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O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX:
OBSERVAÇÕES DO MÉDICO NICOLAU VERGUEIRO
Marinês Dors
Rede Mun. Ed. Passo Fundo/ Unisinos
Resumo:
No arquivo pessoal de Nicolau Araújo Vergueiro encontram-se documentos referentes ao
seu exercício da medicina e da política. Como político, ele desempenhou inúmeros
mandatos eletivos: conselheiro municipal, intendente, deputado estadual e federal. No
campo da saúde, foi o primeiro médico passo-fundense diplomado: formado em 1905,
destacou-se por ser cirurgião, parteiro e, ainda, ao tratar doenças sexualmente
transmissíveis e infantis, ocupando o cargo de médico da municipalidade por vinte e nove
anos. Entre as fontes que compõem seu arquivo, priorizamos a análise dos manuscritos
de memórias intitulados “Notas íntimas – algumas reminiscências clínicas”. Elas
abrangem desde sua formação acadêmica até o ano de 1937. Procedemos a seleção e
exame de alguns relatos em que a questão do gênero se sobressai no discurso médico.
Trabalho, família, moral, sexo, violência, saúde e eugenia serão algumas temáticas
abordadas.
Palavras-chave: Nicolau Araújo Vergueiro; medicina; memória; gênero.
O primeiro médico natural de Passo Fundo foi Nicolau Araújo Vergueiro. Entre
1900 e 1905, ele integrou a segunda turma da Faculdade de Medicina de Porto Alegre.
Em sua tese, apresentada para obter o grau de doutor em ciências médico-cirúrgicas,
enfocou a “Contribuição ao estudo da anestesia geral pelo keleno”. A inscrição na placa
de bronze identificando o médico enfatiza a realização de cirurgias e partos (figura 1).
Figura 01: Placa de identificação do “Dr. Vergueiro”
Fonte: AHR, fotografia elaborada pela autora.
Os documentos, como a placa de identificação do médico e, suas memórias, as
quais chamou de “Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas” tornaram-se
acessíveis devido a doação feita pela família Vergueiro Malheiros, no ano de 2011. O
Arquivo Histórico Regional (AHR), mantido pela Universidade de Passo Fundo (UPF),
foi a instituição escolhida como depositária das fontes. Trata-se do arquivo privado de
Vergueiro, composto por móveis, acervo bibliográfico, manuscritos de reminiscências,
álbuns contendo diversos documentos: recortes de jornais, fotografias, correspondências,
etc. É sobre esse acervo que versa nossa tese, em vias de conclusão. A documentação
sobre o titular deste acervo delineia sua participação no processo de desenvolvimento da
região norte do Rio Grande do Sul.
Nicolau Araújo Vergueiro (1882-1956), teve como bisavôs dois Senadores –
Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (1778-1859) e João da Silva Machado, conhecido
como Barão de Antonina (1782-1875) –, proeminentes políticos do período imperial. Essa
origem revela sua condição econômica abastada e, ainda, a tradição política da família.
Embora Vergueiro tenha optado pela formação em medicina, também investiu na
carreira política. Sua ação política se processou no interior de duas agremiações: o Partido
Republicano Rio-grandense (PRR) e o Partido Social Democrático (PSD). Sua adesão ao
PRR ocorreu nos anos iniciais do século XX e, a partir de 1920, assumiu a chefia do PRR
local. Após o Estado Novo, Vergueiro participou da fundação do PSD e, a seguir, assumiu
a presidência da agremiação.
Destacamos que, entre 1908 e 1920, presidiu o Conselho Municipal; no período
de 1909-1928, desempenhou mandato como deputado estadual; esteve à frente da
Intendência de Passo Fundo no período de 1920 até 1924 e, novamente entre 1928 e 1932;
posteriormente, atuou na Câmara Federal, desde 1930 até 1950, excetuando-se o período
de suspenção do legislativo (1937-1946). Esses dados ratificam o exercício de diferentes
funções políticas no mesmo período.
A atuação de Vergueiro, como médico e parlamentar, contribuiu para o
desenvolvimento e modernização da região de Passo Fundo. Isso decorreu dos
investimentos em obras públicas, visando a integração com o restante do país (ferrovias,
aviação, instalação da agência de Correios e Telégrafos), ou na captação de verbas para
suprir demandas da população local (no que tange a educação, saúde, etc.).
Destacamos sua participação na Comissão de Saúde Pública da Câmara em 1936
e 1937, oportunidade em que defendeu um projeto de regulamentação do exame-médico
pré-nupcial. A autoria do projeto estava em consonância com a pauta dos debates
intelectuais sobre a eugenia. Vergueiro não era uma voz isolada no seu apoio às práticas
eugênicas. Realmente vários intelectuais, políticos e médicos incumbiam-se da “missão
de salvar a nação”, “regenerar a república” ou mesmo “civilizá-la” sugerindo a adoção de
práticas eugênicas. (PÉCAUT, 1990, p.21; WEBER, 1999, p. 70; MACIEL, 1999, p. 123;
MATOS, 2001, p. 27; GAGLIETTI, 2007, p. 333). No entanto, as interpretações sobre o
ideal eugenista não foram unânimes: critérios higienistas, raciais e sanitaristas muitas
vezes foram confundidos num mesmo projeto (MACIEL, 1999, p. 134).
A fim de propalar a ideia do exame pré-nupcial Vergueiro proferiu vários
discursos na Câmara Federal, publicando, ainda, uma série de artigos no jornal Diário da
Manhã, de Passo Fundo. O médico escreveu sobre a eugenia, a necessidade de uma
educação eugênica no Brasil, embasando-se nos ideais propostos por Renato Kehl. Assim,
pretendeu esclarecer a população sobre doenças contagiosas, que possuíam elevados
índices no país, tais como lepra, sífilis, tuberculose e alcoolismo.
Temas como a eugenia, doenças transmissíveis e psíquicas, saneamento básico,
partos, ferimentos provocados por armas de fogo são abordados com frequência nas
narrativas do médico, que como comentamos receberam o título de “Notas íntimas”. Essa
fonte consiste em um conjunto de doze manuscritos dos quais somente oito foram
preservados e doados ao AHR, integrando o acervo privado de Vergueiro. Ao final das
duzentas páginas enumeradas de cada volume, foi registrado um índice. O mesmo indica
o número do texto, seguido de título e página onde iniciou o registro.
Escritos diariamente entre 1935 e 1937, narram memórias de Vergueiro acerca de
pessoas e acontecimentos, totalizando trezentos e vinte e quatro notas. Na composição
dos volumes há reminiscências do autor, transcrição de artigos e reportagens jornalísticas,
cartas escritas por seu pai, sonetos que recebeu, dedicatórias de sua autoria, discursos que
proferiu, etc.
Nos volumes um, dois, três e sete destacam-se relatos do trabalho de Vergueiro
como médico (ver figura 02). A elevada quantidade de textos em que as narrativas
mantém relação com a medicina é fruto de um projeto pessoal, a forma escolhida por ele
para comemorar trinta anos de “laboriosa e ativa clínica”. (VERGUEIRO, 1935, v. 2, p.
100-103). É sobre eles que pretendemos discorrer.
Figura 02: Gráfico demonstrando a incidência de reminiscências sobre a clínica médica
Fonte: Elaborada pela autora com base nos dados extraídos das “Notas íntimas”.
As “Notas íntimas” diferenciam médicos diplomados, formados e, aqueles que
obtiveram licença, de acordo com a “094 Relação Nominal” apresentada por Vergueiro.
O Rio Grande do Sul concedia liberdade profissional e religiosa, permitindo assim a
implantação de variadas práticas de cura combatidas e proibidas nos outros Estados do
Brasil (WEBER, 1999). Em muitos textos, percebemos acontecimentos marcantes para o
autor, cuja versão adquire tom de denúncia, ao enumerar equívocos cometidos por outros
médicos e, também, por pacientes. Em geral tais pessoas adotaram comportamentos,
ideias e opiniões divergentes dos costumes e da moral predominante. A esse respeito
comenta:
Eu não participo da opinião de Talleyrand, que astuciosamente entendia ser a
palavra um dom feito aos homens, não para a expressão de seus pensamentos,
mas para ocultá-los. Em todas as ‘Notas’ sem cuidar de estilo apurado, vazei
meu pensamento em palavras claras, límpidas e sem rebuços, com a
preocupação apenas da verdade na constatação dos fatos, alguns pilhéricos,
outros tristes e outros escabrosos. (VERGUEIRO, 1935, v. 3, p. 19-29).
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Medicina
O narrador, embora negue preocupação com o estilo literário, confere tom
humorístico a algumas situações descritas nas suas reminiscências. Lembramos que além
de autor, ele é um personagem, pois descreve as próprias vivências da profissão. Assim,
adentrando no espaço privado, enuncia a realização de atendimentos domiciliares aos
pacientes de distritos ou cidades próximas, comenta as condições das viagens, incluindo
locais visitados, o meio de transporte, as pernoites. Segundo os relatos, sentiu-se
constrangido em situações inusitadas, decorrentes da falta de saneamento básico,
iluminação, saúde coletiva e instrução pública.
O médico era bem recebido, convidado a ingressar na casa e, na intimidade dos
pacientes e familiares, como no caso “106 Vá entrando”, oportunidade em que o médico
foi chamado para atender uma criança com sarampo e, o pai do enfermo guiando-o, abriu
a porta e pediu-lhe que entrasse no quarto. No interior do aposento a mãe do enfermo,
fazia despreocupadamente uma lavagem vaginal. A partir desta situação ele assegura que
passou a ter “precauções acauteladoras”. (VERGUEIRO, 1935, v. 2, p. 121-123).
Como as visitas eram domiciliares, nem sempre o valor cobrado pela assistência
médica era consensual, resultando em ameaças à vida dos médicos. O memorialista expõe
que reações violentas não eram incomuns, pois nem sempre os pacientes restabeleciam
sua saúde ou adoeciam de outros males o que, no entanto, não era aceito por alguns
familiares (conforme os textos “47 Reichmann”, “48 Caso das vacas”, “85 Vítima
inocente”, “92 Caloteiro”,”116 Espertalhão”, entre outros).
Quanto a relação entre o médico e seu paciente, ele afirma que procurava seguir o
“preceito de curar alguma vezes, aliviar outras e consolar sempre”. (VERGUEIRO, 1935,
v. 2, p. 30-32). No início do século XX, o médico ia ao encontro dos pacientes quando
era chamado para atender aqueles que estavam impossibilitados de comparecer ao
consultório, anexo a farmácia. Quando Vergueiro iniciou seu trabalho como médico, não
havia hospitais em Passo Fundo. O Hospital de Caridade, atual Hospital da Cidade (HC),
e o Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), foram fundados com sua participação como
sócio, respectivamente, em 1914 e 1918.
Figura 3: Anúncio médico de Vergueiro
Fonte: A Voz da Serra. Ano II, n. 71, Passo Fundo, 16 maio 1917.
Inicialmente, fazia atendimentos infantis e realizava partos, mas devido à
demanda de pacientes que haviam contraído doenças sexualmente transmissíveis,
especializou-se, oferecendo diagnósticos precisos, através de exames microscópicos e
tratamentos modernos à época de acordo com o disposto em seu anúncio publicado no
jornal A Voz da Serra (figura 03).
Existe um grande número de notas abordando a assistência de partos por
Vergueiro. Nessas situações registra acontecimentos constrangedores, do mesmo modo:
parturientes a expressarem-se de forma inapropriada, como nos casos “016 Assopra-me”
e “089 Por onde saiu?”. No primeiro texto a parturiente é designada como “rica, feia,
desbocada” pois dava ordens e lançava “saraivada de descompostura” no marido e, após
os médicos concluírem seu parto, gritou com eles também. (VERGUEIRO, 1935, v. 1, p.
35-38). No segundo, a comadre do médico, que era também professora municipal,
“botava a boca ao mundo, tendo expressões capazes de fazer corar, estremecer e rir até
um frade de pedra”. Pois ela tinha a impressão de que iria evacuar ao sentir as contrações
(VERGUEIRO, 1935, v. 2, p. 36-38).
Também em relação aos partos, Vergueiro narra aplicações de fórceps, conclusão
de assistências iniciadas por licenciados e parteiras, ou ainda a extração de placentas. As
reminiscências que revelam tais ocorrências são, entre outros, “011 Placenta cara”, “018
Um parto”, “038 Um caso em Libres”, “051 Grande erro”, “054 Entendida”, 060 Mãe e
filha”, “133 Mãos de anjo”, “253 Um agradecimento”.
O texto “133 Mãos de anjo” narra a aplicação de fórceps para o nascimento do
filho de outro médico. Vergueiro discorre sobre a trajetória deste, que caracteriza como
um canalha por ter abandonado sua esposa e raptado uma mulher casada. Este, pouco
tempo depois, passou a viver com um rapaz. Nas “Notas íntimas” a única alusão a
homossexualidade é feita neste conto: “Para finalizar, refiro que, em certo tempo, em
Carazinho, Wladimyr passou a viver, de modo escandaloso, com certo mocinho bonito,
que dengoso, faceiro e requebrado, o acompanhava por toda parte... Uma pá de cal”.
(VERGUEIRO, 1935, v. 3, p. 65-71).
A falta de conhecimento a respeito da anatomia humana foi assinalada pelo
médico nas notas “024 Útero”, “079 Pedro Pinto”, “222 Confusão com apêndice”. Os
textos revelam que as pessoas desejavam explicar ao médico onde sentiam dor, no
entanto, empregavam termos errôneos, denominando enfermidades e órgãos do sexo
oposto no próprio corpo. Da mesma maneira alguns casos demonstram incompreensão
dos procedimentos, do discurso e do receituário médico, como lemos em “05 Não
escreva”, “045 Sopa”, “086 Aos pacotes”.
Outras narrativas dizem respeito a pessoas que morreram. Ao tomar conhecimento
desses óbitos o autor elabora breves biografias desses indivíduos que, ou superaram
problemas como alcoolismo, envolvimento com prostitutas e jogos de azar, e passaram a
ter uma vida digna (“052 Oscar”). Ou, ao contrário, abandonaram sua família,
contrariando a moral e os costumes da época, contraindo doenças, cometendo adultério
(“103 Triste fim de vida”).
Tanto comportamentos masculinos quanto femininos foram observados e
registrados pelo médico. Notamos que existiam famílias que não seguiam o padrão moral
da época, ou seja, homens com condição financeira abastada, amigavam-se à moças
pobres, negras ou caboclas. Dessas uniões resultavam, também filhos. Os textos “123
Uma mulher infeliz” e “132 Só para os ‘gusanos’” fazem referência a casais que viviam
amigados, conforme definiu Vergueiro.
O primeiro relato trata da violência doméstica cometida por ciúmes:
Quando eu estava no exílio, em 1933, na Argentina, foi acometido de moléstia
pleuro pulmonar, que, novamente, o levou ao Hospital de Caridade, onde
permaneceu cerca de quatro meses, tendo estado entre a vida e a morte.
Entre os seus amigos, que desvelavam-se, com dedicação, à sua cabeceira,
estava o "Cato", seu colega de profissão.
Em uma noite, de boa melhora, já às 2 horas, o doente pediu à mulher que fosse
para casa dormir e cuidar das crianças, por isso que ele ia passar bem. Cato
ofereceu-se então para conduzi-la em seu carro particular e, só a instâncias de
Procoro, ela aceitou.
Ao chegarem, o moço pediu um copo de água e, ao servi-lo, foi de inopino,
abraçada e beijada por ele. Repeliu-o com energia, disse-lhe alguns desaforos
e correu para o interior, onde, a chorar, amanheceu.
Toda a cena foi vista por uma vizinha bisbilhoteira, que se acordara com o
barulho do carro.
No dia imediato, o enfermo teve o seu maior transe, chegando mesmo a ser
desenganado. Nessas circunstâncias, a infeliz nada quis comunicar ao amigo,
pois seria fazê-lo piorar ainda mais. Conteve-se, guardou a sua amargura,
sofreu calada a afronta, apesar da sua indignação: a sua nobreza de alma foi
grande, assim como grande foi também a elevação de seu caráter.
Com o restabelecimento, continuou com o segredo, receando um desfecho fatal
entre aqueles homens, ambos geniosos e valentes.
O atrevido sedutor nunca mais a molestou.
O caso parecia ter tido o seu ponto final, mas a vizinha, no entanto, deu de
língua, e, passados muitos meses, o fato foi ao conhecimento do maior
interessado.
O homem desesperou, perdeu o equilíbrio normal e teve um gesto de loucura:
inquiriu a companheira, que tudo lhe expôs, com calma e verdade, e deu-lhe
uma tremenda surra de chicote, atando-a, pelos braços e pernas, de pé, durante
horas, no interior da garagem. Ao cair da noite, D. Maria, apesar de exausta,
na mais justa das revoltas, recriminou o seu algoz.
Este, não mais homem, mas fera, não satisfeito, fez-la, amarrada, embarcar no
próprio auto, levando-a para um mato, distante meia légua da cidade. Ai, atada
a uma árvore, repetiu a dose do relho, esmurrando-a, pelo rosto e pelo tórax, à
vontade.
Queria, exigia uma confissão, que a mísera não poderia, de modo algum, fazer,
porque era uma vítima e uma inocente. Nesse miserável estado, trouxe-a para
casa de um outro oficial de justiça, por nome Bernardino, a cuja mulher
entregou aquela ruinaria.
Como seu estado se agravasse, fui chamado para atendê-la: era um montão de
carnes machucadas, extensas e negras equimoses cobriam-lhe o corpo, todo
edemaciado, os lábios e pálpebras enormemente inchados, os olhos eram uma
poça de sangue, a cabeça fraturada, grande contusão no fígado, aumentado de
volume e extremamente doloroso, vômitos, febre, pulso pequeno... Enfim num
quadro grave, além de medonho e incrível.
Contou-me toda a sua tragédia; implorou a minha proteção; tinha medo das
garras do malvado.
Por maior caiporismo estava grávida, e o aborto não se fez esperar.
Mandei-a conduzir para a maternidade da Drª Nathalia Bonella, onde operei-
a: teve uma tão grande hemorragia uterina que, se não fosse atendida com a
presteza necessária, teria certamente morrido.
Conferenciei com Procoro, e, com a maior energia, o acusei pela sua
selvageria, pelo seu banditismo, e durante mais de uma hora, ouviu calado
todas as minhas recriminações, por vezes, ásperas e grosseiras, como se faziam
precisas.
De cabeça baixa, não me disse uma só palavra, e chorou muito.
Custei a vencer a sua obstinação: depois falou... estava agitado, inquieto e a
incerteza o atormentava.
O amor fê-lo perder o senso comum, e confessou o seu erro, arrependido,
acreditando, afinal, na honra da mãe de seus filhos, e, na presença desta e de
Drª Nathalia, fi-lo pedir perdão e jurar pela sua honra que, em hipótese
nenhuma, nunca mais tocaria nem sequer num fio de cabelo de D. Maria, a
quem continuaria dispensar o mesmo amor e carinho.
A pobre mulher teve que se submeter: ama doidamente aos filhinhos e não tem,
na vida, nem um irmão para protegê-la. (VERGUEIRO, 1935, v.3, p. 19-29).
Neste excerto verificamos a subordinação da mulher que mesmo agindo de acordo
com os preceitos morais e precaução para preservar a vida do seu marido, foi vítima dele.
O homem, no seu ideal de masculinidade supunha ser proprietário da esposa,
considerando-a adúltera. Como a mulher continuou a alegar sua inocência, revoltando-se
foi, novamente, vítima da violência. O companheiro tomado de suspeitas só estabelece
um diálogo com outro homem – o médico a quem sua mulher havia recorrido para
sobreviver e pedir proteção – admitindo seu comportamento inapropriado. Aqui notamos
que o homem não respeita sua companheira, apesar da sua condição de gestante. E
Vergueiro admite a desigualdade entre mulheres e homens ao comentar essa situação de
vulnerabilidade.
A outra narrativa representa, como a primeira, uma mulher dotada de moral,
fragilidade, recato, sensibilidade, submissão e, por isso mesmo, dirigida e controlada pelo
homem. (COLLING, 2014, p. 45). No entanto, ambas foram vítimas da incredulidade de
seus companheiros, por causa de terceiros, que questionaram sua fidelidade. Esta nota
refere-se a uma senhora que foi diagnosticada com uma “infecção blenorrágica no ânus”:
Certo amigo meu, comerciante residente em município vizinho, vive há cerca
de quatro anos, amigado com uma rapariga que, não sendo um tipo de beleza,
apresenta, no entanto, um conjunto tão discreto de traços e de linhas
esculturais, que a tornam uma silhueta harmoniosa, apreciável e atraente.
Ela, por amor ou por inteligência, procede com impecável correção; ele
procura adivinhar-lhe os pensamentos, e assim, nesse ambiente de
encantamento, passam felizes os dias.
No fundo desse azul surgiu, porém, inesperadamente, uma nuvem escura,
ameaçadora de tempestade próxima. Logo depois, e isso em dezembro de
1934, apareceram-me no consultório.
A expressão daquele rosto, que tinha sempre nos lábios o esboço de um sorriso,
agora fechado, com fundas olheiras, que pareciam feitas com carvão,
denunciava o seu sofrimento moral, mas conservava na voz o timbre sereno,
altivo e distinto, de quem não está mentindo, de quem, vítima das
circunstâncias de momento, está inocente.
Tratava-se de um sério caso clínico, que, deste modo, me foi exposto.
Há mais ou menos dois meses, sentindo contínuas dores agudas no ânus e
observando suas calças manchadas de pus, procurou a um médico que, depois
do exame local e bacteriológico, fez um tremendo estardalhaço, sobre a
moléstia: "você, menina, vai mal; se não se cuidar, já e já, apodrecerá em vida;
você está com uma infecção blenorrágica no ânus". Apesar da rapariga
protestar a sua virgindade, como dizia, nesse lugar, e mais de não ter nenhum
corrimento vaginal, e ainda de seu amigo não estar enfermo, e, por último,
afirmar a sua fidelidade e respeito ao amante, o diagnóstico foi mantido e
iniciado o tratamento: pequena lavagem com solução de permanganato de
potássio com seringa de borracha, uma por dia, em consultório.
No fim de um mês não havia a menor melhora; ao contrário, o mal se agravara.
Em casa a pressão era alta e fortes discussões foram travadas, entre lágrimas e
desaforos mútuos, e a separação esteve eminente.
Queriam, finalmente, a minha opinião franca, sincera e decisiva, fosse qual
fosse.
Antes de tudo, solicitei o resultado do exame de laboratório, que haviam feito,
e disseram-me que o médico não lhes quisera entregar, apesar de reiterados
pedidos, rasgando-o na sua presença.
Ao exame local, constatei o seguinte: a mucosa retal apenas ligeiramente
irritada e congesta, e na margem externa do ânus um pequeno abscesso
hemorroidário, já fistuloso. Do novo exame da secreção, controlado
diretamente por mim, a presença de bacilos banais do pus, estafilococos e
estreptococos, mas ausência completa dos diplococos de Neisser.
Externei lhes então, com toda a segurança, o meu modo de pensar, inteiramente
contrário ao do "ilustre" colega, que, a meu ver, errara crassamente ou, o que
é pior, sem o menor escrúpulo, dera ao caso um tamanho tão grande e tão
escandaloso, para melhor poder explorar o bolso do rico cliente.
Operei-a, em seguida, no Hospital de Caridade, larga abertura, curetagem, etc.
e, em poucos dias, com algumas injeções de vacina antipiogenica mista de
Bruchettini, teve alta, radicalmente curada, regressando, para sua residência,
satisfeita e feliz, com a virgindade do seu ânus, de que tanto fazia questão e
alarde, como ponto de honra, padrão do seu orgulho de hetaira [hétera]
elegante, e, ainda uma vez, me repetiu: "isso, Dr., só para os "gusanos"
[vermes]. De dentro para fora era natural função fisiológica, mas de fora para
dentro, só o espéculo"...
Neste fim de narrativa, lembro-me que talvez fosse mais certa uma das
epígrafes: tempestade em copo d'água, ou um cu atrapalhado. (VERGUEIRO,
1935, v. 3, p.61-65).
Segundo o autor, o outro médico sugeriu tal diagnóstico devido à condição
econômica do companheiro da paciente que apresentava um pequeno abcesso. Nesses
casos torna-se visível o discurso masculino sobre a maneira como as mulheres deveriam
se portar e relacionar com o sexo oposto.
Mas Vergueiro também se reporta a mulheres que não aceitavam esse tipo de
identidade e dominação. Isso pode ser compreendido como uma espécie de transgressão
ao modelo da mãe e esposa dedicada. São mulheres que não desejam a maternidade, tem
libido, independência financeira, escolhem seus parceiros, emitem opiniões. O
contraponto a “rainha do lar” era representado por “Eva, debochada, sensual, constitui a
vergonha da sociedade. Corruptora, foi ela a responsável pela queda da humanidade do
paraíso”. (COLLING, 2014, p. 13). Todavia, a resistência ao domínio masculino e ao
modelo imposto às mulheres não significa que elas foram bem sucedidas nas tentativas
de tornarem-se autônomas. Por exemplo, uma mulher negra chamada China, traiu o
esposo, deu à luz a um filho branco e, para não enfrentar seu marido, enforcou-se.
(VERGUEIRO, 1935, v. 1, p. 125-126).
Em outro caso, uma esposa, após o nascimento do filho, não aceitou manter
relações sexuais com o marido (primo de Vergueiro) que, resolveu procurar outra mulher.
O companheiro desta, de sobreaviso, alvejou-o com quatro tiros. Apesar de sobreviver ao
procedimento cirúrgico, o marido suicidou-se, na sequência, na presença da esposa. A
mulher que fora procurada pelo primo de Vergueiro para satisfazer seus desejos sexuais,
também pode ser englobada entre as mulheres que não aceitavam a condição que lhes era
imposta. Assim, foi qualificada como “uma depravada, uma libertina, uma devassa: em
pouco tempo, conseguira fama e direito à ‘rainha’ do mais baixo lupanar [casa de
tolerância] (VERGUEIRO, 1935, v. 2, p. 171-179).
Além destes, outro relato refere-se a uma moça mulata que foi raptada, deflorada
e afirmava que não queria casar para não se tornar escrava do marido, entretanto ela se
prostituiu, tornou-se alcoólatra e foi infectada pela sífilis. (VERGUEIRO, 1935, v. 2, p.
12-15). A partir destes relatos e de outros, verifica-se que a convenção social, aceitava o
sexo extraconjugal praticado pelos homens, no entanto, para as mulheres, essa
possibilidade era vista como inapropriada e inaceitável. Isto está expresso nos textos que
citamos e, ainda, em “043 Mordida de aranha”, “069 Tamancos”, “073 Não quero china”,
entre outros.
Ao descrever a história de uma mulher gaúcha, esposa de um fazendeiro, no conto
“069 Tamancos”, o autor define “o verdadeiro tipo da mulher-lar: boa e meiga, alegre e
ponderada, morena e esbelta – fausse maigre – trabalhadora e digna”. Ela, ingênua, foi
enganada pelo marido que contraiu gonorreia numa “extra travessura matrimonial”. Com
a confirmação do médico, o marido afirmou que ao colocar os “pés quentes no lodo frio”
“sentiu-se mal da bexiga”. Após o tratamento de dois meses, que a esposa acreditava ser
para “cistite aguda”, esta presenteou-lhe com “uma interessante dádiva: um par de
tamancos para que, recomendação especial, nunca mais pisasse no barro, com os pés
descalços...”. (VERGUEIRO, 1935, v. 1, p. 163-165).
As memórias do médico Nicolau Araújo Vergueiro dão visibilidade a homens e
mulheres de diferentes classes sociais e diferentes origens étnicas que viveram no século
XX. Elas instituem um testemunho das relações sociais, dos costumes e das normas
vigentes nesta época. No entanto, fornecem a visão, balizada pela cultura e pelo discurso
médico científico de um homem.
Fontes
JORNAL A Voz da Serra. Ano II, n. 71. Passo Fundo: 16 maio 1917.
VERGUEIRO, Nicolau Araújo. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas.
Manuscrito. v. 1: iniciado em 11/07/1935, encerrado em 6/8/1935. Rio de Janeiro. 200 p.
___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 2: iniciado em
07/08/1935, encerrado em 04/09/1935. Rio de Janeiro. 200 p.
___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 3: iniciado em
05/09/1935, encerrado em 19/10/1935. Rio de Janeiro/Passo Fundo. 200 p.
___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 4: iniciado em
20/10/1935, encerrado em 06/11/1935. Passo Fundo. 200 p.
___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 5: iniciado em
07/11/1935, encerrado em 08/12/1935. Passo Fundo. 200p.
___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 6: iniciado em
09/12/1935, encerrado em 05/03/1936. Passo Fundo. 200 p.
___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 7: iniciado em
07/03/1936, encerrado em 20/11/1936. Passo Fundo. 200 p.
___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 8: iniciado em
21/11/1936, encerrado em 03/11/1937. Passo Fundo/Rio de Janeiro. 200 p.
Referências bibliográficas
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