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lllTORAS =lill~m~~" -. • Histomapa de História . John B. Sparks Coleção Primeiros Passos • O que é História . Vavy Pacheco Borges Coleção Tudo é História • A Inquisição • Anita Novinskí • As Cruzadas· Hilário Franco Jr. Coleção Primeiros Vôos • Sociedade Feudal • Guerreiros, sacerdotes e trabalhadores '< • Francisco C. T. da Silva • Uma Introdução à História • Ciro Flamarion Cardoso ~ L, _ Hilário Franco Jr. , o FEUDALISMO 1~ edição 1983 4~ edição " /1111111I11111111111I11111111111111 20657'36113 ~ •• 111 198 6 J r;\ n :.;0 i": I L..\ •..: I' '.. ' \ ':) .....•) .. I i i I J.

o feudalismo - hilário franco junior

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lllTORAS=lill~m~~"- .• Histomapa de História . John B. Sparks

Coleção Primeiros Passos

• O que é História . Vavy Pacheco Borges

Coleção Tudo é História• A Inquisição • Anita Novinskí• As Cruzadas· Hilário Franco Jr.

Coleção Primeiros Vôos

• Sociedade Feudal • Guerreiros, sacerdotes e trabalhadores '<• Francisco C. T. da Silva

• Uma Introdução à História • Ciro Flamarion Cardoso

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Hilário Franco Jr.

,o FEUDALISMO

1~ edição 19834~ edição

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Revisão:JoséW. S. MoraesHercílio de Lourenzi

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"~(p~g...aEditora Brasiliense S.A.B. General Jardim, 16001223 - São Paulo - SP'Fone (011l231-1422

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INDICE

Introdução ' ' .-A gênese ~ .A estrutura . ~ , .A dinâmica . .-. .- , .A crise ;'.. , , .Conclusão .Indicações para leitura .

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INTRODUÇÃO

As palavras, para o historiador, são sempre proble-máticas. Como explicar o passado com palavras que nãosoem estranhas e pedantes aos não especialistas, e que, aomesmo tempo, sendo simples e de uso comum, não desvir-tuem as realidades históricas? Essa é uma questão concre-ta quando pretendemos estudar o "feudalismo", termo .aparecido apenas no século XVII, muito tempo depois domomento histórico. que ele devia designar. Melhor queessa expressão tornada clássica, seria então empregar "re-gime feudal"; "sistema feudal", "modo de produção feu-dai", "civilização feudal", "sociedade feudal" ou algumaoutra que se propusesse? Possivelmente, mas isso impli-caria justificar a escolha, nos afastando assim dos objeti-vos desta Coleção. Aqui e agora, mais importante do quediscutir metodologias e suas diferentes visões sobre este ouaquele ponto é tentar compreender o que havia de fun-damental naquela realidade histórica conhecida por Feu-dalismo.

Portanto, nosso primeiro passo deve ser delimitar oque queremos estudar. No espaço: Europa Ocidental, dei-

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xando de lado a discussão sobre a analogia com outrasregiões. No tempo: séculos X-XIII, retrocedendo e avan-çando um' pouco para vermos a formação e desestrutu-ração do Feudalismo. Assim, temos pela frente uma vas-tidão territorial (dois milhões de kmê) e temporal (400anos) nas quais não se pode logicamente pensar em en-contrar algo idêntico e imutável. Levando-se esse aspectoem consideração, seria talvez mais correto que os rótulosestivessem no plural ("sociedades feudais", "modos deprodução feudais" etc.). Por outro lado, não se pode negarque naqueles limites geográficos e cronológicos houvesse,no essencial, uma unidade de estruturas e uma evoluçãosemelhante.

Desta forma, preocupando-nos pouco com específi-cidades regionais, examinaremos o Feudalismo no que eleapresentava de mais profundo, de mais estrutural. Procu-raremos vê-locomo uma formação social surgida das no-vas condições decorrentes do desaparecimento do ImpérioRomano e da penetração de tribos germânicas, ou seja,como uma sociedade saída das ruínas da anterior masmelhor adequada às novas circunstâncias de então. Logo,o Feudalismo - como aliás qualquer outro fenômenohistórico - não deve ser objeto de nenhum juizo de valor,como ocorre frequentemente. No uso popular; no sensocomum, o Feudalismo é sinônimo de anarquia política, deexploração pura e simples de camponeses por c1éricos eguerreiros, de barbarismo e ignorância generalisadas.Nossa pretensão é tão somente amenizar esta visão sim-plista sobre o Feudalismo, tentando mostrâ-lo como umasociedade histórica, isto é, a única possível para o seutempo, herdeira do passado romano-germânico e prepa-radora de uma nova sociedade, a capitalista.

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A aBNESE

o processo de gestação do Feudalismo foi bas-tante longo, remontando à crise romana do séculoHl, passando pela constituição dos reinos germâ-nicos nos séculos V-VI e pelos problemas do ImpérioCarolingio no século IX, para finalmente se concluirem fins desse século ou princípios do X. Para poder-mos acompanhar mais claramente esse processo,examinaremos sucessivamente sete de seus aspectosmais importantes: a ruralização da sociedade, o enri-jecimento da hierarquia social, a fragmentação dopoder central, o desenvolvimento das relações dedependência pessoal, a privatização da defesa, a ele-ricalização da sociedade, as transformações na men-talidade.

O primeiro desses aspectos tinha raizes muitoantigas. A civilização romana na sua fase inicialestivera baseada na agricultura, porém, em função'das dificuldades que esta apresentava naquele solo

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pouco favorável, .aos poucos o comércio passou a sero setor mais dinâmico. Estruturalmente ligada a isso

. estava a política imperialista que tornou o mar Medi-terrâneo um lago romano. Contudo, as imensas con-quistas territoriais e o conseqüente afluxode rique-zas provocaram profundas alterações, cheias de con- ...seqüências, na sociedade e na economia latinas. Por \exemplo, um grande crescimento do número de es- \1::cravos, o enfraquecimento da camada de pequenos ejmédios proprietários rurais e a concentração de ter-ras nas mãos de poucos indivíduos. ""-

Ora, aquela situação apresentava claras contra-dições, pois o estoque de mão-de-obra escrava, baseda economia, precisava ser constantemente renovadopor novas conquistas. O Estado, dominado pelos ci-dadãos mais ricos, via seus rendimentos decrescerem,porque os poderosos escapavam aos impostos e ospobres não tinham condições de pagâ-los. Ademais,era preciso fornecer pão e diversão à plebe urbana -sem propriedades devido à concentração fundiária esem emprego devido à concorrência do trabalho es-cravo - para se camuflar o problema social. Assim,não havia condições econômicas e sociais de prosse-guirem as conquistas. Em outros termos, o sistemaescravista e imperialista não podia mais continuar ase auto-reproduzir. Era a crise.

Como aquela era uma sociedade urbana, natu-ralmente a crise se manifestava mais claramente nas

, cidades, com as lutas sociais, a contração do comér-cio e do artesanato, a retração demográfica, a pres-são do banditismo e dos bárbaros. Assim, entende-se

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que os mais ricos se retirassem para suas grandespropriedades rurais (vil/ae), onde estariam mais se-guros e onde poderiam obter praticamente todo onecessário. É muito significativo que o Estado tenhaprecisado, através de legislação específica, impedirque os próprios elementos encarregados da adminis-tração municipal icuriales) abandonassem as ci-dades.

Colocava-se, então, a questão da mão-de-obrarural, que foi solucionada por um regime de triplaorigem, que atendia ao interesse dos proprietáriosem ter mais trabalhadores, ao interesse do Estado emgarantir suas rendas fiscais e ao interesse dos maishumildes por segurança e estabilidade. Desse encon-tro nasceu a importante instituição do colonato.

'.De fato, as crescentes dificuldades em se obtertanto mão-de-obra escrava (devido aos problemas deabastecimento) quanto livre (devido ao retrocessopopulacional) punham em xeque as possibilidades deo grande 'proprietário explorar suas terras proveito-samente. Buscou-se então um novo sistema. Por este,a terra ficava dividida em duas partes: a reservasenhorial e os lotes camponeses. Estes lotes eramentregues a indivíduos em troca de uma parcela do

. que eles aí produzissem e da obrigação de trabalha-rem na reserva senhorial sem qualquer tipo de remu-neração. Tudo que era produzido na reserva cabia aoproprietário.

Para o Estado, vincular cada trabalhador a umlote de terra representava melhor controle do fiscoimperial sobre os camponeses e urna forma de incen-

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tivar a produção. Para os marginalizados sem bensou ocupação e para os camponeses livres, trabalharnas terras de um grande proprietário significavacasa, comida e proteção naquela época de dificul-dades e incertezas. Para os escravos, receber um lotede terra era uma considerável melhoria de condição.Para o seu proprietário, era uma forma de aumentara produtividade daquela mão-de-obra e ao mesmotempo baixar seu custo de manutenção, pois os es-cravos estabelecidos num lote de terra (servi casati)deixavam de ser alimentados e vestidos por seu amo,sustentando-se a si próprios.

Assim, por um aviltamento da condição do tra-balhador livre e por uma melhoria da do escravo,surgia o colono. Sua situação jurídica, já definida noséculo IV, expressava nitidamente a ruralização dasociedade romana. Ele estava vinculado ao lote queocupava, não podendo jamais abandonâ-lo, mastambém não podendo ser privado dele pelo proprie-tário. A terra não poderia ser vendida sem ele, nemele sem a terra. As obrigações que ele devia não eramleves, mas estavam claramente fixadas e não pode-riam ser modificadas arbitrariamente pelo latifun-di.ário. Em suma, o cotonus era juridicamente umhomem livre, mas verdadeiro escravo da terra.

Naturalmente o colonato não era um fenômenoisolado, mas fazia parte de um processo mais amplo- segundo aspecto a considerar - de enrijecimento

. da hierarquia social. Enquanto na Roma clássica ocritério fundamental de diferenciação social era aliberdade, a partir do século lU a condição econô-

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mica e a participação nos quadros diretivos do Es-tado eram decisivas. Mais ainda, desde o século IVestabeleceu-se a vitaliciedade e hereditariedade dasfunções, quebrando a relativa mobilidade anterior elevando mesmo alguns historiadores (como Ferdi-nand Lot) a falarem em "regime de castas". Damesma forma que se vincula.ra os camponeses à terra,também se vinculou os artesãos de cada especiali-dade a uma corporacão (collegia) submetida ao con-trole estatal.

Ora, como as camadas médias urbanas e ruraistendiam a desaparecer, crescia a distância social en-tre a aristocracia latifundiária e/ou burocrática e amassa dependente em diversos graus. É sintomáticaa reforma monetária do século IV, que criava umpadrão-ouro para uso do Estado e da aristocracia eum padrão-cobre que atendia melhor as necessidadesdos pobres, sem haver escala de correspondênciaentre ambos: eram quase dois sistemas monetáriosparalelos refletindo a'polarização social.

.~. A penetração dos bárbaros germânicosnão alte-rou esse quadro, pelo contrário. De fato, a quebra daunidade política romana acentuava as tendências re-gionalistas daquela aristocracia e reforçava seus pri-vilégios. A vida e a população urbanas, em decadên-cia desde o século IH, continuaram a evoluir nessesentido, mesmo sem ter esse processo sido aceleradopelas invasões do século V, como seria pelas do sé-culo IX. As camadas humildes também não tiveramsua sorte alterada, pois os invasores de maneira geralmantiveram as estruturas anteriores.

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Mais ainda, a própria sociedade germânica logoapós sua instalação no Ocidente começou a passarpor transformações profundas. Nem poderia ser dife-rente, devido à sua inferioridade cultural e numéricafrente ao mundo romano dominado: por volta do ano500, nos limites do antigo Império Romano do Oci-dente, havia um milhão de bárbaros numa popu-lação total de 30 milhões. Em função disso, aquelastransformações sociais germânicas convergiam paraa mesma polarização que a sociedade romana vinhaconhecendo há tempos. O processo teve início quan-do os conquistadores impuseram a velha instituiçãoda hospitalitas aos proprietários romanos, expro-priando parte de suas terras (geralmente um terço).

Na maioria das vezes aquelas áreas caíram emmãos de membros da aristocracia germânica, quenelas estabeleciam, além de escravos, homens livresde sua tribo como rendeiros ou mesmo pequenosproprietários. Contudo, com o tempo, seguindo a ló-gica da evolução social da época, aqueles homenslivres acabavam por entrar em algum tipo de depen-dência. Portanto, as sociedades romana e germânica,

. passando a ter estruturas semelhantes e identidadede interesses ao nível das aristocracias, puderam aospoucos ir se fundindo numa nova sociedade.

O terceiro aspecto da gênese feudal, a fragmen-tação do poder central, resultava daquele estado decoisas. Com a ruralização, a tendência à auto-sufi-ciência de cada latifúndio e as crescentes dificul-dades nas comunicações, os representantes do poderimperial foram perdendo capacidade de ação sobre

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vastos territórios. Mais do que isso, os próprios lati-fundiários foram ganhando atribuições anterior-mente da alçada do Estado. Por exemplo, em princí-pios do século V os colonos foram desligados daautoridade fiscal do Estado, que era delegada aoproprietário da terra.

As invasões germânicas, por sua vez, quebraramdefinitivamente a frágil unidade política do Ocidentedo século V. Estabelecia-se assim o pluralismo quedesde então jamais deixaria de caracterizar a vidapolítica européia. Porém, mais importante que isso éo fato de que em cada reino germânico continuavama se manifestar as mesmas tendências centrífugas daépoca romana. A formação de uma aristocracia fun-diária germânica, como vimos, contribuía para tanto.Isso era reforçado ainda pela decadência da eco-nomia comercial e monetária, que levava os reis bár-baros a remunerarem seus colaboradores com a únicaverdadeira riqueza da época, terras. Contudo, destaforma os reis iam pouco a pouco se empobrecendo ese enfraquecendo. Falando do monarca franco da di-nastia dos merovíngios, um. cronista afirmava que"exceto esse inútil título de rei, (... ) ele nada possuíade seu além de uma única terra de baixo rendimento,que lhe proporcionava uma habitação e um pequenonúmero de servidores".

De fato, os reis merovíngios remuneravam seusservidores entregando a cada um deles uma extensãode terra a título de beneficium: Ou seja, concedia-seo usufruto (e não a plena propriedade) de um bemimóvel em troca de determinados serviços prestados.

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Tal concessão era feita vitaliciamente, mas comoquase sempre era renovada em favor do herdeiro doconcessionário falecido, com o tempo tendia a setornar hereditária. Desta forma, o concessor perdia

. aos poucos o controle sobre os benefícios cedidos eportanto sobre os próprios servidores assim remune-

. rados. Não muito diferente foi o destino de um tipode beneficium (o mais comum, aliás, na época mero-vingia) que implicava certo pagamento ao concessor:precaria .

Muitas vezes, o detentor de um benefício recebiaum importante privilégio, que esvaziava ainda mais opoder real, a imunidade (immunitas). Por ela, deter-minados territórios ficavam isentos da presença defuncionários reais, que ali não poderiam exercer ne-nhuma de suas funções. Assim, o imunista tornava-se detentor de poderes regalianos, isto é, inerentes aorei, podendo nos seus domínios exercer as correspon-dentes funções administrativasv.aplicar justiça, reali ..zar recrutamente militar, cobrar impostos e multas.Apesar de mais antiga, essa instituição foi melhordefinida e generalizou-se no tempo de Carlos Magno,quando foi estendida a uma significativa parcela dosterritórios.de seu império.

Contudo, apesar do grande número de benefí-cios f: de imunidades concedidos, o poder de CarlosMagno era inquestionável. Mas ele baseava-se 'emseu prestígio pessoal, de maneira que após sua morte

, os efeitos desagregadores daquela política se fizeramsentir. E sobretudo após meados do século IX, quan-do o Império Carolíngio foi dividido entre os netos do

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grande imperador. Cada vez mais, então, mesmo asfunções públicas passaram a ser vistas como bene-fícios. Assim, os reis perdiam sua faculdade de no-mear e destituir seus representantes provinciais (con-des, duques, marqueses), cujos cargos tornavam-sebens pessoais e hereditários. Em suma, ocorria umrecuo das instituições públicas, ou melhor, sua apro-priação por parte de indivíduos que detinham gran-des extensões de terra e nelas exerciam em proveitopróprio atribuições anteriormente da alçada do Es-tado.

o quarto aspecto - o desenvolvimento das rela-ções de dependência pessoal-era o resultado lógicodaquele quadro de isolamento dos grupos humanos(devido à ruralização), de crescimento da distânciasocial e da fraqueza do Estado. Aliás, é próprio dosmomentos de insuficiência das relações sociais dentrodo Estado, da tribo ou da linhagem, que alguns bus-quem segurança e sustento junto a indivíduos maispoderosos, e outros busquem prestígio e poder juntoa um grupo de dependentes, Mesmo na Roma clás-sica, apesar da existência de um Estado forte - ouexatamente para fugir a ele -indivíduos de origemhumilde colocavam-se sob o patronato de um pode-roso, tornando-se seus clientes. Em troca de ajudaeconômica e proteção judiciária, os clientes apoia-vam seus protetores nas assembléias políticas e pres-tavam diversos pequenos serviços.

Apesar de derivado da instituição da clientela,o patrocinium potentiorum dos últimos tempos doImpério Romano criava laços de dependência muito

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mais fortes. Esses laços eram essencialmente econô-micos, enquanto os criados pela clientela tinham umcaráter sobretudo político. Para fugir ao Estadoopressor e ao fisco insaciável, muitos camponeseslivres entregavam sua terra a um indivíduo poderoso,colocando-se sob o seu patronato. Assim, ao retiraraqueles homens da órbita do Estado, os latifundiá-rios tendiam a transformá-Ios em colonos e a dimi-nuir a soberania do Estado. Por isso, desde meadosdo século IV, inúmeras leis tentaram inutilmenteproibir o estabelecimento desse tipo de relação. Porfim, a insegurança provocada pela penetração dosgermânicos generalizou o recurso a esse tipo de rela-ção social conhecida por patrocinium ou, na suaforma germanizada, mundeburdis . O ato jurídicopelo qual uma pessoa se colocava assim sob a prote-ção e a autoridade de outra era a recomendação(commendatio).

Todavia, a instituição que mais sucesso terianesse desenvolvimento das relações de dependênciapessoal foi a vassalagem. Sua larga difusão deu-sedesde Carlos Magno, pois como na verdade a autori-dade do imperador dependia mais da fidelidade deseus servidores pessoais do que de sua soberania teó-rica, ele procurou estabelecer e reforçar esses laçospessoais. A origem da vassalagem é difícil de serdeterminada, mas sua importância data de meadosdo século VIII.

Terminologicamente, foi então que vassalus su-plantou outras palavras que também designavam umhomem livre que se havia recomendado a outro.

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Como naquele momento as demais expressões quesignificavam "homem dependente" ganhavam senti-dos diversos, recorreu-se para tanto ao céltico gwas("rapaz", "servidor"). Da latinização deste termosurgiu vassus, e da do desdobramento gwassawl(" aquele que serve"), vassalus. lristitucionalmente,foi então que à recomendação se acrescentou o jura-mento de fidelidade como reforço religioso, ou seja,da combinação dos dois atos nasciam as relaçõesvassálicas. Concretamente, foi então que vassatidadee benefício se uniram, com o primeiro destes elemen-tos tornando-se condição indispensável para a con-cessão do segundo. Em outros termos, o benefício eraa remuneração do vassalo (servidor fieI) e só um vas-salo receberia um benefício (termo mais tarde subs-tituído por "íeudo").

É verdade que inicialmente, no século VI, "vas-salo" apresentava uma conotação servil, mas desdeprincípios do século VII o termo passou a ser empre-gado também em relação a homens livres, ainda quede condição inferior. Por fim, como desde princípiosdo século VIII elementos da. aristocracia entravamnas relações vassálicas, estas acabaram por se eno-brecer e mesmo, mais tarde, por se tornarem exclu-sividade daquela camada social. Os monarcas caro-língios, ao incentivarem a difusão dos laços vassáli-cos, pensavam reforçar seu poder: como eles tinhammuitos vassalos, que por sua vez estabeleciam seuspróprios vassalos, esta parecia ao rei uma forma deestender seu controle a todos os escalões da socie-dade.

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Contudo, o resultado foi oposto, pois muitasvezes os vínculos de um vassalo para com seu senhorlevavam-no a defender os interesses deste e não os dorei. Como observou Ganshof, "a difusão das relaçõesvassálicas acabou por subtrair, em larga medida, umgrande número de homens livres à autoridade ime-diata do Estado". Mas, por outro lado, lembra omesmo autor, aquelas relações mantinham um vín-culo entre os grandes senhoresterritoriais e o rei, for-necendo "um elemento, e até elemento capital, deresistência à completa dissolução do Estado" .

Quinto aspecto das origens do Feudalismo: aprivatização da defesa. Naturalmente, ele decorriade todos os aspectos anteriores, e tanto entre osromanos quanto entre os germanos havia anteceden-tes institucionais: milícias particulares com laços dedevotamento pessoal ligando os guerreiros a. seuchefe. De fato, desde o século IV, diante da fraquezado Estado, os latifundiários romanos contavam comgrupos armados, os bucellarii, para preservar a or-dem dentro de seus domínios e protegê-los do bandi-tismo e de incursões bárbaras. Entre os germanos,coerentemente com sua civilização tribal e bélica)havia o companheirismo ou comitatus . Tratava-seaqui de um bando de guerreiros ligados por umjuramento ao chefe, ao lado de quem deviam lutaraté a morte, em troca de seu comando e de uma partedo saque. Derivados desta instituição surgiram naépoca merovíngia os antrustiones, guardas pessoaisdo rei.

No entanto, o grande fator responsável pelo ace-

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leramento do processo de privatização da defesa fo-ram os ataques vikings, sarracenos e húngaros. Comosua fase aguda ocorreu após a divisão do ImpérioCarolíngio e num contexto de crescente fraqueza dospoderes públicos, a resistência aos invasores só pode-ria ser feita pelos condes e outros efetivos detentoresde poder em cada região. Além disso, os ataques desurpresa e a rapidez da retirada dos invasores impe-diam que a lenta mobilização dos exércitos reaisconseguisse sucesso. Para sobreviver, a Europa cató-lica cobriu-se de castelos e fortalezas. A fragmenta-ção política completou-se, pois a regionalização dadefesa era uma necessidade.

Outro aspecto a considerarmos é a clericalizaçãoda sociedade, uma das mais profundas transforma-ções ocorridas no Baixo Império Romano. Esse fenô-meno acompanhava os progressos do cristianismo,acentuando-se a partir do século IV com a vitóriadefinitiva dessa religião. Ê verdade que o velho paga-nismo greco-romano possuíra uma camada sacerdo-tal, mas jamais ela chegou a se organizar institu-cionalmente, a constituir uma Igreja. Daí sua limi-

. tada importância social, Pode-se assim falar, a partirda cristianização do império, em clericalização dasociedade em dois sentidos: quantitativamente, por-que a proporção de clérigos em relação ao conjuntoda população torna-se muito superior à que existirano paganismo ou mesmo que viria a existir em outrassociedades; qualitativamente, porque o clero torna-seum grupo social diferenciado dos demais, possuidorde privilégios especiais e de grande poderio político-

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econômico.Mas quais foram as origens desse fenômeno

fundamental? Sua complexidade nos leva a lembraraqui apenas uns poucos fatores. Em primeiro lugar,

I ' I o fato de o clero cristão, ao contrário do de outrasi ' religiões, ter sido escolhido, instruído e ter recebidoi, poderes diretamente da própria divindade: assim fez

Cristo com seus apóstolos, estes com os seus discí-pulos, os primeiros bispos, estes por sua vez comoutros clérigos e assim sucessivamente. Portanto, osguias da comunidade cristã não eram apenas repre-.sentantes da própria comunidade, mas de Cristo.Daí advinha sua imensa autoridade moral, reforçadapor normas diferenciadoras que iam se impondo aos)OUCOS, como o celibato ou a tonsura.

Depois, como decorrência do fator anterior, so-mente o clero norterin realizar os rituais da liturgiacristã. Esta. aliás, do século IV ao VII não deixou decrescer em complexidade, exigindo cada vez maisque seus oficiantes fossem especialistas. A multipli-cação das festas religiosas e a melhor definição dossacramentos (por exemplo, o batismo de criançastornou-se a norma desde o século V) também contri-buíram para valorizar () papel dos eclesiásticos. 50-oretudo a celebração eu caristica, símbolo -ía aliança"-;;l: .'.,'1:: Deus \) o homem I 113.r.~· pr;d:êri~~ocorrer sern aiderrnediaç1c Jo clérigo. Numa palavra, monopoli-zando a comunicação com Deus, o clero tornava-se oresponsável por todos os homens. Sem ele não have-ria Salvação.

Também não se pode esquecer que o caráter

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Monooolirando a comunicação com Deus, o clero tor-nava-se o responsável por todos os homens.

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universalista fazia da Igreja cristã a única herdeirapossível do Império Romano. E verdade que ela seconsiderava uma sociedade sobrenatural, que não édeste mundo material, daí reconhecer os direitos doEstado: "dai a César o que é de César, a Deus o que éde Deus". Mas exatamente por isso, a Igreja supe-rava o Estado, visto como transitório. Apesar de"não ser deste mundo", a Igreja estava bem enrai-zada nele, formando uma sociedade autônoma ecompleta, com sua organização e suas leis. Esta so-ciedade se expandia dentro da sociedade romana,acabando por se identificar com ela quando em finsdo século IV o cristianismo foi reconhecido comoreligião oficial do Estado. Assim, o desaparecimentodo império, isto é, da face política da sociedaderomano-cristã, não afetou a Igreja. Pelo contrário,alargou o campo de sua atuação: por exemplo, antesmesmo da queda do império, os bispos iam substi-tuindo nas cidades a magistratura civil.

Igualmente importante para se entender a cleri-calização é considerar o crescente poder econômicoda Igreja. Desde seus primeiros tempos, ela recebiadonativos dos fiéis, apesar dos obstáculos colocadospelo Estado. A partir de 321, quando o imperadorConstantino autorizou a Igreja a receber legados,a quantidade de seus bens cresceu rapidamente.Desde 313, quando aquele imperador decretara aliberdade de culto aos cristãos, pondo fim às perse-

-. guiçoes, o próprio Estado revelou-se o mais pródigodoador. Por isso é que em meados do século VIIIa Igrf.'ja pôde falsificar o documento conhecido por

o Feudalismo

Doação de Constantino. Segundo este.. no século IVteria sido transferido pará o papa o poder imperialsobre Roma, a Itália e todas as províncias romanasdo Ocidente. Na verdade, ao agirem assim os diri-gentes da Igreja não pensavam estar falseando osfatos históricos, mas apenas recordando um fato reale justo.

Mas os bens efetivamente recebidos já faziam daIgreja, no século V, a maior proprietária fundiáriadepois do próprio Estado. Por um lado, porque asdoações não deixavam de crescer: Santo Agostinhorecomendava mesmo que todo cristão ao fazer testa-mento deixasse à Igreja "a parte de um filho". Poroutro lado, o celibato clerical, que aos poucos ia seimpondo como norma, impedia a divisão ou aliena-ção do patrimônio eclesiástico, que assim aumentavaconstantemente. A chegada dos germânicos não alte-rou no essencial esse estado de coisas. Perfeitamenteintegrada na economia agrícola da época, a Igrejapassou a receber e ceder benefícios. Tinha, portanto,vassalos, colonos e escravos. No século IX ela deti-nha, estima-se, uma terça parte das terras cultiváveisda Europa católica.

Por fim, um último aspecto a ser considerado noprocesso da gênese do Feudalismo são as transfor-mações na mentalidade. Contudo, elas são difíceis deserem acompanhadas e impossíveis de serem data-das: a mentalidade tem um ritmo histórico muitomais lento que os fatos sociais, econômicos ou polí-ticos. De qualquer forma, aquelas transformaçõesestiveram ligadas ao cristianismo, que na verdade foi

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] muito mais sua expressão do que sua causa. Para::lÓC;. aqui, basta lembrar três daquelas mutações'r,~·,l'r:"1.iS: um novo relacionamento homem-Deus,',:."'." nova concepção do papel do homem no uni-i-: ".: .. uma nova autoconcepção do homem.

Um dos elementos centrais da mentalidade clás-sica Iora a harmonia do homem com a natureza,o que criara condições para O' desenvolvimento doracionalismo. Contudo, por ter permanecido restritoa uma elite urbana e intelectual e ter com o tempomostrado os limites de sua ação efetiva, o raciona-Esmo foi sendo superado. A decadência dos quadros,sócio-político-econômicos que tinham acompanhadoseu desenvolvimento acelerou seu processo de trans-formação. O surgimento e o sucesso do cristianismonaquele momento refletiam tal estado de espírito e aomesmo tempo reforçavam-no. Ou seja, o cristianismopassava a responder melhor aos anseios espirituais deum número crescente de pessoas, cujos problemasnão eram solucionados pelo frio e ultrapassado ra-cionalismo greco-romano.

Assim, firmava-se aos poucos uma mentalidadesimbólica que via no mundo um grande enigma deci-frável somente pela fé. Um mundo que ganharia;ec:l:idü apenas através de Deus. A razão passava aser vista como um instrumento diabólico, que man-tinha o homem na ilusão de uma falsa sabedoria queo afastava da Verdade. A natureza passava a ser umvéu entre o homem e Deus: como disse Santo Agos-tinho, "desgraçados daqueles que amam os Vossossinais em vez de Vos amar aVós mesmo". Porém,

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havia a possibilidade de levantar esse véu e se apro-ximar de Deus, servindo-O. Firmava-se assim umanova aliança, pela qual o homem através de determi-nadas ações ganharia as recompensas celestiais. Emfunção disso e do crescente clericalismo, foi se desen-volvendo um ritualismo (isto é, excessiva preocupa-ção com os aspectos formais, exteriores, da religião)que levou a época carolíngia a ser chamada de "civi-lização da liturgia" . '

Tal relação de reciprocidade entre Deus e ohomem colocava este numa posição diversa da quetivera anteriormente. No paganismo clássico ele esti-vera diante de deuses sem o sentido do Bem e doMal, divindades próximas ao homem e que se dife-renciavam dele apenas pela imortalidade. Com ocristianismo, por outro lado, o homem viu-se diantede um Deus distante e onipotente e de um Demôniosempre presente e tentador. Colocado entre as forçasdo Bem e do Mal, no centro de um combate a quenãopoderia fugir, o homem jogava seu destino. Cadavez mais, a partir do século IH e mais claramente doIV, a presença do demônio na vida cotidiana erapara o homem da' época uma realidade palpável.Combater aquela presença era portanto uma neces-sidade. Mais ainda, um grande teste a que o homemera submetido e cujo resultado definia o destino desua Vida Eterna.

Disso tudo decorria, naturalmente, uma novavisão do homem sobre si mesmo. Desde o século IIIdesenvolvia-se - significativamente, mesmo no pag ••-nismo - uma concepção fatalista, pela qual a condi- t

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ção humana estava nas mãos de Deus e não da socie-dade. Prenunciando essa tendência, já no século ISão Paulo afirmara que "pela graça de Deus sou oque sou". Assim, o homem devia colocar-se nas mãosde Deus: a conversão ao cristianismo lhe daria asqualidades morais anteriormente vistas como exclu-sividade dos seguidores da cultura clássica; a reve-lação decorrente da conversão abriria até aos maishumildes e incultos a compreensão da vida e domundo. Portanto, a existência do homem devia-se aDeus. e a Ele estava dedicada: à síntese clássica "ohomem é a medida de todas as coisas", contrapunha-se a medieval, "Deus 6 a medida de t(x~as2S coisas"

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A ESTRUTURA

Por volta de fins do século IX ou princípios doX, as estruturas feudais já se encontravam monta-das. Ou melhor, os diversos elementos derivados doprocesso de formação que examinamos no capítuloanterior estavam reunidos de forma indissolúvel ecompacta num todo histórico chamado Feudalismo.Assim,' é preferível falarmos em estrutura (no sin-gular) para indicar o caráter coeso daqueles ele-'mentos e para marcar bem seu caráter constitutivovisceral, definidor - e não apenas externo e de sus-tentação - do Feudalismo. Porém, na busca de cla-reza, tentaremos desmontar aquele bloco e examinarpartes dele. Naturalmente, não há qualquer hierar-quia entre eles, e valorizar algum mais que outros ouprocurar entender o conjunto através de uma ououtra parte isolada seria falsear o todo.

Economicamente, o Feudalismo estava centradona produção do setor primário (agricultura), hege-

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I mônico em relação ao secundário (indústria) e aoterciário (comércio e serviços). Era claramente uma

! sociedade agrícola pelo fato de essa atividade envol-. ver a grande maioria da população e por quase todos,

direta ou indiretamente, viverem em função dela.Mais ainda, o próprio comportamento dos indivíduose os valores socialmente aceitos estavam intimamenteligados a esse caráter agrícola. De qualquer forma,isso não significa que outras atividades econômicasnão fossem praticadas e não tivessem mesmo umpeso considerável.

Além de artesãos ambulantes que iam de regiãoem região manufaturando a matéria-prima local emtroca de casa, comida e umas poucas moedas, quasetodo senhorio tinha sua própria produção artesanal.Os trabalhadores eram os camponeses, com os maishábeis sendo utilizados nas tarefas que requeriammais cuidado e qualidade (armas, por exemplo). Asmatérias-primas a serem transformadas eram quasesempre produzidas no local, fossem de origem ani-mal (leite, carne, couro, lã, ossos), vegetal (fibrastêxteis, madeira) ou mineral (ferro, chumbo, carvão).Assim, cada grande domínio agrícola procurava pro-duzir tudo que fosse preciso na vida cotidiana: queijo,manteiga, carnes defumadas, tecidos, móveis, uten-sílios domésticos, instrumentos agrícolas, armas etc.

O comércio, ao contrário do que os historiadorespensavam até há algum tempo, mantinha mesmocerto porte, apesar de irregular e de intensidademuito variável conforme as regiões. Certas mercado-rias imprescindíveis em todos os locais, mas encon-

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tráveis apenas em alguns - caso do sal, por exemplo- eram objeto de trocas comerciais constantes eimportantes. Mais do que esse comércio inter-regio-nal, as trocas locais desempenhavam papel de pri-meira ordem, com os camponeses levando à feira seupequeno excedente produtivo e podendo, por suavez, comprar algum artesanato urbano. Assim, aindaque de início timidamente, desde meados do séculoXI a zona rural foi-se integrando nos circuitos comer-ciais. Havia, ainda, um comércio a longa distânciaque ligava o Ocidente ao. Oriente, de onde eramimportadas mercadorias de luxo consumi das pelaaristocracia laica e clerical.

Portanto, uma economia agrária, mas não ex-clusivamente. Devemos abandonar a imagem, exage-rada, de uma agricultura feudal fechada, isolada eauto-suficiente. É verdade que a pequena produti-vidade fazia com que qualquer acidente natural(chuvas em excesso ou em falta, pragas) ou humano(guerras, trabalho inadequado ou insuficiente) pro-vocasse períodos de escassez. Desta forma, sempreassustados com a possibilidade da fome, cada senho-rio procurava suprir suas necessidades, produzindopara seu consumo tudo que ali fosse possível. Mesmoem solos pouco favoráveis a determinados cultivos,não se deixava de produzi-los, ainda que de má qua-lidade e em pequena quantidade, para não se depen-der de outros locais. Mas quando era preciso recorrerà produção de outras regiões, havia circuitos comer-ciais para isso. Em suma, era uma agricultura ape-nas tendente à subsistência.

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Mas ter sido essencialmente agrário não dife-rencia o Feudalismo das demais sociedades pré-industriais. O elemento central, aqui, reside no tipode mão-de-obra feudal. Como já vimos, as transfor-mações pelas quais passava o escravo da Antiguidadee o trabalhador livre acabaram por criar um tipointermediário, o colonus romano, antepassado diretodo servo feudal. Da mesma forma, o latifúndio ro-mano acabou com o decorrer dos séculos por gerar atípica unidade de produção feudal, o senhorio. Ecom a profunda e total interligação servo-senhorio,chegamos ao que há de mais essencial no compo-nente econômico do Feudalismo.

De fato, os senhorios estavam divididos em trêspartes, todas trabalhadas e exploradas (ainda quenão exclusivamente) pelos servos. A reserva senho-rial, com 30 ou 40% da área total do senhorio, eracultivada alguns dias por semana pelos servos emfunção da obrigação conhecida por corvéia. Todo oresultado desse trabalho cabia ao senhor, sem qual-quer tipo de pagamento ao produtor. Os lotes (man-si) camponeses ocupavam no conjunto de 40 a 500/0do senhorio. Cada família cultivava o seu lote, deletirando sua subsistência e pagando ao senhor pelousufruto da terra uma taxa fixa conhecida por censo.O servo devia, ademais, uma parte do que produzia(talha), um pequeno valor anual para marcar sua

. condição de dependência (chevage), uma taxa parase casar com pessoa de outra condição social ousubmetida a outro senhor (formariage), um presenteao senhor para poder transmitir o lote hereditaria-

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mente a seu filho (mão-morta). Como todos os habi-tantes do senhorio, pagava também", as chamadasbanalidades pelo uso do moinho, do forno e do lagarmonopolizados pelo senhor. A terceira parte do se-nhorio, ocupando 20 ou 30% dele, eram as terrascomunais (pastos, bosques, baldios) exploradas tantopelo senhor (através de seus servidores domésticos)quanto pelos camponeses. Aquela área era utilizadapara pastagem dos animais, para a coleta de frutos e.a extração de madeira e - direito exclusivo do se-nhor - para ~ caça.

Contudo, é preciso colocar essa relação no seudevido lugar, lembrando a forte conctação religiosaque ela possuía, que fazia o senhor ser visto tambémcorno um patrono,um propiciador de fertilidade, enão simplesmente um explorador. Como observouGeorges Duby, "tais valores ocupavam um lugardeterminante nos procedimentos de reciprocidade ede redistribuição. As obrigações morais que, emtempo de fome, levavam todo senhor a abrir seus ce-leiros aos pobres, vinham de fato materializar umagenerosidade permanente que, no invisível, fazia fluirdas mãos dos poderosos os princípios da fertilidade eda abundância. Como os chefesbantos, como oschefes de Ruanda, os da Idade Média européia apa-recem em primeiro lugar como dispensa dores dafecundidade, o que legitimava suas exigências e faziaconvergir para sua casa todo um sistema de oferen-das ritualizadas" ..

Socialmente, o Feudalismo era uma sociedadede ordens, isto é, estratificada em grupos de relativa

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fixidez. Nas palavras de um bispo do século XI, Adal-beron de Laon, "o domínio da fé é uno, mas há umtriplo estatuto na Ordem. A lei humana impõe duascondições: o nobre e o servo não estão submetidos aomesmo regime. Os guerreiros são protetores das igre-jas. Eles defendem os poderosos e os fracos, prote-gem todo mundo, inclusive a si próprios. Os servospor sua vez têm outra condição. Esta raça de infelizesnão tem nada sem sofrimento. Quem poderia recons-tituir o esforço dos servos, o curso de sua vida e seusinumeráveis trabalhos? Fornecer a todos alimento evestimenta: eis a função do servo. Nenhum homemlivre pode viver sem eles. Quando um trabalho seapresenta e é preciso encher a despensa, o rei e osbispos parecem se colocar sob a dependência de seusservos. O senhor é alimentado pelo servo que ele dizalimentar. Não há fim ao lamento e às lágrimas dosservos. A casa de Deus que parece una é portantotripla: uns rezam, outros combatem e outros traba-lham. Todos os três formam um conjunto e não seseparam: a obra de uns permite o trabalho dos outrosdois e cada qual por sua vez presta seu apoio aosoutros" .

Como toda construção ideológica, esse esquematripartido não era uma descrição do real, mas umarepresentação mental, um sonho, um projeto de agirsobre o real. Não por acaso, ele é de começo do sé-culo XI, quando o Feudalismo provocava transfor-mações sociais - aparecimento dos cavaleiros, totalsujeição do campesinato - que geravam tensões.Daí a necessidade de um reacomodamento dos qua-

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dros sociais, do estabelecimento de um sistema es-trita e definitivamente hierarquizado. Portanto, aideologia das três ordens funcionava para a elite, esobretudo para a elite. clerical elaboradora do mo-delo, como um sonho e também como uma armapara manter seus interesses, O próprio uso do termoardo (ordem) é significativo no seu duplo sentido:corpo social isolado dos demais, investido com res-ponsabilidades específicas; organização justa e boado universo, que deve ser mantida pela moral e pelopoder. Assim, ardo expressava certo imobilismo so-cial visto como garantia de preservação da Ordemuniversal. Ou seja, diante das forças do Mal (en-tenda-se transformações e contestações sociais) queameaçavam o mundo, aquele modelo ideológico pre-tendia ser estabilizador.

De fato, a ordem terrestre baseia-se na ordemceleste, que é imutável. Por isso, a humanidade, feitaà imagem do Criador também deve ser una e trina.Como na Cidade de Deus existe a desigualdade, umahierarquia de méritos, assim deve ser também naCidade do Homem. Desigualdade e portanto obe-diência, mas atenuada pela idéia de todos os cristãosterem um só coração, formarem um só corpo, com.cada membro tendo uma função. Como dissera São'Paulo, "num só corpo temos muitos membros, masnem todos os membros têm a mesma função; assimtambém nós, conquanto somos um só corpo emCristo e membros uns dos outros, tendo porém dife-rentes dons segundo a graça que nos foi dada".Assim, frente à hierarquia, a concórdia: Da multi-

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plicidade saía a unidade.Portanto, não se negava a desigualdade, mas ela

era justificada através da reciprocidade, da trocaequilibrada de serviços. Uns rezando para afastar asforças do Mal e trazer os favores divinos para ohomem: os clérigos ou oratores na linguagem daépoca. Outros lutando para proteger a sociedade.cristã dos infiéis (muçulmanos) e dos pagãos (vi-kings, húngaros, eslavos): os guerreiros ou bellato-res. Outros ainda produzindo. para o sustento detodos: os trabalhadores ou laboratores, termo queexpressava não só o trabalho em si mas também o

.esforço, a fadiga, o sofrimento como forma de peni-tência, a dor corporal trocada pelo pecado.

Os clérigos, especialistas da oração, desempe-nhavam papel central por deterem o monopólio dosagrado. Só através deles os homens se aproximavamde Deus. Só eles sabiam interpretar corretamente omundo dos homens, visto como um conjunto de sim-bolismos que refletia o mundo celeste, a Cidade deDeus. Portanto, eles exerciam poderoso controle so-bre a conduta dos homens, elaborando o código decomportamento moral, de ação social e de valoresculturais. As esmolas e doações recebidas pela Igrejafaziam do clero um grupo possuidor de extensosdomínios fundiários e portanto de poder econômico epolítico. Assim, os oratores estavam naturalmentemuito próximos da aristocracia laica também deten-tora de terras. E nela o clero requisitava seus ele-mentos.

De fato, ao contrário das demais camadas so-

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ciais, O clero não se auto-reproduzia em virtude docelibato. Esta norma era, ao mesmo tempo, a força ea fraqueza do clero. De um lado, ela impedia adivisão do patrimônio eclesiástico, fonte de prestígioe poder. De outro, obrigava o clero a buscar seuscomponentes no grupo social mais próximo, a no-breza, atraindo muitas vezes indivíduos mais em fun-ção de seu patrimônio do que da função sacerdotal.Portanto, o clero funcionava como uma forma decolocação dos filhos secundogênitos da nobreza, quenão herdavam as terras do pai devido à regra deprimogenitura que reservava tudo ao filho mais velho .Assim, em última análise, as aristocracias clerical elaica compunham um grupo com a mesma origemfamiliar e os mesmos interesses.

Os guerreiros, detentores de terras e do mono-pólio da violência, isto é, da força militar, tinhamdupla origem. O estrato mais alto dos bellatores eraconstituído por indivíduos pertencentes a antigas li-nhagens. Muitas vezes essas famílias remontavam agrandes servidores, importantes personagens da épo-ca carolíngia, Assim, a verdadeira nobreza feudal eraum pequeno grupo de. pessoas com descendentesimportantes e conhecidos. O segundo nível da ca-mada dos bellatores era formado por elementos deorigem humilde, armados e sustentados por umpoderoso senhor, que geralmente lhes cedia umacerta extensão de terra com os correspondentes tra-balhadores. Assim surgiram os cavaleiros.

Acompanhando a tendência da época, os cava-leiros acabaram, nas terras recebidas, por se apossar

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de poderes políticos e por ter domínio sobre os cam-poneses. Assim, seu estilo de vida tendia a imitar oda velha nobreza a quem servia. A superioridade datécnica de combate a cavalo aumentava seu prestígioe poder. Seu título, miles ("cavaleiro"), foi com otempo se enobrecendo graças à Igreja. Os cada vezmais freqüentes casamentos entre pessoas dos doisníveis da aristocracia laica levavam à fusão entreelas. Desta forma, em fins do século XII na Françadesapareceram as diferenças entre nobres e cava-leiros.

Os trabalhadores apresentavam uma grandediversidade de condições, desde camponeses livresaté escravos. As pequenas propriedades rurais nãoligadas a um grande domínio, conhecidas por alô-dios, eram cultivadas pelo proprietário e sua família.Contudo, a partir do século XI, fosse em virtude dedoações à Igreja, de endividamento ou de pressõesdos aristocratas, os alódiosdesapareceram em grandenúmero. Seus antigos proprietários ou entraram en-tão em algum tipo de dependência ou, apesar daperda da terra, mantiveram-se livres mas traba-lhando num grande domínio. Esta foi uma das ori-gens do vilão, camponês livre que recebera um lotede terra de um senhor, mas em troca de obrigações elimitações relativamente leves, podendo deixar aterra quando quisesse.

Os escravos, ainda numericamente' importantesaté o século VIII, passaram desde então a se fundir,sob modalidades diversas, sobretudo comoservos,namassa de trabalhadores dependentes detentores de

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um lote de terra. Em parte, isso se deveu às trans-formações econômicas da época, que com sua ten-dênciaà autarcia tornavam desinteressante a umsenhor fiscalizar e alimentar bandos de escravosgeralmente pouco produtivos. Em parte, à Igreja,que apesar de ser grande proprietária de escravos econsiderar a escravidão um meio de expiação dopecado original, admitia-os aos sacramentos e assimrecuperava sua dignidade humana. De qualquerforma, os escravos jamais desapareceram na épocafeudal, mantendo mesmo certa importância nas re-giõesmeridionais.

Sem dúvida, porém, o principal tipo de traba-lhador no Feudalismo eram os servos. Contudo, nãoé fácil acompanhar a passagem da escravidão para aservidão. Ela se deu lentamente, com variações re-gionais, mas sempre acompanhando o caráter cadavez mais agrário da sociedade ocidental. De fato,com a atrofia da economia mercantil era mais difícilrecorrer-se à mão-de-obra escrava (caso em que otrabalhador é mercadoria) ou assalariada (caso emque a força de trabalho é mercadoria). Assim, apre-sentava-se como solução natural a mão-de-obra ser-vil, isto é, produtores dependentes, sem liberdade delocomoção (de que goza um assalariado), mas queescapavam à arbitrariedade de um senhor (que atin-gia o escravo).

A servidão tinha uma dupla origem. De umlado, os servi casati da época carolíngia (séculosVIII-IX), escravos que haviam recebido uma casa eterra para cultivar. De outro, colonos e demais ho-

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mens livres, submetidos, espontaneamente ou não,ao poder de grandes proprietários rurais. Os primei-ros constituíam a servidão pessoal, eram "homens decorpo" de um senhor, a quem pertenciam "da solados pés ao alto da cabeça", e podiam ser dados,vendidos ou trocados. Os segundos constituíam aservidão real, estando ligados a uma terra que nãopodiam abandonar. Em ambos os casos a condiçãoservil era transmitida hereditariamente, primeiro porlinha feminina, e a partir do século XII por linhamasculina.

Portanto, para se pensar a mecânica das rela-ções sociais, podemos considerar a existência de duascamadas básicas: senhores de terra e poder político(oratores e bellatores), e despossuídos, geralmentedependentes (laboratores). Assim, eram possíveis trêstipos de relações sociais: duas horizontais (uma intra-camada dominante e outra intracamada dominada) euma vertical (intercamadas). No primeiro tipo a re-lação se dava, como veremos algumas páginas adian-te, através do contrato feudo-vassálico. No segundotipo, os camponeses se organizavam para empreen-derem conjunto certas tarefas (arar um campo, des-matar uma área) ou resistir a pressões senhoriais (porexemplo, para privatizar as terras comunais).

O terceiro tipo de relação social constituía-sepor sua vez num elemento central do Feudalismo.Ele era a razão de ser do primeiro, na verdade formade a aristocracia dividir o produto do trabalho cam-ponês, e do segundo, forma de os camponeses resis-tirem a abusos aristocráticos. As relações verticais

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implicavam, como já vimos, diversas obrigações emserviço, em produtos e em dinheiro devidas pelostrabalhadores aos seus senhores. Desta forma, es-tima-se, de 30 a 50% do que eles produziam eramtransferidos para as mãos da aristocracia laica eclerical.

Politicamente, ocorria uma fragmentação dopoder central, uma debilidade do poder público queresultava na transferência das atribuições do Estadopara mãos de particulares. Ou melhor, com a fra-queza da própria concepção de Estado e com o desen-volvimento de particularismos regionais (influênciasgermânicas), com a decadência do Império Carolín-gio e a apropriação de poderes régios por seus repre-sentantes, com a crescente importância da terra navida econômico-social, os detentores de terra passa-ram a exercer nos seus senhorios poderes políticos.Surgiram assim desde princípios do século XI oschamados senhorios banais, nos quais os senhorestinham poder de bannum, isto é, de mandar, tribu-tar, julgar e punir seus habitantes.

O processo político centrífugo que vinha desdeos últimos tempos de Roma, foi expressado e acele-rado pelo desaparecimento do Império Carolíngio.Surgiram então grandes principados territoriais, du-cados e condados, cujos titulares deixavam cada vezmais de representar o poder monárquico e passavama agir de forma independente. A tendência de parce-lamento da soberania continuava a se manifestar nointerior desses principados, com amplas áreas esca-pando ao poder ducal ou condal e passando ao domí-

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nio efetivo de seus servidores (viscondes, castelões).Assim, o mapa político da Europa Ocidental pulve-rizou-se numa infinidade de pequenos territórios,unidades administrativas, judiciais, militares e fis-cais, verdadeiros micro-Estados.

Que papel cabia então ao poder monárquico?Em função das transformações que ocorriam, o reipassava a ter um duplo e contraditório caráter. Porum lado, continuava a ser o soberano, a ter teori-camente poderes bastante extensos sobre seus súdi-tos. A relação com estes era unilateral, pois o sobe-rano tinha caráter sagrado que originário do AntigoOriente passara para o Império Romano e fora refor-çado pelo cristianismo. Ele era Rex Dei Gratia, "reipor graça de Deus" . Como ocorria no Antigo Testa-mento, sua sacralidade era confirmada pela unção,pelo rito de o bispo passar-lhe óleos santos. Assim,ele podia curar certas doenças apenas pelo contato desuas mãos. Sobretudo, ele era único: se os grandessenhores feudais imitaram o uso de insígnias reais,como anel, glâdio e mesmo coroa, jamais algumdeles teve a pretensão de ser ungido e de possuircaráter sagrado.

Por outro lado, contudo, o rei era suserano. Istoimplicava uma relação bilateral entre ele e seus vas-salos, com direitos e obrigações recíprocos. Assim,como suserano ele não tinha poder político-diretosobre o conjunto da população, exercendo-o apenas,e de forma muito limitada, através de inúmeros inter-mediários, seus próprios vassalos e os vassalos destes.Portanto, em termos práticos, o rei era um senhor

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feudal como os demais, mandando efetivamenteapenas nos seus senhorios, e vivendo daquilo queestes produziam. Em suma, por ser soberano, o reinão desapareceu com o Feudalismo, mas se adaptouàs novas condições tornando-se suserano; por sersuserano, manteve uma fração de seu poder anterior,podendo com a decadência do Feudalismo assumirnovamente o papel de soberano.

Institucionalmente, diante da fraqueza do Es-tado e da necessidade de segurança, desenvolviam-seas relações pessoais, diretas, sem intermediação doEstado. Estreitaram-se assim os laços de sangue, asrelações dentro das famílias, das linhagens, gruposcuja solidariedade interior podia melhor proteger osindivíduos em relação ao exterior. Por exemplo, con-siderava-se a morte violenta de uma pessoa comoatingindo todo -o grupo, pondo em ação a faide, a"vingança dos parentes". Ou seja, não havendo insti-tuições públicas encarregadas da punição do agres-sor, os amigos e parentes da vítima faziam justiçapelas próprias mãos. Dentro do mesmo espírito, pelovelho costume germânico do wergeld, "o preço dohomem", a falta de um indivíduo comprometia todasua família e devia ser resgatada por um pagamentoà família da pessoa ofendida ou prejudicada. Osatos, ativos ou passivos, de um indivíduo envolviamtodos os seus parentes.

Este forte sentimento grupal, o que natural-mente não excluía desentendimentos internos, existiatanto no seio da aristocracia quanto no do campesi-nato. Contudo, os laços de sangue eram claramente

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insuficientes para as necessidades sociais: daí a for-mação de vínculos fora do parentesco. Como obser-vou Marc Bloch ao estudar a importância dos laçoshomem a homem, "a força da linhagem foi um doselementos essenciais da sociedade feudal; (contudo)a sua fraqueza relativa explica que o feudalismotenha existido". Ou seja, como os laços familiaresnão bastavam, criaram-se laços artificiais, uns li-gando homens livres entre si, outros ligando homenslivres e dependentes. Este último tipo, isto é, a re-lação nobre-camponês, baseada na desigualdade,estabelecia, como já vimos, complexos vínculos eco-nômicos, religiosos e políticos; o senhor era um mistode protetor' e propiciador. Por sua vez, a relaçãoentre nobres, baseada na igualdade, fundamentava-se no contrato feudo-vassálico.

Este era criado por três atos, realizados diantede testemunhas mas poucas vezes colocados por es-crito. O primeiro ato era a homenagem, pela qualum indivíduo (o futuro vassalo) se ajoelhava diantede outro (que se tornava o senhor feudal), colocavasuas mãos nas dele e se reconhecia como "seu ho-mem". O segundo ato, logo a seguir, era o juramentode fidelidade: depois de se pôr em pé, o vassalojurava sobre a Bíblia ou relíquias de santos. Muitasvezes, especialmente na França, a fidelidade era se-lada pelo osculum, beijo trocado entre ambos. O ter-ceiro ato era o da investidura, pelo qual o senhorentregava ao vassalo um objeto (ramo, punhado deterra etc.) simbolizador do feudo então concedido.

Esta cerimônia feudo-vassálica possuía forte

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cárga simbólica, muito bem estudada por Jacques LeGoff. Como ele mostrou, as três fases do ritual for-mavam um todo, um conjunto coerente, que expres-sava simbolicamente a relação vassalo-senhor feudalbaseada na desigualdade-igualdade-reciprocidade.De fato, na homenagem transparece uma relação dedependência, de inferioridade do vassalo, que se en-contra ajoelhado diante do senhor, que através depalavras "se entrega" a ele, que tem suas mãos envol-vidas, num gesto de desamparo e submissão. Mas osegundo ato altera a relação, pois ambos se encon-tram de pé, frente a frente, para o juramento e sobre-tudo para o beijo, na boca, claro indicativo de ati-tude entre pessoas iguais. Por fim, o dom da auto-entrega (homenagem) e da fidelidade (juramento)tinham como contradom a concessão do feudo (inves-tidura): selàva-se o pacto, a reciprocidade.

Mais ainda, o contrato feudo-vassálico estavabem de acordo com dois elementos importantes daépoca, os laços familiares nas relações sociais e acomplementaridade das funções sociais. De fato,quando pela homenagem alguém se tornava "moço"(vassalus) de um "ancião" (senior), estabelecia-seum pseudoparentesco entre filho e pai. Entre eles,como nas relações paternais-filiais biológicas, deviahaver respeito e· fidelidade, um devia servir, outrosustentar. O vassalo, filho simbólico, geralmente maisjovem e vigoroso, precisa de terra e camponeses;o senhor feudal, pai simbólico, geralmente mais ricoe experiente, precisa de guerreiros. Portanto, "mu-tualidade, mas numa organização hierárquica" .

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(Duby)Enfim, quais eram as obrigações recíprocas?

Elas foram definidas em princípios do século XI pelobispo Fulbert de Chartres: "Aquele que jura fideli-dade ao seu senhor deve ter sempre presente na me-mória seis palavras: são e salvo, seguro, honesto,útil, fácil, possível. São e salvo, para que não causequalquer prejuízo ao corpo do seu senhor. Seguro,para que não prejudique o seu senhor divulgando osseus segredos ou dos castelos que garantem sua segu-rança. Honesto para que não prejudique os direitosde justiça do seu senhor ou outras prerrogativas queinteressem à honra a que pode pretender. Útil, paraque não cause prejuízo aos bens do seu senhor. Fácile possível, para que não torne difícil ao seu senhor obem que este poderia facilmente fazer e para que nãotorne impossível o que teria sido possível ao seusenhor. Mas não é assim que ele merece o seu feudo,pois não basta abster-se de fazer mal, é preciso fazero bem. Importa, portanto, que sob os seis aspectosque acabam de ser indicados, forneça fielmente aoseu senhor conselho (consilium) e ajuda tauxilium),se quiser parecer digno do seu benefício e realizar afidelidade que jurou. O senhor deve igualmente, emtodos estes domínios, fazer o mesmo àquele que lhejurou fidelidade. Se não o fizer, será com razão acu-sado de má fé; tal como o vassalo que fosse vistofaltar aos seus deveres, pela ação ou por simplesconsentimento, seria ele culpado de perfídia e de per-júrio".

Portanto, por parte dos vassalos, obrigações ne-

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gativas (não prejudica! seu senhor de maneira al-guma) e positivas iauxilium e consilium), O auxiliumera o serviço militar prestado" sempre que requisitadopelo senhor, desde que não ultrapassasse certo nú-mero de dias anuais, geralmente quarenta. Casofosse preciso ir além desse limite, o senhor deveriaremunerar complementarmente seus vassalos. Aolado do aspecto militar, o auxilium implicava ajudaeconômica em quatro casos: pagamento de resgatedo senhor se ele fosse aprisionado, da cerimônia emque se armava cavaleiro o primogênito do senhor, docasamento da filha mais velha do senhor, da partidado senhor para uma cruzada. Em algumas regiões(como a Inglaterra) a ajuda para a cruzada não eraexigida, enquanto em outras (como a.Provença) haviaexigências complementares. O consilium significavadar conselhos, opinar sobre assuntos propostos pelosenhor, e sobretudo participar algumas vezes por anono tribunal presidido por ele.

Por parte do senhor havia as mesmas obrigaçõesnegativas, e como positivas a proteção e o sustento.Proteger o vassalo implicava defendê-Io de seus ini-migos, fosse militarmente, fosse judicialmente. Sus-tentar o vassalo, significava ou alojâ-lo e alimentá-Iano castelo senhorial, ou conceder-lhe um feudo doqual ele tiraria sua subsistência. Na essência, o feudo- termo surgido em fins do século IX e vulgarizadono XI - equivalia ao velho beneficium carolíngio,palavra que aliás continuou a ser usada ainda porbastante tempo (como no texto de Fulbert de Char-tres citado acima). Naquela sociedade agrícola, natu-

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ralmente O feudo era quase sempre uma certa exten-são de terra, englobando um ou mais senhorios. Era,portanto, terra com camponeses', pois sendo o vassaloum homem livre pertencente à camada dos guerrei-ros, nãc se dedicava a tarefas produtivas. Vivia,assim, das prestações em serviço, em produtos e emdinheiro devidas pelos camponeses daquela terra re-cebida como feudo. Mas o feudo não era necessa-riamente um bem Imóvel, podendo ser um direito,corno cobrar pedágio numa ponte, numa estrada ounum rio. Podia ser um certo cargo remunerado: co-nhece-se mesmo "feudos de cozinha", nos quais ocozinheiro detinha seu ofício e a correspondente re-muneração como feudo. Podia ser uma determinadaquantia paga periodicamente ao vassalo, fosse emmoeda, cabeças de gado ou sacas de trigo.

De qualquer forma, o contrato íeudo-vassâlicoimplicava direitos e obrigações recíprocos, de ma-neira que o rompimento do acordo por uma daspartes era considerado felonia ("traição"). Disso de-corria a quebra da fidelidade e o confisco do feudo.Nada disso ocorrendo, o pacto seria vitalício, rom-pendo-se apenas pela morte de uma das partes. Ofeudo então retomava ao senhor ou a seu herdeiro,pois o vassalo gozava apenas do usufruto temporáriodaquele bem. Contudo, o interesse do novo senhorem manter os vassalos que tinham sido de seu pai e ointeresse dos filhos dos vassalos falecidos em conti-nuarem ligados a um senhor foram aos poucos crian-do uma tendência à hereditariedade do feudo. '

Ainda assim, a morte de uma das partes levava à

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necessidade de se renovar o contrato feudo-vassálico.Caso o vassalo não tivesse herdeiro, a terra enfeudadaretomava ao senhor, que podia conservá-Ia ou con-cedê-Ia a outrem. Esta norma permitiria ao rei, comosuserano (isto é, senhor dos senhores), apossar-se devários feudos e aos poucos recuperar a força do poderrnonârquico. Foi o que ocorreu, por exemplo, naFrança desde o século XII. Por outro lado, a inexis-tência dessa regra juridica na Alemanha obrigava orei a reenfeudar as terras que voltavam para ele pelamorte de vassalos sem herdeiros. Em função disso,'a monarquia permaneceu fraca e o país não pôde cen-tralizar-se politicamente na Idade Média.

Por outro lado, caso existisse um herdeiro, osenhor, para enfeudá-lo na terra anteriormente mano,tida pelo falecido, exigia o relevium, taxa primitiva-mente arbitrária e desde o século XlI, pelo menos naFrança, correspondente a um ano de rendimento dofeudo. De toda forma, o feudo só poderia ser trans-mitido inteiro ao filho mais velho do falecido. Estaregra de primogenitura excluía, pois, os demais fi-lhos e as mulheres da sucessão feudal. Contudo, nocaso de haver apenas uma mulher como herdeira, osenhor, como seu tutor, indicava-lhe um marido quepudesse cumprir as obrigações feudais.

Essa preocupação do senhor em não ter menoresde idade ou mulheres à frente dos feudos que conce-dera, devia-se às suas necessidades militares. Por-tanto, o feudo era indiviso na sua transmissão here-ditária, mas podia ser indefinidamente subenfeu-dado, com cada vassalo entregando partes do feudo

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recebido e tendo assim seus próprios vassalos. Estes,por sua vez, podiam agir da mesma forma. Consti-tuía-se assim uma cadeia de relações vassálicas, emque quase todos os membros da aristocracia eram aomesmo tempo senhor e vassalo. Contudo, a relaçãodireta era apenas com o indivíduo colocado um de-grau acima na hierarquia e com o outro um degrauabaixo. Prevalecia a regra "o vassalo do meu vassalonão é meu vassalo" .

Tentemos exemplificar com um caso hipotético.O conde X, que detinha seu condado como feudo dorei, precisando de mais guerreiros, constituiu cincofeudos, entregues aos indivíduos A, B, C, D, E. Foicombinado que cada um desses vassalos deveria aoconde o serviço militar de dez cavaleiros. Para queisso fosse possível, cada um recebeu como feudo vintesenhorios. Para cumprir sua obrigação, A precisavade nove guerreiros que o acompanhassem quando oserviço militar fosse requisitado pelo conde. Essesguerreiros (K, L, M, N, O, P, Q, R, S) foram remu-nerados com um senhorio cada, a título de feudo. Asubsistência deles estava assim garantida graças aoproduto do trabalho camponês em cada um daquelessenhorios. O indivíduo A, por sua vez, mantinhaonze senhorios. Basicamente a mesma coisa foi feitapor B, C, D, E.

Por este exemplo, vemos que o indivíduo A era,ao mesmo tempo, vassalo de X e senhor feudal de K,L, M, N, O, P, Q, R, S. Todos estes deviam fideli-dade e serviço militar a A, mas não a X. Apenas nahipótese de A morrer sem herdeiros (e assim seus

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vinte senhorios retornariam a X), os indivíduosl K... Sse tornariam vassalos diretos de X. Independente-mente de quem fosse seu senhor, o indivíduo K pode-ria ceder parte de seu feudo a Y, tornando-se tam-bém um senhor feudal. O resultado desse constanteprocesso de subenfeudação era criar novos degrausna hierarquia, enfraquecendo os que estavam maisacima. Enfim, era a institucionalização das relaçõespesso~is refletindo e agravando a pulverização dopoder que examinamos páginas atrás.

Militarmente, o Feudalismo baseava-se na supe-rioridade de um guerreiro altamente especializado,o cavaleiro. Esta superioridade vinha se firmando aospoucos e parece ter-se concretizado, no Ocidente,com o início da utilização do estribo, no século VIII.Importante inovação: somente a partir de então, ocavaleiro - com sua pesada armadura, com umamão segurando as rédeas do animal e o escudo e coma outra empunhando a lança - poderia se manterfirme sobre o cavalo. Como já se disse, o estribo"tornava solidários homem e cavalo, uma unidade decombate eficaz. A Antiguidade tinha imaginado ocentauro; a Alta Idade Média fez dele o senhor daEuropa". (Lynn White Jr.)

Contudo, para utilizar tal tecnologia militar, erapreciso recursos econômicos abundantes para adqui-riras valiosas armas e o caro. cavalo e para o cons-tante treinamento que o uso de todo aquele equipa-mento requeria. O custo desse equipamento equi-valia a 22 bois, animais de que cada família campo-nesanão contava com mais de dois, para ajudar nos

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serviços agrícolas. Ou seja, os bens mobiliários deum cavaleiro correspondiam aos de onze camponesesreunidos. Entende-se, portanto, que o detentor deterras precisava ser (ou ter) cavaleiro para defendê-Ias e portanto não perdê-Ias, e o cavaleiro precisavater terras para manter seu equipamento e treina-mento militares, enfim, sua própria condição decavaleiro.

Desta forma, a condição de guerreiro era intrín-seca ao aristocrata feudal, pois o poder militar de-sempenhou papel fundamental no Feudalismo. Nosseus primeiros tempos, a defesa da Cristandade con-tra os muçulmanos ou pagãos dava aos guerreiroscrescente prestígio e poder. Depois, passada aquelafase, a guerra revelou-se a forma de revigorar, man-ter ou alterar os laços hierárquicos dentro da aris-tocracia através de uma nova distribuição das terras,motivadora e mantenedora daquela constante ativi-dade militar. Por fim, e sobretudo, o monopólio daviolência permitia aos bellatores manterem o domí-nio sobre o campesinato e assim se apropriarem degrande parte de sua produção.

Para exemplificar, lembremos o caso da Pro-vença, onde a intensificação da construção militarnão se dava em função de ameaças externas, pois osmuçulmanos foram ali exterminados em 972. Devia-se, sim, a rivalidades locais e ao interesse em domi-nar o campesinato e aumentar as exações sobre ele.Por isso, de doze castelos construídos na primeirametade do século X, eles passaram a algumas deze-nas em fins do mesmo século e a uma centena nas

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Um exemplo de cidadefortificada.

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primeiras décadas do século XI. O mesmo fenômenoé constatado em inúmeras outras regiões, atestandoque a cavalaria se tornava uma peça essencial nosistema de exploração senhorial.

Por isso mesmo, a condição socialmente impor-tantedos cavaleiros só se firmou a partir do começodo século XI. Até então, eles eram elementos de ori-gem humilde, geralmente saídos do campesinatolivre que ainda existia, sendo armados e sustentadospor um senhor na sua própria casa (vassalos domés-ticos). Corno porém seu número crescia e sua manu-tenção era custosa, preferiu-se cada vez mais remu-nerá-los com terras. Mas assim, diante da fraquezados poderes públicos, eles ganhavam certa autono-mia, que redundava em constantes combates entreeles e em expedições destrutivas contra os feudosinimigos. Assim, a anarquia dos primeiros temposfeudais levou a Igreja a lançar em fins do século X omovimento da Paz de Deus.

Por ela, tentava-se obter um juramento dosguerreiros no sentido de respeitarem no curso de suaslutas os clérigos, os mercadores e os camponeses,assim como seus bens. Esse movimento se amplioucom a Trégua de Deus, de princípios do século XI,que proibia lutas alguns dias por semana (da quintade tarde à segunda de manhã) e em certos períodosdo ano (Páscoa, as semanas que precedem o Nataletc.). Desta maneira começava um processo de cris-tianização da cavalaria, pois, ao se proibir as lutasem certos momentos, automaticamente. elas estavamjustificadas no resto do tempo. Mais ainda, criou-se

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uma cerimônia para transformar o -guerreiro anár-quico e destrutivo em um miles Christi, um cavaleirode Cristo, a serviço da Igreja, o que desembocaria,em fins do século, nas Cruzadas. Portanto, Paz deDeus e Guerra Santa foram concepções complemen-tares, que permitiam aos oratores manterem certocontrole sobre os bellatores .

Aquela cerimônia, conhecida por adubamento,era um rito iniciático que ganhou força de sacra-mento. Depois de o jovem ter servido como escudeiroa um cavaleiro, ter aprendido o manejo das armas,ter participado como auxiliar em alguns combates,ele podia se tornar membro daquele grupo restrito eprivilegiado. Vestido de branco, ele passava todauma noite na igreja, a rezar, em vigília das armascolocadas no altar. De manhã, após comungar, ocor-ria a bênção das armas, e depois, seguindo um ritomuito antigo, seu padrinho batia-lhe com a espadana nuca, ato de rico e discutido simbolismo, tor-nando-o seu igual. No século XII o prestígio do cava-leiro adubado era tão grande, que mesmo os nobresde nascimento queriam passar por aquele ritual: acavalaria tornava-se "0 denominador comum da aris-tocracia" (Chedeville).

Clericalmente, havia no Feudalismo um papelde primeira ordem desempenhado pelo grupo ecle-siástico. Papel que extravasava, em muito; sua ativi-dade sacerdotal. Sendo a Igreja a única instituiçãoorganizada da época, de atuação realmente católica,quer dizer, universal, a ela cabia a função cimenta-dora, unificadora, naquela Europa fragmentada em

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milhares de células. Por outro lado, a Igreja, natu-ralmente, não escapava às características básicas doperíodo: muito de seu poder temporal derivava dafragmentação dos Estados, o prestígio social do cleroestava ligado à sua origem nobiliárquica, sua imensariqueza assentava-se na posse de terras e no trabalhode servos, suas relações com a elite laica davam-seatravés de laços feudo-vassâlicos, a proteção dos bense pessoas da Igreja era realizada pelos cavaleiros.

A estreita articulação Feudalismo-Igreja podeser exemplificada pela ordem monástica de Cluny.Fundado por um duque no início do século X, naBorgonha, aquele mosteiro em duzentos anos deuorigem a mais de mil outros espalhados por todo oOcidente. Esses mosteiros encontravam-se estreita-mente ligados à abadia central, adotando integral-mente sua regra, pagando-lhe uma pequena contri-buição anual e com os monges prestando um jura-mento de fidelidade ao abade de Cluny. Entre osmosteiros da Ordem havia uma rígida hierarquia,que tinha no cume a abadia-mãe, por sua vez subme-tida à Santa Sé, como que numa extensa cadeia devassalagem.· Não havia relações horizontais entreunidades de igual categoria, reportando-se todas aonível hierárquico superior. Todo mosteiro clunia-cense estava isento do poder local dos bispos, ou seja,cada um deles era um enc1ave que fugia à autoridadelegítima, como cada castelão escapava à autoridadereal, ducal ou condal. Enfim, uma organização alta-mente feudalizada.'Não por acaso, portanto, os con-ceitos de Paz de Deus e Guerra Santa foram de ori-

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gem cluniacerise.!Na verdade, a sociedade feudal (agrária, milita-

rista, Iocalista, estratificada) era ao mesmo tempouma sociedade clerical (controle eclesiástico sobre otempo, as relações sociais, os valores culturais e men-tais). De fato, a Igreja, ao determinar rigorosamenteo uso do tempo, interferia no mais profundo e coti-diano da ação dos homens. Tempo histórico: inter-valo entre a Criação e o JUÍzo Final, tendo comogrande linha divisória a encarnação de Cristo, a par-tir da qual se passa a contar os anos. Tempo natural:os ciclos das estações e os fenômenos meteorológicos,tão importantes numa sociedade agrária, lembravama onipotência de Deus e deixavam aos homens umaúnica possibilidade de intervenção, realizada atravésdo clero: as orações. Tempo social: festas litúrgicas,determinando para certos momentos certas formasde agir e de pensar, de trabalhar ou repousar, de sealimentar ou de jejuar. Tempo político: a Paz deDeus fixando onde e quando se poderia combater.Tempo pessoal: o cristão nascia com o batismo,reproduzia no casamento (desde que fora dos mo-mentos de abstinência), morria após a extrema-un-ção e era enterrado no espaço sagrado do cemitérioda igreja de sua localidade.

No que dizia respeito às relações sociais; o papelda Igreja não era menos decisivo. o caráter do casa-mento ocidental, diferenciado do de outras socieda-des, foi fixado por ela: monogâmico, indissolúvel,exogârnico (isto é, entre não" familiares , estando proi-bido até o 7? grau de parentesco), público (a relação

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homem-mulher deixava de ter caráter pessoal e pri-vado, passando a ter normas controladas pela socie-dade). Conseqüentemente, todas as relações familia-res (adoção, deserção, herança, divórcio, adultério,incesto etc.) passavam para a alçada da Igreja. Entreos clérigos as relações baseavam-se num parentescoespiritual, pois todos eram vistos como "irmãos emCristo". Da mesma forma, a Igreja procurava trans-ferir esse pseudoparentesco para as relações entreclérigos 'e leigos, extraindo delas certa posição dedomínio: o clérigo é o padre, "pai" dos cristãos.Entre os laicos, incentivava-se o parentesco artificialpara se criar uma rede de relações que nada deixasseescapar à Igreja, daí os muitos padrinhos e madri-nhas em todos os atos considerados importantes navida do cristão. Por fim, o contrato feudo-vassáliconão deixava de ser uma forma de parentesco não-biológico referendada por um ato religioso, o jura-mento de fidelidade sobre os Evangelhos ou relí-quias.

O controle eclesiástico sobre os valores culturaise mentais era exercido através de vários canais. Osistema de ensino, monopolizado pela Igreja até oséculo XIII, permitia a reprodução do corpo de idéiasque ia sendo selecionado e formulado por ela. Assim,foi primeiro nos mosteiros, depois nas universidades,que a herança cultural greco-romana foi devidamentecortada, emendada, desenvolvida; enfim, cristiani-zada, ou melhor, c1ericalizada. Numa época em quepoucas pessoas tinham acesso a essa cultura escrita,as pinturas e esculturas das igrejas e os sermões

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dominicais dos clérigos funcionavam como os meiosde comunicação de massa da época, transmitindonaturalmente a visão de mundo da Igreja. A práticada confissão individual, cada vez mais adotada apartir do século VIII, permitia ao clero penetrarprofundamente na consciência de seus paroquianos eassim orientar seu pensamento e comportamento.

Em suma, a clericalização da sociedade que, jávimos, ocorria desde os últimos tempos do ImpérioRomano, atingiu seu auge nos séculos X-XIII. Poucacoisa naquele momento escapava à Igreja. Antes defazer parte de qualquer grupo familiar, social oupolítico, o indivíduo pertencia à comunidade cristã,à ecclesia, isto é, à Igreja no seu sentido mais amplo.Assim, se não estivéssemos adotando a expressão clás-sica e consagrada de "feudalismo", deveríamos falar,mais adequadamente, em feudo-c1ericalismo ou emsociedade feudo-c1erical.

. Psicologicamente, o homem da época feudal eratão complexo quanto seus antepassados ou seus des-cendentes, mas talvezpossamos, para os nossos obje-tivos, destacar três traços, profundamente interliga-dos. O primeiro deles é a supranaturalidade, isto é, atendência a interpretar todos os acontecimentos comomanifestação divina. Portanto, a compreensão dosobjetos e dos fenômenos deveria se dar através da fé eda sensibilidade mais do que da inteligência. Desteponto de vista, o mundo terrestre seria apenas umreflexo deformado do mundo celeste, imagem que ohomem deveria se esforçar por entender olhandopara além das aparências materiais. A realidade es-

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tava no invisível, por detrás das máscaras visiveismas ilusórias. Identificadas as forças sobrenaturais,benéficas ou maléficas, responsáveis por determi-nados acontecimentos, o homem poderia tentar in-tervir através de preces, jejuns, peregrinações, exor-cismos, amuletos etc.

Portanto, o mundo terrestre era visto como palcoda luta entre as forças do Bem e as do Mal, hordas deanjos e demônios. Disso decorria o segundo grandetraço mental da época: a belicosidade. Na"sua mani-festação mais concreta, tratava-se de enfrentar asforças demoníacas dos muçulmanos, vikings e hún-garos. Mais perigosas e difíceis de serem vencidas,contudo, eram as forças maléficas que não se encar-naram. Para isso era preciso outrá tipo de guerreirosespecializados: os clérigos, com suas armaduras sim-bólicas (batinas) e suas armas espirituais (sacramen-tos, preces, exorcismos). Sob seu comando, todos oshomens enfrentavam o Diabo, vassalo de Deus quepraticara Ielonia ao quebrar sua fidelidade.

Isso pedia a participação dos fiéis (o termo ésignificativo), dos vassalos honestos do Senhor, quedeviam em troca do mundo que receberam, fideli-dade e serviços. Eis o outro traço psicológico: a con-tratualidade. Presente na verdade em muitas reli-giões pré-cristãs, esse dado foi reforçado pelo cristia-nismo e contribuiu para o próprio contratualismosocial, político, econômico e militar dos séculosX-XIII, sendo por sua vez influenciado por este.Assim, não é de se estranhar que Deus fosse vistocomo Senhor e o homem como vassalo, e que desde o

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século X se tenha generalizado o hábito de fazer umaprece com as mãos juntas, reproduzindo o gesto dovassalo ao prestar homenagem ao seu senhor. A reli-gião feudal tornava-se um feudalismo religioso.

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A DINÂMICA

Gestação, nascimento, crescimento, reprodu-ção, morte. Também as sociedades passam por esteciclo vital. E com o Feudalismo não poderia ser dife-rente. Mal estava completada sua estruturação, oFeudalismo já começava a sofrer transformações. Eraa dinâmica feudal, isto é, o próprio movimento docorpo social, a vida enfim da sociedade, que desen-cadeava uma série de mutações que de um ladoexpressavam a vitalidade do Feudalismo na suamaturidade, mas de outro levavam-no à sua velhice edecadência. Nascido em fins do século IX ou prin-cípios do X - após centenas de anos de gestação -o Feudalismo conheceu seu período de mais intensocrescimento de meados do século XI a meados doXIII.

Isso foi possível porque o Feudalismo significarauma reorganização da sociedade ocidental em novosmoldes, mais de acordo com as condições decorren-

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tes do fracasso do Império Carolíngio e com as pro-fundas transformações que ocorriam há séculos.Contudo, tal reorganização (estrutura) provocava ummovimento geral de renovação e expansão (dinâmica)que trazia em si os germes que acabariam por abalarseus próprios fundamentos (crise). Aquela revitali-zação da sociedade cristã ocidental expressou-se numtriplo crescimento, demográfico, econômico e terri-torial. Sendo partes de um mesmo fenômeno, essescrescimentos ocorreram paralela e interligadamente,com cada um deles agindo sobre os demais.

O primeiro deles, o crescimento demográfico,ocorreu como resposta lógica a uma sociedade que

. não encontrava obstáculos à tendência natural quetoda espécie tem para se multiplicar. De fato, naépoca feudal dois importantes fatores de mortalidadeforam pouco ativos: as epidemias e a guerra. A nata-lidade, por sua vez, era favorecida pela abundânciade recursos naturais, pela suavização do clima, pelatransformação jurídica do campesinato, pelas inova-ções das técnicas agrícolas. Em função disso tudo,apesar de flutuações no tempo e desigualdades regio-nais, a população da Europa Ocidental passou de 18milhões de pessoas por volta do ano 800, para 22 (emtorno do ano 1000), quase 26 (ano 1100), mais de 34(ano 1200) e mais de SO(cerca do ano 1300), Apesarde paralelamente ter havido o desbravamento, a con-quista e a ocupação de vastos territórios, a densidadepopulacional quase dobrou de fins do século VIIIa fins do XIII. ,

Um fator que explica esse crescimento popula-

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cional foi a ausência de epidemias no Ocidente dosséculos X-XIII. A malária, devastadora nos últimostempos do Império Romano, assumiu forma maisbenigna, talvez devido ao próprio desenvolvimentode anticorpos por parte das populações anterior-mente atingidas: A peste, presente até o século VIII(e que reapareceria no XIV), também desapareceuno período feudal, talvez porque o despovoamentoque ela provocara em várias regiões dificultava a suaprópria propagação. Assim, parece que a crise demo-gráfica da Alta Idade Média esteve nas origens daexpansão populacional da Idade Média Central, damesma forma que esta se encontra nas raízes da crisedemográfica da Baixa Idade Média.

Outro fator era o tipo de guerra da época feudal,constante mas pouco destruidora. Isso se devia aofato de ela não envolver grandes tropas de comba-tentes anônimos, como nas legiões romanas ou nosexércitos nacionais modernos, mas apenas pequenosbandos de guerreiros de elite, os cavaleiros. O equi-pamento desses era sobretudo defensivo (especial-mente a armadura, que protegia praticamente todo ocorpo), rninimizando nos combates o número demortes. Na verdade, a guerra feudal não objetivava amorte do adversário, mas apenas sua captura. Emparte, porque assim cada cavaleiro podia provar seuvalor de guerreiro e ao mesmo tempo exigir um res-gate pelo prisioneiro (como sabemos, uma das obri-gações dos vassalos era pagar o resgate de seu senhorfeudal aprisionado). Em parte,' devido a uma certaconsciência de classe que - se não impedia os cava-

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leiros de disputarem entre si a posse de terras e po-deres políticos - fazia deles mais adversários queinimigos.

Um terceiro elemen to a ser considerado é aabundância de recursos naturais existente na épocafeudal. De fato, o recuo demográfico dos séculosIII -VIII fizera com que extensas áreas anteriormentecultivadas fossem abandonadas e ocupadas por bos-ques e florestas. Assim, o homem podia obter alifrutos silvestres e caça para sua alimentação, e sobre-tudo madeira, o principal material de construção ecombustível de que dispunha. Mais ainda, a maiorprodutividade agrícola que então ocorria deviá-se emparte ao cultivo de zonas desmatadas e portanto desolo virgem e de grandeiertilidade.

As mudanças climáticas são difíceis de seremacompanhadas, porém tudo indica que desde mea-dos do século VIII o .clima da Europa Ocidentaltornou-se mais seco e temperado que antes. Destaforma, a paisagem de alguns locais foi alterada ehumanizada, caso da Groenlândia, que então faziajus ao seu nome (literalmente, "terra verde"); a viti-cultura pôde expandir-se em regiões anteriormenteimpróprias, como a Inglaterra. No conjunto da Eu-ropa, a produtividade agrícola foi beneficiada poressa suavização do clima. O período mais quente eseco não apenas tornou determinadas áreas cultivá-veis e habitáveis, como também contribuiu para difi-cultar a difusão da peste, sempre favorecida em cli-mas úmidos.

A passagem da escravidão para a servidão tam-

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bém teve influência positiva no incremento popula-cional. O comportamento demográfico do escravo égeralmente pouco propício ao crescimento. De umlado, em função da alta mortalidade decorrente deum baixo padrão de vida (má alimentação, maustratos, ignorância). De outro, em função de umabaixa natalidade resultante de sua condição psicoló-gica: não desejando a mesma má sorte para os filhose também como forma de protesto e oposição à escra-vidão, recorria-se muito a práticas contraceptivas,abortivas e infanticidas. Assim, a melhoria do esta-tuto jurídico do escravo incentivava sua reprodução:ele passava a ter um lote de terra para cultivar, tinhaobrigações fixas e limitadas e não mais arbitrárias,não podia ser separado da família.

As inovações técnicas beneficiaram a produçãoagrícola, mas não se sabe qual o ponto de partida:furam elas que ao aumentarem a produção possibi-litaram o crescimento demográfico, ou este é quetornou necessário o progresso técnico? De qualquerforma, três aperfeiçoamentos exerceram ação diretasobre o desenvolvimento agrícola e assim - numprimeiro ou num segundo momento, não nos im-porta - da população. Um foi a charrua, tipo dearado mais eficiente por penetrar profundamente nosolo, revolvendo-o e aumentando sua fertilidade.Outro foi o novo sistema de atrelar os animais, possi-bilitando utilizar mais eficientemente nos trabalhosdo campo a força-motriz cavalar e bovina. Outroainda roi o sistema de rodízio das terras, pelo qualocorria uma alternância de cultivos (cereais, legumi-

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S6 na França, por exemplo, de 1050 a 1350, foram ergui-das 80 catedrais, 500 grandes igrejas e algumas dezenas

de milhares de pequenas igrejas paroquiais.

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nosas) sobre uma mesma área, impedindo que ela seesgotasse. Desta forma, não só a produtividade cres-ceu, como também os hábitos alimentares se modi-ficaram, com uma dieta mais rica em proteínas (er-.••.ilha, lentilha, leite, carne) e assim uma menor mor-talidade.

O crescimento econômico manifestou-se sobre-tudo através de três fenômenos: maior produção,progresso do setor urbano, acentuada monetariza-ção. Apesar de a elevação da produtividade ter ocor-rido em todos os setores, naturalmente numa econo-mia agrária o processo foi desencadeado pelo setorprimário. De fato, foram os excedentes gerados pelaagricultura que forneceram as matérias-primas bási-cas para a indústria artesanal e assim permitiram aintensificação do comércio. Esse incremento da pro-dução agrícola teve como ponto de partida as ino-vações técnicas e a melhoria climática de que falamosmais acima. Como assim era possível alimentar-seum maior número de cabeças de gado, havia maiordisponibilidade de adubo, o que também influencioupositivamente a agricultura. Calcula-se que entre oséculo IX e o XIII a produtividade da cerealiculturacresceu em torno de 50%.

.Contudo, como o ritmo de crescimento popula-cional era mais intenso, desde meados do século XIverificava-se uma alta nos preços de cereais. Issoincentivava os arroteamentos, ou seja, a procura denovas áreas para a agricultura através do recuo dasflorestas, dos terrenos baldios e das zonas pantano-sas. Foi desta forma que a área cultivável da Europa

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o Feudalismo

Ocidental estendeu-se bastante.' Porém, muitas dasterras então ocupadas não eram propícias à agricul-tura, sendo entregues à pecuária. Assim, é claro, essesetor conheceu um grande avanço, já que a crescentepopulação pressionava por mais carne e leite, a agri-cultura precisava da força-motriz animal, o artesa-nato necessitava de matérias-primas como couro,chifres e ossos. Mas, sobretudo, crescia muito a pro-cura por lã e conseqüentemente pelo rebanho ovino:em fins do século XIII havia na Inglaterra quase setemilhões de carneiros e na Espanha mais de ummilhão.

Portanto, também no setor secundário a produ-ção conhecia claros progressos. Desenvolveram-seespecialmente a indústria têxtil e a de construção,como resultado das necessidades impostas pelo cres-cimento demogrâfico. Só na França, por exemplo,de 1050 a 1350 foram erguidas 80 catedrais, 500grandes igrejas e algumas dezenas de milhares depequenas igrejas paroquiais. Isso sem contar, natu-ralmente, as realizações da arquitetura militar (cas-telos, muralhas, torres), os edifícios públicos (palá-cios, hospitais) e a construção civil (casas muitasvezes levantadas pelos proprietários com uns poucosajudantes). O ramo têxtil envolvia boa parte da popu-lação de muitas cidades, recorrendo à divisão do tra-balho - cerca de 30 operações diferentes da maté-ria-prima ao produto acabado - para agilizar a pro-dução e baratear a mercadoria.

Se esse desenvolvimento do artesanato atestava oprogresso urbano dos séculos XI-XIII, r importante

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lembrar contudo que a sociedade ocidental perma-necia essencialmente agrária. De fato, apenas 10 ou20% da população total moravam em cidades. Ade-mais, estas cresciam basicamente graças à imigraçãode elementos originários do campo, que viam na fugapara os centros urbanos a forma de escapar à depen-dência de um senhor. "O ar da cidade dá liberdade"dizia um provérbio medieval: morando um ano e umdia numa cidade sem ser reclamado pelo seu senhor,o servo tornava-se livre. Entende-se assim, por que asmonarquias favoreciam a autonomia das cidades,vistas como elementos antifeudais.

No entanto, isso se tornaria claro somente apartir de meados do século XII, quando o conjuntode transformações saídas da própria dinâmica feudalcomeçava a comprometer o Feudalismo. Até aquelemomento, os senhores feudais 'liam com bons olhos aformação ou o desenvolvimento de cidades nas suasterras. Elas lhes pareciam boas fontes de taxas e im-postos, e locais próximos e cômodos para vender osexcedentes produtivos dos seus senhorios. Mesmodepois de obter sua autonomia (comprando-a ou lu-tando por ela), a cidade não podia naturalmentedesligar-se do mundo feudal, do qual recebia refor-ços populaéionais e matérias-primas, e para o qualvendia seus produtos manufaturados. Como qual-quer homem livre, a cidade passava a se ligar a pes-soas ou a outras cidades através de contratos feudo-vassálicos. Não era raro, sobretudo na Itália, quecidades submetessem a zona rural vizinha, explo-rando o trabalho de seus camponeses como qualquer

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o Feudalismo

senhor feudal. Em suma, se de um lado as cidadesnegavam o mundo agrário e aristocrático do Feuda-lismo, de outro estavam perfeitamente encaixadasnele.

De qualquer forma, o progresso urbano eraparte do crescimento econômico global do Feuda-lismo. Sem a maior produção agrícola não teria sidopossível alimentar a crescente população urbana: porvolta do ano 1000 não havia no Ocidente cristãonenhuma cidade de 10000 habitantes, mas em 1300existiam 5S delas. Sem o excedente demográficorural, aliás, a população urbana não teria atingido osníveis que atingiu. Sem o campo fornecer matérias-primas, o artesanato urbano· não poderia expandirsua produção. Sem a maior capacidade de comprapor parte do campo, as cidades não venderiam suacrescente produção. Sem a exportação de trigo,vinho, madeira, ferro e tecidos não se desenvolveriamo comércio internacional e a importação de merca-dorias orientais (especiarias, seda, produtos de luxo).Sem essa intensificação do comércio não haveriacon-dições para as atividades bancárias.

O revigoramento do artesanato e do comércioimplicava, é claro, uma ativação da economia mone-tária. Ao contrário do que pensavam tempos atrás,os historiadores sabem hoje que jamais o Feudalismofoi uma economia natural, isto é, sem moeda, porémnão negam que ela era pouco utilizada até fins doséculo XI. Desde então, contudo, o aumento da pro-dução, tornando necessário vender o excesso e crian-do oportunidades de compras, levou a se recolocar

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em circulação moedas e metais preciosos entesou-rados. Além disso, o progresso da mineração e osmetais trazidos do Oriente pelo comércio permitiama cunhagem de mais moedas. Essa monetarização daeconomiafeudal, ao mesmo tempo que expressava ovigor do Feudalismo, contribuía para que nele ocor-ressem importantes transformações.

, Por exemplo, a comutação das obrigações servisem pagamentos em moeda. Como a maior produti-vidade permitia aos camponeses ficarem com umexcedente, eles o vendiam na feira local e obtinham

, assim uma certa renda monetária. Ora, desejando osenhor comprar os produtos orientais oferecidos pelosmercadores, precisava cada vez de mais moedas, epassava a recebê-Ias dos seus servos ao invés dos pro-dutos ou serviços que eles lhe deviam. Ademais, osenhor podia assim contratar para certas tarefasmão-de-obra assalariada, geralmente mais eficiente ebastante barata devido ao crescimento populacional.Portanto, desta forma ia se descaracterizando umdos elementos centrais do Feudalismo.

Também no plano institucional a monetarizaçãoda economia provocava mudanças. Já em fins doséculo XI era conhecido em algumas regiões o feudode bolsa ou Ieudo-renda, pelo qual o senhor compro-metia-se a remunerar ti vassalo não com terras, mascom uma quantia, geralmente em moeda, paga pe-riodicamente. Como parte do mesmo processo demonetarização das relações vassálicas, desde a se-gunda metade do século XII na Inglaterra os vassalosreais podiam ser dispensados do serviço militar em

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troca de uma taxa monetária (scutage) que permitiaao rei contratar forças mercenárias. Mais significa-tivo ainda, a partir do século XII passou-se a aceitara alienabilidade do feudo, isto é, a venda de um di-reito sobre ele, pois como sabemos o vassalo tinhaapenas o usufruto e não a propriedade do feudo.

O crescimento territorial - terceiro aspecto dadinâmica feudal- foi o resultado lógico da necessi-dade de exportar os excedentes de população e demercadorias, decorrentes do crescimento demográ-fico e econômico. Nesse sentido, representou umatentativa instintiva de sobrevivência, que expulsavado corpo social um excesso de vitalidade que poderiasufocá-lo. Mas desta forma tornou-se um fenômenode grande alcance: a penetração, o domínio e a fixa-ção de grupos feudais em outras áreas significou aprópria expansão do Feudalismo, a reprodução dosistema.

Assim, limitado originalmente aos territórios doantigo Império Carolíngio (grosso modo, atuais Fran-ça, Bélgica, Suíça, Itália do Norte, Alemanha Oci-dental), desde a segunda metade do século XI oFeudalismo penetrou também na Inglaterra, OrienteMédio e Península Ibérica. Naturalmente, em cadaum desses locais o Feudalismo, sem se descaracte-rizar, assumiu feições próprias, ligadas às condições

, preexistentes e de implantação. Como foram naque-les locais impostos de cima para baixo, por um grupode conquistadores estrangeiros, aqueles "feudalis-mos de importação" (Bloch) estavam bem mais siste-matizados do que nos locais onde o Feudalismo se

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desenvolvera espontaneamente.'A feudalização da Inglaterra se deu a partir de

ü região pelo duqueGuilherme da Normandia, Ora, o próprio ducado,formado no norte da França um século e meio antes,também resultara de uma conquista. Ocupado pelosvikings ou normandos ("homens do norte"), a possedaquele território francês foi-lhes reconhecida comofeudo concedido pelo rei. Assim, no ducado da Nor-mandia o Feudalismo foi organizado pelo chefe vi-king transformado em duque, ou seja, apresentavauma particularidade política, a manutenção de ex-tensos poderes em suas mãos, impedindo a fragmen-tação típica da época. Daí a expressão algo contra-ditória de "feudalismo centralizado", aplicada aoC~L'O normando e por extensão ao caso inglês.

De fato, tal estrutura foi naturalmente trans-plantada para a Inglaterra: possuidor de todo o paíspor direito de conquistá, Guilherme, depois de re-servar terras que ficavam sob o domínio direto damonarquia, dividiu o restante em 5000 feudos conce-didos aos seus seguidores. Todos esses detentores defeudos, portanto vassalos reais, podiam ter seus pró-prios vassalos, mas também estes prestavam jura-mento de fidelidade ao rei. Noutros termos, a suben-feudação, ao contrário do que ocorria, por exemplo,na França, não provocava na Inglaterra a pulveri-zação dos poderes públicos. A cadeia de vassalagensmontada pelo próprio rei inglês fazia com que ele ti-vesse controle sobre todos os escalões da hierarquiafeudal. E esta atingia todo o pais, pois valia o princípio

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do "nenhuma terra sem senhor", ou seja, na Ingla-terra não existiam alódios - terras de plena proprie-dade, que não eram concedidas ou recebidas por rela-ção feudo-vassâlica - como na Europa continental.

Na Inglaterra doperíodo prê-normando existiaum carnpesinato dependente, mas somente depois da .:conquista de 1066 é que as relações de dominaçãosobre os trabalhadores se generalizaram e se senho-rializaram. A divisão social passou a ser funcional eétnica: de um lado os clérigos e os guerreiros deorigem normanda, detentores de terra, e de outro oscamponeses anglo-saxões, despossuidos e dependen-tes. Essa nova situação social ficou testemunhada naprópria língua: para os dominados o boi era apenasum animal vivo, utilizado nos trabalhos agrícolas,designado pela palavra anglo-saxônica ox: para osdominadores era sobretudo uma carne consumível,daí a palavra beef, vinda do francês (idioma faladopelos normandos) boeuf, boi. Da mesma forma,sheep (carneiro em anglo-saxão) e mutton (carne decarneiro, vindo do francês mouton, carneiro). Nãopor acaso, muitos termos eclesiásticos, militares eadministrativos também derivaram do francês faladopelos conquistadores: chapel (capela, de chapelle),mass (missa, de messe), castle (castelo, de château),tower (torre, dezoar), court (corte, de cour), crown(coroa, de couronne),

Na Síria-Palestina, o Feudalismo fci implantadoem fins do século XI com as Cruzadas. Contudo, aocontrário do que aconteceu na Inglaterra, onde exis-tiam condições favoráveis à feudalização, no Oriente

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Médio O contexto era bastante diferente. A raça,a língua e a religião afastavam os conquistadoresocidentais das populações dominadas e submetidas.O ambiente físico, os usos e costumes e a mentali-.dade dificultavam a adaptação dos europeus. Assim,naquele terreno pouco propício e sem antecedentesfavorecedores, o Feudalismo foi uma criação artifi-cial, sem raízes históricas. Na verdade, para sermosexatos, mais do que Feudalismo, o que existiu nosEstados latinos do Oriente Médio foi um conjunto deinstituições políticas feudais regulando as relaçõesentre os cruzados. Jamais o Feudalismo conseguiu lápenetrar em todos os aspectos da vida cotidiana,como no Ocidente. Não surpreende, então, que como desaparecimento dos Estados cruzados, em fins doséculo XIII, nada restasse ali de testemunhos pro-fundos de uma época feudal.

O caso da Península Ibérica apresenta feiçõespróprias. Na primeira etapa da gênese feudal, atéprincípios do século VIII, a situação ibérica .era aná-loga à da França. Contudo, a conquista muçulmanaimpediu que aqueles elementos pré-feudais pudes-sem continuar se desenvolvendo como na Europacarolíngia. Mas eles foram reativados a partir demeados do século XI, em função de questões internase externas à península. Dentre as primeiras, estavamo enfraquecimento do domínio muçulmano e a neces-sidade de expansão da comunidade cristã ibéricadevido ao crescimento populacional. Dentre as ou-tras, estavam as transformações sofridas pelo Feuda-lismo de além-Pireneus e que levavam monges, pere-

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grinos, marginais e nobres sem terra a procurar naEspanha a solução de seus problemas. Em suma,o Feudalismo ibérico não resultou de uma evoluçãonatural e constante como na França, nem tampoucode uma transposição repentina como na Inglaterra.Não foi um fenômeno limitado e artificial como noOriente Médio, nem espontâneo e profundo como namaior parte do Ocidente.

Em suma, como toda sociedade pré-industrial,o Feudalismo pôde manter sua capacidade de expan-são enquanto houve certo equilíbrio entre os três ele-mentos básicos, capital, natureza e trabalho. Ouseja, enquanto o crescimento econômico, o cresci-mento territorial e o crescimento demográfico pude-ram ocorrer de forma complementar um aos outros.Contudo, aquele era um equilíbrio precário, no qualo fator capital tendia a crescer pouco, de forma que amanutenção e a expansão do sistema dependiam daconstante incorporação de novas áreas produtivas ede mais mão-de-obra. De fato, como boa parte dariqueza gerada provinha da agricultura, e esta eradominada por uma elite fundiária de hábitos suntuo-sos, calcula.-se que apenas 1 ou 2% das rendasagrí-colas fossem reinvestidas. Portanto, o progresso téc-nico era pequeno e o aumento da produção ficavarestrito à disponibilidade dos fatores natureza e forçade trabalho. Mas estes fatores não podiam crescerindefinidamente. Logo, a dinâmica feudal mostravaos limites do sistema e encaminhava-o para a crise.

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A CRISE

Desde as últimas décadas do século 1GB, assis-tia-se a 'uma perda da vitalidade que caracterizaraoFeudalismo nos duzentos anos anteriores. A origemdisse estava na sua.dinâmica.vque levara o Feuda ..Esmo a atingir então os limites possíveis de' funcio-namento de sua estrurura. Em outros termos, a criseresultavadas características do próprio Feudalismo.Assim, ao longo dos séculos XII-XIII já vinham ocor-rendo profundas transformações, que se revelaramcom toda a força a partir de princípios do séculoXIV. Esta crise foi global, com todas as estruturasfeudais sendo fortemente atingidas. Portanto, é cla-ro, a manifestação da crise em cada setor refletia-senos demais, num complexo entrecruzamento. Destaforma, o fato de precisarmos examinar, para maiorclareza, cada manifestação da crise separadamente,nãonos deve fazer esquecer a total interligação entreelas. A crise era orgânica)"

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No seu aspecto econômico, a crise derivava daexploração agrícola predat6ria e extensiva que foratípica do Feudalismo. De fato. na época de expan-são, o aumento da produção fora conseguido maiscom a ampliação da área cultivável do que com autilização de tecnologia mais avançada. Assim, aque-le incremento produtivo era frágil e apresentava cla-ros limites, pois só poderia se manter com a anexaçãoconstante e indefinida de novas áreas cultiváveis.Quando em algumas regiões o cultivo de cereais pre-cisou crescer roubando terras da pecuária, a médioprazo a produtividade agrícola baixou devido à me-nor disponibilidade de esterco. E naturalmente caiua produção de carne, leite e derivados.

A busca desordenada de terras para a agricul-tura parece mesmo ter provocado importantes alte-rações ecológicas, O desmatamento - em 1300 asflorestas da França cobriam um milhão de hectares amenos que atualmente - talvez tenha sidoo respon-sável pelas mudanças no regime pluvial e pelo res-friamente do clima então ocorrido. As violentas econstantes chuvas que atingiram a maior parte daEuropa em 1314-1315 provocarem colheitas desas-trosas: de fins de 1315 a meados de BIS os preços detrigo mais que triplicaram. A abriu caminhoa várias epidemias, a mortalidade cresceu, Comocada indivíduo gastava mais com alimentação, con-sumia menos bens artesanais, o que levou à retraçãodesse setor e conseqüentemente também do comer-em.

Essa retração estava também ligada aos proble-

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mas monetários, pois a extração de minérios, como aagricultura, atingira seus limites tecnológicos. Ouseja, esgotados os veios superficiais e mais facilmenteexploráveis, seria necessário cavar poços profundos epossuir sistemas de drenagem mais eficientes. Ora, aqueda na produção de metais preciosos e o entesou-ramento de moedas devido à menor oferta de merca-dorias levaram às constantes desvalorizações mone-tárias. De fato, como os reis precisavam de recursospara as freqüentes guerras da época, a solução foimanter o valor nominal das moedas mas diminuir aquantidade de metal que nelas havia. Este processo,naturalmente. levava os possuidores de moedas boasa entesourarem-nas, forçando os reis a novas desva-lorizações. Assim, os preços subiam e o setor produ-tivo conhecia novas dificuldades,

A crise dernográfica já se anunciava em fins doséculo XIII quando o intenso ritmo de crescimentoanterior começou a diminuir. Com a crise agrícola de1315··1317, a fome e a subnutrição foram acompa-nhadas por epidemias e a mortalidade elevou-se rapi-damente. Nos.campos ingleses ela passou de 40 mor-tos por cada mil habitantes para 100 por mil. Nacidade belga de Ypres, uma das mais importantes daEuropa, pelo menos 100/0 da população morreu nocurto espaço de seis meses em 131ó. Contudo, osproblemas daquele momento não chegaram a atingirtodo o Ocidente e as perdas populacionais poderiamser recuperadas em pouco tempo. Mas tal não acon-teceu, e a crise demo gráfica agravou-se drastica-mente, devido à peste negra.

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Como todas as demais manifestações da crisegeral do Feudalismo, a peste deve ser vista como umfator interno a ele. É verdade que ela atingiu a Eu-ropa Ocidental levada da região domar Negro porcomerciantes genoveses. Mas esse fato decorreu emúltima análise da expansão ocidental, que criara co-lônias comerciais em locais onde a peste sempre exis-tira em, forma endêmica. Além disso, se a peste sepropagou tão rapidamente na Europa, e fazendo tãogrande número de vítimas, foi devido à superpopu-lação gerada pela própria dinâmica feudal.

Mais que qualquer outra epidemia, a peste apre-sentava taxas de letalidade (relação entre os que con-traíam a doença e os que morriam dela) extrema-mente altas, por volta de 70%. Ao contrário do que sepensava até há pouco tempo, a peste não é influen-ciada pela fome, isto é, a subnutrição, que podedobrar ou triplicar a mortalidade de outras epide-mias, não altera a ação da peste. Portanto, ela: atin-g1.a indiscriminadamente pobres e ricos, crianças eadultos, homens e mulheres. Se as camadas sociaismais elevadas resistiram melhor, foi apenas pela suapossibilidade de abandonar os locais infectados ebuscar refúgio em outros. Os lugares de forte con-centração humana parece terem sido os mais atin-gidos, caso das cidades e dos mosteiros.

Apesar de sensíveis desigualdades regionais, noconjunto a peste negra de 1348-1350 eliminou de 25 a

·35% da população européia. Esta perda demográ-fica foi tão grande, que os níveis anteriores a elaseriam alcançados apenas no século XVII. Natural-

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mente, as repercussões de um fenômeno como esse serevelaram bastante amplas. Por exemplo, a servidãorecebeu um golpe profundo. De fato, ao diminuirsignificativamente a quantidade de mão-de-obra dossenhorios, a peste obrigava os senhores a recorrerema assalariados e a amenizarem a dependência dosservos sobreviventes. Ademais, a desorganização so-cial que seguiu a peste e a crescente procura pormão-de-obra facilitavam e incentivavam a fuga deservos. Assim, não só a mão-de-obra assalariada tor-nava-se mais comum" como também beneficiava-sede uma elevação salarial.

A crise social caracterizou-se por importantesalterações na composição das camadas sociais e nasrelações entre elas. A aristocracia laica e clerical, quetinha sido a grande beneficiada pelo crescimentoeconômico, desde então tendia a comutar ás obriga-ções camponesas em produtos e serviços por rendasmonetárias. Contudo, desta forma, com a desvalori-zaçãoda moeda a aristocracia perdia seu poder aqui-sitivo: 50% no caso da importante abadia de SaintDenis apenas no curto período de 1337-1342. Agra-vando a situação, depois das dificuldades de-1315-1317, quando os preços de cereais subiram, eles caí-ram e se mantiveram baixos devido à retração demo-gráfica e à conseqüente menor procura. Portanto, asrendas senhoriais se encolhiam ainda mais. Parale-lamente, os salários subiam e os senhores, para teremrecursos, trocavam obrigações servis por dinheiro:em meados do século XIV cerca de 50% das corvéiashaviam sido substituídas por rendas monetárias em

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vários locais da Inglaterra.Assim, atingida pelas dificuldades econômicas,

pela peste e pela resultante mudança psicológica, aaristocracia viu sua taxa de natalidade cair. Muitasfamílias nobres desapareceram. Nos séculos XIV-XV, a cada seis gerações, em média, extinguia-seuma linhagem. Acentuava-se então uma tendênciaque vinha desde o século XII e que formava um"proletariado clerical", isto é, quebrava-se aos pou-cos a identidade clero-nobreza, recrutando-se os ecle-siásticos também em outras camadas sociais, Nestascondições, a nobreza precisava renovar seus quadroscom ••elementos de outras origens, através de casa-mentos com membros da burguesia, da burocraciamonárquica e mesmo do campesinato mais rico/

Portanto, quebrava-se a rigidez social anterior,passando-se de uma sociedade de ordens, na qualcada indivíduo é de determinada camada, condiçãoestabelecida desde o nascimento por ordem divina,para uma sociedade estamental, na qual o indivíduoestá num certo grupo social, o que pressupõe a possi-bilidade de mudança. Concretamente, as transfor-mações sociais mais importantes deram-se entre oslaboratores, A burguesia, nascida da própria dinâ-mica feudal, mas elemento desestruturador daquelasociedade, continuava a ganhar terreno .. Ê verdadeque as cidades também foram atingidas pela criseeconômica e demográfica, porém proporcionalmentemenos que o campo. Ademais, os problemas da zonarural aceleraram a tendência anterior de penetraçãoburguesa no campo, comprando terras de nobres

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arruinados.Assim, a burguesia revelava-se um elemento dis-

solvente do Feudalismo em vários aspectos. Por suasatividades comerciais, artesanais e bancárias, rompiaaos poucos o predomínio absoluto da agricultura.Por seus interesses na centralização política e seuconseqüente apoio à monarquia, contribuía para orecuo da aristocracia. Por seu racionalismo e indivi-dualismo, se opunha à religiosidade e coletivismofeudais. Por sua própria origem marginal e campo- .nesa, quebrava a rigidez e a hierarquia sociais. Não é .de se estranhar, portanto, que um sermão do séculoXIV afirmasse que "Deus fez os clérigos, os cava-leiros e os trabalhadores, mas o demônio fez os bur-gueses e os usurários" .

Em relação aos camponeses, a crise econômica edemográfica apresentou dois resultados diferentes.Por um lado, surgiu um campesinato livre e que seenriquecia, formando uma verdadeira elite campo-nesa. Desde a época de expansão econômica, muitosservos se beneficiavam da substituição de suas obri-gaçõespor pagamentos em dinheiro. Assim, eles ven-diam seu excedente produtivo nas feiras locais, paga-vam seu senhor e economizavam mesmo algumasmoedas. Desta forma, era possível com o tempo com-prar sua liberdade ao senhor, cada vez mais interes-sado em rendas monetárias. As dificuldades da aris-.tocracia nos séculos XIV-XV permitiram em alguns

'locais a difusão desse processo. Estes camponeses,aproveitando-se do surgimento de áreas despovoadaspela peste, conseguiam ter suas próprias terras.

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Como geralmente eram áreas pouco férteis e comohavia falta de mão-de-obra, muitas vezes aquelesindivíduos dedicavam-se à pecuária. Obtinham assimbons rendimentos, pois a lã era uma das matérias-primas pouco afetadas pela crise.

Por outro lado, em certas regiões os senhoresprocuraram fazer frente às suas dificuldades revigo-rando os laços de dependência camponesa. Um ca-minho para isso era renunciar às taxas monetáriasfixas pagas pelos trabalhadores e reimpor as antigasobrigações em produtos e serviço. Essa "reação se-nhorial" não foi muito difundida no Ocidente, tendosido significativa apenas na Inglaterra e especial-mente nos senhorios monásticos.' Na Europa Orien-tal, contudo, a penetração tardia do Feudalismo e ascondições disso decorrentes geraram o que se chamaclassicamente de "segunda servidão". Outro cami-nho tentado pela.economia senhorial para fazer fren-te à crise foi brecar a alta salarial. Para tanto, surgiuentre 1349 e 1351 na Inglaterra, Portugal, Catalu-nha, Aragão, França e Castela toda uma legislaçãoobjetivando congelar preços e salários. Diante da-quele quadro de dificuldades para os trabalhadores éque eclodiram sublevações camponesas (como a Jac-querie francesa de 1358 e a revolta inglesa de 1381) eurbanas (Florença em 1378, cidades flamengas em1379).

A crise política do Feudalismo foi representadapela reconstituição dos 'poderes públicos, ou maisespecificamente pela centralização monárquica. Co-mo já vimos, os reis feudais tinham sido inicialmente

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muito mais suseranos que soberanos, ou seja, seupoder se efetivava fundamentalmente pelos laços vas-sálicos. Mas era também limitado por eles. Contudo,à medida que os poderes regionais detidos pela aris-tocracia entravam em crise, o rei podia extrair daspróprias relações vassálicas elementos que faziamdele cada vez mais soberano que suserano. Por exem-plo, na França o consilium devido pelos vassalosesteve na origem de muitos órgãos centrais da mo-narquia. Foi o caso do Parlamento de Paris, queacabou por funcionar como um tribunal de apelaçãoao suserano, que devia arbitrar as questões entresenhores e vassalos. Caminhava-se assim para umaunificação jurídica, que minava as jurisdições feu-dais.

Recorrendo ao apoio da burguesia, favorecendoas comunas urbanas, incentivando a libertação de -servos, constituindo tropas mercenárias, revigorandoo direito romano, a monarquia desde o século XIII iareagrupando em suas mãos os fragmentos de poderanteriormente detidos pela aristocracia. Por outrolado, esse processo era acompanhado por uma recu-peração do prestígio da função monârquica. Para umcronista, ferir o rei seria "temeridade nefasta"; paraum filósofo, a sociedade era como o corpo humano,no qual "o príncipe ocupa o lugar da cabeça"; paraum legista, "toda jurisdição laica do reino pertencecomo feudo ao rei".

Esse fortalecimento monârquico era ainda favo-recido pelo desenvolvimento de um sentimento nacio-nalista, que fazia a realeza ser vista como símbolo e

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representante da coletividade. A formação das lín-guas vernáculas e os contatos estabelecidos pelo co-mércio com outros povos levavam à conscientizaçãodas características próprias de cada grupo humano.Assim, desde o século XII firmavam-se os naciona-lismos. Os problemas dos séculos XIV-XV e as solu-ções muitas vezes conflitantes encontradas pelos di-versos países intensificavam o sentimento patriótico.Ê significativo que a primeira grande guerra nacio-nalista tenha ocorrido nessa fase da Idade Média: aGuerra dos Cem Anos (1337-1453).

Tanto no lado francês quanto no inglês, a guerrafavoreceu a centralização política. Na verdade, estaera a única forma de se mobilizar tropas por umaárea geográfica bem mais ampla que nos combatesfeudais; de se obter nos vários cantos do país os re-cursos econômicos necessários para a luta; de se nego-ciar tratados e restabelecer a paz. A centralizaçãodecorreu ainda das importantes perdas na nobrezados dois países. Além disso, a guerra agravou a crisedemográfica, contribuindo para a baixada taxa deriatalidade e o despovoamento de regiões arrasadas.Pelas migrações que provocou, a guerra favoreceu amobilidade social, o empobrecimento de uns e oenriquecimento de outros, a ruptura de laços de de-pendência pessoal, enfim, a crise social. A devasta-ção de muitos territórios franceses, a perda de colhei-tas e de rebanhos, os empréstimos feitos pelas mo-narquias junto a banqueiros italianos forçaram a altados preços e a desvalorização monetária, agudizandoa crise econômica.

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A crise militar naturalmente acompanhou apolítica, isto é, dentre as funções recuperadas pelorei estava cada vez mais a de defender seus súditos. Ãregionalização da defesa seguia-se a nacionalizaçãoda defesa. Mas a crise militar feudal derivava tam-bém de mudanças na própria tecnologia bélica.Desde que a superioridade da cavalaria ficara clara,nos primórdios do Feudalismo, poucas novidadeshaviam surgido nos armamentos. As armas defen-sivas, é verdade, tornaram-se mais eficientes, graçassobretudo aos diversos tipos de couraças e armadurasprotetoras. Mas as ofensivas não evoluíram corres-pondentemente, a não ser o surgimento da besta noséculo XII. Contudo, a violência de seus arremessosera muito grande e foi considerada "arma abomi-nada por Deus e indigna de um cristão", sendo proi-bida pela Igreja em 1139.

A mudança deu-se no século XIV, com as lutasnacionalistas e sociais que pretendiam destruir o ini-migo e não apenas aprisionâ-lo, como nos combatesfeudais. O arco inglês tinha nas mãos de um homemtreinado uma precisão muito grande e um alcance deaté 400 metros. Na batalha de Crêcy, em 1346, suasviolentas flechadas, atravessando armaduras, fize-ram mais de mil e quinhentos mortos na cavalariafrancesa. Em muitas outras oportunidades, na Guer-ra dos Cem Anos, os arqueiros ingleses mostraram,como a cavalaria feudal tinha se tomado uma armaobsoleta. Ao mesmo tempo, uma infantaria discipli-nada e armada com longas lanças mostrava comopodia agüentar uma carga da cavalaria e depois de

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dispersá-Ia passar ao ataque e aniquilá-Ia. Foi assimem 1302 em Courtrai, quando as milícias urbanasflamengas destroçaram o exército feudal do rei Iran-

Aces.A cavalaria feudal, contudo, tomou-se definiti-

vamente ultrapassada com '0 surgimento das armasde fogo. Na Europa Ocidental elas foram usadas pelaprimeira vez no cerco de uma fortaleza em 1324 eem batalha campal em 1346. Nessas oportunidades,.é verdade, pouco influíram no resultado da luta. Noentanto, elas foram se aperfeiçoando e a artilhariatomou o papel central nos combates. Anteriormente,conquistar uma fortaleza implicava um longo e des-gastante cerco, com os defensores podendo resistirquase indefinidamente desde que tivessem água e .alimentos. Graças à artilharia, em 1449-1450 o reifrancês pôde reconquistar 60 praças-fortes aos ingle-ses. O cavaleiro perdia sua função militar e assim seuprestígio e seu poder.

A crise clerical tinha suas raízes no papel centraldesempenhado pela Igreja no Feudalismo. Era claraa contradição entre a instituição "que não é destemundo" - e por isso mesmo recebia respeito, obe-diênciae bens - mas que agia cada vez mais nele.O papa pretendia ser, ao mesmo tempo, o represen-tante de São Pedro e o herdeiro do imperador ro-mimo. Desta forma, muitas vezes no desempenho deum desses papéis agia incoerentemente com o outro.Mais ainda, a Igreja precisava, de um Estadõ sufi-cientemente forte para protegê-Ia, mas conveniente-mente fraco para não submetê-Ia. Equilíbrio difícil.

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Na verdade, ele foi conseguido somente no curtoespaço de quatro anos, entre 999 e 1002, numa rara eharmoniosa relação entre dois homens extraordiná-rios, o imperador Otão III e o papa Silvestre 11.

Daí para a frente o choque entre o poder tempo-ral dos imperadores e o poder espiritual dos papastornou-se comum. Nas últimas décadas do século XIecIodiu a Questão das Investiduras, assim chamadaporque a disputa girava em torno do poder de in-vestir os bispos; tal tarefa cabia ao imperador ou aopapa? O sucesso de um ou de outro devia-se a umasérie de circunstâncias, e era sempre passageiro. Por-tanto, aquela luta representou o desgaste de ambasas forças que se pretendiam universalistas, abrindovazios de poder que foram sendo preenchidos pelosnascentes nacionalismos. Assim, no século XIV, aIgreja feudal viu-se arrastada pelos novos interessesmonárquicos e burgueses. Por muitos anos, de 1309a 1378, os papas deixaram de residir em Roma, fi-xando-se em Avignon, próximo ao reino francês, einevitavelmente sendo envolvidos nos seus negócios.Cativeiro da Babilônia: o nome dado àquele períododefine bem o exílio e a dependência do Papado.

Colocado entre os interesses nacionais francesesde um lado e os diversos e às vezes contraditóriosinteresses italianos de outro, o Papada tornou-se umjoguete político. Em função disso, de 1378 a 1417desapareceu a unidade da Igreja, existindo um papaem Roma e outro em Avignon, Em determinado mo-mento surgiu mesmo um terceiro pontífice. Ora, essadivisão no topo da hierarquia eclesiástica natural-

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mente se refletia em todos os escalões. Acompa-nhando a tendência lógica da época, tanto o cleroquanto os fiéis, desiludidos com a Igreja universal,passavam a pensar em termos de igrejas nacionais.As monarquias, obviamente, trabalhavam nesse sen-tido: na Inglaterra em 1351 e 1393 e na França em1438, o campo de atuação do Papado naqueles paísesfoi bastante limitado por determinação real.

Contudo, o recuo do clericalismo não resultavaapenas dos interesses da cúpula da sociedade laica.Significativamente, a pressão havia começado, e eramais demolidora, de baixo para cima. Desde o séculoXII as heresias ganhavam terreno como movimentosde contestação social que justificavam suas críticas esuas propostas religiosamente. Ou seja, produto deseu tempo, a oposição ao statu quo somente poderiacombater o discurso ideológico dominante através deum discurso formalmente semelhante e que corres-pondesse à mentalidade da época. Por exemplo, ocatarismo, muito difundido na França meridional ena Itália setentrional. Ele negava o valor dos sacra-mentos, tirando portanto a razão de ser do clerocatólico. Considerava o mundo material, inclusive aIgreja, uma criação do Mal. Rejeitava as relaçõessexuais e a procriação. Em suma, condenava a socie-dade humana, isto é, a sociedade historicamente

• concreta de seu tempo, a feudal.A crise espiritual provinha de duas fontes. Uma,

o misticismo, tivera suas primeiras manifestações noséculo XII e seu grande momento no XIV. Se ele estápresente embrionariamente no cristianismo, sem dú-

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. vida desenvolveu-se naquele momento como uma res-posta espontânea à religiosidade formal que prevale-cia. Ou seja, diante de atitudes religiosas mecânicas,exteriores, muitos indivíduos procuravam suprir suasnecessidades espirituais pela interiorização. Deixava-se de reconhecer no cumprimento dos rituais e norecebimento dos sacramentos a verdadeira atitudecristã. Esta deveria ser de emotividade, de beatitude,de desprendimento, de busca do sagrado na própriaalma. Frente a um mundo atormentado, a valoresquestionados e a uma Igreja decadente, buscava-se asalvação numa comunicação direta com Deus.

Outra, a angústia coletiva que perturbava oshomens dos séculos XIV e XV. Depois de séculos derelativa tranqüilidade, voltavam os grandes inimigos:a guerra, a fome, a peste, a morte. Tudo isso erainterpretado como castigo divino aos pecados huma-nos, como resultado do afastamento dos homens emrelação a Deus. Via-se a grande culpada, natural-mente, na Igreja, que deveria interceder a favor dohomem mas apenas acelerava sua perdição envol-vendo-se excessivamente nas questões materiais. Opessimismo, a espera sofrida de novas calamidades,era generalizada. A obsessão pelo pecado era imensa,acreditando-se que mesmo os pequenos erros de umindivíduo comprometiam a todos. A perspectiva damorte e da ira de Deus atormentava a muitos; temas

; macabros abundavam na arte e na literatura.

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Diante da crise agrária fazia-se necessária a con-quista de ,novas áreas produtoras. Diante da crisedemográfica fazia-se necessário o domínio sobrepopulaç:õesrião-européias. Diante da crise monetáriafazia-se necessária a descoberta de novas fontes deminérios. Diante da crise social fazia-se necessárioum monarca forte, controlador das tensões e daslutas sociais. Diante da crise político-militar fazia-senecessária uma força centralizadora e defensora detoda a nação. Diante da crise clerical fazia-se neces-sária uma nova Igreja. Diante da crise espiritualfazia-se necessária uma nova visão de Deus e dohomem. Começavam novos tempos.

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CONCLUSÃO

Para que a idéia que temos agora sobre o Feuda-lismo ficasse mais completa, deveríamos acrescentaruma análise historiográfica, examinando e discutindoas diversas interpretações sobre o nosso tema. Masisso nos levaria muito além dos limites desse pequenolivro. De fato, mereceria uma resposta mais cuida-dosa a velha questão: Feudalismo ou Feudalismos?Tendo surgido a palavra no século XVII com fortesentido de crítica ao Absolutismo Monárquico, eladesde então carrega uma dupla significação: frag-·mentação do poder político e exploração dos campo-nesespelos detentores de terra, ora se colocando aênfase num aspecto, ora noutro,' às vezes ainda asso-ciando-se ambos.

Assim, ainda hoje permanecem os abusos de,linguagem. Na fala corrente a palavra geralmentedesigna o poder de um grupo fechado e isolado emrelação ao todo social: "feudalismo das multinacio-

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nais", "feudalismo dos sindicatos", "feudalismo dospartidos políticos" etc. Na linguagem culta, "regimeque resulta de um enfraquecimento do poder centrale une estreitamente autoridade e propriedade da:terra, estabelecendo uma relação de dependência .entre vassalos e suseranos" (Dicionário Aurélio).Mesmo na linguagem dos historiadores uma certavagueza de sentido permanece, o que permitiu ver-se"feudalismos" tanto no Ocidente medieval quanto,por exemplo, no Japão dos séculos XII-XVI ou noBrasil colonial.

No Japão, porque havia uma cadeia de relaçõespessoais ligando o shogun, delegado do poder im-perial, os dairnios, nobres provinciais com poderesquase autônomos sobre suas terras ishoen), e osguerreiros (samurai = "aquele que serve"). No Bra-sil colonial, porque havia donatários ocupando terrasque não pertenciam a eles e sim à Coroa, em nome daqual exerciam amplos poderes, sendo remuneradoscom parte das rendas que cabiam ao rei. Ademais, asunidades de produção eram grandes domínios agrá-rios, trabalhados por mão-de-obra dependente, es-crava, que procuravam seautobastar.

É verdade que - como muitos historiadoresperceberam depois - no Japão as relações pessoaiseram muito estreitas, mais de subordinação que dereciprocidade de direitos e obrigações: o shogun po-dia destituir ou substituir daimios arbitrariamente;o "vassalo" só podia ter um único "senhor" e emcaso de infidelidade podia ser morto por ele. A pró-pria fragmentação dos poderes públicos era relativa,

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pois O shogun na teoria agia em nome do imperador ena prática mantinha um certo controle sobre os no-bres ligados a ele. Além disso, o imperador (que nãofazia parte do jogo "vassálico", de relações pessoais)conservava seus poderes tradicionais em certos seto-res; era mais um dualismo político que uma frag-mentação.

No Brasil colônia, por sua vez, os donatárioseram claramente representantes do poder monár-quico português, com muitos poderes é verdade, mastodos estritamente delimitados pelo poder central.Este reservava-se, sobretudo, o direito de modificaras capitanias naquilo que fosse interesse do Estado.Os donatários podiam doar extensões de terras aserem exploradas pelos colonos, mas não se criavanenhum laço pessoal entre eles. Os direitos políticosdos colonos. eram salvaguardados e' equiparadosàqueles que os portugueses gozavam na metrópole. Acapitania não podia ser alienada ou dividida. Enfim,o sistema era para servir 'à obra colonizadora daCoroa e não significava renúncia de direitos por partedela. No plano econômico, .igualmente, nada haviade "feudal", pois em todos os aspectos e em últimaanálise, os grandes latifúndios estavam voltados parao exterior, para a economia mercantil européia.

Em suma, se valorizarmos um ou outro aspectoanálogo ao da Europa Ocidental medieval, corremoso risco de encontrar "feudalismos" em civilizaçõestão diversas entre si quanto o Egito antigo, a China,Bizâncio ou o Império Turco. Tais comparações,contudo, podem ser interessantes e úteis, desde que

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não levem apenas à valorização dos elementos co-muns, do invariante, isto é, do a-histórico. Ao ladode um ou outro aspecto semelhante, existem especi-ficidades que não são meros detalhes e não podemser deixados de lado. Desprezar o caráter sistêmicodo Feudalismo - conjunto de partes estruturalmentecoordenadas entre si - equivaleria a fazer o mesmocom o Capitalismo ou o Socialismo, e portanto pode-ríamos encontrar sociedades capitalistas e socialistasem todas as épocas e locais. Mas assim estaríamosvendo modelos e não realidades históricas. Identifi-car um ângulo "feudal" em alguma civilização nãosignifica necessariamente descobrir um "feudalis-mo"; não tomemos partes pelo todo.

É preciso entender que o Feudalismo não foiuma fórmula, mas uma resposta espontânea às difi-culdades, possibilidades, necessidades e ansiedadesconcretas de um local (Ocidente europeu) e de umaépoca (medieval). Nestes quadros é que foi possível osurgimento e a total interpenetração de suas partesconstitutivas, de sua economia agrária. e senhorial,sua sociedade de ordens, sua fragmentação política,suas relações homem a homem, sua organização rni-litar cavalheiresca, seu profundo clericalismo, suamentalidade extremamente sensível às forças sobre-naturais.

Por fim, é sempre preciso recordar que o Feuda-lismo apresentava uma dinâmica que explica aseta-pas seguintes da história européia, no essencial dife-rente da dos locais de pretensos "feudalismos" .Nessa direção é que é preciso ver a lenta desfiguração

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do Feudalismo desde seus primeiros tempos. Na ver-dade, à medida que ele reorganizava a sociedadecristã ocidental, que ele alcançava seu objetivo, ia

-- I perdendo sua razão de ser: sua realização represen-tava sua superação. De fato, ao permitir a sobrevi-vência da Cristandade, absorvendo outros povos eculturas, aliviando as tensões -sociais, reestruturandoa economia,permitindo a recuperação. demográfica,ele automaticamente criava novas tensões e oposi-ções. Ê verdade que o Feudalismo procurou limitar(Paz de Deus), canalizar (Cruzadas, ReconquistaIbérica), absorver (Franciscanismo) ou reprimir (In-quisição) tais manifestações. Mas isso significavatentar negar suas próprias forças vitais. E o Feuda-lismo não poderia ser mais forte que si mêsmo, Por-tanto, ele se autodestruía, como na imagem muitopintada e esculpida na época, de uma serpente quepara viver ia aos poucos devorando o próprio corpo.

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INDICAÇÕES PARA LEITURA

A literatura sobre o nosso tema é uma das maio-res produzidas pela historiografia; por isso cabemaqui apenas algumas referências. Para o enquadra-mento geral do período, Fossier, R., Enfance de l'Eu-rope. X-XII siêcles, 2 vols., Paris, PUF, 1982 eGenicot, L., Europa en el siglo XIII, trad. esp., Bar-celona, Labor, 1970.

Como obras gerais sobre o Feudalismo desta-cam-se Stephenson, c., Mediaeval feudalism , NovaIorque, Cornell University Press, 1942, nova ed.,1967(trabalho de divulgação. com visão basicamentepolítica, mas claro e interessante); Boutruche, R.,Seigneurie et Féodalité, 2 vols., Paris, Aubier, 1968-1970 (obra de peso, precisa, com valiosa coleção dedocumentos em apêndice); Fourquin, G., Senhorio efeudalidade na Idade Média, trad. port., Lisboa, Edi-ções 70, 1978 (espécie de síntese; bem feita, do ante-rior); Poly, J.-P. e Bournazel, E., La mutation féo-

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da/e, X-XII siêcles, Paris, PUF, 1980 (síntese maisatual, com rica bibliografia); Bloch, M.., A sociedade

feudal, trad. port., Lisboa, Edições 70; 1979 (ogrande clássico do assunto, publicado há mais de 40anos, porém ainda moderno e inteligente).

. Para se construir uma visão global do Feuda-lismo são fundamentais as monografias regionais,abundantes sobretudo para a França. Por exemplo:Chedeveille, A., Chartres et ses campagnes (XI-XIIIsiêcles), Paris, Klincksieck, 1973; Devailly, G., LeBerry du X siêcle au milieu du XIII, Paris, Mouton,1973; Duby, G., La société aux XI et XII siêcles dansIa région mãconnaise, Paris, Armand Colin, 1953;nova ed., Paris, Touzot, 1971; Poly, J.-P., La Pro-vence et Ia société féodale, Paris,' Bordas, 1976. OFeudalismo das regiões mediterrânicas foi objeto dedois colóquios internacionais: Les structures socialesde l'Aquitaine , du Languedoc et de l'Espagne au

, premier age féodal, Annales du Midi 80, 1968, pp.353-624; Structures féodales et féodalisme dans l'Oc-cident méditerranéen (X-XIII siêcles): bilan et pers-pectives de recherches, Roma, École Française deRome, 1980.

Sobre a gênese do Feudalismo pode-se verBrown, P., O fim do mundo clássico, trad. port., .Lisboa, Verbo, 1972; Dawson, C., A formação daEuropa, trad. port., Braga, Cruz, 1972; Dockês, P.,La libération médiévale, Paris, Flammarion, 1979;Lot, F., O fim do mundo antigo e o princípio daIdade Média, trad. port., Lisboa, Edições 70, 1980;Perroy, E., Le monde carolingien, Paris, SEDES,

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2:'- ed., 1975; Bloch, M., M. Finley et alii, La tran-sición dei" esclavismo aI feudalismo, Madri, Akal,1975.

Sobre os fenômenos que caracterizaram a dinâ-mica e a crise: Bois, G., Crise du feodalisme, Paris,Êcole des Hautes Êtudes en Sciences Sociales, 1976;Duby, G., Guerreiros e camponeses, trad. port., Lis-boa, Estampa, 1980; Duby, G., Economia rural yvida campesina en el occidente medieval, trad. esp.,Barcelona, Península, 1968; Franco Jr., H., As cru-zadas, S. Paulo, Brasiliense, 1981; Romero, J. L.,La revolución burguesa en el mundo feudal, Madri,Siglo XXI, 2:'- ed., 1979; Rornero, J. L., Crisis yorden en el mundo feudoburgués, Madri, Siglo XXI,1980.

Para se entender determinados aspectos especí-ficos do Feudalismo, contamos hoje com algumasobras de grande valor: sobre ideologia," Duby, G.,As três ordens ou o imaginário do feudalismo, trad.pert., Lisboa, Estampa, 1982; sobre arte e" socie-dade, Duby, G., O tempo das catedrais, 980-1420,trad. port., Lisboa, Estampa, 1979; sobre família eparentesco, Duby, G. e I.Le Goff (apres.), Familleet parenté dans l'Occident médiéval, Roma, ÊcoleFrançaise de Rome, 1977; sobre cultura, Le Goff, J.,Para um novo conceitode Idade Média, trad. port.,Lisboa, Estampa, 1979; sobre mentalidade, Le Goff,J., La naissance du purgatoire, Paris, Gallimard,1981; sobre espiritualidade, Vauchez, A., La spiri-tualité du Moyen Age occidental, Paris, PUF, 1975;sobre a guerra, Contamine, Ph., La guerre aú Moyen

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Age, Paris, PUF, 1980; sobre fortificações, Fournier,G., Le chãteau dans Ia France médiévale: essai desociologie monumentale, Paris, Aubier, 1978;" sobreeconomia, Fourquin, G., Histoire économique del'Occident médiéval, Paris, Armand Colin, 2:'- ed.,1971.

Sobre a Igreja. enquanto componente vital doFeudalismo não há estudos específicos, mas existemboas indicações nos dez volumes dedicados à IdadeMédia na obra coletiva coordenada por Fliche, A. eMartin, V., Histoirede l'Eglise, Paris, Bloud et Gay,1939-1964; igualmente em Southern, R., A Igrejamedieval, trad. port., Lisboa, Ulisséia, si d.

O Feudalismo, naturalmente, deu margem ainúmeras interpretações. Dentre os que o concebemde forma ampla, encontrável em várias civilizações,

, Coulborn, R. (ed.), Feudalism in History , Princeton,Princeton University Press, 1956; Herlihy, D. (ed.),The History of Feudalism, Londres, Macmillan,1971; Critchley, J., Feudalism, Londres, Allen andUnwin, 1978. Na historiografia marxista, em que otema é muito debatido, Dobb, M., A evolução docapitalismo, trad. port., Rio, Zahar, 7~ ed., 1980;Anderson, P., Passagens da Antiguidade ao Feuda-lismo, trad. port., Porto, Afrontamento, 1980; Ca-hen, c., V. Biriukovitch et alii, El modo de produc-cion feudal, Madri, Akal, 1976.

A concepção de "sociedade feudal" aparecesobretudo em Calmette, J., La société féodale, Paris,Armand Colin, 4:'-ed., 1938, e no grande clássico jácitado, Bloch, M., A sociedade feudal, Lisboa, Edi-

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ções 70, 1979. O Feudalismo en~uanto conjunto deinstituições políticas aparece principalmente emGanshof, F.-L., Que é o feudalismo?, trad. port.,Lisboa, Pubi. Europa-América, 4!i ed., 1976. A cri-tica historiográfica de todas estas tendências é feitapor Guerreau, A., O Feudalismo, um horizonte teó-rico, trad. port., Lisboa, Edições. 70, s/d. A sugestãodo Feudalismo como mentalidade é de Duby, G.,"La féodalité? Une mentalité médiévale", Annales.Economies. Sociétés. Civilisations 13, 1958, pp. 765-771.

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Sobre o Autor

Hilârio Franco Junior, doutor ern História Medieval pela Universi-dade de São Paulo, professor dessa disciplina na UNESP - UniversidadeEstadual Paulista, é autor nessa mesma coleção de As Cruzadas e O 1m·pério Bizantino, Escreveu ainda (em co-autoria com Paulo Chacon) umaHistória Econômica Geral (Atlas, 1985) e diversos artigos publicados emrevistas especializadas nacionais e estrangeiras. É membro da The Me-dieval Academy of America. Pesquisa atualmente temas sobre a mentali-dade ocidental dos séculos XI-XIII.

Caro leitor:As opiniões expressas neste livro são as do autor,podem não ser as suas. Caso você ache que vale apena escrever um outro livro sobre o mesmo tema,nós estamos dispostos a estudar sua publicaçãocomo mesmo título como "segunda visão",

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