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Paulo Jorge Fernandes
O fim do Império Virtual A África Oriental portuguesa e as representações do domínio colonial na metrópole
(1878-1898)
Introdução
Em 2004, Bernard Porter, um dos mais importantes historiadores britânicos na
área dos “Imperial Studies”, publicou um livro controverso com significativo impacto
neste domínio da investigação historiográfica1. A sua abordagem deu origem a uma
enorme discussão, tanto na Grã-Bretanha como no estrangeiro, em livros e revistas
especializadas como, por exemplo, no Journal of Imperial and Commonwealth History,
entre outras publicações do meio académico de língua inglesa. Bernard Porter veio
discutir pela primeira vez, de forma sistemática e consistente, alguns mitos
historiográficos lançados nas décadas anteriores por autores consagrados como John
MacKenzie ou Edward Said, este último um dos nomes mais importantes e um dos pais
fundadores da moderna corrente dos chamados estudos pós-coloniais2. Resumindo
argumentos e de forma muito esquemática, podemos dizer que, de acordo com a
interpretação avançada por estes intelectuais e que ditou a ortodoxia sobre o tema, a
sociedade britânica passou a estar auto-centrada na sua vocação imperial, sobretudo, a
partir da década de 1880. Esta circunstância esteve na base da criação de uma visão do
“Outro”, o “Oriental” ou o não-europeu, por oposição ao “Nós”, o “Ocidental”. Esta
perspectiva seria difundida pela opinião pública através da imprensa e da escola,
ficando bem patente nos cânones literários da época (em Rudyard Kipling ou Joseph
Conrad), sendo detectada também em escritores mais antigos (como Jane Austen,
Charlotte Brontё ou Charles Dickens). Genericamente, os britânicos tornaram-se
imperialistas pela própria circunstância de serem a principal potência mundial,
sobrepondo-se este factor a qualquer outro tipo de ideologia ou discurso na consciência
popular. Bernard Porter, através da sua leitura revisionista de muitas dezenas de
periódicos, memórias, textos escolares, livros e artigos da época, veio relativizar esta
ideia, mostrando como a mesma foi assente em representações exageradas da realidade
histórica.
Desconstruindo o ângulo de abordagem proposto por Bernard Porter, o presente
texto pretende chamar a atenção para o peso cada vez mais significativo da opinião
1 PORTER 2004.
2 MACKENZIE 1984 e SAID 1993.
2
pública portuguesa metropolitana na definição do que veio a ser a política ultramarina
em finais do século XIX e demonstrar como esta mesma opinião pública despertou para
as questões africanas de forma generalizada depois do aparecimento na sociedade
portuguesa de uma ideologia nacionalista e radical de cariz colonial nos finais da década
de 1870. Pretende-se defender a ideia de que, para além das pressões externas
decorrentes da abertura da “scramble for Africa”, a estruturação do moderno Império
português se ficou a dever ao impacto “positivo”, do ponto de vista metropolitano, dos
sucessos militares alcançados em Moçambique pela chamada “geração de 1895”. Por
fim, procura-se ainda sustentar que o lançamento das modernas formas de dominação
colonial por parte dos portugueses em África a partir dos anos finais do século XIX
ficou a dever muito às representações que foram elaboradas, sobretudo pelos jornais e
pelo discurso político, sobre os feitos militares na altura em que os mesmos foram
produzidos, deixando-se em lugar subalterno o papel das resistências locais à construção
deste normativo colonial. O desejo de afirmação do Exército e, em menor escala, da
Armada, em África, a ânsia por vitórias no terreno e a forma como as notícias de tais
triunfos chegaram ao público, criaram as condições para que se instalasse uma pressão
geradora de sentimentos nacionalistas, libertando uma certa consciência imperial
reprimida pela humilhação do Ultimato britânico de 1890.
A partir destes anos, os governantes e a opinião pública do Portugal
metropolitano passaram a olhar para as províncias de além-mar com outra atenção,
apesar de as elites dos dois principais partidos políticos protagonizarem visões
diferentes sobre o assunto. Neste novo contexto de exaltação colonial, África tornou-se
uma prioridade nacional, acabando por condicionar nos tempos que se lhe seguiram
toda a concepção da estratégia ultramarina. Assistiu-se, desde então, a um esforço de
projecção do poder da metrópole pela via militar através das erradamente designadas
“Campanhas de Pacificação”, que, na prática, se revelariam autênticas campanhas de
construção de uma nova ordem soberana que levantaram enormes resistências locais,
nomeadamente no caso de Moçambique. O envolvimento dos oficiais que participaram
em todo este processo na defesa e na administração do Império, iria também conferir à
tropa uma base de legitimação da sua actuação na frente doméstica. Os protagonistas
maiores das aventuras coloniais de 1894-1897 seriam condecorados e promovidos nas
suas carreiras. Quase todos passariam a exercer os mais elevados cargos na hierarquia
política metropolitana como governadores coloniais, deputados e ministros nos anos
finais da Monarquia, assumindo também um evidente protagonismo durante a Primeira
3
República. Um deles chegou mesmo a ocupar o mais alto lugar na chefia do Estado em
1926.
As principais figuras militares de então, com principal destaque para Mouzinho
de Albuquerque, seriam escolhidas para conferir legitimidade a uma retórica patriótica e
belicista, em relação ao ultramar, que atravessou os vários tipos de regimes políticos em
Portugal até ao terceiro quartel do século XX, sem que alguma vez se questionasse
oficialmente a matriz colonial do país. Foi, justamente, em proveito da defesa
intransigente do Império pluricontinental que o Estado mobilizou e desviou os recursos
que escasseavam para a sua modernização interna, travando, a partir de 1894, aquela
que seria a sua primeira guerra ultramarina dos tempos modernos, em várias frentes de
combate, repartidas por África, Índia e Timor.
A alteração do paradigma ultramarino e o início do ciclo africano do
Império
A chamada de atenção de forma insistente e com consequências para a questão
africana e para a necessidade de reconstrução do Império colonial nos finais do século
XIX ficou a dever-se à conjugação de uma multiplicidade de factores. Ainda antes das
causas externas assumirem um papel fundamental na aceleração do processo histórico, o
país assistiu ao aparecimento de um novo tipo de ideologia, que rapidamente angariou o
consenso generalizado das elites políticas e da sociedade de uma forma geral, ao ponto
de se transformar no primeiro fenómeno ideológico de massas do Portugal
contemporâneo. Um nacionalismo extremista de ascendência colonial começou a ser
notado em meetings cada vez mais concorridos nas ruas dos principais centros urbanos
do reino depois de, em finais de 1878, o executivo do Partido Regenerador ter decidido
entregar a exploração e administração dos recursos mineiros, agrícolas e florestais numa
zona com cerca de 100.000 hectares, em Moçambique, a uma empresa privada liderada
por Paiva de Andrade, um capitão do Exército. Para a oposição, essencialmente
centrada no Partido Progressista, mas também, em menor escala, no emergente Partido
Republicano, a dita concessão representava um escândalo sem nome, adensado pela
suspeita de envolvimento no negócio de capitais britânicos. De acordo com o ponto de
vista destes sectores políticos, oferecia-se de presente a estrangeiros uma fatia
importante do “Império” e desacreditava-se o país aos olhos da Europa, confessando-se
a incapacidade nacional para administrar os assuntos coloniais. Por outro lado, para os
4
mais próximos da sensibilidade governamental apenas se retomava a ideia de entregar
parte do aproveitamento do território moçambicano a entidades não públicas, mas com
recursos suficientes para rentabilizar uma possessão cujas ligações à metrópole eram
praticamente inexistentes3. Em última análise, o que estava em causa era a alienação de
uma imaginada soberania lusitana em África, em terras potencialmente ricas ou de valor
estratégico acrescentado. Esta circunstância afigurava-se completamente inaceitável
para o patriotismo exacerbado exibido pela facção mais radical do Partido Progressista,
que elegeu o tema como arma de arremesso político e forma de protesto pela sua falta
de acesso ao poder, bloqueado pelo Partido Regenerador e pelo rei D. Luís4.
O assunto pela sua importância viria a ser discutido em ambas as câmaras do
parlamento português, acabando por ser sancionado por decreto do governo em finais de
Dezembro de 1878, apesar da intensa pressão política exercida pela oposição e pela
mobilização de sentido contrário da opinião pública angariada em comícios que
sobressaltaram o reino nas semanas seguintes. Naturalmente, adiante-se, quando os
progressistas substituíram os regeneradores à frente do executivo, no ano seguinte,
prometeram logo que a polémica concessão seria revogada para não haver dúvidas sobre
a sua posição. Na realidade, contudo, a sociedade liderada por Paiva de Andrade, que
acabou por congregar capitais franceses, ainda chegou a montar várias expedições na
região de Tete, no vale do Zambeze, mas as exigências criadas pelo novo governo
progressista de 1879-1881, acabaram por conduzir à sua liquidação, já em 1883, sem se
ter alcançado o cumprimento dos objectivos iniciais.
Todavia, e ainda antes deste cenário se tornar uma realidade, o Partido
Regenerador nos meses seguintes em que se manteve no poder, muito por força da
orientação do ministro Andrade Corvo, viera reforçar uma aproximação diplomática à
Grã-Bretanha por via da assinatura do Tratado de Lourenço Marques (1879), pelo qual
se pactuou a construção de uma linha de comboio entre Lourenço Marques e o
Transvaal, isentando de direitos alfandegários as mercadorias em trânsito naquele porto
moçambicano e concedendo facilidades aos britânicos para desembarcarem tropas e
munições em tais paragens. Mais uma vez, colocava-se em causa o domínio nacional
3 Sobre o escasso domínio soberano efectivo dos portugueses em Moçambique em finais do século XIX,
ALBUQUERQUE 1893:7 e 22. 4 Com a excepção de alguns meses, em 1877-1878, o Partido Regenerador encontrava-se no poder desde
1871. O Partido Progressista, fundado em finais de 1876, procurava aparecer como alternativa credível
aos regeneradores que ameaçavam eternizar-se à frente do executivo com o apoio do rei.
5
sobre uma das principais “cidades” de Moçambique5, cuja soberania era discutida com
os ingleses, tendo a mesma sido diplomaticamente confirmada, ao cabo de grandes
trabalhos, em 1875, pela arbitragem internacional francesa do presidente Mac-Mahon.
Como o referido Tratado de Lourenço Marques foi assinado em segredo no último dia
em que o governo se encontrava em funções a sua legitimidade seria logo contestada.
Quando chegou a sua vez de formarem um governo e deparando-se perante este
compromisso diplomático, os progressistas nem sequer atenderam ao argumento de que
a construção desta infra-estrutura ferroviária era essencial para o progresso do sul da
província ultramarina da costa do Índico. Para além disso, o mesmo executivo
regenerador havia rubricado, ainda em finais de 1878, o então designado Tratado da
Índia, que implicava a cedência do monopólio sobre o sal à Grã-Bretanha em tais
paragens mediante uma indemnização anual calculada em cerca de 160 contos6. Previa-
se ainda a construção de um caminho-de-ferro que ligaria o porto de Mormugão, no
território de Goa, até à fronteira da Índia inglesa, obra que seria das mais importantes
para o desenvolvimento da Ásia portuguesa. Os progressistas, contudo, viam este
acordo como uma entrega pura e simples da possessão à Grã-Bretanha. Sobretudo, a sua
facção mais extremista, onde pontificavam alguns membros do extinto Partido
Reformista, tudo fez para a denunciar entre a opinião pública, nos bancos do
parlamento, nas páginas dos jornais e nos palanques dos meetings que arregimentaram
nos grandes centros urbanos do reino.
Nos anos seguintes, esta retórica anti-britânica criada e sistematicamente
alimentada pela facção mais “avançada” do regime monárquico acentuou-se a propósito
do domínio sobre o baixo Congo. No plano externo, Portugal evocava os direitos
históricos de descoberta e conquista sobre a região da foz do rio Zaire, embora estivesse
longe de poder assegurar qualquer tipo de ocupação efectiva na zona. Depois de
negociações que duraram praticamente dois anos, a 26 de Fevereiro de 1884, ambos os
países assinaram o chamado Tratado do Zaire, internacionalmente conhecido como o
Tratado do Congo. Pelo acordo, os ingleses reconheciam a soberania portuguesa nos
territórios das duas margens do rio Zaire até às fronteiras daquele que viria a ser o
5 Lourenço Marques de cidade pouco mais tinha do que o nome, apenas atingindo oficialmente essa
designação administrativa em Novembro de 1887. A categoria de vila somente lhe tinha sido atribuída em
Dezembro de 1876. Na realidade, a sua expansão urbana só então tinha arrancado. Se em 1857 apenas
albergava 914 habitantes – dos quais menos de uma centena de europeus –, em 1895 chegaria aos 2.799
habitantes, dos quis 1.343 brancos. Cerca de dois anos mais tarde, em Dezembro de 1897, viveriam na
localidade 4.902 pessoas. ROCHA 2006:64-68. 6 Este montante representava 2,3% do défice das contas públicas em 1878-1879.
6
futuro Estado Livre do Congo, em troca de facilidades no comércio e navegação. O
Estado português, por este arranjo e como contrapartida, mostrava-se disposto a alienar
direitos de soberania no norte da Zambézia, em Moçambique, sob o pretexto de dar
combate ao tráfico de escravos com maior eficácia. Todavia, para a oposição
progressista e republicana, o Tratado do Zaire – ou do Congo –, mais uma vez assinado
por um governo afecto ao Partido Regenerador, seria mais prejudicial para os interesses
nacionais do que o anterior tratado de Lourenço Marques porque concedia
incomparáveis vantagens mercantis à Bélgica, à Grã-Bretanha e à França, enquanto a
dominação lusitana na região era reduzida a uma expressão pouco mais do que nominal.
Em Março de 1884, o acordo seria apresentado publicamente nos parlamentos de
Londres e Lisboa. Foram mais as vozes a contestar esta combinação do que aquelas que
a aprovaram. Para além da discordância dos governos de Paris, de Berlim e de Leopoldo
II da Bélgica, excluídos do negócio, na Grã-Bretanha, as associações comerciais e anti-
esclavagistas opuseram-se ao eventual estabelecimento de Portugal na região da foz do
Zaire7. Neste contexto de falta de aprovação interna motivada pela pressão da opinião
pública doméstica, o executivo britânico não chegou a submeter o tratado a ratificação
parlamentar e o mesmo seria abandonado.
Em Portugal, pelo seu lado, as reacções de oposição à “concessão Paiva de
Andrade” e aos Tratados da Índia, de Lourenço Marques e do Zaire sustentaram, por
razões de puro oportunismo político, uma retórica nacionalista incentivada tanto pelos
liberais progressistas como pelos republicanos e colocaram as questões ultramarinas no
centro do debate da governação, constituindo um factor de divisão entre os principais
partidos do sistema.
Quando foram conhecidos os resultados negativos para os interesses nacionais
da participação da delegação portuguesa da Conferência de Berlim (1884-1885), a
mesma facção progressista, de novo empurrada para os bancos da oposição, reutilizou
na frente interna os argumentos avançados anteriormente, aumentando a entoação da
oratória nacionalista, sempre com o apoio da causa republicana. Na acta final da
conferência ficara definido o princípio da livre navegação e comércio nas bacias dos
rios Níger e Congo, passando-se, simultaneamente, a exigir a posse efectiva dos
territórios e já não apenas a evocação vaga de um direito de precedência, como forma de
prover à ocupação territorial apenas no litoral, mas não no interior como, raramente é
7 FERNANDES 2010a:173-177.
7
referido8. Em Portugal, estes resultados foram recebidos com natural desencanto, mas
tiveram o condão de reavivar a atenção das elites governantes e da opinião pública para
o estado de abandono a que estavam votadas as colónias. No quadro da corrida em torno
da posse efectiva dos territórios em causa e já conhecedores do interesse manifestado
pelas potências europeias, tornava-se urgente para os líderes políticos portugueses
proceder à ocupação dos vastos espaços situados no interior de Angola e Moçambique.
Para além disso, tomava-se consciência de que tinha terminado de vez a era da
hegemonia singular no campo colonial, até então assegurada pela Grã-Bretanha,
passando-se neste domínio para um mundo multipolar com a entrada em palco de novas
potências ultramarinas como a Alemanha. Esta inversão da cena internacional iria
obrigar Portugal a redesenhar os seus acordos diplomáticos, questionando a tradicional
dependência exclusiva em relação a Londres, que, aliás, tinha abandonado a
representação lusitana à sua sorte em Berlim.
A declaração do Ultimato britânico (1890) veio, naturalmente, ampliar a pressão
exercida por intermédio dos principais países europeus sobre a capacidade nacional em
possuir e administrar vastos territórios longe da metrópole, deixando as principais
cidades do país ao rubro devido ao fervor patriótico anti-britânico latente9. As
manifestações ocorridas na Baixa de Lisboa nos inícios de 1890 e as humilhações
posteriores, impostas por dois tratados luso-britânicos (1890-1891) tidos à data como
ultrajantes, apenas serviram para legitimar o caminho que se veio a escolher para
reconstruir a dimensão imperial do Estado português.
Neste contexto, o insulto do Ultimato não poderia ter tido outra resposta. A saída
negociada tentada pelos dirigentes nacionais era a única possível. O exemplo espanhol
demonstrou esta tese com uma simplicidade evidente. A reacção do governo de Madrid
à afronta americana por causa da questão de Cuba levou a uma guerra colonial, em
1898, em resultado da qual o vizinho ibérico acabou por se ver amputado dos ramos
mais significativos do seu império colonial. Num exercício contrafactual legítimo
8 ALEXANDRE 2008:156.
9 A 11 de Janeiro de 1890, o governo de Londres, sob a forma de Ultimato, intimou as forças lusitanas a
retirarem-se de uma zona disputada entre os dois países localizada justamente entre Angola e
Moçambique, ameaçando com o corte das relações diplomáticas, ao mesmo tempo que a marinha
britânica iniciava manobras em Gibraltar sugerindo a eminência de um ataque a Lisboa. O governo
progressista cedeu e dois dias depois, demitiu-se perante a indignação nacional, potenciada, sobretudo,
por sectores republicanos que passaram a acusar o rei e os responsáveis dos dois grandes partidos
monárquicos pela situação criada. Era o fim do chamado “Mapa Cor-de-Rosa” e das pretensões lusas de
reunir os ditos territórios entre Angola e Moçambique numa vasta província sob o controlo português.
ROTBERG 1988:308 e TEIXEIRA 1990.
8
poderia pensar-se que se o governo português (independentemente da sua coloração
partidária, incluindo os republicanos) se tivesse oposto à ofensa britânica de 1890, tal
reacção implicaria a perda da pretensão nacional em ocupar os territórios remanescentes
em Angola e Moçambique e alienaria as possessões nacionais na Índia. Toda a história
do século XX português seria bem diferente.
O início do ciclo africano do império português iria ter Moçambique como pano
de fundo, a partir da década de 1870. As atenções do Portugal metropolitano viraram-se
para a província das margens do Índico por esta ser, então, considerada como a que
apresentava maior futuro em termos de aproveitamento económico, assim como pelo
interesse estratégico que começou a despertar junto dos grandes países europeus
interessados em marcar uma posição na “scramble for Africa”. Moçambique passou a
ser encarada como a terra da redenção, onde se encontraria, simultaneamente, a solução
para a crónica debilidade das contas públicas nacionais e onde Portugal poderia afirmar-
se no plano externo como potência colonial de alguma grandeza, ignorando-se as
resistências que tal projecto iria provocar localmente.
O triunfo da solução militar
O Império, no sul do continente africano, poderia ter sido erguido por via da
integração económica com os territórios ingleses, como chegou a ser pensado, mas
dados os antecedentes a proposta apresentava custos políticos demasiado elevados que
ninguém quis assumir10
. Em 1892, adoptou-se uma política pautal proteccionista, que
acabaria por inviabilizar qualquer tentativa de desenvolvimento económico na África
Oriental portuguesa, isto porque as limitações do mercado nacional, exíguo e pobre,
seriam, naturalmente, transpostas para a região. Passou-se, então, para o caminho mais
fácil, mais barato e até mais demagógico, o da via das armas.
10
Já depois do Ultimato, no segundo semestre de 1890, o ex-ministro da Fazenda progressista, Mariano
de Carvalho, foi enviado a Moçambique, onde permaneceu durante quase seis meses para proceder ao
levantamento das riquezas da região. Nunca nos tempos modernos, um antigo governante nacional com a
importância simbólica de Mariano de Carvalho tinha passado tanto tempo nas colónias. Quando regressou
à metrópole Mariano de Carvalho apresentou um vasto e completo plano de reordenamento
administrativo, económico e financeiro de Moçambique que na época não motivou grandes adesões por
parte dos responsáveis políticos. Quando, pouco depois, Mariano de Carvalho regressou ao executivo, em
1891-1892, o mesmo programa chegou a ser discutido em Conselho de Ministros, mas a oposição de
alguns dos seus colegas de gabinete, nomeadamente de Júlio de Vilhena, e a situação política interna,
agravada com o escalar da crise financeira, inviabilizou novamente a adopção do tal roteiro de
desenvolvimento de Moçambique, talvez o mais consistente alguma vez pensado para qualquer das
colónias. PINA 1893:45-59 e 157-165.
9
Quando, nos finais de 1894, Lourenço Marques se viu cercada por milhares de
nativos de origem Vátua, era impensável ao governo de Lisboa pedir ajuda a Lord
Salisbury ou mesmo a Cecil Rhodes. As autoridades na metrópole reagiram mandando
soldados para tentar controlar a situação, mas havia uma diferença relativamente ao
passado recente. O investimento em recursos humanos assumia agora proporções nunca
vistas antes. Entre Outubro de 1894 e Abril de 1895 seriam enviadas três expedições
militares e um total de 2.886 homens. Desde o século XVI que Portugal não embarcava
tanta tropa com destino a África. Para além desta componente táctica, o governo
nomeou um antigo ministro da Marinha e Ultramar, o conhecido jornalista e dramaturgo
António Enes, como comissário régio para governar Moçambique com poderes
executivos quase ilimitados.
O aumento dos efectivo militares e a reconfiguração da forma de administração
do território entregue a um civil, acompanhada da modernização tecnológica ao nível do
armamento empregue nos combates com os africanos, traduziu-se numa inversão dos
resultados operacionais. Do continente africano a opinião pública portuguesa apenas
estava habituada a receber notícias de derrotas e humilhações que, normalmente,
custavam as vidas dos poucos soldados que tinham a má fortuna de serem enviados para
essas latitudes. Agora, pela primeira vez de forma sistemática, ouvia falar de vitórias e
feitos extraordinários. As notícias dos sucessos obtidos nas campanhas de 1895-1896
animaram o executivo para prosseguir o seu esforço militar em Moçambique. Ao
mesmo tempo, desapareciam da circulação as notícias referentes às resistências que a
tropa branca, com o auxílio, poucas vezes comentado, de auxiliares recrutados entre os
locais, ia enfrentando.
As batalhas de Marracuene, Magul, Coolela e Manjacaze – em 1895 – e as
incursões na zona de Maputo e em Gaza – já em 1896 – todas registadas no centro-sul,
materializaram-se em vitórias para o Exército dos brancos, embora sempre com o apoio
não negligenciável de auxiliares nativos, assunto a que nos propomos voltar em breve.
A mais importante destas acções registou-se a 28 de Dezembro de 1895, quando um
obscuro capitão do Exército, Mouzinho de Albuquerque, aprisionou Gungunhana, o rei
dos Vátuas, em Chaimite. Para além de ser um aliado dos britânicos na zona, o líder
africano vinha criando problemas aos portugueses havia muito tempo. A sua captura
tinha sido muito reclamada e tentada, mas nunca conseguida. Até então.
O feito, da perspectiva da opinião pública portuguesa, alcançado nos fins de
Moçambique pouco depois do Natal de 1895, causou uma enorme sensação na
10
metrópole. A proeza era enorme. Com esta prisão colocava-se um ponto final, esperava-
se, ao predomínio do “último dos três povos guerreiros e poderosos, independentes de
facto, que existiam na África Austral: Zulus, Matabeles e Vátuas”11
. Quando soube da
notícia, o próprio rei D. Carlos escreveu a Hintze Ribeiro, líder do governo regenerador
da época, felicitando-o vivamente “como português e como chefe do exército” pelo
magnífico desempenho dos militares.
Em Lisboa, a façanha ganhou proporções nunca alcançadas, tornando-se na
coroa de glória de Mouzinho de Albuquerque, logo apresentado como um ousado
militar. O pequeno contingente – 51 soldados – protagonista do episódio de Chaimite
entrou quase imediatamente no domínio do mito. A desproporção de forças – cerca de
seis dezenas de africanos para cada europeu – ajudou à formação e à fixação de uma
imagem lendária. O feito foi elevado à categoria de obra-prima do génio militar lusitano
e o seu artífice considerado o novo herói nacional.
Aos olhos do português comum, a participação deste capitão em campanhas
militares decisivas para o restabelecimento de uma ordem portuguesa numa parcela de
África, o seu papel enquanto organizador e líder dessas mesmas campanhas e a sua
actividade à frente da administração colonial em Moçambique seriam ultrapassados pela
ampliação do eco deste episódio descrito como transcendente.
Mouzinho de Albuquerque, que se transformou numa espécie de “mito útil” do
colonialismo português, seria abundantemente recompensado. Para começar foi
designado, nos inícios de 1896, como governador-geral de Moçambique. O próprio
decreto da sua nomeação transpirava já um tom hiperbólico, pois “tendo entrado na
Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar o relatório do capitão de
cavalaria Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque, pelo qual se reconheceu
oficialmente haver esse capitão praticado o heróico feito de aprisionar, no meio de
milhares de vátuas, o régulo Gungunhana, pondo assim brilhantíssimo termo à guerra
empreendida em defesa da honra nacional nas longínquas regiões de África, onde a
bandeira portuguesa foi de todas as nações europeias a primeira a tremular; e querendo
eu dar a esse valente oficial um público testemunho de alto apreço e de subida
consideração em que tenho o arrojo e o denodo com que se distinguiu entre todos os
seus camaradas do exército e da armada, que por muitos actos de incontestável bravura
as assinalaram em tão rude campanha”. Não haveria muitos militares com hipóteses de
11
ALBUQUERQUE 1896:21.
11
receber publicamente tamanha manifestação de apreço por parte do governo da época.
Depois seria promovido a major, acabando por ser nomeado como novo comissário
régio, em Moçambique, em substituição de António Enes, com quem, aliás, acabou
incompatibilizado pessoalmente, ainda em finais de 1896. Mouzinho de Albuquerque
viria a pedir a demissão do cargo de comissário régio, em Julho de 1898, desavindo com
a tutela política metropolitana, depois de ter obtido outros sucessos, mas também
importantes derrotas (como no caso da Campanha dos Namarrais), noutros pontos do
território moçambicano.
Seja como for, para além dos resultados militares dos quais chegavam à
metrópole apenas notícias, ainda que sensacionais, a presença portuguesa em paragens
moçambicanas materializou-se, então, numa representação visível, uma vez que o
prisioneiro africano Gungunhana seria recambiado para a Europa e exibido nas ruas de
Lisboa como um troféu perante multidões pasmadas e curiosas, assunto a que, pelo
impacto produzido junto da opinião pública, voltaremos mais à frente12
. Este tipo de
actuação parecia legitimar a acção tida por pacificadora e civilizadora dos europeus no
continente. Não estranhamente, o êxito elevou um simples oficial do Exército aos
píncaros da fama e tornou o seu nome conhecido em todos os cantos do país.
Praticamente, não se elevaram vozes críticas ao que tinha sucedido.
Por esta via, o mesmo Mouzinho de Albuquerque teve direito à sua corte de
admiradores13
, recrutados entre a elite política, intelectual e cortesã do reino14
. Os
poucos que se manifestaram em desacordo com os seus procedimentos seriam
rapidamente submersos pela onda geral de adesão ao feito “glorioso” de Chaimite. As
fraquezas do rei Vátua e o papel de outros militares, que prepararam o terreno e
facilitaram a acção de Mouzinho de Albuquerque, foram menosprezados15
. As
características da sua personalidade e a necessidade de o país encontrar um “salvador da
pátria” compuseram o resto do quadro, numa altura em que o aparecimento de uma
espécie de figura providencial, capaz de resgatar a honra nacional perdida, era bem
necessária. O seu modo de ser tornou-o conhecido. Era um homem com uma apetência
natural pelo risco, violento, intempestivo, brusco, com um certo gosto pela acção
espectacular medindo os seus actos em função do impacto que provocava nos outros16
.
12
BRETES 1989. 13
CARVALHO 1985:76-77. 14
COUTINHO 1938:64. 15
CARVALHO 1985:76-77. 16
CARVALHO 1985:76-77.
12
Mouzinho de Albuquerque não foi sequer o oficial mais valoroso do ponto de
vista operacional, em Moçambique. Outros se destacariam. Para além disso, todas as
campanhas em que esteve envolvido levantaram enorme polémica. O próprio golpe de
Chaimite, um feito temerário, sem dúvida, e que lhe valeu a glória e a imortalidade,
apenas por mera casualidade não terminou em tragédia. Todo o episódio da captura de
Gungunhana resultou mais de um golpe de sorte do que de génio militar, embora não
tenha sido essa a leitura a que se passou a ter acesso nos meios metropolitanos. Um
grupo composto por cerca de meia centena de soldados europeus por muito bem
equipado que estivesse, e não era o caso, dificilmente poderia escapar ileso numa
situação de confronto aberto caso se tivesse deparado com resistência organizada. A
ousadia dos brancos valeu pelo efeito de surpresa que provocou nos homens de
Gungunhana, que não souberam ou puderam reagir atempadamente.
Seja como for, com o sucesso nasceu uma estirpe de “africanistas” sem par. Este
grupo de “centuriões” iria tornar-se a curto prazo numa espécie de “Ínclita Geração” do
final do século XIX17
. O lugar cimeiro da lista seria mesmo ocupado por Mouzinho de
Albuquerque, elevado à condição de “santo padroeiro” dos seus camaradas de armas,
contribuindo de forma decisiva para o renascimento moderno do mito da “herança
sagrada” que os lusitanos tinham o dever de preservar em outros continentes, missão
que iria conferir aos militares uma legitimidade acrescida para influenciar a política a
nível doméstico.
Devido às proezas nunca alcançadas nos anos recentes, o conjunto de oficiais
envolvidos nas operações de 1894-1898 teve o condão de despertar o país para a
realidade colonial e de promover a afirmação de Portugal perante o exterior numa altura
em que o prestígio nacional em África já tinha conhecido melhores dias. Os inimigos
não eram apenas as azagaias e as espingardas dos Vátuas, mas também os apetites que a
debilidade da presença portuguesa despertava nas potências europeias, nomeadamente
na Grã-Bretanha e na rival Alemanha. Agora tudo tinha mudado. Ao entrar no século
XX, a elite política nacional tinha já interiorizado a importância que os feitos militares
assumiram como única garantia da afirmação da soberania nas províncias de além-mar.
Apesar dos movimentos armados de oposição encontrados em Moçambique à
construção desta “nova ordem colonial”, mais activos a partir de finais de 1894 e
notados nesta fase até 1897, do “ataque” a Lourenço Marques à chamada “Campanha
17
TELO 1994:186 e PELISSIER 2006:203-312.
13
dos Namarrais”, a superioridade militar europeia ficou a dever-se ao investimento em
recursos humanos europeus como não havia sido realizado no passado recente, aos
meios tecnológicos modernos empregues no combate a essa resistência e ao emprego
indiscriminado e raramente valorizado de tropas africanas coercivamente convocadas.
O efeito das representações
A maior parte dos militares envolvidos nas vitórias conseguidas durante o ano de
1895, em Moçambique, regressou à Europa uma semana antes do episódio de Chaimite.
Com a tropa seguia António Enes, que se preparava para encerrar a sua missão.
Mouzinho de Albuquerque pediu para ficar, desejo que o comissário régio lhe
concederia18
. Em Angola, primeiro, e em Cabo Verde a seguir, todos seriam recebidos
como autênticos heróis, sendo calorosamente ovacionados por populações locais.
A chegada dos expedicionários a Lisboa deu-se a 19 de Janeiro de 1896. Quando
se produziu tal acontecimento já se sabia na capital do aprisionamento do rei
Gungunhana, pelo que o desembarque do comissário e dos militares deixou a população
de Lisboa quase em êxtase, tal o clima de efervescência africanista que se viveu por
aqueles dias no reino. Toda a imprensa noticiou o acontecimento rendida aos
regressados. Algumas revistas publicaram várias gravuras alusivas à parada militar
ocorrida em plena Baixa da cidade perante a aclamação da população deslumbrada,
contribuindo este tipo de representações para aumentar os ecos dos feitos alcançados na
província da África Oriental19
. Nunca “em nenhum tempo talvez se receberam os
valentes soldados deste país com júbilo maior, nem com mais carinhoso entusiasmo”,
escreveu-se na época20
.
Se era necessária uma consagração da política nacional em Moçambique, os
resultados obtidos durante 1895 serviram de motivo para exteriorizar os sentimentos de
adesão nacionalista aos feitos da tropa. Como era de prever, o desfile dos guerreiros
pela cidade seria muito concorrido. Toda a família real e os membros do executivo
dignaram-se a assistir à passagem do cortejo. Por entre flores e vivas, “a veemência
18
NUNES 1955:12-13. 19
O Ocidente, de 25 de Janeiro de 1896. 20
JÚNIOR 1896:321.
14
atingiu o seu mais elevado grau”21
. Da janela do ministério da Justiça, D. Amélia – a
rainha – e D. Maria Pia – a rainha-mãe – presenciaram tudo.
Os militares tiveram, então, de enfrentar uma nova campanha, a do
reconhecimento popular pelos seus valorosos feitos, assim considerados pela opinião
pública mobilizada pela imprensa. Toda a gente queria ouvir as narrativas dos
vencedores do sertão de Moçambique. O coronel Eduardo Galhardo, o comandante da
tropa, mal colocou o pé em terra foi logo convidado para proferir uma palestra sobre as
suas acções no Teatro de São Carlos, o mais importante de Lisboa. O próprio rei D.
Carlos dignou-se a assistir à função, abraçando os oficiais regressados à metrópole na
tribuna real. Num instante de exaltação, o monarca deixou-se arrebatar pela emoção do
momento. De acordo com as suas palavras, estava-se num tempo novo, aquele em que
se reacendeu “a crença e a esperança como quando os nossos galeões iam para as
descobertas do mundo”, terá afirmado, para logo de seguida completar com entusiasmo,
que “é esta a lição dos valentes que voltaram de África. Eu próprio, na hora do perigo,
direi a meus filhos: ide, parti. Segui o exemplo desses heróis”22
.
Durante semanas sucederam-se as festas, as homenagens, as iluminações em
edifícios oficiais, os banquetes, as paradas, as recepções. A fachada da Câmara
Municipal de Lisboa e as janelas das secretarias de Estado no Terreiro do Paço seriam
decoradas a preceito. A 20 de Janeiro, a igreja de Santa Maria de Belém seria palco de
um Te Deum, ao qual se dignou assistir mais uma vez o rei, para homenagear os
conquistadores africanos.
Individualmente, os principais triunfadores não foram esquecidos. O coronel
Eduardo Galhardo, o rosto militar visível da vitória seria abundantemente
recompensado, assim como o civil António Enes. Receberam medalhas, condecorações
e cargos na hierarquia do Estado, factos sempre muito referenciados pela imprensa.
Os vencidos também seriam alvo das atenções da opinião pública. Após a
captura, Gungunhana e o seu grupo passaram quase dois meses em Lourenço Marques.
Depois seria embarcado, juntamente com os restantes prisioneiros de Chaimite, para
Lisboa. A chegada à metrópole aconteceu a 13 de Março de 1896. Assim que
desembarcaram, os guerreiros africanos foram metidos em carros e, com uma escolta da
Guarda Municipal, foram passeados pela Baixa da cidade e mostrados como troféus
perante a estupefacção do muito povo curioso que observou tão inédita cena. Não se
21
NORONHA 1935:28. 22
MARTINS 1930:335.
15
registaram desacatos nem se notaram movimentações hostis contra os prisioneiros. Por
se encontrar ainda em Moçambique, Mouzinho de Albuquerque, pelo seu, lado, como se
compreendia, foi vitoriado e aclamado pela imprensa como o grande vencedor ausente.
Também António Enes seria recordado em tão augusta hora. Os expedicionários foram,
igualmente, retratados nas páginas dos jornais com o clima africano a marcar-lhes o
rosto. Apareceram como um conjunto de “bons rapazes”, superiormente comandados,
inocentes, quase sem consciência da sua bravura23
. O régulo, por sua vez, seria descrito
como um homem derrotado, pachorrento e resignado à sua sorte, como convinha à
retórica dos vencedores.
O rei africano ainda foi colocado em prisão domiciliária no forte de Monsanto,
nos arredores de Lisboa, onde seria bem tratado e muito visitado, para depois ser
enviado para Angra do Heroísmo, onde chegou a 27 de Junho de 1896. Ainda antes de
ser mandado para os Açores, centenas de pessoas acorreram à serra do Monsanto, para o
observar numa autêntica romaria popular. Depois de vencido, Gungunhana inspirou
alguma comiseração. Transformou-se num “objecto” pacífico, que poderia ser visto
pelas famílias. A sua figura e memória passariam a fazer parte do imaginário nacional
daqueles anos, servindo até como tema de fados e viras24
.
O captor regressaria mais tarde, chegando à capital do império apenas a 15 de
Dezembro de 1897. Seria um novo dia de festa para Lisboa. A imprensa exultou com a
volta do filho pródigo. O Diário Ilustrado, um dos jornais de referência da época, quase
esgotou os 60.000 exemplares do número especial de 8 páginas, acompanhado de
retratos e gravuras, dedicado a tão comentado tema por toda a imprensa. Num país onde
à data quase 80% da população não sabia ler, este número não pode deixar de
impressionar, mesmo que o analfabetismo urbano fosse consideravelmente inferior.
O rei D. Carlos foi esperá-lo em pessoa, acompanhado do príncipe herdeiro, D.
Luís Filipe. O facto inusitado não era de estranhar, uma vez que o soberano e o militar
mantinham uma relação pessoal de amizade, facto também destacado pelos jornais.
Todos queriam cumprimentar a figura do momento. Ouviam-se vivas à pátria e a
Mouzinho de Albuquerque pelas ruas próximas do lugar do desembarque. Era difícil dar
um passo. No ar, estalaram foguetes vincando o ambiente festivo que se vivia25
. Todo o
acto parecia encenado para enaltecer a glória do chefe militar regressado em triunfo. A
23
Diário Popular, de 14 de Março de 1896, p. 1. 24
BRETES 1989:76-95. 25
NORONHA 1906:410.
16
rainha D. Amélia também ficou vivamente impressionada com a cena. Contou mais
tarde, que “quando este herói regressou a Portugal, em 1897, nós o esperávamos no
Arsenal, Carlos, as crianças e eu. Desembarcou da galeota real como um personagem
lendário, toda aureolado da sua glória, exactamente como os cavaleiros que eu via nos
livros de imagens quando era criança”.
No próprio dia, o governo encheu-lhe o peito de condecorações26
. Mouzinho de
Albuquerque não podia escapar à beatificação que se preparava em torno do seu nome.
Como apareceu na imprensa, “depois de uma vida cheia de acidentes e de perigos, mas
esmaltada por um verdadeiro brilho”, o major vinha à metrópole para ser coroado de
glória. A pátria ficava-lhe a dever “incontestáveis e relevantíssimos” serviços. Em
África, pela sua “coragem, pela sua valentia, mudou em um momento toda a nossa
situação colonial, levantando o prestígio de todo o país. A acção heróica de Mouzinho,
aprisionando o Gungunhana, foi por assim dizer, um raio de sol que veio de repente
iluminar-nos, dar-nos vigor e esperança, quando bem desalentados estávamos”,
escreveu-se.
Para além do tom entusiasmado dos jornais, Lisboa não foi ingrata para com o
herói. Os vereadores da Câmara Municipal tencionavam abrir uma praça na capital com
o nome do vencedor de Chaimite27
. No percurso até casa, uma multidão vitoriou-o de
forma espontânea, sincera e agradecida. Se era necessária uma ovação pública para
justificar os actos do major no sertão africano, a manifestação de boas vindas em plena
capital do Império servia de exercício de legitimação das suas correrias. Todavia, outra
homenagem o aguardava. À porta da sua residência encontrava-se José Luciano de
Castro, o presidente do Conselho de Ministros em funções. Não tinha sido este chefe
progressista a enviá-lo para África, mas seria dele que dependia agora o seu futuro, mas
para já o tempo era de festejo.
A agenda da aclamação de Mouzinho de Albuquerque encontrava-se
sobrecarregada. Nessa mesma noite, o major seria alvo de mais uma reverência. A
lotação do Coliseu dos Recreios, uma das mais concorridas casas de espectáculos de
Lisboa, esgotou-se para assistir à festa preparada pela Tuna Académica28
. Cerca de
5.000 pessoas no recinto bateram palmas durante 10 minutos. O rei convidou-o para um
banquete na sua residência no palácio da Ajuda, onde estiveram 200 convidados. No dia
26
Correio da Noite, de 15 de Dezembro de 1897, p. 2 e Boletim Militar do Ultramar, nº 12, de 4 de
Dezembro de 1897, p. 255. 27
Correio da Noite, de 11 e 14 de Dezembro de 1897, p. 1. 28
MARTINS 1965:151.
17
seguinte, a Associação Mocidade Católica promoveu um Te-Deum na Sé em acção de
graças pelo regresso do filho pródigo, a que se dignou assistir a Rainha D. Maria Pia.
As comemorações prolongaram-se durante dias. A 18 de Dezembro, foi a vez de
uma multidão estimada em cerca de 4.000 pessoas vitoriar o comissário régio, em
sessão desta vez realizada na muito apropriada Sociedade de Geografia de Lisboa. A
função contaria com um espectador especial, o rei, a quem coube fazer a oração de
exaltação das grandes vitórias coloniais e dos oficiais que as tinham conseguido. Em
determinada passagem da sua intervenção, D. Carlos afirmou, que “já vão passados dois
anos que um frémito de alegria percorreu Portugal, de norte a sul: foi quando chegou a
notícia das nossas primeiras vitórias alcançadas em África por um punhado de valentes.
Esse frémito, porém, cresceu e transformou-se num verdadeiro entusiasmo com o feito
de Chaimite e aprisionamento do Gungunhana. Foi esse heróico feito praticado por
Mouzinho de Albuquerque, o qual tendo partido para África como simples capitão de
cavalaria, apenas conhecido pelos que, como eu, se honravam com a sua amizade,
voltou dali um herói coberto de aplausos por todos, merecedor do espanto geral pelas
qualidades de soldado, que o tornaram digno de condecoração que traz ao peito: Valor,
Lealdade e Mérito. Pátria e Rei: a família Mouzinho sempre teve por divisa: a Pátria e o
Rei. Foi pela Pátria e pelo Rei que Mouzinho de Albuquerque trabalhou e venceu; e por
isso, e por bem servir tenho o infinito prazer de lhe entregar as medalhas que
gloriosamente ganhou”29
.
A multidão aplaudiu as palavras do monarca de pé. Se dúvidas restassem, a
sessão, onde abundou o fervor nacionalista de cariz colonial, revelava como o país
estava rendido a Mouzinho de Albuquerque, elevado à categoria do novo herói nacional.
O soberano não se cansou de lhe distribuir elogios e na véspera de Natal nomeou-o
como seu ajudante de campo. Todos estes louvores seriam, como era de esperar,
relatados nas páginas dos jornais.
A agenda de solenidades não se ficou pelos eventos realizados na capital. O
comissário régio, como era comum nestas alturas, passou a ser convidado com alguma
frequência para se apresentar em público, onde era celebrado pelas gentes dos mais
variados lugares ou para falar sobre a sua experiência africana perante plateias
facilmente maravilhadas pela narrativa do militar. Uma das manifestações de apreço
mais significativas desta marcha triunfal realizou-se no Porto, já em Janeiro de 1898.
29
Correio da Noite, de 20 de Dezembro de 1897, p. 1.
18
O périplo triunfal de Mouzinho de Albuquerque ainda o levaria ao Minho. A sua
estada em Braga, de acordo com a opinião nada imparcial do seu amigo Luís de
Magalhães, “foi uma loucura”. O que ressaltava, todavia, destas romarias, era o seu
carácter popular, quase instintivo. As entidades oficiais raramente marcaram presença
nos festejos e os membros do governo, ou quem os representava, praticamente se
abstiveram de sair à rua. Mouzinho de Albuquerque transformou-se, assim, num
símbolo do povo, patriota e orgulhoso dos seus feitos em África. Um fenómeno
semelhante seria impensável poucos anos antes.
Ainda seguindo as palavras de Luís de Magalhães, do Porto para Braga, “todas
as ingénuas e tradicionais manifestações da alma popular se sucediam nesse percurso de
doze léguas, ininterruptas e ferventes. E o encanto dessa festa era a sua completa
espontaneidade, a sua absoluta sinceridade. Não a encomendara nem a organizara o
elemento oficial; não eram arrebanhadas pelos influentes, pelos administradores, pelos
regedores, que essas turbas se aglomeravam ali, como quando se juntavam para vitoriar
um personagem político, dispensador de graças e benesses”.
Em Vila Nova de Famalicão, por exemplo, saiu-lhe ao caminho um dos
companheiros que com Mouzinho de Albuquerque passara a noite de consoada de 1895
nas margens do rio Limpopo, antes de seguirem para Chaimite. O acontecimento
proporcionou “uma aclamação formidável, colossal, uníssona, um brado rompendo de
milhares de peitos, saudou no capitão ilustre e no humilde soldado, o velho heroísmo
português que ressurgia, épico e triunfal”, de acordo com o relato dos presentes.
A extrema popularidade de Mouzinho de Albuquerque poderia ser uma arma ao
serviço de uma qualquer causa. Como notou o mesmo Luís de Magalhães, “se, nesse
momento, Mouzinho levantasse a espada e proferisse uma palavra, todos, todos os que
ali estavam sem distinção de classe ou de idade, segui-lo-iam cegamente, dominados,
hipnotizados pelo seu prestígio, para a mais quimérica e absurda empresa que ele
pudesse sonhar”30
. Depressa as instâncias do poder político perceberam como esta
figura se poderia tornar perigosa. A sua história, que alimentaria um final trágico, ainda
teria algo para contar31
. Diga-se que, para alguns autores, mormente africanos, o
colonialismo moderno é, justamente, encarado como uma ilusão ou um verniz que,
entrementes estalado, não deixará quaisquer marcas nos territórios sujeitos a tal sistema.
Independentemente do viés ideológico de uma tal perspectiva, sem dúvida que, até pelo
30
MARTINS 1965:154-155. 31
FERNANDES 2010b.
19
fosso entre a realidade social em África e os devaneios sentidos na Europa, os intentos
coloniais daquela época continham, também de uma perspectiva ideológica, algo de
fictício e mesmo de absurdo.
Mouzinho de Albuquerque foi, como vimos, referenciado como um herói. Neste
caso, o mito seria criado em função das representações que foram elaboradas sobre a
realidade dos seus feitos na altura em que os mesmos aconteceram, como procuramos
demonstrar. O militar entrou logo no domínio da lenda. Esta nunca mais parou de
crescer. A Mouzinho de Albuquerque ficara o país a dever Moçambique e a gesta de
Chaimite passou a corresponder a um novo 1640, dizia-se. A sua obra “deixara rasto”,
sendo nomeado como o Joseph Gallieni de Portugal32
. De Mouzinho de Albuquerque
para a posteridade, graças ao poder das representações elaboradas sobre a sua figura e
sobre os seus feitos, sobrava a imagem do “soldado insubmisso”, do “chefe modelo”, do
“herói singular”, do carácter impoluto” e do “espírito desassombrado”. Era o exemplo a
seguir.
O nosso ponto é que este tipo de construção mítica não teria sido possível sem a
ajuda mobilizadora da imprensa. O comportamento dos políticos e a actuação da
sociedade civil, não se reproduzindo somente através desta chave explicativa, também
se compreendem em função da representação da realidade tal qual era transmitida pelos
jornais. Para além do noticiário constante e actualizado sobre os acontecimentos
ocorridos em África, a população do reino passou a ser confrontada de forma
sistemática com a publicação de imagens, gravuras, desenhos e pinturas que retratavam
e davam a conhecer as feições dos mais recentes protagonistas da história pátria fixando
o momento para a posteridade. A própria fotografia, produzida em contexto militar
colonial, fez o seu aparecimento por esta altura, embora com um grau de circulação
menor33
. Repita-se também que, num país que contava 78% de analfabetos, em 1900,
este factor assumiu contornos decisivos para a divulgação das ocorrências coloniais.
Consequências políticas do “colonial turn” e a construção da moderna
identidade imperial portuguesa
32
Herói militar francês que se evidenciou nas campanhas militares em Madagáscar na mesma altura em
que Mouzinho de Albuquerque se destacou em Moçambique. Mais tarde seria um dos heróis gauleses da I
Guerra Mundial. GOMES 1941:8-11 e MICHEL 1989. 33
RAMIRES e LEMOS 2009.
20
As representações criadas em torno das vitórias do Exército, em Moçambique, as
primeiras em muitos anos, ajudaram o poder político a legitimar o investimento nas
tropas e mergulharam o reino num estado de excitação a propósito do domínio
ultramarino, estando na origem de uma (imaginada) linhagem de heróis guerreiros como
já não havia memória.
A opinião pública valorizou estes sucessos e os mesmos seriam aproveitados
pelas autoridades a nível político. Não espanta, por isso, que desde então todos os
governos tenham prosseguido a sua aposta no envolvimento militar em Moçambique,
acabando por a estender a outros pontos do Império. Foi também para responder à
pressão da opinião pública em estado de exaltação colonial que se enviaram cerca de
10.000 soldados brancos somente para esta província, entre 1890 e 1901, o que
equivalia a quase um terço do contingente levantado em tempos de paz, de acordo com
a reforma do Exército de 7 de Setembro de 1899. Alguns dos mais influentes ministros
da época confessaram-no abertamente34
. Em 1876, a quantidade de tropas espalhadas
por todo o Império português ascendia apenas a 7.261 homens, mas em 1886 passou
para os 9.985 homens, dos quais somente 1.193 eram europeus (12%)35
. Na década
seguinte estes números iriam duplicar. Tratou-se de um compromisso assinalável e, até,
surpreendente tendo em conta a realidade militar colonial anterior, conquanto não deixe
de ser insignificante a nível internacional quando comparado com o que aconteceu em
Cuba, por exemplo. Entre 1868 e 1878, a Espanha enviou 181.040 soldados para as
Caraíbas36
.
Ainda em 1895, procedeu-se a uma importante reforma do Exército que servia
para todo o ultramar, unificando-se procedimentos e criando um quadro próprio para os
oficiais. O aprofundamento da solução militar como garante da construção e afirmação
da soberania iria ter continuidade em outras campanhas desenvolvidas na Índia (1895),
em Moçambique (1896), em Angola (1897), na Guiné (1897) e em Timor (1900), num
esforço que se prolongou até à I Guerra Mundial. Mais do que a “pacificação” dos
territórios, como durante muito tempo se afirmou, tratou-se, efectivamente, de uma
guerra colonial pela conquista e ocupação efectiva destes espaços geográficos.
34
António Enes, o ministro da Marinha e Ultramar, por exemplo teve ocasião de explicar a Mariano de
Carvalho que o envio de um contingente militar para Moçambique, ainda em 1891, no contexto pós-
Ultimato, servia mais para acalmar o estado da opinião pública nacional do que para colocar os ingleses
ou os nativos em sentido. 35
BULHÕES 1878:33-34 e TELO 1994:177. 36
VILLA 1996:252.
21
Quando se iniciou o século XX, a sociedade portuguesa olhava já para o
ultramar de forma diferente. O processo de redescoberta de África e a entronização dos
novos heróis coloniais nos anos derradeiros de Oitocentos seria pautado por algumas
ideias fundamentais. Por um lado, a manutenção das províncias ultramarinas era
absolutamente determinante para a regeneração da pátria, tornando-se o projecto
colonial na pedra angular do nacionalismo lusitano. Para além disso, o Império era uma
realidade indivisível, transformando-se num factor de unidade nacional numa época de
crise generalizada em termos económicos, financeiros e políticos. Por fim, a
instabilidade governativa vivida na metrópole constituía a mais séria ameaça à
integridade do Império.
A tal linhagem que se tornou conhecida ao lado de Mouzinho de Albuquerque
nos sertões de Moçambique ganhou força e importância à medida que o século XIX se
aproximava do final, a ponto de, no início de Novecentos, se posicionar como um dos
mais importantes grupos de pressão no país. Ao lado do rei D. Carlos mostravam-se
dispostos a segurar e a reformar o regime em nome da ordem e do engrandecimento do
reino37
. O papel dos militares na construção e defesa do Império conferiu legitimidade
ao Exército e à Armada para a actuarem na frente interna. Todavia, ninguém deu
qualquer passo nesse sentido nos anos seguintes, embora praticamente todos os oficiais
que colaboraram e serviram com Mouzinho de Albuquerque viessem a ter,
posteriormente, a tentação do poder, protagonizando carreiras políticas importantes
ligadas à administração do Império ou ao governo do país. O facto não pode ser
encarado como uma simples coincidência.
É verdade que se achavam, e havia quem os achasse, como os verdadeiros
representantes da nação, mais legítimos do que os próprios ministros, deputados e pares
do reino, mas estes “africanistas” de caserna representavam uma minoria dentro da
cadeia hierárquica. Na prática, podiam alterar tudo, mas não se mexeram38
. Optaram por
se isolar num grupo à parte dentro da corporação e esperaram que o poder político
reconhecesse o seu génio. Acomodaram-se apesar de se acharem diferentes dos outros
camaradas de armas. Julgando-se mais capazes e imbuídos de um espírito que não
encontravam em mais nenhum lado, pensavam que estariam destinados a grandes feitos.
Alguns acabariam por o conseguir, mas apenas mais tarde. No imediato, passaram a
alimentar uma nostalgia pelos tempos passados nas matas e nos sertões africanos.
37
TELO 2003:356. 38
VALENTE 2006:43-51.
22
Quando a Monarquia caiu, em Outubro de 1910, ninguém se dispôs a lutar pelo regime.
Só alguns anos depois o fariam, embora sem sucesso.
Em jeito de síntese, a glorificação da chamada “geração de 1895” através das
promoções, condecorações, recepções, nomeações, tours no país e no estrangeiro deu
lugar à construção de uma verdadeira liturgia secular que embalou o reino de forma
decisiva no processo de Empire-building. Toda esta dinâmica viria a acarretar
consequências para sociedades e territórios que se tornariam colónias e, mais
recentemente, países dotados de uma consciência nacional própria.
Quando terminou a Conferência de Berlim, em Fevereiro de 1885, o Estado
português exercia a sua soberania sobre um “Império” espalhado por três continentes.
Tratava-se, todavia, de um domínio mais virtual do que real. Em África, onde as elites
nacionais depositavam as maiores esperança na construção de uma realidade política e
económica que, finalmente, substituísse a perda do Brasil ocorrida em 1822-1825, as
autoridades europeias controlavam postos dispersos ao longo dos rios da Guiné, alguns
centros “urbanos” em Angola, de que Luanda e Benguela constituíam raros exemplos, a
costa sul de Moçambique nos arredores de Lourenço Marques e pequenos troços do rio
Zambeze. Os referidos territórios tinham um valor simbólico, mas reduzido peso
económico e político no contexto nacional.
Mal soou o tiro de partida da chamada “corrida a África”, à entrada do último
quartel do século XIX, estas regiões, especialmente Moçambique, começaram a
despertar o interesse das grandes potências coloniais. A pressão internacional para
ocupar, povoar e desenvolver as províncias ultramarinas sob administração portuguesa,
exercida, sobretudo, pelos governos britânico e alemão, mas, igualmente, por agentes
individuais ou empresariais como Cecil Rhodes e a sua Bristish South African
Company, apenas seria parcialmente responsável pelo envolvimento português num
processo de construção da identidade imperial, que se veio a aprofundar durante o
século XX. Como resultado da alteração do paradigma ultramarino, em apenas quinze
anos Portugal, tal como outros países europeus, viu as suas fronteiras africanas serem
estabelecidas e reconhecidas internacionalmente, lançando-se o país num esforço de
ocupação militar efectiva de regiões, onde até então o reconhecimento da sua soberania
era pouco mais do que nominal ou inexistente.
Não obstante esta influência do factor externo, a viragem portuguesa para o
“continente negro”, iniciada nos finais da década de 1870, surgiu também como uma
resposta a causas domésticas, onde as representações jogaram um papel decisivo. Para
23
além das razões ideológicas, centradas na “invenção” de um nacionalismo radical de
cariz colonial desenvolvido desde os finais dos anos de 1870, que seria responsável por
boa parte da agitação que o país viveu nos anos seguintes, foi o tom mobilizador do
discurso político, a intervenção entusiasmada da imprensa e a resposta participativa da
sociedade civil em relação aos sucessos militares obtidos em Moçambique entre 1895 e
1898, os primeiros obtidos no contexto colonial em muitos anos, que centraram a
atenção do público em geral sobre as questões africanas.
As representações criadas e ampliadas em torno das vitórias, sobretudo do
Exército, ajudaram o poder político a legitimar o investimento nas tropas e
mergulharam o reino num estado de entusiasmo a propósito do domínio ultramarino,
estando na origem da fabricação de uma geração de heróis guerreiros como não havia
memória na história recente do país.
As campanhas da África Oriental tornaram-se, assim, no ponto de partida de um
esforço de conquista alargado à Índia, Angola, Guiné e a Timor nos anos seguintes. As
possessões de Além-Mar perdiam o seu carácter virtual para se transformarem numa
realidade concreta. Os resultados operacionais desta primeira guerra colonial dos
tempos modernos viriam a estar na base da criação do império português que
sobreviveu até 1974-1975. Como resultado desta alteração de paradigma, o ultramar iria
tornar-se a chave da política nacional nos três primeiros quartéis do século XX.
Bibliografia
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