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O ESTADO EMPRESÁRIO: REFLEXÕES SOBRE A EFICIÊNCIA DO REGIME JURÍDICO DAS SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA NA ATUALIDADE Marcelo Andrade Féres Professor do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB Doutorando e Mestre em Direito pela UFMG Diretor do Gabinete do Advogado-Geral da União Procurador Federal 1- Introdução Sem dúvida alguma, o século que vem de findar foi marcado pelos extremos. Num período de cem anos, além de inúmeros conflitos que se arrastam até hoje, houve duas Guerras Mundiais, separação do globo entre capitalistas e comunistas, ascensão e queda de grandes potências, e até mesmo formação de blocos econômicos compostos por antigos rivais. As instituições entraram em crise de identidade e, agora, buscam redimensionar seus espaços. O Direito reformulou-se, não apenas na seara normativa, mas também e principalmente na ordem das idéias, experimentando uma verdadeira e profunda transformação hermenêutica. Nesse contexto, o Estado também é questionado. Passa por uma reformulação, buscando se estabilizar e se redefinir no início do terceiro milênio, revelando-se fundamental o estudo da conhecida descentralização administrativa, especialmente quanto aos mecanismos de sua intervenção no domínio econômico. Com respeito à descentralização em geral, Maria Sylvia Zanella di Pietro lembra que, à “época do Estado liberal, em que a sua atividade se restringia quase exclusivamente à defesa externa e segurança interna, não havia grande necessidade de descentralização das atividades administrativas, mesmo porque as funções de polícia são, em geral, indelegáveis, pelo fato de implicarem autoridade, coerção sobre o indivíduo em benefício do bem-estar geral”. 1 Entretanto, à medida em que o Estado foi chamando para si funções outras, antes estranhas à sua alçada, nomeadamente o Estado social, ganha importância a descentralização administrativa, cujo objeto “é a distribuição de competências de uma 1 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2004, p.354.

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O ESTADO EMPRESÁRIO:REFLEXÕES SOBRE A EFICIÊNCIA DO REGIME JURÍDICO DAS

SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA NA ATUALIDADE

Marcelo Andrade Féres

Professor do Centro Universitário de Brasília – UniCEUBDoutorando e Mestre em Direito pela UFMG

Diretor do Gabinete do Advogado-Geral da UniãoProcurador Federal

1- Introdução

Sem dúvida alguma, o século que vem de findar foi marcado pelos

extremos. Num período de cem anos, além de inúmeros conflitos que se arrastam até

hoje, houve duas Guerras Mundiais, separação do globo entre capitalistas e comunistas,

ascensão e queda de grandes potências, e até mesmo formação de blocos econômicos

compostos por antigos rivais. As instituições entraram em crise de identidade e, agora,

buscam redimensionar seus espaços. O Direito reformulou-se, não apenas na seara

normativa, mas também e principalmente na ordem das idéias, experimentando uma

verdadeira e profunda transformação hermenêutica.

Nesse contexto, o Estado também é questionado. Passa por uma

reformulação, buscando se estabilizar e se redefinir no início do terceiro milênio,

revelando-se fundamental o estudo da conhecida descentralização administrativa,

especialmente quanto aos mecanismos de sua intervenção no domínio econômico.

Com respeito à descentralização em geral, Maria Sylvia Zanella di Pietro

lembra que, à “época do Estado liberal, em que a sua atividade se restringia quase

exclusivamente à defesa externa e segurança interna, não havia grande necessidade de

descentralização das atividades administrativas, mesmo porque as funções de polícia

são, em geral, indelegáveis, pelo fato de implicarem autoridade, coerção sobre o

indivíduo em benefício do bem-estar geral”.1

Entretanto, à medida em que o Estado foi chamando para si funções

outras, antes estranhas à sua alçada, nomeadamente o Estado social, ganha importância

a descentralização administrativa, cujo objeto “é a distribuição de competências de uma

1 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2004, p.354.

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para outra pessoa, física ou jurídica.”2 Assim, o Estado transfere atribuições a sujeitos

criados para essa finalidade ou preexistentes, constituindo uma forma de racionalização

da execução de suas tarefas. Algumas vezes, ele cria autarquias, fundações, empresas

públicas ou sociedades de economia; noutras, conta com a colaboração de particulares,

que se beneficiam de concessões, permissões ou autorizações.

A propósito, a descentralização não se confunde com a desconcentração,

pois esta é a repartição interna de competências, ou seja, ocorre na intimidade da pessoa

jurídica, no caso, o Estado, enquanto aquela importa a transferência de atribuições a

terceiros, sejam entes públicos ou privados.

Na atualidade, o Estado, cuja veia econômica se diz neoliberal, vem se

retirando paulatinamente do cenário econômico, limitando-se, em regra, a regulá-lo.

Num passado recente, o Brasil, por exemplo, experimentou inúmeros processos de

privatização de suas empresas estatais, fenômeno este que se alastra por setores da

cultura ocidental, merecendo, inclusive, o encorajamento por parte dos órgãos da União

Européia, segundo noticia Michaël Karpenschif.3

De qualquer sorte, o Estado, ora com menor, ora com maior intensidade,

sempre interveio no domínio econômico, ou seja, extrapolou sua vocação original,

vindo a atuar no mercado ao lado dos agentes privados.

No Brasil, as diversas esferas da Administração Pública, municipal,

estadual ou distrital, e federal, intervêm no domínio econômico por meio da criação de

empresas estatais, locução que compreende tanto as empresas públicas quanto as

sociedades de economia mista, criadas justamente para imprimir maior flexibilidade e

eficiência à máquina administrativa.

Pois bem, este texto se dedica a uma limitada porção dessa realidade

jurídica, qual seja, ao estudo das sociedades de economia mista, que, nos termos do art.

173, § 1o, da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda

Constitucional n. 19/1998, “explorem atividade econômica de produção ou

comercialização de bens ou de prestação de serviços”.

Durante todo o trabalho, há a preocupação com a análise de eficiência da

sociedade de economia mista enquanto mecanismo de intervenção do Estado no

2 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2004, p.349.3 KARPENSCHIF, Michaël. La privatisation des entreprises publiques: une pratique encouragée sous surveillance communautaire. In: Revue française de droit administratif. Paris: Dalloz, n. 1, janvier-février 2002, p. 95-103.

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domínio econômico, procedendo-se a reflexões sobre o seu presente e o seu futuro, de

sorte a conciliar interesses públicos e privados.

Num primeiro momento, serão analisadas semelhanças e distinções entre

empresas públicas e sociedades de economia mista, a partir do quê se fará a

apresentação das características gerais destas.

A seguir, passar-se-á às características societárias das sociedades de

economia mista, aquilo que elas têm de específico em sua estrutura jurídica, desde as

peculiaridades que revestem a sua constituição até o seu funcionamento orgânico.

Enquanto pessoa autônoma, distinta das pessoas de seus sócios, inclusive da entidade de

direito público que a criou, a sociedade de economia mista ostenta patrimônio próprio,

cuja natureza dos bens também contará com item especial.

Não fosse o bastante, será apreciado o regime de licitações que orienta as

sociedades de economia mistas, assim como aquele de seus empregados. Tudo,

conforme se descortina nas linhas que seguem.

2- Sociedade de economia mista: características gerais e traços distintivos da

empresa pública

Para melhor compreensão da sociedade de economia mista, é necessário

buscar seus rastros históricos. Apesar das divergências formadas no seio da doutrina,

parece predominar o entendimento de que a origem de tais empresas confunde-se com a

das sociedades por ações e, quanto a estas, José Serpa de Santa Maria, fundado no

pensamento de outros doutrinadores, leciona, verbis:

“Aquiescemos com o insigne escolista RUI CARNEIRO GUIMARÃES e o próprio CARVALHO BRITTO DAVIS quando, em recente trabalho, alentado por exuberante fundamentação declara alinhar-se a MIRANDA VALVERDE, ao situar o marco remoto ou a raiz mais profunda, em particular para as sociedades por ações, no século XV, querendo por certo aludir ao Banco de São Jorge, conquanto o aponte feito sobre a concessão da Rainha Elizabeth ao Duque de Cuberland, em 1599, conduziria o marco inicial não para o século XV, mas para os fins do século XVI.”4

Diverge dessa opinião, entretanto, Rubens Requião, que, alinhando-se

com Escarra, sustenta que a primeira companhia surgiu em 1602, na Holanda. Tratava-

4 MARIA, José Serpa de Santa. Sociedades de economia mista e empresas públicas. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1979, p. 41.

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se de uma sociedade cujo objeto era a exploração de colônias, a Companhia das Índias

Ocidentais. E, na seqüência, tal doutrinador afirma:

“A constituição dessas sociedades era, na verdade, promovida pelo Estado, como descentralização política, social e econômica de suas funções. Através dessas poderosas empresas o príncipe exercia a dura política mercantilista, extremamente colonialista, diminuindo os riscos e embaraços do intricado jogo diplomático nas cortes européias. Dessa descentralização política e econômica nos dá notícia a referida Companhia das Índias Ocidentais, pois foi-lhe outorgado, pelo soberano holandês, o poder de efetuar pactos e alianças com príncipes e naturais dos países, nos limites da outorga que receberam na carta real de construir fortalezas, de armar exércitos, de nomear governadores e funcionários da justiça e outros para todos os serviços necessários à conservação das praças, à manutenção da ordem e da política.”5

A propósito, realmente assiste razão a Rubens Requião. A remota

referência ao Banco de São Jorge, feita por alguns pesquisadores, dá conta de traços

bastante rudimentares, que se mostram totalmente dissociados dos caracteres gerais das

sociedades por ações, sendo, pois, correto ver sim nas companhias colonizadoras o

berço delas.

O desenvolvimento mais ostensivo da atuação empresarial do Estado,

porém, deu-se após as Grandes Guerras. Da França, André de Laubadère assinala que

“o desenvolvimento, depois da Segunda Guerra Mundial, de empresas estatais trouxe

inovações notáveis no que concerne à gestão de serviços públicos por instituições de

direito privado.”6

No Brasil, desde a vinda da Coroa Portuguesa, já se constatava a

presença de empresas estatais, como, por exemplo, o Banco do Brasil. Entretanto, a sua

regulação geral veio somente em 1967, por meio do Decreto-lei n. 200, que dispõe

sobre a reforma administrativa federal.

A Constituição da República, de 1988, também se refere a tais figuras

sob a roupagem da administração indireta. No seu art. 37, submete a administração

pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios aos princípios, entre outros, da legalidade, impessoalidade,

moralidade, publicidade e eficiência. Ademais disso, nomeadamente quanto à

intervenção do Estado no domínio econômico, o seu art. 173 prescreve:

5 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 4.6 Tradução livre do original: “Le développement, depuis la Seconde Guerre mondiale, des entreprises publiques a entrâiné des innovations notables en ce qui concerne la gestion des services publics par des institutions de droit privé.” (LAUBADÈRE, André de. Droit administratif. Paris: LGDJ, 1999, p. 307).

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“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.§ 1o A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;IV – a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários;V – os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.(...).”

Como se observa, o Estado intervém no domínio econômico em casos

excepcionais, para atender a imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse

coletivo. Não é, pois, função inerente à Administração Pública a exploração direta de

atividade econômica, valendo, a propósito, transcrever as lições de Eros Roberto Grau:

“Assim, inicialmente, quanto à referência a intervenção e não meramente, a atuação estatal, desejo insistir em que vocábulo e expressão aparentam ser, à primeira vista, absolutamente intercambiáveis. Toda atuação estatal é expressiva de um ato de intervenção; de outra banda, relembre-se que o debate a propósito da inconveniência ou incorreção do uso dos vocábulos intervenção e intervencionismo é inútil, inócuo. Logo, se o significado a expressar é o mesmo, pouco importa se faça uso seja da expressão – atuação (ou ação) estatal – seja do vocábulo – intervenção. Aludimos, então, a atuação do Estado além da esfera do público, ou seja, na esfera do privado (área de titularidade do setor privado). A intervenção, pois, na medida em que o vocábulo expressa, na sua conotação mais vigorosa, precisamente atuação em área de outrem.Daí se verifica que o Estado não pratica intervenção quando presta serviço público ou regula a prestação de serviço público. Atua, no caso, em área de sua própria titularidade, na esfera pública. Por isso mesmo dir-se-á que o vocábulo intervenção é, no contexto, mais correto do que a expressão atuação estatal: intervenção expressa atuação estatal em área de titularidade do setor privado; atuação estatal, simplesmente, expressa

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significado mais amplo. Pois é certo que essa expressão, quando não qualificada, conota inclusive atuação na esfera pública.”7

Em que pese a presença dos dispositivos constitucionais relativos à

atuação estatal (em sentido amplo), não se percebem, no campo constitucional,

definições das empresas estatais. Assim, o que se pode inferir do texto da Carta Magna

é o desdobramento de dois regimes jurídicos distintos de atuação do Estado por meio

delas. De um lado, quando o Estado procede à intervenção no domínio econômico,

vindo a explorar atividades econômicas, as empresas públicas e as sociedades de

economia mista sujeitam-se ao regime próprio das empresas privadas; de outro, quando

o Estado atua prestando serviço público, as empresas estatais têm as prerrogativas

inerentes à Administração Pública.

No nível das idéias, é extremamente difícil definir, de maneira pronta e

acabada, o conteúdo da locução “serviço público”, imprescindível à imputação dos

regimes distintos, de que se falou acima. A título ilustrativo, Diógenes Gasparini chega

a cogitar de três diferentes acepções, litteris:

“A locução em apreço comporta, pelo menos, três sentidos: o orgânico, o material e o formal. Em sentido orgânico, também chamado subjetivo, o serviço público é um complexo de órgãos, agentes e recursos da Administração Pública, destinados à satisfação das necessidades dos administrados. Equivale, pois, a um organismo ou parte do aparelho estatal com tal precípua finalidade. Em sentido material, também designado objetivo, o serviço público é uma função, uma tarefa, uma atividade da Administração Pública, destinada a satisfazer necessidades de interesse geral dos administrados. Em sentido formal, serviço público é a atividade desempenhada por alguém (Poder Público ou seus delegados), sob as regras exorbitantes do Direito Comum, para a satisfação dos interesses dos administrados. É a submissão de certa atividade a um regime de Direito Público.”8

Por óbvio, interessa ao presente estudo a acepção material, isso é, o

serviço público compreendido como “uma função, uma tarefa, uma Atividade da

Administração Pública, destinada a satisfazer as necessidades de interesse geral dos

administrados.” Lembre-se, porém, de que necessidade é algo extremamente subjetivo,

variando inclusive no tempo e no espaço. Não se pode olvidar, aliás, que,

economicamente, o luxo de hoje constituirá a necessidade de amanhã, sendo, ao fim e

7 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 124/125.

8 GAPARINI, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 277.

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ao cabo, o ordenamento que, em determinados tempo e lugar, define o âmbito da noção

de serviço público.

Quanto às semelhanças e diferenças entre sociedades de economia mista

e empresas públicas, volte-se, no cenário normativo infraconstitucional, ao art. 5o do

Decreto-lei n. 200/1967, litteris:

“Art. 5o Para os fins desta lei, considera-se:(...)II – Empresa Pública – a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criada por lei para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa, podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito;III – Sociedade de Economia Mista – a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para a exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam, em sua maioria, à União ou a entidade da Administração Indireta. (...)”

Várias imperfeições constam do dispositivo transcrito, porém dele podem

ser extraídas as características gerais dessas espécies de empresas estatais.

Em primeiro lugar, ambas ostentam personalidade jurídica de direito

privado. A empresa pública, por sua vez, tem patrimônio próprio e capital

exclusivamente público. Nela, pode ocorrer o concurso de aportes de várias esferas da

Administração Pública, como, por exemplo, de Estados e de Municípios; não pode,

todavia, contar com entradas de particulares. Ademais, a empresa pública nasce da lei e

pode se valer de qualquer das formas admitidas em direito. Assim, é viável o emprego

de qualquer tipo societário, inclusive de sociedade unipessoal, para que se organize a

empresa pública.

Embora tenha personalidade jurídica de direito privado, a empresa

pública controlada pela União, nos termos do art. 109, I, da Constituição da República,

tem suas causas submetidas a processo e julgamento da Justiça Federal.

Por seu turno, a sociedade de economia mista também se constitui em

pessoa jurídica de direito privado, podendo, no entanto, valer-se somente da forma das

sociedades anônimas. Ao contrário do que ocorre na empresa pública, na sociedade de

economia mista, necessariamente, deverá haver o concurso do capital particular, daí,

inclusive, vem o seu nome, que traduz esse encontro de capital público com privado.

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Apesar de o art. 5o do Decreto-lei n. 200/1967 dizer que a sociedade de

economia mista é criada por lei, em verdade, esta tão-somente a autoriza; ela nasce do

arquivamento dos respectivos atos constitutivos na Junta Comercial.

De maneira diversa daquilo que sucede com as empresas públicas, as

sociedades de economia mista controladas pela União não submetem suas causas à

competência da Justiça Federal, mas às das Justiças dos Estados e do Distrito Federal.9

Celso Antônio Bandeira de Mello, após afirmar a grande semelhança

existente entre sociedades de economia mista e empresas públicas, sintetiza suas

principais diferenças, verbis:

“a)enquanto o capital das empresas públicas é constituído por recursos integralmente provenientes de pessoas de Direito Público ou de entidades de suas Administrações indiretas, nas sociedades de economia mista há conjugação de recursos particulares com recursos provenientes de pessoas de Direito Público ou de entidades de suas Administrações indiretas, com prevalência acionária votante da esfera governamental;b) empresas públicas podem adotar qualquer forma societária dentre as em Direito admitidas (inclusive a forma de sociedade ‘unipessoal’, prevista apenas para elas), ao passo que as sociedades de economia mista terão obrigatoriamente a forma de sociedade anônima (art. 5o do Decreto-lei 200);c) os feitos em que empresas públicas sejam parte, na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes (salvo algumas exceções), são processados e julgados perante a Justiça Federal (art. 109, I, da Constituição), enquanto as ações relativas a sociedades de economia mista são apreciáveis pela Justiça estadual nas mesmas hipóteses em que lhe compete conhecer das lides concernentes a quaisquer outros sujeitos.”10

De todo o exposto, constatam-se, em essência, quatro regimes

diferenciados de empresas estatais, quais sejam: (i) empresa pública prestadora de

serviço público; (ii) empresa pública exploradora de atividade econômica; (iii)

sociedade de economia mista prestadora de serviço público; e (iv) sociedade de

economia mista exploradora de atividade econômica, sendo o estudo desta última o

objeto central do presente texto.

9 A esse respeito, há algumas súmulas do Supremo Tribunal Federal, cujos verbetes se transcrevem a seguir: “Súmula 508. Compete à Justiça Estadual, em ambas as instâncias, processar e julgar as causas em que for parte o Banco do Brasil”; “Súmula 517. As sociedades de economia mista só têm foro na Justiça Federal, quando a União intervem como assistente ou opoente”; e “Súmula 556. É competente a Justiça Comum para julgar as causas em que é parte sociedade de economia mista.”10 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 179.

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Trata-se, pois, de sociedade de economia mista utilizada pelo Estado para

a intervenção no domínio econômico, com regime jurídico próprio das empresas

privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e

tributários. São, portanto, a flexibilização e a eficiência que devem orientar tal regime,

apesar de, nas linhas que seguem, ser apresentada a contradição entre esse dever ser e o

ser das sociedades de economia mista.

3- Características societárias da companhia de economia mista

Independentemente do objeto, sejam as prestadoras de serviço público,

sejam as exploradoras de atividade econômica, de acordo com a legislação em vigor,

tanto o Decreto-lei n. 200/67, quanto a Lei n. 6.404/76, as sociedades de economia

mista, necessariamente, organizam-se sob a forma de sociedades anônimas ou

companhias, que são expressões sinônimas.

Tullio Ascarelli lembra que, “Ao assumir diretamente a administração de

determinados serviços públicos, ou ao participar neles juntamente com outrem, o Estado

recorre freqüentemente ao instrumento da sociedade anônima, sujeitando-se, assim, à lei

desta. À vista da própria distinção entre a personalidade da sociedade e aquela dos

sócios, fica, a sociedade anônima, sempre uma pessoa jurídica de direito privado, apesar

de participarem nela entidades de direito público. Visa, esta participação, a conciliar as

exigências da participação da entidade de direito público em determinadas empresas

com a agilidade dos instrumentos de técnica jurídica elaborados pelo direito privado.”11

Esse emprego do regime das companhias como estrutura societária das

sociedades de economia mista parece ser uma constante. Como se observou, o próprio

surgimento das companhias se deu num contexto de concurso do capital público com o

privado, o que, para alguns, significa dizer que os respectivos surgimentos – das

companhias e das sociedades de economia mista – confundem-se. Aliás, na França,

apenas para exemplificar, as sociedades de economia mista também se organizam até

hoje sob a forma de sociedades anônimas, sujeitando-se, com pequenas ressalvas, ao

regime jurídico destas.

No Brasil, segue-se o mesmo ritmo; nos termos do art. 235 da Lei n.

6.404/76, as “sociedades anônimas de economia mista estão sujeitas a esta Lei, sem 11 ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Bookseller, 2001, p. 226.

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prejuízo das disposições especiais de lei federal.” Vale destacar que Lei n. 6.404/76

dispõe sobre as sociedades por ações, contendo normas não somente a respeito das

sociedades anônimas, mas também sobre outras entidades cujo capital é dividido em

ações, como, por exemplo, subsidiárias integrais, sociedades em comandita por ações –

agora reguladas pelo Código Civil de 2002 –, e, especialmente, as sociedades de

economia mista. Ela traz o arcabouço das sociedades por ações, delineando, em sua

grande parte, a sociedade anônima e, na seqüência, as demais figuras, sendo aquela

regime supletivo destas.

De qualquer forma, a primeira especificidade da companhia de economia

mista diz respeito à necessidade de prévia autorização legislativa para sua constituição

(art. 236, caput, da Lei n. 6.404/76). Note-se que a sociedade de economia mista não

nasce da lei, mas, tão-somente, tem a sua constituição autorizada por esta. Isso,

inclusive, encontra-se estampado na Constituição da República, cujo art. 37, XIX,

prescreve que “somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a

instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação (...).”

Enquanto pessoa jurídica de direito privado, nomeadamente uma

sociedade, a companhia de economia mista nasce a partir do arquivamento do

respectivo ato constitutivo, estatuto social, na Junta Comercial, conforme disciplinam o

art. 985 do Código Civil de 2002.

Essa imprescindibilidade de prévia autorização legislativa não é, todavia,

de se estranhar. A Administração Pública, consoante dispõe o art. 37, caput, da

Constituição da República, orienta-se pelo princípio da legalidade, ou seja, no domínio

público, só se pode fazer aquilo que a lei autoriza, enquanto no domínio privado, por

sua vez, os sujeitos podem fazer tudo que a lei não proíbe. Ora, a Administração não

pode alocar recursos numa sociedade sem que haja permissão legal para tanto. Isso é o

normal no âmbito estatal.

Com efeito, cumpre destacar um outro detalhe quanto ao nascimento da

sociedade de economia mista. Vem de ser tratada a questão relativa à sua constituição,

mas ela pode nascer de forma distinta; pode decorrer de desapropriação do controle de

companhia preexistente. Nesse particular, observe-se o parágrafo único do art. 236 da

Lei n. 6.404/76:

“Parágrafo único. Sempre que pessoa jurídica de direito público adquirir, por desapropriação, o controle de companhia em funcionamento, os acionistas terão direito de pedir, dentro de 60 (sessenta) dias da publicação da primeira ata da assembléia

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geral, realizada após a aquisição do controle, o reembolso das suas ações, salvo se a companhia já se achava sob o controle, direto ou indireto, de outra pessoa jurídica de direito público, ou no caso de concessionária de serviço público.”

Assim, no curso de sua vida, a sociedade pode transformar-se em uma

companhia de economia mista, sendo suficiente para isso que o seu controle se encerre

nas mãos de uma entidade de direito público.12 Ocorre que a superveniência desse

status, no mais das vezes, acarreta uma diminuição da liquidez das ações, tornando o

investimento desinteressante aos demais sócios. Daí disciplina a lei que estes têm o

direito de pedir o reembolso de suas ações. Em outras palavras: a aquisição do controle,

mediante desapropriação, confere aos acionistas o direito de retirada da companhia.

A título ilustrativo, imagine-se um hospital organizado sob a forma de

sociedade anônima, cujo controle acionário é expropriado pela União, a fim de, por

necessidade, proceder ao atendimento de pessoas de baixa renda. No caso, os demais

sócios poderão pedir o reembolso de suas ações, pois aparentemente o negócio não será

mais lucrativo.

Saliente-se, por oportuno, que tal direito de reembolso não se confunde

com o direito de extensão, inerente ao concerto expropriatório. O reembolso é

manifestado diretamente perante a sociedade, que deverá pagar ao acionista de

conformidade com a vocação do art. 45 da Lei n. 6.404/76.

O direito de extensão, a seu turno, é a faculdade que assiste ao

desapropriado de solicitar ao poder público expropriante que estenda a desapropriação

sobre parcela patrimonial que se lhe tornou indiferente por essa causa. Assim, na

hipótese de desapropriação de controle acionário, o direito de extensão aproveita apenas

ao titular das participações expropriadas, caso tenha outras ações, e somente com

respeito a estas. Pode esse sujeito optar entre a extensão e o reembolso, conforme

melhor lhe aprouver. Os demais integrantes da sociedade, insista-se, têm tão-somente o

direito ao reembolso.

Quanto ao objeto da sociedade de economia mista, consoante firma o art.

237, caput, da Lei n. 6.404/76, “somente poderá explorar os empreendimentos ou

exercer as atividades previstas na lei que autorizou sua constituição.” E, o § 1o do citado

dispositivo completa que a companhia “somente poderá participar de outras sociedades

12 Por exemplo, Diógenes Gasparini, afirma que, em São Paulo, “a expropriação de ações de maior vulto foi a da Companhia Paulista de Estradas de Ferro S.A., cuja declaração de utilidade pública foi veiculada pelo Decreto n. 38.548/61. Nessa expropriação a Fazenda estadual foi condenada a pagar por parte das ações mais de 150 bilhões de cruzeiros, conforme noticiaram os jornais de meados de maio de 1983.” (GAPARINI, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 688).

11

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quando autorizada por lei ou no exercício de opção legal para aplicar Imposto de Renda

em investimentos para o desenvolvimento regional ou setorial.”

Essa indispensável perfeita sobreposição entre aquilo que a lei estabelece

como vocação para uma dada sociedade de economia mista e o seu efetivo objeto é

outra manifestação específica do princípio da legalidade. Tanto para a constituição,

quanto para o exercício da sociedade de economia mista, é necessário que a lei lhe trace

o destino.

Da leitura da norma, depreende-se que a companhia de economia mista,

desde que autorizada por lei, poderá participar de outras sociedades, sendo hipótese

comum a criação de subsidiárias integrais. A propósito, a Constituição da República, em

seu art. 37, XX, também reclama tal autorização.

Ao tratar especificamente das instituições financeiras de economia mista,

o § 2o, do art. 237, da Lei de Sociedades por Ações, estabelece que elas poderão

participar de outras sociedades, observadas as normas estabelecidas pelo Banco Central.

Nessa espécie em particular, a legislação não condiciona o concurso em outras

sociedades à prévia autorização legal, mas somente às regras ditadas pelo Banco

Central. É que as instituições financeiras freqüentemente adquirem participações de

outras pessoas coletivas, principalmente como meio de gestão dos fundos de

investimento em ações por elas ofertados ao mercado. Constituiria obstáculo

intransponível eventual exigência de permissão legal para as diversas aquisições, a

serem realizadas pela instituição financeira de economia mista.

Comporta, ademais, lembrar que, enquanto sociedade por ações, a

companhia de economia mista será sempre empresária, sendo irrelevante a análise de

seu objeto. É que o § 1o, do art. 2o da Lei n. 6.404/76, já estabelecia que qualquer “que

seja o objeto, a companhia é mercantil e se rege pelas leis e usos do comércio”, e, agora,

o Código Civil de 2002, no parágrafo único de seu art. 982, passou a disciplinar que,

“Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações”.

No que toca ao controle acionário, a sociedade de economia mista

também experimenta algumas peculiaridades. Como observado no item anterior, o

controle da sociedade anônima pela Administração Pública é a causa suficiente para a

configuração da economia mista. O art. 5o, III, do Decreto-lei n. 200/67 reclama que a

União ou entidade da Administração Indireta detenha a maioria das ações com direito a

voto na sociedade em análise.

12

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Como se sabe, a redação atual do § 2o do art. 15 da Lei n. 6.404/76

admite que o “número de ações preferenciais sem direito a voto, ou sujeitas a restrição

no exercício desse direito, não pode ultrapassar 50% (cinqüenta por cento) do total das

ações emitidas” pela companhia. Com isso, mostra-se viável que o Estado, por exemplo,

detenha o controle da sociedade, desde que seja titular de 25% (vinte e cinco por cento)

mais uma entre as ações ordinárias com direito de voto.

Segundo estatui o art. 238 da Lei de Sociedades por Ações, “A pessoa

jurídica que controla a companhia de economia mista tem os deveres e

responsabilidades do acionista controlador (arts. 116 e 117), mas poderá orientar as

atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou sua

criação.”

Todavia, para a legislação, não basta que a pessoa seja titular de direitos

de sócio que lhe assegurem a maioria nas deliberações, para que seja reputada

controladora; é necessário, outrossim, que use seu poder para dirigir as atividades

sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.

Esse acionista controlador “deve usar o poder com o fim de fazer a

companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e

responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e

para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar

e atender” (parágrafo único, do art. 116, da Lei n. 6.404/76).

Como se viu acima, cuidando-se, in casu, de entidade estatal

controladora, abre-se, no entanto, uma exceção: ela poderá orientar as atividades da

companhia de sorte a atender ao interesse público que justificou sua criação. Isso é, a lei

exonera de responsabilidade o controlador da sociedade de economia mista que

persegue a satisfação do interesse público primário, em lugar da realização dos

interesses individuais dos acionistas, o que é perfeitamente razoável, tendo-se em vista a

finalidade geral do interesse público que permeia toda a atuação da Administração.

Uma questão, a propósito, mostra-se interessante: pode a pessoa jurídica

de direito público, titular da maioria das ações com direito a voto da sociedade de

economia mista, deixar de exercer o controle?

Em princípio, tal entidade controladora não poderá deixar de

efetivamente exercer o controle, pois o direito público é indisponível. Se cabe ao Estado

o exercício desse mister, que, inclusive, é passível de valoração econômica, não pode

desvencilhar-se do cumprimento de tal tarefa.

13

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Perceba-se que a sociedade de economia mista não tem uma estrutura

orgânica flexível, como ocorre nas companhias controladas por particulares. Em seu

âmbito, existirá “obrigatoriamente Conselho de Administração, assegurado à minoria o

direito de eleger um dos conselheiros, se maior número não lhes couber pelo processo

do voto múltiplo” (art. 239, caput, da Lei n. 6.404/76). Não fosse o bastante, “O

funcionamento do Conselho Fiscal será permanente nas companhias de economia mista;

um de seus membros, e respectivo suplente, será eleito pelas ações ordinárias

minoritárias e outro pelas ações preferenciais, se houver” (art. 240 da Lei n. 6.404/76).

Na companhia em exame, haverá, pois, Assembléia Geral, Diretoria,

Conselho de Administração e Conselho Fiscal, todos em pleno funcionamento, além de

outros órgãos que o correlato estatuto preveja. Todavia, a impossibilidade de se afastar

tal estrutura mínima onera excessivamente a Administração. Pois bem, na prática, essa

pluralidade de órgãos reclama gastos às vezes desnecessários com as remunerações de

seus agentes. Pequenas companhias fechadas de economia mista não necessitariam, em

regra, da complexa estrutura orgânica delineada pela legislação. Por óbvio, a

Administração não está adstrita à criação de sociedades de economia mista, pode valer-

se de esquemas como o das empresas públicas. Pretendendo, contudo, convocar o

concurso do capital privado, deverá, inafastavelmente, empregar a figura da sociedade

de economia mista, o que recomenda, pois, a flexibilização dessa matéria. Assinale-se,

ainda, que, buscando conciliar os interesses públicos e privados no seio da sociedade, a

lei assegura a participação dos minoritários no Conselho de Administração e no

Conselho Fiscal, não o fazendo, entretanto, quanto à Diretoria.

A propósito, em matéria de flexibilização de estrutura societária, não

apenas na questão relativa a órgãos, mas com respeito a uma ampliação da liberdade

estatutária, comporta assinalar a experiência francesa da sociedade por ações

simplificada, que tem ostensivamente sido utilizada pela Administração daquele país.

Trata-se de tipo societário previsto na Lei n. 94-1, de 03 de janeiro de

1994, cujos sócios, na vocação original, podiam ser apenas pessoas jurídicas, o que lhe

rendeu, inicialmente, o título de “sociedade de sociedades”.13 Entretanto, em virtude de

seu sucesso, seu domínio foi amplamente liberado pela Lei n. 99-586, de 12 de julho de

1999, que passou a admitir sua constituição inclusive na forma unipessoal.

13 VALETTE, Didier. Contexte et méthode de l’adoption du nouveau régime de la société par actions simplifiée. Revue des Sociétés, Paris: Dalloz, p. 219, 2000.

14

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A nova fattispecie societária ostenta um regime legal extremamente

simples, com cerca de 20 dispositivos (arts. 262-1 a 262-21 da Lei n. 66-537, de 24 de

julho de 1966, hoje vertidos para os arts. L.227-1 a L.227-20 do Nouveau Code de

Commerce), remetendo quase tudo ao exercício da autonomia da vontade das partes.

A respeito, Jean Stoufflet assinala que a SAS marca a entrada definitiva

da autonomia da vontade e do contrato no direito francês das sociedades por ações, que,

desde os anos 1940, concedia-lhes uma posição restrita.14

Essa liberdade de conformação da estrutura societária, somada à

limitação qualitativa dos sócios no texto original da lei – apenas pessoas jurídicas -,

descortinou o arcabouço adequado a albergar os grupos de sociedades. Mais tarde,

contudo, abriu-se o campo da liberdade contratual aos demais atores do cenário

econômico. Hoje, entre outros, temas como deliberações sociais, administração e

representação social, alienabilidade de ações, hipóteses de dissolução e de retirada são

regulados amplamente no estatuto social das SAS.

Ademais, a SAS tem sido empregada pelo Estado na descentralização

administrativa, ou seja, a intervenção da Administração Pública no domínio econômico

para realização de atividades empresariais pode se dar sob tal forma societária, seja com

aporte de capital exclusivamente público, seja em concurso com os particulares.

Segundo Guy Durand, isso traduziu uma modernização significativa dos meios de

gestão do setor público da França.15 E, mais, lembra ele que “os estabelecimentos

públicos visados pela lei dispõem com a sociedade por ações simplificada de um novo

quadro jurídico permitindo acolher algumas atividades de economia mista e mesmo

ensejar privatizações discretas, uma vez que a sociedade por ações simplificada é

constituída com eles ou exclusivamente entre eles.”16

O Brasil deveria seguir os passos gauleses e adotar o tipo da sociedade

por ações simplificada e a Administração Pública, em especial, deveria se valer de tal

estrutura, de ordem a facilitar a acomodação dos interesses públicos e privados.

14 STOUFFLET, Jean. Aménagements statutaires et actionnariat de la société par actions simplifiée. Revue des Sociétés, Paris: Dalloz, p. 241, 2000.

15 DURAND, Guy. Opinion d’un publiciste sur la société par actions simplifiée. In: Revue des Sociétés. Paris: Dalloz, oct./déc. 1994, p. 689. 16 DURAND, Guy. Opinion d’un publiciste sur la société par actions simplifiée. In: Revue des Sociétés. Paris: Dalloz, oct./déc. 1994, p. 693.

15

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Em todo caso, volte-se ao regime atual das sociedades de economia

mista, sobre o qual há de se tratar ainda das companhias abertas. Quando o Estado

quiser recorrer ao apelo público do capital privado não terá outro caminho senão

utilizar-se das companhias abertas, cujos valores mobiliários são admitidos à

negociação no mercado de capitais. Na hipótese, a companhia aberta de economia mista

estará também sujeita às normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários –

CVM. A esse respeito, podem ser citados, por exemplo, o Banco do Brasil S.A. e a

Petrobrás S. A..

Há, contudo, uma discussão atual relacionada às companhias abertas de

economia mista, qual seja, saber se elas podem ou não aderir ao Novo Mercado criado

pela Bolsa de Valores de São Paulo – BOVESPA. A propósito, vejam-se as explicações

de Mario Engler Pinto Junior, litteris:

“A BOVESPA (Bolsa de Valores de São Paulo) instituiu um segmento especial de listagem para companhias abertas com valores mobiliários admitidos à negociação em mercado de bolsa, que se comprometem a adotar práticas diferenciadas de governança corporativa. Foram estabelecidos três níveis crescentes de compromisso (Nível I, Nível II e Novo Mercado), em função da amplitude e qualidade das informações disponibilizadas as mercado, da dispersão acionária existente e de outros direitos adicionais conferidos aos acionistas minoritários.No nível mais elevado (Novo Mercado), a companhia deve basicamente (i) possuir apenas ações ordinárias e manter em circulação a parcela mínima de 25% do capital; (ii) realizar ofertas públicas com a utilização de mecanismos que favoreçam a dispersão da base acionária; (iii) melhoria nas informações prestadas trimestralmente, entre as quais as exigências de consolidação e de revisão especial; (iv) disponibilização de balanço anual segundo normas de contabilidade praticadas no exterior (USGAAP ou IAS GAAP); (v) cumprimento de regras de disclosure por parte dos administradores e do acionista controlador, em operações envolvendo valores mobiliários de emissão da companhia; (vi) divulgação de acordo de acionistas e programas de opção de compra de ações (stock optios); (vii) mandato unificado de 1 (um) ano para todo o Conselho de Administração; (viii) extensão aos acionistas minoritários das mesmas condições obtidas pelos controladores quando da venda do controle da companhia (tag along); (ix) obrigatoriedade da realização de oferta de compra pelo valor econômico, de todas as ações em circulação, no caso de fechamento do capital ou cancelamento do registro do Novo Mercado; (x) adesão à

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Câmara de Arbitragem instituída pela BOVESPA para resolução dos conflitos societários, nos termos da Lei n. 9.307/1996.”17

O óbice que se põe à adesão da companhia aberta de economia mista

reside na renúncia a certos direitos que o controlador deve fazer e, especialmente, na

necessidade de submeter eventuais conflitos societários ao juízo arbitral.

Tratando-se, na espécie, de sociedade de economia mista que exerce

diretamente atividade econômica e, portanto, sujeita ao mesmo regime das empresas

privadas, não podem prevalecer os obstáculos mencionados. Não há razão para se

impedir o acesso dessas empresas ao Novo Mercado da BOVESPA, conclusão à qual

também chega o estudioso referido, advertindo:

“A rigor, a promessa de boa governança corporativa equivale a um jogo de colaboração entre os participantes, em que todos ganham e ninguém perde. Esse cenário traz reflexos positivos ao majoritário, que passa a ter seu ativo igualmente valorizado, além de contar com condições mais favoráveis para futuras colocações de ações no mercado primário ou secundário. Em suma, as concessões realizadas pela pessoa jurídica controladora são amplamente compensadas pelos benefícios decorrentes do novo status adquirido pela companhia controlada.”18

São essas, portanto, as características societárias que a Lei n. 6.404/76

comunica às companhias de economia mista, sendo contudo necessárias, para o seu

aprimoramento como instrumento de intervenção no domínio econômico, a

flexibilização de sua estrutura orgânica e a concessão de espaço maior à autonomia,

para que mais facilmente se conciliem os interesses público e privado que estão em

causa.

4 – Os bens da sociedade de economia mista

O revogado Código Civil, de 1916, por seu art. 65, previa que eram

públicos os bens do domínio nacional pertencentes à União, aos Estados, ou aos

Municípios e, particulares, todos os outros, independentemente de a quem

pertencessem.

17 PINTO JÚNIOR, Mario Engler. O novo mercado da bovespa e o compromisso da sociedade de economia mista com práticas de boa governança corporativa. In: Revista de direito mercantil, econômico e financeiro. São Paulo: Malheiros, n. 128, outubro a dezembro de 2002, p. 54.

18 PINTO JÚNIOR, Mario Engler. O novo mercado da bovespa e o compromisso da sociedade de economia mista com práticas de boa governança corporativa. In: Revista de direito mercantil, econômico e financeiro. São Paulo: Malheiros, n. 128, outubro a dezembro de 2002, p. 60.

17

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Como ao tempo da elaboração do mencionado diploma legal ainda não

existiam, genericamente, as figuras das sociedades de economia mista e empresas

públicas, ao serem criadas estas, a doutrina acabou estendendo aos seus bens a

qualidade de serem públicos.

A seu turno, o atual Código Civil, de 2002, ciente da existência das

empresas estatais, em seu art. 98, estabelece que “São públicos os bens do domínio

nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são

particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.” Ou seja, esse dispositivo, ao

menos em princípio, retirou do domínio público os bens das sociedades de economia

mista e empresas públicas, pois se trata de pessoas jurídicas de direito privado.

Como já visto, entretanto, as empresas estatais cujo objeto seja a

prestação de serviços públicos podem e devem ter as prerrogativas da Administração

Pública, nomeadamente a inalienabilidade, a imprescritibilidade e a impenhorabilidade

de seus bens afetados à consecução do serviço público.

Nesse mesmo sentido e atenta ao regime introduzido pela nova

codificação civil, Maria Sylvia Zanela di Pietro conclui que “são bens de uso especial

não só os bens das autarquias e das fundações públicas, como também os das entidades

de direito privado prestadoras de serviços públicos, desde que afetados diretamente a

essa finalidade”.19

Ademais, recente julgado do Superior Tribunal de Justiça esposou

idêntico entendimento, ao afirmar a penhorabilidade dos bens de empresa pública, desde

que não houvesse comprometimento da continuidade dos serviços de mesma natureza,

isso é, admitiu a penhora de bens não afetados pelas referidas funções:

“PROCESSUAL CIVIL. PENHORA. BENS DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA.POSSIBILIDADE.1. A sociedade de economia mista, posto consubstanciar personalidade jurídica de direito privado, sujeita-se, na cobrança de seus débitos ao regime comum das sociedades em geral, nada importando o fato de prestarem serviço público, desde que a execução da função não reste comprometida pela constrição. Precedentes.2. Recurso Especial desprovido.” (REsp. n. 521.047-SP, 1a T., Relator Ministro Luiz Fux, ac. unânime, 20/11/2003).

19PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2004, p. 398.

18

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De outro lado, evidencia-se que os bens de sociedades de economia mista

que exploram atividade econômica não são adjetivados de públicos; são, outrossim,

qualificados de particulares.20

O Estado, note-se, ao fazer aporte de capital numa sociedade de

economia mista firma uma relação sinalagmática, pois, em troca dos bens e direitos que

transfere à companhia, recebe ações. Estas, sim, de acordo com a legislação, são

consideradas bens públicos, porquanto sob o domínio direto do Estado.

Embora o patrimônio das sociedades de economia não seja, como se viu,

composto por bens públicos, mas sim de ordem privada, fundados na Constituição da

República, alguns entendem que estariam sujeitas à fiscalização dos Tribunais de

Contas, como, a título ilustrativo, é a lição de Evandro Martins Guerra, in verbis:

“Relativamente a essas entidades, regidas que sejam pelo direito público ou pelo direito privado, não se discute o cabimento do exercício do controle externo, em face à prescrição constitucional.Com efeito, mesmo as entidades constituídas sob a forma de sociedade anônima, exploradoras de atividade econômica, dotadas, portanto, de personalidade típica de direito privado, estão sujeitas ao controle externo exercido pelas Cortes de Contas.”21

Na prática, os Tribunais de Contas realmente têm exercido seu controle

sobre sociedades de economia mista, independentemente do objeto destas. Todavia,

aquelas companhias, cujo objeto se limita à exploração de atividade econômica, não

deveria se sujeitar à fiscalização das Cortes de Contas. É que a pessoa jurídica de direito

privado e em regime similar ao das demais empresas privadas titulariza bens de

natureza particular, e não de natureza pública, sendo, portanto, alheias às mencionadas

cortes.

Com efeito, anote-se que as sociedades de economia mista não estão

sujeitas ao regime de precatórios, instituído pela Constituição para a Fazenda Pública

em geral. A propósito, Alexandre Freitas Câmara, com razão, sustenta que se cuidando

de sociedade de economia mista devedora, no curso de eventual processo de execução

deve haver uma atenção especial, para que não se prejudique a atuação do Estado.

20 Em sentido contrário, confira-se o entendimento de Juarez Freitas (FREITAS, Juarez. Regime de bens das sociedades de economia mista e das empresas públicas. In: Informativo de direito administrativo e responsabilidade fiscal. São Paulo: Zenite, n. 22, maio de 2003, p. 869-874).

21 GUERRA, Evandro Martins. O controle externo aplicado às administrações direta, indireta e sobre outros responsáveis. In: Fórum de contratação e gestão pública. Belo Horizonte: Editora Forum, n. 5, maio de 2002, p. 544.

19

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Entende ele, por exemplo, que “no caso de execução contra sociedade de economia

mista a penhora só pode recair sobre dinheiro na falta de outros bens penhoráveis

capazes de garantir o juízo, com o que se garantirá a execução (com a penhora de outro

bem que não dinheiro) sem causar prejuízos maiores à executada e ao interesse

público.”22

Por fim, no que se refere à falência, vale a pena lembrar que a reforma da

Lei de Sociedades por Ações, levada a efeito pela Lei n. 10.303, de 31 de outubro de

2001, revogou o art. 242 daquela Lei, que dizia não estarem sujeitas à falência as

sociedades de economia mista.

Antes mesmo dessa revogação, muito se discutia sobre o tema. Em sua

maioria, a doutrina dividia as sociedades de economia mista entre prestadoras de

serviços públicos e exploradoras de atividade econômica, admitindo a falência apenas

destas, ao argumento de que, quanto a elas, o art. 242 da Lei n. 6.404/76 não teria sido

recepcionado pela Constituição de 1988.

A Lei n. 10.303/01, ao revogar expressamente tal dispositivo, militou

assim em prol da plena atribuição dos caracteres das empresas privadas à sociedade de

economia mista que exerce atividade econômica.

Contudo, a aplicação direta da Lei de Falências à modalidade de empresa

estatal ora examinada pode trazer vários questionamentos, razão pela qual Rita Andréa

Rehem Almeida Tourinho e Angélica Guimarães chegam a falar da necessidade de

legislação específica. Observe-se:

“Nós, após todas as ponderações aqui realizadas, entendemos que esta matéria deverá ser objeto de lei específica, pois qualquer tentativa de viabilizar a aplicação do instituto da falência na forma contida no Decreto-Lei n. 7.661/45 levará ao surgimento de uma série de dificuldades que criarão sérias divergências doutrinárias que na espécie serão mais prejudiciais que salutares.”23

Com efeito, a Nova Lei de Falências, Lei n. 11.101/2005, ao tratar da

questão, estabeleceu não ser ela aplicável às sociedades de economia mista. Com isso, o

ambiente normativo que se forma é semelhante àquele da vigência do art. 242 da Lei de

Sociedade por Ações. Pode-se antever que a doutrina dirá que apenas a sociedade de

22 CÂMARA, Alexandre Freitas. As sociedades de economia mista em juízo. In: Revista dialética de direito processual. n. 11, fevereiro de 2004, p. 18.

23 GUIMARÃES, Angélica et TOURINHO, Rita Andréa Rehem Almeida. As empresas estatais e a revogação do art. 242 da lei 6.404/76. In: Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, julho a setembro de 2002, p. 197.

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economia mista prestadora de serviços públicos não está sujeita a falência. No mais,

aquelas que exercem atividade econômica continuarão admitidas ao processo concursal,

por conta do que dispõe o art. 173, § 1º, II, da Constituição.

Por todos esses dados, verifica-se a existência de incertezas quanto ao

regime jurídico aplicável às sociedades de economia mista, o que lhes traz imensa

insegurança, algo totalmente indesejável no campo dos negócios.

5 – Licitação na sociedade de economia mista

A Constituição de 1988, em seu art. 37, XXI, estabelece que as obras, os

serviços, as compras e as alienações de toda a Administração Pública, seja direta ou

indireta, dar-se-ão mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de

condições a todos os concorrentes, ou seja, a sociedade de economia mista rege-se pelo

princípio geral da obrigatoriedade de licitação.

A esse propósito, o art. 22, XXVII, da Constituição da República, com a

redação dada pela Emenda Constitucional n. 19/1998, prescreve que compete

privativamente à União legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, em todas

as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da

União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e

para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1o,

III.

Assim, embora adstrita a sociedade de economia mista exploradora de

atividade econômica ao procedimento licitatório, desde 1998, a Constituição passou a

dispor que tal procedimento seria diferenciado, justamente para atender à exigência de

flexibilidade, própria dos entes que concorrem no mercado. A respeito da modificação

do mencionado dispositivo, levada a efeito pela Emenda Constitucional n. 19/1998, José

dos Santos Carvalho Filho esclarece:

“A alteração introduzida no art. 22, XXVII, da C.F. pela E.C. 19/98 teve um único e simples objetivo: conferir às empresas públicas e sociedades de economia mista tratamento jurídico diverso do que incide sobre a administração direta, autarquias e fundações governamentais.A razão não é difícil de ser explicada. Tratando-se de pessoas jurídicas de direito privado, não devem submeter-se às linhas rigorosas que incidem sobre as pessoas de direito público, como as pessoas federativas, as autarquias e as fundações governamentais de direito público (de natureza autárquica, como

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admite parte da doutrina). Se o sistema jurídico admite que o Estado atue no mundo jurídico através dessas pessoas de direito privado, é de esperar-se que possam elas dispor de maior flexibilidade em sua atuação, de modo que se aproximem do desempenho das pessoas da iniciativa privada em geral.”24

Portanto, resta evidente que não há razoabilidade alguma em se exigir de

um ente que atua no mercado todo o formalismo da licitação. Assim também é a lição

de Celso Antônio Bandeira de Mello, a qual se traz abaixo:

“Sem dúvida, a adoção do mesmo procedimento licitatório do Poder Público seria inconveniente com a normalidade de suas atuações na esfera econômica, isto é, não seria exeqüível em relação aos seus rotineiros procedimentos para operar o cumprimento das atividades negociais em vista das quais foram criadas. As delongas que lhe são próprias inibiriam seu desempenho expedito e muitas vezes obstariam à obtenção do negócio mais vantajoso.”25

Apesar do novo teor da Constituição, até o momento o legislador

infraconstitucional não se desincumbiu de sua tarefa, aplicando-se, ainda e por ora, o

regime da Lei de Licitações às companhias de economia mista.

Nesse contexto de pendência da edição do estatuto tratado no § 1o, do art.

173, da Constituição da República, adverte Fabricio Quixadá Steindorfer Proença que,

em virtude das peculiaridades da atividade da companhia de economia mista, poderá

esta afastar o procedimento licitatório, com fundamento nos arts. 24 e 25 da Lei n.

8.666/93. Veja-se, a propósito, a conclusão do estudioso:

“Assim sendo, quando a realização da licitação for incompatível com o atendimento da finalidade jurídica e econômica à qual se presta a companhia mista, a competição deverá ser excluída com arrimo no mencionado dispositivo da lei, caso não seja dispensável com supedâneo nos incisos do artigo 24.”26

De qualquer forma, o estatuto das licitações das empresas estatais

exploradoras de atividade econômica, quando surgir, haverá de se orientar pelas

características exigidas pelos mercado, ou seja, deverá facilitar a formação dos negócios

jurídicos, por meio de um regime mais flexível e menos formalista.

24 CARVALHO FILHO, José dos Santos. O futuro estatuto das empresas públicas e sociedades de economia mista. In: Revista do ministério público. Rio de Janeiro: Ministério Público, n. 11, janeiro a junho de 2000, p. 175. 25 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 194.

26PROENÇA, Fabriccio Quixadá Steindorfer. A licitação na sociedade de economia mista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 98.

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Enquanto isso não ocorre, continuam as empresas estatais emperradas

pelos entraves burocráticos da licitação, o que importa mais custos e menos

produtividade.

6 – Empregados da sociedade de economia mista

Consoante estatui a Constituição da República, em seu art. 37, II, “a

investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso

público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do

cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em

comissão declarado de livre nomeação e exoneração.”

Essa exigência de concurso público estende-se sobre os empregos nas

sociedades de economia mista, independentemente de estas se ocuparem da prestação

de serviço público ou da realização direta de atividade econômica. O caput do art. 37 da

Constituição reclama o concurso público de toda e qualquer entidade da Administração

Pública, Direita ou Indireta.

Isso, no entanto, dificulta a contratação de trabalhadores pelas empresas

estatais. Não apenas os custos do certame, mas também e sobremaneira o formalismo

que o reveste, embaraçam a atuação empresarial do Estado.

Apesar de sujeitos ao concurso público, as relações entre as sociedades

de economia mista e seus empregados são regidas pela Consolidação das Leis do

Trabalho.

A propósito, a questão relativa à demissão desses empregados sempre foi

muito debatida na doutrina. Nunca se chegou a um consenso acerca da possibilidade de

a sociedade de economia mista proceder à demissão sem justa causa de seus

empregados. Vale a pena, a esse respeito, transcrever recente decisão do Tribunal

Superior do Trabalho que entendeu admissível, na espécie, a demissão sem justa causa,

in verbis:

“REINTEGRAÇÃO. DESCABIMENTO. INEXISTÊNCIA DE DOENÇA OCUPACIONAL. EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA. DISPENSA IMOTIVADA. CABIMENTO. TUTELA ANTECIPADA. MANDADO DE REINTEGRAÇÃO. 1.1. O art. 118 da Lei nº 8.213/91 dispõe que "o segurado que sofreu acidente do trabalho tem garantida, pelo prazo mínimo de doze meses, a manutenção do seu contrato de trabalho na empresa, após a cessação do

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auxílio-doença acidentário, independentemente de percepção de auxílio-acidente". Sem o recebimento do auxílio-doença, não há que se cogitar de estabilidade acidentária. Inteligência da O.J. 230 da SDI-1. 1.2. Por outro lado, o art. 173, § 1º, inciso II, da Constituição Federal, expressamente, submete as empresas públicas e sociedades de economia mista "ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários". Em sua atuação, os entes paraestatais, especialmente no que diz respeito às relações de emprego que mantêm, não praticam atos administrativos ("stricto sensu"), assim não se submetendo à motivação, como requisito dos atos jurídicos que efetivam. No ordenamento jurídico vigente, a despeito da exigência de prévio concurso público de provas ou de provas e títulos (art. 37, inciso II e § 2º, da Constituição Federal), para provimento dos empregos que oferecem, não estão as empresas públicas e sociedades de economia mista privadas do direito potestativo de dispensar, imotivadamente, na forma autorizada a seus congêneres da iniciativa privada, de maneira que, quando o fazem, atuam em perfeita licitude. Assim também comanda a O.J. 247 da SDI-1 desta Corte. Recurso de revista provido.” (Tribunal Superior do Trabalho, 3a T., Recurso de Revista n. 794.924, Relator Juiz convocado Alberto Luiz Bresciani Pereira, ac. 17/12/2003).

Diógenes Gasparini, com efeito, lembra que “é assegurado ao servidor

dessas sociedades, como aos demais celetistas, direito de greve. Este, aliás, será

exercido nos termos e condições definidas na Lei federal n. 7.783, de 28 de junho de

1989, que trata do exercício do direito de greve, define as atividades essenciais e regula

o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Quando prestadoras de

serviços públicos, a greve de seus servidores será exercida nos termos da lei específica,

prevista no art. 37, VII, da Lei Maior.”27

Não se esqueça, por fim, que o art. 37, XVII, da Constituição da

República alastra-se sobre as sociedade de economia mista, ou seja, a vedação geral de

acumulação de cargos públicos compreende também os empregos de sociedades de

economia mista, independentemente de seu objeto.

7- Breves conclusões

Por tudo quanto se expôs, percebe-se que não é próprio do Estado a

atuação no domínio econômico. Ele tem, em princípio, a função de prestar serviços

27 GAPARINI, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 391.

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públicos, atender às necessidades dos administrados. Tanto para uma quanto para outra

função, a entidade estatal pode lidar com a descentralização administrativa, consistente

na transferência de tarefas a outros sujeitos, seja de natureza pública ou privada. No

primeiro caso, por exemplo, há as autarquias; no segundo, podem ser citadas as

sociedades de economia mista e empresas públicas, ambas abrangidas pela locução

empresas estatais.

Este trabalho se ocupou das sociedades de economia mistas que

exploram atividades econômicas. Teve por eixo central a análise de eficiência dessas

empresas enquanto mecanismos de intervenção estatal no domínio econômico,

especialmente após a Emenda Constitucional n. 19/98, que lhes imprimiu uma nova

perspectiva.

Observaram-se, suas características societárias, centradas na Lei das

Sociedades por Ações, que traduzem uma estrutura complexa e, às vezes exagerada,

tendo-se em vista o porte de uma dada empresa em concreto. O custo de tal estrutura

também pode se apresentar excessivo, conforme os dados da vida. Para gerar maior

eficiência, seria necessária, nesse particular, uma flexibilização, no sentido de tornar

facultativa a criação de Conselho de Administração, bem como facultativo o

funcionamento do Conselho Fiscal. Afora isso, seria recomendável a ampliação da

autonomia privada, ou seja, deveria haver maior liberdade para a previsão de cláusulas

estatutárias.

No caso singular das companhias abertas de economia mista, os entraves

da legislação, muitas vezes, têm prejudicado o desempenho delas no mercado. Assim, a

título ilustrativo, assinale-se o pensamento daqueles que não admitem a adesão dessas

empresas ao Novo Mercado da BOVESPA.

Quanto ao estatuto de seus bens, foram apreciadas as celeumas que se

formaram na doutrina e na jurisprudência, o que gera, em certa medida, insegurança

para as sociedades de economia mista, de sorte a afastar os investidores, assim como

importar a exigência de maiores garantias por parte daqueles que com elas negociam.

Com respeito à obrigatoriedade de licitação para as sociedades de

economia mista, cumpre lembrar que desde 1998 há comando constitucional

determinando a edição de um procedimento licitatório diferenciado, mas que até o

momento não foi atendido, gerando enormes embaraços às respectivas contratações.

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Além desse formalismo, exige-se concurso público para ingresso nos

quadros de empregados das sociedades de economia mista, procedimento que atrapalha

a dinâmica trabalhista dessa empresa estatal.

Pois bem, a sociedade de economia mista hoje encontra-se numa fase de

transição entre o formalismo exacerbado da administração burocrática e a eficiência do

Estado contemporâneo, estando, no entanto, aquém da flexibilidade que se deve exigir

de um agente do mercado.

No mais, apenas o tempo dirá da sociedade de economia mista nesse

início do terceiro milênio.

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