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PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1):95-137, 2007 95 Causalidade, Contingência, Complexidade: o Futuro do Conceito de Risco NAOMAR DE ALMEIDA-FILHO DENISE COUTINHO RESUMO Defendemos a tese de que, na atual fase de maturação do campo epidemiológico, uma reavaliação do conceito de risco é necessária. Inicialmente, discutimos os fundamentos das categorias causalidade e contingência a partir da obra de dois filósofos, Aristóteles e Pascal. Em segundo lugar, recuperando algumas reflexões anteriores sobre as bases lógicas do conceito de risco, discutimos criticamente sua adequação e eficácia explicativa frente ao objeto saúde- doença. Em terceiro lugar, apresentamos brevemente categorias e conceitos fundantes do paradigma da complexidade, capazes de dar conta dos fenômenos da emergência, não-linearidade e borrosidade relacionados aos novos objetos complexos e mutantes da saúde. Concluímos com alguns comentários e reflexões ainda preliminares sobre fundamentos, perspectivas e conseqüências da aplicação da modalidade “contingência” como alternativa à noção de determinação no campo da saúde, a fim de visualizar o futuro do conceito de risco para além da área temática (científica e tecnológica) da Epidemiologia contemporânea. Palavras-chave: Risco; causalidade; contingência; complexidade; Aristóteles. Recebido em: 03/03/2007. Aprovado em: 15/03/2007.

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Castiel discute qual será o futuro do conceito de risco na sociedade (pós) moderna

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  • Causalidade, Contingncia, Complexidade: o Futuro do Conceito de Risco

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    Causalidade, Contingncia, Complexidade:o Futuro do Conceito de Risco

    NAOMAR DE ALMEIDA-FILHO

    DENISE COUTINHO

    RESUMO

    Defendemos a tese de que, na atual fase de maturao do campo epidemiolgico,

    uma reavaliao do conceito de risco necessria. Inicialmente, discutimos

    os fundamentos das categorias causalidade e contingncia a partir da obra de

    dois filsofos, Aristteles e Pascal. Em segundo lugar, recuperando algumas

    reflexes anteriores sobre as bases lgicas do conceito de risco, discutimos

    criticamente sua adequao e eficcia explicativa frente ao objeto sade-

    doena. Em terceiro lugar, apresentamos brevemente categorias e conceitos

    fundantes do paradigma da complexidade, capazes de dar conta dos fenmenos

    da emergncia, no-linearidade e borrosidade relacionados aos novos objetos

    complexos e mutantes da sade. Conclumos com alguns comentrios e

    reflexes ainda preliminares sobre fundamentos, perspectivas e conseqncias

    da aplicao da modalidade contingncia como alternativa noo de

    determinao no campo da sade, a fim de visualizar o futuro do conceito

    de risco para alm da rea temtica (cientfica e tecnolgica) da Epidemiologia

    contempornea.

    Palavras-chave: Risco; causalidade; contingncia; complexidade; Aristteles.

    Recebido em: 03/03/2007.

    Aprovado em: 15/03/2007.

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    Introduo

    A Epidemiologia, designada inicialmente como um mtodo (desdeMACMAHON; PUGH, 1970), hoje pode ser entendida como uma cincia quese baseia num tipo peculiar de aplicao setorial da lgica formal. Trata-se deum modo de raciocinar caracterizado por uma ontologia particular - baseadanas categorias de conjunto e de elementos - e por uma lgica operativapadronizada - que obedece a regras especficas de validao e de inferncia -, odeterminismo causalista. Nessa perspectiva, a cincia adere fortemente a umaepistemologia empiricista convencional.

    Com o advento da chamada Epidemiologia moderna (ROTHMAN;GREENLAND, 1998), na dcada de 1980, a formalizao do conceito de riscocomo probabilidade condicional de ocorrncia de eventos de sade-doenapermitiu rigor terico e capacidade preditiva nos campos de planificao e gestoem sade. O conceito de risco havia sido originalmente proposto no campo daEpidemiologia como tradutor parcial de proposies causalistas (ou seja, riscocomo sucedneo da noo de etiologia, em um referencial quasi-probabilstico).Apesar disso, em paralelo, o impacto de sua aplicao como operador prticode atos diagnsticos e teraputicos nos campos clnicos tem sido grandementereduzido. Atualmente superada por recentes demandas trazidas pelos avanosdo conhecimento sobre processos patolgicos, a abordagem desta formapeculiar de representao dos nexos entre processos e eventos relativos sade-doena na sociedade moderna necessita de um reexame crtico dassuas bases lgicas e histricas.

    Neste ensaio defendemos a tese de que, na atual fase de maturao docampo epidemiolgico, uma reavaliao do conceito de risco necessria.Inicialmente, discutimos os fundamentos das categorias causalidade econtingncia a partir da obra de dois filsofos, Aristteles e Pascal. Em segundolugar, recuperando algumas reflexes anteriores sobre as bases lgicas doconceito de risco (ALMEIDA FILHO, 1992), revisamos criticamente suaadequao e eficcia explicativa frente ao objeto sade-doena. Em terceirolugar, apresentamos brevemente categorias e conceitos fundantes do paradigmada complexidade, capazes de dar conta dos fenmenos da emergncia, no-linearidade e borrosidade relacionados aos novos objetos complexos e mutantesda sade. Conclumos com alguns comentrios e reflexes ainda preliminaressobre fundamentos, perspectivas e conseqncias da aplicao da modalidadecontingncia como alternativa noo de determinao no campo da sade,

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    a fim de visualizar o futuro do conceito de risco para alm da rea temtica(cientfica e tecnolgica) da Epidemiologia contempornea.

    Fundamentos lgicos da causalidade e da contingncia

    Aristteles (384-322 a.C.) trabalha com dois gneros de filosofia: afilosofia prtica, que compreende a tica e a Poltica, e a filosofia terica, quecontm a Fsica e a Lgica, sendo esta ltima o meio de compreender todas asoutras. A Lgica tomada por Aristteles como arte cuja finalidade seriadistinguir a diferena entre o verossmil e o verdadeiro. Atento inveno,fornece os tpicos e o mtodo como se fossem multido de proposies segundoas quais se pudessem achar argumentos provveis - e no possveis - para asquestes argidas (ARISTTELES, 1985, p. 34). Todas essas questes sotratadas no Organon (ibid.), conjunto de seis livros sobre lgica, onde trsregistros do conhecimento humano so estudados: a Retrica, a Gramtica e aAnaltica.

    Geraes de exegetas e analistas encontraram quatro teorias (outpicos) sistematizadas a partir do pensamento aristotlico: (1) teoria do Real;(2) teoria do Ser; (3) teoria dos Eventos; (4) teoria das Causas. A teoriaaristotlica do Real repousa sobre duas categorias principais: Universal eParticular. A teoria do Ser compe-se de trs proposies sobre a existnciados entes na linguagem e no mundo que, posteriormente, foram reunidas comoprincpios da lgica formal: (i) princpio da identidade (o Ser igual a si prprio:A=A); (ii) princpio da no-contradio (o Ser diferente do que no ele:A # A); (iii) princpio do terceiro excludo (o Ser ou no ; verdadeiro oufalso: A V ou F; A nunca pode ser, ao mesmo tempo, V e F). A teoria dosEventos baseia-se na proposio de quatro categorias que vieram a serconhecidas como os modais de Aristteles: Possvel, Impossvel, Necessrio eContingente. Finalmente, a teoria das Causas, que introduziu uma tipologiabastante conhecida na metodologia cientfica: (i) Causa material; (ii) Causafinal; (iii) Causa formal; (iv) Causa eficiente. A consistncia geral do sistemafilosfico aristotlico impede de se tratar cada uma dessas teorias comocomponentes isolados, requerendo uma articulao entre seus princpios,categorias e proposies.

    Embora o senso comum atribua ao Universal uma vinculao com atotalidade, Aristteles no o conceitua dessa maneira. Para ele, universal refere-

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    se a vrios: Universal o que, sendo algo de uno, apto por sua naturezapara existir em vrios [sujeitos] (1985, p. 171). O particular designa qualqueruno que se pode subordinar a algum universal, ou aquilo que no pode serafirmado de vrios (ibid., p. 128). Aristteles ainda define que um sujeito podeser tomado como universal, o homem, e as proposies a este sujeito atribudasno serem universais. Assim, o homem branco no uma proposiouniversal, ainda que se possa tomar o sujeito como tal. Paradoxalmente, nemmesmo quando o termo todo est indicado numa proposio h garantia deuniversalidade, pois no verdadeira nenhuma afirmao em que o universal atribudo ao predicado universal, como ocorre na proposio todo o homem todo animal (p. 128).

    O valor de verdade uma atribuio e no est dado para nenhumaproposio. Nas proposies particulares (algum, ao menos um), h exemplosde opostos que podem ser simultaneamente verdadeiros: algum homem branco e algum homem no branco, porque: das proposies que,referentes ao universal, no so enunciadas universalmente, nunca se podedizer que uma verdadeira e outra falsa (ARISTTELES, 1985, p. 131).Mesmo para proposies unas e singulares, Aristteles adverte: caso um nometenha mais de um significado (seja complexo, segundo ele), e caso seja referidoa duas coisas, ento, tanto a afirmao quanto a negao deixam de ser unas.Em conseqncia, duas contraditrias no so necessariamente verdadeira,uma, e falsa, outra. Aristteles divide as proposies em afirmativa (catfaseou o que declara algo acerca de outro) e negativa (apfase ou declaraode que algo est separado de outro). Estas formulaes so importantes porquepermitem precisar as categorias de Universal e Particular em termos queinteressam aos desdobramentos da lgica proposicional.

    H quatro proposies derivadas da teoria aristotlica do Ser: (1)Universal afirmativa: todo S P (A); (2) Universal negativa: nenhum S P (E);(3) Particular afirmativa: algum S P (I); (4) Particular negativa: algum S no P (O). Aqui, A e E no podem ser verdadeiras conjuntamente, embora possamser ambas falsas. Por outro lado, I e O podem ser ambas verdadeiras, masnunca ambas falsas. Segundo Aristteles, no se pode predicar do sujeito, deum modo geral, como universal, aquilo que em sua natureza nico. Umasubstncia tem como caracterstica, na lgica aristotlica, admitir qualidadescontrrias mediante uma alterao em si mesma. Assim, uma proposioreferente a uma substncia pode receber os contrrios e permanecer a mesma.Aristteles distingue ento quatro modos de oposio: oposio de relativos ou

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    correlativos (p. ex., dobro/metade); oposio de contrrios (mal/bem); oposioprivao-possesso (cegueira/viso); e da afirmao negao (estar sentado/no estar sentado).

    Na lgica clssica, modalidade ou categoria modal a caracterstica,de proposies ou juzos, que determina o modo pelo qual se atribui um predicadoa um sujeito (JAPIASS; MARCONDES, 1990). Aristteles introduz nafilosofia as seguintes categorias modais: necessrio, contingente, possvel eimpossvel. Segundo a tradio aristotlica e medieval, as modalidades podemser entendidas conforme o esquema: possibilidade: possvel que S seja P;impossibilidade: impossvel que S seja P; contingncia: contingenteque S seja P; necessidade: necessrio que S seja P. A proposionecessria sempre verdadeira, em qualquer circunstncia; a possvel podeser verdadeira ou falsa; a impossvel sempre falsa. contingncia Aristtelesno atribuir valores, ou melhor, ele sustenta que h proposies para as quaisse pode atribuir valor de verdadeiro e falso ao mesmo sujeito. Trata-se dacategoria dos acidentes. Ao acolher o acidental - contingente - como uma dasmodalidades do ser, Aristteles avana uma lgica quaternria que incluiproposies indecidveis quanto aos valores verdadeiro e falso.

    Antes de chegar a uma caracterizao mais especfica da contingnciacomo estruturada pela lgica aristotlica, vale uma passagem pela etimologia(REY, 1993). O latim imperial registra o uso de contingens, particpio presentede contingere, que significa tocar, atingir. Da resvalou para acontecer poracaso. O adjetivo surge com o sentido de que acontece, mas nonecessariamente, desenvolvendo-se em filosofia como o no-essencial. Emmatemtica, a expresso ngulo de contingncia recupera a noo primeiradaquilo que atinge ou toca. O verbo acontecer, assim como acontecimento,provm do termo latino contigescere, que passa ao espanhol antigo contescere chega ao portugus acontecer. Vrias so as noes contidas no termo,dentre elas a de verdade (aconteceu); de algo que se tornou realidade; deespanto (o acontecido); de modificao que afeta algo ou algum; de sucesso;de peripcia; de acidente.

    O termo acidente ope-se ao termo essncia. No Organon, o temada essncia tem grande importncia, aparecendo desde as primeiras linhas.Trata-se, porm, de uma concepo cuja nuana deve ser ressaltada. Aristtelesprope uma formulao para certas proposies singulares. Trata-se daenunciao contingente: a que, no sendo necessria, pode, todavia, ser

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    verdadeira, ou a que pode ser, quer verdadeira, quer falsa (ibid., p. 171).Nessa formulao, o contingente vincula-se ao possvel quando no sendonecessria, pode ser verdadeira. J na segunda acepo - a que pode serverdadeira e falsa - vemos caracterizar-se uma nova modalidade, um atributoque pode ser verdadeiro e falso sem que o sujeito da proposio caia. Umacaracterstica que Aristteles atribui ao contingente a indeterminao comrelao ao presente e ao futuro; dito de outro modo, o contingente caracteriza-se por ser indecidvel quanto ao presente e ao futuro, mas no quanto ao passado.A modalidade contingncia se emprega para eventos, acontecimentos - portanto,para ocorrncias sobre as quais podemos apenas constatar ou analisar os efeitos.

    Apesar de pretender discernir cada um dos quatro modais, Aristtelesno deixa de correlacion-los. Ele afirma: o que no pode ser impossvel queseja, e o que no pode ser, necessariamente (ARISTTELES, 1985, p.136). Esta afirmao tem uma conseqncia imediata: absurdo pensar queno h lugar para a contingncia e que, pelo contrrio, todas as coisas ocorrempor efeito da necessidade, porque, se assim fosse, haveria sempre a certeza deque adotada uma dada conduta, o resultado estaria determinado, e que se noadotssemos essa conduta, o resultado no se atingiria (ibid.). O resultado deuma ao real, mas isto s pode ser constatado depois, ainda que se o preveja,como ironiza Aristteles, com dez mil anos de antecedncia. Com o foco noreal, Aristteles afirma: Mas que amanh haja ou no haja uma batalha naval,eis o que necessrio. Deste modo, ele aproxima o necessrio do possvel,tomando o conhecimento como estreitamente ligado categoria de causa.Assim, uma apreenso lgica dedutiva do mundo seria condio exclusiva parao conhecimento no regime da necessidade. Como vimos, em Aristteles, trsso os princpios que sustentam a lgica dedutiva: o princpio de identidade, oprincpio da no-contradio, e o princpio do terceiro excludo. Ocorre que, aotrazer a categoria da contingncia, ou do acidental, ele praticamente desmontatais princpios. Eis sua definio mais desconcertante para acidente: aquiloque est presente e ausente sem corrupo do sujeito1 (p. 111). De acordocom esta lgica, ao afirmar uma particular e sua oposta - por exemplo, algumanimal justo e algum animal no justo - possvel dizer que elas podemser simultaneamente verdadeiras ou simultaneamente falsas.

    Aristteles busca entender como se comportam as afirmaes enegaes referidas aos modais. O curioso que, ali, ele se refere s seguintescategorias: o possvel e o no-possvel, o contingente e o no-contingente, oimpossvel e o necessrio. No temos mais dois pares de opostos, mas trs,

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    onde evidente a relao de contrrios entre impossvel e necessrio, cabendos demais to somente suas prprias negaes. deste modo que a enunciao possvel tem como negao duas possibilidades: ou possvel que no ouno possvel. Nesta lgica, fica claro que o que em potncia nem sempreser em ato, de sorte que a negao tambm lhe pertence, porque o que capaz de passear tambm capaz de no passear (ibid., p. 153). difcilseparar o contingente do possvel; Aristteles considera-os termos adjuntos. Seas proposies no so contraditrias entre si, pode-se dizer de uma coisa queela e no . Assim, possvel que seja no contradiz possvel que noseja. E, por outro lado, da proposio possvel ser segue-se contingenteser, proposio que recproca com a primeira (ibid., p. 156). Da, podemosconcluir que estas proposies so eqipolentes e se possvel, contingente(ibid., p. 173), diz ele.

    Sobre a relao de oposio entre impossvel e necessrio, Aristtelesleva-nos a pensar que estes opostos se tocam, pois, segundo seu argumento,predicar a impossibilidade implica - ou o mesmo que - afirmar a necessidade.Este raciocnio no pode ser estendido na relao do possvel com o necessrio,Porque, quando necessrio que uma coisa seja, tambm possvel que elaseja, caso contrrio teramos a negao implcita (ibid., p. 158). Ora, dizer possvel tem como correspondente no impossvel; se no impossvel,segue-se que no necessrio. Prossegue Aristteles: Uma coisa pode sere todavia no ser, mas se necessrio que seja, ela no pode simultaneamenteser e no ser (ibid., p. 159). Ser e todavia no ser a definio dacontingncia, do que acontece por acidente: aquilo que est presente e ausentesem corrupo do sujeito.

    Aristteles prope uma questo que interessa ao tema deste ensaio:uma afirmao teria seu contrrio na negao ou em outra afirmao? Pararesponder questo, bom saber que ele est investigando os juzos. A partirda forma lgica bsica S P (juzo asserttico), podem-se reunir duas oumais idias numa unidade, o uno ao qual Aristteles se refere, quase sempre oqualificando de acidental ou no-essencial. Assim, se temos homem e justo,acidentalmente podemos dizer o homem justo, bem como sua negao. Detodo modo, a lgica proposicional obedece s leis da linguagem. Dizer o homem justo significa atribuir-lhe uma qualidade afirmativa; do mesmo modo, dizero homem injusto tambm atribuir-lhe uma qualidade afirmativa.

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    Destacar a modalidade contingncia dentre as categorias lgicasdetermina uma viso de mundo no-dualista, que nos parece ser a de Aristtelesem contraposio quela de seu mestre, Plato. Trata-se de uma lgica ondeesto em jogo anlises combinatrias e no apenas classificaes. Mais do queisso, impe-se a questo do desejo, pois, de fato, a subjetividade dos sujeitosque se encontra interrogada a cada ao poltica que, por sua vez, determinaruma chamada s conseqncias, ainda que indeterminadas a priori. Ora, se oque est em jogo so combinaes, mudanas na estrutura da cidade, pode-seobservar, nos escritos de Aristteles, uma clara distino entre posies e papis:homem ou indivduo no so categorias a serem sobrepostas de sujeito, vistoque se os indivduos permanecem num regime poltico que no muda, a posiode cada cidado, por outro lado, se modifica. Sem esta compreenso, a vidasocial seria tomada na esfera natural, onde as mudanas e os ciclos se sucedeme se reproduzem com regularidade. Dizer que a vida humana foge ao regime donatural dizer no prerrogativa do necessrio como primazia do humano, poisainda que se possa advogar a existncia do contingente na natureza, isto denada vale se no houver um reconhecimento significante para retroativamenteproduzi-la de fato, ou seja, integr-la na cadeia simblica de trocas2.

    Usando curiosamente como ilustrao um tema do nosso maior interesse- conceitos de sade-doena - conclui Aristteles (1985, p. 99) que h casosem que no necessrio que um dos opostos seja verdadeiro e o outro falso:por exemplo, sade e doena so contrrios, mas nem um nem outro verdadeiro nem falso. Dizer o homem sadio significa atribuir-lhe umaqualidade afirmativa; do mesmo modo, dizer o homem doente tambm atribuir-lhe uma qualidade afirmativa. Mas ser que o mesmo afirmar doente e no sadio? o que Aristteles quer saber, quando pergunta:qual o juzo verdadeiro contrrio ao juzo falso: o juzo da negao, ou esseque enuncia afirmativamente o contrrio? Ser que h um nico juzo contrrioou pode haver pluralidade de contrrios? (ibid., p. 163). Para Aristteles,somente so contrrios os juzos em que h erro. Aqui, erro definidocomparativamente: como uma transio. Errar transitar de um extremo aoutro, diz Aristteles. Sendo assim, o bom ao mesmo tempo bom e no mau;a primeira destas qualidades pertence-lhe por essncia, e a segunda, por acidente,pois s por acidente o bom mau (ibid., p. 164).

    A partir de Aristteles, a filosofia vai sendo construda, alimentando-see destacando-se, pouco a pouco, do pensamento religioso. Michel Foucaultdestaca, em Les mots et les choses (1966), que a partir do estoicismo, o sistema

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    de signos torna-se ternrio, estando em jogo o significante, o significado e aconjuntura. Assinala que no Renascimento, ainda que haja a mesma estrutura,sua organizao mais complexa, pois estes trs elementos, diz ele, se resolvemem uma figura nica. O sculo XVII vai operar, segundo Foucault, uma reduoe a disposio dos signos se tornar binria, pois ser definida, com Port-Royal, pela ligao de um significante e um significado (FOUCAULT, 1966,p. 57). No esqueamos que se encontra a o marco de constituio dopensamento racionalista que promoveu a epistemologia cartesiana baseada nadualidade mente-corpo. No obstante, contra o pensamento dualista edeterminista, ainda nesse sculo constituiu-se outra vertente filosfica que nochega a vingar como projeto hegemnico, mas que pode ser til para pensarmosa constituio do campo epidemiolgico hoje. Trata-se da contribuio de BlaisePascal (1623-1662).

    Pascal foi contemporneo de Ren Descartes, com quem polemizava.Ambos pretendiam aliar a Verdade cientfica Verdade crist. Porm, enquantoDescartes respondia aos anseios organizadores do mundo moderno racional,Pascal apostava num mundo cuja natureza comportasse vazio e acaso (CHAU,1999). De acordo com Chevalley, sua escritura pontual, seu estilo dialogal eirnico, juntamente com alguns elementos epistmicos notveis, promovem umaepistemologia anticartesiana (CHEVALLEY, 1995, p. 8).

    A viso pascalina do mundo e das aes humanas no-totalizante:No tireis de vosso aprendizado a concluso de que sabeis tudo, mas sim a deque vos resta infinitamente a saber (PASCAL, 1999, p. 91). Vale a penaressaltar alguns pontos da filosofia de Pascal que podem contribuir para pensarmetodologicamente nosso tema neste ensaio:

    1. a questo do correlato do objeto no mundo ou na representao no relevante;

    2. a racionalidade pode ser pensada como um saber no-universal eno-necessrio;

    3. as verdades so circunscritas s regies nas quais a experincia foiproduzida;

    4. os objetos no se apresentam naturalmente: so relacionais,construdos.

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    Chevalley (1995) aponta as seguintes linhas de pensamentoanticartesiano em Pascal: o objeto matemtico ou fsico no uma idealizaodo objeto natural do qual se revelaria uma essncia, mas pensado em termosde relao (rapport); a Natureza no obedece a leis universais e necessrias,sendo um processo sujeito a variaes e submetido a flutuaes; o conhecimento um saber que no seguro nem neutro, tampouco independente de seu objeto,mas constitui-se como incompleto e submetido s prprias condies deenunciao. Assim, o conhecimento adquirido singular, como devem ser osmtodos, no havendo, portanto, instrumentos neutros nem objetos descoladosdos sujeitos que o produzem. Foi pensando desta maneira que Pascal inventouo clculo do acaso, raiz da teoria das probabilidades, substrato do conceitoepidemiolgico de risco.

    Lacan revela-se intrigado com o fato de que tenhamos atravessadosculos sem saber que uma lgica pode prescindir do princpio da contradio.A esta pontuao de Lacan, acrescentamos que nem mesmo Foucault, magistralhistoriador das idias, anotou a presena da lgica modal aristotlica anterioraos esticos. Trata-se, como vimos, de uma lgica quaternria, tanto em suaapresentao relativa aos eventos (necessrio, possvel, impossvel e contingente)quanto na sua apresentao causal (material, final, eficiente e formal). Ao retomara estrutura quaternria modal e examinar proposies que hoje designamoscomo indecidveis, Lacan reconhece e destaca as aberturas promovidas porAristteles e Pascal. Seu grande interesse na lgica aristotlica encontra-se nautilizao de proposies gramaticais esvaziadas de sentido, tornando-as ditosque se manipulam (LACAN, Sem. XXI, aula de 12/02/1974, indito). Destamaneira, Lacan retomar os quatro modais, mais de dois mil anos depois, paraextrair deles todo o seu rigor lgico. Em vrias oportunidades, Lacan define aLgica como a cincia do Real. Para ele, a lgica introduzida por Aristtelesfaz da verdade um valor vazio [...] uma maneira de tratar a verdade que notem nenhum tipo de relao com o que chamamos comumente de verdade(ibid., aula de 9/04/1974, indito).

    A recuperao da lgica aristotlica operada por Lacan deriva de doisprincpios que ele julga importante assinalar: no h universo de discurso nemtampouco um significante que possa dar conta do Outro. Essa formalizaono incide somente sobre a psicanlise, mas atinge diretamente a epistemologiadas cincias. Milner (1996) analisa o argumento de Popper, de que as proposiescientficas devem ser refutveis. S que a refutabilidade de uma proposiodepende de um ponto: se sua negao no for logicamente contraditria ou

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    materialmente invalidada por uma observao [...] seu referente deve poder -lgica ou materialmente - ser outro que . Mas isso a contingncia (ibid., p.50). Conclui, ento, que somente uma proposio contingente refutvel: sexiste, portanto, cincia do contingente.

    Badiou (1993) tambm ressalta a importncia do conceito decontingncia, afirmando que h casos em que vo interrogar sobre a veracidadedo fato/feito. Quando a contingncia ou o impossvel esto em jogo, o resultado indecidvel, por vrios motivos. Em primeiro lugar, a verdade tem estrutura defico e se constitui por uma abolio da cena, isto , na sua ausncia. Outramaneira de dizer que o smbolo mata a coisa. No h a verdade toda, assimcomo no h transcendncia com relao verdade, pois ela depende da situaoem que ocorre. A verdade, sob a forma de um dizer, resiste ao princpio da no-contradio, pelo simples fato de operar com a linguagem, sistema no qual osigno nunca corresponde biunivocamente ao seu referente.

    Atualmente, a lgica aristotlica, tambm conhecida como lgica clssica, tida como superada pela lgica paraconsistente, desenvolvida por Newton daCosta (1980), ou pela lgica do no-todo, nomeada por Lacan. Essesdesdobramentos encontram seus fundamentos nos famosos Teoremas de Gdel,formulados entre 1930 e 1931, em trs artigos: Alguns resultados matemticossobre completude e consistncia; Sobre as proposies indecidveis dosPrincipia mathematica e sistemas correlatos I e Sobre a completude econsistncia. possvel sustentar que os Teoremas de Gdel provm do sistemalgico aristotlico. O primeiro teorema (Em qualquer teoria axiomatizvel,coerente e capaz de formalizar a aritmtica, pode-se construir um enunciadomatemtico que no pode ser provado nem refutado nesta teoria) afirma queuma teoria proveniente da matemtica necessariamente incompleta, poisexistem enunciados que no so demonstrveis e cuja negao tampouco demonstrvel. Tais enunciados so chamados indecidveis. O segundo teorema[Se T uma teoria coerente que satisfaz hipteses anlogas, a coerncia de T,que pode ser expressa na teoria T, no demonstrvel em T] diz que a coernciada teoria no pode ser demonstrada internamente; necessrio um discursoexterior para validar um campo do conhecimento.

    Com esses teoremas, pode-se dizer que, no mbito de cinciasfundamentais como as matemticas (e em suas aplicaes, como aEpidemiologia) Gdel liga, de maneira inesperada e no trivial, a consistncia incompletude. Apesar disso, Gdel postula que consistncia no sinnimo de

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    completude, pois h proposies matemticas sobre as quais no se pode deduzirse so verdadeiras ou falsas. Rejeita assim o princpio do terceiro excludo,imposto pela Lgica Bivalente (LIMA, 1993; HEIJENOORT, 1967).

    Fundamentos lgicos dos conceitos de causa e risco

    O conceito epidemiolgico de risco sustenta-se como aplicao da lgicaindutiva e da lgica dedutiva, respectivamente, a problemas particulares e aproblemas gerais de determinao de fenmenos de sade-doena. A lgicaindutiva, formalizada por Plato, parte do particular para o universal, a partir derepeties - ou tentativas de reproduo - de eventos em sua regularidade. Osensinamentos platnicos perseguem, pela observao de certos fatos, a adooou rejeio de padres de conduta a serem por todos seguidos. Embora ainduo, em sua leitura contempornea, seja ancorada na teoria probabilstica,h uma gama de problemas no solucionados, como a generalizao dosresultados e sua pretenso totalizao (JAPIASSU; MARCONDES, 1990).

    Pela vertente de uma histria da lgica, seria interessante examinardois momentos fundantes do determinismo epidemiolgico. O primeiro, localizadoem algum momento precoce da emergncia da modernidade, marca aconstituio de um discurso iluminado sobre os conceitos de Estado e depopulao (e sua sade, ou suas doenas). Alm disso, buscava-se odesenvolvimento de tecnologias para contagem de indivduos (como se faziacom as estrelas) enquanto cidados de um Estado - e da a disciplina chamadaEstat-stica. A principal conseqncia de tais movimentos no campo de operaoda interpretao cientfica ter sido a inveno pascalina do acaso enquantocategoria epistemolgica, viabilizada pelo conceito de probabilidade (ELSTER,1984; HACKING, 1990). O segundo momento pode ser identificado entre osanos 1920 e 1950, no processo de evoluo da cincia e tcnica epidemiolgicas,tal como descrito por Susser (1987) e Ayres (1997), que resultou na construoda noo de risco como conceito fundamental da cincia epidemiolgica.

    Neste momento, preciso questionar a prpria natureza dos nexosconstrudos pelo conhecimento epidemiolgico, comumente designados pelortulo genrico de causa. A insistncia dos poucos tericos da cinciaepidemiolgica em debater a questo da causalidade reafirma a inteno deuma traduo literal de associaes pseudoprobabilsticas de risco como sefossem legitimamente relaes de produo de efeitos, ou simplesmente causas.

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    Esta tentativa de apresentar correlaes entre variveis como nexos causaisentre fenmenos concretos, que termina por tomar a causa como um processonatural (e, por conseguinte, anistrico), aparentemente simplria e fcil derefutar. Porm, rapidamente constatamos que no bem assim, j que talabordagem representa a aplicao de uma teoria de causalidade baseada nosenso comum tpico da cultura ocidental na modernidade tardia (BECK, 1996).

    Para abordar esse problema, analisemos o fundamento lgico-epistemolgico deste modo de raciocinar, destacando quais so as operaesmetafricas primevas que o viabilizam. O termo pressuposto metafrico refere-se a figuras (ou elementos imaginrios) que em princpio se tem necessariamenteque imaginar a fim de operar (e enxergar, compreender, seguir, interpretar etc.)no interior do referencial de pensamento. Os pressupostos metafricos da lgicacausal so basicamente trs: as metforas de evento, nexo e fluxo.

    Em primeiro lugar, a metfora de evento carrega o sentido de algodiscreto, no sentido de isolado, distinto, destacado, fragmento de uma realidadeampla e complexa (CASTORIADIS, 1992). O mundo (real ou virtual) metaforicamente traduzido como universo de entidades individuais que podemser potencialmente includas ou excludas de agregados chamados conjuntos.Um evento, para merecer esta designao, deve ser identificado enquanto tal -quer dizer, como diferente do resto das coisas, de todas as outras coisas, do queele no , do que o antecede, do que ele determina (ZOURABICHVILI, 1994).Em uma palavra, deve ser visto como outra coisa. Neste sentido, entretanto,os limites tambm so fabricados, e para se tornar objeto de conhecimento, acoisa-fato-processo-fenmeno ter obrigatoriamente que ser isolada de um todo(ainda) indiferenciado.

    A operao mais fundamental (embora aparentemente bvia) e de fatoindispensvel para se pensar a causalidade consiste na distino entre causa eefeito. Articulando diretamente as teorias aristotlicas do Ser, do Evento e daCausa, preciso que a causa, o evento C (chamemos de antecedente,determinante) seja distinto do restante das coisas, diferente do indiferenciado:C tem de ser diferente de C (no C). Da mesma forma, algum outro eventosignificativo chamado D (de doena, outcome, efeito), deve tambm serdiferente do resto, do todo indiferenciado do qual ele faz parte, do D (no D).Ora, C como parte de D e D como parte de C so diferentes entre si.Portanto, tm sua prpria identidade definida em relao identidade do outro,sendo ambos distintos e no redutveis a [D, C], por suas prprias definies

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    e propriedades enquanto eventos isolados. Em sntese, num modelo causal, Cser sempre diferente de D, e nunca dever ser confundido ou reduzido a D.Concluso: a distino entre causa e efeito construda atravs desta operaoelementar, sem o que tais termos jamais encontrariam sua identidade e seulugar preciso na esfera da referenciao causal.

    Vejamos a segunda metfora, a noo de nexo. Neste sentido, nexoimplica a reunio deste antecedente causa com aquele conseqente efeito (quechamamos aqui D, doena). Matematicamente, a ocorrncia de um dado eventoD em funo da sua causa C definida a partir da seguinte forma geral: D = f(C). No jargo da chamada Epidemiologia moderna, trata-se da funo deocorrncia do risco (MIETTINEN, 1985). O nexo C-D um lao, ligao,relao, conexo, vnculo entre eventos que, anteriormente separados, precisamreunir-se naquela totalidade que se constri como conhecimento cientfico. Paradefinir essa reunio como uma causa, deve-se necessariamente enunci-la dedentro de um referencial extra-cientfico particular, o causalismo.

    No obstante a consagrao do uso, causalismo no o mesmo quecausalidade. Causalismo uma doutrina, um modo de pensar a causa (BUNGE,1969). Neste caso, causa aparece como uma fora, uma Grande Razoorganizadora do mundo, externa aos objetos, para alm e em torno dos eventos,movendo-os. Sobretudo, o nexo causal pensado como uma conexo linear,no-complexa, unvoca e, enquanto tal, dimensionvel. Esta propriedade dedimensionalidade justificaria o uso de operaes de quantificao para descrevera natureza do nexo causal. Trata-se de uma propriedade gentica dos objetos,assim como a sua entidade, ou a sua essencialidade, tanto como sua forma; umatributo destacvel do objeto, e como tal descritvel, vulnervel a processos deinquirio sistemtica. Neste contexto, a investigao cientfica implica oestabelecimento de funes de determinao como descritores da naturezahipoteticamente causal dos nexos enfocados.

    A validao da funo determinante enquanto funo causal no dada imediatamente pela preciso dos procedimentos de medida empregadospara estabelecer tal funo, nem pelo contraste frente aos modelos estatsticosde distribuio terica de eventos usados para descartar explicaes estocsticasde seleo amostral para padres de dados peculiares. De fato, a validade dasproposies de causalidade se constri por meio de um processo heursticocomplexo, de algum modo simplificado pela aplicao de critrios de causalidadea associaes tipo exposio-doena (WEED, 1986). Nesta hermenutica

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    epidemiolgica, os critrios relacionados inferncia so de capital importnciacomo instncia particular do problema fundamental das relaes parte-todocaracterstico do mtodo da induo.

    Samaja (1994) comenta que as relaes entre elementos constituem,portanto, relaes de partes extrapartes, ou melhor, relaes de excluso departes alienadas de uma totalidade, frente distino entre causa e doena.Que os elementos sejam homogneos ou diferentes entre si e que eles sejamcomponentes de um mesmo conjunto ou sistema de conjuntos inteiramentedependente de um processo decisrio do pesquisador (enquanto membro deuma instituio scio-histrica chamada cincia, ou no caso, Epidemiologia), eno resulta determinada primariamente pelos movimentos concretos doselementos no sistema. Em qualquer aproximao terica com um grau mnimode esclarecimento, o todo enfim consegue ser reconhecido como mais do que asoma das partes, porm sua determinao poder ser ainda identificada com asoma das determinaes individuais (de natureza causal) de cada uma daspartes isoladas. A lgica clssica concebe as relaes entre partes e todo comode natureza meramente topolgica (i.e. contedo-continente), porm a relaoentre as partes de mtua excluso (externalidade) e, quando se aplica, dedeterminao causal. O subconjunto de causas, ou variveis independentes(para usar uma terminologia corrente entre os metodlogos), deve ser claramentediferenciado do subconjunto de efeitos, as variveis dependentes, tambm nosentido de evitar transgredir as regras lgicas de conexo. A lgica clssicaconsidera que a determinao circular (ou de causalidade recproca) constituium paradoxo intolervel e, portanto, um efeito no pode em nenhuma hipteseser a causa da sua prpria causa (SAMAJA, 1994).

    No obstante, se conceituarmos os fenmenos da sade-doena-cuidadoenquanto processos sociais [pois o bio do biolgico est submetido ao socialque o nomeia e descreve, portanto bio+lgico], e se tambm aceitarmos opressuposto de que os processos sociais so corporais, histricos, complexos,fragmentados, conflitivos, dependentes e incertos (em uma palavra: contingentes),ento os modelos causais, significando estruturas de determinao efeito-especficas, no sero os dispositivos heursticos mais adequados para areferenciao de tais objetos. verdade que o discurso mdico contemporneoaceita de bom grado a idia de complicao entre os nexos de causa e efeito,assumindo que uma causa pode produzir muitas patologias e que uma mesmadoena pode ter diversas causas. No entanto, no horizonte (ou no nvel doimaginrio cientfico corrente), o modelo explicativo correspondente alimenta-

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    se ainda do sonho do efeito especfico condicional a um dado subconjunto decausas (VINEIS, 1997), a ser descoberto pelo avano da pesquisa cientfica.

    Em outras palavras, no mais se postula a unidade e especificidade dacausa, mas ainda a unidade e a especificidade de uma dada configurao decausas podero dar conta do entendimento positivo da ocorrncia dos fenmenosda sade-doena. Em um sentido preciso, o termo multicausalidade nadainforma em relao natureza potencialmente complexa das conexes, oufunes de risco, em pauta. Tal proposta de multicausalidade, no sentido estritode mltiplas causas para um dado efeito, no capaz de superar o problemafundamental desta lgica: os nexos do processo de determinao das doenasso ainda de natureza causal, enquanto fatores, sempre esperados como efeito-especfico. No caso em pauta, a noo de efeito-especificidade simplesmentetransferida a um nvel hierrquico mais elevado, do nexo de causa nica especificidade de um complexo de causas, como, por exemplo, nas tortas decausalidade de Rothman e Greenland (1998). Nesse sentido, ser uni oumulticausal irrelevante para a classificao de qualquer modelo determinista,dado que o critrio classificatrio efetivo a natureza do nexo que sintetiza arelao de determinao. Como tal, a expresso multicausalidade no indicaqualquer aumento substancial do nvel de complexidade. Multiplicar causas e/ou efeitos em algum modelo explanatrio no resolve as limitaes fundamentaisdo causalismo, e nada nos diz em relao natureza potencialmente rica ediversa das funes de risco (VINEIS, 1997). Tal abordagem, ainda no sentidopreciso, porm restritivo dos manuais epidemiolgicos, refere-se exclusivamente complicao, e no complexidade.

    Falta ainda um elemento para completar a srie metafrica constitutivado objeto epidemiolgico: trata-se da noo de fluxo, aqui no sentido deassimetria, temporalidade, direcionalidade. Tomemos essa metfora comobasicamente uma expresso da representao espacial ou linear do tempo,caracterstica fundamental do modo moderno de pensar, apesar de parte essencialda lgica subjacente mais arcaica e primitiva da nossa cultura (FABIAN, 1983).Uma determinada relao de ordem referida a uma seqncia dada de eventos,tomada como uma abstrao espacial, tem sido designada como temporalidade,integrando-se na lgica conjuntista fundante do pensamento ocidental(CASTORIADIS, 1982).

    O pensamento convencional sobre a temporalidade se estrutura porreferncia a termos de lugar ou espao, o que permite uma identidade ao

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    diferente (CASTORIADIS, 1982). A diferena se verifica no decorrer de umtempo que se retm de momento a momento como uma preservao ideal dopassado - ou seja, como um lugar ontologicamente determinado. Definido comoordem de sucesso, o tempo sempre referencial e assim permite ao idnticodiferenciar-se de si mesmo, pela reteno desse espaamento temporal virtuale metafrico (e, portanto, lingstico). Nessa perspectiva, ser outro no significaa mesma coisa que ser diferente de, e a emergncia do outro resulta de umagnese ontolgica, quer dizer, da criao de algo totalmente novo. Assim que o tempo a verdadeira manifestao do fato de que surge um outroem relao ao que j existe, trazido existncia como novo ou como outro eno simplesmente como conseqncia ou como um exemplar diferente domesmo (ibid., p. 185).

    A teoria aristotlica do Ser, usada como fundamento do determinismoinerente lgica conjuntista-identitria, tem sido tomada como incapaz deincorporar a emergncia, ou ontognese radical, na medida em que, ao atribuircausalidade a cadeias de categorias preexistentes, apenas descobre variaoou diferena no mesmo ser (mas no o outro novo). Dessa maneira, poder-se-ia responsabilizar a apropriao mais comum desta lgica pela paralisia dosmodelos explicativos da realidade, posto que estes operam atravs docongelamento das categorias bsicas do Ser. Ademais, neste modo de pensar, asucesso de eventos histricos considerada como indcio da causalidade, pelomenos em relao s propriedades particulares dos objetos. De fato, o primeiroe mais fundamental dos famosos critrios epidemiolgicos de causalidade deHill, seqncia temporal, constitui um exemplo claro de aplicao destetratamento convencional da temporalidade em um campo cientfico particular.Nesta perspectiva, as categorias so imunes transformao radical, ou criaode alteridade, alm de abertas certeza, por definio assumidas comouniversalmente vlidas alm dos requisitos mnimos da referncia cultural e social.

    Causalidade meramente indica uma propriedade gentica do evento oufenmeno, de certa maneira equivalente temporalidade (ou existncia na ordemmaior das sucesses). Porm a temporalidade scio-histrica implcita de umadada sociedade (bem como sua relao com a temporalidade natural)simultaneamente determina e se sujeita s metforas que constituem asdimenses significativas do seu imaginrio social (CASTORIADIS, 1982).Dentro do referencial conjuntista-identitrio herdado de uma das vertentes dopensamento aristotlico, a causalidade somente pode ser compreendida comofluxo, a partir de uma srie de eventos do passado, resultante de uma

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    temporalidade. Porm o tempo socialmente institudo, dado que cada sociedadeo representa atravs de uma temporalidade explcita (tempo marcado esignificante) e uma temporalidade implcita (alteridade-alterao), que se referemmutuamente e, em ltima medida, buscam se sobrepor a certo senso de temponatural (FABIAN, 1983).

    Aceitar a causalidade ou determinao do objeto de conhecimento comosua propriedade essencial implica necessariamente a adoo da tese metafsicada essncia-substncia, junto com o referencial identitrio da instituio social-histrica do evento, parafraseando uma expresso de Castoriadis (1982, p.200). A ontologia bsica do Ocidente, a noo do que um evento, a cadainstante canalizada atravs desse marco conjuntista-identitrio, que atribui acertas determinaes de figuras ou imagens uma identidade geral que a constituicomo objeto. Como resultado, este simples e inadvertido ato termina por reificaras propriedades da determinao, tomando a causalidade, enfim, uma entidadeautnoma, cimento do universo (RORTY, 1989). Ao perceber determinaese figuras parciais e limitadas como coisas integralmente determinadas esubstantivas, como objetos, o pensamento ocidental obscurece o fato de que agnese ontolgica alteridade-alterao pode no cessar de ocorrer - isto : sernecessria - em todos os momentos, como contingncias ou acidentes.

    A questo do raciocnio preditivo em Epidemiologia revela-se, portanto,dependente de uma definio linear do tempo, na perspectiva de umatemporalidade espacializada, o que exclui deste raciocnio a possibilidade deconsiderar a emergncia radical (alteridade) e, portanto, a contingncia, namedida em que estas necessariamente implicam imprevisibilidade. Alm disso,descobrimos que a noo de predio, mesmo em um contexto de aplicaotcnica como na prtica epidemiolgica, usualmente no empregada no sentidomais restrito de uma verdadeira predio. Baseando-se no conhecimento sobrecasos particulares de uma dada amostra, possvel predizer, para o futuro, aocorrncia no tempo de novos casos em uma dada amostra, como parte deuma variao que, aceitando a metfora do tempo espacializado, poderamoschamar de predio longitudinal. Por outro lado, pode-se predizer apenasmetaforicamente (o que, alis, ocorre com muita freqncia), no como umaantecipao para um tempo futuro que ainda no ter ocorrido, mas como umaafirmativa sobre o desconhecido, sobre o ainda-no-estudado, numa variaoque podemos denominar de predio seccional. Neste caso, rigorosamente,o que chamamos de predio no de fato uma predio mas sim umapseudopredio.

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    Ora, uma predio verdadeira pode ser validada somente por refernciaa uma perspectiva filosfica particular, o assim chamado indutivismo. ParaPopper (1968), no h garantia lgica ou filosfica de que uma dada observaoter poder antecipatrio para certo futuro, ainda no existente concretamente.Todavia, para tentar organizar as aes do presente, de acordo com a teoriadas probabilidades; possvel, desde Pascal, pensar o futuro em termosprobabilsticos, a partir de estratgias tipo apostas, lances ou jogadas. Por outrolado, a pseudopredio, mesmo no sendo de fato uma predio porque noconstitui nenhuma antecipao no tempo, como sabemos, poder, no entanto,ser vlida e legtima, no sentido de que, pelo menos num certo mbito, sobpressupostos explcitos e dentro de uma perspectiva operativa (como porexemplo, no raciocnio da estatstica inferencial), haver uma lgica subjacenteconstituindo um conjunto de leis formais que a fundamentam. Podemosesclarecer esses argumentos com o auxlio da figura 1. aceitvel que algunsachados da amostra A podem ser tomados como base de predio para umestado futuro desta mesma amostra, tal como representado por fA (futuraamostra). Sob o pressuposto de condies inalteradas ou ausncia de variaotemporal no comportamento da amostra, A >>> fA uma predio longitudinalvlida, legtima e verdadeira. Por outro lado, proposies derivadas da amostraA e expandidas sua populao de referncia PR (ou A >>> PR), tal como noprocesso padro de inferncia empregado pelo chamado raciocnioepidemiolgico, podem ser validadas sob pressupostos bastante rgidos,legitimadas pelas tcnicas da estatstica aplicada que, por sua vez, busca suaprpria validade nos princpios da lgica matemtica (OAKES, 1990). Portanto,A >>> PR, apesar de vlida e legtima, ainda uma pseudopredio.

    Figura 1 Formas, trajetrias e limites da inferncia e da predio

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    Pseudopredies de nvel mais elevado como A >>> SP (da amostra Apara a populao geral, ou superpopulao SP) podem ser validadas pela lgicaindutiva, na medida em que se baseiam numa expectativa de regularidadereforada pela replicabilidade da investigao. Isto equivale ao item consistnciados critrios de causalidade de Hill, que dessa maneira se torna igualmentevulnervel crtica geral dirigida ao raciocnio indutivo. Entretanto, A >>> SPno uma proposio legtima em relao aplicao do raciocnio instrumentalda estatstica, porque extrapola o nvel restrito da populao de referncia PR.A extrapolao combinada de uma amostra para uma populao de refernciano futuro (A >>> fPR) constitui uma pseudopredio no-vlida, no-legtima,evidenciando a insustentabilidade dos pressupostos necessrios para suaaceitao - o que certamente inclui o cross-level bias referido por Susser(1994). Paradoxalmente, o tipo de predio mais fraco (da amostra A parauma futura superpopulao fSP) tem sido exatamente o mais empregado naspropostas de aplicao de achados epidemiolgicos para o planejamento desade. No existe suporte - lgico, epistemolgico, estatstico - para talmovimento preditivo hiper-estendido.

    Ainda na figura 1, podemos observar uma clara ilustrao de algumasdas limitaes de um tipo especial de extenso de conhecimento: a predioindividual, que implica uma intrapolao para o nvel individual de resultadosgerados na investigao de populao. De acordo com as premissasestabelecidas acima, trata-se de outro caso de pseudopredio. Com base noque se conhece de uma amostra A, a lgica dedutiva pode validar uma dadaconcluso sobre o sujeito individual (I), formando uma proposio inferencial A>>> (I), sob o pressuposto da homogeneidade interna do conjunto amostral.Ora, proposies do tipo A >>> (I) constituem casos de pseudopredio, vlidossomente se todos os (I)s forem iguais. De um modo menos rigoroso, oinvestigador pode assumir que os atributos dos (I)s seriam equivalentes a umavarivel sintetizadora ou a um valor mdio, em todos os casos homogeneamentedistribudos na amostra.

    Para Samaja (1994), ainda que com freqncia se considere a relaocausal como a nica determinao com fora explicativa, o certo que: i) elano a forma exclusiva (nem sequer uma modalidade privilegiada) dadeterminao explicativa; e ii) no h uma nica interpretao possvel de seucontedo. A causalidade consiste em uma das muitas categorias que o cientistapode empregar para determinar seu objeto de conhecimento, ou seja, estabelecer

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    as proposies que descrevem suas caractersticas e expem os nexos queregulam suas transformaes.

    Nessa perspectiva, em vez de etapa metodolgica necessria para oprocesso interpretativo da cincia, a inferncia causal, em qualquer das suasmodalidades, revela-se como uma pretenso. Trata-se de um pretensiosoesforo de romper as barreiras do tempo e do espao, procurando trazer umailusria perenidade ao conhecimento (provisrio, como todos sabemos) restringidopor estas barreiras. Tempo e espao so definidores da singularidade (o queinclui a identidade conjuntista castoriadiana), mas o que formatos de investigaocomo o da Epidemiologia buscam justamente a generalidade. Por tudo isso,podemos mesmo dizer que a relao tempo-espao constitui uma dascontradies fundamentais da cincia em geral, no que a epidemiologia dapessoa, tempo e lugar (MACMAHON; PUGH, 1970) seria apenas umapattica tentativa de escamotear tal contradio. De fato, todo o processo deproduo de conhecimento como referncia global e universal no passa de umesforo permanente para superar tal paradoxo, certamente com importantessubprodutos manifestados pelo avano da tecnologia.

    Revisitando o conceito epidemiolgico de risco

    O conceito de risco aparece nos textos bsicos do campo epidemiolgicocomo um construto operacional, com uma definio tcnica. Nesse discurso, oconceito de risco privilegia o componente menos importante da reserva semnticaagregada ao risco no discurso social comum, que a dimenso da probabilidade.O sentido secundrio de possibilidade de ocorrncia de eventos se traduz comoa probabilidade de ocorrncia de eventos ou fenmenos ligados sade, integradocomo dimenso fundamental do conceito nesse campo. Apenas subsidiariamente,na sua origem, o conceito de risco na Epidemiologia envolvia a idia de dano,tanto que cada vez mais se fala em risco tambm se referindo a prognsticospositivos.

    Risco em Epidemiologia equivale a efeito, probabilidade de ocorrnciade patologia em uma dada populao, expresso pelo indicador paradigmticode incidncia. Esta formulao se deve a Olin Miettinen, autor de um trabalhocontroverso, audacioso (no seu tempo), denominado Epidemiologia terica.A se encontra a primeira referncia explcita na literatura anglo-saxnica questo do estabelecimento do objeto na disciplina, da seguinte forma: a relao

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    de uma medida da ocorrncia a um determinante, ou uma srie de determinantes, denominada de relao ou funo da ocorrncia. Tais relaes so, em geral,o objeto de investigao da epidemiologia (MIETTINEN, 1985, p. 6). Estaproposta metodologicamente fundada em princpios de rigor e coerncia interna,propiciando uma conexo lgica entre seus princpios e aplicaes imediatas stcnicas de anlise epidemiolgica mais usadas modernamente.

    Contrariamente ao que se encontra semi-implcito nos manuais da rea,o objeto da Epidemiologia no pode ser definido como um objeto probabilstico,porque o que constitui sua validade conceitual no validado por modelos deprobabilidade (VINEIS, 1999). O objeto epidemiolgico, nessa perspectiva, podeser mais bem compreendido enquanto um objeto-resduo. O mtodoepidemiolgico opera avaliando, em primeiro lugar, proposies determinsticas(sob a forma de hipteses causais), em confronto com distribuies tericasestocsticas. Caso tais proposies sejam satisfatoriamente explicadas por ummodelo de distribuio aleatria (em geral chamado de hiptese nula), rejeitar-se- a hiptese do estudo. Em outras palavras, o que no explicado pelaestocasticidade (modelo de distribuio aleatria), o pela determinao atribudacomo epidemiolgica. A Estatstica, nesse sentido, no teria uma funoexplicativa, e sim uma funo de depurao do objeto, o que implica dizerque o objeto epidemiolgico constitui-se em resduo de objetos probabilsticos,operando com um tipo de determinao sui-generis.

    Os modelos operados no paradigma dominante na epidemiologiamoderna so construdos como modelos de risco. O termo risco designadiretamente o objeto-resduo, enquanto probabilidade de adoecer que se desviadas probabilidades puramente aleatrias. A fundamentao da regra de provanesse paradigma seria a inferncia estatstica, utilizada como mtodo auxiliardo teste de hipteses. O emprego mais simples e imediato desse mtodo podeser reconhecido na operao quase banal de se desconhecer como fator derisco aquele que, apesar de expresso por uma medida de associao de grandemagnitude, refere-se a um nvel de significncia estatstica convencionado comoinsatisfatrio (ALMEIDA-FILHO, 1992, p. 101).

    A Estatstica justificaria uma expectativa de generalizao porprocedimentos indutivos (apesar da crtica da epidemiologia popperiana), atravsde um conjunto condicional de probabilidades de adoecer que no seriamexplicveis por modelos aleatrios. Analisando comparativamente os usos dainduo, deve-se distinguir dois tipos de generalizao: a predio propriamente

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    dita, no sentido de uma expectativa de recorrncia no tempo, em relao acasos novos esperados, e a predio equivalente extrapolao para casose eventos no includos na amostra ou populao estudada. Em relao aesta ltima, temos uma inferncia de natureza horizontal, no sentido deamplitude populacional, e uma inferncia vertical, buscando a convergnciapara os casos individuais.

    A proposio de risco como conceito fundamental do campocientfico da Epidemiologia repousa sobre trs pressupostos bsicos: oprimeiro a identidade entre o possvel e o provvel, ou seja, que apossibilidade de um evento pode ser reconhecida na sua probabilidade deocorrncia. Essa probabilidade se constitui como unidimensional, varivele, por extenso, quantificvel. Dessa forma, o conceito de risco traz na raizuma proposta de quantificao dos eventos da sade/doena (MACMAHON;PUGH, 1970; LILIENFELD, 1976).

    O segundo pressuposto consiste na introduo de um princpio dehomogeneidade na natureza da morbidade, ou seja, as particularidades doseventos se retraem perante uma dimenso unificadora, resultando em umaunidade dos elementos de anlise propiciada pelo conceito de risco. As diferenasexpressas na singularidade dos processos concretos sade-doena desaparecemno conceito unidimensional de risco e suas propriedades, permitindoaproximaes e apropriaes prprias do discurso cientfico epidemiolgico(ALMEIDA-FILHO, 2000). As incidncias de distintos eventos de sade oudoena, indicadores dos respectivos riscos, entendidos como probabilidades deocorrncia, so postas em um mesmo registro.

    Em terceiro lugar, destaca-se o pressuposto da recorrncia dos eventosem srie, implicando a expectativa de estabilidade dos padres de ocorrnciaseriada dos fatos epidemiolgicos. Atravs desse pressuposto, pode-se entojustificar a aplicao do conceito de risco em modelos de preveno, propondo-se o conhecimento dos seus determinantes para intervir no seu processo,buscando-se a preveno do risco (MACMAHON; PUGH, 1970).

    Tais pressupostos revelam claramente o carter indutivista daEpidemiologia (BUCK, 1975; SUSSER; SUSSER, 1996), dadas afundamentalidade e a natureza das expectativas generalizadoras embutidas noconceito. Desta forma, o risco produzido no campo da Epidemiologia pelaobservao sistemtica e disciplinada de uma srie de eventos. Enquantoconceito, o risco opera pela via da predio, com base no terceiro pressuposto.

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    Refletindo sobre o carter da predio no discurso epidemiolgico, constatamosbasicamente dois sentidos distintos, que concedem ao conceito de risco aambigidade que prpria do projeto da Epidemiologia enquanto campodiscursivo cientfico.

    Por um lado, possvel a predio no tempo, componente propriamenteantecipatrio do conceito de risco. Quando enunciamos o risco de ocorrnciade uma doena D em uma dada populao, empregamos uma srie sucessivade observaes pregressas (mensuraes tomadas, na melhor das hipteses,em uma srie temporal padronizada), para fazer uma predio do passado (porsuposto conhecido) para o momento presente ou mesmo para o futuro, aplicada populao objeto daquela srie de observaes. Temos aqui o emprego dorisco enquanto preditor temporal, ou preditor verdadeiro.

    Por outro lado, na Epidemiologia observa-se tambm o uso docomponente indutivo do risco para instrumentalizar pseudopredies, oupredies no espao. Neste segundo caso, em vez de uma mesma populaoem momentos distintos no tempo, extrapola-se uma srie finita de observaesem populaes estudadas para populaes no observadas. Isso quer dizerque, a partir do conhecimento da incidncia da doena D em um conjunto depopulaes conhecidas, pretende-se predizer, com o auxlio de testesestatsticos, intervalos de confiana, mdia de incidncias, ou qualquer outroquantificador matemtico, qual ser o risco da doena D na populao emgeral, ou em grupos populacionais no includos na srie observada. Trata-se,nesse caso, do emprego do risco como um pseudopreditor, ou preditor horizontal.

    Essa ambigidade a principal caracterstica do uso epidemiolgico doconceito de risco: um preditor simultaneamente temporal e espacial, ou, maisrigorosamente, como preditor e pseudopreditor. Esse conceito de risco permiteo rompimento dos limites temporais e dos limites geogrficos do processo deproduo do dado, dotando o conhecimento epidemiolgico de propriedadesgeneralizadoras nem sempre legitimadas pela lgica que o consubstancia.

    E onde se situa o risco no discurso epidemiolgico? Para alm e parafora do sujeito, o risco localizado no mbito da populao, produzido ou atribudono mbito dos coletivos humanos. Risco enfim uma propriedade das populaese a sua referncia legtima ser exclusivamente coletiva (HAYES, 1992). Nosprimrdios da constituio da Epidemiologia enquanto cincia, havia uma propostaimplcita de conceituao do risco absoluto - da a derivao da idia derisco relativo (LILIENFELD, 1976). Apesar de equivocadamente tomado

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    PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1):95-137, 2007 119

    como expresso individual em alguns manuais (JENICEK; CLEROUX, 1985),o risco absoluto sempre teve como referncia fundamental o coletivopopulacional.

    A idia de risco relativo permite a construo do conceito derivadofator de risco. Em algumas das aplicaes especficas do discursoepidemiolgico, mais forte em certas subreas pela constituio de um camposemntico prprio, nota-se uma incoerncia no mnimo curiosa. Trata-se datransferncia para o campo epidemiolgico (formao discursiva de basecientfica e, portanto, com pretenses de coerncia, preciso e consistncia),daquela inconsistncia que se observa no discurso social comum de confusode designao entre risco e fator de risco, ou entre efeito e sua causa potencial.Ora, se no campo epidemiolgico, risco predio, fator de risco ser ento umpreditor de uma predio, ou risco de risco. Por meio dessa operao, termina-se atribuindo idia de fator de risco o estatuto do conceito de risco propriamente.Na subrea da Sade Ocupacional, por exemplo, est cada vez mais estabelecidochamar de risco ocupacional fatores de risco presentes no ambiente ou noprocesso de trabalho. Trata-se de interessante exemplo de como umainconsistncia em um dado discurso pode tornar-se incoerncia em outro campodiscursivo.

    A presena de inconsistncias dessa natureza fatal para a produode argumentos no interior de um dado campo cientfico, na medida em que adiferenciao entre conceitos, mesmo estreitamente correlacionados, cumpreuma funo lgica de operar heterogeneidades necessrias. Dessa forma, oprocesso heurstico da investigao fica inviabilizado. Por outro lado, o discurso soberano e est continuamente se instituindo, estabelecendo-se, e soluesdevero aparecer a fim de superar a momentnea falta de coerncia no processode auto e heteroconstituio do campo discursivo. Disso poder resultar afabricao de novos conceitos, at mesmo uma outra (nova) linguagem demaior preciso.

    Aberturas paradigmticas

    Considerando a natureza simblica, complexa e singular da relao entresade-doena-cuidado e processos sociais, propomos que o conceito de Riscoter algum futuro no campo da cincia, caso seja reconstrudo dentro da teoria dacomplexidade, empregando lgicas para-consistentes (borrosidade e contingncia).

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    Alguns tericos da complexidade (RUELLE, 1991; PERCIVAL, 1994)privilegiam os componentes analticos formais que poderiam justificar adenominao genrica de teoria do caos ou da no-linearidade. Lorenz (1993),um dos fundadores dessa perspectiva, sugere que a teoria do caos constitui umsupersistema terico baseado principalmente nos conceitos de no-linearidade,complexidade e fractalidade. Nas suas verses mais aplicadas, tais propostasse apresentam quase como um neo-sistemismo, atualizando e expandindoalgumas posies da teoria dos sistemas gerais, que havia alcanado certainfluncia no panorama cientfico dos anos 1950 e 60 (VON BERTALANFFY,1962). Por esse motivo, a terminologia teoria dos sistemas dinmicos temsido empregada com certa freqncia para designar os modelos complexosgerados no contexto de propostas de um paradigma cientfico alternativo(ATLAN, 1981; PRIGOGINE; STENGERS, 1986).

    No campo da Sade Coletiva, vrios autores tm defendido o empregode modelos de complexidade em geral para abordar diferentes questes depesquisa: Attinger (1985) j propunha a anlise de polticas de sade a partir demodelos sistmicos dinmicos, desde uma perspectiva terica da complexidade,capazes de integrar os nveis micro e macro e as transformaes dos sistemasde sade. Castellanos (1990) e Almeida-Filho (1990), independentes, massimultaneamente, sistematizaram propostas equivalentes e complementares deuso dessas novas abordagens paradigmticas para a construo metodolgicado objeto da pesquisa epidemiolgica. Tais propostas vm sendo ampliadas edifundidas com o objetivo de fomentar uma produo cientfica concreta, visandoa efetivamente alimentar um possvel paradigma novo (SCHRAMM; CASTIEL,1992; CASTIEL, 1994; KOOPMAN, 1996; SUSSER; SUSSER, 1996a;PHILIPPE, 1998; BREILH, 2004; ALMEIDA-FILHO, 2000, 2006).

    Para avaliar as possibilidades de uso de modelos complexos para anlisesde risco em Epidemiologia, precisamos antes rever brevemente alguns princpiosdo que se tem denominado de teoria da complexidade. No vigamento central dateoria dos sistemas, encontram-se as formas elementares de determinao emqualquer modelo explicativo dado:

    a) Composio - articulao de partes (A + B), componentes de umtodo (D). Isto corresponde a uma metfora trazida da noo de sntese emQumica. A formalizao matemtica a simples soma de elementos: A + B = D.

    b) Variao - trata-se da principal representao de causalidade emcincia, enquanto metfora trazida do campo da dinmica em Fsica. O modelo

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    bsico desta forma elementar de determinao o seguinte: um fator x, agindoem uma determinada situao de sade S, produz o resultado R (significandoRisco, para nossos propsitos). A formalizao matemtica o caso mais simplesde uma equao de funo, com um nico termo: R = f (X). Aqui temos aforma elementar do objeto epidemiolgico Risco, em sua apresentaoconvencional.

    c) Emergncia - processo de sobredeterminao (FREUD, 1893) quedescreve o aparecimento de algo que, como tal, no estava antes no sistema,considerando-se mltiplas e dinmicas determinaes causais. Umadescontinuidade na dinmica do sistema, gerando o que uma variante nova doclculo chama de catstrofes, de acordo com Thom (1985). Posto que nenhumaformalizao encontra-se disponvel para essa modalidade de ocorrncia, Remerge de fontes desconhecidas de determinao: * = > R. Trata-se aqui, emsua forma mais elementar, de um resgate da categoria aristotlica dacontingncia.

    Nesse jogo de definies, simplicidade resulta de processos deanalysis, i.e., o sistema descrito desdobrando-o em suas formas elementaresmais simples de determinao. Isto equivalente reduo cartesiana deprocessos sistmicos e relaes s formas elementares de determinao. Atransio de simplicidade para complexidade no linear e direta, e passa pelacomplicao como um nvel superior imediato.

    O que significa complicao? Vejamos um modelo complicado deprimeira ordem, que, entre outras coisas, demonstra que multiplicar os elementosde um determinado sistema no suficiente para nele introduzir complexidade.Consideremos a variao multifatorial de S R, determinada por fatores x

    1 a

    xn. A formulao matemtica simplesmente a notria equao de regresso

    linear mltipla generalizada R = f (x1 + x

    2... x

    n). Este modelo tambm pode ser

    tomado como uma apresentao vvida da definio epidemiolgica demulticausalidade que incidentalmente o resultado no de complexidade, masde complicao na modelagem. Sistemas desse tipo se encontram longe dacomplexidade, porque neles no h qualquer hierarquia nem qualquerconsiderao da diversidade complexa da realidade concreta.

    Vejamos agora um modelo complicado de segunda ordem, comvariao em dois nveis, matematicamente descrito por um sistema de equaesde regresso linear: R = f (x

    1 + x

    2... x

    n); x

    1 = f(x

    n). Podem ser introduzidos

    passos no modelo, que assim se torna hierarquicamente organizado. Porm,

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    todas as interconexes entre seus componentes so do mesmo tipo, fazendodele um sistema montono, sem respeitar a diversidade de parmetros. Esta outra faceta do reducionismo, porque essa modelagem da realidade reduz adiversidade dos nexos que existem em qualquer fenmeno ou processo a umasrie de relaes unificadas. Um exemplo imediato desse tipo de modelo na teoriaepidemiolgica dos riscos a clssica teia da causalidade (KRIEGER, 1994).

    A introduo de formas elementares de determinao diversas nummesmo modelo define-o como modelo complicado de terceira ordem. Nessafamlia de modelos, vemos uma aproximao intuitiva da articulao de formasdiferentes de determinao, inclusive a transformao de componentes emfatores, pela definio de variveis proxy. Para construir e operar modelosdesse tipo, metodologias inter e transdisciplinares so definitivamentenecessrias. Objetos desse tipo podem se tornar modelos prototpicos para aintegrao desejada entre cincias sociais (por exemplo, para os processosmacrossociais representados como composies na base do modelo), lgica esemntica (justifica a anamorfose que une o nvel bsico ao submodelo defator) e cincias clnicas ou de sade (responsveis pela modelagem do resultadode sade ou risco R). A formulao matemtica possvel funda-se mais emlgica do que em clculo aplicado. Porm, o potencial dessa famlia de modelosde apreender processos da realidade ainda considerado insatisfatrio, porcausa de sua direcionalidade. Realmente, todas as relaes internas soconvergentes para o resultado, assim considerado como finalizao (desenlaceou outcome) dos processos. Apesar do poder heurstico superior desse modelovis--vis os modelos precedentes, ainda operam no domnio da complicao(mas no da complexidade), dado que nele no se encontra qualquer tratamentopossvel das mudanas ou fenmenos tempo-dependentes.

    Complexidade relaciona-se dialtica movimento-permanncia.Nenhum dos modelos anteriores, mesmo aqueles sofisticados e articulados,considera o fluxo do tempo. At mesmo em suas verses mais sofisticadas,ainda se mostram reducionistas montonos, ou finalsticos e, acima de tudo,aprendem a realidade complexa por congelamento dos seus processos, querdizer, por paralisia de sua caracterstica mais bsica, a natureza dinmica doevento. Um sistema, mesmo o mais complicado de todos, que sempre convergea uma mesma produo fixa, no um sistema dinmico. Por isso que anoo de retroalimentao se tornou crucial para a teoria dos sistemas. Damesma forma, isto explica por que a idia de repetio, e no reproduo, fundamental para definir no-linearidade em sistemas dinmicos.

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    Vejamos um modelo complexo de primeira ordem. Trata-se de ummodelo plural (com diversidade de formas de determinao), hierrquico,multinvel e no-direcional, construdo a partir da primeira definio decomplexidade como sistematicidade dinmica. Nesse modelo, o output no tempo1 significa input no tempo 2. Por outro lado, ainda um modelo discreto(baseado-em-limites, feito de componentes isolados) e no sensvel-a-contexto.Modelos desse tipo so suscetveis de descries matemticas, baseadas emsistemas de equaes diferenciais. Por permitir retroao conservadora (ouhomeostase), estes modelos eram antes considerados como exemplos paradoxaisde complexidade linear. Porm logo a crescente capacidade computacionalpermitiu aos investigadores descobrir caos em equaes bastante simples, comoas equaes para predio meteorolgica, de Lorenz (1993). Para nosso tema,modelos complexos de risco, isto pode ser demonstrado de maneira muito direta,usando a incidncia de uma doena D como exemplo.

    Consideremos um nico ciclo de avaliao de um dado sistemaepidemiolgico. Nesse caso, R

    n (risco no tempo 1) diferente de R

    n+1 (risco no

    tempo 2). Dado que a medida de R a incidncia I, uma relao dependente dotamanho de uma populao P, considere-se tambm que P

    n = P

    n+1, por

    conseguinte fixando o parmetro de mudana populacional. Este o modomais simples de representar a iterao desse tipo particular de sistema dinmico.A meta ltima da pesquisa epidemiolgica realmente consiste em medir a variaodo volume de D (conjunto de doentes entre expostos) no tempo, o que significabasicamente avaliar D

    n D

    n+1. Aplicaes desse modelo para anlise de risco

    em epidemiologia tm sido bastante frutferas, especialmente no que se referea epidemias de doenas infecciosas.

    O clssico modelo SEIR (Suscetibilidade-Exposio-Infeco-Recuperao) j representava uma tentativa de descrever a dinmicaepidemiolgica das doenas infecciosas, atravs de um sistema de equaesdiferenciais, ainda dentro de uma expectativa de modelagem linear dadescontinuidade (ANDERSON, 1982). Segundo Halloran e Struchiner (1991),a noo de evento dependente, proposta por Sir Ronald Ross, em 1910, jantecipava a concepo de no-linearidade como iterao de efeitos em umsistema dinmico. Grenfell, Bolker e Kleckowski (1995), empregando tcnicasde simulao parametrizada, desenvolveram uma interessante demonstraoda ocorrncia de no-linearidade em modelos SEIR submetidos a diferentesintervalos de sazonalidade. Recentemente, Koopman e Longini (1994)apresentaram um modelo terico da associao entre nveis de exposio

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    domiciliar ao mosquito e risco de infeco por dengue no Mxico, em que aanlise epidemiolgica convencional, linear, de base individual, revelou medidasrelativamente estveis de no-associao. Quando se incorporou ao modeloum fator de dependncia da exposio como resultado da incidncia (ou seja,uma taxa de realimentao da epidemia), observou-se um aumento no-linearda taxa de infeco.

    Dentre as concepes menos conhecidas das novas abordagensparadigmticas associadas teoria da complexidade, abrem-se perspectivasde ruptura com a lgica formal ainda hegemnica na cincia contempornea.Nesse registro, situa-se a teoria dos conjuntos borrosos [fuzzy set theory],proposta por Lofti Zadeh no incio da dcada de 1960 (MCNEILL;FREIBERGER, 1993). Trata-se de uma abordagem crtica das noes de limitee de preciso, essenciais teoria dos conjuntos que funda a analtica formal dacincia.

    Essa concepo lgica rompe com a lgica clssica que define osfundamentos epistemolgicos do conhecimento com base nos princpios daidentidade, da no-contradio e do terceiro excludo (COSTA, 1980). Comocorolrio da ruptura proposta, haveria trs modalidades de incerteza - acontradio, a confuso e a ambigidade - no passveis de formalizao lgicae matemtica, portanto, fora dos limites da racionalidade cientfica clssica. Aestas, acrescente-se a borrosidade [fuzziness], propriedade particular dossistemas complexos no que se refere natureza arbitrria dos limites infra-sistmicos impostos aos eventos (unidades do sistema) e ao prprio sistema(ZADEH, 1971), em suas relaes inter-sistmicas com outros sistemas, comos super-sistemas (contextos) e com os respectivos observadores.

    Em primeiro lugar, a teoria dos conjuntos borrosos implica uma crticaradical noo de evento como uma fragmentao arbitrria dos processos detransformao e dos elementos dos sistemas dinmicos. Alguns conceitosoperativos do campo da sade, como doena e risco, so exemplares dessaontologia conjuntista da cincia convencional (ALMEIDA-FILHO, 2000). Destamaneira, impe-se uma delimitao precisa e de certo modo aberta, ondeefetivamente ocorre uma fluidez dos limites espao-temporais dos elementosde um dado sistema, que podemos denominar de Borrosidade 1.

    Segundo, a considerao da lgica borrosa supe uma recuperao dacontextualizao (ou referencialidade) como etapa crucial do processo deproduo de conhecimento. Neste caso, borram-se os limites externos do

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    sistema, ou seja, a interface entre os sistemas entre si e destes com o contexto,ou os supersistemas que os incorporam, conformando o que podemos chamarde Borrosidade 2.

    Por ltimo, a crtica da noo de limite implica tambm um questionamentoda categoria epistemolgica da objetividade, retomando o clssico problema doobservador como efeito de uma Borrosidade 3. Neste caso, atraente areferncia, por simples analogia, delimitao entre sujeito e objeto no processoda pesquisa. Paradigmtica desta categoria de borrosidade ser certamente aquesto fundamental dos limites da percepo humana enquanto produto decorrelaes senso-efectoras de um organismo dito observador enredadoem espaos perceptuais compartilhados com os objetos observados(MATURANA; VARELA, 1984).

    No campo da sade, praticamente inexistem aplicaes da noo deborrosidade, apesar da sua inegvel aproximao ao problema dos diagnsticossuperpostos ou comorbidade, conforme assinalado por Mezzich e Almeida-Filho(1994), e questo da natureza borrosa da definio tanto de exposio quantode risco no referencial epidemiolgico (COSTA-CAPRA, 1995). Umainteressante atualizao sobre o assunto foi recentemente publicada por Sadegh-Zadeh (2000), destacando justamente os usos tericos e prticos da lgica fuzzyna pesquisa sobre sade-doena.

    Vejamos agora um bom exemplo de aplicao da idia de conjuntosborrosos proveniente da epidemiologia, vertente mais flagrantemente quantitativada Sade Coletiva. Massad e Struchiner (1996) propuseram traduzir nos termosda lgica dos conjuntos borrosos os indicadores epidemiolgicos de associao,aplicando-os principalmente anlise de risco em estudos ambientais. Comovimos acima, os estimadores de risco relativo mais usuais da Epidemiologia sodefinidos como uma razo de probabilidades condicionais exposio a umsuposto fator de risco, em que o estimador de risco R representa umaprobabilidade p de ocorrncia de uma doena D, dada uma exposio E, ouseja, p(D|E). Entretanto, no cenrio de uma lgica borrosa, esses indicadorespodem ser expressos em termos de possibilidades condicionais, tanto no sentidode nveis de exposio quanto de gravidade da doena. Para isso ser necessrioestimar funes de distribuio de possibilidades equivalentes a distintos grausde pertinncia associados a cada subconjunto borroso, resultando em modeloslingsticos de inferncia borrosa.

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    Na formulao original de Zadeh, o criador da fuzzy logic, comosabemos, a funo F de pertinncia R(x,y) de uma relao R em um conjuntoborroso A dada por operadores de inferncia do tipo max: V - min: L, em queF(y) Vx [A(x) L R(x,y). Aplicando estes parmetros, de acordo com Massad eStruchiner (1996), possvel definir uma Fuzzy Odds Ratio (FOR), como arazo entre a possibilidade condicional de desenvolvimento de certa doenacuja gravidade d, dado que o indivduo seja exposto a um certo nvel do fatorambiental e, e a possibilidade de que a mesma doena com gravidade d sedesenvolva, dado que o indivduo no seja exposto ao fator ambiental.

    Apesar do estado ainda incipiente de aplicao da lgica borrosa nocampo da sade, alm das anlises de graus e superposio de exposio egravidade especificamente diferenciada, so evidentes os usos potenciais dessaabordagem nos processos de tomada de deciso na subrea de gesto eadministrao em sade. Ainda por desenvolver, estariam aplicaes da lgicaborrosa nos sistemas de produo estruturada de diagnsticos, principalmentepara tratar dos fenmenos da co-morbidade e dos diagnsticos mltiplos.

    O futuro do conceito de risco

    Risco mais do que um conceito interdisciplinar: precisamos nospreparar para cada vez mais compreend-lo e constru-lo como um conceitoindisciplinado (CASTIEL, 1997). No percurso argumentativo deste ensaio,identificamos e avaliamos os pressupostos filosficos das seguintes formas deapresentao do conceito: a) Risco como perigo latente ou oculto no discursosocial comum; b) Risco Individual como conceito da Clnica; c) RiscoPopulacional como conceito epidemiolgico senso estrito; d) Risco Estrutural,nos campos da Sade Ambiental/Ocupacional.

    O conceito de Risco necessita atualizar-se, incorporando a dimensocontingente dos processos de ocorrncia de problemas de sade em populaeshumanas. O futuro do conceito de risco depender da sua capacidade dearticular-se aos desenvolvimentos conceituais e metodolgicos deste novo campoideolgico, conceitual e metodolgico que tem sido denominado de SadeColetiva, contribuindo com modelos tericos e estratgias metodolgicas capazesde abordar objetos complexos emergentes. Nesse sentido, propomos incorporarmais uma definio lista dos conceitos de Risco acima: e) Risco Contingencial,operador do recm-constitudo campo de prticas da Promoo da Sade.

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    A idia de um campo geral de prticas chamado de Promoo da Sade,contendo tanto a Preveno quanto a Proteo e a Promoo (senso estrito)da sade individual e coletiva, supe um repertrio social de aes preventivasde morbidade (riscos, doenas etc.), protetoras e fomentadoras da salubridade,que de certo modo contribui para a reduo dos sofrimentos causados porproblemas de sade-doena na comunidade. Isso determina uma integraoterica e filosfica da rede de conceitos correlatos sade (vida, risco, doena,cuidado) ao conjunto de prticas discursivas e operacionais dos novos camposde saberes e de prticas que cada vez com mais intensidade e freqncia seformam em torno do objeto Sade. Com esse objetivo, os conceitos de Riscoe as prticas que lhe correspondem no campo da Sade podem ser reunidosem trs grupos:

    1. Risco como indicador de causalidade (ou resduo da probabilidade).Trata-se de reconhecer e reafirmar sua base indutiva, freqentista, fisheriana, apartir do referencial exposto na terceira parte deste ensaio. Esse conceito particularde Risco subsidia modelos de Preveno de doenas ou eventos mrbidos, comas seguintes variantes: (a) modelos de preveno individual (conceito clnico deRisco); (b) modelos de preveno populacional (Teorema de Rose).

    2. Risco como perigo estruturado. Tal conceito subsidia largamentemodelos de interveno nos campos da Sade Ambiental e Ocupacional (OPAS,1976). Nesse caso, preciso explorar sua base dedutiva, descritiva, estrutural,tarefa que evidentemente extrapola os objetivos do presente ensaio.

    3. Risco como emergncia. Trata-se, nesse caso, de explicitar a basefilosfica da contingncia, articulada como processos de emergncia em modelosde complexidade. Este conceito subsidia modelos de: a) Promoo da Sade;b) Vigilncia em Sade.

    O quadro abaixo ilustra os principais elementos conceituais envolvidosnessa articulao:

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    O quadro a seguir ilustra os principais elementos de atuaocomparativos dessas estratgias:

    Os dispositivos, signos e aes apontados no esquema socaractersticos de cada estratgia, porm no se prope a uma relao deexclusividade, nem biunvoca, ponto a ponto. Para uma compreenso mais clarados quadros propostos, explicitaremos, a seguir, seus termos.

    A estratgia de Preveno em Sade h muito se converteu ordemda necessidade, assentada no modelo da causalidade e cuja interveno maisespecfica seria a modelagem da realidade. Como vimos, Aristteles define oreal como aquilo que . Se o real se caracteriza como o que j estava ali, arealidade, ou melhor, as realidades so construdas para tentar dar conta destereal que no fala, antes se mostra como limite simbolizao. O regime danecessidade solidrio ao registro simblico, de acordo com a formulao quefaz Lacan ao retomar os termos modais de Aristteles. Trata-se, na necessidadehumana, daqueles eventos imprescindveis ao mundo de linguagem, pois, aoconstituir-se como ser de linguagem, o humano instaura um movimento peculiar:o simblico (discurso humano) separa a realidade do real, ao promover, pelamediao da palavra, uma ciso entre coisa e smbolo. Lacan descreve esteregistro do simblico sob a gide da necessidade como aquilo que no cessade se escrever.

    Por outro lado, a Proteo Sade como estratgia, por vrios ngulosde anlise, logicamente impossvel, apesar de historicamente ter sido construdacomo campo de prtica plausvel. Seu modelo o controle e a intervenorequerida, o experimento. Tal modalidade - o impossvel - deve ser tomada emsua estrutura lgica, no significando com isso que no exista. Apenas quecontrole e experimento no so realidades em si, mas realidades lingsticas

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    no-encontrveis nas condies efetivas da pesquisa ou da interveno; talcomo os eventos contingentes, so realizados e somente ento reconhecidospor seus efeitos. Em termos lgicos, o que no cessa de no se escrever seimpe (no cessa) e, ao mesmo tempo, por escapar ao simblico, no se escreve.Rigorosamente, um experimento nunca pode ser reproduzido, nico, podendo,sim, ao ser replicado, constituir srie. Ademais, tal replicao nunca se dconforme o planejado, posto que a situao do laboratrio no tem com a vidaoutra relao seno de verossimilhana. por esse motivo que Lacan define oReal, registro do impossvel lgico, como o que no cessa de no se escrever;por mais que ensaiemos, jamais a realidade do experimento corresponder aoreal do evento.

    A possibilidade, modo lgico da estratgia de Precauo, o registroreferente ao imaginrio que, longe de ter um carter negativo de algo imaginadoou ilusrio, como comumente se diz, s pode ser pensado no entrelaamentodos trs nveis, juntamente com simblico e real. Na formalizao proposta porLacan, o que cessa de se escrever, aquilo que pode parar de ser requerido. o imaginrio que d consistncia ao mundo humano, povoando com Cenriosas possibilidades de existir na linguagem. Assim, retomando os Teoremas deGdel, lembremos que a consistncia dos limites - impostos por cenriosimaginados - no incompatvel, pelo contrrio, com a abertura de possveis einimaginveis medidas de Precauo contra riscos sade. Entretanto, estatela imaginria, este limite, com sua funo ao mesmo tempo formadora ealienante, que organiza no o mundo em si, mas o mundo em questo. A utilizaodas estratgias de Precauo no campo da Sade (GRANDJEAN, 2004), comoconstruo de cenrios antecipatrios possveis a danos existentes ou projetados,desempenha um papel no-negligencivel de tambm antecipar, e nesse casoconter, reaes de pnico ou inquietao generalizados que muitas vezes oimaginrio social desenvolve frente ao desconhecido.

    Por fim, associamos a estratgia de Promoo Sade aos modelos deimprevisibilidade de eventos, incorporados nas teorias da complexidade, comoemergncia, e na filosofia, como contingncia. De todas as modalidades lgicas,esta , seguramente, a que mais resiste a uma apreenso direta de sentido; no toa, Lacan a descreveu como o que cessa de no se escrever. Em outraspalavras, trata-se da ocorrncia de um evento que faz cessar, interrompebruscamente, um estado anterior, mas que, em conformidade com o real, nose escreve como fato. Poder ser, retroativamente, integrado cadeiasignificante como suporte para estratgias fomentadoras de aes globais de

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    PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1):95-137, 2007

    superviso e vigilncia, como as prticas atualmente denominadas de Promooda Sade, destinadas a detectar, compreender e significar emergncias-ocorrncias-contingncias para, com isso, reconhecer (para fazer cessar seusefeitos) eventos similares futuros (LEVY, 1996).

    Como o nome indica, os conceitos de emergncia ou contingnciaarticulam acontecimentos dos quais podemos apenas constatar efeitos e, naimpossibilidade de propor medidas de ao retroativas, indicar formasprecaucionrias de base analgica. Em geral, so acontecimentos desencadeadospor fatores mltiplos e interconectados, estruturados em redes abertas, o queimpossibilita estabelecer, entre eles, relaes lineares de causalidade. Na esferados acontecimentos contingentes, pensamos ser de especial valor, como tipologiade interveno mais adequada, a utilizao de teoria de redes como desenhono somente de explicao, no caso, da sobredeterminao de fatores causais,como tambm de desenho metodolgico para programas de promoo da sade.

    Comentrio final

    O presente conjunto de anotaes constitui um dispositivo esquemticode sntese terica provisria, por definio insuficiente para dar conta dacomplexidade dos fenmenos, processo