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1 O ETHOS E A HETEROGENEIDADE DISCURSIVA 1 NA HISTÓRIA ÚNICA DE CHIMAMANDA ADICHIE 2 Alessandra Maria Custódio da Silva (UENF) 3 [email protected] 4 Sérgio Arruda de Moura (UENF) 5 Gerson Tavares do Carmo (UENF) 6 Elane Kreile Manhães (UENF) 7 8 RESUMO 9 O presente artigo é fruto das reflexões semanais do projeto Capes/OBEDUC 10 Diagnóstico da qualidade de ensino no PROEJA: um estudo na Região Norte e Noro- 11 este Fluminense com foco nos aspectos formativos e metodológicose objetiva anali- 12 sar o discurso de Chimamanda Adichie à luz epistêmica da análise do discurso france- 13 sa e das temáticas: heterogeneidade e ethos discursivo. Discutiremos que sua fala 14 comunga um interdiscurso da cultura do poder de Foucault (1979), da “memória 15 herdada” de Pollak (1992) e da ideologia de Orlandi (2010). 16 Palavras-chave: Ethos discursivo. Heterogeneidade. História única. 17 18 1. Introdução 19 Conforme as postulações de Orlandi (2010), a análise do discurso, 20 nos anos 60, foi remetida ao seguinte tripé: a psicanálise, linguística e 21 marxismo. Na imbricação desses campos de conhecimento, surge um 22 novo recorte de disciplinas que se utilizam do discurso como objeto de 23 estudo. 24 Dessa forma, a autora declara que estar alheio à produção de um 25 discurso ou acreditar na neutralidade dele é simplesmente manter-se 26 inerte ao que se emana da linguagem que, em sua grande maioria, vem 27 caracterizada por jogos simbólicos de sentidos linguístico-cognitivos e 28 sócio-históricos. Essa é a grande e importante contribuição reflexiva que 29 a análise do discurso nos proporciona. 30 A par disso, vários são os pontos de discussões acerca dos dife- 31 rentes tópicos sobre a análise do discurso, visto que podemos inserir 32 questões díspares sobre o que o sujeito falante manifesta e produz com a 33 sua linguagem. Nessa rede discursiva, é possível estabelecer sentidos 34 que, ligados à sua gênese ideológica e histórica, conduzem a um trabalho 35 interpretativo e reflexivo. Dessa maneira, é necessário evidenciar o quan- 36

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O ETHOS E A HETEROGENEIDADE DISCURSIVA 1 NA HISTÓRIA ÚNICA DE CHIMAMANDA ADICHIE 2

Alessandra Maria Custódio da Silva (UENF) 3 [email protected] 4

Sérgio Arruda de Moura (UENF) 5 Gerson Tavares do Carmo (UENF) 6

Elane Kreile Manhães (UENF) 7

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RESUMO 9

O presente artigo é fruto das reflexões semanais do projeto Capes/OBEDUC – 10 “Diagnóstico da qualidade de ensino no PROEJA: um estudo na Região Norte e Noro-11 este Fluminense com foco nos aspectos formativos e metodológicos” – e objetiva anali-12 sar o discurso de Chimamanda Adichie à luz epistêmica da análise do discurso france-13 sa e das temáticas: heterogeneidade e ethos discursivo. Discutiremos que sua fala 14 comunga um interdiscurso da cultura do poder de Foucault (1979), da “memória 15 herdada” de Pollak (1992) e da ideologia de Orlandi (2010). 16

Palavras-chave: Ethos discursivo. Heterogeneidade. História única. 17

18

1. Introdução 19

Conforme as postulações de Orlandi (2010), a análise do discurso, 20 nos anos 60, foi remetida ao seguinte tripé: a psicanálise, linguística e 21 marxismo. Na imbricação desses campos de conhecimento, surge um 22 novo recorte de disciplinas que se utilizam do discurso como objeto de 23 estudo. 24

Dessa forma, a autora declara que estar alheio à produção de um 25 discurso ou acreditar na neutralidade dele é simplesmente manter-se 26 inerte ao que se emana da linguagem que, em sua grande maioria, vem 27 caracterizada por jogos simbólicos de sentidos linguístico-cognitivos e 28 sócio-históricos. Essa é a grande e importante contribuição reflexiva que 29 a análise do discurso nos proporciona. 30

A par disso, vários são os pontos de discussões acerca dos dife-31 rentes tópicos sobre a análise do discurso, visto que podemos inserir 32 questões díspares sobre o que o sujeito falante manifesta e produz com a 33 sua linguagem. Nessa rede discursiva, é possível estabelecer sentidos 34 que, ligados à sua gênese ideológica e histórica, conduzem a um trabalho 35 interpretativo e reflexivo. Dessa maneira, é necessário evidenciar o quan-36

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to a análise do discurso favorece o indivíduo nas suas relações e no papel 1 que desempenha na sociedade. 2

Nessa conjuntura, despedindo-se de uma série de convenções para 3 atingir uma série de circunstâncias, a análise do discurso, preocupando-se 4 mais com os sujeitos de um mundo que produz um extratexto, busca 5 conhecer a significação e a intenção constituída num corpus textual. 6

O objeto de análise deste artigo está centrado no discurso de Chi-7 mamanda Adichie1, mencionado nas reuniões semanais do projeto Capes2 8 /OBEDUC – “Diagnóstico da qualidade de ensino no PROEJA: um estu-9 do na Região Norte e Noroeste Fluminense com foco nos aspectos for-10 mativos e metodológicos”. 11

Sendo assim, interessa ao presente artigo examinar e analisar as 12 formações discursivas na enunciação de Chimamanda Adichie, identifi-13 cando as marcas de heterogeneidade enunciativa e o ethos discursivo 14 inseridos na imagem que advém da enunciadora. 15

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2. O ethos 17

O termo ethos, cunhado pelo filósofo grego Aristóteles, vem sen-18 do objeto de estudo para muitos pesquisadores que se preocupam com a 19 questão da linguagem. Os conceitos variam e, por isso, algumas dificul-20 dades na definição da noção dessa palavra. 21

O ethos retórico de Aristóteles imbricava numa habilidade que os 22 sofistas possuíam de tentar persuadir o público. Dessa forma, buscando 23 conhecimentos úteis à vida política, enfatizando a eloquência, a retórica e 24 a dialética, apresentava o intuito de ensinar a “arte da política”, de impor 25 ao seu público a aceitação de sua tese como verossímil, formando, assim, 26 indivíduos capazes de convencer os demais e de governar a pólis (MOS-27 SÉ, 1997). 28

A noção do ethos como construção de uma imagem de si no dis-29 curso é dada por Amossy (1999). Numa perspectiva pragmática, Main-30

1 Romancista nigeriana, escritora e contadora de histórias, evento realizado no Tecnology Entertaiment and Design (TED), disponível em: <http://www.ted.com/talks/lang/pt/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html>. Acesso em: 25-05-2013. 2 Projeto proposto pelo Programa de Pós-Graduação de Políticas Sociais (PPGPS) da UENF, coordenado pelo Prof. Dr. Gerson Tavares do Carmo, iniciado em março de 2013.

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gueneau (2008, p. 53) afirma que o ethos “emana do mostrado: o enunci-1 ador é percebido através de um tom que implica certa determinação de 2 seu próprio corpo, à medida do mundo que ele instaura em seu discurso”. 3

Maingueneau (2008) também nos diz que, sob a perspectiva da 4 análise do discurso, o ethos está bem além da argumentação e da persua-5 são dos argumentos. Dessa forma, ele nos permite refletir sobre o proces-6 so mais geral da adesão dos sujeitos a determinado posicionamento. Seria 7 então inadmissível o ato da enunciação não estar atrelado ao ethos. 8

Amossy (apud BENVENISTE, 1974, p. 82) salienta que “o ato de 9 produzir um enunciado remete necessariamente ao locutor que mobiliza a 10 língua, que faz funcionar ao utilizá-la”. Assim, o enunciador acaba cons-11 truindo a sua subjetividade na língua. 12

O ethos, dessa forma, pode ser identificado em textos orais ou es-13 critos e, é através deles que delineamos nossas imagens subjetivas que 14 poderão ser interpretadas positiva ou negativamente, de acordo com os 15 moldes da sociedade. 16

Por meio do discurso, o locutor não precisa traçar o seu perfil ou 17 dizer quem realmente é, visto que deixa implícito ou explícito suas carac-18 terísticas e pensamentos através de sua fala, fazendo com que o receptor 19 monte a imagem do enunciador ou falante. 20

21

2.1. A heterogeneidade constitutiva e o ethos composto de Chi-22 mamanda Adichie 23

O termo “história única”, engendrado por Chimamanda Adichie, 24 revela um posicionamento baseado em conteúdos ideológicos que se 25 fundamentam em conversas as quais podem levar à construção de este-26 reótipos e acentuar, ainda mais, as mazelas de um determinado grupo, 27 pessoa, raça ou cor, numa perspectiva de acabar construindo uma cultura 28 ou uma identidade não identitária dos determinantes acima descritos. 29 Nesse subtítulo, procuramos identificar uma heterogeneidade constitutiva 30 que, para Maingueneau (1997, p. 75) “não é marcada em superfície, mas 31 que a AD pode definir, formulando hipóteses, através do interdiscurso”. 32

Os dois trechos abaixo remetem a um interdiscurso sob uma for-33 ma singular de analisar uma sociedade, abordando as questões como 34 classe, gênero e raça, mas rejeitando as polaridades que explicam a reali-35 dade do outro: 36

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Anos mais tarde, pensei nisso quando deixei a Nigéria para cursar univer-1 sidade nos Estados Unidos. Eu tinha 19 anos. Minha colega de quarto ameri-2 cana ficou chocada comigo. Ela perguntou onde eu tinha aprendido a falar in-3 glês tão bem e ficou confusa quando eu disse que, por acaso, a Nigéria tinha o 4 inglês como sua língua oficial. Ela perguntou se podia ouvir o que ela chamou 5 de minha "música tribal" e, consequentemente, ficou muito desapontada 6 quando eu toquei minha fita da Mariah Carey. (Risos) 7

Percebemos, em seu discurso, que, para grande parte da socieda-8 de, o europeu representa o civilizado, e o africano, o não civilizado, ou 9 seja, aquele que não foi e não é capaz de emancipar-se. Nessa ideologia, 10 tipicamente europeia, os africanos estão na periferia, sendo definitiva-11 mente excluídos. Sobre esse assunto, Orlandi (2010) nos aponta a sua 12 contribuição: 13

O trabalho ideológico é um trabalho da memória e do esquecimento, pois 14 é só quando passa para o anonimato que o dizer produz seu efeito de literali-15 dade, a impressão do sentido-lá: é justamente quando esquecemos que disse 16 “colonização”, quando, onde e por que, que o sentido de colonização produz 17 seus efeitos. 18

Existe também outro interdiscurso que revela essa cultura do co-19 lonizador sobre o colonizado em Chimamanda quando realça a seguinte 20 enunciação: 21

Na verdade, eu não sabia o que era "autenticidade africana”. O professor 22 me disse que minhas personagens pareciam-se muito com ele, um homem 23 educado de classe média. Minhas personagens dirigiam carros, elas não esta-24 vam famintas. Por isso elas não eram autenticamente africanas. 25

A esse respeito, Pollak (1992) destaca a problematização entre a 26 memória e a identidade social, nomeada por ele de “memória herdada”. 27 Para Pollak (1992), é um fenômeno de projeção e identificação tão forte 28 com o passado que marca e traumatiza uma região ou grupo, visto que 29 sua memória pode ser transmitida ao longo dos séculos com altíssimo 30 grau de identificação. 31

Nesse sentido, sobre a questão de não se apagar essa memória, 32 Maingueneau (1997, p. 116) apresenta: 33

O conjunto de enunciados constitui o arquivo de uma época. Este conjun-34 to não é a coleção de um espaço homogêneo (o espírito de uma época, um es-35 tado de cultura ou de civilização), de tudo que foi dito, de tudo o que se diz, 36 mas um conjunto de regiões heterogêneas de enunciados produzidos por práti-37 cas discursivas irredutíveis. 38

Seguindo as análises, identificamos que, em Chimamanda, existe 39 a encenação de três ethos discursivos. 40

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Vemos, no excerto abaixo, que a nigeriana inicia o seu discurso 1 construindo uma cenografia que implicará a formação de seu primeiro 2 ethos, a pessoa do discurso. Utilizando o gênero do discurso “palestra”, 3 consegue situar a plateia e também os internautas, através do objetivo 4 comunicacional que tal gênero lhe é específico. Através de um ritual 5 apropriado, constrói o tempo-espaço e acaba legitimando e pressupondo 6 uma autoridade remetida, por sua imagem, de uma pessoa que, tendo 7 bases familiares bastante sólidas, ascendeu socialmente e atualmente é 8 uma escritora romancista. 9

Eu sou uma contadora de histórias e gostaria de contar a vocês algumas 10 histórias pessoais sobre o que eu gosto de chamar "o perigo de uma história 11 única." [...]Eu cresci num campus universitário no leste da Nigéria. Eu venho 12 de uma família nigeriana convencional, de classe média. Meu pai era profes-13 sor. Minha mãe, administradora. [...] 14

Dessa forma, conforme postula Maingueneau (1997, p. 37) o dis-15 curso só é “autorizado” e, consequentemente eficaz, se for reconhecido 16 como tal. Sendo assim: 17

Este reconhecimento (...) só é atribuído, gratuitamente, sob certas condi-18 ções, aquelas que definem o uso legítimo: deve ser pronunciado pela pessoa 19 legitimada para fazê-lo (...); deve ser produzido em uma situação legítima, ou 20 seja, diante de destinatários legítimos [...] 21

Adiante, o segundo é revelado através de um ethos discursivo to-22 talmente contestador, reivindicador, denunciador. A preocupação de 23 Chimamanda com a verdade demonstra o seu comprometimento com a 24 reconstrução da dignidade e identidade de um povo, ou melhor, de uma 25 democracia racial bastante desejada. A nigeriana interpela o fato de se 26 acreditar em apenas “uma história” ou “uma forma” de história como 27 uma única informação diante de um determinado aspecto. Com base 28 nessa contestação, as acepções do seu discurso enfoca a concepção da 29 desigualdade com que é tratado o africano e sua nação frente ao modo de 30 ver e encarar dos europeus: a perpetuação contínua e discriminada da 31 identidade de tal povo. A cultura do branqueamento dominando a cultura 32 do subalterno se constrói através de uma única história. Os trechos abai-33 xo representam as múltiplas maneiras que ela representa a sua subjetivi-34 dade: 35

[...] Então, é assim que se cria uma única história: mostre um povo como uma 36 coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão. 37 [...] Todas essas histórias fazem-me quem eu sou. Mas, insistir somente nessas 38 histórias negativas é superficializar minha experiência e negligenciar as mui-39 tas outras histórias que me formaram. A única história cria estereótipos. E o 40 problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam 41

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incompletos. Eles fazem um história tornar-se a única história. [...] A conse-1 quência de uma única história é essa: ela rouba das pessoas sua dignidade. 2 Faz o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada difícil. Enfatiza 3 como nós somos diferentes ao invés de como somos semelhantes. [...] Histó-4 rias tem sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem 5 também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a 6 dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade 7 perdida. 8

Nessas circunstâncias, Chimamanda aponta para a problemática 9 dos discursos que se instituem e acabam constituindo e perpetuando 10 verdades absolutas. Sobre essa cultura do poder e da dominância, Fou-11 cault (1979) analisa que é sob uma função social, constituída ao longo da 12 história e concebida como uma violência legalizada, obtendo relações 13 extremamente negativas, que alguém acaba aceitando e achando propício 14 adaptar-se a essa força que lhe é exterior. A par disso, Foucault (1979, p. 15 XIV) nos orienta: 16

E esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu 17 exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada 18 está isento de poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede 19 do poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode esca-20 par: ele está sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relações 21 de forças. 22

É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma pa-23 lavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as es-24 truturas de poder do mundo, e a palavra é "nkali".É um substantivo que livre-25 mente se traduz: "ser maior do que o outro. "Como nossos mundos econômico 26 e político, histórias também são definidas pelo princípio do "nkali". Como são 27 contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo real-28 mente depende do poder. 29

O terceiro e último ethos discursivo que se complementa na ima-30 gem da enunciadora é depreendido através da culpa, da negação ao ou-31 tro, vergonha por compactuar, algumas vezes, com o pensamento único, 32 relatando ter se deixado impregnar por esse comportamento. Nesse senti-33 do, tais sentimentos são expostos no corpus abaixo: 34

[...] eu sentia uma enorme pena da família de Fide. Então, num sábado, nós 35 fomos visitar a sua aldeia e sua mãe nos mostrou um cesto com um padrão 36 lindo, feito de ráfia seca por seu irmão. Eu fiquei atônita! Nunca havia pensa-37 do que alguém em sua família pudesse realmente criar alguma coisa. Tudo que 38 eu tinha ouvido sobre eles era como eram pobres, assim havia se tornado im-39 possível pra mim vê-los como alguma coisa além de pobres. Sua pobreza era 40 minha história única sobre eles. [...] Alguns anos atrás, eu visitei o México 41 saindo dos EUA. O clima político nos EUA àquela época era tenso. E havia 42 debates sobre imigração. E, como frequentemente acontece na América, imi-43 gração tornou-se sinônimo de mexicanos. Havia histórias infindáveis de mexi-44

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canos como pessoas que estavam espoliando o sistema de saúde, passando às 1 escondidas pela fronteira, sendo presos na fronteira, esse tipo de coisa. Eu me 2 lembro de andar no meu primeiro dia por Guadalajara, vendo as pessoas indo 3 trabalhar, enrolando tortilhas no supermercado, fumando, rindo. Eu me lembro 4 de que meu primeiro sentimento foi surpresa. E então eu fiquei oprimida pela 5 vergonha. Eu percebi que eu havia estado tão imersa na cobertura da mídia 6 sobre os mexicanos que eles haviam se tornado uma coisa em minha mente: o 7 imigrante objeto. 8

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2.2. Os fiadores do discurso 10

Outra característica do ethos está relacionada à questão da legiti-11 midade por ele instaurada. Nessas circunstâncias, Maingueneau (2005, p. 12 73) corrobora o seguinte pensamento: 13

O texto não é para ser contemplado, ele é enunciação voltada para um co-14 enunciador que é necessário mobilizar para fazê-lo aderir “fisicamente” a um 15 certo universo de sentido. O poder de persuasão de um discurso decorre em 16 boa medida do fato de que leva o leitor a identificar-se com a movimentação 17 de um corpo investido de valores historicamente especificados. A qualidade 18 do ethos remete, com efeito, à figura desse “fiador” que, mediante sua fala, se 19 dá uma identidade compatível com o mundo que se supõe que ele faz surgir 20 em seu enunciado. Paradoxo constitutivo: é por seu próprio enunciado que o 21 fiador deve legitimar sua maneira de dizer. 22

Existe, no discurso de Chimamanda, a presença de dois fiadores, 23 de um ser falante que credencia e está por trás de toda enunciação. Para 24 Maingueneau (2008), a personagem fiadora requer um “mundo ético” em 25 que o fiador concede o seu acesso: 26

Claro, África é um continente repleto de catástrofes. Há as enormes, co-27 mo as terríveis violações no Congo. E há as depressivas, como o fato de 5.000 28 pessoas candidatarem-se a uma vaga de emprego na Nigéria. Mas há outras 29 histórias que não são sobre catástrofes. E é muito importante, é igualmente 30 importante, falar sobre elas. 31

Desse modo, temos, de um lado, a cultura africana como fiadora 32 que se insere nesse “mundo ético”, o qual se apresenta estereotipada e 33 desconstruída pelo “outro”, mas que busca construir uma história que é 34 própria do povo africano. De outro lado, temos uma intelectual que re-35 presenta o ser colonizado e subalterno. Os dois fiadores garantem o que é 36 dito, legitimando o discurso pelo modo de dizer. 37

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3. A heterogeneidade mostrada em Chimamanda Adichie 1

Authier-Revuz (1990) foi uma das responsáveis pela reformulação 2 feita por Pêcheux, no modo como a relação língua-discurso vinha sendo 3 tratada na teoria, e pela mudança na maneira de analisar a materialidade 4 discursiva cujas questões apontavam para o espaço de confrontação da 5 linguística, da história e da psicanálise. 6

Desse modo, busca colocar em evidência as rupturas enunciativas 7 no fio do discurso e apresentar os elementos decisivos para o surgimento 8 de “outro” discurso no mesmo existente. Nessas circunstâncias, Authier- 9 -Revuz (1990) apresenta dois tipos de heterogeneidade: a mostrada, que 10 se subdivide em explícita e implícita, e a constitutiva, que já foi, neste 11 artigo, citada e analisada. 12

De acordo com Maingueneau (1997, p. 75), “a heterogeneidade 13 mostrada incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis a partir 14 de uma diversidade de fontes de enunciação”. 15

16

3.1. As aspas e a polifonia 17

As aspas desempenham um papel importante no modo de marcar 18 o discurso do outro com diferentes funções no plano enunciativo e é 19 considerada como heterogeneidade mostrada explícita. O uso das aspas é 20 compreendido por Maingueneau como a demarcação daquilo que perten-21 ce a certa formação discursiva do eu, daquilo que é exterior a ela. As 22 enunciações em aspas são “[...] sintagmas atribuídos a outro espaço 23 enunciativo e cuja responsabilidade o locutor não quer assumir” (MA-24 INGUENEAU, 1997, p. 90). 25

De acordo com Authier-Revuz (1990), colocando palavras entre 26 aspas, o enunciador se contenta, com efeito, em atrair a atenção do recep-27 tor sobre o fato de ele empregar as aspas, ele as sublinha, deixando ao 28 receptor o cuidado de compreender porque chama sua atenção e abre 29 assim uma falha no seu próprio discurso. 30

Vemos que é recorrente o uso das aspas no discurso de Chima-31 manda. Ora e outra, ela utiliza de citações, nomes e dizeres que fortifica-32 rão, darão bases sólidas para o que está dizendo. Buscando as vozes de 33 outros enunciadores, Chimamanda passa para a posição de locutor e 34 Maingueneau (1997, p. 77) apresenta que 35

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O enunciador representa de certa forma, frente ao “locutor” o que o per-1 sonagem representa para o autor em uma ficção. Os “enunciadores” são seres 2 cujas vozes estão presentes na enunciação sem que lhes possa, entretanto, atri-3 buir palavras precisas; efetivamente, eles não falam, mas a enunciação permite 4 expressar seu ponto de vista. 5

Vejamos então como isso acontece em seu discurso: 6

[...] de pessoas que, nas palavras do maravilhoso poeta, Rudyard Kipling, 7 Rudyard Kipling, são "metade demônio, metade criança”. [...] Como um pro-8 fessor, que uma vez me disse que meu romance não era "autenticamente afri-9 cano”. 10

Então, aqui temos uma citação de um mercador londrino chamado John 11 Locke [...] Após referir-se aos negros africanos "bestas que não tem casas”, 12 ele escreve: "Eles também são pessoas sem cabeças, que têm sua boca e olhos 13 em seus seios." 14

O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir 15 uma pessoa, o jeito mais simples é contar sua história, e começar com "em se-16 gundo lugar". 17

[...] O que o escritor nigeriano Chinua Achebe chama "um equilíbrio de histó-18 rias." 19

A escritora americana Alice Walker escreveu isso sobre seus parentes do 20 sulque haviam se mudado para o norte. Ela os apresentou a um livro sobre a 21 vida sulista que eles tinham deixado para trás. "Eles sentaram-se em volta, 22 lendo o livro por si próprios, ouvindo-me ler o livro e um tipo de paraíso foi 23 reconquistado." 24

25

4. Concluindo 26

A propriedade da palavra do poeta está sendo marcada e explícita 27 no uso das aspas, demonstrando que o enunciador reportou-se ao discur-28 so de Rudyard Kipling para definir a situação discursiva. Logo abaixo, 29 também se reportou à fala do professor para ironizar e marcar a expres-30 são empregada por ele e assim por diante. As aspas, nos cinco excertos 31 acima, podem ser consideradas como heterogeneidade mostrada explíci-32 ta, visto que explicita quem falou e o que foi falado, justamente para 33 apoiar-se num discurso de um “outro” definido como enunciador. De 34 acordo com Maingueneau (1997, p. 85), “os discursos direto e indireto 35 são duas estratégias diferentes empregadas para relatar uma enunciação”. 36 O emprego desses discursos confere também a legitimidade do discurso. 37

De uma maneira geral podemos dizer que o discurso de Chima-38 manda Adichie representa os ideais da busca do respeito, do conhecimen-39 to e da cidadania em relação ao ser humano. Com os ethos discursivos, a 40

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nigeriana consegue transmitir a sua indignação frente à força que pode 1 ocasionar um único discurso. 2

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 4

AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do 5 ethos. São Paulo: Contexto, 2005. 6

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). 7 Trad.: Celene M. Cruz e João Wanderley Geraldi. In. Caderno de Estu-8 dos Lingüísticos, Campinas: UNICAMP, n. 19, 1990. 9

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Org. trad.: Roberto Macha-10 do. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 11

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Trad.: 12 Cecília P. de Souza-e-Silva e Décio Rocha. 3. ed. São Paulo: Cortez, 13 2004. 14

MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. Org.: Sírio Pos-15 senti e Maria Cecília Pérez de Souza e Silva. São Paulo: Parábola, 2008. 16

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discur-17 so. Trad.: Freda Indursky; revisão: Solange Maria Ledda Gallo, Maria da 18 Glória de Deus Vieira de Moraes. 3. ed. Campinas: Pontes/Unicamp, 19 1997. 20

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. São 21 Paulo: Pontes, 2001. 22

MOSSÉ, Claude. Atenas: a história de uma democracia. Trad.: João 23 Batista da Costa. 3. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997. 24

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ANEXO 1

O PERIGO DE UMA HISTÓRIA ÚNICA 2

Eu sou uma contadora de histórias e gostaria de contar a vocês algumas 3 histórias pessoais sobre o que eu gosto de chamar "o perigo de uma história 4 única." Eu cresci num campus universitário no leste da Nigéria. Minha mãe 5 diz que eu comecei a ler com dois anos, mas eu acho que 4 é provavelmente 6 mais próximo da verdade. Então, eu fui uma leitora precoce. E o que eu lia 7 eram livros infantis britânicos e americanos. 8

Eu fui também uma escritora precoce. E quando comecei a escrever, por 9 volta dos 7 anos, histórias com ilustrações em giz de cera, que minha pobre 10 mãe era obrigada a ler, eu escrevia exatamente os tipos de histórias que eu lia. 11 Todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis. Eles brincavam na 12 neve. Comiam maçãs. (Risos) E eles falavam muito sobre o tempo, em como 13 era maravilhoso o sol ter aparecido. (Risos) eu nunca havia estado fora da Ni-14 géria. Nós não tínhamos neve, nós comíamos mangas. E nós nunca falávamos 15 sobre o tempo porque não era necessário. 16

Meus personagens também bebiam muita cerveja de gengibre porque as 17 personagens dos livros britânicos que eu lia bebiam cerveja de gengibre. Não 18 importava que eu não tivesse a mínima ideia do que era cerveja de gengibre. 19 (Risos) E por muitos anos depois, eu desejei, desesperadamente, experimentar 20 cerveja de gengibre. Mas isso é outra história. 21

A meu ver, o que isso demonstra é como nós somos impressionáveis e 22 vulneráveis em face de uma história, principalmente, quando somos crianças. 23 Porque tudo que eu havia lido eram livros nos quais as personagens eram es-24 trangeiras, eu me convenci de que os livros, por sua própria natureza, tinham 25 que ter estrangeiros e tinham que ser sobre coisas com as quais eu não podia 26 me identificar. Bem, as coisas mudaram quando eu descobri os livros africa-27 nos. Não havia muitos disponíveis e eles não eram tão fáceis de encontrar 28 quanto os livros estrangeiros, mas devido a escritores como Chinua Achebe e 29 Camara Layeeu passei por uma mudança mental em minha percepção da lite-30 ratura. Eu percebi que pessoas como eu, meninas com a pele da cor de choco-31 late, cujos cabelos crespos não poderiam formar rabos-de-cavalo, também po-32 diam existir na literatura. Eu comecei a escrever sobre coisas que eu reconhe-33 cia. 34

Bem, eu amava aqueles livros americanos e britânicos que eu lia. Eles 35 mexiam com a minha imaginação, me abriam novos mundos. Mas a conse-36 quência inesperada foi que eu não sabia que pessoas como eu podiam existir 37 na literatura. Então o que a descoberta dos escritores africanos fez por mim 38 foi: salvou-me de ter uma única história sobre o que os livros são. 39

Eu venho de uma família nigeriana convencional, de classe média. Meu 40 pai era professor. Minha mãe, administradora. Então nós tínhamos como era 41 normal, empregada doméstica, que, frequentemente, vinha das aldeias rurais 42 próximas. Então, quando eu fiz oito anos, arranjamos um novo menino para a 43 casa. Seu nome era Fide. A única coisa que minha mãe nos disse sobre ele foi 44 que sua família era muito pobre. Minha mãe enviava inhames, arroz e nossas 45 roupas usadas para sua família. E quando eu não comia tudo no jantar, minha 46

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mãe dizia: "Termine sua comida! Você não sabe que pessoas como a família 1 de Fide não tem nada? "Então eu sentia uma enorme pena da família de Fide”. 2

Então, num sábado, nós fomos visitar a sua aldeia e sua mãe nos mostrou 3 um cesto com um padrão lindo, feito de ráfia seca por seu irmão. Eu fiquei 4 atônita! Nunca havia pensado que alguém em sua família pudesse realmente 5 criar alguma coisa. Tudo que eu tinha ouvido sobre eles era como eram po-6 bres, assim havia se tornado impossível pra mim vê-los como alguma coisa 7 além de pobres. Sua pobreza era minha história única sobre eles. 8

Anos mais tarde, pensei nisso quando deixei a Nigéria para cursar univer-9 sidade nos Estados Unidos. Eu tinha 19 anos. Minha colega de quarto ameri-10 cana ficou chocada comigo. Ela perguntou onde eu tinha aprendido a falar in-11 glês tão bem e ficou confusa quando eu disse que, por acaso, a Nigéria tinha o 12 inglês como sua língua oficial. Ela perguntou se podia ouvir o que ela chamou 13 de minha "música tribal" e, consequentemente, ficou muito desapontada 14 quando eu toquei minha fita da Mariah Carey. (Risos) Ela presumiu que eu 15 não sabia como usar um fogão. 16

O que me impressionou foi que: ela sentiu pena de mim antes mesmo de 17 ter me visto. Sua posição padrão para comigo, como uma africana, era um tipo 18 de arrogância bem intencionada, piedade. Minha colega de quarto tinha uma 19 única história sobre a África. Uma única história de catástrofe. Nessa única 20 história não havia possibilidade de os africanos serem iguais a ela, de jeito ne-21 nhum. Nenhuma possibilidade de sentimentos mais complexos do que pieda-22 de. Nenhuma possibilidade de uma conexão como humanos iguais. 23

Eu devo dizer que antes de ir para os Estados Unidos, eu não me identifi-24 cava, conscientemente, como uma africana. Mas nos EUA, sempre que o tema 25 África surgia, as pessoas recorriam a mim. Não importava que eu não soubes-26 se nada sobre lugares como a Namíbia. Mas, eu acabei por abraçar essa nova 27 identidade. E, de muitas maneiras, agora eu penso em mim mesma como uma 28 africana. Entretanto, ainda fico um pouco irritada quando referem-se à África 29 como um país. O exemplo mais recente foi meu maravilhoso voo dos Lagos, 30 dois dias atrás, não fosse um anúncio de um voo da Virgin sobre o trabalho de 31 caridade na "Índia, África e outros países." (Risos) 32

Então, após ter passado vários anos nos EUA, como uma africana, eu co-33 mecei a entender a reação de minha colega para comigo. Se eu não tivesse 34 crescido na Nigéria e se tudo que eu conhecesse sobre a África viesse das 35 imagens populares, eu também pensaria que a África era um lugar de lindas 36 paisagens, lindos animais e pessoas incompreensíveis, lutando guerras sem 37 sentido, morrendo de pobreza e AIDS, incapazes de falar por eles mesmos, e 38 esperando serem salvos por um estrangeiro branco e gentil. Eu veria os afri-39 canos do mesmo jeito que eu, quando criança, havia visto a família de Fide. 40

Eu acho que essa única história da África vem da literatura ocidental. En-41 tão, aqui temos uma citação de um mercador londrino chamado John Locke, 42 que navegou até o oeste da África em 1561e manteve um fascinante relato de 43 sua viagem. Após referir-se aos negros africanos como "bestas que não tem 44 casas", ele escreve: "Eles também são pessoas sem cabeças, que têm sua boca 45 e olhos em seus seios." 46

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Eu rio toda vez que leio isso, e alguém deve admirar a imaginação de 1 John Locke. Mas o que é importante sobre sua escrita é que ela representa o 2 início de uma tradição de contar histórias africanas no Ocidente. Uma tradição 3 da África subsaariana como um lugar negativo, de diferenças, de escuridão, de 4 pessoas que, nas palavras do maravilhoso poeta, Rudyard Kipling, são "meta-5 de demônio, metade criança”. 6

E então eu comecei a perceber que minha colega de quarto americana de-7 ve ter, por toda sua vida, visto e ouvido diferentes versões de uma única histó-8 ria. Como um professor, que uma vez me disse que meu romance não era "au-9 tenticamente africano". Bem, eu estava completamente disposta a afirmar que 10 havia uma série de coisas erradas com o romance, que ele havia falhado em 11 vários lugares. Mas eu nunca teria imaginado que ele havia falhado em alcan-12 çar alguma coisa chamada autenticidade africana. Na verdade, eu não sabia o 13 que era "autenticidade africana" .O professor me disse que minhas persona-14 gens pareciam-se muito com ele, um homem educado de classe média. Minhas 15 personagens dirigiam carros, elas não estavam famintas. Por isso elas não 16 eram autenticamente africanos. 17

Mas eu devo rapidamente acrescentar que eu também sou culpada na 18 questão da única história. Alguns anos atrás, eu visitei o México saindo dos 19 EUA. O clima político nos EUA àquela época era tenso. E havia debates sobre 20 imigração. E, como frequentemente acontece na América, imigração tornou-se 21 sinônimo de mexicanos. Havia histórias infindáveis de mexicanos como pes-22 soas que estavam espoliando o sistema de saúde, passando às escondidas pela 23 fronteira, sendo presos na fronteira, esse tipo de coisa. 24

Eu me lembro de andar no meu primeiro dia por Guadalajara, vendo as 25 pessoas indo trabalhar, enrolando tortilhas no supermercado, fumando, rindo. 26 Eu me lembro de que meu primeiro sentimento foi surpresa. E então eu fiquei 27 oprimida pela vergonha. Eu percebi que eu havia estado tão imersa na cober-28 tura da mídia sobre os mexicanos que eles haviam se tornado uma coisa em 29 minha mente: o imigrante objeto. Eu tinha assimilado a única história sobre os 30 mexicanos e eu não podia estar mais envergonhada de mim mesma. Então, é 31 assim que se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como 32 somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão. 33

É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma pa-34 lavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as es-35 truturas de poder do mundo, e a palavra é "nkali". É um substantivo que li-36 vremente se traduz: "ser maior do que o outro. "Como nossos mundos econô-37 mico e político, histórias também são definidas pelo princípio do "nkali". Co-38 mo são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo 39 realmente depende do poder. 40

Poder é a habilidade de não só contar a história de outra pessoa, mas de 41 fazer a história definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti 42 escreve que se você quer destituir uma pessoa, o jeito mais simples é contar 43 sua história, e começar com "em segundo lugar". Comece uma história com as 44 flechas dos nativos americanos, e não com a chegada dos britânicos, e você 45 tem uma história totalmente diferente. Comece a história como fracasso do es-46

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tado africano e não com a criação colonial do estado africano e você tem uma 1 história totalmente diferente. 2

Recentemente, eu palestrei numa universidade onde um estudante disse-3 me que era uma vergonha que homens nigerianos fossem agressores físicos 4 como a personagem do pai no meu romance. Eu disse a ele que eu havia ter-5 minado de ler um romance chamado "Psicopata Americano" -(Risos)- e que 6 era uma grande pena que jovens americanos fossem assassinos em série. (Ri-7 sos) (Aplausos) É óbvio que eu disse isso num leve ataque de irritação. (Ri-8 sos) 9

Nunca havia me ocorrido pensar que só porque eu havia lido um romance 10 no qual uma personagem era um assassino em série, que isso era, de alguma 11 forma, representativo de todos os americanos. E agora, isso não é porque eu 12 sou uma pessoa melhor do que aquele estudante, mas, devido ao poder cultu-13 ral e econômico da América, eu tinha muitas histórias sobre a América. Eu 14 havia lido Tyler, Updike, Steinbeck e Gaitskill. Eu não tinha uma única histó-15 ria sobre a América. 16

Quando eu soube, alguns anos atrás, que escritores deveriam ter tido in-17 fâncias realmente infelizes para ter sucesso, eu comecei a pensar sobre como 18 eu poderia inventar coisas horríveis que meus pais teriam feito comigo. (Ri-19 sos) Mas a verdade é que eu tive uma infância muito feliz, cheia de Risos e 20 amor, em uma família muito unida. 21

Mas também tive avós que morreram em campos de refugiados. Meu 22 primo Polle morreu porque não teve assistência médica adequada. Um dos 23 meus amigos mais próximos, Okoloma, morreu num acidente aéreo porque 24 nossos caminhões de bombeiros não tinham água. Eu cresci sob governos mi-25 litares repressivos que desvalorizavam a educação, então, por vezes, meus pais 26 não recebiam seus salários. E então, ainda criança, eu vi a geleia desaparecer 27 do café da manhã, depois a margarina desapareceu, depois o pão tornou-se 28 muito caro, depois o leite ficou racionado. E acima de tudo, um tipo de medo 29 político normalizado invadiu nossas vidas. 30

Todas essas histórias fazem-me quem eu sou. Mas, insistir somente nes-31 sas histórias negativas é superficializar minha experiência e negligenciar as 32 muitas outras histórias que me formaram. A única história cria estereótipos. E 33 o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam 34 incompletos. Eles fazem um história tornar-se a única história. 35

Claro, África é um continente repleto de catástrofes. Há as enormes, como 36 as terríveis violações no Congo. E há as depressivas, como o fato de 5.000 37 pessoas candidatarem-se a uma vaga de emprego na Nigéria. Mas há outras 38 histórias que não são sobre catástrofes. E é muito importante, é igualmente 39 importante, falar sobre elas. 40

Eu sempre achei que era impossível relacionar-me adequadamente com 41 um lugar ou uma pessoa sem relacionar-me com todas as histórias daquele lu-42 gar ou pessoa. A consequência de uma única história é essa: ela rouba das pes-43 soas sua dignidade. Faz o reconhecimento de nossa humanidade compartilha-44 da difícil. Enfatiza como nós somos diferentes ao invés de como somos seme-45 lhantes. 46

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E se antes de minha viagem ao México eu tivesse acompanhado os deba-1 tes sobre imigração de ambos os lados, dos Estados Unidos e do México? E se 2 minha mãe nos tivesse contado que a família de Fide era pobre e trabalhadora? 3 E se nós tivéssemos uma rede televisiva africana que transmitisse diversas his-4 tórias africanas para todo o mundo? O que o escritor nigeriano Chinua Achebe 5 chama "um equilíbrio de histórias." 6

E se minha colega de quarto soubesse do meu editor nigeriano, Mukta 7 Bakaray, um homem notável que deixou seu trabalho em um banco para se-8 guir seu sonho e começar uma editora? Bem, a sabedoria popular era que ni-9 gerianos não gostam de literatura. Ele discordava. Ele sentiu que pessoas que 10 podiam ler, leriam se a literatura se tornasse acessível e disponível para eles. 11

Logo após ele publicar meu primeiro romance, eu fui a uma estação de 12 TV em Lagos para uma entrevista. E uma mulher que trabalhava lá como 13 mensageira veio a mim e disse: "Eu realmente gostei do seu romance, mas não 14 gostei do final. Agora você tem que escrever uma sequência; e isso é o que vai 15 acontecer..."(Risos) E continuou a me dizer o que escrever na sequência. Ago-16 ra eu não estava apenas encantada, eu estava comovida. Ali estava uma mu-17 lher, parte das massas comuns de nigerianos, que não se supunham serem lei-18 tores. Ela não tinha só lido o livro, mas ela havia se apossado dele e sentia-se 19 no direito de me dizer o que escrever na sequência. 20

Agora, e se minha colega de quarto soubesse de minha amiga Fumi Onda, 21 uma mulher destemida que apresenta um show de TV em Lagos, e que está 22 determinada a contar as histórias que nós preferimos esquecer? E se minha co-23 lega de quarto soubesse sobre a cirurgia cardíaca que foi realizada no hospital 24 de Lagos na semana passada? E se minha colega de quarto soubesse sobre a 25 música nigeriana contemporânea? Pessoas talentosas cantando em inglês e 26 Pidgin, e Igbo e Yoruba e Ijo, misturando influências de Jay-Z a Fela, de Bob 27 Marley a seus avós. E se minha colega de quarto soubesse sobre a advogada 28 que, recentemente, foi ao tribunal na Nigéria para desafiar uma lei ridícula que 29 exigia que as mulheres tivessem o consentimento de seus maridos antes de re-30 novarem seus passaportes? E se minha colega de quarto soubesse sobre 31 Nollywood, cheia de pessoas inovadoras fazendo filmes apesar de grandes 32 questões técnicas? Filmes tão populares que são realmente os melhores exem-33 plos de que nigerianos consomem o que produzem. E se minha colega de 34 quarto soubesse da minha maravilhosa mente ambiciosa trançadora de cabe-35 los, que acabou de começar seu próprio negócio de vendas de extensões de 36 cabelos? Ou sobre os milhões de outros nigerianos que começam negócios e 37 às vezes fracassam, mas continuam a fomentar ambição? 38

Toda vez que estou em casa, sou confrontada com as fontes comuns de ir-39 ritação da maioria dos nigerianos: nossa infraestrutura fracassada, nosso go-40 verno falho. Mas também pela incrível resistência do povo que prospera ape-41 sar do governo, ao invés de devido a ele. Eu ensino em workshops de escrita 42 em Lagos todo verão. E é extraordinário pra eu ver quantas pessoas se inscre-43 vem, quantas pessoas estão ansiosas por escrever, por contar histórias. 44

Meu editor nigeriano e eu começamos uma ONG chamada Farafina Trust. 45 E nós temos grandes sonhos de construir bibliotecas e recuperar bibliotecas 46 que já existem e fornecer livros para escolas estaduais que não tem nada em 47

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suas bibliotecas, e também organizar muitos e muitos workshops, de leitura e 1 escrita para todas as pessoas que estão ansiosas para contar nossas muitas his-2 tórias. Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias tem sido usa-3 das para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas 4 para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, 5 mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida. 6

A escritora americana Alice Walker escreveu isso sobre seus parentes do 7 sulque haviam se mudado para o norte. Ela os apresentou a um livro sobre a 8 vida sulista que eles tinham deixado para trás. "Eles sentaram-se em volta, 9 lendo o livro por si próprios, ouvindo-me ler o livro e um tipo de paraíso foi 10 reconquistado. "Eu gostaria de finalizar com esse pensamento: Quando nós re-11 jeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma 12 história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso. Obriga-13 da. (Aplausos) 14