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O Festim Dos Corvos - George R. R. Martin

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  • o NORTE

  • Ficha Tcnica

    Copyright George R. R. MartinTodos os direitos reservados.

    Verso brasileira 2012 Texto Editores Ltda.Titulo original: A Feast for Crows

    Diretor editorial: Pascoal SotoEditora: Mariana Rolier

    P rodutora editorial: Sonnini RuizAssistente editorial: Carolina Rodrigues P roena

    Preparao de texto: Vivian Miwa MatsushitaReviso: Mrcia Duarte, Bel Ribeiro e Juliana CaldasIlustrao da capa: Marc Simonetti ditions Jailu

    Dados internacionais de catalogao na publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Martin, George R. R.O festim dos corvos / George R. R. Martin ; traduo: Jorge Candeias. So Paulo :

    Leya, 2012. (As crnicas de gelo e fogo ; 4)

    Ttulo original: A feast for crows.ISBN 9788580445053

    1. Fico fantstica americana. I. Ttulo. II. Srie11-12863 CDD-813

    ndices para catlago sistemtico:1. Fico : Literatura norte-americana 813

    Texto Editores Ltda.[Uma editora do grupo LeYa]

    Rua Desembagador Paulo Passalqua, 8601248-010 Pacaembu So Paulo SP

    www.leya.com

  • Para Stephen Boucher,feiticeiro do Windows, drago do DOS,

    sem o qual este livro teria sidoescrito a lpis.

  • D

    PRLOGO

    rages Mollander disse. Pegou uma ma estragada que estava no cho e afez saltar de uma mo para a outra.

    Atire a ma Alleras, o Esfinge pediu. Puxou uma flecha da aljava e aprendeu na corda do arco.

    Eu queria ver um drago Roone era o mais novo do grupo, um rapazatarracado ainda a dois anos de se tornar homem. Queria muito.

    E eu queria dormir abraado a Rosey , Pate pensou. Mexeu-se inquieto nobanco. De manh, a garota podia bem ser sua. Vou lev-la para longe deVilavelha, para o outro lado do mar estreito at uma das Cidades Livres .L no havia meistres, no existia ningum que o acusasse.

    Ouvia as gargalhadas de Emma, vindas de uma janela fechada, por cima desua cabea, misturadas com a voz mais profunda do homem que estava comela. Era a mais velha das mulheres que serviam no Pena e Caneca, tinha pelomenos quarenta anos, mas ainda era bonita ao seu jeito carnudo. Rosey era suafilha, tinha quinze anos e acabara de florir. Emma decretara que a virgindade deRosey custaria um drago de ouro. Pate poupara nove veados de prata e umcntaro de estrelas e moedas de cobre, mas isto de nada lhe serviria. Teria tidomais chances de trazer ao mundo um drago de verdade do que de pouparmoedas suficientes para uma de ouro.

    Nasceu tarde demais para drages, moo disse a Roone Armen, oAclito. Armen usava uma tira de couro em volta do pescoo, amarrada comelos de peltre, estanho, chumbo e cobre, e assim como a maioria dos aclitos,parecia pensar que os novios tinham nabos crescendo entre os ombros no lugarda cabea. O ltimo pereceu durante o reinado do Rei Aegon Terceiro.

    O ltimo drago em Westeros insistiu Mollander. Atire a ma Alleras voltou a pedir. Era um jovem atraente, aquele

    Esfinge. Todas as criadas tinham um fraco por ele. s vezes, at Rosey lhetocava no brao quando lhes trazia vinho, e Pate tinha de ranger os dentes efingir no ver.

  • O ltimo drago em Westeros foi o ltimo drago disse Armen comteimosia. Isto bem sabido.

    A ma Alleras repetiu. A menos que queira com-la. L vai arrastando a perna de pau, Mollander deu um curto salto, rodopiou

    e arremessou horizontalmente a ma para as nvoas que pairavam sobre oVinhomel. No fosse o p, teria sido um cavaleiro como seu pai. Tinha a foranecessria naqueles braos grossos e ombros largos, e a ma voou para longee rpido demais...

    ... mas no to rpido quanto a flecha que assobiou em seu encalo, ummetro de haste de madeira dourada com penas escarlates. Pate no a viu atingira ma, mas a ouviu. Um tchunc suave ecoou por sobre o rio, seguido por umrespingar de gua.

    Mollander assobiou: Em cheio. Boa. em de perto to boa quanto Rosey . Pate adorava seus olhos cor de avel

    e seus seios em boto, e o modo como sorria sempre que o via. Adorava ascovinhas em seu rosto. s vezes, ela andava descala enquanto servia, parasentir a erva sob os ps. Tambm adorava aquilo. Adorava o cheiro limpo efresco que ela exalava, o modo como os cabelos se enrolavam atrs dasorelhas. Adorava at mesmo seus dedos dos ps. Uma noite, ela o deixaraesfregar seus ps e brincar com eles, e Pate inventara uma histria divertidapara cada dedo, a fim de faz-la sorrir.

    Talvez fizesse melhor em permanecer deste lado do mar estreito. Podiacomprar um burro com o dinheiro que poupara, e Rosey e ele podiam mont-lopor turnos enquanto vagueavam por Westeros. Ebrose podia no consider-lomerecedor da prata, mas Pate sabia como endireitar um osso e curar uma febrecom sanguessugas. O povo ficaria grato por sua ajuda. Se conseguisse aprendera cortar cabelos e a fazer barbas, podia mesmo se tornar barbeiro. Isso seria obastante, disse a si prprio, desde que tivesse a Rosey . Rosey era tudo quedesejava no mundo.

    Nem sempre fora assim. Sonhara outrora ser meistre em um castelo, aservio de um senhor generoso qualquer que o honrasse por sua sabedoria e lheconcedesse um belo cavalo branco como agradecimento por seus servios. Equo alto o montaria, quo nobremente, distribuindo sorrisos aos plebeus quandopassasse por eles na estrada...

    Certa noite, na sala comum do Pena e Caneca, aps a segunda caneca deuma cidra terrivelmente forte, Pate gabara-se de que no seria novio para

  • sempre. bem verdade gritara Leo Preguioso. Vai ser um ex-novio e criar

    porcos.Ele engoliu de um s trago o resto em sua caneca. Naquela manh, a

    varanda iluminada a archote do Pena e Caneca era uma ilha de luz num mar denvoa. A jusante, o distante sinal luminoso da Torralta flutuava no relento danoite como uma lua alaranjada e brumosa, mas a luz pouco fez para melhorar-lhe o estado de esprito.

    A esta hora o alquimista j devia ter chegado . Tudo fora algumabrincadeira cruel, ou teria acontecido alguma coisa ao homem? No seria aprimeira vez que a fortuna cobria Pate de amargura. Uma vez achara-seafortunado por ter sido escolhido para ajudar o velho Arquimeistre Walgravecom os corvos, sem sonhar que logo tambm estaria buscando suas refeies,varrendo seus aposentos e vestindo-o todas as manhs. Todos diziam queWalgrave esquecera mais da criao de corvos do que a maior parte dosmeistres chegava a saber, por isso Pate assumira que um elo negro de ferro erao mnimo que poderia esperar, mas acabara por descobrir que isto era algo queWalgrave no poderia lhe dar. O velho continuava a ser arquimeistre apenas porcortesia. Por maior que tivesse sido como meistre, agora o mais comum era quesuas vestes escondessem roupas ntimas emporcalhadas, e meio ano antes umgrupo de aclitos o encontrara s lgrimas na Biblioteca, pois no fora capaz deencontrar o caminho de volta at seus aposentos. Era Meistre Gormon quem sesentava sob a mscara de ferro no lugar de Walgrave, o mesmo Gormon queum dia acusara Pate de roubo.

    Na macieira, beira dgua, um rouxinol comeou a cantar. Era um somdoce, uma pausa bem-vinda nos gritos roucos e no crocitar sem fim dos corvosde que cuidara o dia inteiro. Os corvos brancos conheciam seu nome, e oresmungavam uns para os outros sempre que o vislumbravam, Pate, Pate,Pate, at deix-lo a ponto de gritar. As grandes aves brancas eram o orgulhodo Arquimeistre Walgrave. Desejava com-las quando ele morresse, mas Pateandava meio desconfiado de que as aves tambm pretendiam com-lo.

    Talvez fosse a cidra terrivelmente forte no viera para beber, mas Allerasse encarregara de pagar, para festejar seu elo de cobre, e a culpa dera-lhe sede, mas quase soava como se o rouxinol estivesse trinando ouro por ferro, ouropor ferro, ouro por ferro . O que era muitssimo esquisito, pois tinha sido aquiloque o estranho dissera na noite em que Rosey os apresentara.

    Quem voc? Pate perguntou, e o homem respondeu:

  • Um alquimista. Sei transformar ferro em ouro e, ento, tinha uma moedana mo, danando sobre os ns dos dedos, fazendo brilhar o suave ouro amarelo luz das velas. De um lado, havia um drago de trs cabeas, do outro, acabea de um rei qualquer morto. Ouro por ferro , recordou Pate, noconseguir melhor. Voc a deseja? Voc a ama?

    No sou nenhum ladro disse ao homem que se designava alquimista. Sou um novio da Cidadela.

    O alquimista inclinou a cabea e disse: Se reconsiderar, voltarei aqui dentro de trs dias, com meu drago.Tinham se passado trs dias. Pate regressara ao Pena e Caneca, ainda

    incerto do que ele seria, mas, em vez do alquimista, encontrara Mollander,Armen e o Esfinge, com Roone a reboque. Teria levantado suspeitas se no sejuntasse a eles.

    O Pena e Caneca nunca fechava. Havia seiscentos anos que se erguia emsua ilha no Vinhomel, e nem por uma vez deixara de funcionar. Embora o altoedifcio de madeira se inclinasse para o sul, como os novios por vezes apsbeber uma caneca, Pate supunha que a estalagem continuaria em p por maisseiscentos anos, vendendo vinho, cerveja e cidra terrivelmente forte a homensdo rio e do mar, ferreiros e cantores, sacerdotes e prncipes, e aos novios eaclitos da Cidadela.

    Vilavelha no o mundo Mollander declarou, alto demais. Era filho deum cavaleiro, mas no poderia estar mais bbado. Desde que lhe tinham trazidoa notcia da morte do pai na gua Negra, embebedava-se quase todas as noites.At em Vilavelha, longe das batalhas e em segurana atrs de suas muralhas, aGuerra dos Cinco Reis tocara-os a todos... embora o Arquimeistre Benedictinsistisse que nunca houvera uma guerra de cinco reis, j que Renly Baratheonfora morto antes de Balon Greyjoy ter sido coroado.

    Meu pai sempre disse que o mundo era maior do que o castelo de qualquersenhor prosseguiu Mollander. Os drages devem ser a menor das coisasque um homem poder encontrar em Qarth, Asshai e Yi Ti. Essas histrias dosmarinheiros...

    ... so histrias contadas por marinheiros Armen o interrompeu. Marinheiros , meu caro Mollander. V at as docas e aposto que encontrarmarinheiros que lhe falaro das sereias com as quais dormiram, ou de comopassaram um ano na barriga de um peixe.

    Como que sabe que no passaram? Mollander bateu os ps gramaafora, procura de mais mas. Precisaria estar na barriga do peixe para

  • jurar isto. Um marinheiro com uma histria, tudo bem, um homem podia rir dela,mas quando remadores vindos de quatro navios diferentes contam a mesmahistria em quatro lnguas diferentes...

    A histria no a mesma insistiu Armen. Drages em Asshai, dragesem Qarth, drages em Meereen, drages dothraki, drages libertandoescravos... todas as histrias so diferentes umas das outras.

    S nos detalhes Mollander ficava mais teimoso quando bebia, mas atsbrio era obstinado. Todos falam de drages, e de uma bela jovem rainha.

    O nico drago que interessava a Pate era feito de ouro amarelo. Perguntoua si mesmo o que teria acontecido ao alquimista. Ao terceiro dia... Ele disseque estaria aqui.

    H outra ma perto do seu p gritou Alleras a Mollander , e eu aindatenho duas flechas na aljava.

    Que se foda sua aljava Mollander apanhou o fruto cado. Ela estbichada protestou, mas a atirou mesmo assim. A flecha atingiu a ma quandoela comeava a cair e a cortou ao meio. Uma metade caiu no telhado de umtorreo, rolou at outro mais baixo e caiu; no atingiu Armen por meio metro.

    Se cortar um verme na metade, criar dois vermes informou-os o aclito. Se ao menos acontecesse o mesmo com as mas, nunca ningum

    precisaria passar fome Alleras disse com um de seus sorrisos gentis. Esfingeandava sempre sorrindo, como se conhecesse algum gracejo secreto. Isto lhedava um aspecto malicioso que combinava bem com o queixo pontiagudo, o bicoque a linha dos cabelos formava no meio da testa e o denso matagal de cachosnegros de azeviche cortados curtos.

    Alleras seria meistre. S estava na Cidadela havia um ano, mas j forjaratrs elos de sua corrente de meistre. Armen podia ter mais, mas levara um anopara ganhar cada um deles. Mesmo assim, tambm chegaria a meistre. Roone eMollander continuavam a ser novios de pescoo rosado, mas Roone era muitonovo, e Mollander gostava mais de beber do que de ler.

    Mas Pate...Estava na Cidadela havia cinco anos, chegara com no mais que treze anos,

    mas seu pescoo permanecia to rosado quanto fora no dia em que viera dasterras ocidentais. Julgara-se pronto por duas vezes. Da primeira, apresentara-seao Arquimeistre Vaellyn para demonstrar seu conhecimento dos cus. Em vezdisso, descobriu como foi que Vinagre Vaellyn ganhou este apelido. Pate levoudois anos reunindo coragem para voltar a tentar. Ento, submetera-se ao velho eamvel Arquimeistre Ebrose, famoso por sua voz suave e mos gentis. Mas os

  • suspiros de Ebrose revelaram-se to dolorosos quanto as farpas de Vaellyn. Uma ltima ma prometeu Alleras , e eu conto a vocs minhas

    suspeitas acerca desses drages. O que voc poderia saber que j no sei? Mollander resmungou.

    Encontrou uma ma num galho, saltou, arrancou-a e a arremessou. Alleraspuxou a corda do arco at a orelha, virando-se habilmente para seguir o alvo.Atirou a flecha precisamente no momento em que a ma comeava a cair.

    Falha sempre no ltimo tiro Roone disse.A ma mergulhou no rio, intacta. Viu? Roone confirmou. O dia em que se acertam todos os alvos aquele em que se para de

    melhorar Alleras desprendeu a corda do arco e o enfiou em seu estojo decouro. O arco fora esculpido em amagodouro, madeira rara e lendria das Ilhasdo Vero. Pate tentara dobr-lo uma vez e falhara. Esfinge parece franzino,mas h fora naqueles braos magros , refletiu, enquanto Alleras passavauma perna por sobre o banco e estendia a mo para a taa de vinho. Odrago tem trs cabeas anunciou em sua arrastada pronncia dornesa.

    Isto um enigma? Roone quis saber. Nas histrias, as esfinges semprefalam por enigmas.

    No enigma nenhum Alleras bebericou o vinho. Os outros emborcavamcanecas da cidra terrivelmente forte pela qual Pena e Caneca era famoso, masele preferia os estranhos vinhos doces do pas da me. Mesmo em Vilavelha,tais vinhos no se obtinham a baixo preo.

    Fora Leo Preguioso quem apelidara Alleras de o Esfinge. Uma esfinge um pouco disso, um pouco daquilo: rosto humano, corpo de um leo, asas de umfalco. Alleras era igual: pai dorns e a me uma mulher de pele negra das Ilhasdo Vero. Sua pele era escura como teca. E, tal como as esfinges de mrmoreverde que guardavam o porto principal da Cidadela, Alleras tinha olhos de nix.

    Nunca nenhum drago teve trs cabeas, exceto em escudos e bandeiras disse Armen, o Aclito, com firmeza. Isto um smbolo herldico, nada mais.Alm disso, os Targaryen esto todos mortos.

    Nem todos disse Alleras. O Rei Pedinte tinha uma irm. Achava que a cabea dela tinha sido esmagada contra uma parede

    Roone interveio. No Alleras respondeu. Foi a cabea do jovem filho do Prncipe

    Rhaegar que foi atirada contra uma parede pelos bravos homens do Leo deLannister. Estamos falando da irm de Rhaegar, nascida em Pedra do Drago

  • antes de o castelo cair. Aquela a quem chamaram Daenerys. A Nascida na Tormenta . Agora me lembro Mollander ergueu bem alto

    a caneca, agitando a cidra que restava. A ela! emborcou, bateu com acaneca vazia na mesa, arrotou e limpou a boca com as costas da mo. Ondeest Rosey? Nossa legtima rainha merece outra rodada de cidra, no acha?

    Armen, o Aclito, pareceu assustado. Baixe a voz, imbecil. Nem devia brincar com essas coisas. Nunca se sabe

    quem pode estar ouvindo. A Aranha tem ouvidos por todo lado. Oh, no mije nas calas Armen. Estava propondo uma nova rodada, no

    uma rebelio.Pate ouviu um risinho abafado. Uma voz suave e zombeteira gritou atrs

    dele. Sempre soube que voc era um traidor, Salto de R Leo Preguioso

    estava encostado entrada da antiga ponte de pranchas, envolto em cetimlistrado de verde e dourado, com meia capa de seda negra presa ao ombro poruma rosa de jade. Pela cor das manchas, o vinho que deixara pingar na parte dafrente do traje era um tinto robusto. Uma madeixa de seus cabelos louro-acinzentados caa-lhe por sobre um olho.

    Mollander irritou-se ao v-lo. Que se dane voc. V embora. No bem-vindo aqui Alleras pousou-lhe

    uma mo no brao, para acalm-lo, enquanto Armen franzia as sobrancelhas. Leo. Senhor. Julgava que ainda estaria confinado Cidadela por... ... mais trs dias Leo Preguioso encolheu os ombros. Perestan diz que

    o mundo tem quarenta mil anos. Mollos, que tem quinhentos mil. Que so trsdias, eu lhe pergunto? embora houvesse uma dzia de mesas vazias navaranda, Leo sentou-se na deles. Pague-me uma taa de dourado da rvore,Salto de R, e eu talvez no informe meu pai sobre seu brinde. As pedrasviraram-se contra mim na Sorte Xadrez, e desperdicei meu ltimo veado nojantar. Leito com molho de ameixas, recheado com castanhas e trufas brancas.Um homem precisa comer. O que vocs comeram, rapazes?

    Carneiro Mollander resmungou. No soava nada satisfeito com aquilo. Dividimos um quarto de carneiro cozido.

    Estou certo de que ficaram satisfeitos Leo virou-se para Alleras. Ofilho de um senhor devia ser generoso, Esfinge. Soube que ganhou seu elo decobre. Bebo a isto.

    Alleras deu um sorriso. Eu s pago aos amigos. E no sou nenhum filho de senhor, j lhe disse.

  • Minha me era uma mercadora.Os olhos de Leo eram cor de avel, e brilhavam de vinho e malcia. Sua me era uma macaca das Ilhas do Vero. Os dorneses fodem

    qualquer coisa que tenha um buraco entre as pernas. Sem ofensa. Pode sercastanho como uma noz, mas pelo menos toma banho. Ao contrrio de nossocriador de porcos malhados indicou Pate com um aceno de mo.

    Se batesse na boca dele com a caneca, podia partir metade de seusdentes, Pate pensou. Pate Malhado, o criador de porcos, era o heri de milhistrias libertinas: um rstico de bom corao e cabea vazia que sempreconseguia vencer os fidalgos gordos, os altivos cavaleiros e os septespomposos que lhe criavam dificuldades. De algum modo, sua estupidez revelavaser uma espcie de astcia rude; as histrias terminavam sempre com PateMalhado sentado no cadeiro de um lorde ou dormindo com a filha de umcavaleiro. Mas eram s histrias. No mundo real, os criadores de porcos nuncase davam to bem. s vezes, Pate achava que a me devia odi-lo para lhe terdado o nome que dera.

    Alleras j no sorria mais. V pedir desculpa. Ah, vou? Leo retrucou. Como poderia, com minha garganta to seca... Envergonha sua Casa com cada palavra que pronuncia disse-lhe Alleras.

    Envergonha a Cidadela por ser um de ns. Eu sei. Por isso pague-me um pouco de vinho, para que eu possa afogar

    minha vergonha.Mollander falou: Eu gostaria de arrancar sua lngua pela raiz. Srio? E como que eu lhe contaria sobre os drages? Leo voltou a

    encolher os ombros. O mestio tem razo. A filha do Rei Louco est viva econseguiu fazer nascer trs drages.

    Trs? Roone exclamou, espantado.Leo deu-lhe palmadinhas na mo. Mais do que dois e menos do que quatro. Se eu fosse voc no tentaria

    ganhar o elo dourado por enquanto. Deixe-o em paz Mollander o avisou. Que Salto de R to cavalheiresco. Como quiser. Todos os homens de

    todos os navios que velejaram a menos de cem lguas de Qarth esto falandosobre esses drages. Alguns at lhes diro que os viram. O Mago est inclinadoa crer neles.

  • Armen comprimiu os lbios em desaprovao: Marwyn insano. Arquimeistre Perestan seria o primeiro a lhe dizer isto. Arquimeistre Ryam diz o mesmo Roone rebateu.Leo bocejou: O mar molhado, o sol quente e os animais enjaulados odeiam o co de

    guarda.Ele tem um nome zombeteiro para todo mundo , Pate pensou, mas no

    podia negar que Marwyn se parecia mais com um co de guarda do que comum meistre. como se quisesse nos morder . O Mago no era como os outrosmeistres. Diziam que se fazia acompanhar de prostitutas e de feiticeirosandantes, que falava com ibbeneses peludos e ilhus do Vero negros comobreu na prpria lngua desses povos, e fazia sacrifcios a deuses estranhos nospequenos templos dos marinheiros que se erguiam junto aos cais. Os homensfalavam que o tinham visto na parte erma da cidade, em arenas de ratazanas ebordis negros, na companhia de saltimbancos, cantores, mercenrios e atpedintes. Alguns chegavam mesmo a sussurrar que certa vez ele matara umhomem com os punhos.

    Quando Marwyn regressou a Vilavelha, depois de passar oito anos no lestemapeando terras distantes, em busca de livros perdidos e aprendendo comfeiticeiros e umbromantes, Vinagre Vaellyn apelidara-o de Marwyn, o Mago.O nome espalhara-se rapidamente por toda Vilavelha, para grandeaborrecimento de Vaellyn.

    Deixe os feitios e as preces para os sacerdotes e os septes, e direcione ainteligncia para a aprendizagem de verdades em que um homem possaconfiar, aconselhara Arquimeistre Ryam certa vez a Pate, mas o anel, o bastoe a mscara de Ryam eram de ouro amarelo, e sua corrente de meistre noinclua um elo de ao valiriano.

    Armen olhou ao longo do nariz para Leo Preguioso. Tinha o nariz perfeitopara isto, comprido, estreito e pontiagudo.

    Arquimeistre Marwyn acredita em muitas coisas curiosas disse , masno tem mais provas dos drages do que Mollander. S tem mais histrias demarinheiro.

    Est enganado Leo respondeu. H uma vela de vidro ardendo nosaposentos do Mago.

    Um silncio caiu sobre a varanda iluminada por archotes. Armen suspirou ebalanou a cabea. Mollander ps-se a rir. Esfinge estudou Leo com seusgrandes olhos negros. Roone pareceu no compreender.

  • Pate sabia das velas de vidro, embora nunca tivesse visto uma ardendo.Eram o segredo mais mal guardado da Cidadela. Dizia-se que tinham sidotrazidas de Valria para Vilavelha mil anos antes da Perdio. Ouvira dizer quehavia quatro; uma verde e trs negras, e todas altas e retorcidas.

    O que so essas velas de vidro? Roone quis saber.Armen, o Aclito, pigarreou: Antes de um aclito proferir seus votos, deve passar a noite anterior de

    viglia na cripta. No lhe permitido archote, lmpada, lanterna ou crio... suma vela de obsidiana. Tem de passar a noite na escurido, a menos que sejacapaz de acend-la. Alguns tentam. Os tolos e os teimosos, aqueles queestudaram os ditos mistrios superiores. frequente cortarem os dedos, poisdizem que as arestas da vela so afiadas como navalhas. Ento, com mosensanguentadas, tm de esperar a alvorada pensando sobre seu fracasso.Homens mais sensatos vo simplesmente dormir, ou passam a noite em orao,mas todos os anos h sempre alguns que precisam tentar.

    Sim Pate ouvira as mesmas histrias. Mas de que serve uma vela queno ilumina?

    uma lio Armen explicou , a ltima lio que temos de aprenderantes de colocar nossa corrente de meistre. A vela de vidro representa averdade e a aprendizagem, coisas raras, belas e frgeis. Tem a forma de umavela para nos lembrar que um meistre deve iluminar o lugar em que prestaservio, e afiada para nos lembrar que o conhecimento pode ser perigoso. Ossbios podem se tornar arrogantes com sua sabedoria, mas um meistre devepermanecer sempre humilde. A vela de vidro tambm nos lembra disso. Mesmodepois de ter proferido os votos, colocado a corrente e partido para servir, ummeistre recordar a escurido de sua viglia e se lembrar de que nada do quetentou conseguiu fazer que a vela acendesse... pois, mesmo com oconhecimento, algumas coisas no so possveis.

    Leo Preguioso desatou a rir: No so possveis para voc, quer dizer. Vi a vela ardendo com meus

    prprios olhos. Voc viu uma vela ardendo, no duvido Armen rebateu. Uma vela de

    cera negra, talvez. Sei o que vi. A luz era estranha e brilhante, muito mais brilhante do que a

    de qualquer vela de cera de abelha ou de sebo. Criava sombras estranhas e achama nunca oscilava, nem mesmo quando uma brisa soprou pela porta abertaatrs de mim.

  • Armen cruzou os braos: A obsidiana no arde. Vidro de drago Pate completou. O povo a chama de vidro de drago

    no sabia por que, mas aquilo lhe parecia importante. Pois que chame meditou Alleras, o Esfinge , e se houver de novo

    drages no mundo... Drages e coisas mais sombrias Leo completou. As ovelhas cinzentas

    fecharam os olhos, mas o co de guarda v a verdade. Velhos poderesacordam. Sombras se agitam. Uma era de maravilha e terror cair em brevesobre ns, uma era para deuses e heris espreguiou-se, exibindo seu sorrisoindolente. Isto vale uma rodada, creio eu.

    J bebemos o suficiente Armen os alertou. A manh chegar maisdepressa do que gostaramos, e o Arquimeistre Ebrose falar sobre aspropriedades da urina. Aqueles que pretendem forjar um elo de prata fariambem em comparecer palestra.

    Longe de mim afastar vocs da prova de mijo Leo caoou. C pra ns,prefiro o sabor do dourado da rvore.

    Se a escolha for entre voc e o mijo, eu bebo o mijo Mollander afastou-se da mesa. Venha, Roone.

    Esfinge estendeu a mo para o estojo do arco. Para mim tambm cama. Imagino que sonharei com drages e velas de

    vidro. Todos? Leo encolheu os ombros. Bem, a Rosey fica. Talvez acorde

    nossa pequena doura e faa dela uma mulher.Alleras viu a expresso no rosto de Pate. Se ele no tem um cobre para uma taa de vinho, no pode ter um drago

    para a garota. Sim Mollander concordou. Alm disso, preciso ser homem para fazer

    de uma garota uma mulher. Venha, Pate. O Velho Walgrave acordar quando osol nascer. Ele vai precisar da sua ajuda para ir latrina.

    Se hoje se lembrar de quem sou . O Arquimeistre Walgrave no tinhadificuldade em distinguir os corvos uns dos outros, mas no era to bom com aspessoas. Havia dias em que parecia pensar que Pate era algum chamadoCressen.

    Ainda no disse aos amigos. Vou ficar por algum tempo a alvoradaainda no rompera, no propriamente. O alquimista ainda podia aparecer, e Patepretendia estar ali se viesse.

  • Como quiser Armen assentiu. Alleras lanou um olhar demorado a Pate,depois pendurou o arco num ombro magro e seguiu os outros na direo daponte. Mollander estava to bbado que tinha de caminhar apoiado no ombro deRoone para no cair. A Cidadela no ficava a grande distncia em voo decorvo, mas nenhum deles era um corvo, e Vilavelha era um verdadeiro labirinto,cheia de ruelas, vielas entrecruzadas e ruas estreitas e tortuosas.

    Cuidado ouviu Armen dizer quando as nvoas do rio engoliram os quatro, a noite est mida e as pedras estaro escorregadias.

    Quando desapareceram, Leo Preguioso observou amargamente Pate porcima da mesa.

    Que tristeza. Esfinge escapuliu-se com toda sua prata, abandonando-me aoPate Malhado, o criador de porcos espreguiou-se, bocejando. Diga l,como anda nossa adorvel Roseyzinha?

    Est dormindo Pate respondeu secamente. Nua, com certeza Leo abriu um sorriso. Acha que ela vale mesmo um

    drago? Suponho que um dia terei de verificar.Pate sabia que no era boa ideia responder quilo.Leo no precisava de resposta. Suponho que uma vez que eu rasgue a garota, seu preo caia de forma que

    at criadores de porcos consigam pag-la. Devia me agradecer.Devia matar voc , pensou Pate, mas estava longe de se encontrar

    suficientemente bbado para jogar a vida fora. Leo recebera treinamento emarmas e tinha fama de ser mortfero com a espada de sicrio e o punhal. E sePate, de algum modo, conseguisse mat-lo, isto lhe custaria tambm a cabea.Leo tinha dois nomes, enquanto Pate no possua mais do que um, e o segundoera Tyrell. Sor Moryn Tyrell, comandante da Patrulha da Cidade de Vilavelha,era pai de Leo. Mace Tyrell, Senhor de Jardim de Cima e Protetor do Sul, eraseu primo. E o Velho de Vilavelha, Lorde Leyton da Torralta, que incluaProtetor da Cidadela entre seus muitos ttulos, era vassalo juramentado Casa Tyrell. Deixe estar, disse Pate a si mesmo. Ele diz essas coisas s parame ferir.

    As nvoas estavam se iluminando a leste. A alvorada, Pate compreendeu. Aalvorada chegou, e o alquimista no . No sabia se deveria rir ou chorar.Ainda serei um ladro se devolver tudo e ningum souber de nada? Eraoutra pergunta para a qual no tinha resposta, como aquelas que Ebrose eVaellyn lhe tinham feito outrora.

    Quando se afastou do banco e se levantou, a cidra terrivelmente forte subiu-

  • lhe cabea toda de uma vez. Teve de se apoiar na mesa para se equilibrar. Deixe Rosey em paz disse, ao modo de despedida. Deixe-a em paz,

    seno pode ser que eu o mate.Leo Tyrell afastou os cabelos do olho num movimento rpido: No travo duelos com criadores de porcos. V embora.Pate virou-se e atravessou a varanda. Seus calcanhares ressoaram nas

    desgastadas tbuas da velha ponte. Quando chegou ao outro lado, o cu orientaltornava-se rosado. O mundo grande , disse a si mesmo. Se comprasse o talburro, ainda poderia vaguear pelas estradas e atalhos dos Sete Reinos,sangrando o povo e catando-lhe lndeas dos cabelos. Podia oferecer-menum navio qualquer, puxar um remo e velejar para Qarth, a dos Portesde Jade, para ver esses malditos drages com meus prprios olhos. opreciso voltar para o velho Walgrave e os corvos.

    Mas sem saber como, os ps levaram-no na direo da Cidadela.Quando o primeiro raio de sol perfurou as nuvens a leste, os sinos matinais

    comearam a repicar no Septo do Marinheiro junto ao porto. O Septo do Senhorjuntou-se ao primeiro um momento mais tarde, seguido pelos Sete Santurios emseus jardins do outro lado do Vinhomel e, por fim, o Septo Estrelado, que fora asede do Alto Septo durante os mil anos que antecederam o desembarque deAegon em Porto Real. Compunham uma msica poderosa. Embora no todoce quanto a de um pequeno rouxinol.

    Tambm ouvia cantos sob o repique dos sinos. Todas as manhs, primeiraluz da aurora, os sacerdotes vermelhos reuniam-se para dar as boas-vindas aosol no exterior de seu modesto templo erguido junto aos cais. Pois a noite escura e cheia de terrores . Pate ouvira-os gritar aquelas palavras umacentena de vezes, pedindo ao seu deus Rhllor para proteg-los da escurido.Os Sete eram deuses suficientes para ele, mas ouvira dizer que StannisBaratheon orava agora s fogueiras noturnas. At pusera o corao flamejantede Rhllor em seus estandartes, em vez do veado coroado. Se ele conquistar oTrono de Ferro, vamos todos ter de aprender a letra da cano dossacerdotes vermelhos , Pate pensou, mas isto no era provvel. TyrionLannister esmagara Stannis e Rhllor na gua Negra, e em breve acabaria comeles e espetaria a cabea do pretendente Baratheon num espigo por cima dosportes de Porto Real.

    medida que as nvoas da noite se dissipavam, Vilavelha ia tomando forma sua volta, emergindo fantasmagoricamente das sombras que antecediam aalvorada. Pate nunca vira Porto Real, mas sabia que era uma cidade de taipa,

  • uma extenso de ruas lamacentas, telhados de colmo e telheiros de madeira.Vilavelha era construda em pedra, e todas as suas ruas eram caladas compedras, at a mais erma das vielas. A cidade nunca era to bela como aoromper da aurora. A oeste do Vinhomel, as sedes das guildas ladeavam amargem como uma fileira de palcios. A montante, as cpulas e torres daCidadela erguiam-se de ambos os lados do rio, ligadas por pontes de pedrarepletas de casas e edifcios pblicos. A jusante, sob as muralhas de mrmorenegro e janelas arqueadas do Septo Estrelado, as manses dos piedososaglomeravam-se como crianas reunidas em torno dos ps de uma velha vivarica.

    Mais adiante, onde o Vinhomel se alargava e mergulhava na Enseada dosMurmrios, erguia-se a Torralta, com suas fogueiras de aviso brilhantes contra ofundo da aurora. Do local onde se erguia no topo das escarpas da Ilha daBatalha, sua sombra cortava a cidade como uma espada. Os nascidos e criadosem Vilavelha sabiam dizer as horas pelo ponto onde a sombra caa. Algunsfalavam que do topo da torre se conseguia ver tudo, at a Muralha. Talvez fossepor isso que Lorde Leyton no descia havia mais de uma dcada, preferindogovernar sua cidade a partir das nuvens.

    A carroa de um aougueiro passou por Pate trovejando ao longo da estradado rio, levando cinco leites que guinchavam aflitos. Afastando-se de seucaminho, evitou por pouco ser salpicado quando uma mulher esvaziou um baldede dejetos noturnos de uma janela por cima dele. Quando for um meistre numcastelo, terei um cavalo para montar , pensou. Ento, tropeou numa pedra eperguntou a si mesmo quem estava tentando enganar. Para ele no haveriacorrente, lugar de honra mesa de um senhor ou um alto cavalo branco paramontar. Seus dias seriam passados ouvindo o cuorc dos corvos e lavandomanchas de merda da roupa ntima do Arquimeistre Walgrave.

    Estava apoiado num joelho, tentando limpar a lama de sua veste, quando umavoz soou:

    Bom dia, Pate.O alquimista estava em p ao seu lado.Pate se levantou: O terceiro dia... disse que estaria no Pena e Caneca. Voc estava com amigos. No desejei me intrometer em sua

    camaradagem o alquimista trajava um manto de viajante com capuz marrom eordinrio. O sol nascente espreitava por sobre os telhados atrs do seu ombro,tornando difcil distinguir o rosto dentro do capuz. J decidiu o que ?

  • Ser que ele precisa me obrigar a dizer? Suponho que sou um ladro. Achei que talvez fosse.A parte mais difcil tinha sido agachar-se para puxar o cofre que estava sob a

    cama do Arquimeistre Walgrave. Embora o cofre fosse robusto e reforadocom ferro, sua fechadura estava quebrada. Meistre Gormon suspeitava quePate a danificara, mas no era verdade. Fora o prprio Walgrave quemquebrara a fechadura, depois de perder a chave que a abria.

    L dentro, Pate encontrara um saco de veados de prata, uma madeixa decabelos louros atada com uma fita, uma miniatura pintada de uma mulher que seassemelhava a Walgrave (at no bigode) e uma manopla de cavaleiro feita deao articulado, que pertencera a um prncipe, segundo Walgrave afirmava,embora j no parecesse ser capaz de se lembrar de qual deles. Quando Pate asacudira, a chave cara no cho.

    Se eu a pegar, serei um ladro , lembrava-se de ter pensado. A chave eravelha e pesada, feita de ferro negro; supostamente abria todas as portas daCidadela. S os arquimeistres possuam chaves como aquela. Os outrostransportavam as suas consigo ou as escondiam em algum local seguro, mas seWalgrave tivesse escondido a sua, nunca mais ningum a veria. Pate pegou achave e percorreu metade do caminho at a porta antes de voltar e pegartambm a prata. Um ladro era um ladro, quer roube muito ou pouco. Pate,chamara um dos corvos brancos, Pate, Pate, Pate.

    Tem o meu drago? perguntou ao alquimista. Se voc tiver o que quero. D-me aqui. Quero ver Pate no tencionava permitir que o enganassem. A estrada do rio no lugar para isto. Venha.No teve tempo de pensar, de pesar suas alternativas. O alquimista se

    afastava. Pate tinha de segui-lo ou perderia tanto Rosey quanto o drago, e parasempre. E foi o que fez. Enquanto caminhavam, enfiou a mo na manga.Conseguia sentir a chave, em segurana, dentro do bolso escondido que coseraali. As vestes de meistre tinham bolsos por todo lado. Pate sabia disso desderapaz.

    Tinha de se apressar para conseguir acompanhar os passos mais longos doalquimista. Desceram por uma viela, viraram uma esquina, atravessaram oantigo Mercado dos Ladres, percorreram a Ruela do Trapeiro. Por fim, ohomem entrou em outra viela, mais estreita do que a primeira.

    J chega Pate disse. No h ningum nossa volta. Faremos a troca

  • aqui. Como quiser. Quero o meu drago. Com certeza a moeda surgiu. O alquimista a fez caminhar por sobre os

    ns dos dedos, da mesma maneira que fizera quando Rosey os apresentara. luz da manh o drago cintilava enquanto se movia, e dava aos dedos doalquimista um brilho dourado.

    Pate tirou a moeda da mo do outro. O ouro parecia-lhe morno contra a peleda mo. Levou-o boca e o trincou, como vira os homens fazer. Para falar averdade, no tinha certeza de qual deveria ser o sabor do ouro, mas no queriaparecer um tolo.

    A chave? o alquimista perguntou educadamente.Algo levou Pate a hesitar. algum livro que deseja? dizia-se que alguns dos velhos pergaminhos

    valirianos trancados nas galerias subterrneas eram as nicas cpias querestavam no mundo.

    O que eu quero no da sua conta. No est feito , disse Pate a si mesmo. V. Corra de volta ao Pena e

    Caneca, acorde Rosey com um beijo e diga-lhe que te pertence . Mas, aindaassim se deixou-se ficar. Mostre-me seu rosto.

    Como quiser o alquimista tirou o capuz.Era apenas um homem, e seu rosto era apenas isto. Um rosto de jovem,

    comum, com faces cheias e a sombra de uma barba. Uma tnue cicatrizentrevia-se na bochecha direita. Tinha um nariz adunco e uma densa cabeleirapreta que se encaracolava, bem apertada, em volta das orelhas. No era umrosto que Pate reconhecesse.

    No o conheo. Nem eu a ti. Quem voc? Um estranho. Ningum. De verdade. Oh Pate ficara sem palavras. Pegou a chave e a pousou na mo do

    estranho, experimentando a cabea leve, sentindo-se quase com vertigens.Rosey, recordou a si mesmo. Ento tudo.

    J tinha percorrido metade da viela quando o cho de pedras comeou a semover sob seus ps. As pedras esto escorregadias e midas , pensou, masno era isso. Sentia o corao martelando no peito.

    O que est acontecendo? perguntou. Suas pernas tinham se

  • transformado em gua. No compreendo. E nunca compreenders respondeu uma voz num tom triste.O cho de pedras saltou para beijar o rapaz. Pate tentou gritar por ajuda, mas

    a voz tambm falhou.Seu ltimo pensamento foi para Rosey.

  • O

    O PROFETA

    profeta estava afogando homens em Grande Wyk quando vieram lhe dizer que orei estava morto.

    Era uma manh fria e de ventania, e o mar mostrava o mesmo tom plmbeodo cu. Os primeiros trs homens tinham oferecido sem temor suas vidas aoDeus Afogado, mas o quarto era fraco na f e comeou a se debater quando ospulmes gritaram por ar. Mergulhado at a cintura na rebentao, Aeronsegurou o rapaz nu pelos ombros e empurrou-lhe a cabea para baixo quandoele tentou inspirar um pouco de ar.

    Tenha coragem ordenou. Viemos do mar e ao mar temos de regressar.Abra a boca e beba profundamente a bno de deus. Encha os pulmes degua, para que possa morrer e renascer. De nada adianta resistir.

    Ou o rapaz no conseguia ouvir com a cabea submersa nas ondas, ou a f otinha abandonado por completo. Desatou a espernear e a se sacudir comtamanha violncia, que Aeron teve de pedir ajuda. Quatro de seus afogadosentraram na gua para segurar o desgraado e mant-lo submerso.

    Senhor Deus que se afogou por ns orou o sacerdote, numa voz profundacomo o mar , permita que Emmond, seu servo, renasa do mar, assim comovoc. Abenoe-o com sal, abenoe-o com pedra, abenoe-o com ao.

    Por fim, terminou. No havia mais bolhas de ar saindo da boca do rapaz, etoda a fora sumira de seus membros. Emmond flutuava de cabea para baixono mar pouco profundo, branco, frio e em paz.

    Foi ento que Cabelo-Molhado percebeu que trs cavaleiros tinham sejuntado aos seus afogados na costa pedregosa. Aeron conhecia Sparr, um velhocom rosto de machadinha e olhos lacrimejantes, cuja voz trmula era lei naquelaparte de Grande Wyk. Seu filho Steffarion acompanhava-o, com outro jovem,cujo manto vermelho-escuro e forrado de peles estava preso ao ombro com umornamentado broche que mostrava o berrante de guerra negro e dourado dosGoodbrother. Um dos filhos de Gorold , decidiu o sacerdote num relance. Aesposa de Goodbrother dera tardiamente luz trs filhos altos, aps uma dzia

  • de filhas, e dizia-se que no havia homem capaz de distinguir um filho dosdemais. Aeron Cabelo-Molhado no se dignou a tentar. Fosse aquele Greydon,Gormond ou Gran, o sacerdote no tinha tempo para ele.

    Rosnou uma ordem brusca, e seus afogados pegaram o rapaz morto pelosbraos e pernas para lev-lo at acima da linha da mar. O sacerdote os seguiu,vestido apenas com uma tanga de pele de foca que lhe cobria as partes ntimas.Encharcado e com os pelos arrepiados, voltou para a terra, atravessando a areiamolhada e fria e os seixos polidos pelo mar. Um de seus afogados entregou-lheuma veste de pesado tecido grosseiro, tingido com tons variados de verde, azul ecinza, as cores do mar e do Deus Afogado. Aeron envergou a veste e soltou oscabelos. Negros e molhados; nenhuma lmina lhes tocara desde que o mar oerguera. Envolviam-lhe os ombros como um manto esfarrapado e filamentoso, ecaam-lhe at abaixo da cintura. Aeron entranava neles cordes de algas, efazia o mesmo na barba emaranhada e por cortar.

    Seus afogados formavam um crculo em volta do rapaz morto, orando.Norjen trabalhava com seus braos, enquanto Rus estava sentado sobre o rapaz,comprimindo-lhe ritmicamente o peito, mas todos se afastaram para deixarAeron passar. Ele abriu os lbios frios do rapaz e deu a Emmond o beijo da vida,e voltou a d-lo, e de novo, at que o mar jorrou de sua boca. O rapaz ps-se atossir e a cuspir, e seus olhos se abriram, cheios de medo.

    Outro que regressou . Era um sinal do favor do Deus Afogado, diziam oshomens. Todos os outros sacerdotes perdiam algum de vez em quando, atTarle, o Triplamente-Afogado, que um dia fora considerado to santo queacabara escolhido para coroar um rei. Mas Aeron Greyjoy, nunca. Ele era oCabelo-Molhado, aquele que vira os sales aquticos do prprio deus eregressara para falar deles.

    Erga-se disse ao rapaz ofegante enquanto lhe dava uma palmada nascostas nuas. Afogou-se e nos foi devolvido. O que est morto no podemorrer.

    Mas volta o rapaz tossiu violentamente, cuspindo mais gua. Volta a seerguer cada palavra era arrancada com dor, mas o mundo era assim; umhomem tinha de lutar para viver. Volta a se erguer Emmond ps-seinstavelmente em p. Mais duro. E mais forte.

    Agora pertence ao deus disse-lhe Aeron. Os outros afogados reuniram-se em volta do rapaz e todos lhe deram um soco e um beijo de boas-vindas irmandade. Um deles o ajudou a colocar uma veste de tecido grosseiro tingidocom tons variados de verde, azul e cinza. Outro presenteou-o com uma maa

  • feita de madeira trazida pelo mar. Agora pertence ao mar, e por isso o mar oarmou disse Aeron. Oramos para que manejes sua maa com ferocidadecontra todos os inimigos de nosso deus.

    S ento o sacerdote se virou para os trs cavaleiros que observavam decima das selas.

    Vieram para ser afogados, senhores?Sparr tossiu. Fui afogado quando jovem disse , e meu filho no dia de seu nome.Aeron soltou uma fungadela. Que Steffarion Sparr fora entregue ao Deus

    Afogado pouco depois de nascer no duvidava. Tambm conhecia o modocomo isto acontecera, um rpido mergulho numa tina de gua do mar que quaseno molhara a cabea do beb. Pouco admirava que os homens de ferrotivessem sido conquistados, eles, que outrora dominavam todos os locais onde seconseguia ouvir o som das ondas.

    Aquilo no foi um verdadeiro afogamento disse aos cavaleiros. Aqueleque no morre de verdade no pode esperar se erguer da morte. Por quevieram, se no foi para demonstrar sua f?

    O filho de Lorde Gorold veio procur-lo, com notcias Sparr indicou ojovem de manto vermelho.

    O rapaz parecia no ter mais de dezesseis anos. Sim, e voc qual deles? Aeron quis saber. Gormond. Gormond Goodbrother, se lhe aprouver. ao Deus Afogado que devemos aprazer. Voc foi afogado, Gormond

    Goodbrother? No dia do meu nome, Cabelo-Molhado. Meu pai mandou que o procurasse

    e o levasse at ele. Precisa v-lo. Aqui estou eu. Que Lorde Gorold venha e banqueteie os olhos Aeron

    pegou um odre de couro que Rus lhe entregara depois de ench-lo com gua domar. O sacerdote tirou a rolha e bebeu um gole.

    Devo lev-lo at a fortaleza insistiu o jovem Gormond de cima de seucavalo.

    Ele tem medo de desmontar, um cuidado para no molhar as botas. Tenho trabalho do deus a fazer Aeron Greyjoy era um profeta. No

    admitia que pequenos senhores lhe ordenassem o que fazer como se fosse umservo.

    Gorold recebeu uma ave disse Sparr. Uma ave de meistre, vinda de Pyke confirmou Gormond.

  • Asas escuras, palavras escuras. Os corvos voam sobre sal e pedra. Se h notcias que me dizem respeito,

    pode falar. As notcias que trazemos so apenas para seus ouvidos, Cabelo-Molhado

    Sparr retrucou. No so assuntos de que eu queira falar aqui, diante dosoutros.

    Esses outros so meus afogados, servos do deus, assim como eu. Notenho segredos para eles, nem para o nosso deus, junto a cujo mar me encontro.

    Os cavaleiros trocaram um olhar. Diga a ele Sparr encorajou o jovem do manto vermelho, que ento reuniu

    coragem. O rei est morto disse, com toda a simplicidade. Quatro pequenas

    palavras, e no entanto o prprio mar tremeu quando as pronunciou.Havia quatro reis em Westeros, mas Aeron no precisou perguntar sobre

    qual deles se falava. Balon Greyjoy, e nenhum outro, governava as Ilhas deFerro. O rei est morto. Como pode ser? Aeron vira o irmo mais velho aindano havia uma volta de lua, quando regressara s Ilhas de Ferro depois deassolar a Costa Pedregosa. Os cabelos grisalhos de Balon tinham se tornadoquase brancos enquanto o sacerdote andara distante, e a inclinao de seusombros pronunciara-se mais desde quando os dracares tinham partido. Mas,apesar disso, o rei no parecera enfermo.

    Aeron Greyjoy construra sua vida sobre dois poderosos pilares. Aquelasquatro pequenas palavras tinham derrubado um deles. S me resta o DeusAfogado. Que me torne to forte e incansvel quanto o mar.

    Conte-me como meu irmo morreu. Sua Graa atravessava uma ponte em Pyke quando caiu e foi atirado

    contra as rochas.O castelo Greyjoy erguia-se sobre um promontrio irregular, e suas torres e

    fortalezas tinham sido construdas no topo de macias colunas de pedra que seprojetavam do mar. Pontes uniam Pyke; pontes em arco de pedra esculpida epontes suspensas de corda de cnhamo e tbuas de madeira.

    A tempestade soprava quando ele caiu? perguntou-lhes Aeron. Sim o jovem respondeu , soprava. O Deus da Tempestade o derrubou anunciou o sacerdote. Havia um

    milhar de milhares de anos que o mar e o cu estavam em guerra. Do martinham vindo os homens de ferro, e os peixes que os sustentavam mesmo noauge do inverno, mas as tempestades traziam apenas angstia e desgosto.

  • Meu irmo Balon tornou-nos grandes novamente, e isto atraiu a ira do Deus daTempestade. Agora banqueteia-se nos sales aquticos do Deus Afogado, comsereias obedecendo ao seu mnimo desejo. Caber a ns, que ficamos para trsneste vale seco e sombrio, terminar sua grande obra voltou a tampar o odre. Falarei com o senhor seu pai. A que distncia estamos de Cornartelo?

    Seis lguas. Pode cavalgar comigo. Um cavalga mais depressa do que dois. D-me seu cavalo, e o Deus

    Afogado o abenoar. Leve meu cavalo, Cabelo-Molhado Steffarion Sparr ofereceu. No. A montaria dele mais forte. O seu cavalo, rapaz.O jovem hesitou por meio segundo, aps o que desmontou e entregou as

    rdeas a Cabelo-Molhado. Aeron enfiou um p descalo e negro num estribo esubiu para a sela. No gostava de cavalos, eram criaturas das terras verdes eajudavam a tornar os homens fracos, mas a necessidade obrigava a cavalgada.Asas escuras, palavras escuras . Uma tempestade estava se formando, ouvia-o nas ondas, e as tempestades nada traziam que no fosse maligno.

    Encontrem-me em Seixeira, sob a torre de Lorde Merlyn disse aos seusafogados, enquanto virava a cabea do cavalo.

    O caminho era duro, por montes, florestas e desfiladeiros pedregosos, aolongo de uma trilha estreita que com frequncia parecia desaparecer sob oscascos dos cavalos. Grande Wyk era a maior das Ilhas de Ferro, to vasta quealguns de seus senhores tinham propriedades que no faziam fronteira com omar sagrado. Gorold Goodbrother era um deles. Sua fortaleza ficava nosMontes Pedradura, o mais longe dos domnios do Deus Afogado que se podiaestar nas ilhas. Seu povo trabalhava nas minas de Gorold, na escurido rochosasubterrnea. Alguns viviam e morriam sem pr os olhos em gua salgada.Pouco admira que uma tal gente seja complicada e estranha.

    Enquanto Aeron cavalgava, seus pensamentos se voltaram para os irmos.Nove filhos tinham nascido das virilhas de Quellon Greyjoy, o Senhor das

    Ilhas de Ferro. Harlon, Quenton e Donel tinham nascido da primeira esposa deLorde Quellon, uma mulher de Pedrarbor. Balon, Euron, Victarion, Urrigon eAeron eram os filhos da segunda, uma Sunderly de Salsia. Para terceiraesposa, Quellon escolhera uma rapariga das terras verdes, que lhe deu um rapazenfermio e idiota chamado Robin, o irmo que era melhor esquecer. Osacerdote no tinha memria de Quenton ou Donel, falecidos ainda crianas.Recordava-se de Harlon apenas vagamente, sentado de rosto cinzento e imvelnuma sala de torre sem janelas, e falando em sussurros que se iam tornando

  • mais tnues a cada dia que passava, medida que a escamagris transformavasua lngua e seus lbios em pedra. Um dia banquetearemos juntos com peixenos sales aquticos do Deus Afogado, ns quatro, e Urri tambm.

    Nove filhos tinham nascido das virilhas de Quellon Greyjoy, mas s quatrotinham sobrevivido at a idade adulta. Era assim este mundo frio, onde oshomens pescavam no mar, escavavam o solo e morriam, enquanto as mulheresdavam luz crianas de vida breve em camas de sangue e dor. Aeron fora altima e a menor das quatro lulas gigantes, e Balon o mais velho e o maisousado, um rapaz feroz e destemido que vivia apenas para devolver aos homensde ferro sua antiga glria. Aos dez anos, escalara os Penhascos de Pederneiraat a torre assombrada do Senhor Cego. Aos treze conseguia governar osremos de um dracar e danar a dana dos dedos to bem quanto qualquerhomem das ilhas. Aos quinze velejara com Dagmer Boca-Fendida at osDegraus e passara um vero na pilhagem. Matara a o primeiro homem etomara as duas primeiras esposas de sal. Aos dezessete Balon capitaneava seuprimeiro navio. Era tudo aquilo que um irmo mais velho devia ser, emboranunca tivesse mostrado a Aeron nada exceto desprezo. Eu era fraco e cheiode pecado, e desprezo era mais do que merecia. Era melhor serdesprezado por Balon, o Bravo, do que ser amado por Euron Olho deCorvo. E se a idade e o desgosto tinham tornado Balon amargo com os anos,tinham-no tambm deixado mais determinado do que qualquer outro homemvivo. Ele nasceu como filho de um lorde e morreu como um rei,assassinado por um deus ciumento , Aeron pensou, e agora a tempestadeest prestes a chegar, uma tempestade como estas ilhas nuncaconheceram.

    H muito j escurecera quando o sacerdote vislumbrou as pontiagudasameias de ferro de Cornartelo, que tentavam agarrar o crescente da lua. Afortaleza de Gorold tinha um aspecto desajeitado e pesado, e fora construdacom grandes pedras cortadas do monte que se erguia por trs dela. Sob asmuralhas, as entradas de grutas e antigas minas abriam-se como bocas negras edesdentadas. Os portes de ferro de Cornartelo tinham sido fechados etrancados para a noite. Aeron bateu neles com uma pedra at que o clangoracordou um guarda.

    O jovem que o deixou entrar era a imagem de Gormond, cujo cavalo tomara. Qual deles voc? Aeron quis saber. Gran. Meu pai o espera l dentro.O salo era escuro e amplo, cheio de sombras. Uma das filhas de Gorold

  • ofereceu ao sacerdote um corno de cerveja. Outra avivou um fogo sombrio quegerava mais fumaa do que calor. O prprio Gorold Goodbrother conversavaem voz baixa com um homem magro que trajava uma veste de bom tecidocinzento e trazia em volta do pescoo uma corrente de muitos metais que oidentificava como um meistre da Cidadela.

    Onde est Gormond? perguntou Gorold quando viu Aeron. Regressa a p. Mande embora as mulheres, senhor. E o meistre tambm

    no gostava de meistres. Seus corvos eram criaturas do Deus da Tempestade,e, desde Urri, no confiava em suas curas. Nenhum homem verdadeiroescolheria uma vida de escravatura nem forjaria uma corrente de servido parausar em volta do pescoo.

    Gysella, Gwin, deixem-nos Goodbrother ordenou secamente. Voctambm, Gran. O Meistre Murenmure ficar.

    Ele sair. Este salo meu, Cabelo-Molhado. No cabe a voc me dizer quem deve

    ir e quem deve ficar. O meistre fica.O homem vive longe demais do mar, disse Aeron a si mesmo. Ento vou embora disse a Goodbrother. Esteiras secas estalaram sob

    seus ps descalos e negros quando se virou e se dirigiu porta. Parecia quetinha cavalgado muito tempo para nada.

    Aeron estava quase diante da porta quando o meistre pigarreou e disse: Euron Olho de Corvo ocupa a Cadeira de Pedra do Mar.Cabelo-Molhado virou-se. O salo arrefecera de um momento para outro.

    Olho de Corvo est a meio mundo de distncia. Balon mandou-o emborah dois anos, e jurou que se regressasse isto lhe custaria a vida.

    Conte-me disse, com voz rouca. Entrou em Fidalporto no dia seguinte ao da morte do rei e reclamou o

    castelo e a coroa na condio de irmo mais velho de Balon disse GoroldGoodbrother. Agora est enviando corvos, convocando a Pyke os capites eos reis de todas as ilhas para dobrarem o joelho e lhe prestarem homenagemcomo seu rei.

    No Aeron Cabelo-Molhado no pesou as palavras. S um homemdevoto pode se sentar na Cadeira de Pedra do Mar. Olho de Corvo no adoranada exceto seu prprio orgulho.

    Esteve em Pyke h no muito tempo e viu o rei disse Goodbrother. Balon lhe disse alguma coisa a respeito da sucesso?

    Sim. Tinham conversado na Torre do Mar, enquanto o vento uivava do lado

  • de fora das janelas e as ondas se quebravam sem descanso l embaixo. Balonabanara a cabea, em desespero, quando ouvira o que Aeron tinha a lhe dizersobre o ltimo filho que lhe restava.

    Os lobos fizeram dele um fraco, tal como eu temia dissera o rei. Rezoao deus para que o tenham matado, para que no se coloque no caminho deAsha era esta a cegueira de Balon; revia-se na filha selvagem e obstinada, eacreditava que ela podia suced-lo. Nisto enganava-se, e Aeron tentara lhedizer isso.

    Nenhuma mulher governar os homens de ferro, nem mesmo uma comoAsha insistira, mas Balon sabia ser surdo para aquilo que no desejava ouvir.

    Antes que o sacerdote tivesse tempo de responder a Gorold Goodbrother, aboca do meistre abriu-se mais uma vez.

    Pelo direito, a Cadeira de Pedra do Mar pertence a Theon, ou a Asha, se oprncipe estiver morto. A lei esta.

    Lei da terra verde Aeron disse com desprezo. Que nos interessa isso?Somos homens de ferro, os filhos do mar, os escolhidos do Deus Afogado.Nenhuma mulher pode nos governar, assim como nenhum homem sem deuspode faz-lo.

    E Victarion? perguntou Gorold Goodbrother. Ele tem a Frota de Ferro.Ir Victarion avanar com uma pretenso, Cabelo-Molhado?

    Euron o irmo mais velho... comeou o meistre.Aeron silenciou-o com um olhar. Fosse em pequenas vilas de pescadores, ou

    em grandes fortalezas de pedra, um olhar assim de Cabelo-Molhado fazia quedonzelas perdessem a fora nas pernas e punha crianas aos gritos a correrpara junto das mes, e era mais do que o suficiente para dominar o servo com acorrente ao pescoo.

    Euron mais velho disse o sacerdote , mas Victarion mais devoto. Haver guerra entre eles? o meistre perguntou. Homens de ferro no devem derramar o sangue de homens de ferro. Um sentimento piedoso, Cabelo-Molhado disse Goodbrother , mas no

    algo de que seu irmo partilhe. Mandou afogar Sawane Botley por dizer que aCadeira de Pedra do Mar pertencia por direito a Theon.

    Se ele foi afogado, nenhum sangue foi derramado Aeron rebateu.O meistre e o lorde trocaram um olhar. Tenho de mandar uma mensagem a Pyke, e logo disse Gorold

    Goodbrother. Cabelo-Molhado, gostaria de obter seu conselho. O que ser,homenagem ou desafio?

  • Aeron passou a mo na barba e refletiu. Vi a tempestade, e seu nome Euron Olho de Corvo:

    Por ora, envie apenas silncio ele respondeu ao lorde. Tenho de rezarsobre isso.

    Reze tudo o que quiser alertou-o o meistre. Isto no muda a lei. Theon o legtimo herdeiro, e Asha vem depois.

    Silncio! Aeron rugiu. Os homens de ferro passaram tempo demaisouvindo meistres com corrente no pescoo tagarelando sobre as terras verdes esuas leis. hora de voltarmos a escutar o mar. hora de escutarmos a voz dodeus sua prpria voz ressoou no salo fumacento, to cheia de poder que nemGorold Goodbrother nem seu meistre se atreveram a responder. O DeusAfogado est comigo, pensou Aeron. Ele me mostrou o caminho .

    Goodbrother ofereceu-lhe o conforto do castelo para a noite, mas o sacerdotedeclinou. Raramente dormia sob o teto de um castelo, e nunca o fazia to longedo mar.

    Conhecerei o conforto nos sales aquticos do Deus Afogado sob asondas. Nascemos para sofrer, para que nosso sofrimento nos fortalea. Nopreciso mais do que um cavalo repousado para me levar at Seixeira.

    E isto Goodbrother sentiu-se feliz por fornecer. Enviou tambm o filhoGreydon, a fim de mostrar ao sacerdote o caminho mais curto at o mar,atravs dos montes. Quando partiram, a aurora ainda demoraria uma hora parasurgir, mas as montarias eram resistentes e de patas seguras, e fizeram um bomtempo, apesar da escurido. Aeron fechou os olhos e proferiu uma precesilenciosa e, passado algum tempo, ps-se a dormitar na sela.

    O som chegou tnue, o grito de uma dobradia enferrujada. Urri murmurou, e acordou, temeroso. Aqui no h dobradias, no h

    porta, no h Urri . Um machado voador levara metade da mo de Urriquando tinha catorze anos e brincava de dana dos dedos, enquanto o pai e osirmos mais velhos estavam longe, na guerra. A terceira esposa de LordeQuellon fora uma Piper do Castelo de Donzelarrosa, uma moa com grandesseios macios e olhos castanhos de cora. Em vez de curar a mo de Urri peloCostume Antigo, com fogo e gua do mar, entregara-o ao seu meistre das terrasverdes, que jurara conseguir costurar os dedos em falta. Fizera-o, e depois usarapoes, cataplasmas e ervas, mas a mo gangrenou e Urri contraiu uma febre.Quando o meistre lhe serrou o brao, era tarde demais.

    Lorde Quellon nunca regressou de sua ltima viagem; o Deus Afogado, emsua bondade, concedeu-lhe uma morte no mar. Foi Lorde Balon quem voltou,

  • com os irmos Euron e Victarion. Quando Balon ouviu sobre o que aconteceraa Urri, removeu trs dos dedos do meistre com um cutelo de cozinheiro emandou a mulher do pai costur-los. Cataplasmas e poes funcionaram tobem para o meistre como para Urrigon. O homem morreu em delrio, e aterceira esposa de Lorde Quellon o seguiu pouco depois, quando a parteiraremoveu uma filha natimorta de seu ventre. Aeron sentira-se feliz. Tinha sidoseu machado que cortara os dedos de Urri, enquanto danavam juntos a danados dedos, como os amigos e irmos costumavam fazer.

    Ainda envergonhava-o recordar os anos que se seguiram morte de Urri.Aos dezesseis intitulava-se homem, mas na verdade no passava de um saco devinho com pernas. Cantava, danava (mas no a dana dos dedos, esta nuncamais), gracejava, tagarelava e fazia troa. Tocava gaita, fazia malabarismo,montava a cavalo e era capaz de beber mais do que todos os Wynch e osBotley e tambm metade dos Harlaw. O Deus Afogado concede a todos oshomens um dom, at a ele; nenhum homem era capaz de mijar por mais tempoou at mais longe do que Aeron Greyjoy, habilidade que provava em todos osbanquetes. Uma vez apostara seu novo dracar contra uma manada de cabrasque seria capaz de apagar uma lareira sem recorrer a nada exceto seu pau.Aeron banqueteara-se com cabra durante um ano e batizara o navio deTempestade Dourada , embora Balon tivesse ameaado enforc-lo no mastrodo dracar quando lhe contaram que tipo de esporo o irmo pretendia colocar naproa.

    No fim das contas, Tempestade Dourada naufragou ao largo da Ilha Beladurante a primeira rebelio de Balon, cortado ao meio por uma enorme gal deguerra chamada Fria quando Stannis Baratheon apanhara Victarion naarmadilha que montara e esmagara a Frota de Ferro. Mas o deus ainda no secansara de Aeron, e o levou para terra. Um grupo de pescadores o tornoucativo e o levou acorrentado at Lanisporto, onde passou o resto da guerra nasentranhas de Rochedo Casterly, provando que as lulas gigantes eram capazesde mijar durante mais tempo e at mais longe do que os lees, os javalis ou asgalinhas.

    Esse homem est morto . Aeron afogara-se e renascera do mar, como oprofeta do prprio deus. No havia mortal que fosse capaz de assust-lo, e omesmo se podia dizer da escurido... e das memrias, os ossos da alma. O somde uma porta abrindo-se, o grito de uma dobradia de ferro enferrujada.Euron regressara . No importava. Ele era o sacerdote Cabelo-Molhado, oamado do deus.

  • Haver guerra? perguntou Greydon Goodbrother quando o sol iluminouos montes. Uma guerra de irmo contra irmo?

    Se o Deus Afogado desejar. Nenhum homem sem deus pode se sentar naCadeira de Pedra do Mar Olho de Corvo lutar, isto certo . Nenhumamulher seria capaz de derrot-lo, nem mesmo Asha; as mulheres eram feitaspara travar suas batalhas na cama de partos. E Theon, se ainda estivesse vivo,era igualmente impotente, um rapaz de ataques de mau humor e sorrisos. EmWinterfell demonstrara seu valor, o que possua, mas Olho de Corvo no eranenhum rapaz aleijado. Os conveses do navio de Euron estavam pintados devermelho, para melhor esconder o sangue que os ensopava. Victarion. O reitem de ser Victarion, seno a tempestade nos matar a todos.

    Greydon o deixou depois de o sol nascer, para ir levar a notcia da morte deBalon aos primos, em suas torres em Covabaixa, no Forte do Espigo do Corvoe no Lago do Cadver. Aeron prosseguiu sozinho, subindo montes e descendovales ao longo de uma trilha pedregosa que ia se tornando mais larga e ntida medida que se aproximava do mar. Em todas as aldeias fazia uma pausa parapregar, assim como nos ptios dos pequenos senhores.

    Nascemos do mar, e ao mar voltaremos dizia-lhes. Sua voz era profundacomo o oceano, e trovejava como as ondas. O Deus da Tempestade, em suaira, arrancou Balon de seu castelo e o derrubou, e ele agora banqueteia-se sobas ondas nos sales aquticos do Deus Afogado ento, erguia as mos: Balon est morto! O rei est morto! Mas um rei voltar! Pois o que est mortono pode morrer, mas volta a se erguer, mais duro e mais forte! Um rei seerguer!

    Alguns daqueles que o escutavam largavam as enxadas e as picaretas parasegui-lo, de modo que, quando ouviu o bater das ondas, uma dzia de homenscaminhava atrs de seu cavalo, tocados pelo deus e desejosos de se afogar.

    Seixeira era o lar de vrios milhares de pescadores, cujas cabanas seaglomeravam em volta da base de uma casa-torre quadrada com um torreo emcada canto. Duas vintenas dos afogados de Aeron esperavam-no a, acampadosao longo de uma praia de areia cinzenta, em tendas de pele de foca e abrigosconstrudos com madeira trazida pelo mar. Suas mos tinham sido endurecidaspela maresia, marcadas por redes e linhas, ganhado calos por causa dos remos,picaretas e machados, mas agora aquelas mos empunhavam maas durascomo ferro, feitas de madeira trazida pelo mar, pois o deus armara-os com seuarsenal submarino.

    Tinham construdo um abrigo para o sacerdote logo acima da linha das

  • mars. Aeron enfiou-se l de bom grado, depois de afogar seus mais recentesseguidores. Meu deus, orou, fala-me com o estrondo das ondas e diga-me oque fazer. Os capites e os reis esperam a sua palavra. Quem ser nossorei no lugar de Balon? Canta-me na lngua do leviat, para que eu possasaber o seu nome. Diga-me, oh Senhor sob as ondas, quem tem fora paracombater as tempestades em Pyke?

    Embora a cavalgada at Cornartelo o tivesse deixado cansado, AeronCabelo-Molhado no conseguiu ficar quieto em seu abrigo de madeira trazidapelo mar e teto de algas negras. As nuvens chegaram para esconder a lua e asestrelas, e a escurido caiu to densa sobre o mar como sobre sua alma. Balonfavorecia Asha, a filha de seu corpo, mas uma mulher no pode governaros homens de ferro. Tem de ser Victarion . Nove filhos tinham nascido dasvirilhas de Quellon Greyjoy, e Victarion era o mais forte de todos, um autnticotouro, destemido e obediente. E a que se encontra o perigo. Um irmo maisnovo deve obedincia ao mais velho, e Victarion no era homem que velejassecontra a tradio. Mas ele no tem nenhuma simpatia por Euron, no a temdesde que a mulher morreu.

    L fora, sob o ressonar de seus afogados e os lamentos do vento, ouviu orebentar das ondas, o martelo de seu deus chamando para a batalha. Aeronarrastou-se para fora do pequeno abrigo e penetrou no frio da noite. Levantou-se, nu, plido, descarnado e alto, e nu caminhou at o negro mar salgado. Agua estava gelada, mas a carcia de seu deus no o fez vacilar. Uma ondaesmagou-se contra seu peito, fazendo-o cambalear. A seguinte quebrou-se porcima de sua cabea. Sentiu o sabor do sal nos lbios e a presena do deus suavolta, e seus ouvidos ressoaram-lhe com a glria de sua cano. Nove filhosnasceram das virilhas de Quellon Greyjoy, e eu fui o ltimo, to fraco eassustado quanto uma menina. Mas no mais. Esse homem afogou-se, e odeus fez-me forte. O frio mar salgado o rodeou, abraou-o, avanou atravs desua carne fraca de homem e tocou-lhe os ossos. Ossos, pensou. Os ossos daalma. Os ossos de Balon, e os de Urri. A verdade encontra-se em nossosossos, pois a carne se decompe, e o osso resiste. E no monte de agga,os ossos do Palcio do Rei Cinzento...

    E descarnado, plido e tremendo, Aeron Cabelo-Molhado lutou pararegressar terra, mais sbio do que era ao entrar no mar. Pois encontrara aresposta em seus ossos, e o caminho que tinha diante de si tornara-se evidente.A noite estava to fria que o corpo pareceu fumegar quando regressou emsilncio ao abrigo, mas havia uma fogueira ardendo em seu corao, e por uma

  • vez o sono chegou facilmente, sem ser quebrado pelo grito de dobradias deferro.

    Quando acordou, o dia estava ensolarado e ventoso. Aeron quebrou o jejumcom um caldo de amijoas e algas marinhas preparado numa fogueira feita commadeira trazida pelo mar. Tinha acabado de terminar a refeio quando Merlyndesceu de sua casa-torre, com meia dzia de guardas, sua procura.

    O rei est morto disse-lhe Cabelo-Molhado. Sim. Recebi uma ave. E agora outra Merlyn era um homem calvo,

    redondo e carnudo que chamava a si mesmo de lorde, maneira das terrasverdes, e se vestia de peles e veludos. Um corvo convoca-me a Pyke, e outros Dez Torres. Vocs, as lulas gigantes, tm muitos tentculos, despedaam umhomem. Que me diz, sacerdote? Para onde devo enviar meus dracares?

    Aeron franziu as sobrancelhas. Dez Torres, voc diz? Que lula gigante o chama l? Dez Torres era a

    sede do Senhor de Harlaw. A Princesa Asha. Virou as velas para casa. O Leitor envia corvos,

    convocando todos os seus amigos a Harlaw. Diz que Balon pretendia que elaocupasse a Cadeira de Pedra do Mar.

    O Deus Afogado decidir quem deve ocupar a Cadeira de Pedra do Mar disse o sacerdote. Ajoelhe-se, para que possa abeno-lo Lorde Merlyncaiu sobre os joelhos, Aeron tirou a rolha do odre e despejou gua do mar emsua careca. Senhor Deus que se afogou por ns, permita que Meldred, seucriado, renasa do mar. Abenoe-o com o sal, abenoe-o com a pedra,abenoe-o com o ao gua escorria pelas gordas bochechas de Merlyn eensopava-lhe a barba e a capa de pele de raposa. O que est morto no podemorrer terminou Aeron , mas volta a se erguer, mais duro e mais forte mas, quando Merlyn se ergueu, disse-lhe: Fique e escute, para que possaespalhar a palavra do deus.

    A um metro da beira da gua as ondas rebentavam em volta de umpedregulho redondo de granito. E foi ali que Aeron Cabelo-Molhado subiu, paraque todo seu cardume pudesse v-lo e ouvir as palavras que tinha a dizer.

    Nascemos do mar, e ao mar regressaremos comeou, como fizera cemvezes antes. O Deus da Tempestade, em sua ira, arrancou Balon de seucastelo e o derrubou, e ele agora banqueteia-se sob as ondas E, ento, ergueuas mos: O rei de ferro est morto! Mas um rei voltar a surgir! Pois o queest morto no pode morrer, mas volta a se erguer, mais duro e mais forte!

    Um rei se erguer! gritaram os afogados.

  • Um rei se erguer. Tem de se erguer. Mas quem? Cabelo-Molhadoescutou por um momento, mas apenas as ondas lhe responderam. Quem sero nosso rei?

    Os afogados puseram-se a bater com as maas umas nas outras. Cabelo-Molhado! gritaram. Rei Cabelo-Molhado! Rei Aeron! D-

    nos o Cabelo-Molhado!Aeron balanou a cabea. Se um pai tem dois filhos e d um machado a um deles e uma rede ao

    outro, qual dos dois pretende que seja o guerreiro? O machado para o guerreiro gritou Rus em resposta e a rede, para

    um pescador dos mares. Sim Aeron respondeu. O deus levou-me at as profundezas sob as

    guas e afogou a coisa imprestvel que eu era. Quando voltou a me atirar paraterra, me deu olhos para ver, orelhas para ouvir e uma voz para espalhar a suapalavra, para que eu pudesse ser o seu profeta e ensinar sua verdade quelesque a esqueceram. No fui feito para me sentar na Cadeira de Pedra do Mar...tal como Euron Olho de Corvo no o foi. Pois eu escutei o deus, que disse:Nenhum homem sem deus pode se sentar na minha Cadeira de Pedra doMar!

    Merlyn cruzou os braos diante do peito. Ento Asha? Ou Victarion? Diga-nos, sacerdote! O Deus Afogado dir, mas no aqui Aeron apontou para a gorda face

    branca de Merlyn. No olhe para mim, nem para as leis do homem, mas simpara o mar. Ice as velas e estenda os remos, senhor, e siga at Velha Wyk.Voc e todos os capites e reis. No v para Pyke, no abaixe a cabeaperante o infiel; nem para Harlaw, ligar-se a mulheres intriguistas. Aponte aproa para a Velha Wyk, onde se erguia o Palcio do Rei Cinzento. Em nome doDeus Afogado eu o convoco. Convoco a todos! Deixem seus sales ecabanas, seus castelos e fortalezas, e regressem ao monte de Nagga para umaassembleia de homens livres!

    Merlyn olhou-o de boca aberta. Uma assembleia de homens livres? No h uma verdadeira assembleia

    h... ... muito tempo! gritou Aeron, angustiado. Mas na alvorada dos dias,

    os homens de ferro escolhiam os prprios reis, promovendo os mais valorososentre eles. hora de regressarmos ao Costume Antigo, pois s isto nosdevolver a grandeza. Foi uma assembleia de homens livres que escolheu Urras

  • P-de-Ferro como Rei Supremo e lhe ps na cabea uma coroa de madeiratrazida pelo mar. Sylas Nariz-Chato, Harrag Hoare, a Velha Lula Gigante, foi aassembleia que os ergueu a todos. E dessa assembleia emergir um homemcapaz de terminar o trabalho que o Rei Balon iniciou e nos devolver a liberdade. o v para Pyke, nem para as Dez Torres de Harlaw, mas para a Velha Wyk,repito. Reivindique o monte de Nagga e os ossos do Palcio do Rei Cinzento,pois nesse lugar sagrado, quando a lua se afogar e renascer, elegeremos um reirespeitvel, um rei devoto voltou a erguer bem alto as mos ossudas. Escutem! Escutem as ondas! Escutem o deus! Ele est falando conosco e diz: o teremos rei a menos que seja escolhido pela assembleia de homenslivres!

    Ergueu-se um rugido em resposta quilo e os afogados bateram suas maasumas nas outras.

    Uma assembleia de homens livres! gritaram. Uma assembleia, umaassembleia. o h rei exceto pela assembleia! e o clamor que fizeram foito trovejante que certamente Olho de Corvo ouviu os gritos em Pyke, bemcomo o maligno Deus da Tempestade em seu salo de nuvens. E AeronCabelo-Molhado soube que agira bem.

  • A

    O CAPITO DOS GUARDAS

    s laranjas sanguneas j esto mais que maduras observou o prncipe em umavoz fatigada, quando o capito dos guardas o empurrou para a varanda.

    Depois, no voltou a falar durante horas.A observao sobre as laranjas era verdadeira. Algumas tinham cado e

    rebentado no mrmore rosa-claro. O penetrante cheiro doce que exalavamenchia as narinas de Hotah cada vez que inspirava. Sem dvida o prncipetambm sentia seu aroma, enquanto se mantinha sentado sob as rvores nacadeira de rodas que Meistre Caleotte lhe fizera, com almofadas de pena deganso e ruidosas rodas de bano e ferro.

    Durante um longo perodo, os nicos sons que se ouviram foram os dascrianas chapinhando nas lagoas e nas fontes, e, uma vez, um suave plopquando outra laranja caiu na varanda e rebentou. Ento o capito ouviu o tnuetamborilar de botas em mrmore vindo do lado mais afastado do palcio.

    Obara. Conhecia seus passos; de pernas longas, apressados, furiosos. Nosestbulos junto aos portes, seu cavalo estaria coberto de espuma eensanguentado pelas esporas. Montava sempre garanhes e gabava-se de sercapaz de dominar qualquer cavalo que houvesse em Dorne... e qualquer homemtambm. O capito ouvia tambm outros passos, o rpido arrastar de ps doMeistre Caleotte, que se apressava para acompanhar a mulher.

    Obara Sand sempre caminhava depressa demais. Ela persegue algo quenunca poder alcanar , disse certa vez o prncipe sobre a filha, aos ouvidosdo capito.

    Quando a mulher surgiu sob o arco triplo, Areo Hotah estendeu seu machadode cabo longo para o lado, a fim de lhe bloquear a passagem. A cabea da armaestava presa a um cabo com um metro e oitenta, e ela no podia desviar.

    Senhora, basta sua voz era um resmungo grave, pesada com o sotaquede Norvos. O prncipe no quer ser incomodado.

    O rosto de Obara era de pedra antes de ele falar; depois, endureceu aindamais.

  • Est no meu caminho, Hotah Obara era a mais velha das Serpentes deAreia, uma mulher de ossos grandes, de quase trinta anos, com os olhos juntos ecabelos castanhos como os da prostituta de Vilavelha que a dera luz. Sob ummanto de sedareia mosqueado de marrom-escuro e dourado, as roupas demontar eram de um couro velho e marrom, usado e flexvel. Eram as coisasmais leves que vestia. Usava um chicote enrolado preso a uma anca e trazia atiracolo um escudo redondo de ao e cobre. Deixara a lana l fora. AreoHotah deu graas por aquilo. Apesar de sua fora e rapidez, sabia que a mulherno era preo para ele... mas ela no sabia, e o capito no sentia nenhumdesejo de ver o sangue de Obara espalhado no mrmore cor-de-rosa claro.

    Meistre Caleotte mudou o peso de um p para o outro. Senhora Obara, eu tentei lhe dizer... Ele sabe que meu pai est morto? perguntou Obara ao capito, sem

    prestar mais ateno ao meistre do que a que prestaria a uma mosca, se algumafosse suficientemente insensata para lhe zumbir ao redor da cabea.

    Sabe o capito respondeu. Recebeu uma ave...A morte chegara a Dorne em asas de corvo, escrita com letra pequena e

    selada com uma gota de dura cera vermelha. Caleotte devia ter pressentido oque havia naquela carta, pois dera-a a Hotah para que a entregasse. O prncipeagradecera-lhe, mas durante o mais longo dos momentos no quis quebrar oselo. Ficara sentado a tarde inteira com o pergaminho no colo, observando asbrincadeiras das crianas. Observara-as at que o sol se ps e o ar da noitearrefeceu o suficiente para fazer que se recolhesse; ento, observou a luz dasestrelas refletida na gua. A lua j nascia quando mandou Hotah buscar umavela, para que pudesse ler sua carta sob as laranjeiras, na escurido da noite.

    Obara tocou o chicote. Milhares de homens atravessam as areias a p para subir o Caminho do

    Espinhao e poder ajudar Ellaria a trazer meu pai para casa. Os septos estoprestes a rebentar de to cheios, e os sacerdotes vermelhos acenderam asfogueiras em seus templos. Nos bordis as mulheres dormem com qualquerhomem que v em busca delas recusando pagamento. Em Lanassolar, noBrao Partido, ao longo do Sangueverde, nas montanhas, nas areias profundas,em todo lado, em todo lado , as mulheres arrancam os cabelos e os homensgritam de raiva. Ouve-se a mesma pergunta em todas as lnguas: O que farDoran? O que far seu irmo para vingar nosso prncipe assassinado? aproximou-se do capito. E voc me diz ele no quer ser incomodado!

    Ele no quer ser incomodado voltou a dizer Areo Hotah.

  • O capito dos guardas conhecia o prncipe que protegia. Um dia, h muitotempo, um jovem imberbe chegara de Norvos, um rapaz grande de ombroslargos, com uma cabeleira escura. Esses cabelos agora eram brancos, e o corpoostentava as cicatrizes de muitas batalhas... mas conservava a fora e mantinhao machado afiado, como os sacerdotes barbudos lhe haviam ensinado. Ela nopassar, disse a si mesmo, e em voz alta falou:

    O prncipe est observando as crianas brincarem. Ele nunca deve serincomodado quando est fazendo isso.

    Hotah Obara Sand insistiu , voc vai sair do meu caminho, seno pegoesse machado e...

    Capito a ordem veio de suas costas. Deixe-a passar. Eu falo com ela a voz do prncipe estava rouca.

    Areo Hotah ps o machado na vertical e deu um passo para o lado. Obaralanou-lhe um ltimo e longo olhar e passou por ele a passos largos, com omeistre a apressar-se para acompanh-la. Caleotte no tinha mais de metro emeio de altura e era calvo como um ovo. Seu rosto era to liso e gordo que eradifcil calcular sua idade, mas j estava ali antes do capito, chegara at a servira me do prncipe. Apesar da idade e da amplido da cintura, ainda era bastantegil e esperto como poucos, mas era tambm dcil. o oponente alturapara nenhuma das Serpentes da Areia , pensou o capito.

    sombra das laranjeiras, o prncipe ocupava sua cadeira com as pernasgotosas apoiadas diante de si, e escuras olheiras sob os olhos... embora Hotahno soubesse dizer se aquilo que o mantinha sem dormir era o pesar ou a gota.Embaixo, nas fontes e lagoas, as crianas prosseguiam suas brincadeiras. Osmais novos no tinham mais de cinco anos, e os mais velhos, nove e dez.Metade garotas, e metade rapazes. Hotah ouvia-os chapinhando e gritando unsaos outros em vozes altas e estridentes.

    No faz muito tempo era uma das crianas naquelas lagoas, Obara disseo prncipe quando ela se ajoelhou diante de sua cadeira de rodas.

    Ela deu uma fungadela. Foi h vinte anos, ou quase tanto tempo que no faz diferena. E no fiquei

    aqui por muito tempo. Sou a cria da prostituta, ou ser que se esqueceu? quando ele no respondeu, ela voltou a se erguer e ps as mos nas ancas. Meu pai foi assassinado.

    Foi morto em combate singular durante um julgamento por batalha disseo Prncipe Doran. Pela lei, isto no assassinato.

    Ele era seu irmo.

  • Sim. O que pretende fazer a respeito disso?O prncipe virou laboriosamente a cadeira para encarar Obara. Embora no

    tivesse mais de cinquenta e dois anos, Doran Martell parecia muito mais velho.Sob as vestes de linho, seu corpo era mole e disforme, e era difcil olhar parasuas pernas. A gota inchara e ruborizara-lhe as articulaes de forma grotesca;o joelho esquerdo era uma ma, o direito, um melo, e os dedos dos ps tinhamse transformado em uvas vermelho-escuras, to maduras que parecia bastar umtoque para rebentarem. At o peso de uma colcha conseguia faz-loestremecer, embora suportasse a dor sem queixas. O silncio amigo de umprncipe, o capito ouvira-o dizer uma vez filha. As palavras so comoflechas, Arianne. Depois de disparadas, no podem ser chamadas devolta.

    Escrevi a Lorde Tywin... Escreveu? Se fosse metade do homem que meu pai era... Eu no sou seu pai. Isto eu sei a voz de Obara estava carregada de desprezo. Voc queria que eu partisse para a guerra. No espero tal coisa. Nem precisa sair de sua cadeira. Permita que eu

    vingue meu pai. Tem uma hoste no Passo do Prncipe. Lorde Yronwood temoutra no Caminho do Espinhao. Entregue-me uma delas e a outra a Nym. Queela percorra a estrada do rei enquanto tiro os senhores da Marca de seuscastelos e dou a volta para marchar sobre Vilavelha.

    E como espera controlar Vilavelha? Bastar saque-la. A riqueza da Torralta... O que deseja ouro? O que desejo sangue. Lorde Tywin nos entregar a cabea da Montanha. E quem nos entregar a cabea de Lorde Tywin? A Montanha sempre foi

    seu animal de estimao.O prncipe fez um gesto na direo das lagoas: Obara, olhe para as crianas, se lhe aprouver. No me apraz. Obteria mais prazer enfiando a lana na barriga de Lorde

    Tywin. Eu o obrigarei a cantar As Chuvas de Castamere enquanto tiro suastripas para fora procura de ouro.

    Olhe repetiu o prncipe. uma ordem.Algumas das crianas mais velhas jaziam de barriga para baixo no mrmore

  • liso e rosado, bronzeando-se ao sol. Outras moviam-se no mar, mais adiante.Trs construam um castelo de areia com um grande espigo que seassemelhava Torre da Lana do Palcio Antigo. Vinte delas, ou mais, tinhamse reunido na lagoa grande para ver as batalhas em que as crianas menoreslutavam nos baixios sobre os ombros das maiores, que tinham gua pela cintura,e tentavam derrubar os adversrios na gua. Sempre que um par caa, orespingar era seguido por uma revoada de gargalhadas. Viram uma garotamorena como uma noz puxar um rapaz muito loiro de cima dos ombros do irmoe cair de cabea na lagoa.

    Seu pai jogou esse mesmo jogo, outrora, tal como eu fiz antes dele disseo prncipe. Tnhamos dez anos de diferena, portanto, eu j deixara as lagoasquando ele tinha idade suficiente para brincar, mas costumava observ-loquando vinha visitar a me. Ele era to feroz, mesmo garoto... Rpido comouma cobra-dgua. Vrias vezes o vi derrubar garotos muito maiores do que ele.Lembrou-me disso no dia em que partiu para Porto Real. Jurou que o faria umavez mais, caso contrrio nunca o teria deixado ir.

    Deixado ir? Obara soltou uma gargalhada. Como se pudesse t-loimpedido. A Vbora Vermelha de Dorne ia aonde bem entendia.

    verdade. Gostaria de ter alguma palavra de conforto para... No vim em busca de conforto a voz dela estava cheia de escrnio.

    No dia em que meu pai veio reclamar-me, minha me no quis que eu partisse.Ela uma garota, disse, e no me parece que seja sua. Tive milhares deoutros homens. Ele atirou a lana aos meus ps e deu com as costas da mona cara de minha me, fazendo-a chorar. Garota ou rapaz, ns travamosnossas batalhas, disse, mas os deuses nos deixam escolher as armas queusamos. Apontou para a lana e depois para as lgrimas de minha me, e eupeguei a lana. Eu disse que ela era minha, meu pai falou, e me levou. Minhame se matou com a bebida em menos de um ano. Dizem que chorava quandomorreu Obara aproximou-se da cadeira do prncipe. Deixe-me usar a lana;nada mais peo.

    muito o que me pede, Obara. Pensarei sobre o assunto. J pensou demais. Talvez tenha razo. Mandarei uma mensagem para Lanassolar. Desde que a mensagem seja a guerra Obara girou sobre os calcanhares

    e foi embora de um modo to irritado como quando chegara, dirigindo-se aosestbulos em busca de um cavalo repousado e de outro galope impetuosoestrada afora.

  • Meistre Caleotte deixou-se ficar para trs. Meu prncipe? perguntou o homenzinho redondo. Suas pernas doem?O prncipe abriu um tnue sorriso. O sol est quente? Devo buscar algo para as dores? No. Preciso da cabea em condies.O meistre hesitou: Meu prncipe, ser... ser prudente permitir que a Senhora Obara regresse

    a Lanassolar? Ela certamente ir inflamar os plebeus. Eles amavam muito seuirmo.

    Assim como todos ns comprimiu as tmporas com os dedos. No.Tem razo. Devo regressar tambm a Lanassolar.

    O homenzinho redondo hesitou novamente: Ser isto sensato? No sensato, mas necessrio. melhor enviar um mensageiro a

    Ricasso e ordenar-lhe que abra meus aposentos na Torre do Sol. Informe minhafilha Arianne de que estarei l amanh.

    A minha pequena princesa. O capito sentira amargamente sua falta. Ser visto avisou o meistre.O capito compreendeu. Dois anos antes, quando trocaram Lanassolar pela

    paz e isolamento dos Jardins de gua, a gota do Prncipe Doran no estava,nem de perto, to mau. Naqueles dias ainda caminhava, embora lentamente,apoiando-se numa bengala e fazendo esgares de dor a cada passo. O prncipeno desejava que seus inimigos soubessem como tinha enfraquecido, e o VelhoPalcio e sua cidade sombria estavam cheios de olhos. Olhos, pensou o capito,e degraus que ele no pode subir. Teria de voar para alcanar o topo daTorre do Sol .

    Eu tenho de ser visto. Algum tem de despejar leo na gua. Dorne temde ser lembrada de que ainda tem um prncipe sorriu com um ar triste. Pormais velho e gotoso que seja.

    Se regressar a Lanassolar, ter de conceder audincia PrincesaMyrcella disse Caleotte. Seu cavaleiro branco estar com ela... e sabe queele envia cartas rainha.

    Suponho que deve enviar.O cavaleiro branco . O capito franziu as sobrancelhas. Sor Arys viera para

    Dorne a fim de servir sua princesa, como Areo Hotah viera um dia com a sua.Mesmo os nomes de ambos soavam estranhamente similares: Areo e Arys.

  • Mas as semelhanas terminavam a. O capito deixara Norvos e seussacerdotes barbudos, mas Sor Arys Oakheart ainda servia ao Trono de Ferro.Hotah sentia certa tristeza sempre que via o homem com o longo manto brancode neve, na poca em que o prncipe o enviara a Lanassolar. Um dia,pressentia, os dois lutariam; nesse dia, Oakheart morreria, com o machado decabo longo do capito a fender-lhe o crnio. Deslizou a mo ao longo do lisocabo de freixo do machado e perguntou a si mesmo se esse dia estaria seaproximando.

    A tarde j est quase no fim o prncipe disse. Esperaremos pelamanh. Assegure-se de que minha liteira esteja pronta primeira luz da aurora.

    s suas ordens Caleotte fez uma saudao. O capito afastou-se para omeistre passar, e ficou escutando os passos que desapareciam.

    Capito? a voz do prncipe era suave.Hotah deu um passo adiante, com uma mo fechada sobre o machado.

    Sentia na palma da mo o freixo to liso como a pele de uma mulher. Quandochegou cadeira de rodas, bateu fortemente com a base no cho, para anunciarsua presena, mas o prncipe s tinha olhos para as crianas.

    Tinha irmos, capito? perguntou. L em Norvos, quando era novo?Irms?

    Ambos Hotah respondeu. Dois irmos, trs irms. Eu era o mais novo o mais novo e no desejado. Outra boca para alimentar, um garotogrande que comia demais e cujas roupas logo deixavam de lhe servir .Pouco admira que o tivessem vendido aos sacerdotes barbudos.

    Eu fui o mais velho disse o prncipe , e no entanto sou o ltimo. Depoisde Mors e Olyvar terem morrido no bero, perdi a esperana de vir a terirmos. Tinha nove anos quando Elia chegou, e era um escudeiro a servio naCosta do Sal. Quando o corvo chegou com a notcia de que minha me tinhasido levada para a cama um ms antes do tempo, j tinha idade suficiente parasaber que o beb no sobreviveria. Mesmo quando Lorde Gargalen me disseque eu tinha uma irm, garanti-lhe que ela morreria logo. Mas sobreviveu,graas misericrdia da Me. E um ano depois Oberyn chegou, berrando eesperneando. Era um homem-feito na poca em que eles brincavam nestaslagoas. Mas aqui estou, e eles partiram.

    Areo Hotah no sabia o que responder quilo. Era apenas um capito dosguardas, mantinha-se estranho quela terra e ao seu deus de sete faces, mesmoaps todos aqueles anos. Servir. Obedecer. Proteger . Prestara aqueles votosaos dezesseis anos, no dia em que casara com o machado. Votos simples para

  • homens simples , tinham dito os sacerdotes barbudos. No fora treinado paraconsolar prncipes de luto.

    Continuava a tentar arranjar algumas palavras para dizer quando outralaranja caiu, com um pesado rudo mido, a no mais de meio metro de onde oprncipe se encontrava sentado. Doran encolheu-se com o som, como se dealgum modo o tivesse magoado.

    Basta suspirou , j chega. V embora, Areo. Deixe-me observar ascrianas mais algumas horas.

    Quando o sol se ps, o ar arrefeceu e as crianas foram para dentro, embusca do jantar. O prncipe ainda permaneceu sob suas laranjeiras, observandoas lagoas paradas e o mar que se estendia mais adiante. Um criado trouxe-lheuma taa de azeitonas de cor prpura, com po folha, queijo e massa de gro-de-bico. Comeu um pouco, e bebeu uma taa do doce e pesado vinho-forte queadorava. Quando esvaziou a taa, voltou a ench-la. Por vezes, nas horasprofundas e negras da madrugada, o sono vinha encontr-lo em sua cadeira. Sento o capito o empurrava ao longo da galeria iluminada pelo luar, passandopor uma fileira de pilares canelados e atravs de uma graciosa arcada, at umagrande cama com frescos lenis de linho num aposento que dava para o mar.Doran gemeu quando o capito o deslocou, mas os deuses mostraram-sebondosos, e ele no acordou.

    A cela onde o capito dormia era contgua ao quarto do seu prncipe. Sentou-se na cama estreita, tirou de seu nicho a pedra de amolar e o oleado e ps-se atrabalhar. Mantenha o machado afiado , tinham lhe dito os sacerdotesbarbudos no dia em que o marcaram. E fazia-o sempre.

    Enquanto amolava o machado, Hotah pensou em Norvos, na cidade alta nacolina e na baixa junto ao rio. Ainda recordava os sons dos trs sinos, o modocomo os profundos repiques de Noom o faziam estremecer at os ossos, a vozforte e orgulhosa de Narrah, e o riso doce e prateado de Nyel. O sabor do bolode inverno voltou a encher-lhe a boca, rico de gengibre, pinhes e pedacinhos decereja, com nahsa para empurr-lo para baixo, leite de cabra fermentadoservido numa taa de ferro e misturado com mel. Viu a me, com seu vestidocom gola de esquilo, aquele que no usava mais do que uma vez por ano,quando iam ver os ursos danar ao longo da Escadinha dos Pecadores. E sentiuo fedor de pelo queimado de quando o sacerdote barbudo lhe tocara o centro dopeito com o ferrete. A dor tinha sido to violenta, que tivera medo de que oc