métodos de combate à ociosidade, colmatando a “falta de genes para se ocuparem na Agricultura, nas Artes, e nas Manufaturas” por terem vindo para Lisboa procurar a “ociosidade de mendigar”, assumindo como urgente “extinguir a ociosidade para deste modo evitar os vícios, e tornar úteis ao Estado aqueles indivíduo que lhe servem de peso”;

- Regulou o plano da divisão do trabalho;- Implacável na censura, impôs, por iniciativa própria, por exemplo, penas a

quem manifestasse pretensões desmedidas como foi o caso dos familiares e adeptos dos Távora que procuravam a desforra das condenações pombalinas.

- No que se refere ao controlo da imprensa nacional e internacional, o intendente arregimentava colaboradores para as redações dos jornais como o redator da Gazeta de Lisboa que terá sido íntimo de Diogo Inácio de Pina Manique por causa da “inteligência com o intendente geral da polícia foi e era ordenada por sua majestade para se fazerem cousas pela cofre da sua repartição”.

- Na função de vigilância fez uso de mecanismos de espionagem que levou ao confronto com as autoridades judiciais e as secretarias de Estado. Este “serviço secreto” foi assegurado através de rusgas inesperadas, de escutas em surdina dos “moscas”, de denúncias e informações pagas pela intendência.

- A intendência procedia também ao recrutamento militar, nomeadamente de mendigos, com tudo o que acarretava de inconvenientes e conflitos.

No entanto, esta prudência não evitou que o intendente jogasse politicamente, no seio do próprio governo, com as informações que possuía, sobretudo fazendo intriga com o chefe da Casa Real, Tomás Xavier de Lima Teles da Silva.

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Relativamente ao poder do Intendente e ainda ao seu papel no controlo da imprensa nacional e internacional:

* Um retrato do poder do qual o intendente usufruía está bem explícito no confronto que assumiu com a Real Mesa da Comissão Geral sobre Exame e Censura de Livros, uma vez que, depois de publicada uma obra de Martinho Mascarenhas, na qual eram atacados os “papéis satíricos, e libelos infamatórios” com o título de “Medicina Theologca ou Supplica Humilde feita a todos os senhores confessores e diretores, sobre o modo de proceder com os seus penitentes na emenda dos pecados, principalmente da lascívia, cólera e bebedice” e depois de posta a venda se levantariam alguns clamores religiosos de indignação, depois de investigar sobre estes acontecimentos, Pina Manique levou à recolha desta obra. Além disso foi dissolvida a Real Mesa da Comissão Geral sobre Exame e Censura de Livros.

4.3. Uma polícia para cada coisa

Fundada em 1760, a Intendência Geral da Polícia, superintendeu em vastos domínios da sociedade portuguesa, com especial destaque para as áreas da fazenda; comunicações e correios; agricultura, minas e metais; e saúde pública.

Facilmente se compreende que, no novo paradigma político administrativo, refutador do imobilismo da administração passiva que consumia os poderes públicos, o príncipe e as instituições administrativas passassem a implementar padrões de normalização. Estes segmentos constituíam-se como uma nova ordem disciplinar, capaz de fomentar a riqueza dos povos, suprir as faltas e dominar os meios necessários e úteis à felicidade e ao “bem comum”, agora constituídos interesses supremos do Estado.

Neste contexto, o aparelho burocrático e administrativo do Estado foi reorganizado, por forma a produzir novas instâncias de decisão e administração, bem como reprodução de novas elites politicas, sociais e burocráticas.

No domínio da fazenda, o Erário Régio (17 de dezembro de 1760) constitui-se como a instituição de topo da administração fiscal portuguesa destinada a centralizar a gestão corrente das contas públicas, pondo fim à dispersão existente nos mecanismos de arrecadação de cobranças e despesas.

No setor das comunicações, apesar do seu papel determinante nas trocas comerciais, a discussão a respeito da necessidade de uma efetiva regulamentação parece não econtrar eco no governo pombalino. O preâmbulo do mais antigo diploma legislativo que nesta matéria se publicou em Portugal data apenas dos finais do século XVII, no reinado de D.Maria I- o alvará de 28 de Março de 1791- de extrema importância, pois define-se, pela primeira vez em Portugal, uma política de transportes e comunicações.

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São igualmente muito interessantes os regulamentos de 1 de Março de 1796 para a reforma dos carros, estabelecimento de barreiras e conservação de estradas. No período mariano-joanino, é ainda digna de ênfase a “domesticação” racional e política do espaço que levou à incorporação do Correio-mor- que andara alienada por uma doação senhorial- à Coroa (18 de janeiro de 1797) e ao início da construção das primeiras estradas, bem como do serviço de mala postal.

Apesar de todas as resistências internas, durante o século XVIII foi possível acompanhar-se entre nós o que se passava nos mais importantes centros da cultura europeia. Tal deveu-se, em grande parte, a acção de portugueses – os chamados “estrangeirados” – que, lá fora, contactavam e absorviam as novas correntes do pensamento e as novas práticas. É de destacar a ação de Luiz Ferrari de Mordau, que durante o seu cargo de Intendente Geral da Agricultura introduziu novas formas de organização das estruturas de produção, bem como motivou o ensino agrícola.

Também Joaquim Pedro Fragoso Mota de Sequeira, de origem italiana, Intendente Geral das Minas e Metais, desenvolveu, nas suas inúmeras viagens pela Europa, um conjunto de conhecimentos respectivos a técnicas de cultivo. Não obstante, o supra-sumo do reformismo pombalino seria José Bonifácio de Andrade e Silva, natural de S.Paulo, mestre em metalurgia e mineralogia e autor de importantíssimos estudos nesta área, com destaque para o “Tratado sobre Mineralogia”, o que lhe viria a valer o exercício do cargo de Intendente Geral das Minas e Metais e a ocupação da cátedra de Metalurgia, especialmente criada para ele, na Universidade de Coimbra.

4.4. Uma polícia para a vida e para a morte

Por último, urge destacar as reformas empreendidas pelo governo de polícia no plano da saúde pública. Ao longo do Antigo Regime, as debilidades do setor agravaram-se ainda mais perante a declinação do ensino da medicina, em grande parte motivada pela longa duração do curso. Em consequência, à margem da universidade,   o Físico-Mor e o Cirurgião-Mor  usavam e abusavam das suas prerrogativas- estatuídas já na Carta Régia de 25 de outubro de 1448- concedendo licenças para a prática da arte de curar, na sua totalidade ou em áreas específicas, a pessoas habilidosas- na perspetiva da universidade, “médicos idiotas” e “cirurgiões romancistas” - que viviam em áreas onde era escassa ou nula a oferta de cuidado.

Os constantes desentendimentos existentes entre as várias instâncias e a incapacidade de dar respostas às exigências das várias partes, constituíram os fatores base para a autoridade régia extinguir os cargos de físico-mor e cirurgião-mor e instituir, à semelhança do que sucedera em Espanha, a Junta do Protomedicato, subsumida na Lei de 17 de julho de 1782, e com significativa autonomia jurisdicional.

Embora não se possa falar de uma mudança palpável desta experiência em Portugal, a Junta do Protomedicato foi responsável por definir uma tabela de preços e uma relação pormenorizada de todos os remédios autorizados, consagrados na Farmacopeia Geral do

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Reino. No seu Alvará, D.Maria I enfatiza o papel da farmacopeia no controle da “desordem com que nas boticas de meus reinos e domínios se fazem as preparações, e composições”, sem a qual seria “impossível que a medicina se pratique sem riscos de vida e saúde de [seus] fiéis vassalos”.

A 27 de novembro de 1799, a Coroa eleva a Junta do Protomedicato à categoria de Tribunal Régio, uma tentativa fracassada de pôr fim aos conflitos jurisdicionais com outros agentes de saúde, letrados e ministros régios da periferia (juízes de fora, corregedores e provedores) e, a um nível mais central, com os tribunais régios do Desembargo do Paço, Conselho Ultramarino e Casa da Suplicação, que acabaria por produzir o efeito contrário e determinar o fim da já frágil Junta Real, em inícios do Século XIX. Os cargos de físico-mor e cirurgião-mor seriam, consequentemente, restaurados no novo regimento de 17 de Setembro de 1810, sob a refundação de que nas suas jurisdições não se poderia intrometer nenhuma outra autoridade. Mas nem tudo estava resolvido e a acalmia administrativa tardava a chegar.

Em meados do Século XIX Portugal é assolado por um hediondo surto de epidemias que fez disparar o número de óbitos no país e levou a Coroa, seguindo a trajectória dos flagelos demográficos em outros países da Europa, a estabelecer a Junta da Saúde Pública, assistida pelo provedor-mor da Saúde da Corte e Reino, um organismo responsável por controlar o estado de saúde dos portos – e que conduz à proibição, em 1832, à entrada de navios oriundos de países susceptíveis ao contágio e à propagação da doença; entender o estado de saúde pública no interior do Reino; reconhecer os óbitos e suas causas; promover o estabelecimento dos cemitérios fora das igrejas; e, ainda, criar um lazareto- o que se acabaria por concretizar em 1815, com o estabelecimento do Lazareto na Torre de S.Sebastião de Caparica.

A Junta de Saúde Pública foi extinta sete anos depois da sua formação, por Portaria de 30 de Novembro de 1820, e criada para a substituir uma Comissão de Saúde Pública, dependente da Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra e da Marinha, que estaria na génese do Conselho de Saúde. Eis os feixes essenciais das preocupações médico-jurídicas que configuram genericamente o campo da saúde pública ao longo do século XIX.

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Conclusão

O Estado polícia em Portugal é o resultado de um excesso de governação, fora da matriz jurisdicionalista, exigido pela situação criada pelo terramoto de 1755. No entanto, os magistrados e os tribunais tentaram compensar a perda de poder nas diversas áreas, através, da sabotagem dos processos de contencioso, o que conduziu a uma conflitualidade permanente com o ius policiae – um confronto político que acabou por conduzir a uma governamentabilidade próxima do modelo liberal.

Entre todas as áreas de intervenção, a polícia da saúde pública foi a que recebeu mais atenções do Estado de Polícia, uma vez que o seu maior objetivo era manter um povo saudável e zelar pelo “bem do povo”, quer pela sua coerência entre os seus mecanismos e princípios, quer pelos saberes e técnicas que desenvolveu.

O alcance da intervenção da nova administração policial foi ampla ao ponto de o quadro institucional da administração da coroa, que se mantivera praticamente o mesmo durante mais de século e mio, se ter alterado na sequência do terramoto e das invasões francesas, se ter alterado, sendo criados e reformulados um conjunto de organismos policiais e secretarias de Estado que constituíram a maior reforma administrativa da monarquia portuguesa da época moderna. Esta nova administração social, teve como traço caracterizador as formas de controlo social e a superação dos modos tradicionais do exercício do poder.

Por outro lado, ao assumir como objetivo central o bem-estar físico e anímico dos vassalos, a saúde e a vida, a ordem e o crescimento económico, a administração policial transformaria a “vida” num objeto político instrumentalizável por novas tecnologias disciplinares que haveriam de conduzir à “morte” política e institucional dos organismos existentes até então.

Pode dizer-se então que a melhor forma de descrever o sistema político português, após o terramoto de 1755 é descrever o próprio Estado Polícia, já identificado ao longo do trabalho elaborado.

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Bibliografia

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HESPANHA, António Manuel - As vésperas do Leviathan: instituições e poder político (Portugal, séc. XVII). Reedição remodelada da edição espanhola de 1990. Coimbra: Almedina, 1994.

HESPANHA, António Manuel - Da “iustitia” à “disciplina”, textos, poder e política no Antigo Regime. Boletim da Faculdade de Direito. (1989), p. 3-97. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia

SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite- “A «Polícia« e as funções do Estado – Notas sobre a “Polícia” do Antigo Regime, Revista da Faculdade de Direito da UFPR (Universidade Federal do Paraná), nº 49, 2009

SUBTIL, José- “O Direito de Polícia nas Vésperas do Estado Liberal em Portugal”, As Formas do Direito, Ordem, Razão e Decisão, Experiências Jurídicas antes e depois da Modernidade, coord. Ricardo Marcelo Fonseca, Curitiba, Juruá Editora, 2013

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