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Projeto cria banco de dados para analisar e prever resultados da inserção brasileira na globalização 70 JANEIRO DE 2002 PESQUISA FAPESP HUMANIDADES CIÊNCIAS ECONÔMICAS euforia neoliberal dos anos 80/90 não faz mais dogmas. Os mandamentos do novo capitalismo produziram ao longo da década efeitos reais, palpáveis. Eles são “lidos” tanto nas séries his- tóricas e nos indicadores macro e microeco- nômicos como nas imagens reais dos miseráveis. No Brasil, depois de mais de uma década de um processo de inserção global que estabilizou a economia, mas deixou um rastro enorme de perdas, já é possível desenhar o DNA da interna- cionalização. Os contrários a esse modelo já podem se de- fender dos rótulos simplistas de “neobobos”. O projeto temático Liberalização, estabilidade e cresci- mento: balanço e perspectivas da experiência brasileira nos anos 90, realizado por economistas da Universidade Estadu- al de Campinas (Unicamp), é quase um genoma da econo- mia brasileira. Coordenado pelo economista Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo e com a subcoordenação de Ricardo de Medeiros Carneiro, o projeto, financiado pela FAPESP, re- sultará ao seu final num banco de dados capaz de alimentar análises e previsões de médio e curto prazos sobre os resul- tados da inserção brasileira no mercado global. O projeto MAURICIO DE SOUZA/AE O genoma da A MARIA I NÊS NASSIF também mobiliza especialistas de dentro e de fora das uni- versidades para analisar esse período. Os “de fora”, segundo Belluzzo, cumprem o papel de evi- tar “a reiteração das próprias hipóteses do grupo”, isto é, exercem um papel crítico em relação às formulações dos pesquisadores. Isso garante a honestidade científica no tra- tamento dos dados colhidos pela equipe do projeto, embo- ra não seja uma vacina contra o mau uso desses dados por outros agentes. “Em economia é possível torturar os dados até que eles digam o que você quer ouvir. Isso é ideológico, mas também uma desonestidade científica”, diz. Em fase final de testes, o banco de dados já dispõe de aproximadamente 7,5 mil séries econômicas, 220 publica- ções e 41 instituições. No futuro, ele estará disponível para toda a comunidade acadêmica da Unicamp. O trabalho de for- mulação de hipóteses e a pró- pria concepção do banco de da- dos, além dos seminários feitos entre a equipe e com professores convidados, já resultaram num Bolsa de Valores de São Paulo e fábrica da Renault no Paraná: estabilização e globalização, mas com perdas enormes AFP PHOTO/ORLANDO KISSNER

O genoma da - Pesquisa Fapesp€¦ · que as amarras do processo de inserção brasileiro são inexoráveis. “Nós entramos com o pé errado e temos todas as condições para entrar

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Projeto cria banco de dados para analisar e prever resultados da inserção brasileira na globalização

70 • JANEIRO DE 2002 • PESQUISA FAPESP

HUMANIDADES

CIÊNCIAS ECONÔMICAS euforia neoliberal dos anos 80/90 não faz maisdogmas. Os mandamentos do novo capitalismo

produziram ao longo da década efeitos reais,palpáveis. Eles são “lidos” tanto nas séries his-tóricas e nos indicadores macro e microeco-

nômicos como nas imagens reais dos miseráveis. No Brasil,depois de mais de uma década de um processo de inserçãoglobal que estabilizou a economia, mas deixou um rastroenorme de perdas, já é possível desenhar o DNA da interna-cionalização. Os contrários a esse modelo já podem se de-fender dos rótulos simplistas de “neobobos”.

O projeto temático Liberalização, estabilidade e cresci-mento: balanço e perspectivas da experiência brasileira nosanos 90, realizado por economistas da Universidade Estadu-al de Campinas (Unicamp), é quase um genoma da econo-mia brasileira. Coordenado pelo economista Luiz Gonzagade Mello Belluzzo e com a subcoordenação de Ricardo deMedeiros Carneiro, o projeto, financiado pela FAPESP, re-sultará ao seu final num banco de dados capaz de alimentaranálises e previsões de médio e curto prazos sobre os resul-tados da inserção brasileira no mercado global. O projeto

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MARIA INÊS NASSIF

também mobiliza especialistas de dentro e de fora das uni-versidades para analisar esse período.

Os “de fora”, segundo Belluzzo, cumprem o papel de evi-tar “a reiteração das próprias hipóteses do grupo”, isto é,exercem um papel crítico em relação às formulações dospesquisadores. Isso garante a honestidade científica no tra-tamento dos dados colhidos pela equipe do projeto, embo-ra não seja uma vacina contra o mau uso desses dados poroutros agentes. “Em economia é possível torturar os dadosaté que eles digam o que você quer ouvir. Isso é ideológico,mas também uma desonestidade científica”, diz.

Em fase final de testes, o banco de dados já dispõe deaproximadamente 7,5 mil séries econômicas, 220 publica-ções e 41 instituições. No futuro, ele estará disponível paratoda a comunidade acadêmicada Unicamp. O trabalho de for-mulação de hipóteses e a pró-pria concepção do banco de da-dos, além dos seminários feitosentre a equipe e com professoresconvidados, já resultaram num

Bolsa de Valores de São Paulo e fábrica da Renault

no Paraná: estabilização e globalização, mas

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economia brasileira

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trabalho bastante avançado de diagnóstico da economiabrasileira na última década. Mais do que isso, está dandosuporte para a discussão de propostas alternativas demodelo econômico, também um papel da universidade.

O projeto de diagnóstico da economia brasileira tem,na sua origem, um trabalho feito por Belluzzo e por Ma-ria da Conceição Tavares para a Comissão Econômica daOrganização das Nações Unidas para América Latina eCaribe (Cepal) e para o Instituto de Pesquisa EconômicaAplicada (Ipea), intitulado Desenvolvimento no Brasil: re-lembrando um velho tema, e a tese de livre-docência deCarneiro, ambos bastante definidos sobre o processo deintegração brasileiro.

as hipóteses levantadas nos dois trabalhosque originaram esse projeto, a equipe já con-seguiu comprovar várias delas. Os estudosfeitos sobre a base de dados de dez anosconstatam uma completa distorção do câm-

bio e dos juros. O subprojeto que estuda o tema empregoe salário chegou à conclusão de que a aprovação da propos-ta de flexibilização das leis trabalhistas, na verdade, ape-nas institucionalizará uma informalização do trabalho quejá ocorreu na prática. O acompanhamento das fusões e dasincorporações de empresas, ao longo do período de inser-ção na economia global, mostra, segundo Belluzzo, que oBrasil seguiu ipsis litteris a tendência mundial, impondo umaacelerada desnacionalização da economia brasileira.

Já no trabalho para a Cepal, Belluzzo e Conceição alinha-varam os pontos de estrangulamento do modelo brasileirode inserção – sem, no entanto, assumirem suas críticas comooposição pura e simples ao projeto de globalização. “Nãoé uma recusa à inserção, que é inevitável, mas à formacomo ela está sendo feita”, diz Belluzzo.“A globalização é umlocus de oportunidade e, ao mesmo tempo, de bloqueios– os resultados dependem de como você decide a sua in-serção no processo global.” Os exemplos de que os proble-mas estruturais originários da forma de inserção brasileirapoderiam ser evitados são a China e a Índia. “Na épocaem que escrevemos esse estudo, não estavam ainda tãoclaros os acertos dos dois países. Hoje o Banco Mundialos incensa, dizendo que fizeram a in-serção correta.”

Belluzzo e Conceição consideraramdefinitiva a mudança que ocorreu nospadrões de concorrências e nas estra-tégias de localização das empresastransnacionais e a predominância daentrada de capital mais volátil no mer-cado periférico. Também rejeitaramcomo anacrônico o modelo desenvol-vimentista dos anos 50/60, de substitu-ição de importações. Mas constataramos prejuízos decorrentes da entrada doBrasil sem defesas nesse novo patamarda economia internacional.

A aceitação plena do mercado livre e da abertura in-condicional, por exemplo, pode ter produzido o efeito deum grande ganho de competitividade para algumas em-presas brasileiras, concorda Belluzzo. Mas os númerosmostram que, do ponto de vista do perfil industrial bra-sileiro, houve uma “regressão relativa”, isto é, perto doavanço dos demais países, o Brasil andou menos.

Da mesma forma, a convicção, embutida no Consensode Washington, de que as taxas flutuantes de câmbio garan-tem maior estabilidade que as fixas, tornaram a economiamais sujeita a sobressaltos, além do efeito que elas têm so-bre os preços. Um movimento muito pequeno das taxaspode deixar o exportador de um país periférico entre oprejuízo e o lucro. Isso cria uma grande incerteza no de-sempenho da balança comercial. “Para os que entraramde cabeça na etapa gloriosa da globalização, este é umproblema particularmente grave”, observa Belluzzo.

Da mesma forma, as privatizações sem regras e aabertura da economia sem controle produziram outradistorção estrutural: as empresas sediadas no Brasil têm,em geral, um grande déficit em sua balança comercial,isto é, desnacionalizaram a sua produção. Um surto dedesenvolvimento econômico, em vez de produzir superá-vits na balança comercial brasileira, pode torná-la maisdeficitária.

“As taxas de crescimento dos últimos anos desenhamuma montanha-russa”, compara Belluzzo. “Isso porque,freqüentemente, a economia encontra uma restrição se-vera do ponto de vista do balanço de pagamentos, que aca-ba obrigando o Banco Central a manejar a política mo-netária de maneira restritiva”, afirma. Um movimentocumulativo de desvalorização do real, por exemplo, podeprovocar uma mudança abrupta no portfólio dos agen-tes econômicos.

As pesquisas feitas na Unicamp comprovam tambémque a instabilidade financeira do Brasil – como da maio-ria dos países periféricos do Consenso de Washington – éregistrada em ciclos, que estão cada vez mais curtos. “Umpequeno ciclo de euforia é seguido por um de retração, eaí volta de novo, e no outro momento torna a refrear aeconomia por conta da miopia que toma o mercado de

curto prazo.” Os reflexos da crise ar-gentina sobre o Brasil, segundo ele,são um exemplo dessa variação cícli-ca, embalada pelos humores dos in-vestidores.

Seguir a expectativa do mercado,respondendo ora às expectativas dosinvestidores internacionais, ora às ne-cessidades dos agentes econômicos in-ternos, é um risco para os dois preços-chave da economia, câmbio e juros.“Já há uma certa convergência de opi-niões de que devemos proteger a taxade câmbio real”, diz o economista. AChina, por exemplo, fez uma grande

72 • JANEIRO DE 2002 • PESQUISA FAPESP

O PROJETO

Liberalização, estabilidade e crescimento: balanço e perspectivas da experiência brasileira nos anos 90

MODALIDADE

Projeto temático

COORDENADOR

LUIZ GONZAGA DE MELLO BELLUZZO –Unicamp

INVESTIMENTO

R$ 208.808,00

D

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desvalorização de sua moeda em 1994 – devastando ospaíses vizinhos – e passou a exportar o que pôde. “Oschineses perceberam que países daquele tamanho –como também do tamanho do Brasil e da Índia – nãopodem ter uma economia sem nenhum controle”, afirmao economista. O governo chinês adotou um controle se-letivo de capital externo que, ao ingressar no país, eraobrigado a obedecer a determinadas regras e a trabalharem consonância com a estratégia econômica de cresci-mento do governo local.

a opinião de Belluzo, é equivocado situar aglobalização como o grande vilão da histó-ria – mas é igualmente errado acreditarque as amarras do processo de inserçãobrasileiro são inexoráveis. “Nós entramos

com o pé errado e temos todas as condições para entrarcorretamente”, afirma o economista, deixando claro queessa é uma posição pessoal.

“Entrar errado”é aceitar sem críticas o discurso de libera-lização plena da economia.“No final dos anos 80, começo dosanos 90, havia uma grande pressão ideológica que se refletianos pronunciamentos empresari-ais e no comportamento da mí-dia”, lembra Belluzzo. “Houveuma idéia de rejeitar o passadocomo um erro fatal: o próprioGustavo Franco veio com a frasede que vínhamos de 40 anos deburrice”, diz.

O tempo, no entanto, mos-trou que o liberalismo sem controle dos países periféricosque levaram a ferro e fogo o Consenso de Washington erauma ingenuidade. As economias dos próprios países ricosnão são tão livres assim. “O mundo é uma combinação deprotecionismo e abertura.” Belluzzo remete à discussão so-bre a Alca. Os Estados Unidos estão no seu papel: queremo máximo de concessões do outros países envolvidos nanegociação e fazer o mínimo delas. “O Brasil, então, é aco-metido por uma oscilação moral: de um lado, os que sãocontra a Alca; de outro, os que são a favor”, diz. A questão,segundo o economista, não é aceitar as imposições dos Es-tados Unidos ou recusar o bloco comercial, mas “jogar ojogo”, isto é, conseguir o máximo de concessões dos outrospaíses e fazer o mínimo.

A necessidade de o Estado brasileiro assumir uma po-lítica ativa de desenvolvimento é a contraposição naturalàs distorções estruturais do modelo econômico atual. Noestudo de Belluzo e Conceição Tavares, eles concluemque o Estado deveria ter desempenhado um papel maisativo no decorrer do processo de liberalização da econo-mia, para criar instrumentos de poupança de longo pra-zo, fazer a reestruturação produtiva da empresa nacional,investir em produção de tecnologia e alterar a estruturade gastos públicos, de forma a reduzir a pobreza e a mádistribuição de renda.

PESQUISA FAPESP • JANEIRO DE 2002 • 73

AFP

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Os dois autores reconhecem que as condições interna-cionais não favorecem uma mudança de rumo da econo-mia brasileira, mas, de outro lado, não acreditam no fôlegodo atual modelo. O Plano Real produziu resultados me-díocres e instáveis. Eles propõem um “projeto contra a cor-rente”, ao pregarem “uma intervenção mais forte, abran-gente e contínua do Estado Nacional e das instânciaspúblicas subnacionais”. Para eles, este é um papel do Es-tado – a sociedade civil e os movimentos sociais não po-dem ficar com a responsabilidade de construção de um“Estado do Bem-Estar”. •

Inserção brasileira deveria ter seguido

os modelos da Índia (acima) e China,agora elogiados pelo

Banco Mundial

NA

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HO

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O Plano Real fez a opção pelo capital externo de cur-to prazo, apostou na melhora da eficiência dos investimen-tos públicos com a privatização; no investimento externopara equilíbrio do balanço de pagamentos; e na aberturacomercial como o desafio capaz de modernizar as em-presas nacionais. A conclusão do estudo é de que houve“perda de controle nacional sobre as empresas e os ban-cos” e a desarticulação dos “mecanismos de governança ede coordenação estratégica da economia brasileira”.